gertrud von le fort - a Última ao cadafalso

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http://alexandriacatolica.blogspot.com Sobre Gertrud von le Fort e sua obra: "Ela é, com certeza, a maior poetisa não só da Alemanha, mas de toda a Europa" (Manoel Bandeira, em 1936). "Ela sublinha e desenha o litoral c enfeita todas as enseadas e todos os promontórios humanos com uma renda deslumbrante" (Paul Claudel, em 1937). "As obras de le Fort estão impregnadas de conceitos poéticos genialíssimos. Quem as lê não se sente apenas elevado, mas enlevado" (Mansueto Kohnen, O.F.M., em 1941). "O reconhecimento (da grandeza da obra de Gertrud von le Fort) se fez sem nenhuma propaganda ou publicidade jornalística" (Theodorich Kampmann, em 1935). "As obras de Gertrud von le Fort em nada foram, na Alemanha, obnubiladas nem pelas de Ernst Júnger nem pelas de Thomas Mann" (A. Flocke, em 1960). ATENDEMOS PELO REEMBOLSO POSTAL r—I—\

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Page 1: gertrud von le fort - A Última ao Cadafalso

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Sobre Gertrud von le Fort e sua obra: " E l a é, com certeza, a maior poetisa não só da Alemanha, mas de toda a Europa" (Manoel Bandeira, em 1936). " E l a sublinha e desenha o litoral c enfeita todas as enseadas e todos os promontórios humanos com uma renda deslumbrante" (Paul Claudel , em 1937). " A s obras de le Fort estão impregnadas de conceitos poéticos genialíssimos. Quem as lê não se sente apenas elevado, mas enlevado" (Mansueto Kohnen, O . F . M . , em 1941). " O reconhecimento (da grandeza da obra de Gertrud von le Fort) se fez sem nenhuma propaganda ou publicidade jornalística" (Theodorich Kampmann, em 1935). " A s obras de Gertrud von le Fort em nada foram, na Alemanha, obnubiladas nem pelas de Ernst Júnger nem pelas de Thomas M a n n " (A. Flocke, em 1960).

A T E N D E M O S P E L O R E E M B O L S O P O S T A L r—I—\

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Coleção N O V E L A S V O Z E S

A Última ao Cadafalso — Gertrud von Le Fort

Gertrud von le Fort

A ÚLTIMA A O C A D A F A L S O

NOVELA

Tradução d Roberto Furquim

vVCZES,

Petrópolis 1988

Page 3: gertrud von le fort - A Última ao Cadafalso

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© 1988, Editora Vozes L tda . Rua Frei Luís, 100 25689 Petrópolis, R J e r *

Brasil Prefacio

Diagramação Valderes Barbosa

Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda. em maio de 1988.

QUANDO pensamos d o m i n a r o mistério h u m a n o em sua graça e beleza, ciosos da j u s t e z a de nossas bem elaboradas análises, ele i os surpreende dei-xando-nos boquiabertos d i a n t e de suas r e v e l i a s . E, aí, concluímos: pobres somos nós, presunçosos r o -t u l a d o r e s apressados de nossas indevassáveis paisa­gens i n t e r i o r e s . Nosso mistério é insondável. Sobre ele não se pode d i z e r u m a última p a l a v r a . E l e será sempre m a i o r que nossas mãos que o pretendem a p r i s i o n a r e nossa cabeça que pensa d e f i n i - l o . O úni­co que pode tratá-lo bem é o coração que não se a f a d i g a em acariciá-lo.

T u d o isso se t o r n a l u m i n o s o n o l i v r o A Últi­ma ao Cadafalso, da e s c r i t o r a alemã G e r t r u d v o n le F o r t . Torna-se difícil p o l i c i a r o e n c a n t a m e n t o e o e n t u s i a s m o d i a n t e desta obra. O mínimo que se pode d i z e r dela ê que é m a r a v i l h o s a , u m a l e i t u r a p a r a a a l e g r i a do espírito. Não se t r a t a apenas de l i t e r a t u r a , que ela é, em seu e s t i l o a p u r a d o , de beleza irretocável e graça a r r e d o n d a d a e p u r a ; t r a -ta-se também de deixar-se s u r p r e e n d e r pela d e l i c a -

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deza e s e n s i b i l i d a d e , f i n a e r e f i n a d a , de u m a escri­t o r a que é m u l h e r , c o n s i s t e n t e em suas analises do mistério h u m a n o , r i c a em suas abordagens e sem­p r e f a s c i n a n t e em suas medidas. G e r t r u d v o n le F o r t é u m a g r a n d e e s c r i t o r a , só comparável, sob a l g u n s aspectos, à recém-falecida a u t o r a , francesa M a r g u e r i t e Y o u r c e n a r . M a s ela é também u m a mes­t r a dos nossos segredos mais escondidos. A o lê-la, tem-se a certeza de que ela não está m a l t r a t a n d o o nosso mistério, sempre b o n i t o e f e c u n d o , embora perpassado de temores e t r e m o r e s .

A n o v e l a A Última ao Cadafalso f o i e s c r i t a em 1 9 3 1 e n a r r a a história do martírio de 16 m o n ­jas C a r m e l i t a s , vítimas da Revolução Francesa, n o ano de 1 7 9 4 . E s t a Revolução escrevera em sua b a n d e i r a os ideais de L i b e r d a d e , F r a t e r n i d a d e e I g u a l d a d e . M a s ninguém é tão f i e l a seus ideais a p o n t o de s u p o r t a r , d e m o c r a t i c a m e n t e , o falseamento aparente, por t e r c e i r o s , de suas intuições salvado­r a s . E f o i i s t o o que se passou, também, com os p r o p u g n a d o r e s de tão altos valores revolucionários. A i m a t u r i d a d e a i n d a d i s s o l u t a dos que p r o c l a m a v a m a l i b e r d a d e a t r o p e l o u e l e v o u à g u i l h o t i n a os que não c a n t a v a m a " C a r m a g n o l e " e não d a v a m , em praça pública, v i v a s à Nação. O c o n d u t o r da t r a m a do l i v r o sentencia com justiça, sem n e n h u m a amar­g u r a : " O trágico não f o i que nossos ideais t e n h a m sido falsos, mas apenas i n s u f i c i e n t e s " .

A n o v e l a A Última ao Cadafalso ê mais do que a história trágica de 16 m o n j a s , i n o f e n s i v a s e frágeis, que sobem p a r a o sacrifício f i n a l de suas v i d a s , c a n t a n d o e t e s t e m u n h a n d o sua fé. N e l a se r e t r a t a , c r u a m e n t e , o p e r m a n e n t e p r o b l e m a h u m a ­n o , até hoje i r r e s o l v i d o : O que fazer com o poder? Como usar a força? O u , em o u t r a s p a l a v r a s , quem

é f o r t e ? Q u e m é fraco? Q u e m é qne vence a l u t a pela sobrevivência? O u quem é qne permanecerá v i v o n a memória das gerações f u t u r a s : os t i r a n o s que usam e abusam do poder ou o povo que, com d i g n i d a d e , sobe ao patíbulo, t e s t e m u n h a n d o suas crenças e c a n t a n d o seus h i n o s ?

G e r t r u d v o n le F o r t c o n c e n t r a suas análises em duas personagens d e n t r o de u m m o s t e i r o car­m e l i t a : a p r i m e i r a , Irmã M a r i a da Encarnação, é f o r t e , goza de r a r o d i s c e r n i m e n t o das situações, ê intremível nas decisões, m o s t r a grandeza e majes­tade, mesmo q u a n d o r e d u z i d a ao silêncio e à obe­diência. É a S u p e r i o r a da c o m u n i d a d e . A segunda, a noviça B l a n c h e de l a Force, que as coirmãs t e i ­m a m em c o g n o m i n a r "de l a Faiblesse", é tímida c a m e d r o n t a d a , frágil e d e r r o t a d a , trânsfuga do mos­t e i r o e marcada pelo medo desde o útero m a t e r n o . V i v e a n g u s t i a d a , embora creia em si mesma, ou m e l h o r , n u m a força que parece subjazer à capa frágil de sua personalidade. Q u e m delas está mais preparada p a r a o g r a n d e desafio do martírio? Q u e m cantará mais f o r t e d i a n t e da g u i l h o t i n a ?

A pessoa é, n a verdade, m i n t o mais do que suas aparências. O seu mistério p r o f u n d o a s u p l a n ­t a , d e c i s i v a m e n t e , p a r a o espanto de si mesma e p a r a a admiração dos o u t r o s . Sobre cada v i d a , quem poderá d i z e r a última p a l a v r a , l a v r a r u m juízo de­f i n i t i v o ? Tentamos fazê-lo, s u p e r f i c i a l m e n t e , quase todos os dias. M a s o mistério do ser h u m a n o de­v e r i a recolher-nos a u m respeitoso silêncio, pois, p a r a s u r p r e s a nossa, a última ao cadafalso pode v i r a ser u m a m o n j a f r a c a e a m e d r o n t a d a . D e l a pode ser o c a n t o mais f o r t e d i a n t e da lâmina r e l u ­zente da g u i l h o t i n a e dos apupos b i z a r r o s de u m a multidão i m b e c i l i z a d a por ideais m a l - d i g e r i d o s . M a i s

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do que nossas coragens, v a l e m as forças estranhas que se escondem p a l p i t a n t e s n o f u n d o do nosso ser, que, p a r a os cristãos, se chamam de graça e, p a r a todos os homens, de mistério: O insondável m i s ­tério h u m a n o , que G e r t r u d v o n le F o r t tão bem t r a t o u neste l i v r o g e n i a l .

Frei Neylor J . Tonin , O . F . M .

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V a r i s , o u t u b r o de 1 7 9 4

QUERIDA AMIGA:

E m tua carta exaltaste, com razão, a energia extraordinária que o chamado "sexo frágil" demons­trou possuir em face da morte, durante as semanas do Terror. Aludiste , com admiração, ao comporta­mento da "nobre" Madame Roland, da " r e a l " Maria Antonieta, da "admirável" Carlota Corday e da "heróica" M l l e . Sombreul (reproduzo as tuas pró­prias expressões). Concluíste citando o "pungente" sacrifício das dezesseis carmelitas de Compiègne que subiram à guilhotina cantando o " V e n i Creator" . Não esqueceste também, na tua carta, a voz como­vente da jovem Blanche de la Force que retomou e entoou, até o f i m , o hino que o machado do car­rasco interrompera.

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" C o m uma pujança que força a admiração — assim termina a tua carta — afirma-se, em todas, quer sejam mártires da realeza, quer da G i -ronda ou da Igreja perseguida, a dignidade da na­tureza humana diante da veemência de um caos de atrocidades " .

Querida discípula de Rousseau! A d m i r o mais uma vez a clarividente nobreza de teu espírito que, mesmo no seio das mais terríveis derrocadas do género humano, acredita ainda na indestrutível dig­nidade da nossa natureza. Contudo, minha amiga, o caos encontra-se também na natureza e tanto o carrasco de tuas heroínas como a besta habitam o íntimo do homem, onde também lançam suas raízes o terror e o espanto!

Querida emigrante, muito mais que tu, estou eu possuído pelo espanto, com referência a esses acontecimentos de Paris, pois me acho mais perto deles. Permite-me, portanto, confessar-te francamente que me inclino a ver na admirável firmeza de nossas vítimas quotidianas não somente a dignidade da natureza humana, como também o último gesto de uma civilização em ruínas — dessa civilização, tão profundamente desprezada por t i . A h , minha querida, devemos de novo aprender a respeitá-la! A sua inflexível etiqueta se impõe, mesmo diante do pavor.

Nesse nobre desfile mencionaste em último lugar a jovem Blanche de la Force. N o entanto, não foi ela uma heroína no sentido que emprestas a esse termo. Essa delicada criatura não foi o exemplo da dignidade da natureza humana. F o i , antes, o signo da fragilidade infinita de toda a nossa força e soberania. Isto, aliás, confirmou-o a irmã

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Maria da Encarnação, a única sobrevivente das reli­giosas do Carmelo de Cornpiègne.

Talvez ignores que Blanche de la Force foi uma religiosa fugida do Carmelo de Cornpiègne, ao qual pertencera, durante certo tempo, como noviça. Deixa-me, então, falar um instante desse curto, mas tão importante episódio, pois é nele — parece-me, ao menos — que se inicia o hino cantado ao pé do cadafalso.

Conheces o marquês de la Force, pai da jo­vem Blanche. Não preciso falar, pois, da admiração que este votava às obras céticas de Voltaire e Diderot . É também do teu conhecimento a sua sim­patia por certos patriotas liberais do Palais Royai . Mas não havia, por parte do marquês, uma inten­ção revolucionária que pudesse induzir a outras con­sequências. Esse fino aristocrata jamais pensou que os saborosos condimentos de suas conversações pu­dessem chegar até a cozinha grosseira do povo. Mas não disputemos sobre os erros fatais de nosso po­bre amigo. Como tantos dentre os seus semelhantes, ele próprio os expiou. ( A h , minha amiga, todos nós temos, em suma, andado a margear de muito perto essas ideias!) . Mas , para o que se segue, interessa-nos apenas saber o que pôde levar o marquês de la Force a confiar sua filha ao convento.

N o tempo em que Blanche residia em Corn­piègne, tive ocasião de avistar-me com o marquês. Discutia, então, com os amigos, sobre a liberdade e a igualdade, nos cafés do Palais Royai . Cada vez que era interrogado sobre a f i lha, respondia, com um ar aflito, que para ele as "prisões da religião não eram menos terríveis que as do Estado" . Con­fessava, porém, que sua pequena filha se sentia

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feliz na sua e, sobretudo, — ao menos o acreditava — muito bem guardada.

— Pobre criança medrosa — era com essas palavras que costumava concluir. — A s tristes cir­cunstâncias de seu nascimento determinaram toda a sua atitude em face da vida.

E , de fato, era bem isto e todos o sabiam.

Mas creio, querida amiga, que esta última alusão do marquês de la Force nada significa para t i , pois, na época da qual ele fala, tu eras uma criança. Trata-se da famosa catástrofe do fogo de artifício no casamento do D e l f i m — mais tarde Luís X V I — com a filha do imperador da Áustria.

Pretendeu-se ver, então, nessa catástrofe, uma espécie de sinal: o sombrio presságio do destino reservado ao casal de príncipes. O r a , não era ape­nas um presságio; era também um símbolo. (Que­rida, as revoluções nunca são provocadas unicamente pela má administração e os erros de um regime. Estes são apenas as causas imediatas de sua defla­gração; mas a essência das revoluções reside no de­sencadeamento do terror-pânico de uma época que atingiu o seu termo. E é bem nisto que reside o elemento simbólico de que fa lo) .

De resto, é seguir um caminho completa­mente errado considerar o deplorável incidente da praça Luís X V como efeito de uma negligência nas medidas tomadas para a manutenção da ordem. Esta opinião era propagada, na época, com o fito único de dissimular o que havia de enigmático na brusca explosão de terror desencadeada na multidão. (Nada é mais intolerável do que o mistério, para os nossos tempos esclarecidos. . . ) .

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C o m efeito, todas as medidas possíveis ha­viam sido providenciadas. Todas as precauções haviam sido tomadas para tais circunstâncias, de modo que nada mais deixava a desejar. Aclamadas pela mul­tidão reverente, as carruagens da nobreza — entre elas a da marquesa de la Force, então preste a dar à luz — conservavam-se fora da massa compacta dos pedestres e dos pesados carros preparados com esmero. A s esquinas das ruas que iam desembocar na praça Luís X V estavam guardadas por funcio­nários da polícia c i v i l , que também dirigia o povo.

Este era ainda bem comportado, bem nutri­do, a despeito da já proverbial "miséria da época". Cada indivíduo parecia ser um burguês abastado e se sentia feliz com a sua condição. N a alegre expec­tativa da festa, e na delicadeza que manifestava diante das injunções dos agentes da ordem, essa gente se mostrava bem longe do caos da anarquia em que seria laçada meia hora mais tarde. A explo­são da catástrofe foi realmente tão brusca quanto inconcebível, pois era justamente um presságio.

U m pequeno incêndio na reserva dos fogos de artifício, nenhum incidente pessoal, e o pânico surgiu como um relâmpago, alastrando-se por toda parte. Os policiais não puderam mais, de repente, erguer os braços, pois haviam sido tragados pela massa; os alegres e leais cidadãos haviam desapa­recido com seus companheiros. H a v i a apenas um único, selvagem e monstruoso amontoado humano, esmagado pelo próprio terror da morte. O caos, que brame eternamente no mais profundo dos elementos, rompeu a crosta aparentemente firme dos hábitos.

Pelas vidraças do seu coche real, que fora arrastado na onda terrível, a marquesa de la Force

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contemplava o horrendo espetáculo. O u v i a gritar por socorro os que tinham sido arremessados ao solo, gemer os que eram esmagados sob os pés, enquanto em sua espaçosa carruagem ela se sentia protegida como num barco.

Com um gesto involuntário, apoiou sua mão delicada sobre a tranqueta da portinhola. Estava um pouco enferrujada, pois o coche era ainda dos tempos atormentados da Fronda. Nesta época, pu-nham-se esses ferrolhos nas portinholas das carrua­gens, pois nunca se podia saber com certeza se não se teria de fugir u m dia na carruagem. Mas , depois, essas fechaduras perderam a utilidade.

Se bem que certa de estar em absoluta se­gurança, a marquesa sentia-se um pouco nervosa — o que não era de admirar, pois a vista de uma multidão é sempre para o indivíduo qualquer coisa de doloroso. Mas neste momento, ou porque os cavalos houvessem disparado, perturbados pela de­sordem geral e pelos gritos, ou porque o cocheiro, perdendo a cabeça, quis libertar a carruagem do tumulto — o fato é que os animais arremeteram, de repente, e lançaram-se com violência contra a multidão que uivava de cólera e desespero. Cerca­dos por todos os lados, os cavalos foram detidos. A portinhola da carruagem saltou — era o começo da anarquia. Por um momento ela se mostrou como o espectro anunciador da revolução.

— Madame — gritou com voz selvagem um homem que tinha em seus braços um menino co­berto de sangue — a senhora goza agora do con­forto de sua carruagem enquanto o povo é massa­crado pelas patas de seus cavalos! Mas não passará muito tempo sem que morra a gente da sua espécie e sem que sejamos instalados em seus lugares!

