geografia polÍticamschebly.tripod.com/geografia.doc · web viewa família é, essencialmente, uma...

241

Click here to load reader

Upload: ledat

Post on 20-Apr-2018

287 views

Category:

Documents


29 download

TRANSCRIPT

GEOGRAFIA POLTICA

PAGE

118

A geografia ainda importa

"A globalizao no diminuiu a importncia econmica da localizao".

Por John Kay

Somos informados repetidamente que a geografia j no relevante para a economia no sculo XXI. E a evidncia da globalizao est completamente ao nosso redor. A McDonald's est em toda a parte e as multinacionais fabricam seus produtos a partir das localidades mais baratas. A Internet criou uma nica comunidade mundial de informao.

E, mesmo assim, a geografia continua muito importante. Sua maior influncia em nosso estilo de vida ainda est no local de nascimento. Os nascidos na Europa ocidental desfrutam o mais alto padro material de vida da histria humana. A maioria das pessoas na frica subsaariana e no subcontinente indiano tm uma expectativa de vida bem menor, em meio a uma pobreza opressora.

A nica coisa to importante quanto lugar em que nascemos o lugar em que vivemos. Imigrantes que se estabeleceram em pases pobres geralmente gozam padres to altos quanto os que teriam em seus pases de origem. De outra forma, no teriam partido. Imigrantes que foram para economias ricas geralmente mantm um padro de vida que representa um misto do padro de seu pas de origem com o de seu pas adotivo. Alemes nos EUA tm rendimentos no nvel dos rendimentos da Alemanha ou dos EUA. Haitianos na Amrica ganham mais do que ganhariam no Haiti, porm recebem menos do que o americano mdio.

E a globalizao no significa que a localizao do produto no importante, s que ela interessa de outra maneira. Antigamente, a maioria do que consumamos era produzido prximo do lugar em que vivamos. Isso j no assim, mas o local de fabricao no nem um pouco arbitrrio. Mquinas fotogrficas vem do Japo, gravatas chegam da Itlia, software procede dos EUA. E isso no se deve atividade de qualquer uma dessas empresas nesses setores. H fabricantes japonesas de mquinas fotogrficas, muitas fabricantes de gravatas na Itlia e muitas empresas de software nos EUA.

Mas as razes pelas quais esses locais esto associados quelas atividades em particular no so bvias. A lgica dos velhos padres de comrcio internacional era mais clara. As diferenas climticas e de terreno explicavam por que o acar veio de Barbados e no da Blgica, porque o petrleo veio da Arbia Saudita e no da Sua. Mas o clima e o terreno no so responsveis pela aglomerao das fabricantes de gravatas em torno do lago Como ou das fabricantes de software no Vale do Silcio.

A geografia importa, pois mesmo que a distribuio de recursos naturais j no tenha uma importncia determinante, a distribuio dos recursos fabricados pelo homem ainda mantm essa importncia. Acima de tudo, a distribuio de capital impulsiona tanto os padres de vida pessoais quanto a localizao do negcio. No se trata s do capital fsico, mas tambm de capital de capital humano e capital social (infra-estrutura poltica e legal e a cultura dos relacionamentos pessoais em cujo mbito os negcios so celebrados). E a distribuio desse capital to desigual quanto o foi a distribuio de recursos naturais durante a Revoluo Industrial.

Ainda assim, a distribuio de capital, especialmente o capital fsico, no determinado pela natureza, mas pelo homem. Com a liberdade de movimento do capital, seus donos podem alocar o capital aonde quiserem, sem nenhuma considerao por questes patriticas ou nacionalistas. Da se explica porque as diferenas em capital social so to cruciais. Em um mundo globalizado, em que o capital se movimenta livremente e em que as pessoas se locomovem com crescente liberdade, s o capital social se mantm ligado a lugares especficos.

Essas diferenas em instituies constituem a principal influncia sobre diferenas em padres de vida. E as diferenas em instituies sociais tambm explicam a localizao daquilo que de outra forma poderia aparentar ser produo sem razes. Habilidades e conhecimentos implcitos so desenvolvidos pelas pessoas em lugares em que elas trocam idias entre si diria e casualmente. Relaes de produo flexvel so baseadas em relaes pessoais.

Portanto, a geografia continua a ser relevante e, sendo a geografia relevante, a histria tambm o . No nenhum acidente que a fabricao de gravatas est centrada na Itlia, que a produo de software est situada nos EUA e que os servios financeiros so fortes na Inglaterra. Essas aptides remontam a elementos especficos da histria social e econmica dos respectivos pases o florescimento das habilidades em desenho na Itlia durante a Renascena, o desenvolvimento pioneiro de uma grande base instalada de computadores nos EUA, o papel essencial dos comerciantes ingleses ao desenvolvimento das economias mercantis.

um acidente que essas atividades esto situadas mais especificamente perto do lago Como, no Vale do Silcio e entre Holborn e Aldgate. Mas tais acidentes da histria no so facilmente reversveis. Como j foi demonstrado pela evoluo do setor de bancos de investimentos em Londres na ltima dcada, a identidade dos participantes pode variar, mas a localizao da atividade no muda. Enquanto a cultura for importante, a histria e a geografia tambm sero.

John Kay colunista do "Financial Time".

Fim dos blocos permite uma nova ordem tica

Jacques Lvi

Instituies como Anistia Internacional e Naes Unidas ganham nova dimenso

O mundo no uma sociedade. Talvez esteja se transformando em uma. Para compreender essa hiptese preciso renunciar a uma viso simplista do estado do planeta. Existem quatro grandes modelos, que correspondem a quatro maneiras pelas quais os homens estabelecem relaes. So tambm quatro abordagens do espao mundial freqentemente ignoradas, pois cada pesquisador, cada disciplina escolhe uma em detrimento das outras. Proponho reuni-las pela sua integrao no sistema-mundo, que leva em considerao as importantes perturbaes que estamos vivendo.

O primeiro modelo, o mundo como conjunto de mundos, um planeta feito de grupos humanos que se ignoram, que se encontram por acaso e no se comunicam entre si. Essa situao, herdada do perodo paleoltico, sobrevive no interior daquilo que chamamos de "reas culturais".

O segundo modelo, o mundo como campo de foras, o modelo geopoltico freqentemente usado na anlise das relaes internacionais. Ele se centra sobre o Estado nacional, que seu ator e mecanismo. Cada Estado possui sua viso do espao mundial, em oposio dos outros. O ajuste permanente dos limites entre Estados regulado por relaes de fora e produz sempre a violncia.

O terceiro, o mundo como rede hierarquizada, resultado da unificao do mundo pelos europeus. Esse modelo define centros (Amrica do Norte, Europa, sia) e periferias. As trocas no interior dessa rede no so apenas econmicas, mas envolvem o conjunto dos fenmenos do desenvolvimento. Contrariamente ao sistema interestatal uma rede, um espao no-territorial, onde apenas contam as intersees entre os pontos, como nos casos das empresas multinacionais ou das "networks" audiovisuais. Nessa rede as hierarquias so bastante diferentes daquelas dos Estados: a Sua e a Sucia esto melhor colocadas que URSS e China.

O quarto, o mundo como sociedade, est apenas no incio. Existem cada vez mais problemas mundiais: meio ambiente, Aids, dvida etc. Esses problemas comeam a ser abordados graas ao aparecimento de uma opinio pblica mundial, de "partidos" (Anistia Internacional e o papa so exemplos disso) e de instituies mundiais (ONU, Grupo dos Sete). Esse modelo se realiza pela integrao do conjunto do planeta numa sociedade unificada em sua economia e em sua vida poltica e social e sua cultura.

Esses quatro modelos funcionam simultaneamente: o mundo , em suma, um sistema de sistemas contraditrios. Alguns surgem e outros somem, mas nenhum at agora conseguiu eliminar o outro. A tendncia se dirige a uma circulao do primeiro modelo para o quarto. O aparecimento dos Estados (segundo modelo) em parte bloqueado pelo processo de reagrupamento, mas a unificao do mundo pelas trocas (terceiro) termina por perturbar a ordem territorial e encontrar um lugar determinante. O ltimo modelo, que De Gaulle menosprezava (ele tratava a ONU como uma "coisa"), experimenta, depois de um incio lento aps a Segunda Guerra Mundial, um crescimento significativo.

