“geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LIDIANE MÜHLSTEDT “GERAÇÃO COCA-COLA”: AS REPRESENTAÇÕES DA JUVENTUDE E DO SEU COMPORTAMENTO NO POP/ROCK DOS ANOS 80 CURITIBA 2004

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

LIDIANE MÜHLSTEDT

“GERAÇÃO COCA-COLA”: AS REPRESENTAÇÕES DA JUVENTUDE E DO SEU

COMPORTAMENTO NO POP/ROCK DOS ANOS 80

CURITIBA

2004

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LIDIANE MÜHLSTEDT

“GERAÇÃO COCA-COLA”: AS REPRESENTAÇÕES DA JUVENTUDE E DO SEU

COMPORTAMENTO NO POP/ROCK DOS ANOS 80

Trabalho final de conclusão de curso, do curso

de História, da Universidade Federal do

Paraná, sob a orientação do prof. Dr.Marcos

Napolitano de Eugênio.

CURITIBA 2004

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1: TRAJETÓRIA DO POP/ROCK NO BRASIL............................................4

CAPÍTULO 2: LEGIÃO URBANA/TITÃS.........................................................................14

2.1 TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DA LEGIÃO URBANA......................................................14

2.2 QUESTÃO DA JUVENTUDE E SEU COMPORTAMENTO.........................................15

2.3 TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DOS TITÃS.........................................................................22

2.4 QUESTÃO DA JUVENTUDE E SEU COMPORTAMENTO.........................................24

CAPÍTULO 3: LOBÃO/CAZUZA........................................................................................29

3.1 TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DO LOBÃO.........................................................................29

3.2 QUESTÃO DA JUVENTUDE E SEU COMPORTAMENTO.........................................31

3.3 TRAJETÓRIA ARTÍSTICA DO CAZUZA.......................................................................36

3.4 QUESTÃO DA JUVENTUDE E SEU COMPORTAMENTO.........................................38

CONCLUSÃO..........................................................................................................................45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................47

FONTES: LETRAS..................................................................................................................48

PERIÓDICOS...........................................................................................................63

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INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objeto de análise a questão da juventude e seu comportamento,

a partir do pop/rock brasileiro produzido na década de 80, mais especificamente entre os anos

de 1984 a 1989. Para isso, não podemos desligar a nossa análise do conte0xto político e

econômico destes anos, que é o da chamada redemocratização do país e de profunda

estagnação econômica associada a índices de inflação exorbitantes, quadro que gerava um

clima paradoxal, de esperança e incerteza diante do presente e do futuro.

No ano de 1984 tem-se como fato marcante a campanha pelas diretas já:

movimento pelas eleições diretas para a presidência da República com a realização de grandes

comícios nas principais cidades do país. No entanto, a emenda constitucional que permitiria as

eleições diretas, apresentada pelo deputado Dante de Oliveira, não foi aprovada na Câmara

dos Deputados. Dessa maneira a eleição do presidente da república permaneceu nas mãos do

colégio eleitoral, sendo eleito Tancredo Neves, cuja vitória foi recebida com grande

entusiasmo e esperança pela população brasileira. Porém, na véspera da posse, Tancredo é

internado às pressas, portanto sem poder assumir é substituído pelo seu vice, José Sarney.

Com relação à atuação política de Sarney, a principal medida política empreendida por ele foi:

a criação, em 1986, do Plano Cruzado para combater a inflação (que havia sido de 255,16%

no ano anterior), o qual consistia no congelamento dos preços e salários, estes últimos foram

congelados pelo valor médio dos últimos seis meses. Este Plano por alguns meses produziu

algumas benesses a medida que ocorreu o aumento do poder de compra e uma injeção de

novos consumidores no mercado. A indústria fonográfica se beneficiou amplamente com a

criação deste plano: Até julho, a indústria de discos no Brasil crescera 30% em relação ao

mesmo período de 1985. No segundo semestre, números assombrosos se delinearam: 9

milhões de discos vendidos em setembro, 9 milhões de discos em outubro. “Ao final de 1986,

o mercado se expandira 43% em relação ao ano anterior”1. Nesse período, portanto a música

pop nacional viveu seus tempos de maior prosperidade, o que era um dado curioso em se

tratando de tempos de crise. Chegou um momento que os discos chegavam às lojas com um

papel que deixava borrar tinta por falta de papel cartão.

1 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80. DBA, 2002.

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Entretanto, em 1987 o plano já dava sinais de desgaste, e o presidente não pretendia

promover modificações antes das eleições para governadores. Contudo após ter um número

estrondoso de governadores eleitos pelo seu partido, anunciou o descongelamento dos preços

provocando uma mobilização furiosa por parte da população. Somado a isso, houve ainda o

acidente radioativo em Goiânia e um motim no Presídio do Carandiru, que deixou 31 mortos.

Em dezembro a inflação acumulada atingia a marca de 365,99%. Até o final do seu mandato

foram lançados mais 3 planos de estabilização que não alcançam o resultado esperado.

Nos anos de 1987-88 (fev de 87 até 5 de outubro de 88) os deputados federais e senadores

começam a se reunir em Assembléia Nacional Constituinte, para o processo de feitura de uma

nova Constituição, sendo importante citar o nome do político Ulisses Guimarães. Entre as

conquistas desta constituição, podemos destacar a ampliação dos direitos individuais e o

fortalecimento das liberdades públicas, áreas que tinham sofrido grandes restrições na época

do Regime Militar. Finalmente, em 1989 acontecem as primeiras eleições diretas para a

presidência da República desde 1960.

Diante deste quadro de crise, as questões em jogo - juventude e comportamento jovem

- foram buscadas em bandas e compositores considerados emblemáticos para o período:

Legião Urbana, Titãs, Cazuza e Lobão.

Todavia, antes de se buscar as representações da juventude oitentista e de seu

comportamento nestas bandas e compositores, procurou-se fazer uma breve trajetória do

pop/rock no Brasil. A medida que foram buscadas as origens deste pop/rock, alguns conceitos

precisaram ser revisitados, como os rebeldia e juventude, propostos por autores como Stuart

Hall, Simon Frith e Roberto Muggiati, visando articular a expressão social e estética do rock

às categorias analisadas. Com relação a estes autores primeiro destacamos que o rock no

Brasil dos anos 80, não se apresenta com as mesmas características que o consagrou como

gênero musical por excelência da juventude da década 1960 principalmente nos EUA. Porém

é inegável a associação entre música popular e movimentos políticos na década de 1960 idéia

também presente nos autores Ron Eyerman e Andrew Jamison. Além disso, outras questões

acabaram sendo trabalhadas como a relação entre a indústria fonográfica no Brasil,

amplamente beneficiada pelos efeitos positivos do Plano Cruzado e o Gênero pop/rock. Esta

é, de maneira geral, a proposta do que convencionamos chamar de Trajetória do Pop/Rock no

Brasil, nosso primeiro capítulo.

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Em seguida, passamos para os nomes, considerados, emblemáticos para o pop/rock do

período, constituindo-se, dessa maneira o segundo e terceiro capítulo deste estudo, entitulados

como Legião Urbana e Titãs, e Lobão e Cazuza, respectivamente. Estes capítulos foram

iniciados com uma breve trajetória artística das bandas e seus compositores. Em seguida,

foram analisados os principais álbuns para se escolher um repertório, para cada banda e

compositor, que pudesse nos fornecer subsídios para análise do objeto escolhido. Também

fez-se necessário buscar críticas esboçadas pelos meios de comunicação durante o período

que foi elencado. Uma das críticas escolhidas proveio de uma revista direcionada ao público

jovem, a Bizz, criada em 1985. A outra, com o intuito se ter uma visão da classe média, foi

buscada na revista Veja, nas seguintes sessões: Gente, Datas e Música. Portanto as fontes

utilizadas foram as matérias das revistas Veja e Bizz, bem como algumas letras das bandas e

compositores anteriormente mencionados.

Dessa maneira, acreditamos ter sido possível chegar a algumas conclusões a respeito

da hipótese levantada, isto é, que, apesar de ser um gênero musical, bem como uma

subcultura, já assimilado pela indústria cultural, o rock no contexto brasileiro, foi um veículo

privilegiado de expressão das angústias e valores da geração jovem dos anos 80.

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CAPÍTULO 1:TRAJETÓRIA DO POP/ROCK NO BRASIL

Para chegar até o rock produzido no Brasil dos anos de 1980, faz-se necessária uma

pequena incursão às suas origens. Além disso, cabe destacar os nomes de alguns autores que

nos darão suporte teórico, no decorrer deste estudo, a respeito da música popular, no caso, o

pop/rock brasileiro dos anos de 1980.

A década de nascimento do rock como expressão cultural característica da juventude é

a de 1950, antes disso o rock era associado basicamente às classes baixas urbanas, isto é, o

rock “em meados da década de 1950, subitamente irrompeu do gueto de catálogos de ‘Raça’

ou ‘Rhythm and blues’das gravadoras americanas, dirigidos aos negros pobres dos EUA, para

tornar-se o idioma universal dos jovens, e notadamente dos jovens brancos”2.

Nos anos de 1960 o rock assume fundamentalmente uma face de rebeldia e

contestação, já que estes anos são marcados pela denominada revolução cultural, cujos

maiores ecos foram vislumbrados nos modos e costumes da sociedade (brigou-se pela

liberação social e pessoal), bem como nos meios de gozar o lazer e nas artes comerciais, o que

acaba por explicar a famosa trilogia “sexo, drogas e rock’n’roll”. “Liberação pessoal e

liberação social, assim, davam – se as mãos, sendo sexo drogas as maneiras mais óbvias de

despedaçar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção”3.

Também deve-se ressaltar que nas décadas de 1950 e 60 o segmento jovem passa a ser

visto como um consumidor em potencial, pois este período, até meados de 1970, é conhecido

como a Idade de Ouro do capitalismo, fenômeno observado, mais fortemente, na Europa,

EUA e Japão (sem contar os reflexos nos demais países que também gozam de certa

prosperidade material). Em outras palavras, este jovem possuía meios de consumir o que a

indústria poderia oferecer em termos de moda, música, e outras formas de lazer. Vale lembrar

que na indústria da moda se populariza o blue jeans, traje inicialmente utilizado pelas

camadas mais baixas, passou a ser vestimenta popular, facilmente encontrada em redutos

jovens (universidades, concertos de rock, etc.).

Diante destas idéias apresentadas, é interessante falar de alguns pontos apontados por

Roberto MUGGIATI. Segundo ele, em 1960 o rock surgiu como o grito de revolta de uma

nova geração e com um envolvimento social, que culmina numa ação política neste período.

No contexto político-social, os EUA estavam vivenciando a luta dos negros por direitos iguais 2 HOBSBAWM, Eric.Era dos extremos: o breve século XX: 1914 – 1991. Pág. 324. 3id. ibid. Pág. 326.

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aos da população branca e , no âmbito internacional, a libertação nacional de várias colônias e

sem nos esquecermos do desencanto de inúmeros jovens com a sociedade de consumo e com

o American Way of Life. Está se falando do que MUGGIATI chama de duas correntes

“hippies e radicais, revolução política e revolução cultural”4, isto é, num primeiro momento,

de acordo com Eldridge Cleaver5

os jovens rejeitam o conformismo e se recusam a assumir o papel que, desde o nascimento, lhes é imposto pelos pais – o papel de continuadores da sociedade estabelecida. Segundo estágio: depois da recusa inicial, os jovens saem à procura de novas formas de vida e de atuação numa sociedade em transformação. Terceiro: a juventude americana adere em massa às manifestações em favor dos negros na campanha dos direitos civis. Finalmente, os jovens brancos tomam a iniciativa, usando técnicas aprendidas nas manifestações anteriores para atacar problemas mais gerais da sociedade.

Woodstock é a grande prova do poder do rock neste período e da dimensão que havia

tomado a cultura jovem. O evento conseguiu chamar a tenção da imprensa e o rock, em 1967,

é um dos assuntos estudados em Londres no congresso Dialética da Libertação, organizado

pelo psicanalista existencial R. D. Laing. Além disso, o rock passa a ser considerado uma

espécie de opção àqueles que não se enquadram ao sistema, isto é, à sociedade tal como ela se

encontra organizada. Nesse sentido Muggiatti faz uma diferenciação entre o que poderia ser

denominada de duas vertentes do rock deste período: rock como subcultura e como

contracultura. Nas palavras de MUGGIATI, a respeito dos estudos realizados em Londres

acerca da dimensão que tomou o evento realizado em Woodstock: “Eles enquadram o rock

não na etiqueta pejorativa de subcultura lançada pelo Time, mas numa contracultura que passa

a ser a opção a todos aqueles que recusam a ideologia imposta pelo Establishment”.6

Contudo, há aqueles que se enquadram no conceito de subcultura, donde se tem como

exemplo bob Dylan.

A respeito do surgimento da denominada subcultura, suas origens são encontradas no

contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, ao qual nós já nos referimos anteriormente, donde

se tem o surgimento de diversas manifestações culturais ligadas a uma nova condição juvenil.

As formas de expressão, práticas, atitudes e comportamento diferenciados dos grupos de

jovens urbanos reunidos por um estilo e interesses comuns foram caracterizadas, ao longo das

últimas décadas, como subculturas.

4 MUGGIATI, Roberto. Rock- o grito e o mito. Petrópolis: Vozes, 1973. Pág23 5 citado por id. ibid. pág. 23 6 id. ibid. pág.22

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Subcultura, enquanto conceito, solidificou-se nas décadas de 1970 e 1980,

principalmente no campo dos Estudos Culturais do Centro de Estudos Culturais

Contemporâneos da Universidade de Birmingham, destacando-se o nome Dick Hebdige, na

obra que se tornou referência para os estudos da área, Subculture, the meaning of style,

publicado originalmente em 1979, apresenta a seguinte definição para subcultura:

Subculturas são então formas expressivas mas o que elas expressam, em última instância, é uma tensão fundamental entre aqueles no poder e aqueles condenados a posições subordinadas e vidas de segunda-classe [...] Tenho interpretado subcultura como uma forma de resistência em que contradições experienciadas e objeções a esta ideologia dominante são obliquamente representadas no estilo (HEBDIGE, 1979,tradução nossa)7.

Os estudos de subculturas trouxeram significativas contribuições ao abordar a

importância do estilo, dos significados referentes aos símbolos criados e recriados nos bens de

consumo por estes jovens.

Os autores EYERMAN e JAMISON8 também defendem a idéia de que nos anos de

1960 as canções contribuíram nas ações políticas a medida que eram, freqüentemente,

apresentadas em manifestações políticas e nos grandes festivais. Os autores também chamam

a atenção para o fato da música deste período estar repleta de idéias, sentimentos e imagens

que se encontravam latentes no interior da cultura jovem, daí a importância de se buscar na

música popular representações de um determinado grupo, no nosso caso, da juventude dos

anos de 1980.

Um outro autor importante no que se refere aos estudos culturais é Stuart HALL. Este

autor faz análises interessantes sobre o conceito de juventude e sobre a denominada cultura

jovem. Esta cultura jovem, em “virtude do seu grande conteúdo emocional, é essencialmente

não verbal. Ela é naturalmente expressada na música, na dança, nas roupas, em certas formas

de andar, em algumas expressões faciais, ou nas gírias”9 (tradução nossa).

No estudo de AGUIAR tem–se que, enquanto na Europa e EUA vivia – a explosão do

rock, em 1950, o Brasil, em termos de canção, é identificado com a Bossa Nova, a qual se

caracteriza por ser uma fusão entre samba e jazz. Além dessa característica, a Bossa Nova

7 HEBDIGE, Dick. Subculture: the meaning of style. London: Methuen, 1979. 8 Eyerman, Ron and JAMISON, Andrew. Social movements and cultural transformation: popular music in the 1960s. 9 HALL, Stuart and WHANNEL, Paddy. The Young Audience 1964. in: FRITH, Simon and GOODWIN, A (eds.) On record; rock, pop and the written word. New York, Pantheon Books , 1990.

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“moderniza a MPB não somente porque reforma o código musical vigente, (...) mas também

porque consegue modificar o público da canção, levando a cultura do rádio à altura das

classes mais exigentes”10. Podem ser vislumbradas, no âmbito da Bossa Nova, duas linhas:

uma de tendência formalista e outra de tendência nacionalista. Esta segunda tendência

originou a chamada canção de protesto, que rivalizou com a Jovem Guarda e o Tropicalismo.