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A o mesmo tempo, a marquesa v iu refletida em cem fisionomias a máscara do monstro do terror, semeando o pânico por toda parte. U m minuto de­pois, era arrebatada do coche e no seu próprio rosto refletiu-se, então, o pavor da multidão.

Dizia-se que Blanche nascera na carruagem um tanto avariada que conduzia sua mãe da praça Luís X V a casa. Este pormenor é um pouco fan­tasiado pela crónica. Porque a verdade é que viram a marquesa, com os vestidos em trapos e uma fisio­nomia de medusa, regressar a pé ao palácio. E tam­bém que deu à luz a criança, prematuramente, pelo choque que sentira, morrendo pouco depois.

O r a , não hesito — concordo, a este respeito, com o marquês de la Force — em relacionar as disposições que determinaram o comportamento da pobre menina com as circunstâncias de sua vinda ao mundo. Não somente a crença popular, mas a própria experiência dos médicos, consideram tais fe­nómenos perfeitamente plausíveis.

A jovem Blanche, cujo pavor experimentado por sua mãe fizera nascer antes do tempo, viveu sempre sob a influência da impressão que lhe cau­sara esse primeiro sentimento de medo. Bem cedo demonstrou um temor que excedia muito ao que se observa geralmente nas crianças. Comumente, a criança se atemoriza a propósito de tudo e por um nada, o que é atribuído quase sempre à ignorância. O brusco ulular do seu próprio cão deixava-a toda trémula. A fisionomia estranha de um servo novo fazia-a recuar como diante de um fantasma. E r a impossível libertá-la do medo causado por certo nicho sombrio do corredor, diante do qual passava todo dia, conduzida pela governanta que lhe segu-

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rava a mão. Viam-na agitar-se toda quando percebia no jardim um pássaro agonizando ou um caracol morto.

Dir-se-ia, ao vê-la, que aquela pequena cria­tura, digna de dó, se consumia na expectativa per­pétua de algum terrível acontecimento, do qual somente podia defender-se por uma espécie de v i ­gilância sem descanso, tal como os pequeninos ani­mais doentes que dormem com os olhos abertos. O u , então, como se os seus grandes olhos de crian­ça aterrorizada penetrassem além da trama cerrada do presente até profundezas de uma fragilidade es­pantosa.

— A escada não cairá? — perguntava Blan­che, ao ser conduzida até o alto da torre fortif i ­cada do Castelo de la Force, berço de sua família, onde o marquês costumava veranear. Essa torre en­frentara sete séculos e poderia resistir ainda outro tanto.

— A muralha não ruirá? Não nos farão mal os homens?

Eram interrogações que a pequena Blanche trazia constantemente aos lábios. Costumavam expli-car-lhe que não havia motivo de medo e que nada lhe aconteceria. E l a ouvia com um rosto apreensivo, tudo examinava, pois não vivia integrada neste mun­do e persistia no seu terror.

N e m a doçura, nem a severidade, nem mes­mo a indubitável boa vontade da pobre criança conseguiram melhorar sua disposição de espírito. Até mesmo concorria essa boa vontade, por assim dizer, para agravar-lhe a situação, pois Blanche se encon­trava a tal ponto deprimida pela inutilidade de

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seus esforços que, embora incessantemente encora­jada, reputava a menor falta como pecado. Era-se tentado a afirmar que temia o seu próprio temor.

C o m o tempo, Blanche inventou pequenos incidentes para disfarçar a sua atitude — pois era criança bem-dotada e não lhe faltava bom senso. Não a ouviam mais dizer: " A escada não vai ca ir?" Mas o esforço a fatigava e a fazia sofrer, a ponto de ela esquecer-se, bruscamente, de estudar as suas atitudes. Achava, então, u m motivo qualquer para deixar de subir as escadas.

Os servos sorriam e apelidavam-na "peque­na lebre" . Mas isso não parecia aborrecê-la. Até pelo contrário. Provavelmente ela sofria ainda mais com a sua fraqueza por ter de se esforçar para dissimulá-la. Podia-se mesmo perceber que esse es­forço levava-a até a tortura. Jamais uma criança tão nobre e culta mostrou-se tão tímida e ruborizou-se com tanta confusão. O título elevado de sua linha­gem parecia-lhe ter-lhe sido infligido por injustiça, como pura etiqueta, e o nome de la Force por der-risão. Blanche era o único nome cabível, mais ainda se se pensava na palidez de seu semblante. Mas o nome que melhor lhe convinha era: "pequena lebre".

Ass im se apresentavam os fatos, quando o marquês de la Force contratou M m e . de Chalais para governanta. Essa admirável educadora conse­guiu, por f i m , vencer até um certo ponto a timidez da menina, cuidando, com tanto carinho, quanto firmeza, de sua instrução religiosa, até então deplo-ravelmente negligenciada. Isto, aliás, não admira, dadas as ideias liberais do marquês. Mas , para Blanche, essa lacuna era particularmente lamentável,

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pois neste ponto e k era muito diferente co pai : demonstrava possuir uma natureza eminentemente religiosa.

Psicóloga, M m e . de Chalais mostrou grande clarividência, procurando concentrar a atenção da criança precisamente para o Menino Jesus. Blanche teve, então, seu primeiro encontro com o "pequeno Rei da Glória". (Conheces, querida, aquela original figurinha de cera do Carmelo de Cornpiègne que — para o gosto das crianças — é exposta na ca­pela, em dezembro).

O pequeno Rei tinha uma coroa e um cetro de ouro, oferecidos pelo rei da França; para de­monstrar, assim, que o pequeno Rei possuía o reino do céu e o da terra. E m reconhecimento desse presente, o pequeno Rei protegia a ele e aos seus súditos: podia-se, pois, viver com toda a confiança em França, sem pensar em escadas que se desman­cham ou em muralhas que vão a baixo. Bastava testemunhar um pouco de confiança, como faziam Suas Majestades ao pequeno Re i . Para isto, não era preciso possuir coroa ou cetro. Era necessário, isto sim, a oração e toda espécie de pequenos atos de amor, de homenagem e de obediência oferecidos em sua honra. E , se assim se procedia consciente­mente, poder-se-ia contar com a proteção do peque­no Re i , com mais certeza do que com a do próprio rei da França.

O r a , como já dissemos, Blanche era natu­ralmente inclinada para a religião, mas, ainda assim, M m e . de Chalais deveria, no começo, enfrentar grandes dificuldades. Mesmo depois de tudo passa­do, embora sentisse prazer em relembrar os seus sucessos pedagógicos, não gostava de falar deles.

— Deves convencer-te por ti mesma de que é facílimo, para o Re i do Céu, proteger-te — dizia-lhe, com voz suave, mas incisiva, nos dias em que Blanche se punha a tremer ao subir a escada. — Pensa bem, se nosso rei terestre é poderoso, quanto não o será o do Céu!

Blanche ergueu para a governanta seu peque­no rosto curioso. Por um instante seus olhos pa­reciam pequenos pássaros inquietos.

— Mas , se ele perder a coroa?. . . — per­guntou, pensativa.

M m e . de Chalais, por um momento, ficou surpresa. De fato, essa objeção não lhe havia jamais passado pelo espírito. Mas logo se refez, pois pos­suía, em grau elevado, a arte de repelir questões que lhe pudessem embaraçar. Às vezes Blanche tinha a impressão de que elas iam e vinham, rebatidas nas baleias de seu espartilho, um pouco ajustado.

— O r a , Blanche, não pensaste seriamente nisso — dizia ela — . Não se perdem coroas como lenços de bolso. Trata-se, apenas, de se mostrar digno delas. T u me prometeste jamais te esquecer de tua oração e podes estar certa de que, por seu lado, o Re i do Céu não negligenciará coisa alguma para te proteger. Acredita-me, nenhum motivo tens para atemorizar-te ao subires escadas.

Blanche estremeceu — tratava-se da escada, a respeito da qual sempre indagava se não "ca i r ia" . A contragosto, abandonou, então, a mão da gover­nanta e tentava agarrar-se ao corrimão, quando, por acaso, a barra da balaustrada se quebrou.

M m e . de Chalais percebeu, estampado no semblante de Blanche, todo o seu receio de pássaro

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amedrontado. Por um instante, o medo e a con­fiança trccaram olhaies frisando bern a animosidade. Logo a seguir, porém, já não era mais a escada que caía, mas M m e . de Chalais. Dir-se-ia que tro­cara de papel com a medrosa criança.

— Como podes causar-me tanto medo? — gritou. E assim falando, lançou ligeiramente o busto para trás. provocando um ruído seco com as baleias do espartilho.

Esse contágio, é claro, dissipou-se rapidamen­te. M m e . de Chalais não era mulher que se per­mitisse abandonar-se a tais sentimentos de temor.

Os obstáculos que a governanta encontrava da parte de Blanche foram cedendo cada vez mais, à medida em que na sua inteligência jovem os pen­samentos e as imagens da piedade cristã fizeram desaparecer os temores confusos. Isso não me custa compreender: ah, querida, que consolação decorre do mundo da fé! Recordo-me bem nitidamente, quando me volto para os dias da infância, da estra­nha repercussão da prece, por todas as profundi­dades do ser, até um ponto onde o pecado não atinge.

Blanche deveria ter experimentado, então, fenómeno semelhante. Essa pobre criança repelia, com obstinação, todas as garantias terrenas com que se procurasse tranquilizá-la. Mas chegou a abrigar confiantemente o seu pobre coração temeroso sob as asas da infinita Onipotência. A "pequena lebre" adquiria coragem. M m e . de Chalais teve a satisfação de ver Blanche chegar a sorrir de seus temores passados, zombar deles com pequenas brincadeiras de desprezo, que demonstravam a fanfarronice de sua idade, mas que deixava a todos tranquilos.

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E r a , agora, uma delicada mocinha de dezes-seis anos, com uma boca pequena num rosto tam­bém pequeno e um pouco fino. Mme. de Chalais fê-la usar um espartilho tão apertado quanto o seu, o que lhe dava aos movimentos uma graça quase geométrica. Contudo, ninguém mais a achava medro­sa. E n f i m , as coisas tomaram outro rumo. Por sua vez, o marquês de la Force não tardou em procurar casamento adequado para a fi lha. Mas grande foi a sua surpresa, quando M m e . de Chalais lhe fez saber, em termos categóricos, que Blanche não se sentia chamada para o matrimónio, mas, sim, para a vida religiosa.

Não é preciso dizer que o marquês de la Force, homem perfeitamente integrado no espírito francês, que considerava a Igreja como coisa do passado, foi contrário a semelhante projeto. F o i visto, então, comentando, irritadamente, o fato de M m e . de Chalais, na qual depositara tão grandes esperanças, não ter encontrado algo de melhor, que ajudar a construção de uma ponte pela qual Blanche fugiria ao mundo. Essa criança seria ainda tão me­drosa como dantes.

O r a , para certas naturezas — argumentava o pobre marquês — é precisamente no claustro que desaparece essa terrível incerteza da vida. Nele, bem sólidas fronteiras delimitam o deserto das possibi­lidades. A s intrusões e as exigências inesperadas do destino não serão ali para temer, mas se pro­gride entre regras, pensamentos e muralhas cons­truídas de uma vez para sempre. Essas muralhas, mesmo, segundo a expressão do marquês, não se abriam mais para a "realidade", e não davam pas­sagem senão aos amáveis fantasmas do céu e aos das religiosas.

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Por m a s abusiva que pudesse parecer tal interpretação, havia, certamente, em tudo isso, algo de justo no que diz respeito à decisão de Blanche. Mas seria um glande erro considerá-lo em primeiro lugar. É preciso ter-se sempre em conta que Blan­che era verdadeiramente religiosa.

N o Carmelo de Cornpiègne, onde M m e . de Chalais tinha relações, Blanche provocou a mais favorável impressão. A prioresa Croissy, já doente, vivia ainda nessa época. A ela foi Blanche apre­sentada. Perguntando-lhe a madre se a severidade da regra a não atemorizava, respondeu com um ligeiro acento de bravata que lhe era peculiar nas questões de coragem:

— O h , minha madre, há outras coisas muito mais temíveis que pequenos sacrifícios!

M m e . de Chalais informara a prioresa acer­ca das dificuldades que Blanche experimentara. N o Carmelo, a madre encontrou ocasião de indagar-lhe quais seriam, por exemplo, os motivos de seu temor.

Blanche refletiu um momento e depois res­pondeu, num tom que denotava certa hesitação:

— M i n h a reverenda madre, não saberia dizê-lo. Mas , se ordena, refletirei sobre isso e respon­derei mais tarde.

— Não, não o ordeno — apressou-se a dizer a madre Croissy.

Nesta época, a superiora era ainda uma mu­lher jovem, mas já afetada pelo mal doloroso que deveria bem cedo fazê-la sucumbir. Dizia-se que Deus lhe permitira sentir, durante certo tempo, um profundo pavor da morte. N o tempo dessa crise,

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viam-na sempre em oração diante d a gruta do Monte das Oliveiras, no jardim do claustro. A simpatia particular que sempre dedicou a Blanche era com­pletamente estranha a essa circunstância. (Com efei­to, não era costume, numa ordem de regras tão rigorosas, aceitar uma jovem tão delicada).

Por f i m , o convento aquiesceu. Claro, não foi tarefa difícil para M m e . de Chalais, em face dessa decisão, vencer a resistência do marquês, ha­bituada como estava a envolver o céu nos seus negócios, e, ademais, o marquês de la Force não gostava muito de chegar às últimas consequências de suas opiniões.

A s s i m , Blanche atravessou o limiar da clau­sura. E fê-lo, como se pôde testemunhar, com uma alegria tão íntima impressa no seu pequeno rosto um pouco abatido, que se ficou convencido, no Carmelo de Cornpiègne, de sua verdadeira vocação e lhe foi dada, logo, a esperança de tornar-se uma filha digna de santa Teresa.

Passaram-se os primeiros tempos de postu­lado de maneira igualmente satisfatória. É preciso confessar que Blanche não se conformou tão facil­mente com as exigências severas da regra. Aos poucos, porém, ia-se adaptando. Era amável, solícita e submissa. Sobretudo, era muito feliz e reconhe­cida. Teve-se a prova disto quando certos rumores inquietantes, que não se podiam evitar nesses tem­pos, penetraram no seio da clausura. Estava-se, então, nas vésperas da convocação dos Estados Gerais. Afirmava-se que, em tais circunstâncias, o semblante de Blanche demonstrava um contentamen­to indescritível. Viam-na bater as mãos como uma criança e exclamar com a petulância que lhe era peculiar:

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— Mas isso não nos diz respeito.

O u então:

— Nada disso ncs interessa; aqui estamos preservadas!

Mesmo no que se referia, ao estilo peculiar da piedade carmelita, certas fórmulas heróicas tais como " M e u Deus, eu me ofereço totalmente a vós" ou "ó sofrimento, suave repouso dos que amam a Deus, possas tu nunca faltar-me!" — Blanche delas se apropriava com rapidez surpreendente, assim como, outrora, aconteceu com as fórmulas igualmente amáveis de M m e . de Chalais. Mas dir-se-ia que, insensivelmente, essas fórmulas adotadas com tão pouco esforço se apresentavam em toda a sua rea­lidade. Houve , em consequência, um certo choque.

Manifestou-se precisamente ao morrer a prio­resa Croissy. Sua agonia foi bem dura. Ouviam-se os gemidos da moribunda, durante horas, em todo o claustro. Desconcertada, indagava Blanche, então, como era possível Deus ter reservado tais sofrimen­tos a uma mulher tão santa. E demonstrava um espanto tão grande que as irmãs se escandalizavam.

Adiou-se a sua vestidura, pois a mestra de noviças, irmã Maria da Encarnação, mantinha reser­vas acerca dessa resolução. Entretanto, acabou por realizar-se a cerimónia, muito inesperadamente.

Estava-se no ano de 1789. Sob a pressão da crise financeira, a Assembleia Nacional, reunida em Versalhes, empreendia os primeiros ataques con­tra os bens da Igreja (Lembras-te, sem dúvida, querida amiga, das medidas tomadas a esse res­peito) .

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N o decorrer do verão, monsenhor Rigaud, provincial da Ordem do Carmelo, já fizera saber aos conventos sob sua jurisdição que seria promul­gada uma lei proibindo às ordens de receberem novas candidatas. Monsenhor não omitiu a opinião que circulava na Assembleia Nacional, favorável à suspensão completai das comunidades religiosas. Mas ainda se podia esperar alguma moderação da lei , no sentido de permitir às candidatas até então recebidas permanecerem nas suas famílias conven­tuais, o que, aliás, não evitaria o despovoamento insensível dos conventos.

E m tais circunstâncias, monsenhor Rigaud aconselhou a vestidura sem demora para as postu­lantes que se encontravam nos conventos, na me­dida em que a conduta destas o permitisse. Ass im se expressava o prelado tão clarividente: "Reco­mendamos estas jovens, a menos que motivos pe­remptórios não se venham opor expressamente, à vontade divina que nos dá forças; nós próprios não sejamos mesquinhos a esse respeito, mas magnâni­mos. O próprio Deus, nos dias que se seguirão, escolherá entre elas e decidirá. Cristo, sempre vivo, — assim concluía a sua carta — encontra-se pre­sentemente no jardim de Getsêmani. Eis por que recomendo à reverenda madre prioresa o nome de 'Jesus no Jardim da Agonia ' para as noviças que receberem o véu de religiosa. Não se encontraria um nome mais apropriado nos tempos em que vi ­vemos". (Sabes, minha amiga, que nos conventos do Carmelo há a ideia de que o nome dado à religiosa dá acesso, de um modo particular, ao mistério a que se refere).

Nestas circunstâncias, a prioresa recentemente eleita, M m e . Lidoine, em religião irmã Teresa de

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Santo Agostinho, achcu melhor voltar ao caso de Blanche, com a mestra das noviças, irmã Maria da Encarnação.

Sobre essas conversações, escutemos a pró­pria irmã Mar ia da Encarnação ou, como a cha­mavam os filhos da admirável cantora Rose Ducor, irmã Maria do Menino Jesus — pois era desse modo que Rose Ducor lhes havia interpretado o nome incompreensível de Encarnação.

Sabes, minha amiga, como a pequena deusa da cena, Rose Ducor, fo i , por seus frívolos admi­radores, acusada de coqueteria religiosa, espantando-nos a todos, dando asilo no seu apartamento, sob a égide de sua popularidade, a religiosos e padres de todas as categorias. ( A h , minha querida amiga, muitas surpresas advêm, a propósito de heroísmo humano, quando os tempos de martírios se aproxi­mam. Jamais arriscaria a menor previsão nessa matéria!) .