No se pode dar uma imagem linear a esse processo. Todos os retrocessos so possveis. O "clube" dos Estados existentes constri o espao, testemunha o destino infeliz do Tratado de Svres (1920) e a resistncia vitoriosa da Turquia ao projeto da Grande Armnia e do Estado curdo. A expanso das fronteiras tambm no caminha sozinha, como assim demonstra o tortuoso caminho da construo de uma comunidade europia. O Estado resiste bem em seu terreno, o da territorialidade. uma lgica no-territorial, a do terceiro modelo, que parece melhor subverter esse Estado, mas lado a lado com ele. Enfim, difcil interpretar as dinmicas em processo. Entre a "geoeconomia" uniformizante das multinacionais da comunicao e o aparecimento de uma cultura que realmente possa ser unida, no fcil dizer para onde caminhamos, sobretudo quando se trata de sinais precursores e no de efeitos em massa. Diga-se apenas que a problemtica "sociedade-mundo" deixou de pertencer ao mundo das utopias nebulosas e das ideologias extravagantes.

Uma ateno particular deve ser dada ao que se pode chamar de semiperiferias. Trata-se de um conjunto de pases, que vai da Argentina URSS, passando pelo mundo rabe-muulmano, que desfruta de um nvel de desenvolvimento mdio e que se encontra diante de uma escolha estratgica essencial: fundir-se ao sistema mundial com o risco de perder sua identidade, ou se isolar, com o risco de deter seu desenvolvimento. Quando se escolhe a segunda opo, uma ideologia poderosa, religiosa, nacionalista ou messinica, e um Estado autoritrio e um Exrcito slido podem durante um certo tempo dar a iluso de que essa escolha a correta.

Uma viso simplista das recentes perturbaes consistiria em falar de uma vitria da economia sobre a poltica, o que duplamente inexato. Primeiro, porque a geopoltica funciona em oposio poltica, pela violncia e no pela conquista pacfica de legitimidade. A URSS e a Europa oriental no esto abolindo a poltica, mas inventando-a. Tambm no correto interpretar a existncia de uma rede de centros e de periferias como um fenmeno estritamente econmico.

A internacionalizao das trocas de mercadorias e dos fluxos financeiros, a constituio de sociedades transnacionais no planeta definem um campo de ao ilimitado. No entanto, o contedo dessa ao est sujeito a severas restries. Uma empresa procura no "dominar o mundo", mas se aproveitar dele, o que conduz, de modo pragmtico, a desenhar o mapa do desenvolvimento.

Esse mapa se faz em diversas escalas e as empresas multinacionais devem levar em considerao os nveis de autonomia regional ou local, com os quais se arriscam a entrar em confronto. Assim, comea-se a compreender que o sistema de encaixe das escalas do maior ao menor , usado como referncia implcita, se revela inadequado. Cada nvel, do local ao mundial, dispe de uma fora que lhe permite existir frente aos demais, por pequena que seja. O nvel planetrio no se torna o cume da pirmide, mas o elo de uma cadeia de poderes na qual o indivduo ser a pea essencial.

A crise do Golfo marca a volta da geopoltica e dos particularismos tnicos? Isso no to evidente, j que a novidade da configurao atual est em outro lugar. O fim do conflito Leste-Oeste oferece pela primeira vez a ocasio de uma legitimidade tica em escala mundial. Os cidados do planeta podem agora avaliar, atravs de escalas morais comparveis, os comportamentos dos atores.

Os interesses srdidos e as incompreenses coletivas continuam a existir sob declaraes generosas, mas essas hipocrisias so cada vez menos aceitas. O "dois pesos, duas medidas" para o Kuait e para a Palestina no to facilmente aceito quanto a troca de um comunista chileno por um dissidente sovitico, quando se comemorou a vitria do cinismo. evidente que o Estado de Direito internacional no uma realidade, mas pelo menos j se tornou um horizonte. Quando se fala sobre ele, a opinio pblica internacional no d mais de ombros, mas responde: "Promessas".

A evoluo para uma sociedade-mundo no inevitvel. Os movimentos so desordenados, as resistncias poderosas, as catstrofes sempre possveis. Mas o nvel mundial conquista progressivamente sua autonomia. A constituio de uma sociedade-mundo provvel, no por ser a melhor, mas porque ela a soluo mais econmica para se tratar dos problemas mundiais.

JACQUES LVI gegrafo, encarregado de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Cientfica da Frana

O sculo XX

Marc Nouschi

[...] um sculo marcado por duas guerras mundiais que rebentam com vinte anos de intervalo. Nunca a humanidade conheceu em toda a sua histria, num prazo to curto, semelhante hemorragia: 70 milhes de mortos, aos quais se juntam as dezenas de milhes de russos e de chineses desaparecidos nos campos de cativeiro e de reeducao ideolgica. Desde logo, para caracterizar a eliminao sistemtica de um povo ou de uma etnia por ordem do Estado, preciso criar novos conceitos: o genocdio e o etnocdio so os filhos do sculo. Do genocdio armnio, cometido pelos Turcos em 1915, ao etnocdio que ensangenta o Ruanda em 1994 e "purificao tnica" levada a cabo na Bsnia, a loucura do homem parece no ter limites e as lies de Auschwitz parecem j ter sido esquecidas.

O sculo XX, o ltimo sculo do segundo milnio, percorrido por ideologias: o leninismo, o fascismo, o nazismo, o estalinismo, o maosmo... que aspiraram todas ao domnio universal. Modelar o homem para construir uma "cidade" ideal, brilhar para dominar, publicar para convencer, eliminar para reinar, so alguns dos expedientes que animam essas escatologias. Esperanas que se tornaram experincias, essas ideologias mobilizam massas conduzidas por chefes de partido que se apoiam em estruturas de Estado. Na verdade, a substncia que alimenta a ideologia de dominao o Estado com o seu territrio e a sua fronteira santificados, a sua bandeira e o seu exrcito exaltados, as suas foras de vigilncia e de doutrinamento reforados, o seu chefe adorado. Neste sentido, cumpre-se o movimento aberto dois sculos mais cedo com a Revoluo Francesa e a inveno do Estado-nao. Mas, a diferena capital relativamente s ideologias do [p. 09] sculo XIX, as da actualidade dispem de capacidades tecnolgicas que podem reduzir o homem ao estado de cinzas e poeira.

O sculo XX leva ao extremo a dinmica de acumulao prpria do capitalismo: a acumulao de bens imateriais acelera-se, uma vez que de 1890 a 1910 so inventariadas 19 descobertas fundamentais, de 1910 a 1930 umas trinta e outras tantas desde essa altura. A dinmica das invenes condiciona a inovao, fator de crescimento aparentemente sem limites dos bens de produo e de consumo. Uma vez satisfeitas as suas primordiais, o homem, dispondo de um instrumento produtivo cada vez mais aperfeioado, pode possuir "bens durveis" ( automveis, produtos "brancos" ou aparelhos electrodomsticos, produtos "castanhos" ou aparelhos radioelctricos e electrnicos... ( possuir a sua habitao... Tudo contribui para a civilizao material da abundncia, do crdito ao consumo, da publicidade, da instaurao dos lucros de transferncia que ligam o salrio do trabalho e do capital. Essa capacidade de satisfazer o desejo de posse d uma tal fora ao liberalismo que ele impe-se no decurso da dcada de 80 contra o socialismo estalino-brejneviano, culpado de ter instaurado a penria generalizada.

Apesar dos seus xitos materiais, que dizem respeito a um nmero cada vez mais importante de povos, o triunfo do mercado no exclui a permanncia da tentao mstica, definida em 1927 por Romain Rolland como uma "sensao religiosa completamente diferente das religies propriamente ditas". Desde sempre o homem se interrogou sobre o indizvel, sobre os segredos da vida, e da morte. O sculo XX no anula essa constncia. Entretanto, nestas ltimas dcadas, o misticismo invadiu o mundo: aos tele-evangelistas que seduzem cada vez mais americanos, faz eco a mstica muulmana que reveste duas facetas, a procura individual de Deus e a disciplina colectiva da guerra santa, o Djihad. Os sucessos de charlates que vendem talisms, o desenvolvimento da astrologia e do ocultismo mostram a necessidade de crenas nas sociedades contemporneas. Existem vrias explicaes para este regresso em fora s prticas msticas individuais e colectivas: o desabar das grandes ideologias materialistas, a incapacidade do mercado em preencher o vazio assim criado, o medo do milenarismo, o regresso dos grandes flagelos de outrora, a vontade de se distanciar das Igrejas oficiais...