Há quem cite os nomes dos irmãos Campello, Betinho e Seu Conjunto, e Sérgio Murilo como

representantes do rock no Brasil na década de 1950. A cantora Nora Ney, intérprete de sambas –

canções, cantou o primeiro rock, em inglês (Ronda das Horas/Rock Around the Clock), o qual foi

lançado em novembro de 1955, que imediatamente passa a ocupar o primeiro lugar da parada da

Revista do Rádio, de Janete Adib. No início de 1957 Betinho (& Seu conjunto), filho do violonista

Josué de Barros, grava o primeiro rock com guitarra elétrica: Enrolando o Rock. Outro nome a ser

lembrado é o de Miguel Gustavo ( o de Pra Frente Brasil – hino da Copa do Mundo de 1970), que

compôs o primeiro rock com letra em português: Rock and Roll em Copacabana. Aponta-se, inclusive,

como um dos responsáveis por espalhar o gênero no Brasil, o filme Ao Balanço das Horas, o qual

entrou em cartaz em 1956, porém as autoridades da época não aceitaram o gênero por este ser visto

como excitante, frenético, alucinante e mesmo provocante, de estranha sensação e de trejeitos

exageradamente imorais, fala esboçada pelo Juiz de Menores de São Paulo. Jânio Quadros, então

prefeito de São Paulo ordenou ao seu secretário de segurança que “determinasse à polícia deter,

sumariamente, colocando em carro de preso, os que promoverem cenas semelhantes; e, se forem

menores, entregá-los ao honrado juiz” (mencionado há pouco). Contudo, o movimento ganha

novamente força com a chegada às lojas, em junho de 1958, do 78 rpm Forgive

Me/Handsome Boy dos irmãos Tony Campello e Celly Campello. A partir desse momento

este rock brasileiro passa a adquirir mais identidade, a medida que ocorre o surgimento de

programas de rádio e televisão, e com o aparecimento de hits como Banho de Lua, Estúpido

Cupido e Marcianita.

Nos anos de 1960 tem-se a canção de protesto, o sucesso da Jovem Guarda, o qual o

autor (AGUIAR) chama de primeiro movimento de rock nacional, e o tropicalismo. Este

mostra-se muito importante a medida que faz a ponte entre o rock nacional nascente e artistas

de origem abastada (extração universitária), além de se manter aberto à todas as influências do

período, ao recuperar o passado da canção brasileira anterior à Bossa Nova, incorporar os

sinais da música pop e do rock nacional.

10 AGUIAR, Joaquim Alves. Panorama da música popular brasileira: da bossa nova ao rock dos anos 80. in: Brasil: o trânsito da memória. Pág.143.

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Os anos 70, segundo AGUIAR, “mostraram a consolidação e maturação dos ídolos de

maior calibre da década anterior (...)”11, leia-se, principalmente, Chico Buarque, Caetano

Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento, porém sem acrescentar algo de efetivamente novo

à tradição da MPB.

Já os anos de 1980 até os dias atuais são marcados por “uma verdadeira avalanche de

bandas dos mais variados tipos” e “instauração mais profissionalizada do rock no Brasil”12.

Contudo, como bem atenta AGUIAR, o rock que se faz presente no Brasil é “de

comportamento doce e sentimentalizado, ingênuo e descompromissado”13. E o autor continua:

“Totalmente consumíveis, por mais que tentem, as bandas nacionais esbarram num paradoxo:

de um lado, a descrença generalizada (pessimismo) do poder da palavra, afetando qualquer

poder de impacto nas letras das canções; de outro, a euforia própria do ritmo alegre, e por

vezes violento, que define o próprio espírito do rock”14. Destacam-se estes trechos, porque

acredita – se que estas idéias servem de pressuposto para tratar do rock. Mas quais seriam os

motivos para este desengajamento do rock? A resposta reside no fato da sociedade encontrar-

se inserida num contexto de “partidos duvidosos, modelos falidos, crise econômica, falta de

utopias...”15. Ao contrário dos movimentos anteriores, Bossa Nova, Música de Protesto e

Tropicalismo, o rock se encontra desprovido de um projeto que, segundo o autor, nem a

canção nem mais a época, ao que tudo indica, podem oferecer.

Este desengajamento é uma idéia será discutida ao longo deste estudo, quando forem

analisadas as seguintes figuras emblemáticas: Arnaldo Antunes, líder dos Titãs; Renato

Russo, da Legião Urbana; Lobão e Cazuza, bem como algumas das letras de seus álbuns mais

significativos. Em outras palavras, estas bandas podem ser consideradas desengajadas ao se

pensar num projeto; entretanto suas “atitudes”, isto é, performance, comportamento e letras,

podem ser lidas como uma espécie de crítica à realidade vivenciada pelos atores mencionados

há pouco, a medida que elas se encontram impregnadas por questões existenciais; mazelas da

sociedade de consumo, criação musical e mercado, sem contar a presença da crise econômica

e da sátira política.

Partindo para o contexto mundial em termos de música, o que se tem na década de

1980 é a new wave, espécie de “rótulo (...) criado para poder abrigar as bandas que, surgidas

11 id. ibid. pág. 152. 12 id. ibid. pág. 152. 13 id. ibid. págs. 152 e 153. 14 id. ibid. pág. 153. 15 id. ibid. pág. 154.

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mais ou menos na esteira do punk rock, não se identificassem totalmente com as limitações

musicais e artísticas do gênero”16. Musicalmente, o new wave zombava da tecnologia ao

reprocessar vozes e utilizar sintetizadores, além de zombar do saudosismo, “tomando

cinicamente emprestado o hábito dos nomes compostos (que não se usavam havia dez anos)

para batizar suas bandas, como Echo & Bunnymen, Adam & The Ants ou Jules & The Polar

Bears”17. O “visual” que representava os adeptos deste gênero era “Para os rapazes, camisas

de gola dupla erguida, cabelos imponentes eternamente ‘molhados’, ar cool, jaquetas repletas

de zíperes, ternos de ombreiras e estreitas gravatas de crochê; para as moças, mangas

morcego, batons pink e pencas de colares; para todos, cortes de cabelo assimétricos, cores

cítricas e xadrez, muito xadrez”18.

No Brasil, musicalmente, antes disso percebe-se a presença da MPB, tendo de um lado

um grupo preocupado com uma discussão política acerca da abertura, “engajados” como Elis

Regina, Gonzaguinha e Chico Buarque e de outro os baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso,

Maria Bethânia, Gal Costa. Há também nomes como Fagner, Belchior, Zé e Elba Ramalho,

Alceu Valença e Geraldo Azevedo, o movimento Black Rio, as rádios dominadas pala versão

local da disco music, com artistas como as Frenéticas e Lady Zu, além de Fábio Júnior e

Sidney Magal, entre outros nomes. Sem contar a existência de Rita Lee, a ex Mutante.

Contudo, havia jovens que não se encaixavam à nenhum deste nomes. Jovens que

deixavam evidente um outro tipo de comportamento, como descreve o jornalista Ricardo

ALEXANDRE:

Com efeito, um novo comportamento jovem começou a germinar, alheio à grande mídia, imperceptível para quem não estivesse nas ruas, nas praias, vivendo com gente de verdade – e não apenas com executivos de gravadoras, diretores de TV, militantes de esquerda ou técnicos de estúdios na Califórnia. Era um novo comportamento, desprovido do coletivismo hippie dos Novos Baianos, da glamourização odara dos velhos tropicalistas e da politização da MPB esquerdista19

Havia, portanto, toda uma geração nascida sob o estigma da ditadura militar, a qual

não sabia o que era viver num país livre da censura. Era também uma geração que não se

enxergava na música brasileira, que tinha que enfrentar uma inflação que ultrapassara os

16 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de Luta – o rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo, DBA Arte Gráficas, 2002. 17 id.ibid. Pág. 75. 18 id.ibid. Pág. 75. 19 id.ibid. Pág.

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100%, “o desemprego, em 1982, atingia quase 6 milhões de pessoas (1,5 milhão somente na

cidade de São Paulo) e empurrava outras 7 milhões para o subemprego”20.

Entende - se que AGUIAR privilegia a idéia de que o rock no Brasil não tem mais

nenhum poder, pelo fato de que quando o gênero rock estourou nos EUA ele veio com a

proposta de “imposição maciça dos valores juvenis, temperados com certa rebeldia contra os

padrões vigentes”21, porém a rebeldia, juvenil e passageira, é “logo domesticada pelos meios

de produção cultural para as massas da sociedade burguesa”.

Uma idéia que deve ser abordada é o fato de o rock ter sido um dos segmentos

incrementados nos anos de 1980 pela indústria fonográfica. Um dos motivos para isso,

segundo Márcia Tosta DIAS, é a grande viabilidade econômica do gênero.

O rock como produção é muito barato. A música de intérprete requer maestro, arranjador, músicos acompanhantes, que ganham cachês estipulados por sindicatos, o que transforma a música em milhares de dólares. O rock como fenômeno mundial tem uma raiz econômica fortíssima, ele é eficiente para sobreviver darwinianamente (...) tem os ingredientes da música com três, quatro, cinco pessoas (...). Você tem uma forma razoavelmente pequena, portátil, que se sustenta dentro de si, ela não recebe cachê, os músicos são os autores, entram no estúdio e não custam nada para trabalhar. Existia então um profundo interesse da indústria, no Brasil para que o rock desse certo22.

Constatou-se que haviam bandas que compunham o próprio repertório e dispensavam

arranjadores, orquestras e músicos convidados: “Trios, quartetos e quintetos de estrutura

simples e eficiente. Guitarra, baixo, bateria, teclado e voz, uma geração providencial para

quem tinha que lidar com a queda livre de mercado de discos no país”23.

Somado ao que foi dito acima, DIAS fala que a indústria deste período constatou,

também, que havia uma debilidade do mercado de bens culturais destinados aos jovens, além

de fatores denominados de ordem conjuntural, tais como: insatisfações, irreverência, busca de

“novidades”, etc. Convém aqui explicitar, que nos anos de 1980 notou – se por parte da

indústria fonográfica uma espécie de movimentação, uma efervescência criativa no âmbito do

rock. Pena Schmidt confirma isso:

(...) em São Paulo multiplicavam-se casas noturnas como Napalm, Rose Bombom, Madame Satã, Ácido Plástico,

dentre outras. Eu olhei para essas bandas todas e falei: está acontecendo alguma coisa. (...) Quando aparece uma

20 id. ibid. Pág. 50. 21 AGUIAR, Joaquim Alves. Panorama da música popular brasileira: da bossa nova ao rock dos anos 80. in: Brasil: o trânsito da memória. Pág. 155. 22 SCHMIDT, Pena. Apud Márcia Tosta DIAS in Os donos da voz. São Paulo, Boitempo Editorial, 1999. Pág. 85. 23 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta… Pág. 129.

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oferta dessas, é inevitável que alguns se destaquem, é uma questão simples, darwiniana. Se tem 40 no jornal, é

sinal que a oferta é, na verdade, muito maior24.

Acredita - se, portanto que aí reside um dos pontos fundamentais que deverá nortear

este estudo: o diálogo entre o rock no Brasil e o contexto econômico - político e social; dos

anos de 1980.

Com relação a este contexto econômico – político e social, década de 1980 é marcada

pelo último suspiro do regime militar. Em fins da década de 1970 este regime já dava sinais

de esgotamento, tanto que em 1978 o Brasil vislumbra o crescimento cada vez mais

expressivo do movimento de oposição. Por meio de atos públicos, de manifestos e da

imprensa, as forças oposicionistas, leia-se desde os liberais de primeira linha até os setores de

esquerda, estes últimos encontraram-se por muitos anos excluídos da participação política

legal, intensificaram a luta por liberdades democráticas, anistia e convocação de uma

assembléia constituinte, a qual deveria ser eleita livremente. Em maio e junho de 1978 mais

de 100 mil operários de várias fábricas da região do ABC, em São Paulo, entraram em greves

e lutas por aumentos salariais e liberdade de organização. Nos dois anos seguintes, novamente

se verificam movimentos grevistas do ABC. Em 1980, aproximadamente 150.000

trabalhadores metalúrgicos permaneceram 41 dias em greve, apesar da intervenção em seus

sindicatos, da prisão dos principais líderes e da violenta repressão policial empreendida sobre

os grevistas.

O ano de 1978 foi o de eleição, por via indireta, do general João Batista Figueiredo,

que governou com uma Constituição reformada, a qual permitiu a extinção dos Atos

Institucionais. Contudo, o Executivo ainda era o grande árbitro, pois podia, através das

chamadas “salvaguardas” do Estado, decretar o estado de emergência ou estado de sítio,

independentemente de consulta ao Legislativo. Em agosto de 1979 foi decretada a anistia,

após uma ampla campanha pública.

Do ponto de vista econômico, a década de 1980 é denominada chamada de “década

perdida” por muitos economistas brasileiros, devido à “estagflação”, isto é, inflação sem

crescimento econômico. “(...) nossa dívida externa atingiu 50 bilhões de dólares em 1980 e o

déficit comercial, no primeiro trimestre de 1978, chegou a 556 milhões e 389 mil dólares,

24 id. ibid. Pág. 83.

Page 15: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

12

sendo os maiores gastos em importações feitas com petróleo e trigo”25. Além disso, o

desemprego atingiu níveis assombrosos, a partir de 1981:

Nos mês de agosto o IBGE registrou 900 mil desempregados nas maiores regiões metropolitanas do país. Somando – se a esse total o número de subempregados – 10% da força de trabalhadores – chega – se a 2 milhões de pessoas! Na maioria jovens até 24 anos de idade e mulheres. Em 1984, o número de desempregados chegou a 12 milhões.26

O ano de 1984 é também marcado pelo comício pelas eleições diretas para presidente

da República. Este comício reuniu milhares de pessoas em diversas capitais do Brasil.

Entretanto esta ação não logrou êxito, pois não foi aprovada a emenda, do deputado Dante de

Oliveira, significando portanto que as eleições para presidente seriam indiretas.

O presidente escolhido foi Tancredo Neves, definido como político moderado, e seu

vice era o principal articulador da derrubada da emenda, isto é, o senador José Sarney. O

primeiro não chegou a ser empossado, em virtude de uma doença que acabou o levando à

morte.

Ao assumir Sarney, evidenciaram - se os problemas que não foram solucionados pelos

governos militares e que vinham se agravando: a elevação da dívida externa, o crescimento da

inflação, a concentração de renda, o desemprego e a miséria. Nas áreas da educação, saúde e

habitação intensificava - se um processo de degradação.

Uma das principais medidas políticas tomadas pelo governo Sarney, foi, em 1986,

lançamento do Plano Cruzado para combater a inflação (que havia sido de 255,16% no ano

anterior), isto é, o cruzeiro foi substituído pelo cruzado, os preços foram congelados (vale

lembrar a imagem constantemente transmitida nos telejornais de donas-de-casa que

denunciavam remarcação de preços em supermercados e lojas de conveniência) e os salários

foram reajustados pela média dos últimos seis meses. Este Plano por alguns meses surtiu o

efeito esperado a medida que ocorreu o aumento do poder de compra e “uma injeção de novos

consumidores no mercado. Até julho, a indústria de discos no Brasil crescera 30% em relação

ao mesmo período de 1985”27. No segundo semestre, números assombrosos se delinearam: 9

milhões de discos vendidos em setembro, 9 milhões de discos em outubro. “Ao final de 1986,

o mercado se expandira 43% em relação ao ano anterior”28. Nesse período, portanto a música

25 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de Luta – o rock e o Brasil dos anos 80. São Paulo, DBA Arte Gráficas, 2002. 26 id. ibid 27 id. ibid. Pág. 239. 28 id. ibid.pág. 239.

Page 16: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

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pop nacional viveu seus tempos de maior prosperidade, o que era um dado curioso em se

tratando de tempos de crise. Chegou um momento que os discos chegavam às lojas com um

papel que deixava borrar tinta por falta de papel cartão. Além do papel e discos que não

atendiam à demanda, começaram a faltar carne e leite em todas as grandes cidades do Brasil.

Tornou-se comum a cobrança de ágio para garantir ao consumidor uma porção deste ou

daquele artigo. O presidente não pretendia promover modificações antes das eleições para

governadores. Contudo após ter um número estrondoso de governadores eleitos pelo seu

partido, anunciou o descongelamento dos preços provocando uma mobilização furiosa por

parte da população. Somado a isso, houve ainda o acidente radioativo em Goiânia e um motim

no Presídio do Carandiru, que deixou 31 mortos. Em dezembro a inflação acumulada atingia a

marca de 365,99%.

Até o final do seu mandato foram lançados mais 3 planos de estabilização que não

alcançam o resultado esperado. Nos anos de 1987-88 (fev de 87 até 5 de outubro de 88) os

deputados federais e senadores começam a se reunir em Assembléia Nacional Constituinte,

para o processo de feitura de uma nova Constituição, sendo importante citar o nome do

político Ulisses Guimarães. Entre as conquistas desta constituição, podemos destacar a

ampliação dos direitos individuais e o fortalecimento das liberdades públicas, áreas que

tinham sofrido grandes restrições na época do Regime Militar. Finalmente, em 1989

acontecem as primeiras eleições diretas para a presidência da República desde 1960.

A partir disso, pretende-se verificar a representação da juventude e de seu

comportamento dos anos de 1980 veiculados nas “atitudes” das, já mencionadas, figuras

emblemáticas para o cenário do rock nacional destes anos.

Page 17: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

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CAPÍTULO 2: LEGIÃO URBANA/TITÃS

O objetivo central deste capítulo é analisar duas bandas que tiveram uma enorme

importância no cenário do pop rock/nacional da década de 1980, isto é, Legião Urbana e

Titãs. Aliás, a importância de ambas continua sendo sentida também atualmente. Não é nossa

intenção apresentar um histórico completo sobre estas bandas, tanto que as informações neste

sentido encontram-se atreladas ao recorte temporal compreendido entre os anos de 1984 a

1989.