A irmã Mar ia da Encarnação foi também das que encontraram asilo temporário em casa da cantora Ducor. E , se escapou ao tribunal da revo­lução, foi certamente devido ao sangue frio e à presença de espírito dessa pequena artista.

F o i então que tive a honra de aproximar-me, mais de uma vez, dessa mulher notável. E l a trabalhava, nesse tempo, numa biografia de suas irmãs mártires. Encontrei-a instalada diante da ele­gante secretária de Rose Ducor, classificando toda espécie de papéis. Naturalmente não trazia nem há­bito nem véu, mas um traje c iv i l . Usava uma toca e um chalé que dissimulava, no pescoço, o lugar em que, segundo se propalava, se via sobre a pele um estreito círculo vermelho, que não a teria dei-

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xado desde o dia da execução de suas irmãs. A vigilante Rose Ducor gostava igualmente de contar essa comovente lenda, pois tinha na conta de santa a irmã M a r i a da Encarnação.

Quando percebeu que o meu olhar era dir i ­gido para o seu chalé, ajeitou-o ligeiramente. Seu gesto possuía qualquer coisa de doloroso e de brus­co, mas sem a menor rispidez.

Pude verificar, então — e certamente ela o desejava — ser falsa a fama que a cercava, mas não faltaria muito para justificá-la. Pois, na verdade, essa mulher era impressionante: atribuíam-lhe, nem mais, nem menos, que a fama de milagrosa. (Nada surpreendia tanto, ao conhecê-la, quanto o signifi­cativo nome de "irmã M a r i a do Menino Jesus") .

Poderia ter pousado para a estátua de uma rainha santa, e até mesmo de um rei santo. A o menos, se acreditava poder ser assim. E não creio que essa impressão houvesse nascido exclusivamente da lembrança de sua origem. (Sabes, querida amiga, que essa irmã passava por ser filha natural de um príncipe real da França. Até a data da revolução, ela recebia uma renda do Estado. Sabia-se ainda que entrara no Carmelo com a dispensa episcopal dos filhos nascidos fora do matrimónio. Diz-se também que, sendo muito moça e vivendo numa das situa­ções mais invejáveis, fora possuída bruscamente, no túmulo da célebre carmelita Acarie, do desejo arden­te de expiar os pecados da Corte aos quais devia o seu nascimento, como fizera Luísa de França, a madre prioresa do Carmelo de Saint-Denis. Tais antecedentes explicam muita coisa da vida dessa alma, de uma nobreza fora do comum).

Fiz-lhe a minha pergunta a respeito de Blan­che de la Force.

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Deu-irie uma resposta das mais curiosas:

— Serão — interrogou-me, por sua vez — o medo e o terror apenas desprezáveis? Não serão, ao menos no começo, algo de muito mais profundo do que a coragem, algo que corresponda muitc mais profundamente à realidade dos fatos, isto é, aos horrores do mundo, e bem mais, também à nossa própria fraqueza? !

Não vulgar surpresa causaram-me estas pa­lavras. Pois, como sabes, foi a irmã Mar ia da E n ­carnação que determinou o Carmelo de Cornpiègne a oferecer este ato heróico de consagração pelo qual, de um certo modo, o convento prejudicava sua sorte futura (Voltarei logo a tratar deste assunto).

— O medo, algo de mais profundo que a coragem! E é precisamente a senhora, irmã Mar ia da Encarnação, que o diz! — exclamei.

Desprezou com facilidade esta alusão ao seu heroísmo, para retornar à questão primit iva.

— C o m efeito — retrucou — houve, entre nós, quem preconizasse a volta de Blanche ao sé­culo. Entretanto, a nossa reverenda madre, a prio­resa Lidoine, decidiu o contrário. O h , a madre Lidoine era grande conhecedora e condutora das almas.

— E no entanto — repliquei eu — a se­quência dos acontecimentos não deu razão à madre Lidoine? (Pensava na fuga de Blanche para longe de Cornpiègne).

— Não à madre Lidoine — disse — mas a uma outra religiosa do convento. Todas nós não havíamos compreendido exatamente a direção que a reverenda madre dava às almas.

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T i v e , bruscamente, a impressão tão imperiosa quanto inexplicável de que falava dela mesma. N o mesmo instante, olhou-me e estremeci sob esse olhar. Permaneceu, no entanto, absolutamente impassível.

Fez-se um silêncio breve, mas cheio de vida. C o m um acento singular — diria mesmo, quase que de superior ingenuidade, contrastando com o perfi l altivo de sua fisionomia — ela falou de modo que, decididamente, me desconcertou:

— E porque quereis ignorá-lo, senhor de Vi l leroi? Não viestes aqui para ouvir toda a ver­dade acerca dessas coisas? Asseguro-vos que esta verdade, bem mais do que qualquer outra, é de natureza a glorificar "Sua Majestade". (Sabes, que­rida amiga, que nos claustros do Carmelo se trata a Deus por "Sua Majestade") .

Deu-me, então, diversos documentos. Eram notas da prioresa Lidoine, espécie de diário de suas atividades e também recordações escritas pelo seu próprio punho, pois, como já disse acima, ela tra­balhava numa biografia de suas irmãs mártires.

Aproveitei , dos documentos, o que interessa à minha narrativa.

Soube, por eles, que a irmã Mar ia da Encar­nação persuadira a madre prioresa a não dar o véu a Blanche, por enquanto, alegando que aquela timi­dez medrosa era a sua fraqueza particular.

— Ó, minha madre — assim se expressa dirigindo seu belo olhar de fogo para a prioresa, que só podia encará-la levantando a cabeça, por ser notavelmente mais baixa — esta pobre criança me enternece, pois, na verdade, veio abrigar-se entre os muros do Carmelo como um pássaro no ninho.

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Não a estimo menos, por ser fraca! Mas , precisa­mente, por amá-la, é que sou desta opinião. Ó, mi­nha madre, há milhares dessas pequenas de que nos apiedamos, dessas criaturas que nos cativam. Diante dos altares de Paris, muitas delas são quei­madas cada dia ; outras, são carregadas pelas tem­pestades da vida. Mas essas pequenas chamas não se transportam para um Carmelo. O Carmelo é a força, em toda a sua expressão!

Permite-me, querida amiga, interromper mi­nha narrativa nessa altura, Apresentei-te a irmã Mar ia da Encarnação, segundo a impressão que me deixou de sua personalidade. Mas será oportuno, talvez, dizer ainda uma palavra a propósito de sua situação no convento e sobretudo com relação à nova prioresa.

Sem dúvida, esta última tinha-a na mais alta estima, pois chama-a frequentemente, no seu diário, de "braço direi to" , de "irmã conselheira". Às vezes, também, de sua " f i lha mais velha" , e mesmo, uma vez, meio divertidamente, de "sua filha maternal". Menciona ter esperado, após a morte da prioresa Croissy, a irmã Mar ia da Encarnação subs­tituí-la nesse lugar, acrescentando que a autoridade eclesiástica superior orientara a escolha para uma "bem mais modesta" (a própria prioresa se designa com esses termos),.

É exato que a madre Lidoine não se impu­nha, absolutamente, nem pelo seu físico, nem pelo seu comportamento religioso, que nada tinha de especial. Isto se revelou, sobretudo, nos primeiros tempos que se seguiram à sua nomeação. Parecia, dizia-me a irmã Mar ia da Encarnação, só poder, muito dificilmente, habituar-se a dar qualquer ordem

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a quem quer que lhe parecesse superior. Razão pela qual, às vezes, dava a impressão de faltar-lhe segu­rança, o que na verdade não ocorria.

— A h , fo i essa, precisamente, a minha ver­dadeira tentação. (A própria irmã Maria da Encar­nação aludia, aqui, à ferida que marcou as suas relações com a prioresa Lidoine, pois é certo que agiria melhor que esta).

Mesmo nesta circunstância, a prioresa, pro­priamente, não a contradisse. Apenas lhe estendeu a carta de monsenhor Rigaud.

Leu-a a irmã Mar ia da Encarnação, enquan­to seu expressivo semblante se ruborizava e empa­lidecia, conforme o efeito produzido pela notícia das restrições que iriam sofrer as Ordens Religiosas. Quando concluiu, disse com ênfase:

— Que dilema, minha madre!

M m e . Lidoine esperava, evidentemente, outra resposta. Certo embaraço se manifestou no seu sem­blante, como sempre acontecia ao tomar, como superiora, uma posição contrária à irmã Maria da Encarnação.

— A irmã quer dizer que subsiste um dile­ma? — perguntou com voz profunda (Essa voz era, nela, a única coisa que impressionava).

A irmã Mar ia da Encarnação apressou-se a responder — oh, nada igualava a fineza e a sensi­bilidade de suas observações:

— A senhora deseja a vestidura, minha madre?

— Monsenhor a deseja -— respondeu a prio­resa, num tom de quase escusa.

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N u m instante submeteu-se a irmã Mar ia da Encarnação. (.Querida, é impressionante acompanhar os esforços dessas grandes almas para a perfeição da humildade).

— Nessas condições — acrescentou — não retiro o meu julgamento sobre a nossa postulante, mas por ela me ofereço a Deus em sacrifício. Per-mita-me, reverenda madre, ajudar essa alma que nos é confiada., por atos particulares de amor e de pe­nitência, a f i m de que a sua admissão em nossa comunidade não comporte nenhum risco.

(Como sabes, tais substituições, inspiradas por um ato de amor heróico, são perfeitamente conformes à piedade do Carmelo, e a madre L i d o i ­ne devia, sem nenhuma dúvida, aprová-las).

F o i , assim, decidida a vestidura de Blanche. Sabia-se, naturalmente, que seria, essa, por um certo tempo, a última solenidade no género, no Carmelo, o que conferia à cerimónia um caráter comovente. Mas não devemos crer que isso provocasse tristeza para a maior parte das carmelitas. E m virtude da severidade de suas penitências, os membros dessa Ordem, tão frequentemente tachados de "sombrios" , demonstram quase sempre uma alegria e um desa­pego de crianças. E em Cornpiègne as religiosas estavam ainda mais radiantes, por terem podido, em tempos tão difíceis, salvar afortunadamente uma jovem irmã a mais, no seio da comunidade. De resto, a pequena noviça Constança de Saint-Denis, na sua maneira ingénua, expressou deliberadamente um sentimento que bem pode ter ditado a reco­mendação de monsenhor Rigaud.

— Querida irmãzinha Blanche — dizia — vamos nos associar para escarnecer da Assembleia

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Nacional! Somos jovens e, por mais doloroso que seja chegar tarde ao céu, queremos esperar ainda até aos cem anos, pois, daqui até lá, será por certo permitido, novamente, receber noviças.

A nova postulante, se bem que um pouco frágil, apresentava um aspecto tão tocante, no seu hábito escuro, com o véu branco das noviças, quan­to no dia, ainda recente, em que se lhe franqueara a clausura. N o gesto de uma das mãos, trémula de alegria, tocando fortuita e suavemente a lã rude de seu hábito, percebia-se uma linguagem tão clara, que todo o convento concordou imediatamente com a decisão tomada.

" E r a indiscutível o reconhecimento dessa jo­vem criança", escrevia a madre Lidoine, na tarde desse dia. " C o m efeito, a pobre pequena sabia muito bem que as suas forças haviam cedido e que não estava de modo nenhum preparada para a vesti­d u r a " .

— O h , como Sua Majestade é boa! Como é boa a reverenda madre, como é indulgente a irmã Mar ia da Encarnação! — constantemente ouviam-na repetir essas palavras'.

Quando pronunciou o nome que devia levar para sempre, estremeceu um pouco. Mas tamanha era a sua alegria que, em breve, pôde dominar-se. Durante o recreio no jardim, prostrou-se esponta­neamente diante da gruta do Monte das Oliveiras, em que tantas vezes se havia ajoelhado a prioresa Croissy.

Depois, elevando a voz num comovente fer­vor, fez a profissão de seu novo nome, orando diante de todas com essas palavras:

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— O h ! M e u Jesus do Jardim de Getsêmaii , eu me ofereço toda a vós!

"Espero tudo" , assim dizia a madre Lidoine ao terminar, "dessa humilde gratidão, e do santo nome com o qual o céu chamou precisamente a esta criança. O h , meu Jesus do Jardim de Getsê-mani, fortalecei a alma de vossa jovem noiva, enviai-Ihe o anjo da consolação que Vos socorreu na hora da angústia!"

De fato, parecia que desta vez as esperan­ças do convento iam ser, enfim, alcançadas. Não mais se supunha, agora, que Blanche se contentasse em repetir as fórmulas comuns da piedade carme­lita. M u i t o menos, ainda, parecia Blanche oprimida sob o peso desta. A jovem noviça persistia no ínti­mo fervor que lhe marcara a vestidura. Seus pro­gressos eram tão evidentes, que a própria irmã Mar ia da Encarnação estava satisfeita.

Mas a consternação foi também muito maior, quando se produziu o segundo choque, a seguir.

Narremos, porém, os acontecimentos.

Ignoro se nesse momento outros conventos foram objeto de semelhantes medidas e se estas medidas tinham qualquer relação com as últimas vestiduras. Como quer que tenha sido, logo após a admissão de Blanche ao noviciado, apresentou-se uma comissão ao Carmelo de Cornpiègne com a ordem de recolher certos dados sobre o número, a idade e o estado de espírito das religiosas. Já se tencionava, então, reconduzir as religiosas ao mundo, ou, em outras palavras, anular os votos. E já se alimentava, ingenuamente, a ideia de que a maior parte se lançaria, alegremente, nos braços da revolução triunfante.

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Antes de realizar uma entrevista i individuai com as carmelitas, a comissão quis percorrei' rodai a casa. A o ler os documentos que me esitão diante dos olhes, tenho a impressão de que ela supunhai se quisesse ocultar alguma coisa. Desde o célebre romance de Diderot, circula no mundo dos liber­tinos toda espécie de fantasias sobre religiosas se­questradas.

Foram, então, de cela em cela. Para isto, a irmã M a r i a da Encarnação recebeu, da superiora, ordem de acompanhar a comissão. Mas os; homens não andavam ruidosamente. Talvez se sentissem, mesmo, embaraçados, como acontece habitualmente com os mandatários de um regime novo, diante de uma antiga civilização. Contudo, caminhavam como homens. (Pensa, querida, nesses corredores acostu­mados somente às sandálias silenciosas das irmãs!) , Provavelmente, tiveram o topete de não manifestar nenhum respeito. (É preciso notar que se havia obrigado as irmãs a levantar um pouco o véu), Lia-se essa irreverência nas fisionomias dos comis­sários, embora não se mostrassem muito ameaça­dores, porque ainda eram obrigados a manterem boas relações com as Ordens. Dizia-me a irmã Mar ia da Encarnação que mesmo o mais suspeito' dentre eles, um sujeito pequeno e insolente, provavelmente um escrivão subalterno, se havia mostrado muito mais digno de riso que de pavor, enquanto corria na frente dos comissários, abrindo-lhes obsequiosa­mente as portas, com um barrete vermelho sobre os cabelos gordurosos. Estou certo de que ele expe­rimentava uma alegria impudica ao penetrar nos claustros de mulheres. Mas , como se disse, tudo isso não o tornava absolutamente temível, e, sim, desprezível e irrisório. Contudo, foi ele quem pio-

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vocou na pcbre Blanche u n verdaceiro pavor. N o momento em que o pequeno indivíduo, digno de mofa, abriu a porta de sua. ceia, e seu rosto ridí­culo penetrou no espaço entreaberto, ela soltou um grito pungente (a irmã Maria da Encarnação con-tou-me não ter ouvido nada semelhante, senão du­rante os dias mais sangrentos da revolução) . N o mesmo instante, com as mãos estendidas para a frente e crispadas, ela recuou até a parede do fundo da cela, e permaneceu lá, ce pé, como se esperasse a morte.

Os membros da comissão ficaram imóveis. O primeiro instante foi de estupefação. Logo a seguir, tomaram um ar de interessados, pensando ter descoberto, enfim, a sequestrada cuja presença haviam suposto. O primeiro comissário começou por dirigir-lhe a palavra com uma amabilidade toda especial: poderia ela, sem o menor receio, confiar nele.

Blanche, de tão apavorada, não lhe pôde responder. Mas quando, ao aproveitar-se do seu mutismo, ele sugeriu que talvez ela desejasse aban­donar o claustro, teve um movimento de pavor que excedeu ao primeiro, ficando banhada em lá­grimas.

Contente de poder salvar uma vítima da religião, e cheio de zelo pela sua missão, o comis­sário afirmou que ela podia considerar-se, em qual­quer ocasião, dispensada dos votos, porquanto as novas leis não mais autorizavam a vestidura. Di to isto, quis, fraternalmente, tomar-lhe as mãos, mas nesse instante interveio a irmã Maria da Encarna­ção. C o m incomparável superioridade, f ixou sobre o primeiro comissário os seus belos olhos plenos de firmeza e de bri lho, e disse:

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— O senhor ultrapassa os seus poderes! Pelo que sei, a lei de que fala não está ainda era vigor.

Ignoro a resposta que encontraria o comis­sário para replicar, se Blanche, que sempre se man­tivera muda, não se tivesse refugiado nos braços da mestra de noviças. Dava-lhe, assim, a resposta mais eloquente que poderia esperar.

O comissário v iu o erro em que caíra e corou, como um pretendente desiludido.

Nesse entretempo, as irmãs professas havia iri­se reunido na sala capitular, em torno da prioresa. Se a madre Lidoine quase não desaparecesse no meio de suas filhas, poder-se-ia dizer que eram como os pintinhos ao redor da galinha.

As irmãs foram chamadas individualmente à sala do capítulo, cuja entrada estava militarmente guardada, a f i m de dar maior importância ao ato. Cada religiosa, antes de entrar, era recebida pela madre prioresa que as exortava a que fossem tão breves quando possível e respondessem com doçura. Fora essa a atitude que monsenhor Rigaud a acon­selhara a manter diante de suas filhas. É bem fácil de imaginar como essas respostas foram dadas. Tudo se passou sem dificuldades, exceto na entrevista da irmã Mar ia da Encarnação, em que houve um pe­queno incidente.