A prpria cincia tambm posta em causa: "Passamos de uma sociedade que adorava as certezas e o domnio total do mundo", afirma o Prmio Nobel de Qumica, Ilya Prigogine, "a uma sociedade que se centra na condio humana, que a condio de incerteza." O misticismo triunfante alimenta, ento, duas atitudes contraditrias: a intolerncia e a interrogao crtica.

[...]

Para delimitar um sculo, podemos escolher: adotar o tempo dos astrnomos e decretar que o sculo XX, que comeou a 1 de janeiro de 1900, acabar a 31 de Dezembro de 1999*; ou tomar o partido do historiador espreita das viagens e das rupturas que testemunham profundas mudanas. Os sculos nunca comeam nem acabam em data fixa e previsvel, visto que os acontecimentos conservados por uns e outros esto sujeitos a debates contraditrios. Contudo, uma evidncia: nas crises e desordens que os sculos desabam e novos sculos nascem. A crise do Antigo Regime no abre o tempo das revolues que inflamam o sculo XIX? Depois de 1890, as rivalidades imperialistas, acentuadas pelo declnio britnico, no exprimem a nova hierarquia mundial anunciadora do sculo XX em formao? a Amrica que tem lugar a organizao cientfica do trabalho, na origem das mutaes contemporneas. A Europa aparece, j ento, como o "velho" continente, ao passo que os mundos extra-europeus se autonomizam. Como anteriormente, os intelectuais, os cientistas, os artistas de sensibilidade exacerbada registram estas modificaes e antecipam o mundo "novo". Alis, nunca os adjetivos "novo", "jovem", "moderno"... foram to utilizados para marcar uma ruptura com o passado. Tudo reformulado nos vinte anos que precedem a Grande Guerra, a cincia com a mecnica quntica, a msica com a gama atonal, a pintura com o cubismo, a literatura com o decadentismo e o hermetismo. O papel da mulher evolui com o movimento feminino que reclama o direito de votar, a democracia aprofunda-se com a instaurao da cabina de voto... Estas alteraes atestam o final de um mundo e o nascimento de outro; o sculo XX comea bem antes da Grande Guerra e acaba progressivamente aps as dcadas 70-80, sem que demos conta disso.

Introduo pesquisa geogrfica

A Pesquisa Geogrfica em seu Conjunto

Prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho

Introduo

Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo estudante de graduao em geografia, e mesmo pelo gegrafo principalmente, a de visualizar a pesquisa geogrfica em sua totalidade. Esta falta de um quadro integral de pesquisa em geografia pode ser atribuda a vrios fatores, entre os quais podem ser citados a prpria complexidade e a abrangncia desse campo de estudos, alm da pluralidade de abordagens enfoques e tericos, temticos, metodolgicos e preliminar, e absolutamente necessria ao sucesso da pesquisa, o principal risco que o gegrafo e, sobretudo, o aprendiz de gegrafo correm o de um design incompleto ou equivocado do projeto de pesquisa em seu todo.

Seria possvel, dadas as dificuldades acima apontadas e muitas outras mais, estabelecer algumas direes bsicas para a realizao da pesquisa geogrfica, na atualidade?

O que se pretende, no presente texto, desenvolver algumas reflexes no sentido de se procurar uma resposta exploratria para essa questo. Sero considerados aqui, portanto, aqueles aspectos que, sem prejuzo de vrios outros, parecem estar presentes na maior parte das pesquisas que vm sendo realizadas pelos gegrafos nas ltimas dcadas.

O que pesquisar e porque?

Antes de comear trabalho de pesquisa, indispensvel, em uma fase preliminar escolher os temas, ou o tema, identificar os objetos que se pretende alcanar, caracterizar a rea, regio, ou espao de estudo e fazer um balano dos meios e recursos disponveis.

Na escolha do tema de pesquisa, dois princpios no podem ser esquecidos: em primeiro lugar, indispensvel que o pesquisador tenha interesse pessoal na temtica a ser estudada; em segundo lugar, igualmente necessrio que o assunto objeto da pesquisa, por mais especfico que possa parecer, esteja relacionado a alguma rea ou tendncia maiores da investigao geogrfica. Isto far com que o trabalho, mesmo modesto, se insira em alguma das grandes correntes da geografia contempornea e, assim, possa atrair no apenas o interesse imediato daqueles que utilizaro os resultados da pesquisa para a soluo de problemas concretos mas, tambm, de um contingente maior de gegrafos e outros acadmicos e intelectuais.

Isto quer dizer que no tm sentido, se que tiveram algum dia, as pesquisas isoladas, sobre temas isolados: os critrios atuais devem ser, de um lado, a aplicabilidade da investigao e, do outro, sua incluso nas tendncias e na evoluo de significado mais geral.

Esses critrios que a princpio, parecem claros e simples, trazem, na verdade, pesadas exigncias, a maior das quais sendo a de que o pesquisador possua uma viso, to ampla e acurada quanto possvel, do seu campo de estudo, alm de um leque bastante largo de suas possibilidades de aplicao.

Se, do ponto de vista das possibilidades de aplicao de uma determinada pesquisa, parte considervel das alternativas fornecida pela conjuntura atual de um meio ambiente e de uma sociedade humana em permanente transformao, do ponto de vista do campo geral de interesse cientfico e tecnolgico, essas alternativas resultam de conhecimentos bsicos acerca da disciplina universitria em questo e do monitoramento continuado das principais tendncias epistemolgicas e tecnolgicas contemporneas. Neste ltimo caso, as teorias e modelos desempenham um papel primordial.

Teorias, modelos e pesquisa

Por muito tempo, uma parte importante da comunidade dos gegrafos via a geografia como uma atividade intelectual essencialmente emprica e descritiva, ou seja, voltada para a observao e a representao de fatos concretos, distribudos na superfcie terrestre.

Embora sua contribuio tenha sido e continue a ser fundamental para a Geografia (pois tem a ver com as suas origens gregas dessa atividade), esta perspectiva, quando dominante e excludente, teve algumas conseqncias negativas. Uma delas foi o distanciamento (provisrio) da geografia em relao a certas cincias de ponta, que descobriam bem mais cedo o papel crucial representado pelo embasamento epistemolgico. Neste contexto, claro que a reflexo abstrata, manifestada atravs da busca e do uso de modelos e teorias, tambm se viu, durante muitos anos, rejeitada por esses gegrafos do emprico.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, a partir dos anos sessenta, essa postura limitativa foi ficando cada vez mais indefensvel. J no era mais possvel ignorar teorias e modelos, at porque, mesmo nas pesquisas geogrficas que eram vistas como puramente empricas, a presena implcita de modelos e teorias era inevitvel.

"Nesse sentido, o gegrafo David HARVEY (1969, p. 3) dizia que uma das definies adequadas para esse campo do conhecimento que a geografia seria que ela" se interessa pela descrio e explicao da diferenciao de reas da superfcie terrestre ". Ainda nesta obra, HARVEY continua:" A busca de explicao (...) a busca de teoria. O desenvolvimento da teoria est no corao de toda explicao e muitos autores duvidam de que a observao e a descrio possam existir sem teoria."

As discusses sobre o significado dos temos teoria e modelo para a atividade cientfica, em geral, e para a geografia, em particular, tem sido numerosas e longas. Uma das abordagens mais interessantes sobre o papel das teorias e modelos na cincia e, dentro dela, na geografia, foi feita por JOHNSTON (1983, p. 24).

"A cincia um processo cumulativo (...), atravs do qual adquire-se conhecimento de maneira estruturada, de modo que qualquer contribuio adicional aumenta a compreenso que os cientistas tem do mundo. Ela comea com teorias e termina com elas. A finalidade ampliar as teorias existentes, incorporando-se a elas as descobertas da ltima rodada de pesquisas e as leis recm-estabelecidas. Na medida em que a cincia se desenvolve, o mesmo ocorre com seu corpo de teorias. (...) Todo pensamento guiado teoreticamente, mesmo que, freqentemente, por uma teoria que pode ser frgil. Por essa razo que o empirismo puro impossvel. (...) Os cientistas so preparados dentro dos processos da pesquisa cientfica e da substancia das disciplinas. Os conhecimentos e metodologias de pesquisa que eles aprendem estruturam as maneiras pelas quais eles identificam e enfrentam novos problemas."