2.1 Trajetória artística da Legião Urbana

As origens da Legião Urbana encontram-se em 1982, ano que ela possui como

integrantes os seguintes nomes: Marcelo Bonfá (bateria), Eduardo Paraná (guitarra) e Paulo

Paulista (teclados), formando assim, a Legião Urbana. Ela lançou seu primeiro disco em 1984,

mas em 1983 ela já havia feito seu primeiro show com a “famosa” formação da banda: Renato

Russo no baixo e voz, Marcelo Bonfá na bateria e Dado Villa – Lobos na guitarra. O

repertório deste show, que ocorreu no teatro da Associação Brasileira de Odontologia, em

Brasília, foi marcado, em grande parte, por músicas do Aborto Elétrico, antiga banda do líder

Renato Russo, que possuía estética e sonoridade punk. Esta banda existia desde 1978, contudo

não sobreviveu à virada da década. Os demais integrantes da Legião Urbana também

possuíam outras bandas, antes do surgimento desta, como por exemplo a Dado & O Reino

Animal, de Dado Villa – Lobos.

Ainda no ano de 1983, a Legião Urbana faz seus primeiros shows além dos limites de

Brasília, como o realizado em julho, do já mencionado ano, ao lado de outras bandas

brasilienses como Plebe Rude e Capital Inicial, no Circo Voador, no qual eles abrem para

Lobão & Os Ronaldos.

Mais tarde, em 1984, mais um integrante passa a fazer parte da banda: Renato Rocha

assume o baixo, antes sob a responsabilidade de Renato Russo, permanecendo até o final da

turnê do terceiro disco, Que País é Este, em 1988.

A obra da extinta banda Legião Urbana, a qual se dissolveu com a morte do vocalista

Renato Russo em 1996, é a que se segue: Legião Urbana (1984), Dois (1986), Que País É

Este 1978/1987? (1987), As Quatro Estações (1989), V (1991), Música para

Acampamentos (1992), O Descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade ou O Livro

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dos Dias (1996), Uma Outra Estação (1996/1997), Acústico MTV (1992/1999) e Como é

que se diz eu te amo (1994/2001).

2.2 Questão da juventude e seu comportamento:

Com relação aos integrantes, estes eram todos jovens advindos de famílias de classe

média e classe média alta, que no início buscaram a musicalidade e estética punk, como uma

forma de se expressar socialmente: “As vias que levaram os candangos a aproximar-se do

punk foram absolutamente diversas daquelas dos paulistanos. Estavam muito mais ligadas a

um grande grupo de amigos -, adolescentes, usando da música mais rasteira para expressar –

se socialmente – do que a um grito de rebelião política”29. Neste trecho Ricardo

ALEXANDRE marca as diferenças que definem os denominados “punk de São Paulo” e o

“de Brasília”. Em São Paulo, tem – se uma enormidade de jovens que, devido à situação

econômica do país, não tinham o acesso à diversão e ao consumo. Moradores das periferias

estes jovens buscavam informações e sentiam – se excluídos, acabando, portanto, por

enxergar no punk uma função catártica, a de exprimir todas estas dificuldades, afinal em 1982

São Paulo apresentava o assombroso número de 1,5 milhão de desempregados. Por outro lado,

os jovens de Brasília eram muito bem informados e tinham um acesso muito grande às

informações, encontrando - se em sintonia com o que estava acontecendo em metrópoles

como Londres e Nova York, no caso, o movimento punk. Alguns, inclusive, puderam assistir

na Inglaterra as manifestações do punk, como é o caso dos irmãos Lemos, Felipe e Flávio,os

quais mais tarde farão parte de outra banda brasiliense denominada Capital Inicial, que voltam

ao Brasil, munidos das mais diversas informações, sobre o movimento: com indumentárias

(roupas, colares que lembram coleiras para cães, etc.), muitos discos e fitas, além de diversas

histórias a respeito shows, como os de Buzzcocks, The Clash, Damned, Stranglers, e outros.

Em outras palavras, o punk de Brasília pode ser entendido principalmente sob o viés

da afirmação juvenil que poderia escolher as bandas que gostaria de ouvir, as roupas que

gostaria de usar, porque tinha acesso a informações de inúmeras bandas em destaque no

cenário musical nacional e internacional. Vale dizer ainda, que estes brasilienses, acima de

29 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80.São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002. Pág. 68.

Page 19: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

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tudo poderiam consumir os mais diferentes artigos que a indústria cultural do período poderia

lhes ofertar.

Da mesma maneira, s jovens, em sua grande maioria, que “vivenciaram” este pop/rock

dos anos de 1980 foram um filão amplamente explorado pela indústria cultural, justamente

por terem meios materiais para consumir os mais diferentes artigos que esta indústria poderia

lhes oferecer (discos, revistas dos mais diferentes perfis de público que contivessem

informações sobre suas bandas preferidas, roupa, etc). Citando Ricardo ALEXANDRE: “A

cultura jovem era uma mina de ouro absolutamente inexplorada pelos grandes grupos de

mídia”30, algo que começou a ser revertido “nos anos 80”.

Um grande número destas bandas de Brasília que surgiram inspiradas no punk, atingiu

seu objetivo, isto é, conseguiu se expressar e pôde , ainda, alçar vôos mais altos e se firmar ao

longo da década de 1980 no mercado da música, como é o caso da Legião Urbana.

Como já foi mencionado, a banda em seu primeiro disco e shows iniciais se utiliza do

repertório da extinta banda punk “Aborto Elétrico”. É nela que o líder Renato Russo compõe

canções como Que País é Este (que dará o nome ao disco de 1987) e Química, que certamente

nos oferecem vários elementos pra compreender e geração deste período, no sentido de

sonhos pessoais/coletivos, descrenças, conflitos, etc.

A Revista Veja, por exemplo, numa de sua publicações, cujo título é “Um retrato

musicado”, chama a atenção dos seus leitores para as letras dos jovens roqueiros, as quais

seriam capazes de revelar o cotidiano da geração dos anos de 1980.

São justamente os letristas de rock no Brasil que, com precisão de antropólogos improvisados, a irreverência de cronistas de sua época e a velocidade da era do computador, estão compondo um retrato de alta fidelidade da vida do país nos dias de hoje. Mais precisamente, do universo urbano, jovem e classe – média do Brasil dos anos 80. (...) Eles buscam inspiração nos usos e costumes que vêem à volta, na televisão e na imprensa, no aparato da vida moderna, nos cartazes de rua e nos grafites de muros31.

Neste sentido, são emblemáticos os versos da canção Tédio (Com Um T bem Grande

Pra Você), a qual é lançada pela primeira vez no disco Que País É Este, de 1987. é a terceira

música da época em que Renato Russo tinha o aborto Elétrico, e o ano dela é 1979. Segundo

informações que constam no encarte deste álbum, “gravada em primeiro take é ótima para

festas e era uma espécie de hino dos punks de Brasília daquela época. (...) Só não foi incluída

30 id. ibid. Pág. 212. 31 Um retrato musicado. Revista Veja. Nº 870. Págs. 131-132. 8 maio, 1985.

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no primeiro disco porque achamos que deveríamos falar sobre coisas mais sérias”32. Apesar

desta canção não ter sido composta durante o período que este estudo procura analisar, ela

permanece atual para os anos de 1980, como atesta Renato russo: “As letras destas nove

canções refletem uma ingenuidade adolescente mas só por terem sido escritas há quase nove

anos atrás. A temática continua atual, às vezes até demais”. “Moramos na cidade, também o

presidente/ E todos vão fingindo viver decentemente/Só que eu não pretendo ser tão

decadente não”. Nestes versos iniciais é traçado um panorama de um país em que “todos vão

fingindo viver decentemente”, além de ser colocada a realidade particular da banda, que vive

na mesma cidade do presidente “Moramos na cidade, também o presidente”. Contudo, à

realidade política econômica do país se mescla a situação do jovem classe média: “Andar a pé

na chuva, à vezes eu me amarro/ Não tenho gasolina, também não tenho carro/também não

tenho nada de interessante pra fazer/ Tédio com um T bem grande pra você”. Se hoje é muito

comum os jovens terem seus próprios carros, naquele período não era esta a realidade da

juventude classe média, o que não parecia incomodar, ao contrário do fato de não se ter nada

de interessante pra fazer. Se compararmos esta letra com outra, lançada no mesmo disco,

intitulada Química, novamente tem – se um descontentamento juvenil que reclama de “ter o

que fazer”, já que este “ter o que fazer” é colocado pelos pais paternos como reflexo de seus

desejos, anseios em relação ao futuro dos filhos: “Ter carro do ano, TV a cores, pagar

imposto, ter pistolão/ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão/ Ser

responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão” . Porém para alcançar tudo

isso, estes jovens sabem que primeiro “...tem que passar no vestibular”.

Contudo, crê - se que esta não era a vontade primordial dos jovens, que para obterem

êxito no vestibular devem abandonar os programas corriqueiros: “Não posso nem tentar me

divertir/O tempo inteiro eu tenho que estudar/Fico só pensando se vou conseguir/Passar na

porra do vestibular”. Em suma, tanto Química como Tédio (Com Um T Bem Grande Pra

você), podem ser definidas como canções com letras fáceis e a musicalidade vem do punk,

isto é, com guitarra e bateria rápidas as quais soam muito bem com as intenções destas duas

músicas, marcadas pela revolta juvenil que não se vê seduzida pelo vestibular, preferindo se

divertir com os amigos e ouvir música. Conforme já foi mencionado a Legião Urbana “herda”

muitas canções da antiga banda de Renato Russo, a qual se denominava punk, daí a razão da

economia da guitarra, bem como da velocidade de seus acordes e das “viradas” na bateria.

32 Russo, Renato. Álbum Legião Urbana (EMI), 1984.

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Este álbum de 1987, que do ponto artístico este é o primeiro disco da banda, ficando

evidente a fúria adolescente dos integrantes. Além disso o álbum que trouxe estas canções,

trazia outras que acabaram se tornando muito atuais para o contexto de 1987/1988. Um

grande exemplo é a canção que dá nome ao álbum, Que País é Este. Também foi neste

período e com a canção Faroeste Caboclo seu maior sucesso até o momento. Eram 9 minutos

e 159 versos, definida por Ricardo Alexandre como “uma cantiga folk nordestina para narrar a

trágica história de João Santo Cristo, jovem interiorano que parte para Brasília e se envolve

com o tráfico de drogas da cidade. Composta nos tempos de Trovador Solitário de Renato

russo, a canção se tornou um sucesso avassalador”33.

A revista Bizz atesta o sucesso estrondoso de Faroeste Caboclo, numa matéria

intitulada Melhores de 87 A Votação da Crítica: Foi um mau ano mesmo?, na qual esta

música ocupou o primeiro lugar no critério música nacional. Esta mesma edição traz Renato

Russo ocupando os lugares de melhor letrista e vocalista, além da banda emplacar em quinto e

terceiro nos quesitos LP e Grupo, respectivamente.

O primeiro álbum da Legião, de 1984, foi disco de ouro apresenta algumas canções

que ainda carregavam influências do punk, como por exemplo Petróleo do Futuro. Neste

disco está presente a conhecida Geração Coca-Cola, também egressa da extinta Aborto

Elétrico, um dos grandes sucessos juntamente com Será e Ainda é cedo. Ao noticiar o

lançamento deste álbum, a revista Veja de 1985 define esta canção como “um rock no melhor

estilo agressivo detonado pelos grupos ingleses”. Contudo, uma canção que merece uma

análise mais minuciosa é O Reggae. Sua letra carrega a questão do poder das instituições

como a Escola (Ainda me lembro aos três anos de idade/O meu primeiro contato com as

grades/O meu primeiro dia na escola/Como eu senti vontade de ir embora)e o poder Estatal e

da Polícia sobre o indivíduo: Têm o meu destino pronto e não me deixam escolher/Vêm falar

de liberdade p’rá depois me prender/Pedem identidade p’rá depois me bater/Tiram todas as

minhas armas/Como posso me defender? Da mesma maneira é muito forte o tom melancólico

e o amalgamento entre crítica política – social, sem, contudo, assumir um lado panfletário. Ao

contrário, esta crítica vem acompanhada de forte subjetivismo, elemento que será constante

nos trabalhos da Legião principalmente a partir de 1989, com o LP As Quatro Estações.

33 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80.São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002. Pág. 295.

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Sobre este subjetivismo é interessante vislumbrar que esta a característica acaba por se

tornar um aspecto que distinguirá a legião das de mais bandas. Na opinião de Michael LAUB,

por exemplo, num artigo publicado pela revista Bravo!,

Renato Russo injetou uma riqueza lírica, uma ambigüidade e – por que não dizer? – uma confusão única no discurso do rock brasileiro dos anos 80. Filiados à tradição existencialista de grupos ingleses como o The Smiths, seus versos apropriavam-se dos temas que costumavam ser tratados no Brasil, mas de uma forma particular. Havia por aqui a demanda por espécie de dever ser, aprova constante de fé na luta, no conflito, no embate como motor de uma afirmação necessária aos emergentes grupos locais. No círculo de repetições indissociável do universo do rock, a pose de rebeldia estava de volta34.

Novamente, a partir da “definição” do editor – chefe da revista Bravo! evidencia - se a

comparação contumaz entre a Legião Urbana e bandas inglesas como The Smiths.

Sobre a “forma particular” de apropriar – se “dos temas que costumavam ser tratados

no Brasil, também a crítica da revista Veja, ao falar dos lançamentos do LP da Legião,

intitulado Legião Urbana, e do compacto da Capital Inicial, e aponta para especificidade do

denominado rock de Brasília: “O rock de Brasília não usa o bom humor como principal

ingrediente, como é de praxe no rock nacional, e sua música está longe dos acordes românticos

de lulu santos ou do Kid Abelha”35.

Segundo Dado Villa – Lobos a Legião Urbana era “...uma banda de rock falando de

temas atemporais, como meninos/meninas, drogas. Fazíamos muito sentido e éramos muito

profundos, ás vezes. As pessoas se identificavam de verdade com aquilo. Era uma mistura

louca de raiva, energia distorção, amor e convivência, sintetizada.”36.

Com relação à pose de rebeldia mencionada por Michael LAUB, Dado Villa-Lobos

fala sobre a importância da imagem do grupo: “Uma foto é importantíssima para saber se eu

me identifico ou não com um artista. É fundamental. Tudo faz parte do pacote: a essência do

que você está fazendo, o discurso que você tem, o tipo de som que você toca, os instrumentos

que você usa, a sonoridade que você tira. E, também, a roupa que você veste, o brinco certo

no lado certo. Tudo faz parte”38.

Tomando como ponto de partida a rebeldia da qual fala Laub e a citação de Dado

Villa-Lobos a respeito da imagem da banda, tentar-se-á refletir como era a relação da banda

com a mídia tomando como ponto de partida a figura do seu líder, Renato Russo.

Primeiramente, pode-se afirmar que a Veja já vislumbrava em suas páginas uma postura

34 LAUB, Michael. Além das meninas do Leblon. Revista Bravo!, outubro de 1999. 35 Rock no planalto. Revista Veja. Nº 864. Págs. 138-139, 27 março, 1985. 36 DADO VILLA – LOBOS. Apud Ricardo ALEXANDRE. Pág. 258. 38 id. ibid. Pág. 259.

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diferente por parte da banda, definida como “um grupo original no rock brasileiro, hoje

excessivamente voltado para as fórmulas das paradas de sucessos”39. Provavelmente a não

participação da Legião Urbana em programas como Globo de Ouro e festivais como o

Hollywood Rock explicam esta leitura que a mencionada revista faz da banda e a esse tipo de

“atitude” se deva a reflexão de Michel Laub de que a “pose rebeldia estava de volta”.

Além disso a banda mostrou, em toda a sua trajetória, a preocupação de centralizar

todas as decisões artísticas, da capa até a produção. A esse respeito, como o olhar do presente,

explica Dado Villa-Lobos:

Nosso grande objetivo era prosseguir preservando a essência do que a gente um dia pensou da vida. Por que fazer música? Ora, tem de ter um motivo muito claro. As canções que eu ouvia na adolescência mudaram minha vida minha forma de pensar, minha forma de agir, e moldaram muito o meu caráter, o que eu penso sobre as pessoas, sobre as relações humanas. Era isso que falávamos em nossas músicas, das nossas vidas e do que percebíamos delas. Esse era o núcleo da coisa toda. O resto era embalagem40.

Novamente o ex-integrante Dado Villa-Lobos reitera a busca da banda por

profundidade nas letras. O próprio líder já se manifestava a respeito ao conceder uma

entrevista à revista Bizz de 1989:

Não vou pegar um violão e fazer uma música babaquinha. Eu preciso acreditar que o que a gente está fazendo é uma coisa que vale a pena (...). O que eu posso falar é: ‘Aí galera, aprendam’, embora eu tenha sido criticado por isso. Não é uma coisa que me agrada, porque nunca falei pensando em dizer para as pessoas o que elas tinham de fazer; falava, sim, para mim. Mas eu já aprendi o que eu tenho de fazer. E o rock é uma coisa limitada - Lou Reed, John Lennon, Keith Richards, todos já disseram isso: depois de um certo momento, tem certas coisas que não se encaixam muito bem no rock (...) Por ser algo que envolve muito consumo, principalmente as coisas espirituais não vão passar, porque requerem uma certa maturidade...

Com relação às considerações esboçadas por Renato Russo, algumas devem ser

analisadas mais minuciosamente. Longe de ser mera estratégia para vender mais álbuns, a

postura manifestada pela banda (de não participar de festivais e programas de televisão

popularescos) indica uma consciência que significava comandar a parte financeira e

burocrática da banda e o própria reflexão conduzida pelo líder da banda dos limites do rock

como forma de expressar “coisas espirituais”, a medida que o gênero rock há muito havia se

transformado em artigo de consumo.