Por mim, sou levado a crer que ele se teria produzido, mesmo sem a ocorrência da cena ante­rior, na cela da pobre Blanche. Basta imaginar, por um só instante, essa grande dama de sangue real, em presença de tais plebeus! Imaginar essa religiosa, perfeitamente compenetrada de sua missão mística

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de expiação, diar.te de notários frívolos e raciona­listas. E a colisão se explica por si mesma, por mais que pudesse :er sido determinada pelo acon­tecimento anterior. De certo modo, o f o i : psicologi­camente, é perfeitamente concebível que o primeiro comissário guardasse rancor contra essa religiosa, pela vergonha por que o havia feito passar. O seu desejo de humilhá-la foi logo traído às primeiras palavras, ao perguntar-lhe com ironia se, tanto ela como a jovem la Force, estavam curadas ao temor que lhes havia manifestado. O r a , a irmã M a r i a da Encarnação sabia-se ao abrigo de qualquer temor. Nesse instante experimentou apenas o dever, tanto maternal como fraternal, de defender a fraqueza da pobre e pequena noviça, em face daqueles estran­geiros. Não havia dúvida de que se votava plena­mente à missão de salvaguardar a honra da casa ameaçada, pois só assim se explica a audácia ines­perada do seu comportamento diante da comissão.

— Que entende o senhor por essa palavra " temor"? Que motivo de temor poderíamos ter, fora da ideia de desagradar a Cristo, que os senho­res nos dão a honra de poder professar aqui sole­nemente?

Essa resposta, é claro, era a que mais pode­ria ter irritado o comissário. (A gente medíocre só dificilmente suporta profissões de fé que lhe sejam estranhas). U m a vçz mais ele ultrapassou os seus poderes:

— Erraste, cidadã — retrucou. Não estamos aqui para conceder-te a honra de acolher uma pro­fissão fanática, imas a f im de perguntar, em nome do Estado, se queres, ou não, abandonar este recinto de superstição). F ica , pois, avisada: os representantes

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da Nação têm plenos poderes, Eles poderão muito bem justificar um certo temor, que em vão procuras esconder.

Cego, ele não sentia que a sua animosidade tão manifesta inflamava ainda mais as carmelitas, em vez de intimidá-las. (Querida, o ideal cristão, como nenhum outro, é inflamado pela perseguição. O refinamento natural de toda brutalidade dirigida contra ele é então metamorfoseado numa estupidez quase sobrenatural).

A irmã Maria da Encarnação pressentiu a ameaça que, no minuto seguinte, ia acolher com tanta elegância. Respondeu, sem medo:

— M i n h a profissão de fé contém, igualmen­te, minha resposta a essa questão. Mas , no que diz respeito aos plenos poderes de representantes do Estado, são, ao meu ver, apenas aqueles que Deus lhes concede. N e m um átomo a mais! E o senhor bem o sabe!

Compreende-se que essas palavras fizeram transbordar a taça.

, — Bem — replicou o comissário — guardo a resposta. Não chegou ainda a seu f im o nosso movimento. Mas espero que virá o dia em que assaltaremos os claustros e as igrejas como já se fez com a Bastilha. Quanto aos seus ocupantes. . . sabe a cidadã o que aconteceu com o governador da Bastilha?

(Aludia à cabeça ensanguentada de Launay que o povo conduzira, através da cidade, na ponta de uma lança).

Por longo tempo ela permaneceu imóvel, completamente imóvel, sem proferir uma só palavra.

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— Sem dúvida o comissário já se ia felicitar por rê-Ia amedrontado com a perspectiva da morte. — Mas, aos poucos, o rubor inundou-lhe o rosto, tor-nando-a alegre.

— Bem o sei — respondeu ela, com voz baixa — bem o sei. O h , sei-o muito bem! — e era como se a sua voz se houvesse transfigurado, vencida por uma estranha felicidade. Cruzou os braços.

Querida, devemos por um instante deter o nosso pensamento em face dessa disposição de alma, particular ao Carmelo, mas que nos é, sem dúvida, bem pouco familiar. O espírito de sacrifício nele se integra a tal ponto, que a crença na salvação cristã pela cruz tem, por cume, o amor espiritual ao sofrimento e à perseguição. Bem sei que tal conceito é difícil de ser compreendido por um mundo não-cristão (digamos, pelo " m u n d o " , sim­plesmente) , e dele se desconfia, como de uma coisa mórbida. Entretanto, querida amiga, suplico-te, faze abstração, por um instante, dos teus próprios sen­timentos e vê nisso um elemento fundamental à nossa narrativa. ( A h , isso é bem fundamental, na verdade, ao próprio cristianismo).

— Quando deixei a sala capitular — disse-me a irmã M a r i a da Encarnação — foi como se, no mais íntimo de mim mesma, se tivesse acen­dido um círio fúnebre, imenso e solene, que consu­misse, de algum modo, todas as minhas células, ou como se, de instante a instante, me tornasse trans­parente.

Também a madre prioresa, assim que a v i u , exclamou:

— Resplandeces como um querubim, minha fi lha. Que te aconteceu?

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C o m a voz sufocada pela emoção, cujo doce júbilo não podia reprimir, ela respondeu:

— Ó, minha madre, felicite-me e felicite-se. Felicite este país e este trono. Sua majestade quis destinar-nos a uma obra de expiação, pela qual não poderíamos esperar: ameaçaram-me com o mar­tírio!

Para seu espanto, a superiora não lhe par­tilhou o entusiasmo, limitando-se a indagar, com certa frieza, como fora possível ocorrer tão lamen­tável incidente.

A irmã Maria da Encarnação compreendeu-a, e ajoelhou-se diante dela, acusando-se por ter infrin­gido as suas recomendações, segundo as quais devia expressar-se com brevidade e doçura. Eis o que ela própria me disse:

— Não que me tivesse faltado ardor para quebrar a minha presunção. Por nada deste mundo. Mas não havia passado ainda pelo verdadeiro com­bate.

(As faltas dessa nobre alma estavam bem longe de uma imperfeição habitual) .

De resto, a prioresa logo retrucou — e não creio que fosse unicamente em virtude da presença dos guardas:

— Não se tratava de uma ordem, minha filha, mas de um conselho apenas.

Contudo, persistia o estado da pobre Blan­che. E não devemos enganar-nos reduzindo-o a um choque nervoso característico. Durante todo esse tempo, a irmã Maria da Encarnação foi para a

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;ovem noviça uma guarda tutelar e uma consolado­ra infatigável. Reconheço, de resto, nessa atitude da grande carmelita um elemento eminentemente significativo, e compreendo que esperasse atingir o seu f i m tanto mais despreocupadamente quanto erguia Blanche os olhos para a mestra, com toda a ardente admiração dos fracos.

A o f im de alguns dias, reapareceu no círculo das irmãs. Esforçou-se visivelmente por desfazer a má impressão que podia ter causado o incidente com o comissário. Como é costume nos conventos, acusou-se, no refeitório, de sua fraqueza, testemu­nhando o seu arrependimento e recomendando-se às orações de suas irmãs noviças. N a verdade, era para surpreender que tanta humildade e tanta boa von­tade não devessem, depois, produzir frutos.

O testemunho profano acharia talvez natu­ral, nos dias que passavam, a manifestação de per­plexidade por parte duma jovem religiosa um pouco delicada. Por mim, ainda me recordo muito bem que haviam ocorrido pilhagens de conventos, por essa época, nas mais diversas regiões do país, como resposta da populaça incentivada pelos decretos da Assembleia Nacional contra as igrejas.

Bem que devia ter Blanche algum motivo para inquietude. E , de fato, estava preocupada. Não deixava que se percebesse a princípio, mas já se ia notando à medida que procurava defender-se. E considerando o acontecimento em seu conjunto, seria mesmo tentado a asseverar, pensando na ex­celente educação de M m e . de Chalais, que era como se um novelo cuidadosamente enrolado começasse a desfazer-se. O u como se voltasse a pequena lebre fugitiva e começasse a comportar-se exatamente como

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outrora. T a l como antigamente, quando criança, era ouvida indagando sempre se as escadas não iam " r u i r " e se os homens não eram maus, assim tam­bém agora, durante os recreios, acontecia-lhe inda­gar de improviso, com a voz estranhamente ator­mentada, se não haviam ocorrido novas pilhagens, se na verdade permitir-se-ia às religiosas permane­cerem em seus claustros etc.

— Não tenho medo — dizia ela com um aspecto comovente p e l a inverossimilhança (nin­guém acreditava mais em suas fanfarronadas). — Não, não tenho medo! Pois se o rei de França é tão poderoso, quanto mais. . .

Ia repetir involuntariamente uma expressão de M m e . de Chalais, mas se deteve, subitamente, à lembrança do modo como o rei fora maltratado, quando a populaça o levara prisioneiro de Versalhes a Paris. Causavam-lhe um grande mal-estar os can­tos revolucionários da C a r m a g n o l e e do Ça i r a que se ouviam, vindos das ruas e cada vez mais fre­quentes. Então, pedia permissão para ir buscar um l ivro que esquecera (exatamente como criança, como se, de novo, fosse criança). E tinha-se a impressão de que pretendia ocultar-se, não importava onde, para não ouvir mais os cantos Ja populaça.

— E éramos nós que desejávamos desafiar a Assembleia Nacional e envelhecer até aos cem anos, querida irmãzinha Blanche! — dizia a jovem e ingénua Constança de Saint-Denis à sua irmã noviça — . Éramos nós que desejávamos sobreviver a essas más leis referentes aos claustros! Como podes desdizer tudo isso com teu pavor?

E , noutra vez:

— Não somos nós as noivas de Cristo?

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A quase centenária Joana do Menino Jesus dizia também:

— Não somos as servas do pequeno Rei da Glória e não cuidará Ele de fortificarmos, quais­quer que sejam as circunstâncias?

(As carmelitas não diziam como M m e . de Chalais: " O pequeno Rei da Glória proteger-nos-á, mas: fortificar-nos-á).

A maior parte delas vivia , então, na mesma expectativa entusiástica do sacrifício, em que vimos a irmã Maria da Encarnação. Esta última parece haver duplicado, por essa época, sua ascese e ora­ções por Blanche. (Recordas-te ainda, minha amiga, que antes da vestidura ela se havia comprometido a fazê-lo — um pouco precipitadamente — para o futuro da jovem noviça?) Não mencionei mais esses ofertórios a f i m de não diminuí-los em sua singular beleza, que é o seu grande segredo. E a não ser a prioresa Lidoine, ninguém em Cornpiègne o sabia. Mas era de Blanche que a irmã Mar ia da Encarnação desejava ocultá-lo estritamente. (Queri­da, abordaremos incessantemente novas profundezas religiosas nesta mulher admirável. Nunca procurou exercer uma influência psicológica sobre a noviça que lhe fora confiada. Pelo contrário, queria proceder como fazia com relação ao mundo, sobre o qual agia espiritualmente, isto é, pelo sacrifício e pela oração, por intermédio do próprio Deus, a quem os con­fiava. E conforme essa ordem das coisas, tudo era considerado no seu último grau de elevação).

Nesses últimos acontecimentos, a sua influên­cia no seio da comunidade poderia ter sido extra­ordinária. N a verdade, não creio ter-lhe sido possí­vel impedir que, àqueles que lhe viviam em torno,

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se comunicasse o ardor de sua expectativa do mar­tírio, ainda se admitirmos que houvesse tentado impedi-lo. Mas era impossível que procurasse fazê-lo. Pensa, minha amiga, na particular missão de sua O r d e m . Não te lembras de que, antes da revolu­ção, se estabeleceram, por vezes, algumas discussões sobre a possibilidade de o cristianismo ainda suscitar mártires? E na verdade os acontecimentos iam mos­trar como nessa Ordem se preparavam mártires.

" A França não poderá ser salva pelo zelo de seus políticos, mas, sim, pelas orações e os sa­crifícios das almas consagradas. Hoje é o grande dia do Carmelo" . Ta l era o diapasão a que todas aquelas mulheres pacíficas de C mpiègne se haviam acostumado. C o m plena e perfeita consciência, pre-paravam-se para o martírio.

— Será que precisaremos, ainda, de tantas provisões? — indagava, com certa ingenuidade, a pequena Constança de Saint-Denis, num dia em que a madre prioresa perguntou se a horta forneceria as reservas de legumes necessárias para o inverno.

— Por que não precisaremos mais dessas provisões, minha filha? — retrucou a superiora. Estava-se acostumando a ouvir expressões como essas.

Não era segredo para as religiosas o fato de a superiora se manter numa impenetrável frieza diante dos preparativos heróicos de suas filhas.

" O convento coleciona brilhantes pérolas de louça", escrevia ironicamente no seu diário, aludindo a esses preparativos. "Minhas filhas brincam nova­mente com o martírio".

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Certamente, cara amiga, estou bem longe de pretender diminuir , no que quer que seja, a heróica força de espírito dessas religiosas. Mas não posso deixar de observar que, a essa altura, nada em Cornpiègne justificaria a possibilidade imediata do martírio. A s simples ameaças de um comissário, assim como o comportamento da populaça, não pas­savam de afrontas.

Estava-se, então, em face de certas restrições e dificuldades. Talvez mesmo diante de uma disso­lução momentânea das Ordens. Mas nada disso po­deria fazer com que se previsse o pior. Pelo con­trário, seria desprezar grosseiramente uma época que se apresentava, antes de tudo, como humanitária, acusá-la de intentos sanguinários. E seria decidida­mente para rir apresentá-la sob a terrível grandeza de ser detestada por Deus, aquela época que só se preocupava com fórmulas filosóficas e com os problemas imediatos, causados pelo marasmo finan­ceiro do Estado. M u i t o menos nós, querida amiga, poderíamos acreditar que as coisas chegassem a se­melhantes consequências. E , vistos desse ângulo — perdoa a minha liberdade — a coragem heróica, assim como o medo, eram simplesmente um luxo. Todavia, nos enganáramos se pretendêssemos pôr tais considerações no mesmo plano em que se situa­va a reserva com que a prioresa se opunha às suas filhas.

Sabes, minha amiga, que o decreto previsto por monsenhor Rigaud não se fez esperar. E não só se proibia, categoricamente, a admissão de novi­ças, como se interditava a recepção dos votos per­pétuos àqueles que já haviam feito a vestidura. (Podes imaginar o que significa, como sofrimento, para uma pobre noviça, essa última determinação?

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Significa condená-la a um noviciado perpétuo). N o Carmelo de Cornpiègne o edital vinha a atingir em cheio, além de Blanche, a irmã Constança de Saint-Denis, que estava nas vésperas de profissão per­pétua.

Deliberadamente a irmã Mar ia da Encarnação tomou o partido de propor que a fizessem pronun­ciar, em segredo, os votos, como se havia proce­dido na vestidura de Blanche.

C o m a sua nobre energia, dizia à prioresa:

— Que risco correremos, minha madre, mes­mo se tudo vier a ser descoberto? Tanto mais depressa o mundo fizer com que sintamos o seu ódio, tanto maior será o benefício que prestaremos!

(Percebes, minha amiga, a ligeira mudança de atitude na transição de uma simples disponibi­lidade para o voto declarado? E compreendes, que­rida, o porquê da inércia com que a superiora se opunha ao entusiasmo de suas filhas?)

Surpreendeu a irmã Mar ia da Encarnação com uma das primeiras determinações, da qual assumia a plena responsabilidade. Repeliu o projeto, e invocou, para justificar a sua atitude, um motivo um pouco decepcionante: no caso da vestidura de Blanche estava-se, apenas, sob a ameaça de uma lei iminente, e não, como agora, diante de uma lei que já entrara em vigor, e não lhe parecia de­sejável despertar, sem necessidade, a cólera dos adversários.

Naturalmente, não era esse o motivo prin­cipal. Não posso furtar-me, minha amiga, de des­crever a cena, no decurso da qual a superiora assu­miu a penosa tarefa de tornar conhecida essa lei

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às duas noviças. Nela se entreabriu, efetivamente, o véu insignificante da alma dessa mulher exterior­mente tão apagada. ( "Foi a primeira vez" , disseme a irmã Mar ia da Encarnação, "que se comportou como superiora e", acrescentou em voz baixa, "em franca oposição a m i m " ) . Antes de ler o decreto, recitou, com as suas filhas, reunidas em torno, o hino célebre da santa da Ordem, a grande Teresa D ' A v i l a :

"Sou vossa e v i v o neste m u n d o por Vós. "Como quereis d i s p o r de m i m ? " D a i - m e r i q u e z a ou indigência, " D a i - m e consolação ou t r i s t e z a , " D a i - m e a l e g r i a ou aflição, "Doce v i d a ou sol aberto: " P o r q u e me abandonei t o d a a Vós, "Como quereis d i s p o r de m i m ? "

A seguir, leu o decreto em voz alta.

— Minhas filhas — disse às duas noviças — em virtude dessa ordem cruel, oferecereis a Sua Majestade os votos perpétuos de fidelidade e o sacrifício de não poder pronunciá-los solenemente. Pois o que importa aqui — afirmou, percorrendo com os olhos claros as outras irmãs — não é que realizemos os nossos próprios desejos, por mais nobres que nos pareçam, mas, sim, que os de Deus sejam realizados. N e m vos revolteis contra essa lei , minhas caras noviças, mas reprimi igualmente qual­quer dor. Recebei esse legítimo desespero num perfeito amor de Deus e desse modo satisfareis, plenamente, o espírito de nossa O r d e m : sereis car­melitas, no mais perfeito sentido, precisamente por­que o mundo, no mais perfeito sentido, não o permite.

Certamente, essas palavras, e a oração que as precedeu, dão a perceber muita coisa, e a bem dizer, sob os mais diversos olhares. Só resta saber se foram bem compreendidas.

Admit indo que o tivessem sido, em relação a Blanche a inteligência dessas palavras não produ­ziu o menor efeito. A superiora ficou surpreendida por vê-la escutá-las com um recolhimento particular. E é preciso confessá-lo: foi por isso que os acon­tecimentos futuros se tornaram escandalosos.

Estava-se no período do Advento, e, na vés­pera, a irmã Joana da Infância de Jesus costurara uma nova camisa para o pequeno Rei da Glória. A costura estava um pouco enviesada, pois os olhos da irmã tinham perto de cem anos. Mas ela não permitiria que lhe tirassem o ofício.

— Cara irmãzinha Blanche, brevemente irão levar-lhe o nosso pequenino Rei — disse ela à jovem noviça. — Isso não lhe dá um pouco de coragem?