Os filsofos atribuem, de um lado, um importante papel as idias teorias, mas, de outro lado, estiveram sempre entre aquelas que, mais cedo e mais fortemente, chamaram a ateno para os riscos que elas trazem em si mesmas. A esse respeito, assim se expressa C. BERNARD, citado em LALANDE (1926, 1993, p. 1128).

"A teoria a hiptese verificada depois de Ter sido submetida ao controle do raciocnio e da crtica experimenta... Mas uma teoria, para permanecer boa, deve sempre modificar-se como os progressos da cincia e permanecer constantemente submetida verificao e a crtica dos fatos novos que aparecem. Se considerssemos uma teoria como perfeita e deixssemos de verificar pela experincia cientfica, ela tornar-se-ia uma doutrina".

Para os gegrafos que se tem atualizado e acompanhado os ltimos desdobramentos da evoluo da geografia, a

" teoria corresponde a uma problemtica, (constituindo-se) em um conjunto coerente de enunciados, tendo por objetivo representar uma realidade geogrfica geral quanto possvel. Ela se compe de postulados e hipteses que se submeteram, com sucesso, a prova dos fatos, de hipteses menos fortemente testadas e, tambm, de hipteses novas que esperam a confrontao com a observao. O projeto da teoria explicar. Ela se encontra, portanto no corao da dmarche cientfica. Compreende-se imediatamente que a teoria a inspiradora essencial das hipteses novas. (...) Se verdade que (...) a teoria explica, ela deve merecer toda nossa ateno, ainda mais que esse conjunto lgico e coerente de explicaes, toma, o mais freqentemente, a forma do que se chama, correntemente, hoje em dia, um sistema, isto , um conjunto de elementos reciprocamente interligados."

O papel inspirador, estimulador e explicativo das teorias no pode deixar de ser sublinhado- ele e inegvel e fundamental. Mas, em funo de seu alto grau de generalizao e, muitas vezes, de sua complexidade, algumas teorias podem parecer inacessveis para muitos estudiosos e pesquisadores, principalmente os principiantes dentro de alguma disciplina ou campo de conhecimento.

Por isso, talvez, o uso de modelos na pesquisa cientfica, em geral, e na geogrfica, em particular, tenha alcanado o prestgio de que dispe na atualidade.

Em sua obra clssica, CHORLEY e HAGGETT (1967, p. 22/ 23/240) afirmam que-

"O temo modelo convencionalmente empregado de diferentes maneiras. Ele [e usado como substantivo, com o sentido de representao- como adjetivo, significando um certo grau de perfeio- ou como um verbo, no sentido de demonstrar ou mostrar a semelhana de algo. A caracterstica mais fundamental dos modelos que sua construo envolveu atitude altamente seletiva em relao a informao, eliminando-se o que era secundrio, para tornar possvel a visualizao apenas do essencial. Os modelos podem, enato, ser vistos como aproximaes seletivas que, pela eliminao dos detalhes, permitem que certos aspectos fundamentais, relevantes ou interessantes do mundo real apaream sob uma forma ou apresentao susceptvel de generalizao. (...) Outra importante caracterstica que os modelos so estruturados, no sentido de que os aspectos significativos da realidade selecionados so explorados em termos de suas conexes. interessante observar que o que freqentemente denominado modelo (por filsofos que trabalham com a lgica), chamado estrutura pelos econometristas. A cincia tem-se beneficiado grandemente dessa busca de padro, na qual os fenmenos so vistos em termos de relacionamento orgnico. Est caracterstica do modelo conduz imediatamente a natureza sugestiva dos modelos, no sentido de que um modelo bem sucedido contem sugestes para sua prpria extenso e generalizao. ( Assim, os modelos seriam instrumentos especulativos). (...) Na medida em que so diferentes do mundo real, os modelos so analogias dele. E (por ltimo) a possibilidade de reaplicao um pr-requisito dos modelos nas cincias."

Com base nesses dois textos, v-se que h fortes relaes entre teoria e modelo. Assim, uma teoria pode englobar um ou vrios modelos, que ela organiza e situa em um nvel mais elevado de generalizao. A teoria , portanto, mais completa e mais complexa que o modelo - enquanto este ltimo cobre uma parte mais limitada do real, a primeira envolve um domnio maior dessa mesma realidade e com um potencial explicativo bem mais amplo.

A verdade que, em funo de uma tradio arraigada de preferncia pelas realidades concretas, a geografia, em toda a sua histria, tem elaborado relativamente poucos modelos e, menos ainda, teorias. preciso, porm, admitir que essa posio, um tanto defensiva, em relao aos modelos e teorias na geografia, vem-se modificando bastante durante a Segunda metade do sculo XX. Uma das causas determinantes dessa mudana de postura encontra-se na adoo de uma discusso epistemolgica explcita e permanente entre os gegrafos, sobretudo a partir dos anos sessenta.

Uma das leituras que se podem fazer dos reflexos da discusso epistemolgica, em termos do papel reservado as teorias e aos modelos em geografia, a de que os gegrafos vem assumindo posies bem mais diferenciadas e complexas do que a do simples desprezo ou negao do valor das teorias, to comum na primeira metade do sculo atual.

A partir, portanto, dessa explicao epistemolgica, as principais posies dos gegrafos em relao ao papel das teorias e, por extenso, dos modelos podem, a ttulo exploratrio, ser agrupadas como segue-

Uma parte considervel da comunidade dos gegrafos valoriza, cada vez mais, as teorias e modelos como orientadores paradigmticos da pesquisa e como nicos critrios capazes de atribuir validade cientfica aos seus resultados e explicaes. Entre os defensores desta posio, encontram-se, em um aparente paradoxo, famlias bem diferenciadas de gegrafos. Est a, por exemplo, a maior parte daqueles que, desde a chamada revoluo teortico-quantitativa, tem-se filiado as orientaes neopositivistas, sobretudo atravs da adoo, na pesquisa geogrfica, do chamado mtodo cientfico. Desde BUNGE, com Theoreticl Geography (1966), CHORLEY e HAGGET, com Models in Geography (1967) , e HARVEY, com Explanation in Geography(1969), at os adeptos atuais dos Sistemas de Informao Geogrfica SIG cada vez mais gegrafos tem procurado ancorar suas pesquisas em teorias, produzidas ou no no mbito da geografia.

Um dos aspectos que vem comprovar o prestgio alcanado por teorias e modelos entre os gegrafos, principalmente dessa corrente, est por exemplo, no uso generalizado da teoria de sistemas- desde Geossistemas, da geografia fsica, at os sistemas urbanos e/ou regionais da geografia humana.

De um ponto de vista diferente, um outro grupo numeroso de gegrafos tambm possui uma postura de valorizao da teoria. Desde o inicio dos anos setenta, no mbito largo de uma corrente denominada crtica, ou radical, um bom nmero de gegrafos acredita na possibilidade de elaborao de uma teoria marxista do espao geogrfico. HARVEY, citado em ISNARD, RACINE et REYMOND (1981, P. 120/121) diz que o espao geogrfico possui uma dinmica e que "esta dinmica se compreende atravs dos conceitos de MARX e, mais particularmente, daqueles que fazem intervir a temtica dupla da acumulao e da luta de classes. (...) A anlise que interessa a geografia marxista inscreve-se, ento, na explicitacao das relaes existentes entre teoria da acumulao, da luta de classes e a transformao da paisagem". Nessa mesma direo, mas a partir da perspectiva marxista do socilogo e filosofo Henri LEFEBVRE (1974), alguns gegrafos vm desenvolvendo pesquisas no sobre o espao emprico, ou concreto, mas sobre o espao socialmente produzido.

Uma das ltimas manifestaes coletivas dessa corrente neomarxista da geografia deu-se, justamente, com a publicao h dez anos, dos dois volumes de New Moldes in Geography, editado por PEET e THRIFT . Fazendo referencia original Models in geography, editado em 1967 por CHORLEY e HAGGGETT, e procurando colocar-se numa posio de superao daqueles "velhos modelos" pelos "novos modelos", PEET e THRIFT defendem, para a geografia, uma grande abordagem, fundamentada na economia poltica marxista. O objetivo principal sempre incorporar e assinalar a essa economia poltica o espao geogrfico.