Consideramos que estas são informações suficientes para tentarmos refletir a respeito

da representação que a banda Legião Urbana faz da juventude brasileira (do jovem e de seu

comportamento) dos anos 80 e seu comportamento. Como foi atestado acima, o início da 39 Rock no planalto. Revista Veja. Nº 864. Págs. 138-139, 27 março, 1985. 40 DADO VILLA – LOBOS. Apudr Ricardo ALEXANDRE. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80.São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002. Pág. 269.

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banda é marcado pela sonoridade e estética punk, heranças trazidas pelos integrantes da banda

que no final da década de 70, flertavam com o movimento punk, tendo alguns deles

participado de bandas punk. Nesta fase o jovem representado por meio das letras e desta

sonoridade pode ser buscado nas canções do álbum Que País é Este 1978/1987, de 1987

(considerado do ponto de vista artístico o primeiro disco da banda), e no Legião Urbana,

1984, na canção Geração Coca-Cola. Que País é Este, apresenta-nos uma juventude cheia de

fúria e imbuída de uma rebeldia dirigida basicamente às gerações precedentes. Por extensão o

jovem nas canções deste LP está mais preocupado com as questões que para ele são mais

urgentes como o vestibular, algo imposto pelos pais, que tomas inúmeras horas de estudo e as

formas de diversão contumazes acabam sendo deixadas de lado, como ouvir música e se

divertir. Este jovem pouco sabe dos conteúdos de Física, Literatura ou Gramática, mas gosta

da Educação Sexual. O desprezo pelo estilo de vida dos pais também é latente. A crítica,

portanto, observada é panfletária. Na canção Tédio(Com Um T Bem Grande Pra Você) este

tipo de jovem reaparece, mas a crítica é dirigida essencialmente ao não ter o que fazer, mas

com uma consciência de que não é certo o não fazer nada e dormir o dia inteiro, além disso

novamente este jovem não deseja ser como a maioria (E todos vão fingindo viver

decentemente/Só que eu não pretendo ser tão decadente não). Outra canção que se amolda a

este jovem é Geração Coca-cola, que aliás nos serve de título para este estudo. Sem

abandonar as influências punk, de musicalidade e temática, tem como alvo o sistema

capitalista personificado nos EUA. Entretanto este jovem acreditada que a ele foi creditado o

poder de mudar a realidade, e assume que esta mudança será feita sem negar a sua condição

de burguês e consumidor.

No álbum de 1984, porém predominam as canções de tom mais intimista e

existencialista, que marcará os demais álbuns. Neste álbum começa a se delinear um outro

tipo de juventude, a qual se encontra completamente angustiada, diante de um futuro que é

pintado de uma maneira muito sombria. Esta angústia reside num profundo descontentamento

com a realidade vivenciada repleta de violência, falta de humanismo e de valores universais

como justiça, verdade, coragem e bondade. Esta juventude olha ao seu redor e sente-se

desolada com o que presencia e diz: “Essa justiça desafinada/É tão humana e tão errada”.

Também não acredita muito nos seus pares e critica: “Você é tão moderno/Se acha tão

moderno/Mas é igual a seus pais/É só questão de idade/Passando dessa fase/Tanto fez e tanto

faz”.

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22

Nos álbuns seguintes evidencia-se que a idéia da juventude como um agente capaz de

promover mudanças se torna mais rara. Além disso, as críticas com relação ao contexto

político, econômico e social já não mais são diretas como em canções anteriores, como as

vislumbradas em Geração Coca-Cola e Que País é Este. As letras são carregadas de um

lirismo maior, e nos discos Dois e As Quatro Estações a sonoridade que era marcada pela

agressividade da guitarra e das batidas nervosas, abre espaço para os acordes mais calmos do

violão, a batida mais abafada da percussão e o uso de outros instrumentos como o bandolim.

2.3 Trajetória artística dos Titãs

Os Titãs surgiram no início de 1982 e tiveram sua estréia neste mesmo ano, nos dias

15 e 16 de outubro, no Sesc Pompéia. Em seus primórdios a banda se autodenominava Titãs

do Iê-Iê, complemento que foi suprimido antes do grupo entrar em estúdio para gravar seu

primeiro LP, e apresentava-se com nove integrantes, sendo que destes nove todos compunham

e seis eram vocalistas. “Era uma turma confusa atuando numa receita que abrangia

coreografia, figurinos, iê-iê-iê, vanguarda paulistana, new wave e (...) MPB”41. Faziam parte

nesta época da banda: José Fernando Gomes dos Reis, Nando Reis (voz e baixo); Arnaldo

Augusto Nora Antunes, Arnaldo Antunes (voz); Sérgio de Brito Álvares Afonso, Sérgio

Britto (voz e teclado); Joaquim Cláudio Correia de Mello Junior, Branco Mello (voz); Paulo

Roberto de Souza Miklos, Paulo Miklos (sax, teclado e voz); Antônio Carlos Liberalli

Bellotto, Toni Bellotto (guitarra); Marcelo Fromer (guitarra), Ciro Pessoa (guitarra e voz) e

André Jung (bateria).

No ano de 1984, ao assinarem com a gravadora WEA, os Titãs lançaram o primeiro

disco (já sem um dos seus integrantes Ciro Pessoa), o qual continha seu primeiro sucesso

Sonífera Ilha que fez o grupo ficar com o estigma de brega. Antes de lançarem o LP

seguinte, o baterista André Jung saiu da banda para entrar no Ira!, outra banda paulista do

período, e Charles Gavin (ex-Ira!) ocupa o seu lugar. É interessante comentar este estigma de

brega o qual, ao contrário do que se possa pensar atualmente, não era negado pelo grupo

como atesta, o já falecido integrante, Marcelo Fromer:

Pô, agente estudava num colégio com um teatro onde rolavam shows históricos, de Clementina de Jesus e Caetano Veloso a Gilberto Gil e Novos Baianos. Com esse contato, os Titãs surgiram um pouco contra aquela coisa das pessoas que achavam lindo ser independente, odiar a televisão, ‘essa coisa que massacra’, e a gente 41 id.ibid. Pág. 166.

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pensava: ‘Pô, mas isso é que é o legal! Brega? Do caralho! Odair José? Esse que é o canal! Chacrinha? Eu quero fazer trinta Chacrinhas!!!’ Passamos por cima de uma ideologia meio contrária à cultura industrial (...). Era legal entrar na indústria.42 Ao contrário da Legião Urbana que eram cautelosos em relação à indústria cultural, os

Titãs já nos seus primórdios buscaram os “caminhos do sucesso”, seja apresentando – se no

Chacrinha, seja tendo em mente “todos os rudimentos de showbizz verdadeiro”11 ao “ter um

repertório com trinta músicas inéditas, (...) programa, cenário, luz, figurino”43.

Em 1985, com a nova formação, os Titãs entraram em estúdio para gravar o seu

segundo LP Televisão, o qual chegou às lojas em junho daquele ano e emplacou os hits

Insensível e Televisão. Neste mesmo ano a banda enfrentou a prisão de dois de seus

integrantes com heroína. No dia 13 de novembro Tony Bellotto e Arnaldo Antunes foram

presos com heroína. Arnaldo passou 26 dias na prisão e ambos foram condenados. O cantor

por tráfico e Bellotto, por porte de droga. Em virtude de não possuírem antecedentes e terem

trabalha declarado, puderam cumprir a pena em liberdade, como se evidencia na notícia

abaixo:

Condenados: Os músicos do conjunto de rock Titãs, Arnaldo Augusto Mora Antunes, 25 anos por

tráfico de heroína, e Antônio Carlos Liberali Bellotto, 25 anos por porte de droga. Arnaldo, preso no dia 13 de novembro de 1985 com 128 miligramas de heroína, suficientes para nove doses, foi sentenciado a três anos de prisão-albergue domiciliar-cumprirá a pena em casa, com o direito de sair todos os dia em horários predeterminados. Antônio Carlos, com quem a polícia encontrou 30 miligramas da droga, foi condenado a seis meses de prisão e beneficiado com o sursis44.

O ano seguinte, 1986, é o de lançamento do terceiro LP do grupo, Cabeça

Dinossauro, apontado comumente pela crítica como o melhor trabalho de sua carreira. Neste

álbum há espaço para críticas diretas às seguintes instituições: Família, Polícia e Igreja, e para

guitarras mais pesadas.

Em 1987 mais um disco é apresentado ao público: Jesus não tem dentes no país dos

banguelas. O próximo ano, 1988, contabiliza outro disco, porém não se trata de um álbum

com canções novas, já que Go Back foi gravado ao vivo no festival de Montreux, na Suíça. É

nesse momento que se inicia a carreira internacional do grupo, que além da Europa faz shows

nos Estados Unidos.

42 id.ibid pág. 167. 11 REIS, Nando. apud ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80.São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002. Pág. 168. 43 REIS, Nando. apud id ibid. Pág. 168. 44 Revista Veja. Nº 928. Pág. 107. 18 jun, 1986.

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24

O sexto disco Õ blésq blom, lançado em 1989, também foi muito saudado pela crítica

da época e caracteriza-se por se muito eletrônico.

Vale dizer que os Titãs continuam atuando no cenário musical brasileiro, contudo

conta com apenas cinco dos integrantes da formação de outrora: Branco Mello, Charles

Gavin, Paulo Miklos, Sérgio Britto e Tony Bellotto. Arnaldo Antunes e Nando Reis

atualmente não fazem mais parte da banda. O primeiro desde 1992 tem se voltado à sua

carreira de solo, e o segundo deixou o quinteto em 2002 alegando incompatibilidade de

pensamento em relação à preparação do CD Como estão vocês?. Além disso, a banda sofreu

a perda de Marcelo Fromer que faleceu em junho de 2001.

Com relação à discografia da banda, ei-la: Titãs (WEA, 1984), Televisão (WEA,

1985), Cabeça Dinossauro (WEA, 1986), Jesus não tem dentes no país dos banguelas

(WEA, 1987), Go back (WEA, 1988), Õ blésq blom (WEA, 1989), Tudo ao mesmo tempo

agora (WEA, 1991), Titanomaquia (WEA, 1993), Domingo (WEA, 1996), Acústico MTV

(WEA, 1997), Volume II (WEA, 1998), As dez mais (WEA, 1999), A melhor banda de

todos os tempos da última semana (Abril, 2001), Como estão vocês? (BMG, 2003).

2.4 Questão da juventude e seu comportamento: A prisão de Arnaldo Antunes e Tony Bellotto é apontada como um momento de

profunda redefinição da banda, a medida que os programas os convites para se apresentarem

na televisão passaram a inexistir e inúmeros shows foram cancelados, a banda acabou

encarando a possibilidade de extinguir. Este fato acabou produzindo ecos no trabalho de 1986,

isto é, se o disco anterior, Televisão, primou pala composição de faixas que cada uma soasse

diferente da anterior, o disco de 1986 conseguiu uma unidade musical, sendo reduzido “a uma

basicidade quase punk, mesmo que a banda continuasse flertando com o reggae e o funk–e até

mesmo com o hardcore, nos esplendorosos 34 segundos de ‘A face do destruidor’”45.

Ademais evidenciou-se no repertório um tom de ira refletido nas letras, que atacaram as

principais instituições, tais como a Igreja, a Família e a Polícia, e na sonoridade, por meio de

acordes mais pesados. Com este disco a banda conseguiu fazer se entender pelo público,

como explica Nando Reis: “Conseguimos juntar toda a informação que queríamos e envolvê-

la numa massa sonora impactante, convincente”46. Este álbum conseguiu vender 250 mil

45 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80.São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2002. Pág. 263. 46 NANDO REIS. apud id ibid. Pág. 266.

Page 28: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

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cópias e garantiu a continuidade da banda, apesar das músicas deste LP terem sido ignoradas

pelas FM.

A opinião da revista Veja com relação a este álbum, que foi festejado pelo público e

pela crítica especializada, confirma que a banda a partir de Cabeça Dinossauro encontrou uma

unidade musical e com o público: “Só no terceiro LP, Cabeça Dinossauro, lançado no final de

1986, encontrou o estilo que hoje desenvolve e que pode ser classificado como o mais

contundente entre as atrações do rock nacional. Em suas letras não hesitam em usar boa

quantidade de palavrões”47.

Nesta mesma publicação são tecidas comparações entre a Legião Urbana e Titãs,

ambas vistas como a face contundente do rock nacional:

Os Titãs e o Legião Urbana raramente usam o bom humor ou o romantismo e não se dedicam a descrever o dia-a-dia do universo dos jovens. Em lugar disso, em grande parte de suas músicas assumem a bandeira do inconformismo e da contestação, disparando suas metralhadoras giratórias contra a situação política, social e econômica do país. Não chegam a fazer música de protesto ou partidária-apenas pintam a sua visão do país, a considerável parcela de jovens que compra sues discos e vai a seus shows parece concordar com essa visão em gênero, número e grau48.

Se levarmos em consideração que, até o momento da publicação citada acima, os

últimos discos lançados por estas duas bandas foram Jesus Não Tem Dentes no País dos

Banguelas, Titãs, e Que País é Este, Legião Urbana, ambos lançados em 1987, obviamente

que as características mais marcantes seriam a contestação e o inconformismo. Contudo, Que

País é Este apresenta canções de cunho romântico, o que é negado pela revista e o autor da

matéria não menciona o fato de que as canções deste álbum foram compostas num período

anterior, quando a Legião nem existia. Por outro lado, grande parte das canções do LP dos

Titãs, em questão, apresentam-se sob a égide do inconformismo e da contestação.

Todavia algumas diferenças são apontadas com relação a estas duas bandas:

O Titãs caracteriza-se sobretudo pela virulência das letras, que em sua maioria tratam de personagens massacrados pelo poder e pela situação social, indivíduos que olham para o futuro e nada conseguem enxergar, gente que se pergunta e não acha resposta para as questões da existência. Como nas faixas Comida e Desordem, do novo LP. (...) O Legião é mais romântico em suas imagens, mas igualmente contundente quando se trata de descrever como vê o país. Em grande parte de suas letras as cidades brasileiras são guetos sufocantes, os governantes são pintados como especialistas em desmandos e a vida da população é um sem-fim de mazelas e desesperanças. A faixa-título de seu novo disco, Que País é Este, é um revoltado brado de guerra contra os políticos49. 47 Política da pauleira. Revista Veja. Nº ? Págs. 112-113. 27 jan, 1987. 48 ibid. 49 ibid.

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Em suma, estes dois álbuns não podem ser dissociados do contexto político,

econômico e social no qual foram lançados. Em 1987, o país já não vivenciava mais as

benesses do Plano Cruzado: Sarney havia decretado em novembro do ano anterior o

descongelamento dos preços, e o resultado inicial foi o índice de 20% de inflação em janeiro

de 1987. À esta medida seguiram-se outras: em março de 1987 foi autorizado o aumento dos

aluguéis. Em junho houve saques a lojas, cem ônibus depredados, 58 feridos e noventa presos

numa manifestação contra o aumento da passagem de ônibus no Rio de Janeiro. No final deste

ano somaram-se a estes acontecimentos o acidente radioativo em Goiânia, que vitimou duas

crianças, e um motim no presídio do Carandiru em São Paulo, o qual deixou 31 mortos. Em

dezembro a inflação chegou a 365,99%. Por outro lado, no ano de 1987 foi criada a

Assembléia Constituinte, presidida por Ulisses Guimarães, com o intuito de se criar uma nova

Constituição. Uma das mudanças por ela estabelecida era a redução do mandato presidencial

de cinco, para quatro anos. Portanto, estes acontecimentos políticos, sociais e econômicos

explicam o caráter de contestação dos álbuns anteriormente mencionados da Legião Urbana e

dos Titãs.

No ano seguinte, a mesma revista tece elogios ao quinto LP Õ Blésq Blom, porém os

trabalhos anteriores tão festejados pelo tom político e de inconformismo, parecem já não ter

mais o mesmo prestígio.

O som demolidor, incisivo como uma navalha, cede lugar a acordes mais melódicos...os Titãs também abandonaram nas letras seu panfletarismo e sua postura ‘somos contra tudo e contra todos’. As palavras de ordem que recheavam letras de sucesso, como Comida e Igreja dão lugar a jogos de palavras mais amenos e, em alguns casos, bem-humorados, como em O Camelo e o Dromedário. O humor, faceta praticamente inédita no trabalho dos Titãs, revigorou o som do grupo. (...) Os Titãs chamaram atenção no rock brasileiro justamente por sua agressividade e suas críticas contundentes. Inaugurando o que promete ser uma nova fase, abrem novos horizontes num LP menos radical e mais inspirado50.

E qual seria a juventude representada pelos Titãs? Em muitos aspectos a juventude

esboçada pelos Titãs lembra aquela que se manifestou intensamente nos movimentos de maio

de 1968, cujos principais atores foram jovens, em especial os estudantes. Em maio de 68,

universitários franceses organizaram manifestações nas ruas de Paris. Inspirados pelas teorias

do pensador marxista alemão Herbert Marcuse, os jovens franceses protestavam contra os

“valores hipócritas de uma sociedade injusta e atrasada”, que teria relegado a segundo plano

questões tão caras ao ser humano, como subjetividade e liberdade existencial. As idéias

pichadas nos muros de Paris sintetizavam, em grande parte, o sentido do movimento.