(Sabes, minha amiga, que na noite de Natal é levado o pequeno Rei da Glória à cela de cada uma das carmelitas. Blanche, recentemente admiti­da, ia assistir, pela primeira vez, a essa cerimónia).

Mas aconteceu, infelizmente, que, alguns dias antes da festa, a Assembleia Nacional promulgou um decreto de confiscação dos bens eclesiásticos. O pequeno Rei foi despojado de sua coroa e de seu cetro. N a noite de Natal a prioresa o levou de cela em cela, vestido apenas com a pobre ca­misa mal ajustada.

" A g o r a o nosso pequeno Rei é novamente tão pobre como o foi em Belém", diziam, alegre -

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mente, as carmelitas. Aquelas boas e dóceis mulhe­res não se cansavam de transfigurar em alegrias toda adversidade.

Blanche ficou admirada. Lia-se claramente no seu semblante. A s lágrimas caíram-lhe dos olhos, em duas grandes gotas, sobre a pequena estátua de cera que lhe puseram entre os braços.

— O h , tão pequeno e tão fraco! — suspirou.

— Não, tão pequeno e tão poderoso! — murmurou-lhe a irmã Mar ia da Encarnação.

Blanche, certamente, não a ouviu . E , só ao curvar-se sobre a imagem, para beijá-la, foi que deu pela ausência da coroa. N o mesmo instante, o canto selvagem da "Carmagnole" se fez ouvir na rua. Blanche teve um violento sobressalto. A imagem escapou-lhe das mãos e a pequena cabeça nua caiu sobre os ladrilhos da cela, destacando-se do corpo. Blanche soltou um grito. Seu semblante parecia, nesse momento, o de uma estigmatizada.

— O h , morreu o pequeno Rei ! — gritou. — Só resta o Agnus D e i !

Mais tarde, Blanche devia passar por uma nova crise, quando, alguns dias depois, era celebra­da a festa dos Santos Inocentes, dia em que, nos claustros, a mais jovem das noviças conduz diante de todas as outras o cetro da infâmia. Precisou fazer-se substituir por Constança de Saint-Denis, dois anos mais velha.

Mas o pior — e nisto estava propriamente o escândalo — foi que se teve a impressão de que Blanche, bruscamente, deixou de opor, como outrora, resistência aos seus tormentos. Se até agora

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dava sempre um novo motivo de reconforto no aidor com que procurava adquirir maior firmeza, eia indiscutível que a sua resistência enfraquecia, para não dizer que cedia, simplesmente. A irmã Maria da Encarnação convenceu-se, mesmo, de que ela aceitava passivamente o seu estado.

T a l foi a razão que determinou — ao que parece — o Carmelo de Cornpiègne a propor à jovem noviça a volta ao mundo, pois, afinal, o sen­tido do noviciado se reduz a uma questão que poderia ser solucionada com uma sua negativa.

" M i n h a fi lha mais ve lha" , escreveu a supe­riora, " v i u mais longe do que eu nesse caso. Será preciso reparar, o mais cedo possível, o erro co­metido" .

E acrescentou: "Pobre irmã Mar ia da Encar­nação! Fazia tanto sacrifício por esta criança, mas Sua Majestade não quis aceitar-lhe o sacrifício".

Mandou chamar Blanche, para comunicar-lhe, pessoalmente, o que devia fazer.

Blanche entrou na sala. A superiora teve a impressão de que o seu semblante estava bem mais abatido, desde a última crise, e de que havia, mes­mo, envelhecido um pouco, se se pode falar em envelhecer numa idade tão tenra. O seu abatimento fazia-se notar muito mais, agora, nos traços de seu semblante. Blanche parecia pressentir o motivo pelo qual a chamavam. H a v i a , nela, algo da criança que espera uma punição, e ao mesmo tempo algo de uma estranha consolação, um não sei que de última certeza e profunda boa vontade.

A prioresa experimentou, ao vê-la, uma breve emoção.

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— M i n h a querida filha — disse com doçura — tenho uma comunicação dolorosa a fazer-te. Vamos, antes de tudo, procurar, ambas, a conso­lação em Deus.

Convidou Blanche a ajoelhar-se com ela. Recitou, depois, em voz alta, o hino de santa Te­resa, e pediu à noviça que o repetisse.

Ocorreu, então, um fato estranho.

Blanche seguiu docilmente a ordem da prio­resa Lidoine. Repetiu as palavras com a sua voz fraca, um pouco extenuada, até a altura em que se dizia :

" D a i - m e r i q u e z a ou indigência, " D a i - m e consolação ou t r i s t e z a " .

E aqui ela prosseguiu:

" D a i - m e refúgio ou angústia m o r t a l , "Doce v i d a ou sol aberto. . . "Como quereis d i s p o r de m i m ? "

Falava depressa e quase mecanicamente, como alguém há muito familiarizado com essas palavras. Sem dúvida, não reparava ter modificado o texto.

Não se deu o mesmo com a superiora. E l a , no primeiro instante, esteve prestes a repreender Blanche. Mas a mesma emoção singular, que expe­rimentara ao recebê-la, a deteve. Sem nenhuma re­ferência à oração, foi direta ao assunto:

— M i n h a f i lha, suponho que conheces o motivo por que te mandei chamar.

Blanche silenciou. A prioresa não esperava por este silêncio.

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— Mant ive sempre — prosseguiu — a mais elevada opinião acerca de tua humildade, e conto com ela para tornar mais leve, para mim, o peso deste momento. Pois, em verdade, esta separação não é menos dolorosa para a mãe do que para a filha.

Tomou Blanche, sempre calada, nos seus bra­ços. Sentia-se um tanto embaraçada.

— O u tens ainda o sentimento de que te faço mal? — perguntou com um certo desacerto.

Blanche se conservava calada

Bruscamente, a superiora disse, com uma precipitação fora do costume:

— Irmã Blanche, ordeno-te que fales! Far-te-ei mal, sim ou não, enviando-te de volta ao mundo?

Blanche ajoelhou-se diante dela, e cobriu o rosto com as mãos.

— M i n h a madre ordena que fale — disse com doçura — pois bem: sim, me faz mal!

— Está, então, enganada a tua mestra de noviças, e tens a esperança de conseguir vencer ainda, malgrado toda tua fraqueza?

— Não, minha madre. — H a v i a , ao mesmo tempo, qualquer coisa de desespero e de certeza em sua voz.

Para a prioresa, foi como se houvessem tro­cado todas as escalas de valores.

— Olha-me — disse-lhe, brevemente.

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Blanche tirou as mãos do delicado rosto contraído. Toda sorte de expressões fisionómicas nele se estamparam, como que contidas num único ponto. E , coisa estranha, com uma intensidade es­pantosa. A custo o reconheceu a prioresa. Passou-lhe ante os olhos, repentinamente, um desfile de imagens, sem a menor ligação entre s i : pequenos pássaros que morrem, soldados feridos no campo de batalha, criminosos na forca.

Não era mais o pavor de Blanche que acre­ditava ter diante dos lhos, mas todos os terrores do mundo.

— M i n h a filha — disse, desconcertada — não é possível que a angústia mortal de todo um mundo. . . — e interrompeu-se.

H o u v e um silêncio. Depois, a superiora, quase com timidez, retomou a palavra:

— Crês que o teu temor. . . é religioso?

Blanche suspirou profundamente:

— O h , minha madre — disse num sopro — pense no mistério do meu nome!

De preferência a qualquer descrição dessa conversa, das mais estranhas, deixei falar o diário da prioresa. Já uma vez viste essas notas passarem, de um tom quase sempre tão sóbrio, para o de uma extraordinária afirmação religiosa. Pois , a essa altura, elas se elevam ao sublime da mística. Desde o início esses trechos de suas notas se distinguem de tudo o que os precede. E m lugar da simples indicação da data se encontra a epígrafe: " A p e l o da a l m a a D e u s " . Tudo o que se segue é escrito em forma de oração. Lê-se:

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" 0 meu Deus, inf inita , incomensurável e insondável Sabedoria! Esclarecei vossa serva, na missão que lhe é confiada. Vós sabeis, ó meu Deus , que estou pronta a executai, inccntinenti, todas as vossas ordens, desde que me julgueis digna de conhecê-las. O único perigo é não saber eu discerni-las judiciosamente. M e u Deus, abro a vós minha razão, como faria com um l i v r o : riscai o que vos desagrada e sublinhai o que corresponde à vossa eminente vontade. O ' meu Deus, será que vós, que elevais as virtudes naturais dos homens acima da natureza, também julgais digna dessa elevação uma de nossas enfermidades naturais? Vossa compaixão é tão grande, que diante de uma pobre alma inca­paz de dominar a sua fraqueza, vós desceis até essa fraqueza, para unir, por ela, essa alma ao vosso a m o r ? "

Evidentemente, essas linhas dizem respeito a Blanche, pois, logo a seguir, lemos essa passagem mais explícita:

"Estaria nos vossos planos, ó meu Jesus, escolher a natureza medrosa dessa criança, para que, no instante em que outras criaturas se preparam com alegria para morrer por vossa morte, ela per­maneça, de certo modo, na vossa angústia mortal, ao vosso lado? Seria essa a devoção que vos faltava ainda e que quase eu impedia?"

A s páginas seguintes tratam unicamente dessa última questão. Mas lemos depois:

" E u vos invoquei, ó meu Deus, num ato de total abandono da minha vontade, de minha razão, e de todas as minhas forças, para que me indicás­seis de modo indubitável qual seria a vossa decisão:

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de modo também que não pudesse admitir que me enganasse. Vós, ó meu Deus, silenciastes e é assim que me ordenais também o silêncio".

Não creio errar procurando ver nessa última frase a determinação da superiora de confiar-se a Deus para decidir se o terror de Blanche era ou não religioso. Esta reserva de todo julgamento cor­respondia, exatamente, ao uso da Igreja na maioria dos casos de misticismo.

Ass im, permaneceu Blanche no Carmelo de Cornpiègne e daí em diante sob a direção da prio­resa que, bruscamente, afastou a irmã Mar ia da Encarnação de suas funções de mestra de noviças e as assumiu.

A partir desse instante, começa a luta da irmã Mar ia da Encarnação contra a superiora.

Não se tratava, no caso, é lógico, de uma rebelião consciente. A alma dessa religiosa tão avan­çada no caminho da perfeição não tinha nenhuma possibilidade de opor-se abertamente à superiora. Manteve uma atitude exemplar, ao ser demitida. Não se tem, absolutamente, notícia de qualquer diferen­ça nas suas relações com a jovem noviça, depois de seu insucesso pessoal. Escaparam-lhe, é verdade, expressões como estas:

— A h , essa coisinha medrosa! Creio que ela fugiria diante de um ratinho!

Mas não as proferia com aspereza. Jamais deixou ela de rezar por Blanche. A luta a que nos referimos aqui não se revela sob a forma de um antagonismo em relação à prioresa, mas apenas diz respeito ao veto que esta última opôs à profis-

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são dos votos perpétuos e se manifesta, corno um cuidado aparentemente bem justificdo, no qae dizia respeito à manutenção de Blanche no Carmelo, com a aproximação de tempos verdadeiramente perigosos.

Como sempre, a atitude da então mestra de noviças foi a de todo o convento.

Cara amiga, não é intenção minha descrever acontecimentos já do domínio público. Compreendes que se entrara, então, no período das lutas pelo que se chamava de "organização c iv i l do clero". Lutas, ao curso das quais a revolução passou, in­sensivelmente, a uma perseguição declarada contra a Igreja. A atitude a respeito de Blanche não era de todo incompreensível.

— Não podemos mais nos preocupar, pre­sentemente, com quem quer que perturbe a nossa alegria — dizia até a doce Joana da Infância de Jesus. — Não nos esqueçamos de que talvez feste­jemos o próximo Natal no céu, com o pequeno Rei .

A pequena e ingénua Constança de Saint-Denis acrescentou:

— Se chegarmos, mesmo, a fazer face a essas perseguições, poderemos dizer, com perfeita conciên-cia, que teremos, todas, forças bastante?

— Não, minha menina, não poderemos estar certas de semelhante coisa — respondeu com voz profunda a prioresa que, por acaso, estava perto. — Mas felizmene não é disso que se trata. Trata-se, se essas perseguições vierem, de saber se Sua Majestade cuidará tanto dos fortes quanto dos fracos.

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— Sobretudo dos fracos, não é? — indagou a pequena Constança um pouco perturbada, quando se retirou a prioresa. Expressava o pensamento de todas, que não responderam mas se limitaram a olhar para Blanche.

É bem difícil traçar um retrato psicológico de Blanche, durante esses dias. A superiora não dei­xou esclarecimentos a esse respeito e nada se sabe acerca da mística desse caso. Nas suas notas en­contramos apenas pequenas indicações práticas, tais como:

"Aconselhei à pobre criança que continuasse a procurar a paz na própria angústia da qual Deus, conforme parecia, não tinha a intenção de libertá-la no momento".

"Consolação na angústia", "Recolhimento na angústia", "Abandono na angústia", "Conduzir a cruz da angústia", tais eram as fórmulas de que a superiora se utilizava frequentemente. Chegou mes­mo a dar esse conselho: "Permanecer f i e l à angús­t i a " . Sublinho essa última expressão porque, segun­do me parece, foi ela decisiva para Blanche. De resto, sabemos que se votou, sob a orientação da prioresa, a uma devoção particular à Eucaristia, ao "Deus sem proteção", como dizia a prioresa. (A su­periora anotou-a por ocasião de procissões blasfe-matórias, que muito repentinamente se multiplica­vam na França católica, tentando ridicularizar as procissões e outras cerimónias do culto cristão).

Por uma coincidência, cuja singularidade es­pantou certamente aos próprios profanos, a mesma primavera que via elevar-se em França essas vio­lentas tormentas contra a Igreja, alegrava, em Roma,

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a canonização de M m e . Acarie, a grande carmelita francesa. (Lembras-te, minha amiga, que boi diante do seu túmulo que Mar ia da Encarnação sentiu-se chamada a entrar na O r d e m ) .

Compreende-se que os católicos da França, e mais particularmente os convemtos carmelitas, viram, nesse acontecimento, u m dos últimos e sole­nes apelos pela salvação espiritual da nação. F o i nesse estado de espírito que, em Cornpiègne, se fizeram os preparativos da festa da nova santa. Mas é preciso que afastemos, querida, toda ideia de suntuosas iluminações ou missas pontificais, com que se acompanha, em geral, um acontecimento como uma canonização.

Era-se, nesse tempo, bem feliz, quando ainda se encontrava um padre f iel , isto é, não juramen­tado, para celebrar a missa. Não se pôde, porém, adquirir uma estátua conveniente da santa, em vir­tude de terem sido confiscados os bens eclesiásti­cos. Consolavam-se, por isso, com uma imagem ideal e exemplar de toda carmelita.

Estava-se em maio e sobre o altar da capela colocara-se a estátua da Virgem com o pequeno Rei nos braços. Pusera-se a pequena cabeça no lugar, mas a fenda no pescoço era muito visível. A irmã Joana de Jesus procurara substituir a coroa real por uma pequena coroa de flores. Será neces­sário dizer que, para a irmã Maria da Encarnação, a quem comovia de um modo especial a festa da santa, eram insuficientes esses modestos prepara­tivos?

N a véspera da cerimónia apresentou-se um mensageiro na portaria do convento e deixou um bilhete com as seguintes palavras:

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"Reverendas irmãs: intercedei amanhã diante da vossa santa, de um modo todo particular, por aquele cuja coroa, que luta também pela do vosso pequeno R e i , se acha gravemente ameaçada".

O bilhete fora escrito pela M m e . Elizabeth de França e aludia à resistência oposta pelo rei à constituição c iv i l do clero. (Sabes, minha amiga, até que ponto isto acelerava a queda da monarquia).

É inútil acrescentar que essas palavras pro­vocaram a mais profunda impressão no Carmelo de Cornpiègne, e sobretudo sobre a irmã Mar ia da Encarnação, pois, mais uma vez, é preciso lembrar que pensava dever sua vocação religiosa à nova santa carmelita e, antes de tudo, a f im de expiar os pecados da corte aos quais não ignorava que se prendia o seu nascimento. A s palavras de M m e . Elizabeth agiram sobre ela como um duplo apelo: ao seu sangue real e à sua própria missão.

Data daí a resolução que tomou de preparar-se para o martírio com o convento que lhe era devotado, mas consagrando-se expressamente.

— A realeza da França, ainda que tenha mentido à sua missão tantas vezes, empunha agora o estandarte de Cristo — assim falava à superiora. — Permita-nos, minha madre, oferecer, com o so­corro de Deus, a nossa pobre força para a sua luta pelos direitos da Igreja. Permita-nos emprestar à festa, que amanhã celebraremos em honra de nossa santa, um brilho invulgar, fazendo à divina Majes­tade a oferta de nossas pobres vidas pela de sua Igreja ameaçada na França.

Não creio ser necessário, minha querida, in-formar-te de que na linha da tradição do Carmelo

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são usuais tais atos de consagração. Nem tampouco precisarei dizer-te — nenhuma iLusão devemos ali­mentar a respeito — que 4 em semelhante dispo­sição de espírito que vamos encontrar as últimas e decisivas reservas de cristianismo, quando se apro­ximam os tempos maus. [Que outro significado pode ter uma perseguição de cristãos, além da imolação de Cristo livremente aceita, renovada nos membros de seu corpo místico? Neste sentido, nenhum mártir cristão morre por violência feita à sua vontade) .

Mas a prioresa hesitou, nessa ocasião, em dar o seu assentimento. Não, certamente, para sub-trair-se com suas filhas a esse sacrifício. Basta pen­sarmos, por um instante, no gesto que teve, quando da interdição dos votos perpétuos. ("Que vos dis­pondes a fazer de m i m ? " ) . Aos seus olhos, este sacrifício não era ainda "disponível": e motivava a sua recusa aludindo aos elementos fracos que podiam encontrar-se na comunidade.

A irmã Mar ia da Encarnação compreendeu: só havia um elemento fraco em Cornpiègne. Com uma paixão bruscamente desencadeada, fazendo in­char as veias finas de suas têmporas como os rios da França nas tempestades, ela exclamou:

— Ó minha madre, por que prefere ao he­roísmo de suas filhas a fraqueza dessa pobre crian­ça? E l a se chama "de la Force" , mas na verdade dever-se-ia chamar "de la Faiblesse"!