Embora os editores e a prefaciadora (Doreen Massey) adotem uma posio em geral otimista quanto a importncia e ao crescimento desses novos modelos de uma geografia orientada para o social, eles prprios tem clara conscincia das deficincias dos novos modelos. So quatro, para ele, as reas em que essas omisses eram mais fortes:

pases e regies do Terceiro Mundo;

pases e regies socialistas;

estudos e pesquisas de geografia histrica;

estudos e pesquisas de geografia fsica.

Uma outra posio em relao as teorias e aos modelos teve origem, h muitas dcadas, no campo da Epistemolgia, e cuja influencia acabou por entender-se, bem alm da Filosofia, a todas as cincias, inclusive a Geografia. Essa proposta, que se baseia no princpio da refutao e que se filia a uma corrente filosfica chamada racionalismo crtico deve-se ao pensador austraco Karl POPPER. Na epistemologia de POPPER, a teoria tem um papel primordial na cincia e na pesquisa-

" Em nenhuma etapa do desenvolvimento cientfico (...), ns podemos comear por algo que no se assemelhe a uma teoria, uma hiptese, uma opinio pr-concebida ou um problema que, de algum modo, guie nossas observaes e que nos ajude a escolher, entre os inmeros temas de observao, aqueles que podem ser interessantes. (...) A observao sempre seletiva, ala no se resume jamais a sensaes ou percepes que o observador contentar-se-ia de transcrever em relatrios escritos. Ela parcialmente pr-determinada pelas expectativas e os problemas que se encontram no esprito do pesquisador e que ele prprio extrai de um conhecimento anterior (background Knowledgle). No h observao, e, mais geralmente, conhecimento, que no esteja, no ponto de partida, impregnado de teoria".

Embora a teoria seja, portanto, muito importante para POPPER, essa importncia no pode ser exagerada, o que conduziria, segundo ele, ao dogmatismo e retiraria da teoria seu carter cientfico:

"POPPER recomenda que formulemos as teorias de maneira to clara quanto possvel, de modo a exp-las em ambigidades, a refutao. E, ao nvel metodolgico, no devemos, diz ele, fugir sistematicamente a refutao, atravs de uma reformulao continua da teoria ou da evidencia, com o objetivo de mant-las concordes. Isto o que fazem muitos marxistas e muitos psicanalistas. Assim, ento substituindo a cincia pelo dogmatismo, enquanto proclamam proceder cientificamente. Uma teoria cientifica no explica tudo quanto possa ocorrer: ao contrrio, ela muito do que poderia acontecer e, conseqentemente, se v afastada, se ocorre aquilo que ela afastou. Dessa forma, uma teoria refutabilidade o critrio de demarcao entre a cincia e a no-cincia. (...) Somente se houver alguma observao concebvel capaz de refut-la, ser a teoria suscetvel de teste. E somente se for suscetvel deste teste ser cientifica" .

Assim, para POPPER, as teorias mais bem sucedidas no so, por isso, teorias verdadeiras mas, simplesmente, teorias que no foram, at agora, refutadas.

Ainda uma nova outra posio, bastante diferente, em relao aos modelos e teorias, foi desenvolvida por um certo nmero de gegrafos filiados a chamada corrente humanstica.

Embora alguns autores encontrem manifestaes dessa corrente humanstica na geografia humana francesa do incio do sculo XIX (Anne Buttimer, por exemplo), o movimento, que se desenvolve a partir dos anos setenta, procura uma alternativa primeiramente aos modelos e teorias gerados dentro de um positivismo estreito e dominante. Logo em seguida, os gegrafos humansticos reagem, igualmente, s certezas do estruturalismo marxista, que orienta parcela considervel dos adeptos da geografia radical ou crtica.

Embora no contexto nacional, o movimento humanstico na geografia, e em reas afins, tenha adotado certas teorias e metodologias, como as de PIAGET (UNESP, em Rio Claro SP, com OLIVEIRA e MACHADO) ou da Gestalt (UnB, com KOHLSDORF, por exemplo), no contexto mundial, a orientao geral predominante foi a de uma filosofia a Fenomenologia e no de uma teoria ou de um modelo.

Para SANGUIN (1981 p. 563/564),

"a drmache fenomenolgica aparece como no convencional e no-conformista, na em que ela levanta questes de maneira inversa da abordagem dita cientfica...

O que importa a natureza da experincia humana, mais do que explicar ou fazer previses sobre o comportamento humano. Esta descrio do mundo cotidiano da experincia vivida engloba, portanto, as aes, as memrias, as fantasias, as percepes e os sonhos. , ento, um mtodo que recusa toda racionalidade, toda hiptese ou conceito a priori, toda grade de anlise pr- estabelecida e todo enunciado de leis a posteriori. A fenomenologia postula, assim, um princpio que, para ela, intocvel: todo conhecimento procede do mundo da experincia e no pode ser independente deste mundo. No h um mundo nico e objetivo, mas uma pluralidade de mundos. _Sob esse ngulo, a fenomenologia no aparece como uma anti-cincia irracional mas, muito mais, como uma rejeio do absolutismo e da ditadura do pensamento cientfico positivista em relao a qualquer outra forma de pensar. Em outras palavras, a cintica no o nico meio de pressupostos cientficos, a fenomenologia descreve rigorosamente os mundos vividos da experincia humana."

Uma derradeira posio, ainda mais extremada e radical, em relao a teorias, modelos e, sobretudo, mtodos definida por um dos mais complexos e originais filsofos deste sculo: Paul FEYERABEND.

O pensamento de FEYERABEND chegou at ns, sobretudo atravs de duas obras principais: Contra Mtodo (1989, em portugus) e Contra a Razo (1991, em portugus).

Uma interpretao mais extensa e profunda das idias de FEYERABEND no caberia no quadro do presente trabalho. Por isso, sero explorados, de forma resumida, aqueles pontos mais fundamentais que ele desenvolve em relao s teorias cientficas. Ao defender sua posio anrquica da produo do conhecimento e que , por coerncia, contrria s teorias tais como propostas pela cincia, FEYERABEND se baseia em cinco argumentos principais:

considera a complexidade das coisas e da prpria historia da cincia, no tem justificativa reduzi-las a teorias ou a regras metodolgicas simplificadas (o que caracterizam um reducionismo).

a opo entre duas ou mais teorias rivais, por parte do pesquisador, muitas vezes uma tarefa difcil , seno impossvel, dada a impossibilidade de comparao lgica entre elas; esse impasse provocado pelo que FEYRABEND chama de incomensurabilidade. Quando ocorre esse fenmeno, a escolha se d, ento, em funo de critrios de carter subjetivo e, portanto, no cientficos;

tendo em vista, mais uma vez, a complexidade do mundo real, o acesso limitado apenas a parte muito pequena de seus inumerveis componentes e, por outro lado, o fato de que muitas outras formas de conhecimento (religio, astrologia, magia, sabedoria popular, etc) so muito pouco estudadas ou conhecidas, no possvel comprovar,de maneira segura, a superioridade das teorias e mtodos cientficos. Alm disso, a presuno da existncia de um mtodo cientfico de aplicao generalizada, defendida por muitos cientistas, extremamente empobrecedora do pensamento humano e, assim, prejudicial ao progresso do conhecimento;

na medida em que o modelo de cincia atual dominado por um pequeno nmero de grandes teorias e por um mtodo cientfico generalizado e todo poderoso, a liberdade individual, nesse campo, v-se extremamente limitada. O que FEYERABEND defende, em ltima anlise, que esses entraves tericos e metodolgicos sejam retirados e que o indivduo possa livremente escolher entre a cincia e todas as outras formas de conhecimento;

com base nesses argumentos, FEYERABEND acaba por fazer sua polmica proposio quanto ao papel de teorias, modelos e mtodos cientficos: "Os que tomam o rico material da histria, sem a preocupao de empobrec-lo para agradar a seus baixos instintos, a seu anseio de segurana intelectual (que se manifesta como desejo de clareza, preciso, " objetividade", " verdade"), esses vem claro que s h um princpio que pode ser defendido em todas as circunstncias e em todos os estgios do desenvolvimento humano. o princpio: tudo vale.

por argumentos e propostas como esses que FEYERABEND foi considerado um anarquista da teoria do conhecimento.

O breve panorama das pginas precedentes, sobre teorias e modelos e suas relaes com a pesquisa, serve para mostrar como so variveis as posies de pesquisadores e epistemologistas quanto a essas questes primordiais.