50 Semana da guitarra. Revista Veja. Ed. 1103. Ano 22. Nº43. Pág. 132. 1º nov, 1989.

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“Imaginação ao poder”. “Aquele que fala de revolução sem mudar a vida cotidiana tem na

boca um cadáver”. “Decreto: ‘O Estado de felicidade permanente’ nas barricadas”. “É

proibido proibir”. Em outras palavras, todo um espírito que procura uma intensificação da

experiência e deseja buscar sua própria subjetividade.

Isso se evidencia, principalmente, no LP Cabeça Dinossauro. Neste álbum são

latentes as críticas contra as instituições, Estado, Família, Igreja e Polícia, bem como às leis,

costumes e convenções que delas decorrem. Com relação a estas duas últimas, o tom de raiva

é mais marcante é dado por acordes de clara influência punk.

Na canção Família, por exemplo, ressalta-se o desprezo com relação à moral vigente

que não sustenta a filha que opta por não se casar: Família, família/Papai, mamãe,

titia/Família, família/Almoça junto todo dia/Nunca perde essa mania/Mas quando a filha quer

fugir de casa/Precisa descolar um ganha-pão/Filha de família se não casa/Papai, mamãe, não

dão nenhum tostão.

Contudo é na canção Estado violência que a briga por subjetividade, ou afirmação do

indivíduo, é mais marcante: Estado Violência/Deixem-me querer/Estado Violência/Deixem-

me pensar/Estado Violência/Deixem-me sentir/Estado Violência/Deixem-me pensar. Note-se

que os versos se alternam da seguinte maneira: um para o Estado, outro para o indivíduo. Os

versos do Estado encontram-se escritos com letra maiúscula, enquanto que os sentimentos

reclamados pelo indivíduo, com letra minúscula. No restante da canção somente se usa letra

maiúscula no início de cada verso. Nem a violência, característica inerente ao Estado, inicia-

se com letra maiúscula. Conclui-se portanto, que estes versos finais são escritos desta forma,

com o intuito de marcar a crítica que está sendo feita, isto é, Estado versus indivíduo. O que é

o indivíduo diante do poder do Estado, quando este detém o poder da violência e possui todo

um aparato, jurídico e burocrático, que consente todas as suas ações?

Também é emblemática a canção Homem Primata para observarmos como é constante

a crítica de que o ser humano encontra-se destituído de sua individualidade. Neste caso ele

jamais deixou de ser um mero habitante das selvas : Desde os primórdios/Até hoje em

dia/Homem ainda faz/O que o macaco fazia/Eu não trabalhava, eu não sabia/Que o homem

criava e também destruía/Homem primata/Capitalismo selvagem/ô ô ô/Eu aprendi/A vida é

um jogo. O homem portanto é apenas mais um animal lutando pela sua sobrevivência. Se nos

primórdios a luta pela sobrevivência se dava nas selvas, nas florestas, e os maiores inimigos

eram os demais animais, dotado de inúmeros atributos físicos tais como a força, agilidade, etc,

Page 31: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

28

atualmente o meio urbano assume o papel de selva, é a selva de pedra, e a luta se dá,

inicialmente, quando se busca um emprego. Depois faz-se necessário malabarismos para que

com o salário ganho seja possível comer, vestir-se, beber...

Todavia isto não é o suficiente, pois o homem possui outras necessidades que

ultrapassam a esfera dos bens materiais, como os Titãs fizeram questão de mostrar em

Comida, do LP Jesus não tem dentes no país dos banguelas, de 1987: Bebida é

água./Comida é pasto./Você tem sede de que?/Você tem fome de que?/A gente não quer só

comer/ A gente quer comer e quer fazer amor/A gente não quer só comer/A gente quer prazer

pra aliviar a dor/A gente não quer só dinheiro/A gente quer dinheiro e quer felicidade/A gente

não quer só dinheiro/A gente quer inteiro e não pela metade.

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CAPÍTULO 3: LOBÃO/CAZUZA

3.1 Trajetória artística do Lobão

O compositor Lobão, João Luis Woerdenbag Filho nasceu em 11/10/1957, no Rio de

Janeiro. Sua experiência musical iniciou-se cedo: aos 3 anos já tocava bateria. Aos 15 anos

deixou de lado a bateria e foi se dedicar ao violão clássico. Com 17, em virtude de dissensões

com a família, abandonou a casa paterna e passou a fazer parte da banda Vímana, a qual era

integrada por Lulu Santos, Ritchie, Luis Paulo e Fernando Gama e enveredava pelo rock

progressivo. A banda conseguiu gravar um compacto simples com o single ZEBRA, porém

em seguida começou a conhecer o seu fracasso com a entrada do então tecladista do YES,

Patrick Moraz. Entre os seus 19 e 20 anos, Lobão, como um ex-integrante do Vímana,

começou a tocar como freelance com artistas como Luis Melodia; Walter Franco; além de

chegar a tocar, inclusive, zabumba com Zé Ramalho, substituindo Bezerra da Silva, que era

na época o percussionista. Foi a partir desta experiência de tocar como freelance que ele

conheceu Marina Lima, outro nome de peso para o pop/rock da década de 80, passando a

tocar como seu músico convidado.

Enquanto isso, em 1981, era formada a Blitz, que possuía as seguintes características:

a economia do punk, canto falado, riff de guitarra nos moldes anos 60, uma letra

essencialmente inspirada no discurso de rua, falando coisas do cotidiano e com um linguajar

jovem, sem nos olvidarmos do humor que beirava ao riso. Ao lançarem um single, o grupo

saiu do anonimato por conseguirem vender um milhão de cópias em poucos meses. Porém,

havia conflitos no interior do grupo, isto é, Lobão já não se identificava com a Blitz e estava

interessado em seguir carreira.

Em 82 deixou o grupo e ao assinar contrato com uma gravadora lançou seu primeiro

álbum Cena de Cinema, de estética e sonoridade new wave. Contudo, em virtude de alguns

desentendimentos com a gravadora, o compositor teve que amargar um período de

esquecimento, todo o ano de 1983. No ano seguinte ele lança Lobão e os Ronaldos com o

disco Ronaldo foi pra guerra, donde se tem o estouro do hit Me chama, canção que seria

regravada na voz de Marina Lima. Logo depois aconteceu uma pausa e O Lobão e os

Ronaldos começaram a gravar o próximo disco. Ao mesmo tempo “nosso compositor” se

arvorou de ator no filme de Chico de Paula Areias Escaldantes. Gravaram duas músicas:

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Decadence avec elegance e Mal nenhum (esta se constitui a primeira das várias músicas que

seriam gravadas com Cazuza). Novamente Lobão tem problemas com uma banda e acabou

sendo expulso de Lobão e os Ronaldos por mal comportamento e excesso de consumo de

drogas. Curiosamente Cazuza também já não mais era integrante do Barão Vermelho e a

partir daí, além da amizade, nasceu uma parceria entre os dois.

Em 1986, sem banda, voltou a ser solo e gravou O Rock errou, no qual faz uma

crítica a respeito da falta de originalidade no cenário da música nacional, o que resultou num

convite a Elza Soares para gravar um samba, A voz da razão. Neste período, muito mais que

em qualquer outro, Lobão inaugurou uma série de problemas com a justiça, chegando a ser

preso por porte de drogas.

Em 1987, tem-se o álbum Vida Bandida o qual estourou com 4 músicas. Novamente

o compositor/cantor é preso, sendo julgado culpado e, apesar de ser réu primário, foi

condenado a 1 ano de prisão sem direito a sursis. Também é neste ano que aconteceu o

convite de Elza Soares para Lobão visitar a Mangueira e fazer um teste para entrar na bateria.

Em 1988, saiu no carnaval integrando a bateria da Mangueira além do início do núcleo que o

acompanharia por alguns anos e depois se tornaria o FUNK’N’LATA. Ainda em 88 é lançado

o álbum CUIDADO!, no qual a proposta principal do disco foi tentar unir samba com rock,

porém este álbum acabou dividindo as platéias.

Em 1989, em virtude de problemas com a polícia, fugiu para Los Angeles (EUA) e

foi gravar o disco Sob o sol de parador. Apesar das ínfimas vendas, possuía os hits Essa

noite não, Por toda a nossa vontade e Azul e amarelo, a última parceria com Cazuza.

Em 1990 aconteceu a gravação de VIVO!, além da sua participação no Hollywood

Rock em São Paulo e no Rio de Janeiro, a qual é tida como um dos grandes sucessos do

festival: Era a consagração do sue trabalho com a Mangueira, um trabalho com linguagem

própria e poderosa.

No ano seguinte no Rock’n Rio, o mesmo trabalho consagrado no Hollywood Rock

foi vaiado. Ainda em 91 entrou em estúdio e lançou O inferno é fogo, disco que foi muito

criticado. Depois disso Lobão passou por um período de reclusão, aproximadamente 4 anos,

no qual decidiu parar de compor e começou a praticar intensamente violão clássico. No

entanto em 95 o “Lobo saiu da toca” ao compor um samba A luz da madrugada. Nos 3 meses

subseqüentes à composição deste samba, foi lançado Nostalgia da modernidade, primeiro

Page 34: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

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disco de uma trilogia. Como aconteceu com os últimos trabalhos, este disco também foi muito

criticado, sendo considerado uma excentricidade do cantor/compositor.

Em 1998 nasce o segundo da trilogia, Noite, de cunho eletrônico. O disco não foi

bem recebido pela crítica que se referiu a este trabalho como uma “adesão ao baticum

eletrônico”. Todavia, em 1999, ele acabou sendo ejetado da Universal, por mal

comportamento (não aderiu a campanha da pirataria por achá-la cínica e falaciosa) e acabou

lançando, não somente o último disco da trilogia mas, um projeto ambicioso, isto é: ele

fundou sua própria gravadora a Universo Paralelo Records, montou uma revista Lobão

Manifesto, numerou o CD (o 1º na história do Brasil) e acoplou o último CD da trilogia cujo

nome é A VIDA É DOCE. Trata-se de um produto híbrido, com cd rom, multimídia,via

internet, disponível em 25.000 pontos de bancas de jornais, megastores, sites de vendas, etc…

Paralelamente ao lançamento, houve um forte confronto com as gravadoras,constrangendo-as

a numerar os discos e reduzir o preço do CD (o projeto do Lobão saiu a R$14,90), uma

campanha para a criminalização do jabá (propina) nas rádios e tvs,e a moralização dos direitos

autorais. Em 2001 o cantor/compositor lançou mais um álbum: Lobão 2001 – Uma Odisséia

no Universo Paralelo, que contém duas músicas inéditas Lullaby e Para o mano Caetano,

versões ao vivo de músicas dos mais recentes trabalhos do compositor (NOITE,

NOSTALGIA DA MODERNIDADE e A VIDA É DOCE), e vários sucessos de seus

outros trabalhos (Me Chama, Vida Bandida e Decadence Avec Elégance).

3.2 Questão da juventude e seu comportamento

Ao olhar para a trajetória artística do Lobão, a primeira característica que pode ser

apontada é a dificuldade de enquadrá-lo num gênero musical, no caso deste estudo, no

pop/rock brasileiro produzido na década de 80. Este cantor/compositor sobre este assunto

comenta: “Ser chamado de roqueiro por exemplo, falo isso há tempos, é uma coisa que me

reduz, me compartimenta. Mais adequado é MPB. Sou músico, não sou advogado nem

engenheiro. Sou popular; não sou erudito e sou brasileiro e não chinês. Logo, sou músico

popular brasileiro”51. Entretanto, por mais que ele dialogue com outras sonoridades, é

impossível negar a presença do rock em inúmeras canções.

51 LOBÃO em entrevista para a revista da MTV - edição n 12, por: Monica Figueiredo, Zé Mangini e Taciana Barros (15/3/2002).

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Uma idéia observada com freqüência nas canções deste cantor/compositor é a de que

“é melhor viver dez anos a mil do que mil anos a dez”52, ou seja, cada dia deve ser vivido de

maneira intensa, sem se preocupar com limites e possíveis conseqüências nefastas.

Freqüentemente é esta a imagem que nos deparamos ao observarmos as informações que os

meios de comunicação procuravam vincular a respeito do Lobão. Por exemplo a revista Veja,

em 198853, ao mencionar o álbum Cuidado! Que estava sendo lançado naquele ano tece

elogios ao cantor/compositor: dizendo que “Lobão continua a provar que é um dos grandes

talentos da música jovem brasileira, um dos poucos da geração do rock que alcançou um

estilo próprio e o aprimora a cada disco”. Porém não deixa de fazer alusão à vida privada de

Lobão, e por extensão ao seu envolvimento com drogas: “a música de Lobão tem a urgência

de quem parece improvisá-la num palco, a irreverência – ás vezes desequilibrada – que o

próprio autor cultiva na vida real e um dos naipes de guitarras menos convencionais entre os

que fazem a trilhas sonora do rock”. Ao final da matéria, a revista informa que o disco deveria

ter sido lançado apenas em novembro, pois Lobão pretendia excursionar por casas noturnas

americanas. Contudo, “O projeto naufragou porque o artista responde atualmente a processo

por porte de drogas e está impedido pela polícia de deixar o país”.

Em 1985 a revista Veja, numa sessão que se apresenta sob o título Gente, noticia:

Há três meses o cantor carioca Lobão 27 anos, não vê a luz do sol. Recluso em sua casa no Jardim Botânico, ele se dedica a cobrir todas a s frestas das janelas com cobertores e edredons, para permanecer na penumbra a qualquer hora do dia. Lobão está em lua-de-mel. Em junho passado após um vulcânico romance com a manequim Monique Evans, ele casou-se com uma prima, a atriz Daniele Daumerie, 17 anos, e não quer fazer mais nada, além de permanecer deitado (...)54.

Em 1988 a revista Bizz também trilhava um caminho semelhante ao da Veja, iniciando

sua matéria da seguinte forma:

Lobão está afastado dos noticiários musicais e policiais do país. Muitos podem pensar que agora, sim, sua vida está resolvida. Muitos podem pensar que, devido ao sucesso do LP Vida Bandida, Lobão idealizou, finalmente, o álbum desejado. Muitos podem pensar que, enfim, o artista não tem motivos para se queixar e, daqui para frente, só lhe resta usufruir. Engano. Ledo engano. A situação de Lobão permanece uma incógnita (...).

52 Versos retirados da canção Décadence avec elégance 53 Dardo afiado. Revista Veja. Ano 20. nº 32. Pág. 133. 10 ago, 1988 54 Revista Veja. nº 891Págs. 96-97. 2 out, 1985.

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É pertinente dizer que ao longo da matéria a revista Bizz acaba enfocando o Lobão

músico, porém apesar de se tratar de um periódico dedicado à música e à cultura jovem em

geral o que prepondera são informações acerca da vida privada do cantor/compositor.

As fontes utilizadas nos levam a concluir que Lobão, diferentemente dos Titãs e da

Legião Urbana, obteve mais notoriedade nos meios de comunicação em virtude do seu

comportamento, que constantemente saía dos limites do âmbito privado, do que pela sua

produção artística, o que é lamentável.

Também Ricardo Alexandre acaba dedicando um bom espaço em seu livro para falar a

respeito da relação entre Lobão e as drogas.

Logo no início de 1987, vindo de Florianópolis, o cantor foi surpreendido no aeroporto do Galeão com 28 decigramas de maconha e oito decigramas de cocaína. Enquanto aguardava o julgamento em liberdade vendeu sua casa e se mudou para um hotel, em Ipanema. A polícia interpretou isso como “procedimento de fuga” e destacou um agente para prendê-lo – e esse agente o encontrou de posse de mais 30 grama de haxixe e dois gramas de maconha. Lobão foi encarcerado de imediato. Na cela, conheceu o bicheiro Castor de Andrade, que lhe indicou um advogado. Lobão esperava em liberdade o julgamento pela primeira acusação – o flagrante no aeroporto. No dia da audiência, apesar de seu advogado haver tentado configurar uma injustiça (dizendo que o artista jamais se drogara e que a cocaína fora “plantada” pela polícia), Lobão sentiu-se vexado pelo que considerava uma “covardia” e interrompeu: “Isso é mentira; uso droga, sim, e ninguém tem nada a ver com isso. Não causo mal a ninguém!” (...) o juiz Paulo Cezar Dias Panza (...) o condenou a um ano e meio de prisão sem direito a sursis, mais o pagamento do equivalente a cinqüenta dias de trabalho. E ainda diagnosticou: “péssimos antecedentes e péssimas personalidade”. Como Lobão era reincidente, não poderia responder em liberdade.55

Com relação a esta condenação a revista Veja dedicou várias linhas para noticiar o fato

na sessão Datas e publicou na mesma edição uma matéria sobre o fato cujo título era:

Drogado risonho. A matéria relatava o acontecido, a condenação do cantor/compositor, e se

pronunciava da seguinte maneira acerca da pessoa do acusado:

Aos 29 anos, com quatro casamentos, o roqueiro Lobão é um tipo particularmente nocivo de viciado – pois gosta de fazer propaganda das drogas que consome. “Eu sou um expert no assunto”, diz. Posso dizer que a nicotina, o álcool, a heroína é o ópio são as únicas drogas que causam dependência física”, garante com a naturalidade de quem separa refrigerantes que engordam de produtos dietéticos. A maconha é sua “droga do coração”. Sobre a cocaína, ele afirma ter certeza de que não causa a menor dependência física. O perigo, segundo Lobão, está na quantidade que se ingere. (...) Músico de sucesso, Lobão funciona como uma espécie de guru para seus pares.56

A matéria também faz uma pequena “biografia” do cantor compositor, na qual

menciona os seguintes aspectos:

55 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80. DBA, 2002. Pág. 301. 56 Drogado risonho. Revista Veja, nº 977. Pág. 41. 27 maio, 1987

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No passado, por duas vezes, Lobão tentou suicidar-se tomando doses reforçadas de Rivotril, o remédio que usa para controlar sua epilepsia. Carioca, músico que aprendeu a tocar bateria sozinho ainda na infância, antes do julgamento da semana passada fazia planos de realizar uma turnê pelo país no começo de junho e lançar seu novo disco.57

Indubitavelmente o cantor/compositor não pode ser considerado uma vítima (um “lobo

expiatório”) da mídia porque em sua trajetória artística foram inúmeros os conflitos com

integrantes de suas antigas bandas, bem como com gravadoras. Sem contar as prisões por

porte de drogas., mas isso não impediu que alguns álbuns fossem elogiados por esta mesma

imprensa que reiteradamente o chamava de irrequieto. Estes álbuns que foram elogiados pela

crítica especializada e não especializada foram Cuidado! e Vida Bandida. Assim, em virtude

disso optou-se por buscar nestes álbuns a representação que o Lobão faz da juventude da

década de 80.