— E l a tem o nome de Jesus no jardim da Angústia — retrucou simplesmente a superiora. Era trágico, diante de sua fi lha "mais velha" , não saber essa mulher usar, mesmo nos momentos de exalta­ção intensa, nenhuma figura de retórica.

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A dor transparecia sob a palidez ascética das faces da irmã M a r i a da Encarnação. Nas suas têm­poras bramiam as ondas da França real, se é que se podia ouvi-las. Com uma dignidade incomparável, ela acrescentou:

— Compreendo que minha madre não quer que Deus disponha do heroísmo de suas filhas, mas. . . — essa palavra, " d i s p o r " , fê-la parar brus­camente.

— Por que não "também" do heroísmo? — perguntou a superiora.

Suas palavras pareceram à irmã de uma gra­vidade intolerável. Sem dúvida, num momento como esse, de tão profundo e definitivo significado, foi que a irmã Mar ia da Encarnação, consciente ou inconscientemente, formou o seu julgamento sobre a superiora.

M i n h a amiga, não intenciono, complacente­mente, encobrir as imperfeições de uma grande alma. A s árvores pouco elevadas são raramente atin­gidas pelo raio. Cursos d'água pouco profundos não foram feitos para devastar territórios. N e m são nuvens de algodão que trazem tempestades. E , para falar a linguagem das minhas heroínas: o diabo é às vezes uma testemunha insigne, pois, na verdade, ele se preocupa raramente com as almas de pouca valia. Quem poderia criminá-lo por, de preferência, instalar-se nas elevadas e belas moradias? Sejamos leais: a revolução era também uma de suas mora­das. Também nós, querida, saudamos esta nova aurora da humanidade, e foi cruel a nossa desilu­são. Pois o terrível não é os instintos desorde­nados conduzirem a desordens, quando os erros

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trazem paixões e crimes, irias a verdadeira e temí­vel tragédia da humanidade é que, nuim dado mo­mento, possam os mais nobres ideais (entre eles, a liberdade e a fraternidade) se tomarem carica­turas e transformarem-se exatamente no contrário. Bem entendido, não quer isto dizer que todos os nossos ideais tenham sido falsos, mas somente que não nos tenham sido suficientes.

Veio então a terrível metamorfose. Antes da explosão de toda catástrofe, há um momento de extraordinária solenidade em que, bruscamente, ao mesmo tempo, em todos aqueles que dela partici­pam, se levanta a certeza inelutável do que se vai passar. Lembras-te ainda daqueles dias de abril , que precederam imediatamente a queda da realeza? ( A h ! querida, um rei , por mais fraco que seja, é sempre um bastião incomparável, pois não é nos ramos, mas nas raízes, que reside a força da árvore). De onde vem, então, esse brusco ímpeto de satanismo, essa inquietante maré de obscuridade e treva? Quem a havia provocado? Quem nos afirmava a sua im­placável necessidade? Quem forçou a humanidade, tão certa da vitória, a capitular diante dela? Era como se cada folha, em cada árvore da França, estremecesse conosco. Pois todos tremiam indistin­tamente: os que lhe tinham horror e os que de­sesperadamente lhe resistiam. Última e terrível uni­dade desse frémito de horror unânime! Mas tais horas não se podem descrever. Tais horas, é preciso as ter v ivido. Ter sido possuído pelo seu frémito!

F o i então que monsenhor Rigaud fez saber à superiora de Cornpiègne que lhe queria falar. Não te admires dessa viagem, querida! Não havia mais lugar nesses dias para o pleno rigor da clau­sura. Por pouco, a víamos suprimida. Não se du-

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viciava mais de que se estava nas vésperas de ver todos os religiosos regulares expulsos dos conventos. E mesmo o hábito religioso — que constituía de algum modo a última e a mais íntima clausura, no sentido de uma separação do mundo — havia então desaparecido. Constrangidas a abandoná-lo por or­dem do governo, as ordens religiosas haviam levado os seus membros a dirigirem-se às suas famílias para obter vestimentas civis, uma vez que tinham sido despojadas de seus recursos.

A prioresa dirigiu-se então a Paris onde, a f i m de prevenir-se contra os maus tempos que chegavam, receberia as últimas instruções do supe­rior. Para substituí-la, deixou a irmã Mar ia da E n ­carnação. T a l fato pode, ao primeiro instante, causar surpresa. Creio estar certo interpretando isso como um gesto de confiança para com a rebelde e, talvez, como um sinal de confiança na própria virtude do cargo.

Sob tais circunstâncias, o expediente parecerá tanto mais trágico.

Falamos, a toda hora, da comum consciência de uma certeza inelutável. H a v i a , contudo, em Paris uma pessoa que abria exceção. Tratava-se de M m e . de Chalais, que se dirigia a Cornpiègne para levar à sua antiga discípula os vestidos por esta pedidos ao pai.

M m e . de Chalais não mudara muito. A fir­meza de seu caráter e de sua convicção fizera-a suportar horas difíceis, com tanta vigilância quanto seu espartilho, muito estreito, suportava a nova moda de grandes decotes. Dava um singular con­forto ouvi-la falar e ver com que perseverança

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estava convicta de que a piedade exemplai de um rei , tão excelente quanto a do que reinava na França, não podia, de modo nenhum, ficar sem recompensa. De que, se a tanto se chegasse, os bravos cristãos da nobreza e os suíços reunidos nas Tulherias triunfariam infalivelmente sobie a popu­laça v i l e incrédula. E de que a Providência não permitiria que fiéis e dignos padres fossem amea­çados.

Presumo que, em Cornpiègne, M m e . de Cha­lais se tenha expressado em termos idênticos. Não temos notícia alguma da sua conversa mantida com Blanche, mas não lhe dou grande importância. Basta saber que, pela primeira vez e depois de muito tempo, M m e . de Chalais revia a sua discípula, e, acrescentemos, sem o véu — pois já se começara a usar os trajes civis. Já disse que era um pouco difícil traçar o retrato de Blanche nessa época, mas, qualquer que fosse, a sua imagem devia ter sido muito eloquente e, sobretudo, completamente diver­sa da que M m e . de Chalais ouvira contar. Sou tentado a crer que se passou um fato bastante pa­recido com o episódio da balaustrada, ocorrido outrora entre ela e Blanche. E m todo o caso, M m e . de Chalais deixou o parlatório muito agitada.

— Será verdade que se pensa, realmente, aqui, que ela não possa mais dedicar-se a Deus? — perguntou, completamente fora de si, à irmã rodeira do convento. — É isso na verdade o que se pensa num convento de carmelitas? A h ! que escândalo!

E logo após desfaleceu. Chamaram Blanche, mas ela se recusou a ir , como possuída por um terror mortal. Colocaram M m e . de Chalais numa cadeira

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e lhe deram para respirar um vidro com aromas, o que a fez, pouco a pouco, voltar a si . Desfez-se em lágrimas — e ninguém se recorda, jamais, de tê-la visto chorar tanto.

— Ó meu Deus — soluçava ela — ó meu Deus! Vão tomar de assalto as Tulherias e expul­sar o rei . Vão destroná-lo! (Dizia : "vão" e não " q u e r e m " ) . Vão matá-lo, a ele, o melhor e o mais piedoso de todos os reis! (o mais piedoso de todos os re is ! ) . Vão matar os padres fiéis (os f ié is ! ) . Matar os bravos suíços (os bravos!) . Tudo está em ruína, o país precipita-se irremediavelmente na mais terrível anarquia, e são apenas os melhores que vão perecer (os melhores!).

E r a nesses termos que se lamentava M m e . de Chalais, revelando, sem cuidado, toda a situação desesperadora em presença das pobres religiosas, às quais, sem dúvida, a superiora ocultara sempre o pior .

Para tranquilizá-la, fizeram-na ver uma ima­gem do pequeno Re i , mas, assim que ela a olhou, gritou:

— A h ! O pequeno Rei morreu! — Não acrescentou, como Blanche: "Só resta o Agnus D e i ! "

Dir-se-ia que a sua piedade desaparecera num instante. Seu exterior apresentava um aspecto dife­rente e mesmo desagradável à vista. A estreita bai­nha do seu espartilho estava aberta. A s baleias romperam-se ao recostar-se ela sobre a cadeira e apareciam na seda amarrotada. Sua nobre cabeleira parecia um ninho em que um gato fizesse a sua morada. A cada instante, levava a mão ao pescoço

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magro, como se quisesse coav ericer-se de que ainda estava sobre os ombros. E pedia quie a deixassem partir para a Suíça, a Alemanha, a Espanha, a Bél­gica; em suma, transpunha todas as fronteiras do país, cada vez mais possuída pelo desespero.

Mas não nos podemos ocupar por mais tem­po dessa pobre mulher. Basta saber que, por f i m , a fizeram voltar à carruagem, lembrando-lhe que, se queria realmente fugir, não havia tempo a perder. (Soube depois que chegou à fronteira sem dificul­dades e três dias mais tarde mor eu em Bruxelas) .

Mas voltemos ao Carmelo de Cornpiègne. Pensa, minha amiga, em que circunstâncias foram ouvidas as palavras de M m e . de Chalais. Recorda que a irmã Mar ia da Encarnação exercia então a função de prioresa! Este encargo lhe favorecia a possibilidade de dar um passo que a superiora — como se procurava justificar — impedira, mas sem proibi-lo terminantemente. (Minha amiga, jamais ve­remos a irmã Mar ia da Encarnação no caminho de uma desobediência declarada, mas apenas numa des­sas estreitas regiões intermediárias). Imagina só o que estava em jogo: tratava-se do derradeiro e pre­cioso minuto de um heróico sacrifício expiatório pela salvação da França.

Parece, no entanto, que algumas carmelitas ficaram um pouco consternadas com a proposta da prioresa interina. E para usar uma expressão da superiora efetiva: não se devia mais brincar com pérolas de louça, pois a guilhotina já estava insta­lada na praça da Greve. Contudo, elas aprovaram corajosamente a proposta, com as fisionomias mais ou menos pálidas. Somente a pequena e ingénua Constança de Saint-Denis chorava um pouco, lamen­tando que seria a última a ir ao cadafalso.

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A irmã Mar ia da Encarnação v iu nesse in­cidente um desvio lamentável.

— A última, nesse caso, não será a mais moça, porém a mais idosa na profissão e, de resto, não és a mais moça; a mais jovem é. . . — foi só então que seu olhar deparou com Blanche, em quem não pensara na agitação do momento. (Nesse instante — escrevia mais tarde a prioresa Lidoine — a sombra da angústia de Cristo se interpôs de um certo modo no caminho de seu heroísmo, mas ela não o reconheceu. Nisso vemos a grande escusa dessa alma nobre e, ao mesmo tempo, a sua mais grave acusação!).

Voltando ao caso: a irmã Maria da Encar­nação percebeu, contudo, qualquer coisa dessa som­bra: à vista de Blanche experimentou uma opressão estranha, exatamente como M m e . de Chalais. E não era bem o pavor do sacrifício, mas o medo de ser detida no cumprimento de seu próprio sacrifício. E chegamos assim a um ponto em que a questão não se resumia mais, para ela, na obrigação de não se dever esperar mais. Porém, na de se estar a par das próprias forças. Pois, além do ato conse-cratório que se preparava para pronunciar, havia, no final das contas, a perspectiva de um dia exe­cutá-lo.

— Ninguém está obrigado a este voto, — acrescentou rapidamente. — Quem não estiver em condições de oferecer espontaneamente a sua vida por Cristo, quem não sentir em si a necessidade dessa santificação, poderá ficar, tranquilamente, de lado.

Pensava, certamente, que Blanche aproveita­ria essa permissão e — sejamos justos — mesmo

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o desejava. Com efeito, ficar d!e lado, significava, no caso, excluir-se da comunidade e era o primeiro passo para a saída.

Mas Blanche não se aproveitou da permissão.

Recapitulemos rapidamente a maneira como esses atos foram realizados. D e ordinário, pronun-ciam-se os votos pessoais interiormente, durante a missa, logo após a consagração. O celebrante é habi­tualmente posto a par, de modo que menciona o voto no seu "memento" , dando em seguida a comu­nhão e a bênção.

A b r o , nesta altura, o diário da superiora. Desde o seu regresso, essa mulher fiel e maternal procurou averiguar o estado de espírito em que se encontrava Blanche antes e depois desse voto terrí­vel . Parece que o convento se preparara em comum, durante a noite. E faríamos mau juízo do poder que a irmã Mar ia da Encarnação exercia sobre as almas, se duvidássemos de que, na manhã seguinte, todas não estivessem em perfeita disposição — excetuando Blanche, bem entendido. A irmã Maria da Encarnação fez ainda uma nova tentativa para retê-la, antes de começar a missa. Seu diálogo revela comoventemente o estado de espírito da jovem noviça.

Disse-lhe a superiora interina:

— Compreende bem, minha fi lha, que nin­guém te exige este sacrifício. Queres, realmente, apresentar-te diante de Nosso Senhor nesse estado de angústia?

— M i n h a madre, não quero ser-lhe infiel — respondeu Blanche.

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(Recordemos, querida amiga, a fórmula que já sublinhei, do diário da superiora Lidoine : "Ficar fiel à angústia") .

Blanche entrou na capela em companhia das outras religiosas. A pequena Constança de Saint-Denis, que seguia ao seu lado, lembra-se perfeita­mente.

— Mas não pude ver-lhe a fisionomia — acrescentou ela — pois, nessa manhã, sentíamos todas uma grande alegria, que estranhamente nos oprimia, tornando-nos particularmente suscetíveis.

Estava-se no ato propriamente dito da con­sagração. Vejo diante de mim uma pequena capela despojada, pelo Estado, de todo ornamento, com os altares desnudos e vazios como na sexta-feira santa. Vejo um coro desprovido de qualquer assento — no Carmelo reza-se sem conforto — . Vejo ajoe-lhar-se no mesmo solo um grupo de mulheres, seguindo a missa recitada, acompanhadas, de longe em longe, pelo " C a i r a " vindo da rua. A s fisio­nomias dessas mulheres transfiguram-se maravilho­samente, impregna-se nelas a beatitude de um aban­dono total, de uma última, irrefreável e onímoda submissão, que vai além da vida e da morte. Ape­nas uma dessas mulheres não ouso retratar — ah, querida, sou como Constança de Saint-Denis. Não suporto a visão daquele delicado rosto contraído, coberto de suor, desfigurado não pelo seu medo particular, mas pelo medo da França inteira — pelo receio do próprio amor eterno! Narra Constança de Saint-Denis que, ao ser pronunciado o ato do sacrifício, durante a consagração, Blanche estava ajoelhada ao seu lado. Só no momento em que se aproximava da mesa da comunhão notou a sua ausência. ( A h ! ela devia receber outra comunhão).

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E ninguém nos poderá contradizer se afir­marmos que, nesse instante, os nervos de Blanche cederam. Mas poderíamos alegar outra coisa. "Pobre criança", escreve M m e . Lidoine de Santo Agost inho, "quis ficar ao lado de Nosso Senhor nesta angústia e, como suas forças se houvessem esgotado, lançou-se de qualquer modo nessa angústia".

Passo a narrar agora a fuga de Blanche, pois não se trata, infelizmente, de u m afastamento da capela, mas do próprio claustro. Alguns dias mais tarde, recebia-se uma carta do marquês de la Force, comunicando à superiora que sua filha chegara doen­te à sua casa em Paris e num estado que causava piedade.

Não posso deixar de citar, ao menos, algu­mas passagens dessa carta. Com efeito, o marquês de la Force sofria uma reviravol 'a não menos sur­preendente, no género, que a de M m e . de Chalais. Acabou descobrindo que certas ideias de nenhum modo se contentavam em servir de motivos elegan­tes para a sua conversação, mas possuíam a singu­lar propensão de se verem realizadas a qualquer custo e sem o menor escrúpulo quanto à escolha dos meios. E m consequência, depois de algum tem­po, vivia o marquês propugnando por uma realeza forte e uma autoridade absoluta. Para si próprio e para os que o cercavam, foi o senhor de la Force objeto de surpresa, ao chegar a reconhecer, aberta­mente, a necessidade da religião e particularmente a necessidade da Igreja. Já no tempo das procissões dos Sem-Deus ficara confuso. (Meu Deus, o ateísmo se comporta entre as mãos grosseiras do povo com menos elegância que nos lábios de aristocratas espi­rituais) .

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— São intoleráveis essas grosserias populares — . ouviram-no declarar nessa época. — É absolu­tamente necessário pôr-se um teimo a isso! É a tarefa da gente de piedade. Disseram-me que o número destes é ainda suficiente. Espero que aumen­te: esses meios são da maior valia para a manu­tenção da ordem e dos bons costumes. Por que não se põem em ação? Pensa-se, talvez, nos claus­tros, que se conjuram esses perigosos assaltos pela oração e o sacrifício? Seria um erro muito funesto!

Eis o que o senhor de la Force escrevia a todo mundo e ao Carmelo de Cornpiègne também. Mas só o menciono aqui, de passagem, para escla­recer o que se segue. Infelizmente não é possível saber se o infortunado marquês estava decidido, nessa época, a sofrer pessoalmente as consequências de suas convicções, pois a vida se lhe antecipou nesse cuidado — se é que julgo bem — impondo-Ihe a consequência lógica das opiniões que profes­sara até então. Nos primeiros dias de setembro, como tantas outras pessoas de sua ordem, o senhor de la Force fo i lançado na prisão.

E agora, querida, retomo por um momento o fio de nossa narrativa, segundo as minhas pró­prias impressões. Sabes que nessa época corria nos círculos de Paris o rumor de que tu também estavas em o número desses aristocratas encarcerados. Deixa-me descrever-te o estado de espírito em que me encontrava. Esses dias eu os passava a correr de prisão em prisão, metido nos trajes de um de meus criados, munido do laço tricolor, enquanto a tua carruagem já rodava para o Reno salvador. Querida, muitas vezes te falarei ainda dessas recordações. Não é, contudo, para satisfazer uma curiosidade repug­nante que preciso evocar o terror e o medo, mas,

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sim, porque esse é o nosso dever. O medo, que­rida, é um grande motivo: não sofremos ainda o bastante que somos capazes de sofrer. U m a socie­dade deve recear, u m governo temer: ter medo é uma força! São coisas passadas, mas que podem a todo momento renovar-se,

U m acaso me fez entrar ao pátio da prisão, no instante em que o marquês de la Force era executado. Era noite. O pátio estava cheio de gente — que digo, de gente? Jamais se viram em Paris criaturas dessa espécie. De onde vinham? Que me­tamorfose sofrera a população para se tornar essa canalha? ( A h , minha amiga, é dessa metamorfose, precisamente, que falamos) . Cheirava a vinho. U m a alegria sórdida e uma outra espécie de terrível em­briaguez parecia possuir a todos. Semelhantes a uma floresta desnuda, erguiam-se os chuços na direção da porta interna do pátio. Duas tochas o aclaravam em cada lado da entrada. À sua luz, a floresta de lanças agitava-se. De tempo em tempo abria-se a porta deixando passar uma a uma ou em grupos as formas humanas. A s lanças se agitavam ruidosa­mente. Alguns gritos eram percebidos e tudo estava acabado. (Sabes que isso durava dias e noites).