Por mais que sejam diferenciadas essas posies, o papel crucial das teorias e dos modelos nas pesquisas e nas explicaes cientficas no precisa ser comprovado.

Modelos e teorias so importantes, em primeiro lugar, porque, por serem sistemas sintticos de caractersticas estruturais de parcelas importantes da realidade, constituem-se em vises descritivas e explicativas privilegiadas dessa realidade. Assim, eles fornecem retratos abrangentes e estruturais que no apenas ajudam a formar, na mente dos pesquisadores, a to necessrias imagens de conjunto, quanto constituem, estmulos necessrios e ricos para as escolhas em termos de temas de pesquisas futuras e para a elaborao das hipteses dessas mesmas pesquisas.

Alm disso, a existncia de modelos e teorias sob um tema, ou um conjunto de temas, de uma pesquisa, um fator determinante nas opes metodolgicas e tcnicas que o pesquisador tem que fazer.

Por ltimo, e talvez o mais importante, uma pesquisa, que tem como orientao um modelo ou uma teoria, dar certamente uma contribuio considervel para o desenvolvimento cientfico. Isso porque seus resultados, ao serem confrontados com o sistema terico original, serviro para consolidar, aperfeioar ou refutar tal modelo ou teoria. Desse modo o conhecimento cientfico avanara sempre...

Porm, o pesquisador dever, tambm, ter certos cuidados fundamentais. O primeiro no atribuir s teorias e aos modelos um valor supremo e dogmtico.

Todos os modelos e teorias so imperfeitos por definio, uma vez que se trata de representaes seletivas e abstratas de uma realidade complexa e mutante. Em funo disso, modelos e teorias devem ser encarados, no mximo, como referenciais privilegiados, porm sempre provisrios, para o pesquisador ou qualquer estudioso.

Em segundo lugar, preciso que se conscientize de que os modelos e teorias no so, assim como o mtodo cientfico, os nicos caminhos para se alcanar o conhecimento. Outras alternativas existem e no podem ser negligenciadas...

Essas ltimas reflexes nos encaminham quase automaticamente, para um outro patamar fundamental da pesquisa geogrfica que o da metodologia

As grandes etapas e os principais temas da evoluo da geografia

(Sntese resumida)

Prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho

1. Os primrdios: "geografia dos guias" (procura de lugares mais apropriados para abrigo, caa/pesca e obteno de gua; escolha das rotas e dos destinos mais adequados para as migraes bem sucedidas).

2. A geografia nos perodos grego e romano: descrio de pases e regies, para fins de conquista, dominao e administrao; primeiras indagaes ligadas curiosidade do conhecimento da terra como um todo e de suas grandes regies; primeiras tentativas bem sucedidas de representao cartogrfica; aparecimento do nome "GEOGRAFIA" (descrio da Terra).

3. A geografia no perodo medieval: transcrio para o Latim, nos conventos, das principais obras dos gegrafos da antiguidade; geografia dos itinerrios (conhecimento das principais rotas, tendo em vista, principalmente, o desenvolvimento das cruzadas, e as grandes peregrinaes): incio de uma geografia das "rotas comerciais", como a chamada "rota da seda", trilhada, entre outros, pelo aventureiro italiano, Marco Plo; desenvolvimento de uma "geografia pr-cientfica" por parte dos rabes muulmanos.

4. A Geografia no perodo moderno: "geografia da navegao", uma das principais bases das grandes navegaes; descrio geogrfica (tipo inventrio) das terras descobertas, em especial das regies costeiras, pelos "escrives" das diversas frotas dos descobridores; incio das indagaes de carter cientfico sobre o conhecimento da Terra como um todo e dos principais mecanismos da geografia fsica, principalmente com a "Geographia Generalis" de B. Varenius; incio das exploraes continentais, especialmente nas Amricas, frica e Oceania; importante desenvolvimento da cartografia, principalmente a partir do sculo XVIII.

5. A geografia cientfica e universitria dos alemes: desenvolveu-se no sculo XIX, principalmente com Alexander Humboldt e Karl Ritter. So abordagens geogrficas de carter holstico, procurando cobrir a totalidade do conhecimento geogrfico possvel poca; os dois maiores exemplos so: uma geografia geral do plante Terra, bem como um estudo da Terra no universo ("O Cosmos" de Humboldt), e uma geografia da Terra, considerada em suas grandes regies, inclusive de um ponto de vista comparativo ("A Landerkunde"; de Ritter). Paralelamente, um outro alemo Friedrich Ratzel desenvolvia os primeiros tratados de geografia humana ("Anthropogeographie") e de geografia poltica ("Politische Geographie"), ambos de inspirao darwiniana.

6. As "geografias Universais" dos franceses: ainda no sculo XIX, enquanto os alemes procuravam estabelecer os primeiros grandes sistemas de uma geografia geral e comparada, os franceses voltavam-se para a produo de grandes snteses regionais que cobrissem, tambm, o conjunto da Terra. So trabalhos de milhares de pginas que apresentavam, de forma descritiva e to detalhada quanto possvel, um quadro das grandes regies em que se dividia, ento, o mundo. A primeira dessas "gographies universelles" foi produzida no incio do sculo XIX, por um dinamarqus radicado na Frana, chamado Konrad Malte-Brun. A segunda, impressionante por suas dimenses (quase 20.000 pginas), foi produzida entre 1870 e 1880, pelo controvertido lder anarquista Elise Rclus.

7. As geografias regionais da escola francesa de Geografia: no final do sculo XIX, e durante toda a primeira metade do sculo XX, uma geografia tipicamente francesa, desenvolvida por Paul Vidal de La Blache e seus discpulos, dominou o cenrio da geografia mundial. Trata-se dos famosos estudos de geografia regional, isto , anlises detalhadas de todos os elementos e fatores possveis que; atravs de uma interao dinmica, caracterizam e explicam a personalidade prpria de cada regio estudada. So regies bem menores que aquelas consideradas pelos gegrafos alemes do sculo XIX. Por isso mesmo, prestam-se aos indispensveis trabalhos de campo, bem como ao no menos indispensvel tratamento cartogrfico dos croquis regionais.

8. A geografia teortica e quantitativa: nos anos que se seguiram a Segunda Guerra Mundial, muitos gegrafos, principalmente americanos, procura de uma atualizao da abordagem geogrfica, tentam aproxima-la das principais cincias de ponta. Para isso, procuram dot-la de um instrumental novo, isto , a quantificao, atravs do uso de computadores. As novas tcnicas causam grande impacto entre os gegrafos do mundo inteiro, modernizando a Geografia e tornando-a capaz de participar das grandes mudanas que marcam os meados deste sculo. Para que a eficincia da geografia fosse, ainda, mais desenvolvida, numerosos grupos de gegrafos adotam, como orientao filosfica bsica, o Positivismo, doutrina em grande parte responsvel pelo sucesso pragmtico do american way of life. o perodo em que a geografia aplicada foi rainha.

9. As geografias crticas: com as crises geradas tanto pelo problema energtico (escassez de petrleo), quanto pela derrota americana no Vietn, tambm aquela geografia otimista e neutra sofre sua prpria crise. Duas reaes principais desenvolvem-se na dcada de setenta: uma geografia radical, voltada para a denncia dos problemas e injustias sociais e internacionais, e de inspirao predominantemente marxista; e uma geografia humanstica, fundamentada nos valores individuais e subjetivos, voltada para os estudos de percepo e dos problemas ambientais, de inspirao psicolgica, alm de fenomenolgica e existencialista. Suas preocupaes essenciais no eram nem as teorias, nem os mtodos e tcnicas quantitativos, mas os homens em suas individualidades, subjetividades, limitaes, etc..., colocados nos grupos sociais de que faziam parte.

10. O futuro da geografia, suas principais perspectivas: neste final de milnio, tanto os acontecimentos mundiais, como as principais teorias cientficas recentemente criadas, apontam para direes novas da prtica da Geografia. Este final de milnio mostra o desmantelamento dos grandes sistemas totalitrios (principalmente dos sistemas comunistas do leste europeu) ; mostra uma preocupao fundamental com o meio ambiente, principalmente atravs da famosa Teoria de Gaia, do bilogo ingls James Lovelock; e mostra uma preocupao com o relativismo cientfico, atravs da no menos famosa Teoria do Caos, de James Gleick. Essas novas teorias, profundamente ambientalistas e anti-totalitrias, indicam a necessidade de ma Geografia que explore o conhecimento da Terra como um todo e como a morado do homem (lanando mo, inclusive das novas imagens geradas em satlites); de uma geografia que considere o homem tanto em sociedade, quanto em suas percepes de indivduo; enfim, de uma geografia poltica do mundo que vai entrar no novo milnio.