Os demais álbuns produzidos na década de 80 também são em sua maioria muito

interessantes. Uma observação que não deve ser olvidada é a temática dos dois primeiros

álbuns centrada em cantar o amor, nos álbuns produzidos em 1982 e 1984, o segundo quando

Lobão ainda integrava a banda Lobão e os Ronaldos. O amor cantado em 1982, por exemplo,

no álbum Cena de cinema, é imbuído de nostalgia. Ele está sendo relembrado já que o sujeito

presente nas canções geralmente encontra-se abandonado pela amada. Além da temática do

amor presente nas canções as drogas são também elementos recorrentes. Em contrapartida o

disco de 1984, Ronaldo foi pra guerra, retoma a temática amor, mas também percebe-se que

há canções falando muito de solidão. Estes dois álbuns, assim como os demais, atestam para o

fato que a juventude representada no trabalho do Lobão, não é apenas a pintada pela

imprensa, e não pode ser apenas buscada no modus vivendi do cantor/compositor.

O álbum Vida Bandida, 1987, em algumas canções deixa evidente a idéia de que a

vida é dotada de uma grande brevidade, portanto deve ser intensamente vivida, como nestes

versos de Vida Louca Vida : Vida louca/Vida breve/Já que eu tudo posso te levar/Quero que

você me leve/Vida louca/Vida imensa/Ninguém vai nos perdoar/Nosso crime não compensa.

Esta canção também trata de uma outra temática, da necessidade de ser visto, mas também o

incômodo de ser “manchete popular”, que acaba refletindo numa crítica em relação ao

sucesso e à superexposição na mídia: Me cansei de toda essa tolice/Babaquice/Essa eterna

falta do que falar. Ainda fazendo menção à temática de que “é melhor viver dez a mil do que

mil anos a dez”, são emblemáticos os seguintes versos de um sujeito que não mede as

57 id. ibid.

Page 38: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

35

conseqüências dos seus atos: Meu caro vizinho, eu sou um cara legal/Meu telefone 4777 etc. e

tal/Ontem à noite exagerei no barulho/Eu peço que me desculpe/Eu sei que é demais mijar na

janela/Chamando por Deus e gritando o nome dela/Todo grande amor incomoda/E o mundo

inteiro tem que saber/Ela errou, eu errei , então eu declarei guerra58. Apesar de

“inconseqüente”, o sujeito desta canção preocupa-se em justificar os seus atos, os quais

decorrem da dor sentida pelo abandono da garota amada. Vale dizer, que ao contrário da

Legião Urbana, a dor é cantada de forma bem humorada, uma característica muito comum nas

canções do Lobão.

Este humor também não é deixado de lado nas críticas sociais, que geralmente

conseguem dar um tom de otimismo frente a quadros caóticos da crua realidade oitentista,

como pode ser vislumbrado em Vida bandida: Vida vida vida/Vida bandida/é preciso viver

malandro/não dá pra se segurar/A cana tá brava/A vida ta dura/Mas um tiro só não vai me

derrubar. Em Esse mundo que eu vivo, canção que também se encontra presente no álbum

Vida Bandida de 1987, nota-se que é o mundo de contradições que permite pensar em

mudança, que no caso é pensada também em termos de revolução: Pelo inverno nas

cidades/Eu assisto à transformações/Pelos quartos nos hotéis/Nos anúncios, nas televisões/

Vendem crimes/Vendem inveja/Vendem tudo/Até ilusões/Estão brincando/Eu não

acredito/Penso em tudo/Até em revoluções/Nos verões pela cidade/Eu assisto as

evoluções/Nas escolas desta vida/Nas quadras,nas concentrações/Eu sei que tudo é possível/É

nesse mundo que eu vivo/No outono pelas cidades/Eu assisto as demolições/Destroem

casas/Implodem edifícios/Não é difícil pra quem não tem emoções/Vendem crises/Vendem

misérias/Vendem tudo em até mil prestações/Estão brincando,/Eu não acredito/Penso em tudo

até em revoluções/Eu sei que tudo é possível/É nesse o mundo que eu vivo.

E no álbum de 1988, Cuidado!, comentado pelos versos dirigidos ao presidente José

Sarney na canção O eleito, tem-se um diálogo cada vez maior com o samba, que também são

cantados com bastante freqüência nas canções. As mazelas políticas, econômicas e sociais

emergem novamente em inúmeros versos, que não abandonam o humor e o deboche.

Para finalizar algumas considerações podem ser feitas acerca da representação da

juventude feita por Lobão. Primeiro que esta juventude não se encontra alienada, tem uma

visão clara dos problemas sociais do país. Contudo não possui um olhar pessimista diante da

realidade verificada, mesmo quando a expõe sob a ótica da violência não abandona o humor e

58 Canção Glória (Junkie Bacana), álbum O rock errou, 1986.

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36

o deboche. Também ri de si mesmo, das suas dores pessoais. No momento de se divertir não

conhece limites, já que a vida por excelência é breve. As drogas são mencionadas neste

contexto de satisfação pessoal, de se atingir prazer, como atestam estes versos de Canos

Silenciosos, O rock Errou, 1986: Tá todo mundo/Se aplicando pra festa/Pra chegar na

festa/Bem aplicadinho/Movimento na esquina/Todo mundo entra/Todo mundo sai/Sexo,

drogas, rock’n’roll, adrenalina/Diversões eletrônicas/Num poderoso hi – fi/E a noite ta no

sangue de hoje... Ou nestes versos de Corações Psicodélicos, Ronaldo foi pra guerra, 1984,

que a intensidade do desejo pela garota amada é comparado com o vício das drogas: Eu quero

você inteira/Gosto muito do seu jeito/Qualquer nota bossa nova/Bossa nova qualquer nota/Eu

quero você na veia...

3.3 Trajetória artística do Cazuza

Agenor de Miranda Araújo Neto, nasceu em 4 de abril de 1958, no bairro de

Ipanema, zona sul carioca. O apelido é fruto de suas raízes nordestinas e foi dado pelos pais

antes mesmo de seu nascimento - o avô era dono de um engenho em Pernambuco -

("Cazuza", no Nordeste, significa "molequinho".) A primeira influência musical veio através

de sua mãe, a cantora Lucia Araújo, que chegaria a gravar uma canção ("Peito vazio", de

Cartola) para a trilha sonora de uma novela. Foi seu pai, no entanto, o grande responsável

pela entrada de Cazuza no meio artístico. Como presidente da gravadora Som Livre, João

Araújo recebia todos os dias em sua casa gente como Caetano, Gil, Gal, Elis Regina...

Em 1981, entrou para o curso de teatro de Perfeito Fortuna, idealizador do Circo

Voador, no Rio de Janeiro. Durante uma das apresentações, é procurado por Leo Jaime, que o

indica para ser o vocalista de um grupo de rock em formação, O Barão Vermelho. A banda

tinha, na sua formação inicial, Maurício Barros, nos teclados; Guto Goffi, bateria; Dé, baixo e

Roberto Frejat na guitarra. A identificação com o novo vocalista é imediata, e em pouco

tempo a parceria Frejat e Cazuza estava consolidada, sendo responsável por quase todas as

canções do grupo.

Em 1982, foi lançado Barão Vermelho, o primeiro álbum da banda. Apesar dos

elogios da crítica às letras de Cazuza, o grupo não emplacou, ficando abaixo da marca das

dez mil cópias vendidas. A situação começou a melhorar depois do lançamento do segundo

LP, Barão Vermelho 2 (1983), quando Ney Matogrosso gravou Pro Dia Nascer Feliz. As

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37

portas da mídia se abririam definitivamente depois do aval de Caetano Veloso, que incluiu no

seu repertório a canção Todo Amor que Houver Nessa Vida, de Cazuza e Frejat.

O ponto máximo na carreira do Barão viria a seguir e, com ele, a separação. O

compacto Bete Balanço, música tema do filme de Leal Rodrigues, explodiu nas rádios e

impulsionou as vendagens do novo LP, Maior Abandonado, lançado em 1984. Contudo,

dissensões internas acabaram configurando a separação de Cazuza do Barão. Os motivos para

isso residem no fato que os integrantes se encontravam cansados de serem apresentados como

"Cazuza e o Barão Vermelho". Frejat, Maurício, Guto e Dé propuseram, então a Cazuza um

plano de democratização: parcerias abertas e oportunidades para todos cantarem. A proposta

entrou em choque com o egocentrismo (confesso) de Cazuza, que há um tempo já pensava

em desenvolver um trabalho solo. Com a separação o Barão decidiu não chamar outro

vocalista, dividindo os vocais entre o grupo.

Para auxiliá-lo nas gravações de seu primeiro disco solo, Cazuza procura o tecladista

e arranjador Nico Rezende, que produz o LP ao lado de Ezequiel Neves. Acompanhando o

compositor, estão os músicos Rogério Meanda (guitarra), Nilo Romero (baixo), João

Rebouças (teclados) e Fernando de Moraes (bateria). Surgem novas parcerias, com o amigo

Lobão, Leoni (ex-Kid Abelha), Luiz (Saxofonista da banda de Caetano Veloso) e Rogério, o

guitarrista do grupo. O disco foi lançado em novembro de 1985, e a faixa título, Exagerado,

mais do que um hit, transformou-se na "marca registrada" de Cazuza, caracterizando a sua

preferência pelos temas ligados ao “amor desesperado”, à “dor de cotovelo” e à boemia.

Em decorrência da transferência de Cazuza da Som Livre para a Polygram, o álbum

solo Só se for a 2, apenas foi lançado em março de 1987, trazendo como novidade um

Cazuza (ainda mais) romântico.

Com o sucesso da faixa O nosso amor a gente inventa, Cazuza partiu para mais uma

experiência no cinema: compôs com Gilberto Gil, a música Um trem para as estrelas, de

Cacá Diegues. E assinou também a canção Brasil, tema principal do filme Rádio Pirata de

Leal Rodrigues (com quem já trabalhara em Bete Balanço).

O álbum Ideologia lançado em 1988 marcou o auge de sua trajetória artística,

repleto de grandes canções como Brasil, Faz Parte do Meu Show, Boas Novas e a faixa título.

Além desse álbum, neste mesmo ano foi gravado O tempo não pára ao vivo

Em 1989, tornou-se pública a sua luta contra a Aids, a qual havia sido descoberta em

abril de 1987. O álbum Burguesia também foi lançado neste ano.

Page 41: “geração coca-cola”: as representações da juventude e do seu

38

O cantor faleceu em 7 de julho de 1990, e no seu velório estiveram presentes Ney

Matogrosso, Frejat, Dé, Guto Goffi e Ezequiel Neves, entre muitos colegas e amigos.

Em 1991 o saiu, postumamente, o disco Por aí.

3.4 Questão da juventude e seu comportamento

Sua música é marcada principalmente por um grande romantismo. Não um

romantismo meloso, mas agudo feito dor, com toques existencialistas. A música de Cazuza

também se caracteriza em alguns momentos por matizes de protesto contra a situação de

impunidade e de corrupção que o país estava vivenciando. Além disso, assim como Lobão ele

propõe um diálogo com MPB, seja pela busca de sonoridade, seja pela temática que carrega

os velhos elementos da 'fossa' e da 'dor -de- cotovelo', dando-lhes novas roupagens, roqueira,

e concomitantemente leves toques de bossa nova são acrescentados.

Uma primeira consideração acerca das fontes deve ser feita. A revista Veja sempre

tratou de elogiar o trabalho de Cazuza. Contudo a partir de 1989, críticas pesadas passaram a

ganhar espaço neste periódico semanal. Em 1989 o cantor/compositor se encontrava

visivelmente muito debilitado pela Aids e enfrentou alguns problemas com o público em

shows no nordeste, contudo acreditamos estas críticas pesadas seriam apenas sintomas de uma

mal maior, de que o pop/rock estava dando sinais de desgaste. Para Ricardo ALEXANDRE:

“Após seis verões sonorizando a juventude brasileira, dominando o mercado e monopolizando

a mídia, só restava ao rock partir para a destruição”59. E o pop – rock, antiga “menina – dos –

olhos da indústria tornava-se um elemento incômodo, uma patota resmungona em tempos

bicudos. Sem a pelo popular, sem verdadeira revolução estética, o rock voltou a ser coisa de

‘roqueiro’, como era nos anos 70”.60

Em 1985 numa de suas publicações de dezembro a revista Veja tecia elogios para a

música de Cazuza dizendo:

À frente do grupo carioca Barão,nos palcos de danceterias e em 3 LPs, Cazuza afirmou-se como uma das mais gratas revelações do rock nacional. Em seu primeiro Lp solo após deixar o grupo, há três meses, Cazuza apura suas qualidades. Como cantor exibe voz mais madura e bem colocada. E, como letrista, volta a combinar o romantismo de Dolores Duran, ao espírito irreverente do rock (...) O melhor disco da safra para os entusiastas do rock nacional.61

59 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta... Pág. 324. 60 id. ibid. Pág. 335. 61 Rock Cazuza. Revista Veja, nº 902. Pág. 153. 18 dez, 1985.

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Nos anos de 1987 e 88, seus álbuns continuavam a ser muito bem vistos pela revista

Veja:

Em seu segundo LP solo, o ex – líder do grupo de rock Barão Vermelho aperfeiçoa as qualidades que esboçava em seu disco de estréia, há dois anos. Sua voz mostra-se limpa e bem colocada, e desta vez, faz de seu timbre rascante um recurso, não um modelo para todas as canções. Aos 27 anos, Cazuza firma-se como um dos bons letristas do rock nacional. Suas letras, que quase sempre tratam de amores dilacerados, se harmonizam tanto com o rock quanto com o funk, a balada e o blues62.

Crítica semelhante é vislumbrada nesta publicação de 1988, a qual acaba por

consagrar Cazuza como um dos principais representantes do gênero pop/rock do país:

Entre os roqueiros do país, Cazuza sempre foi o mais aberto a influências de todos os estilos da MPB, da moderna à tradicional. Em seu trabalho, a rebeldia característica do rock é incorporada mais às letras do que à música. M seu terceiro LP, ele mostra que esse caminho lhe permitiu um amadurecimento e a lapidação de um estilo, algo pouco comum num gênero em que o imediatismo é quase sempre a norma. Nas letras, ele continua a habitar seu universo com sonhos impossíveis, seres marginalizados e imagens de romantismo derramado ao estilo Dolores Duran que gosta de citar como influência. São letras quase sempre em tom confessional e bem construídas.(...) Sem abandonar o rock, seja na maneira de cantar, seja nos arranjos, Cazuza incorpora de maneira cada vez mais depurada os ritmos da MPB, o que enriquece sua música e a renova63.

Em 1989 ao comentar o lançamento do álbum duplo Burguesia a revista Veja deixa

de lado o contumaz tom elogioso e desfere algumas farpas:

O compositor Cazuza, que num dos maiores sucessos de sua carreira se definia como exagerado, exagerou ao realizar seu novo disco Burguesia(...). cazuza optou por lançar um álbum duplo, com vinte músicas, sem que tivesse na gaveta um repertório suficientemente inspirado para preencher dois LPs (...) Na maioria da s músicas, o compositor fala de seus temas de sempre – política, sexo, drogas e rock. A diferença é que desta vez Cazuza carrega mais nas tintas em seu estilo agressivo e recheado de ironia. A faixa-título, tentando voltar aos temas políticos de canções como Brasil e Ideologia, de seus LPs anteriores, contém versos que podem ser enquadrados entre os mais esquerdistas da história da música popular e contém frases como: Vamos dinamitar a

burguesia/Vamos pôr a burguesia na cadeia.64

Alguns comentários devem ser feitos em relação à citação acima retirada da Veja.