Vacilante, eu ia de cadáver em cadáver para convencer-me de que não estavas entre eles. A gen­talha, que, no fundo, seguia o espetáculo sangrento, consumava sua atrocidade sobre algumas dessas ví­timas.

De repente, a porta do terror abriu-se de novo: qual uma besta acuada calou-se a multidão. Tinha a impressão de que não havia mais uma só pessoa na praça e mais nada distinguia além das vítimas. Todo esforço que fazia para ver o que se

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passava era inútil em meio à confusão geral. Invo­luntariamente, apoiei-me à muralha, esperando o grito de morte do único ser humano que parecia estar no pátio comigo. Mas esse grito não veio. Ouviu-se um tumulto de vozes selvagens. O ruído cessou e estabeleceu-se uma calma surda.

Repentinamente percebi um grito de moça, muito breve e claro:

— V i v a a Nação!

Não era um grito retumbante, mas penetra­va até a medula. Jamais ouvi algo semelhante. Nada havia de terrível, mas algo de singular, direi mesmo de transcendente. A o ouvi-lo, dir-se-ia que uma alma, liberta, deixava a matéria, sem ter mais nada a ver com ela. Involuntariamente abri os olhos.

U m tumulto indescritível enchia agora o pátio. Comprimia-se a multidão em torno de alguém que não pude distinguir. " V i v a a Nação!" , " V i v a a Nação!" , bradava ela, numa alegria frenética. Le­vados sobre os ombros, v i , então, um velho e uma jovem: eram o senhor de Sombreul e sua f i lha.

Conheces, querida, a história dessa famosa mártir do amor f i l ia l . O nome de Sombreul figura na série de tuas heroinas da revolução. Alguém me disse que essa jovem acabara de beber, à saúde da Nação, uma taça transbordante de sangue de aris­tocratas, como preço da vida de seu pai, exigido por aqueles brutos. Entrementes, via-se aproximar o horrendo cortejo levando aqueles que, um mo­mento antes ameaçados de morte, eram agora acla­mados como heróis do povo. Via-a passar, bem perto de m i m , transportada sobre ombros. Diz-se que a senhorita Sombreul era uma bela jovem. Não

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sei: a criatura que eu v i parecia completamente desencarnada. Não acreditarás, talvez, mas ela parecia ébria de felicidade, como se não existissem mais nem o temor nem o desgosto, mas apenas o pai salvo.

O cortejo desapareceu pela porta exterior. A multidão comprimia-se atrás dele. Uma passagem foi aberta até a prisão. Percebi, no solo, o marquês de la Force assassinado e por trás dele, apoiada ao muro, sua filha Blanche. Diante dela se achava um indivíduo horrível com um boné vermelho. Naturalmente não era o mesmo que um dia olhara para a sua cela e no entanto, como por qualquer maquinação infernal, bem parecia saber quem era ela. Teria reconhecido nela a re'igiosa, pela maneira como ela unia as mãos crispadas? Seus cabelos apa­rados tê-la-iam identificado? O indivíduo fez um gesto blasfemo sobre a taça que trazia na mão. (Minha amiga, sabes o que são essas procissões dos

incrédulos).

— Comunga, cidadã! — gritou ele, levando a taça, com violência, aos lábios da jovem.

E r a , sem dúvida, o mesmo cálice em que a jovem Sombreul bebera pouco antes para salvar seu velho pai. A h , minha amiga, para esta, tratava-se pelo menos de um resgate. H a v i a um sentido para o horrendo. Mas no caso de Blanche só havia a brutalidade nua, sem o menor sentido! O u have­ria ainda um sentido? Essa jovem não seria, na­quele instante, a França martirizada, forçada a beber o sangue dos próprios filhos? H o r r o r dos horrores! Fechei os olhos de novo.

Mas já a multidão se punha a gritar com entusiasmo: " V i v a a Nação!" " V i v a a Nação!"

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Tudo se consumara.

A o meu lado, algumas mulheres resmunga­vam:

— Mas por que não carregam aos ombros essa jovem tão corajosa? Será necessário, porven­tura, que ela marche sobre essa imundície? Que falta de delicadeza!

(Com "imundície" queriam referir-se ao san­gue) .

Blanche foi levantada aos ombros dos assis­tentes e, conduzida em triunfo, passou diante de m i m . Como poderei descrevê-la, se a verdade é que não a reconheci mais? Seu rosto era inexpressivo, mas não incorporai como o da jovem Sombreul. Os cabelos curtos caíam-lhe pela fronte numa desor­dem terrível. Pareceram-me um símbolo do completo aniquilamento de seu ser. (Querida, há uma outra morte além daquela em que pensara a irmã Mar ia da Encarnação!) .

Durante todo esse tempo, a multidão gritava sem cessar: " V i v a a Nação!" U m a banda de música apareceu no pátio tocando a "Carmagnole" e todos se puseram em movimento. Percebi ser temerário ficar no pátio, agora vazio, e juntei-me ao cortejo. Algumas mulheres da praça do mercado marchavam ao meu lado — as mesmas que antes haviam gri­tado que não se devia deixar Blanche marchando na'imundície. Afirmaram-me que iam acompanhá-la até o castelo de la Force para saberem se a pe­quena cidadã encontraria o seu jantar, e estou con­victo de que realmente tentaram fazê-lo. A h ! que­rida, não creia que essa gente seja incapaz de uma ação boa! A canalha sempre é capaz também de

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boas ações, pois o que a torna canalha é o fato de ser capaz de tudo!

Por m i m , tive a convicção de que Blanche morreria ainda naquela noite: esperava-o, e esta esperança me era uma consolaçã-i. Entretanto, Blan­che continuou a viver, ou antes, a existir. M i n h a amiga, se ela fora, naquela terrível noite de setem­bro, o símbolo do nosso pobre país, havia nessa prolongação uma conformidade trágica de destinada. Como poderia ter sido assim, evidentemente não o compreendo, e, de resto, não importa muito com­preendê-lo agora.

Posso imaginar muito bem que ela mesma nada mais compreendia de sua existência. E is como se apresentava a sua vida exteriormente: é sabido que adquirira uma certa consideração no meio da população. Que aquele monarca, o mais caprichoso de todos, continuava a admirar o ato por ela rea­lizado. O h ! nada fala tão explicitamente do aniqui­lamento completo de sua personalidade como esse espantoso favor.

Se damos crédito à lenda de Paris, as mu­lheres dos mercados encarregaram-se de velar sobre a pequena heroína. É certo que algumas se instala­ram no Palácio de la Force depois do assassinato do marquês. Podiam-se-lhes ver os largos ombros amassarem as espaldas elegantes dos canapés dou­rados, e os restos de comida das refeições juncarem o chão. Faziam Blanche participar dessas refeições. E presumo que à tardinha chegavam os esposos e os amantes dessas mulheres. Narravam então os acontecimentos sangrentos do dia, cantavam a "Car­magnole" e dançavam. Talvez dançassem também com Blanche. Creio vê-la dançando diante de m i m

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— pequena forma desesperada — e tão exatamente, como ao passar ante os meus olhos quando condu­zida sobre os ombros dos revolucionários de setem­bro. Mas é preciso insistir sempre: todos esses por­menores não têm, afinal, a mínima importância e eu já não me poderia certificar de sua autentici­dade.

Afirmou-se e, o acho bem possível, que Blanche vegetou durante muito tempo, completa­mente apática e solitária, no recanto obscuro de um quarto do pátio. Às vezes, levada à força, acom­panhava pelas ruas de Paris algum cortejo de mu­lheres, ou ia a este ou aquele movimento político. U m a dessas mulheres, uma honesta comerciante, de-clarou-me posteriormente:

— Éramos obrigadas a levá-la de tempos em tempos. A pobre senhorita era uma aristocrata de nascimento e além disso uma antiga freira, e nessa época havia elementos muito exaltados em nosso governo. O senhor deve estar lembrado.

A h ! sim, eu me lembrava: era por medida de proteção. M i n h a amiga, nada sobrepuja a fide­lidade de uma heroína de setembro!

E para nós uma questão se apresenta: che­garam esses horrores ao conhecimento do Carmelo de Cornpiègne? Parece-me que não. A carta do mar­quês de la Force foi a última notícia que se recebeu no convento a respeito de Blanche. (O que não é para surpreender, querida, pois estávamos em pleno alto-mar do caos!) . O diário da prioresa silencia completamente, por essa época, o caso da antiga noviça, bem como o ato da consagração da irmã Mar ia da Encarnação — ela que outrora era sem-

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pre nomeada e consultada. Este silêncio é, com cer­teza, intencional e só foi derrogado no dia da execução do rei . Não há dúvida de que o convento, confundido, tenha visto nesse acontecimento a re­cusa de sua heróica oferta, pois não esqueçamos que o ato da consagração tivera lugar na véspera do assalto às Tulherias. Para a irmã Mar ia da En­carnação, que era de sangue real, a salvação da França religiosa sempre esteve ligada à salvação da coroa. Refere a prioresa que, entre lágrimas, ela consolava as irmãs:

— O rei morreu, viva o rei !

Tratava-se do infeliz e pequeno delf im, sobre o qual a prioresa acrescentara logo:

— Permitistes, meu Deus, que o rei de nossa pátria terrestre se tornasse verdadeiramente um po­bre e fraco menino como o pequeno Rei da Glória!

E depois, com um olhar lúcido, através da impenetrabilidade da confusão reinante:

— M e u Deus, quereis, pois, que Vos ofere­çamos um sacrifício sem esperança, exceto a da im­penetrabilidade de Vossos caminhos.

Segue-se, então, querida amiga, a preparação ao segundo ato de consagração do Carmelo de Corn­piègne: a própria prioresa o introduziu. É a pre­paração para o sacrifício imprescritível ou, usando a linguagem da superiora, o sacrifício do abandono. Mas é também a preparação para o sacrifício incon­dicional. "Sacrifício sem esperança", "sacrifício úni­co a D e u s " , "sacrifício sem heroísmo", "sacrifício para seguir somente os caminhos de D e u s " , "sacri­fício da noite absoluta", "sacrifício no coração do

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caos" — tais são as expressões que, por essa época, apareciam constantemente no seu diário. Não es­crevia "sacrifício para conjurar o caos", porque já não lhe era possível. Tratava-se, para ela, do "sa­crifício de pura obediência". Não creio, minha amiga, que haja passado pelo seu pensamento renovar ou realçar o valor do sacrifício. Para esta alma humilde tratava-se de insistir sobre o caráter particular da exigência que reclamava precisamente a hora pre­sente. Por certo, preparava o Carmelo de Cornpiègne para aguardar, nesse espírito, a catástrofe que o esperava.

Como' a irmã Maria da Encarnação encarava o sacrifício assim modificado em seu caráter? Creio que já pudemos discernir a sua atitude no " V i v a o r e i ! " Segundo a prioresa, a sua piedade se orien­tava, então, pela " luta contra o caos". A h ! minha querida, essa pequena anotação faz irradiar mais uma vez a admirável personalidade dessa grande carmelita! Nada a havia modificado ainda até esse momento. A fuga de Blanche para a casa do pai trouxera-lhe profunda paz. Creio ouvi-la indagar à prioresa:

— M i n h a madre, não é consolador já não haver entre nós alguém capaz de esquivar-se?

( A superiora menciona essa frase diversas vezes, o que dá a entender que a irmã Mar ia da Encarnação se expressava amiúde assim).

M i n h a amiga, se quiséssemos descobrir nela um sentimento de culpabilidade, só aqui seria isto possível. Mas não saberíamos fazê-lo, a menos que fosse no mais profundo do inconsciente. É nisso, sem dúvida, que está a chave do silêncio mantido

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pela superiora quanto ao primeiro ato de consagra­ção: temia antecipar alguma coisa sobre uma de­cisão que não estava ainda "preparada". E , no entanto, essa hora já havia soado.

F o i então que as carmelitas da rua d'Enfer pediram ao Carmelo de Cornpiègne que lhes envias­sem, a Paris, discretamente, o pequeno Re i da Glória — ou, antes, o que dele se salvara e res­taurara — a f i m de que estivesse o mais perto possível do infeliz delfim de França, ou — como dizia a irmã Mar ia da Encarnação — a f i m de que o salvasse. (Não sabia ela o que isto significava: o delfim já se achava nas mãos do sapateiro Simão!)

E la própria fora citada em Paris, pelas auto­ridades da revolução, para liquidar as rendas que recebia do Estado. (Lembras-te, minha amiga, dessa herança proveniente de suas origens reais?). Escreve a prioresa que a irmã acolhera com alegria essa perigosa ordem porque lhe fornecia uma ocasião propícia para dar testemunho de Cristo. Natural­mente encarregou-se, sem hesitação, de levar a Paris o pequeno Rei da Glória. N o momento de sepa-rarem-se, a velha irmã Joana da Infância de Jesus chorou, pois durante vinte e quatro anos havia cuidado do pequeno Re i . A i n d a na véspera da par­tida, confeccionara-lhe um pequeno manto para a viagem, talhado de um velho hábito monacal. Não era melhor acabado que a pequena camisa de outro­ra, mas na lista precária do guarda-roupa que o seguia, figurava como o "manto da coroa", tal como outrora o de púrpura bordado a ouro.

Considero naturalmente como um mero con-tra-senso a opinião segundo a qual essa tocante e pequena lista que foi cair, como o pequeno Rei ,

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nas mãos dos inimigos, tivesse provocado a catás­trofe do Carmelo de Cornpiègne. É verdade que acusavam as religiosas de pretenderem ocultar o manto de púrpura. Dizia-se também que as três pobres camisinhas enviadas a Paris teriam sido des­tinadas ao "pequeno r e i " . N a verdade, semelhantes tolices eram muito comuns nesses tempos. M i n h a amiga, f o i com o "manto da coroa" que se quis cobrir precisamente a causa perdida: nessa acusação o "pequeno capeto" representava o próprio pequeno R e i da Glória. C o m efeito, já o processo estava julgado, quando a irmã M a r i a da Encarnação foi citada em Paris a f i m de aparecer perante a justiça.

O advogado Lézille, que a assistiu durante as audiências, percebeu logo que esse negócio de liquidação era apenas u m pretexto para se apode­rarem da própria irmã que consideravam, provavel­mente, a mais importante da comunidade. Percebeu que se armava uma outra espécie de processo, do género daqueles que se intentavam em massa contra os padres não juramentados e os membros das con­gregações dissolvidas. (Sabes, minha amiga, que então se resolvera rezar apenas à Razão — essa razão que nesses tempos era tão traída como a f é ! ) .

O advogado Lézille, desde o início, alimen­tava temores a respeito de sua cliente. Talvez se preocupasse também com o entusiasmo que ela pu­desse manifestar diante do tribunal. Pelo menos presumo ter sido esse o motivo que o induziu a fazer v i r a Paris M m e . Lidoine . Entretanto, ao que parece, as coisas se desenrolaram sem incidente. A superioridade da irmã M a r i a da Encarnação não concedeu aos inimigos o triunfo de ousarem acusá-la, nem que fosse sob a aparência do bom direito. (Ela desejava o v e r d a d e i r o martír io) .

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Confessou o advogado Lézille que ela opôs, à maneira arbitrária pela qual era tratada, uma majestade incrível e também uma perfeita prudên­cia. C o m efeito, não tinha necessidade de provocar ninguém, e tudo leva a crer que, por essa mesma razão, não a desencorajaram as notícias alarmantes que recebera em Paris acerca da sorte do delf im. (As carmelitas da rua d'Enfer só haviam tido uma ideia: a de fazer levar o pequeno Rei aos meninos agonizantes, para que Ele os ajudasse a morrer ! ) . A imputação era iminente. Pelo modo de se pro­longarem certas questões, evidenciavam-se ideias pre­concebidas.

Enquanto acompanhava-as até a carruagem, o Sr. Lézille explicou, sem rebuços, às duas carmeli­tas, o que pensava sobre o processo.

Estavam na altura da rua dos Padres de São Paulo, no trecho em que cruza com a rua Santo Antônio. A essa hora havia na rua grande movi­mento. O advogado notou, no meio da multidão, uma daquelas carroças tragicamente famosas que transportavam as vítimas até a guilhotina, na Praça da Revolução. A f i m de impedir que suas clientes vissem o triste espetáculo, o Sr. Lézille procurou um pretexto qualquer para penetrar no carro. Mas a irmã M a r i a da Encarnação já o percebera, com os olhos brilhantes, e retrucou rapidamente:

— Não, Sr. Lézille, vejo padres na carroça. Deixe-me o conforto de admirar o^ confessores de Cristo a caminho do cadafalso! O Sr. acaba de nos dizer que deveremos esperar seguir o mesmo ca­minho.

E , voltando-se para a superiora, acrescentou:

— Não é bom, minha madre, saber que não há mais entre nós quem não esteja preparada?. . .

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Enquanto pronunciava essas palavras, defen­dendo pela última vez o ato da consagração, empa­lideceu bruscamente e estacou de chofre no meio da frase. A superiora e o advogado seguiram-lhe o olhar que passava rapidamente sobre as infelizes vítimas aglomeradas na carroça, indo deter-se sobre um grupo de mulheres que se juntava ao cortejo. Querida, conheces suficientemente esses agrupamen­tos de mulheres a caminho da guilhotina: não pre­ciso fazer comentário algum.

— Ó Jesus Cristo, compreendo agora a vossa angústia mortal! — gritou ela, precipitando-se para o cortejo e desaparecendo no meio da multidão.