Geografia: da Antigidade Ps-Modernidade

Antnio Christofoletti (IGCE, UNESP, Rio Claro)

Todos os pensadores da Antigidade e Idade Mdia que descreveram as caractersticas de paisagens e povos situados em lugares da superfcie terrestre so exemplos de gegrafos. As preocupaes em conhecer lugares e povos, em realizar a contagem das coisas, em relatar as histrias e em pensar sobre a vida e sobre o mundo so atividades existentes em todas as civilizaes. Por essa razo, fazem com que as disciplinas Geografia, Histria, Matemtica e Filosofia, por exemplo, lancem suas razes histricas at a Antigidade. Entretanto, todas as informaes obtidas nessas pocas pertenciam ao conhecimento filosfico, ao conhecimento religioso e ao conhecimento do senso-comum.

A partir do sculo XVIII, com a Idade das Luzes, e no transcurso do sculo XIX comeou a se estruturar um modo de reconhecimento melhor organizado e sistemtico, que formalizou o conhecimento cientfico. Com a atuao e trabalhos dos naturalistas, dentre os quais se destaca a figura de Alexandre Von Humboldt, estabeleceu-se a concepo que propiciou perceber e compreender as paisagens diferenciadas dos lugares e dos povos como fenmenos especficos, merecedoras de descrio, anlise e explicao.

Incorporando a tradicional tarefa de descrever a Terra, a Geografia surgiu organizada como sendo uma disciplina cientfica no transcorrer da segunda metade do sculo XIX. E na sua tarefa de produo cientfica, relacionada com a corrente do positivismo e da modernidade, surgiram estudos procurando estudar a distribuio espacial dos fenmenos fsicos (relevo, clima, solos, guas), biolgicos (vegetao e fauna), sociais (populao, cidades, religio, etc) e econmicos (agricultura, produo de energia, comrcio, etc) na superfcie terrestre. Entretanto, compreendia-se claramente que em todo territrio ou rea esses diversos fenmenos se entrelaavam, formando uma paisagem distinta ou unidade espacial, denominada regio, possibilitando os estudos sobre as mais diversas unidades e diferenciao areal da superfcie terrestre. A tarefa dos gegrafos expressava-se em analisar os aspectos da distribuio espacial dos fenmenos e as caractersticas especficas dos lugares e regies.

O sculo XX chegou e esse procedimento de anlise geogrfica permaneceu estvel at a dcada de cinqenta. A turbulncia gerada pelo desenvolvimento das informaes, da prtica cientfica e transformaes tecnolgicas na Segunda Guerra Mundial comeou a provocar mudanas nas atividades das disciplinas. No caso da Geografia, ocorreu a expanso da anlise quantificativa, dos estudos sobre padres espaciais e interao espacial e a absoro da anlise sistmica. As categorias de fenmenos componentes da paisagem comearam a ser compreendidos como elementos que se estruturavam em sua disposio espacial e funcionavam integradamente pela ao dos processos e fluxos, formando uma organizao espacial, cujo conceito absorvia e ampliava os anteriores ligados s paisagens e regies. Esse procedimento conceitual e analtico ganhou maior difuso no setor da Geografia Fsica, no estudo dos fenmenos fsicos e na abordagem sobre os sistemas espaciais fsicos, denominados de geossistemas. Em virtude dos percalos na Guerra do Vietname, dos movimentos populares e dos movimentos ambientalistas e ecolgicos ocorridos na dcada de sessenta, difundiu-se a conotao da relevncia social e expandiram-se propostas de anlise visando substituir as normas metodolgicas do neopositivismo, representadas pelo materialismo dialtico, hermenutica, fenomenologia e abordagem humanstica. Tais proposies repercutiram em muitos estudos sobre os fenmenos sociais e econmicos, no campo das questes relacionadas com a Geografia Humana.

Mas o evoluir do conhecimento cientfico no parou e interagiu (desencadeando e usufruindo) com as transformaes tecnolgicas, principalmente da informtica. A documentao originada pelo uso do sensoriamento remoto e expanso da cartografia propiciou exploso no fornecimento informativo sobre as caractersticas observadas em todas as reas da superfcie terrestre. A fim de enfrentar esse desafio, para a manipulao e anlise da grande quantidade de informaes sobre a distribuio espacial dos fenmenos, foram desenvolvidos os sistemas de informao geogrfica.

Na segunda metade dos anos sessenta os cientistas, principalmente os meterologos e fsicos, comearam a perceber que os fenmenos apresentavam um comportamento catico, o que levou formulao da teoria do caos. Esse comportamento salientava que os sistemas possuam uma dinmica no-linear, pois a categoria dos resultados gerados pelos processos era previsvel. No entanto, os estados-resposta imediatos no podiam ser determinados com certeza, pois se tornavam dependentes de pequenas diferenas nas condies iniciais e aos efeitos ocasionados por perturbaes. Simultaneamente, compreendia-se que os sistemas evoluam para estados de auto-organizao, e os seus limites crticos podiam ser alterados pela ao de foras condicionadoras, promovendo reajustagens ou mudanas estruturais no sistema. O conhecimento cientfico apresentava nova dimenso a respeito do funcionamento e dinmica dos sistemas e compreenso de como o mundo funciona.

Paralelamente, estabelecia-se melhor a relao de que a atuao dos processos acabava gerando o aparecimento de uma forma, que expressava a organizao e disposio dos elementos componentes. Por exemplo, a ao do vento carregando as folhas dispersas pelo cho pode formar montculos. Esses montculos de folhas so formas organizadas como respostas ao do vento, mas que aparentemente surgem como confusas e caticas. Elas no podem ser descritas nas categorias lineares (uni-direcionais), de reas (bi-dimensionais) ou de volumes (tri-dimensionais) da geometria euclidiana. As formas dos montculos como as da superfcie terrestre so sinuosas (rios, linhas costeiras), rugosas (topografias), tortuosas (cidades, bacias hidrogrficas), fragmentadas. Na dcada de oitenta surgiu o desenvolvimento da geometria fractal da natureza visando a anlise desse amplo campo de formas geomtricas irregulares.

Tambm a partir da dcada de oitenta os cientistas comearam a dedicar ateno ao estudo dos sistemas complexos, a fim de compreender e analisar as caractersticas da complexidade inerente s diversas categorias de sistemas. Compreende-se facilmente a existncia de sistemas complexos biolgicos, fsicos, econmicos, sociais, etc. que embora focalizando categorias diferentes de fenmenos, possuem muitas peculiaridades comuns em sua estruturao e dinmica. Entre as categorias de sistemas complexos tambm se enquadra a dos sistemas de organizao espacial.

O desenvolvimento cientfico em torno dos sistemas dinmicos no-lineares, do comportamento catico, da auto-organizao e da geometria fractal vem sendo considerado como caracterstica da cincia na fase da ps-modernidade. A Geografia, como disciplina cientfica, no pode deixar de acompanhar esse desenvolvimento e absorve-lo na potencialidade de contribuir para a compreenso e anlise da categoria de fenmenos que representa o seu objeto de estudo.

Deve-se salientar que a categoria de fenmenos que representa o objeto de estudo da Geografia expressa a sua linhagem e continuidade, como disciplina individualizada, ao longo da evoluo histrica, embora sempre incorporando as inovaes e as novas abordagens cientficas. Tais incorporaes so realizadas pela e para a Geografia, a fim de esclarecer e precisar seus conceitos e ampliar seu arsenal tcnico. Mas a sua problemtica analtica quanto ao objeto permanece a mesma, isto , conhecer as caractersticas da espacialidade dos fenmenos e das organizaes espaciais na superfcie terrestre, desde o exemplar nico na escala de grandeza do globo at a enorme quantidade de lugares na escala de grandeza local. Pela relevncia de sua temtica, o conhecimento geogrfico surge sempre como de elevado potencial aplicativo para atender a demanda e as necessidades da sociedade, como hodiernamente ocorre, por exemplo, nas problemticas relacionadas com a anlise ambiental e desenvolvimento sustentvel.

Fonte: Jornal Cidade de Rio Claro, 02/06/97

Referncias Bibliogrficas

BAILLY, A. et BEGUIN, H. Introduction a La Gegraphie Humaine. Paris, Masson, 1986.