Definitivamente a qualidade de Burguesia quando comparado aos demais álbuns é bastante

inferior. Todavia, quando observada a citação em sua totalidade, percebe-se que a crítica

realizada pela revista Veja ultrapassa o disco e atinge as mazelas que são vistas como

inerentes ao gênero rock: confusões em shows, drogas, sexo praticado livremente, etc. Como

foi mencionado anteriormente, o ano de 1989 foi um ano conturbado para Cazuza, seja em

62 Revista Veja, nº 968. Pág. 132. 25 mar, 1987. 63 Bons LPs de Bethânia, Cazuza e Ira!Revista Veja.. Ano 20. nº 21. Pág. 127. 25 maio, 1988 64 Duelo Arretado. Revista Veja. Ano 22. nº 5. Pág. 66. 1º de fevereiro, 1989

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virtude da Aids, seja pelos comentários recebidos pela Veja. Abaixo fica evidente a intenção

de “pintar” o pop/rock com matizes depreciativas:

Shows conturbados, com provocações por parte do artista e reações violentas da platéia, não constituem novidade no mundo do rock. Já fazem parte da tradição do gênero as apresentações de Janis Joplin, que subia ao palco embriagada, e dos punks do conjunto Sex Pistols, que xingavam os fãs em pleno espetáculo e provocavam monumentais tumultos. Nas duas últimas semanas, durante uma excursão pelo nordeste com o show Ideologia, o cantor e compositor Cazuza confirmou essa tradição roqueira de maneira eloqüente. Com um ingrediente a mais: fato de estar com Aids e estabelecer uma relação dúbia – ao mesmo tempo que a nega, insinua que a aceita....65 Com relação a Cazuza, a última crítica ferina veio com uma reportagem com direito a

ocupar a capa da Revista Veja. Por meio de um título de grande impacto, Cazuza: Uma vítima

da Aids agoniza em praça pública, e da imagem de Cazuza cadavérico e poucos cabelos, a

publicação fez uma breve biografia do compositor/cantor e temas como drogas e

bissexualidade foram abordados. A revista também faz questão de mencionar problemas com

a polícia: “Cazuza foi detido oito vezes”66. Há lugar para depoimentos de familiares e amigos,

que o definem como um exagerado, como “garoto-problema”. A reportagem, também o

compara a grandes nomes da História da arte. Teria sido ele o típico representante um típico

representante de uma Juventude Transviada?. Esta foi a última imagem que a opinião pública

teve do artista.

O mundo de Cazuza está se acabando com estrondo e sem lamúrias. Primeiro ídolo popular a admitir que está com Aids, a letal síndrome da imunodeficiência adquirida, o roqueiro carioca nascido há 31 anos com o nome de Agenor de Miranda Araújo Neto definha um pouco a cada dia rumo ao fim inexorável. (...) O cantor fumava maconha, cheirava cocaína e usava heroína, embora seu vício mais sério sempre tenha sido o álcool, principalmente o uísque. Some-se a essas drogas todas uma vida sexual extremamente intensa, com parceiros e parceiras, e se tem um quadro da vida de Cazuza, dos caminhos que ele percorreu. A história das artes está repleto de drogados (do poeta inglês William Blake ao rolling stone Keith Richard),,, de alcoólatras (de Ernest Hemingway a William Falkner) e de promíscuos sexuais (de Marcel Proust a Jean Genet). O problema, nos anos 80 do século XX, é que a combinação desses fatores facilita a contaminação com o vírus da Aids.67

Também é emblemática, novamente, a intenção de desqualificar o rock como gênero

musical, quando se comenta sobre os álbuns de cazuza:

Com Ideologia, ele deu um salto na sua arte e entrou na terceira fase da sua carreira. Na primeira etapa, a dos três discos lançados pelo grupo Barão Vermelho entre 1982 e 1984, havia muito da tolice do rock brasileiro, com sua letras chinfrins e seu sonzinho barato. Mas no grupo já se destacavam as baladas, as canções românticas à maneira de Dolores Duran, compostas por Cazuza. Na segunda fase, já com o Barão dissolvido, ele aprofundou-se na trilha do rock romântico, com canções derramadas e inovadoras dos LPs Exagerado, de 1985, e Só se For a

65 ibid. 66 A luta em público contra a Aids. Revista Veja. Págs. 80-87(a revista estava sem capa). 26 abr, 1989. 67 ibid.

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Dois, de 1987. Com Ideologia, finalmente o compositor ficou mais melancólico, mais político, mais contundente – e captou como poucos um certo desencanto com o país.68

Chamam a atenção as seguintes idéias: “havia muito da tolice do rock brasileiro” e “já

com o Barão dissolvido”, e “Com Ideologia, finalmente o compositor ficou mais melancólico,

mais político, mais contundente”. Com relação à primeira das idéias, mais uma vez é latente o

desprezo da revista Veja para com o “rock brasileiro”, que é praticamente sinônimo de tolice,

devido às letras chinfrins e sonzinho barato. Ora, em diversas edições a Veja enalteceu os

trabalhos de legítimos representantes do pop/rock brasileiro, dentre eles, Legião Urbana, Titãs

Lobão, Ira!, Capital Inicial, etc. Entretanto, a revista sempre reiterava que determinada banda

ou compositor era a exceção diante da regra, que era dominada pelo rock cheio de humor e

dedicado “a descrever o dia-a-dia do universo dos jovens”. Indubitavelmente inúmeras bandas

de pop/rock enveredaram por estes caminhos e conseguiram vender números assombrosos de

discos, mas isso não deve ser usado com o intuito de desqualificar o gênero, ainda mais

quando no Brasil existiam muitos nomes empenhados em produzir bons trabalhos de

pop/rock. Não podemos nos olvidar de tecer comentários acerca da idéia “já com o Barão

dissolvido”. Como se sabe o Barão continuou existindo com a saída de Cazuza, tornando-se

uma das bandas mais representativas quando se pensa em “rock’n’roll, como não se usava

mais fazer” ao “encontrar um elo perdido entre o blues americano e as canções de dor-de-

cotovelo de Dolores Duran, entre os gritos hippie de Janis Joplin e o resmungo tosco dos

punks. A banda, liderada pela guitarra de Frejat, fazia a ponte entre os riffs herdados dos

Rolling Stones e a esperteza das esquinas cariocas”. Em 1989, era evidente a visão da Veja a

respeito do gênero:

O rock é, por definição, um gênero musical descartável. No Brasil, porém, essa característica é considerada excessivamente ao pé da letra. A maioria dos rocks serve para adolescentes e jovens dançarem nas festas e levarem as festas para casa nos discos. Depois de algumas semanas, os discos se tornam obsoletos.69

Provavelmente imbuída desta visão que a Veja foi capaz de, no remate da polêmica

reportagem sobre Cazuza (a qual já foi mencionada anteriormente), duvidar da perenidade da

obra de Cazuza e da qualidade de seus álbuns:

68 ibid. 69 Semana da guitarra. Revista Veja, Ano 22. nº 33. Págs. 131-132. 1º nov, 1989.

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Cazuza não é um gênio da música. É até discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no tempo presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena devido à força do destino: quando morreu de tuberculose, em 1937, Noel Rosa tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada menos que 213 músicas, dezenas delas que entraram pela eternidade afora. Cazuza não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade.70 Assim, Cazuza era definido pela Veja que em outras ocasiões tanto o elogiara. Por

outro lado, a revista Bizz enxergava em Cazuza “Uma voz rascante banhada de observadoras

madrugadas. (...) Um poeta exagerado e corajoso no meio de tanta pasmaceira pop

tupiniquim. (...) Um músico que bem acompanhado, passeia com desenvoltura pela cultura

diversa de seu universo geracional”71.

Nesse estudo acredita-se no potencial artístico de Cazuza, mas muito além disso sabe-

se que é possível vislumbrar neste cantor/compositor uma representação de juventude

oitentista.

Em Exagerado, de 1985, na canção que deu origem ao nome deste álbum, encontram-

se algumas das características dessa juventude e seu comportamento. É romântica sem ser

piegas. É dotada de sentimentos extremamente intensos, que podem impulsionar esta

juventude a largar “carreira, dinheiro, canudo”. Em outras palavras, é uma juventude que

sonha e que está disposta a lutar por seus sonhos, por mais que estes sonhos imponham trocas

e renúncias. “Por você eu largo tudo/Vou mendigar, roubar, matar/Até nas coisas mais

banais/Pra mim é tudo ou nunca mais/Exagerado/Jogado aos teus pés/Eu sou mesmo

exagerado/Adoro um amor inventado/Que por você eu largo tudo/Carreira, dinheiro,

canudo/Até nas coisas mais banais/Pra mim é tudo ou nunca mais/Gatinha de rua”.

Também é uma juventude que se encontra desconte com a situação do seu país, mas

que não acredita na política partidária e sente falta de uma ideologia para viver: Meu partido é

um coração partido/E as ilusões estão todas perdidas/Os meus sonhos foram todos

vendidos/Tão barato que eu não acredito/Eu nem acredito que aquele garoto que ia mudar o

mundo/(mudar o mundo)/Freqüenta as festas do Grand Monde/Meus heróis morreram de

overdose/Meus inimigos estão no poder/Ideologia/Eu quero uma pra viver/Ideologia/Eu quero

um para viver/O meu prazer/Agora é risco de vida/Meu sex and drugs não tem nenhum

rock’n’ roll. Estes versos da canção Ideologia, cujo álbum foi lançado com este mesmo nome

em 1988, refletem ainda uma tristeza imensa de quem sonhou e percebe que a realidade

70 A luta em público contra a Aids. Revista Veja. Págs. 80-87(a revista estava sem capa). 26 abr, 1989. 71 Revista Bizz,,nº 22. Pág. 18. nº 22 maio, 1987.

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encontra-se muito diferente daquilo que foi imaginado. Questiona toda a geração que deveria

mudar o mundo, imbuído da crença no poder jovem. Todavia percebe-se que a falta de um

projeto capaz de congregar forças para mudar a realidade. Nesse sentindo, retomando

AGUIAR “O desengajamento, a falta de um conflito maior do qual se beneficie (...) pode ser

a tônica da época num momento em que o país atravessa uma crise de credibilidade jamais

vista. (...) Partidos duvidosos, modelos falidos, falta de novas utopias são a marca do presente

no Brasil”72 dos anos 80. Além disso, esta juventude convive com novos problemas como a

questão da Aids, a qual acaba colocando em xeque o sexo livre e a relação com as drogas, no

caso as injetáveis.

Com relação à Aids, é necessário salientar que o vírus só foi isolado em 1983, e no

início era conhecida como “câncer gay”. Apenas quando a doença começou a avançar que a

sociedade se deu conta que ela vitimava não apenas “artistas promíscuos” e homossexuais,

mas “hemofílicos, mulheres fiéis a esposos soropositivos e os filhos delas”73. O primeiro

brasileiro famoso que morreu em decorrência da Aids foi o estilista Markito, aos 31 anos, em

junho de 1983. Cazuza ao expor que havia contraído a doença, passou a ser visto pela opinião

pública com um misto de curiosidade, admiração artística, piedade e interesse voyerístico. Por

outro lado, pode ser que o fato dele ter assumido a doença e mostrado em público todas as

suas conseqüências nefastas ao corpo humano, tenha feito a população, ou ao menos os fãs,

preocupar-se e, talvez, buscar meios de se proteger dela.

Outra canção interessante é Culpa de Estimação, do álbum Só se For a Dois de 1987,

pois ela fornece os seguintes elementos: a questão da sexualidade e a liberdade de manifestar

a sua individualidade. Nesta canção é evidente a opção pela bissexualidade: Por onde eu

ando/Levo ao meu lado/A minha namorada/Cheirosa e bem tratada/Não sei o nome dela/É

Eva ou Adão. A geração dos anos 80 se beneficiou da abertura,da transição para a

democracia, donde se tem uma maior liberdade para se expressar e que acabou sendo

garantida pela Constituição de 1988, a qual se preocupou m proteger as liberdades

individuais, tão desrespeitadas durante o regime militar. Por exemplo,o artigo 5º da

Constituição prevê nos parágrafos II, III e IX os seguintes direitos: Ninguém será obrigado a

fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; ninguém será submetido a

72 AGUIAR, Joaquim Alves de. Panorama da música popular brasileira: da bossa nova ao rock dos anos 80. Pág. 154. in: SCHWARTZ, Jorge e SOSNOWSKI, Saúl. orgs.. Brasil: o trânsito da memória. 73 ALEXANDRE, Ricardo. Dias de Luta... Pág. 299.

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tortura nem tratamento desumano ou degradante; é livre a expressão da atividade intelectual,

artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

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CONCLUSÃO

A primeira consideração a ser feita é que as bandas e cantores/compositores

emblemáticos no cenário musical, em termos de pop/rock nacional produzido nos anos de

1980, não apresentam uma representação unívoca de juventude e, por extensão de seu

comportamento. As razões para esta disparidade residem em muitos fatores, como por

exemplo a trajetória de vida de cada um destes “nomes”, que acabou repercutindo na

produção artística de cada um.

Com relação à nossa hipótese, foi possível constatar ao longo deste estudo que o rock,

assumiu na década de 1980 uma “roupagem” pop, no sentido de atingir as massas, ou seja, ser

consumível. E foi isto que acabou sendo feito ao se constatar que o jovem dos anos oitenta era

uma fatia do mercado praticamente inexplorada. Durante a década de 70 “Achava-se que

quem influenciava na compra de um tênis eram os pais. Ninguém acreditava no jovem como

consumidor potencial”74. Sem contar a necessidade que se configurou na década de 1980 de

se buscar música feita com baixo custo de produção, em decorrência da crise econômica que

vivia o país. A saída foi encontrada em bandas que compunham o próprio e dispensavam

arranjadores, orquestras e músicos convidados, constituindo-se, quase sempre, por três, quatro

ou cinco integrantes. Em outras palavras, verificou-se que produzir álbuns de pop/rock era

muito barato.

Diante desse quadro, o Rock in Rio, cuja primeira edição aconteceu em 1985, teve um

papel muito importante a medida que apresentou um imenso público jovem à nação e elevou o

pop brasileiro a outro nível de profissionalismo. Junto com o Rock in Rio diversos setores

descobriram o potencial de consumo que o jovem oitentista representava, e a partir daí se tem

uma enxurrada de bandas, programas e produtos sendo vendidos com uma “embalagem rock”.

A respeito do nosso objeto de análise, um ponto em comum entre as diferentes

representações da “juventude ointentista”, apontadas no decorrer deste trabalho, é o fato de

ser impossível veiculá-la à idéia desengajamento. Esta juventude, principalmente em 1987,

ano considerado como auge das mazelas políticas, econômica e sociais, perguntva-se “que

País É este”? À sua maneira fez a crítica da sociedade e apontou diversas contradições que

eram percebidas. Longe de ser mera “geração coca-cola”, novamente fazendo menção à

canção da Legião Urbana, que nos serviu de título para este trabalho, ao mesmo tempo que 74 Okky de Souza apud ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80. DBA, 2002. Pág. 113.

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esta juventude se viu beneficiada por determinadas políticas econômicas, que foram capazes

de lhes fornecer boas condições materiais para se consumir as maravilhas produzidas pela

indústria de bens de consumo, não se contentou apenas em gozar as benesses que a sua

posição social lhe proporcionava. Nas canções analisadas eram latentes o descontentamento

diante da situação econômica, política e social do país, e também a procura por respostas para

questões existenciais.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta-o rock e o Brasil dos anos 80. DBA, 2002. CÔRREA, Tupã Gomes. Rock, nos passos da moda: mídia, consumo x mercado. Campinas, SP: Papirus, 1989. CYNTRÃO, Sylvia Helena. org. A forma da festa -tropicalismo: explosão e seus estilhaços. DF.: Ed. Universidade de Brasília, 1999. DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz. São Paulo, Boitempo Editorial, 1999. FRITH, Simon and GOODWIN, A (eds.) On record; rock, pop and the written word. New York, Pantheon Books , 1990. HALL, Stuart and JEFFERSON, Tony (orgs). Resistance through rituals: youth subcultures in post - war Britain. London: Hutchinson, 1977. HEBDIGE, Dick. Subculture: the meaning of style. London: Methuen, 1979. LEITÃO, Sérgio Sá. Rock dos 80: Titãs, Barão e Ira. Folha de São Paulo. MUGGIATI, Roberto. Rock- o grito e o mito. Petrópolis: Vozes, 1973

NAPOLITANO, Marcos. História e música. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. PAIANO, Enor. Tropicalismo: bananas ao vento no coração do Brasil. SP: Scipione, 1996. SCHWARTZ, Jorge e SOSNOWSKI, Saúl. orgs.. Brasil: o trânsito da memória. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964 – 1985. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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FONTES

Letras

LEGIÃO URBANA Álbum: Legião Urbana (EMI, 1984) Geração coca-cola

Letra: Renato Russo Música: Renato Russo Quando nascemos fomos programados A receber o que vocês nos empurraram Com os enlatados dos USA, de 9 às 6. Desde pequenos nós comemos lixo Comercial e industrial Mas agora chegou nossa vez Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês. [refrão] Somos os filhos da revolução Somos burgueses sem religião Somos o futuro da nação Geração Coca-Cola. [I] Depois de vinte anos na escola Não é difícil aprender Todas as manhas do jogo sujo Não é assim que tem que ser? Vamos fazer nosso dever de casa E aí então, vocês vão ver Suas crianças derrubando reis Fazer comédia no cinema com as suas leis. [refrão] [solo de voz] [repete I] [refrão]

O reggae

Letra: Renato Russo Música: Renato Russo/Marcelo Bonfá Ainda me lembro aos três anos de idade O meu primeiro contato com as grades

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O meu primeiro dia na escola Como eu senti vontade de ir embora

Fazia tudo que eles quisessem Acreditava em tudo que eles me dissessem Me pediram para ter paciência Falhei Então gritaram: - Cresça e apareça! Cresci e apareci e não vi nada Aprendi o que era certo com a pessoa errada Assistia o jornal da TV E aprendi a roubar pra vencer Nada era como eu imaginava Nem as pessoas que eu tanto amava Mas e daí, se é mesmo assim Vou ver se tiro o melhor pra mim. [solo] Me ajuda se eu quiser Me faz o que eu pedir Não faz o que eu fizer Mas não me deixe aqui Ninguém me perguntou se eu estava pronto E eu fiquei completamente tonto Procurando descobrir a verdade No meio das mentiras da cidade Tentava ver o que existia de errado Quantas crianças Deus já tinha matado. Beberam meu sangue e não me deixam viver Tem o meu destino pronto e não me deixam escolher Vem falar de liberdade pra depois me prender Pedem identidade pra depois me bater Tiram todas minhas armas Como posso me defender? Vocês venceram esta batalha Quanto a guerra, Vamos ver.