A prioresa e o advogado entreolharam-se embaraçados. Esperaram alguns minutos, mas a irmã Mar ia da Encarnação não voltou. Nesse ínterim, a condução que as levaria a Cornpiègne se preparava para partir e a superiora foi obrigada a tomar so­zinha a carruagem. Logo após a sua chegada, M m e . Lidoine foi presa com toda a comunidade.

Somente à tardinha, a irmã Mar ia da Encar­nação chegou à casa do advogado Lézille, num esta­do de completo esgotamento. O excelente advogado, homem de bom senso, notou imediatamente que algo se passara no mais íntimo do seu ser. E dizia-me tempos depois:

— E l a semelhava um barco, numa atmosfe­ra, aparentemente, de absoluta tranquilidade, cujos mastros vacilavam como numa tempestade.

Contou-lhe a irmã, entretanto, sem perder a sua tranquilidade externa, que acreditara ter iden­tificado uma antiga noviça do Carmelo de Corn­piègne entre as mulheres que seguiam a carruagem

dos condenados, naquela manhã. E pusera-se à sua procura a f i m de arrebatá-la àquela horrível com­panhia. Mas não o havia conseguido, pois dir-se-ia que fora tragada pela terra. (Bem a compreendo. E tu te lembras, minha amiga, da sensação que experimentei naquela noite de setembro, daquela impressão de não haver mais um só indivíduo dis­tinto dos demais? A h ! o caos é uma paródia ter­rível da uniformidade completa! N o caos não se tem mais fisionomia própria, e o delicado rostinho de Blanche, privado de toda expressão, não poderia ser distinguido! O milagre fora a irma M a r i a da Encarnação tê-lo identificado por um momento apenas). A d m i t i a que poderia ter-se enganado e encontrava nesse pensamento uma espécie de apazi-guamento. Todavia , rogou ao advogado iniciasse buscas a f i m de encontrar a residência dessa antiga noviça, enquanto ela própria, como dever de obe­diência, ia-se reunir sem tardança à sua superiora em Cornpiègne.

Mas qualquer saída de Paris fora interditada, então, pela Polícia, por diversos dias, medida muito frequente nessa época. Não foi possível à irmã M a r i a da Encarnação abandonar a cidade.

Nesse intervalo chegou a notícia da prisão das carmelitas de Cornpiègne. A irmã M a r i a da Encar­nação escapara — ela, que fora a alma da consa­gração comum ao sacrifício, via-se excluída do sa­crifício.

F o i então que tive com ela a primeira en­trevista. Conduziu-me a ela o Sr. Lézille que me viera procurar por causa de Blanche. Não supunha ainda nesse momento o que significariam minhas recordações dos dias de setembro. Acolheu-me com as seguintes palavras:

O A

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— Falai-me sem reservas.

A s s i m fiz eu. Contei-lhe o que testemunhara da terrível sorte de Blanche. Escutava-me numa atitude admirável. Mas de repente percebi que ela perdera o domínio, como se, ao ouvir as minhas palavras, tivesse bebido o cálice do horror, o mesmo que Blanche bebera. Tremia da cabeça aos pés. E r a u m dos mais estranhos espetáculos ver tremer da­quele modo a grande e digna religiosa, cuja fisio­nomia revelava em cada um dos seus traços o mais absoluto domínio pessoal. Asseguro-te, minha amiga, que mesmo naqueles dias de setembro não v i uma única vez o horror impresso sobre as faces dos condenados, como sobre aquele rosto, o mais heróico que já me fora dado contemplar. Consideraria um verdadeiro ultraje ousar ajudá-la, nem que fosse por uma só palavra. C o m toda a imparcialidade expressei então a minha convicção de que Blanche já não v iv ia .

E l a sacudiu tristemente a cabeça. (Senti que esquecera completamente a minha presença. Nesse instante abandonava visivelmente toda esperança).

— O h ! Não, ela vive — disse, com voz baixa — ela vive .

E com uma intuição surpreendente:

— Não continua a viver este país tão infor­tunado? Não continua a viver este infeliz e pequeno rei da França, em todo o seu tormento?

E como se a assaltasse u m mortal sobressalto:

— A h ! V i v e r é mais difícil que morrer! V i v e r é mais difícil que morrer!

E agora, querida, o verdadeiro sacrifício dessa grande alma se estende até o horizonte. Vemos a irmã M a r i a da Encarnação avançar-lhe ao encon­tro e nele desaparecer como por uma porta sombria — desaparecer totalmente. Este sacrifício não tem nenhum nome glorioso. Ninguém o admirou, nin­guém sequer o notou (pois o único padre que o recebeu em segredo de confissão, onde permanece oculto, u m dia o levou consigo ao túmulo) .

Naturalmente, o diário da prioresa terminou no dia da sua prisão. N a biografia que escreveu das suas irmãs, a irmã M a r i a da Encarnação não faz uma única alusão a si mesma. Entretanto, ainda isso revela u m novo sacrifício: o do aniquilamento silencioso daquilo que, por toda uma vida humana, havia considerado como a sua razão de ser — o sacrifício do próprio sacrifício.

O Sr. Lézille temia que ela se procurasse unir às suas irmãs, o que lhe teria sido fácil, pois não cessavam de procurar aquela na qual odiavam toda a alma do Carmelo de Cornpiègne e o sangue de fonte real. (Era a ela, antes de todas, que se destinava o martírio!) O r a , é certo que durante o processo não teve uma única atitude que a com­prometesse. A o contrário, submeteu-se com uma obediência, que causa admiração, a todas as medidas de prudência preconizadas pelo seu advogado, em cuja casa passara a residir. Este chegou mesmo a confessar que demonstrou uma prudência tão escru­pulosamente atenta que as almas medíocres pode­riam pensar que temesse, nesses dias, como a gente do mundo. E l a parecia mesmo conhecer esta sus­peição, mas jamais tentou dissipá-la.

A pequena cantora Ducor , em cuja residên­cia fora instalada durante' o processo — medida de

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previdência a que a irmã M a r i a da Encarnação nada fizera para se opor — afirmou que nessa mulher a prudência era precisamente a marca particular da santidade. (Recordas-te de que Rose Ducor espalhou, mais tarde, a lenda do estigma no pescoço de sua hóspede?) Acreditava que o velho padre alsaciano Kiener , a quem ocultava também em sua casa pela mesma época, assumira o dever de velar pelo fu­turo da irmã Mar ia da Encarnação.

— E l a se submetia à vida como a uma dura penitência — assim se expressava a pequena Ducor .

( A h ! Rose Ducor não imaginava até que ponto dizia a verdade!)

E l a fala também, para confirmar a sua opi­nião, da última mensagem que a irmã M a r i a da Encarnação tentou enviar à superiora. Tratava-se de um minúsculo pedaço de papel no qual escrevera estas simples palavras: "Dê-me, ou não, a coroa do martírio". A vigilante Rose Ducor , que possuía admiradores em todos os meios, esperava conseguir abrandar um guarda da prisão e passar secretamente o bilhete, oculto sob o seu anel. Mas foi em vão. (Tais planos, querida, só se realizam nos contos.

A vida real é infinitamente mais impiedosa). É tam­bém neste sentido que o sacrifício da irmã Mar ia da Encarnação termina no mais profundo silêncio.

Por esse tempo, fizera-se a transferência das carmelitas de Cornpiègne para a cadeia de Paris e o seu processo chegara ao termo. E m carta anterior te relatei todos os seus pormenores. M i n h a amiga: o processo fo i tão breve quanto característico. E m tais casos o julgamento era pronunciado de antemão. Não receio considerá-lo uma das páginas mais som­

brias da história da Revolução. ( O caos, a bem dizer, não era mais a história: havia-se já recuado na história) .

N o dia da festa das nossas queridas religiosas do Monte Carmelo, as dezesseis carmelitas de Corn­piègne foram condenadas à guilhotina. — A irmã Mar ia da Encarnação estava incluída nessa conde­nação. Aval ias , minha amiga, que tumulto de emo­ções tal acontecimento terá desencadeado nela? O advogado Lézille a informou. Fora ele que assumira a tarefa tão honrosa como desesperada de defender as dezesseis carmelitas.

Acreditava a irmã M a r i a da Encarnação que as suas irmãs ir iam cantando ao cadafalso, pois assim se combinara em Cornpiègne. Suplicou ao padre Kiener permissão para acompanhá-las, mas foi recusada. Encarregara-se ele de absolver as con­denadas, no trajeto ao local da execução (vestido com a carmanhola e misturado à multidão que gritava — o único meio que lhe restava em seme­lhante circunstância!).

" F o i para e la" , declarou Ducor , depois, " o momento da mais intensa angústia".

— M e u pai , vós me tirais a última espe­rança — exclamou, a irmã em lágrimas.

— E qual é a tua esperança? — perguntou o sacerdote quase severamente.

A essa pergunta, mais uma vez irrompeu toda a grandeza da irmã M a r i a da Encarnação. E r a senhora de si própria, mas não da revolta.

— Quisera cantar com elas! — foi a sua resposta. — A h ! se pudesse ser a última de todas, para sofrer mais!

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— Faze também o sacrifício da tua voz, minha f i lha. Sacrifica-a como a última coisa — re­trucou o padre Kiener .

D e novo ela se desfez em lágrimas.

— Padre, meus sacrifícios não são aceitos, vós bem o sabeis. Serei a mais desamparada de todas.

— Pensa no desamparo de Cristo no Monte das Oliveiras, pensa no silêncio de Mar ia — res­pondeu ele com doçura.

Nesse instante a sua resistência cedeu.

" F o i então", conta Rose Ducor , "que apa­receu pela primeira vez, no seu semblante, uma expressão que teria permitido imediatamente imagi­ná-la tal como fora na infância. E r a como se ao restaurar-se uma pintura do estilo barroco aparecesse na tela uma antiga e delicadíssima pintura subja­cente".

Sem proferir uma só palavra, a irmã Mar ia da Encarnação juntou os braços sobre o peito. E , a partir desse instante, silenciou definitivamente. Até sua voz mudou de tom.

Chegamos assim, minha amiga, ao assunto que constitui o motivo de tua carta. Referia-se ela à "emocionante voz da jovem Blanche de la Force" , para repetir a tua expressão.

O Sr. Lézille pediu-me fosse ter com ele, nesse dia, na praça da Revolução. Tratava-se de estabelecer a identidade suposta de Blanche como uma ex-religiosa que as mulheres dos mercados, con­forme se informara o advogado, tencionavam levar para assistir à execução das carmelitas de Cornpiègne.

(Sem dúvida, era ainda uma das suas medidas de proteção! ) . Mas não creias, minha amiga, que eu queira obrigar-te à visão da guilhotina sangrenta. Querida, crês-me capaz de ver um carrasco reali­zando a sua tarefa, u m homem que tem a coragem de manobrar o cutelo, uma mão de carne e sangue que sabe quando provoca o horror — eu, que nem mesmo suporto a vista desse horrível instrumento? Não se deve destruir a vida pela máquina! E eis aqui, no entanto, o símbolo da nossa sorte. A h ! querida, a máquina não faz distinções, a nada cor­responde, diante de nada recua, devora indiferente­mente o que lhe dão, tanto o mais nobre, o mais digno, como o mais criminoso. A máquina é, na verdade, o instrumento digno do caos e, por assim dizer, é a sua coroa, trazida pela fúria de uma multidão, sem alma, para a qual o divino não existe mais, nem a frase: "assim seja!" — mas corres-ponde-lhe somente a expressão satânica: " Q u e tudo seja destruído!"

Encontrava-me em pleno tumulto da popu­laça ululante. Nunca , minha querida, senti com tamanho desespero, quanto nesse momento, o com­pleto desespero da nossa situação. Sabes que não sou de estatura muito elevada. E u estava imerso literalmente no caos, até o pescoço, com o rosto desaparecido no seu seio. Realmente, não podia mais ver o que se passava. Só podia ouvir . Compreen­des, minha amiga, que toda a minha capacidade de percepção, reduzida unicamente ao ouvido, devia transformar-se numa percepção que ultrapassava a ordem dos sentidos?

A s carmelitas apareceram, cantando, na pra­ça da Revolução, como previra a irmã Mar ia da Encarnação. Ouvia-se, de longe, a sua salmodia.

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O canto ia abrindo um caminho estranhamente níti­do através dos gritos da populaça. O u será que se haviam calado os clamores dessa multidão cruel à vista das vítimas que se lhe entregavam? E u distinguia claramente as últimas palavras do Salve R e g i n a . (Como sabes, o Salve R e g i n a é cantado na hora da morte das religiosas, seguido, logo depois, pelos primeiros versos do V e n i C r e a t o r ) . H a v i a nesse canto qualquer coisa de luminoso e de amá­vel , qualquer coisa ao mesmo tempo de terno e de muito decidido e tranquilo. Nunca pensei que pu­desse ouvir um tal canto dos lábios de criaturas condenadas à morte. Até então, sentira-me agita­díssimo. Mas , ao ouvi-lo, uma calma estranha baixou sobre m i m . Parecia-me ouvir constantemente essas duas palavras: C r e a t o r S p i r i t u s , C r e a t o r S p i r i t u s . E r a como se lançassem uma âncora no mais pro­fundo do meu ser.

Entretanto, claro e pleno, o canto seguia o seu curso. A julgar pela aproximação das vozes — pois nada eu podia ver — as carretas avança­vam lentamente e a multidão refluía à sua frente. Mas esse canto abolia toda noção de tempo, toda noção de espaço e fazia desaparecer a vasta e san­grenta praça da Revolução. Fazia desaparecer a guilhotina, abolia a visão do caos: C r e a t o r S p i r i t u s , C r e a t o r S p i r i t u s .

Súbito, tive, novamente, a impressão de en-contrar-me entre seres humanos. Pareceu-me que alguém dizia ao meu ouvido: " A França não bebe somente sangue de seus filhos, mas também der­rama por eles o mais nobre e o mais puro de seu sangue!"

Sobressaltei-me de repente: reinava nesse momento um silêncio mortal na praça. (Querida, nem

durante a execução do rei houve semelhante silên­c i o ! ) . O próprio canto parecia agora mais fraco. Sem dúvida, as carretas haviam-se afastado, talvez tivessem chegado ao seu destino. M e u coração co­meçou a bater. Percebi que faltava no coro uma voz muito clara, e logo depois outra voz. Pensava que a execução ainda não começara quando, na verdade, estava quase concluída.

O canto só era mantido, agora, por duas vozes. H o u v e um instante em que elas flutuaram como um fulgurante arco-íris acima da praça. Depois fo i como se um dos lados do arco-íris se apagasse, enquanto o outro continuava luzindo. Mas apenas o primeiro fulgor se dissipou, uma outra voz o substituiu. Era uma voz de criança, fina e delicada, e percebi que não vinha do alto do cadafalso, mas brotava das profundezas da multidão, como se esta própria multidão pronunciasse o responso do canto. — Maravilhosa ilusão!

N o mesmo instante, u m violento tumulto fez ondular a massa comprimida. Exatamente como naquela noite de setembro, abriu-se uma brecha diante de mim e, exatamente como dantes, no meio da coorte de megeras horripilantes, v i Blanche de la Force.

Seu rostinho pálido, abatido, surgiu no meio dos que a cercavam, desembaraçando-se deles como de um véu. Reconhecia cada traço daquela fisiono­mia, mas era como se não a reconhecesse mais — o medo não se estampava mais no seu rosto: e ela cantava.

Cantava com a sua voz débil, com a sua frágil voz de criança, sem o mais ligeiro tremor. Não! Cantava com a alegria de um pequeno pás-

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saro. Cantava sozinha, na vasta, sangrenta, e terrí­vel praça da Revolução. Cantou até o f i m o V e n i C r e a t o r , interrompido pelas suas irmãs:

Deo P a t r i s i t g l o r i a E t F i l i o , q u i a m o r t u i s S u r r e x i t ac Paráclito I n s a e c u l o r u m saecula!

O u v i claramente a confissão do Deus em três pessoas; só o A m e m não ouvi mais. (Sabes como as mulheres furiosamente a puseram na gui lhotina) . E então, minha amiga, extinto o arco-íris da praça, tive o pressentimento de que a revolução chegara ao seu termo.

(Com efeito, dez dias depois, o regime do Terror desaparecia da França) .

Quando regressei à casa da Ducor em compa­nhia do padre alsaciano, uma criança desconhecida estava sentada nos degraus da escada.

Aproximou-se de nós, confiante. T i r o u de­baixo de seu aventalzinho um diminuto volume que deu ao sacerdote. E r a o pequeno Rei da Glória.

A criança devia tê-lo retirado, todo coberto de lama, de qualquer esgoto em que o lançaram, depois de uma procissão blasfematória.

Reunimo-nos todos à irmã M a r i a da Encar­nação. Esta parecia a Mater dolorosa. N a língua do seu país, o sacerdote lhe disse, tomando-a pela mão:

— V e m , M a r i a da Encarnação.

Entendi mais profundamente o mistério desse nome em sua forma estrangeira. — M a r i a v o n der M e n s c h w e r d u n g ,

O u pronunciava-o ele com u m acento parti­cular? Levou-a para perto do retábulo em que Rose Ducor guardava um pequeno altar dedicado a M a r i a . Abr iu-o e nele colocou o pequeno R e i . Pôs-se a rezar em seguida o R e g i n a coeli laetare, a l l e l u i a — a saudação pascal à Mãe de Deus.

Rezei com ele. S im, querida, como nos dias da infância, desci todos os degraus de meu ser, até a sua profundeza, até o seu fundo eterno e divino.

Agora , minha amiga, és tu que tens a palavra.

Creio ver duas lágrimas nos teus olhos cheios de bri lho. Caem lenta e solenemente sobre tuas mãos. Teus lábios permanecem fechados, e quase que direi selados. Estás, a um tempo, inquieta e perturbada, e eu sei por quê.

Esperavas a vitória de uma heroína, mas assististe ao milagre da fraqueza!

E não reside, precisamente nisso, uma espe­rança infinita? O humano, sozinho, não é bastante, nem a "beleza que há no humano" , pela qual nos entusiasmávamos antes da revolução. ( A h ! minha amiga, afinal de contas, todo esse formidável mo­vimento dá-nos simplesmente a mesma lição que a pobre pequena Blanche!) Não, o humano, sozinho, não basta — não basta sequer para o sacrifício do homem. M i n h a amiga, até aqui o laço de nossos dois corações fo i sempre também um laço de ideias — é-te suportável a transformação de teu amigo?

Mais uma vez: tens a palavra!

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