A dança Letra: Renato Russo Música: Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá Não sei o que é direito Isso vejo preconceito

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E a sua roupa nova É só uma roupa nova Você não tem idéias Pra acompanhar a moda Tratando as meninas Como se fossem lixo Ou então espécie rara Só a você pertence Ou então espécie rara Que você não respeita Ou então espécie rara Que é isso um objeto Pra usar e jogar fora Depois de ter prazer. Você é tão moderno Se acha tão moderno Mas é igual a seus pais É só questão de idade Passando dessa fase Tanto fez e tanto faz. Você com as suas drogas E as suas teorias E a sua rebeldia E a sua solidão Vive com seus excessos Mas não tem mais dinheiro Pra comprar outra fuga Sair de casa então Então é outra festa É outra sexta-feira Que se dane o futuro Você tem a vida inteira Você é tão esperto Você esta tão certo Mas você nunca dançou Com ódio de verdade. Você é tão esperto Você esta tão certo Que você nunca vai errar

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Mas a vida deixa marcas Tenha cuidado Se um dia você dançar. [solo] Nós somos tão modernos Só não somos sinceros Nos escondemos mais e mais É só questão de idade Passando dessa fase Tanto fez e tanto faz Você é tão esperto Você esta tão certo Que você nunca vai errar Mas a vida deixa marcas Tenha cuidado Se um dia você dançar. Baader-meinhof blues Letra: Renato Russo Música: Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá A violência é tão fascinante E nossas vidas são tão normais E você passa de noite e sempre vê Apartamentos acessos Tudo parece ser tão real Mas você viu esse filme também. Andando nas ruas Pensei que podia ouvir Alguém me chamando Dizendo meu nome. Já estou cheio de me sentir vazio Meu corpo é quente e estou sentindo frio Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber Afinal, amar ao próximo é tão demode. Essa justiça desafinada É tão humana e tão errada Nós assistimos televisão também Qual é a diferença? Não estatize meus sentimentos Pra seu governo, O meu estado é independente.

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Petróleo do futuro Letra: Renato Russo Música: Dado Villa-Lobos/Renato Russo Ah, se eu soubesse lhe dizer o que eu sonhei ontem a noite Você ia querer me dizer tudo sobre o seu sonho também. E o que é que eu tenho a ver com isso? Ah, se eu soubesse lhe dizer o que eu vi ontem a noite Você ia querer ver mas não ia acreditar. E o que é que eu tenho a ver com isso? Filósofos suicidas Agricultores famintos Desaparecendo Embaixo dos arquivos Ah, se eu soubesse lhe dizer qual é a sua tribo Também saberia qual é a minha Mas você também não sabe E o que é que eu tenho a ver com isso? Sou brasileiro errado Vivendo em separado Contando os vencidos De todos os lados. [solo] Ah, se eu soubesse lhe dizer O que fazer pra todo mundo ficar junto Todo mundo já estava ha muito tempo E o que é que eu tenho a ver com isso? Filósofos suicidas Agricultores famintos Desaparecendo Embaixo dos arquivos Álbum: Que País é Este? (1987, EMI)

Tédio (com um T bem grande pra você) Letra: Renato Russo Música: Renato Russo Moramos na cidade, também o presidente E todos vão fingindo viver decentemente Só que eu não pretendo ser tão decadente não Tédio com um T bem grande pra você

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Andar a pé na chuva, as vezes eu me amarro Não tenho gasolina, também não tenho carro Também não tenho nada de interessante pra fazer Tédio com um T bem grande pra você Se eu não faço, nada fico satisfeito Eu durmo o dia inteiro e aí não é direito Porque quando escurece, só estou afim de aprontar Tédio com um T bem grande pra você.

Química Letra: Renato Russo Música: Renato Russo Estou trancado em casa e não posso sair Papai já disse, tenho que passar Nem música eu não posso mais ouvir E assim não posso nem me concentrar Não saco nada de Física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química Não posso nem tentar me divertir O tempo todo eu tenho que estudar Fico só pensando se vou conseguir Passar na porra do vestibular Não saco nada de Física Literatura ou Gramática Só gosto de Educação Sexual E eu odeio Química Chegou a nova leva de aprendizes Chegou a vez do nosso ritual E se você quiser entrar na tribo Aqui no nosso Belsen tropical Ter carro do ano, TV a cores, pagar imposto, ter pistolão Ter filho na escola, férias na Europa, conta bancária, comprar feijão Ser responsável, cristão convicto, cidadão modelo, burguês padrão Você tem que passar no vestibular.

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TITÃS Álbum: Cabeça Dinossauro (1986, WEA)

Estado violência Charles Gavin Sinto no meu corpo A dor que angustia A lei ao meu redor A lei que eu não queria Estado violência Estado hipocrisia A lei que não é minha A lei que eu não queria Meu corpo não é meu Meu coração é teu Atrás de portas frias O homem está só Homem em silêncio Homem na prisão Homem no escuro Futuro da nação Estado Violência Deixem-me querer Estado Violência Deixem-me pensar Estado Violência Deixem-me sentir Estado violência Deixem-me em paz. Homem primata (1986) Marcelo Fromer / Ciro Pessoa / Nando Reis / Sérgio Britto Desde os primórdios Até hoje em dia O homem ainda faz O que o macaco fazia Eu não trabalhava, eu não sabia Que o homem criava e também destruía Homem primata Capitalismo selvagem ô ô ô Eu aprendi A vida é um jogo Cada um por si E Deus contra todos Você vai morrer e não vai pro céu

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É bom aprender, a vida é cruel Homem primata Capitalismo selvagem ô ô ô Eu me perdi na selva de pedra Eu me perdi, eu me perdi. I'm a cave man A young man I fight with my hands With my hands I'm a jungle man, a monkey man Concrete jungle! Concrete jungle!

Família (1986) Tony Bellotto / Arnaldo Antunes

Família, família, Papai, mamãe, titia, Família, família, Almoça junto todo dia, Nunca perde essa mania. Mas quando a filha quer fugir de casa Precisa descolar um ganha-pão Filha de família se não casa Papai, mamãe, não dão nenhum tostão. Família ê Família á Família. Família, família, Vovô, vovó, sobrinha. Família, família, Janta junto todo dia, Nunca perde essa mania. Mas quando o nenê fica doente Procura uma farmácia de plantão O choro do nenê é estridente Assim não dá pra ver televisão. Família ê

Família á Família. Família, família, Cachorro, gato, galinha. Família, família, Vive junto todo dia, Nunca perde essa mania. A mãe morre de medo de barata

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O pai vive com medo de ladrão Jogaram inseticida pela casa Botaram um cadeado no portão. Família ê Família á Família.

Igreja (1986) Nando Reis

Eu não gosto de padre Eu não gosto de madre Eu não gosto de frei. Eu não gosto de bispo Eu não gosto de Cristo Eu não digo amém. Eu não monto presépio Eu não gosto do vigário Nem da missa das seis. Eu não gosto do terço Eu não gosto do berço De Jesus de Belém. Eu não gosto do papa Eu não creio na graça Do milagre de Deus. Eu não gosto da igreja Eu não entro na igreja Não tenho religião.

Polícia (1986) Tony Bellotto

Dizem que ela existe pra ajudar Dizem que ela existe pra proteger Eu sei que ela pode te parar Eu sei que ela pode te prender Polícia para quem precisa Polícia para quem precisa de polícia Dizem pra você obedecer Dizem pra você responder Dizem pra você cooperar Dizem pra você respeitar Polícia para quem precisa Polícia para quem precisa de polícia

Álbum: Jesus não tem dentes no país dos banguelas (1987, WEA)

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Comida Marcelo Fromer / Arnaldo Antunes / Sérgio Britto Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de que? Você tem fome de que? A gente não quer só comida, A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida, A gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida, A gente quer bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida, A gente quer a vida como a vida quer. Bebida é água. Comida é pasto. Você tem sede de que? Você tem fome de que? A gente não quer só comer, A gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer, A gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro, A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro, A gente quer inteiro e não pela metade. LOBÃO Álbum: Ronaldo foi pra guerra (1984, BMG) Corações Psicodélicos (Lobão - Júlio Barroso - Bernardo Vilhena) Ainda me lembro Daquele beijo Espanque punk violento Iluminando o céu cinzento Eu quero você inteira Gosto muito do seu jeito Qualquer nota bossa nova Bossa nova qualquer nota Eu quero você na veia E a vida passa na TV E o meu caso é com você Fico louco sem saber Sim pro sol Sim pra lua

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Eu quero você toda nua Sim pra tudo o que você quiser Gosto muito do seu jeito Rock'n' Roll meio nonsense Rock'n' RolI meio nonsense Pra acabar com essa inocência E o complexo de decência No meio do salão E a vida... Hoje é festa na floresta Toda a tribo ateia som Toda a taba ateia sol Só tomando água de coco Infeliz de quem tá triste No meio dessa confusão.

Álbum: O rock errou (1986, BMG) Glória (Junkie Bacana) (Lobão - Cazuza)

Meu caro vizinho, eu sou um cara legal Meu telefone é 4777 etc. e tal... Ontem à noite exagerei no barulho Eu peço que me desculpe Eu sei que é demais mijar na janela Chamando por Deus e gritando o nome dela Todo grande amor incomoda E o mundo inteiro tem que saber Ela errou, eu errei, então eu declarei guerra Paz na Terra só pra quem tem coragem Quem perde no amor sempre faz papel de covarde Faz bobagem, faz bobagem Meu caro vizinho, não me leve a mal Depois que eu fiquei sozinho dei pra beber Bem além do normal E a fazer coisas meio sem sentido, meio sem sentido E é desse jeito que eu tenho vivido Não leve a mal um cara assim tão a perigo E no mais um abraço, meu prezado amigo Canos Silenciosos (Lobão)

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Onda na madrugada Silêncio na batida Tá todo mundo Se aplicando para a festa Pra chegar na festa Bem aplicadinho Movimento na esquina Todo mundo entra Todo mundo sai Sexo, drogas, rock'n'roll, adrenalina Diversões eletrônicas Num poderoso hi-fi E a noite tá no sangue de hoje Deixa a noite rolar Canos silenciosos Nervosa calmaria Quando todo mundo pensava Que ia se divertir pra cá É bem aí que o pânico todo se inicia Correria na esquina Ninguém mais entra Ninguém mais sai Homens, fardas, cassetetes, camburões Abusando da lei com suas poderosas credenciais Álbum: Vida Bandida (1987, BMG) Vida Bandida (Lobão - Bernardo Vilhena) Chutou a cara do cara caído Traiu o seu melhor amigo Bateu, corrente, soco inglês e canivete O jornal não pára de mandar elogios na primeira página Sangue e porrada na madrugada Sangue e porrada na madrugada Vida vida vida Vida bandida É preciso viver malandro Não dá pra segurar A cana tá brava A vida tá dura Mas um tiro só não vai me derrubar Vida vida vida Vida bandida Correr com lágrimas nos olbos Não é definitivamente pra qualquer um Mas o riso corre fácil

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Quando a grana corre solta Vida vida vida Vida bandida Precisa ver o sorriso da mina Na subida da barra Aí é só de brincadeira Ainda não inventaram dinheiro Que eu não pudesse ganhar.

Vida Louca Vida (Lobão - Bernardo Vilhena) Se ninguém olha Quando você passa Você logo acha A vida voltou ao normal Aquela vida sem sentido Volta sem perigo A mesma vida tudo sempre igual Se alguém olha Quando você passa Você logo diz Palhaço Você acha que não está legal Perde logo a noção do perigo Todos os sentidos Você passa mal Vida louca vida Vida breve Já que eu tudo posso te levar Quero que você me leve Vida louca vida Vida imensa Ninguém vai nos perdoar Nosso crime não compensa Se ninguém olha Quando você passa Você logo acha Tô carente Sou manchete popular Me cansei de toda essa tolice Babaquice Essa eterna falta do que falar.

Álbum: Cuidado! (1988, BMG)

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O Eleito (Lobão - Bernardo Vilhena) Ele é esperto e persistente Acha que nasceu pra ser respeitado Ele é incerto e reticente Acha que nasceu pra ser venerado O palácio é o refúgio mais que perfeito Para os seus desejos mais que secretos Lá ele se imagina o eleito Sem nenhuma eleição por perto Ele é o esperto, ele é o perfeito Ele é o que dá certo, ele se acha o eleito Seus ternos são bem cortados Seus versos são bem escritos Seus gestos são mal estudados A sua pose é militarista Ele se acha o intocável Senhor de todas as cadeiras Derruba tudo pra ficar estável Ele não está aí para brincadeira E o tempo passa quase parado E eu aqui sem a menor paciência Contando as horas como se fossem trocados Como se fossem contas de uma penitência E tudo parece estar errado Mas nesse caso o erro deu certo Foi o que ele disse a o pé do rádio Com a honestidade pelo avesso CAZUZA Álbum: Exagerado (1985, Som Livre) Exagerado Leoni/ Cazuza/ Ezequiel Amor da minha vida Daqui até a eternidade Nossos destinos foram traçados Na maternidade Paixão cruel, desenfreada Te trago mil rosas roubadas Pra desculpar minhas mentiras Minhas mancadas Exagerado Jogado aos teus pés Eu sou mesmo exagerado

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Adoro um amor inventado Eu nunca mais vou respirar Se você não me notar Eu posso até morrer de fome Se você não me amar Por você eu largo tudo Vou mendigar, roubar, matar Até nas coisas mais banais Pra mim é tudo ou nunca mais Exagerado Jogado aos teus pés Eu sou mesmo exagerado Adoro um amor inventado Que por você eu largo tudo Carreira, dinheiro, canudo Até nas coisas mais banais Pra mim é tudo ou nunca mais Gatinha de rua Álbum: Só se for a dois (1987, Polygram) Culpa de estimação Frejat/ Cazuza Por onde eu ando Levo ao meu lado A minha namorada Cheirosa e bem tratada Não sei se o nome dela É Eva ou Adão É religiosa por formação A minha culpa de estimação Se alguém me ama Ela diz que não Se nem me notam Ela diz: "Por que não?" É a minha companheira inseparável Sua fidelidade é incomparável E me perdoa por não ter razão A minha culpa de estimação E me aceita o pior dos tarados Um ser mesquinho tropeçando no nada Guarda segredo e diz que não é chantagem Que ninguém vai saber das minhas bobagens Me dá um calmante e diz que é pra eu ser bom A minha culpa de estimação (Ela é de estimação)

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Álbum: Ideologia (1988, Polygram) Ideologia

Frejat/ Cazuza Meu partido É um coração partido E as ilusões estão todas perdidas Os meus sonhos foram todos vendidos Tão barato que eu nem acredito Eu nem acredito Que aquele garoto que ia mudar o mundo (Mudar o mundo) Frequenta agora as festas do "Grand Monde" Meus heróis morreram de overdose Meus inimigos estão no poder Ideologia Eu quero uma pra viver Ideologia Eu quero uma pra viver O meu prazer Agora é risco de vida Meu sex and drugs não tem nenhum rock 'n' roll Eu vou pagar a conta do analista Pra nunca mais ter que saber quem sou eu Pois aquele garoto que ia mudar o mundo (Mudar o mundo) Agora assiste a tudo em cima do muro Meus heróis morreram de overdose Meus inimigos estão no poder Ideologia Eu quero uma pra viver Ideologia Eu quero uma pra viver

Periódicos Revista Veja. Nº 864. 27 março, 1985 Revista Veja. Nº 870. 8 maio, 1985. Revista Veja. nº 891Págs. 2 out, 1985. Revista Veja, nº 902. 18 dez, 1985 Revista Veja. Nº 928. 18 jun, 1986. Revista Veja. Nº ?. 27 jan, 1987

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Revista Veja, nº 968. 25 mar, 1987 Revista Veja.. Ano 20. nº 21. 25 maio, 1988 Revista Veja. Ano 20. nº 32. 10 ago, 1988 Revista Veja. Ano 22. nº 5. 1º de fevereiro, 1989 Revista Veja. (a revista estava sem capa). 26 abr, 1989 Revista Veja, Ano 22. nº 33.. 1º nov, 1989. Revista Show Bizz de 1985-1989.