BUNGE, W. Theoretical Geography. Lund, Gleerup, 1966. 290 p.

CHORLEY, R. J. and HAGGETT, P. (editors). Models in Geography. Methuen, 1967. 816 p.

FEYERABEND, P. Adeus Razo. Lisboa: Edies 70, 1991.

FEYERABEND, P. Contra Mtodo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

HARVEY, D. Explanation in Geography. London: Edward Arnold, 1969.

ISNARD, H., RACINE, J. B. REYMOND, H. Problmatiques de la Gographie. Paris: PUF, 1981.

JOHNSTON, R. J. Philosophy and Human Geography. London: E. Arnold, 1983. 152 p.

POPPER, Karl citado em BOUDOUIN, J. Karl POPPER. Paris: PUF, 1989. 128 p.

LALANDE, A. Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia. S. Paulo: M. Fontes, 1993. 1336 p.

LEFEBVRE, H. La Production de I Espace. Paris: Anthropos, 1974. 386 p.

MAGEE, B. As Idias de Popper. So Paulo, Cultrix, 1973 (Traduzido por L. Hegenberg e S. Mota), 109 p.

PEET, R. & THRIFT, N. New Models in Geography The Political Economy perspective. London: Hyman,1989.

SANGUIN, A L. La gographie humaniste ou I approche phmomnologique des lieux, des paysages et des espaces. Annales de Gography, 1981, Xe anne Paris, A. Colin, p. 560-586

Comportamento Territorial

A defesa de uma rea limitada

Desmond Morris

Um territrio um espao defendido. No sentido mais amplo, h trs tipos de territrio humano: o tribal, o familiar e o pessoal.

raro que as pessoas sejam levadas ao combate corporal para defender esses espaos "possudos", mas lutaro, se provocadas, at o limite. O exrcito invasor usurpando territrio nacional, a gangue movendo-se para um distrito rival, o transgressor pulando o muro de um pomar, o assaltante invadindo uma casa, o valento empurrando uma fila para a frente, o motorista tentando roubar um espao para estacionar, todos esses intrusos esto sujeitos a deparar com resistncia, que varia da vigorosa selvagemente violenta. Mesmo se a lei est do lado do intruso, o impulso para proteger um territrio pode ser to forte que cidados em outras circunstncias pacficos abandonam todos os seus controles e inibies habituais. Tentativas de desalojar famlias do seu lar, no importa quo socialmente vlidas as razes, podem levar a condies de assdio reminescentes da defesa de uma fortaleza medieval.

O fato de esses levantes serem muito raros uma mostra do sucesso dos sinais territoriais enquanto sistema de preveno de disputas. Algumas vezes se afirma, cinicamente, que "toda propriedade roubo", mas na realidade o oposto. A propriedade, enquanto espao possudo e exibido como espao possudo, um tipo especial de sistema de partilha, que reduz as brigas muito mais do que as causa. O homem uma espcie cooperativa, mas tambm competitiva, e sua luta pelo domnio tem que ser estruturada de algum modo, se que se deseja evitar o caos. O estabelecimento de direitos territoriais uma estrutura assim. Limita geograficamente o domnio. Sou dominante no meu territrio e voc no seu. Em outras palavras, o domnio partilhado espacialmente e todos ns temos algum. Mesmo que eu seja fraco e sem inteligncia e voc possa me dominar quando nos encontramos em solo neutro, eu ainda posso usufruir totalmente de um papel dominante [p. 126] assim que me retiro para a minha base particular. Por mais humilde que seja, no h lugar algum como o territrio domstico.

Claro, eu ainda posso ser intimidado por um indivduo particularmente dominante que entra na minha base domstica, mas a sua invaso ser perigosa para ele, que pensar duas vezes nisso antes de agir, porque saber que ali o meu impulso de resistir ser dramaticamente ampliado e a minha subservincia usual desaparecer. Insultado no corao do meu prprio territrio, posso facilmente explodir e me pr em combate simblico ou real , com um resultado que talvez seja prejudicial a ns ambos.

A fim de que isso funcione, cada territrio tem que ser fartamente apregoado como tal. Exatamente como um co levanta a perna para depositar o seu cheiro pessoal nas rvores da sua localidade, os animais humanos levantam simbolicamente a perna por toda a sua base domstica. Mas, como somos animais predominantemente visuais, utilizamos sobretudo sinais visuais, e vale a pena perguntar como fazemos isso aos trs nveis tribal, familiar e pessoal.

Primeiro: o territrio tribal. Evolumos como animais tribais, vivendo em grupos comparativamente pequenos, provavelmente com menos de cem indivduos, e existimos assim por milhes de anos. a nossa unidade social bsica, um grupo em que todo o mundo se conhece. Essencialmente, o territrio tribal consistia em uma base domstica rodeada por extensos campos de caa. Qualquer tribo vizinha que invadisse o nosso espao social era repelida e expulsa. Quando essas primeiras tribos se expandiram em supertribos agricultoras, e finalmente em naes industriais, seus sistemas de defesa territorial se tornaram cada vez mais elaborados. A minscula base domstica antiga da tribo caadora se transformou na grande capital, a primitiva pintura de guerra transformou-se na bandeira, nos emblemas, nos uniformes e nas insgnias do militar especializado, e os cantos de guerra se transformaram em hinos nacionais, marchas e toques de clarins. As linhas fronteirias dos territrios se estabilizaram como limites fixos, com freqncia patrulhados notoriamente e pontilhados de estruturas defensivas fortes e postos de vigia, grandes muralhas e, hoje, barreiras aduaneiras.

Hoje cada nao ostenta a sua prpria bandeira, uma personificao simblica do seu status territorial. Mas o patriotismo no basta. O antigo caador tribal [p. 127] que espreita de dentro de cada cidado se acha insatisfeito com o fato de ser membro de um to vasto conglomerado de indivduos, a maioria dos quais totalmente desconhecidos para ele pessoalmente. Ele faz o melhor que pode para sentir que compartilha uma defesa territorial comum com todos eles, mas a escala da operao se tornou inumana. difcil ter a sensao de pertencer a uma tribo de cinqenta milhes ou mais. Sua resposta formar subgrupos, mais prximos do seu padro antigo, menores e conhecidos mais pessoalmente por ele o clube local, a gangue dos adolescentes, o sindicato, a sociedade especializada, a associao esportiva, o partido poltico, o grmio universitrio, a "panelinha" social, o grupo de protesto, e o restante. Raro, de fato, o indivduo que no pertence pelo menos a um desses grupos menores e que no extraia disso uma sensao de lealdade e fraternidade tribais. Tpico de todos esses grupos o desenvolvimento de sinais territoriais distintivos, trajes, sedes, bandeiras, slogans, e as outras manifestaes de identidade de grupo. a que a ao se encontra, em termos de territorialismo tribal, e s quando rebenta uma guerra de porte que a nfase se desloca para o nvel grupal mais elevado na nao.

Cada uma dessas pseudotribos modernas cria o seu tipo especial de base domstica. Em casos extremos, os no-membros so totalmente excludos, em outros permite-se a entrada deles na qualidade de visitantes com direitos limitados e sob um sistema de controle com regras especiais. Em muitos sentidos so como naes em miniatura, com suas bandeiras e emblemas e seus prprios guardas de fronteiras. O clube exclusivo tem a sua prpria "barreira aduaneira": o porteiro, que examina o "passaporte" (o carto de scio) e impede os estranhos de passar. H um governo: a diretoria do clube; e freqentemente uma exibio dos ancios da tribo: as fotos ou os retratos de diretores antigos nas paredes. No centro dos territrios especializados h uma intensa sensao de segurana e importncia, uma sensao de defesa compartilhada contra o mundo exterior. Muito da conversa [p. 128] amena do clube, tanto sria quanto jocosa, se dirige contra a depravao de tudo o que se encontra para fora dos protegidos portais do clube.

Em organizaes sociais que personifiquem um forte sistema de classe, tal como as unidades militares e as grandes empresas comerciais, h muitas guerras territoriais, freqentemente tcitas, que interferem na hierarquia oficial. Indivduos de status elevado, como oficiais e gerentes, poderiam em teoria entrar em qualquer uma das regies ocupadas pelos nveis inferiores da peck order [baixo escalo], mas limitam esse poder de modo flagrante. Um oficial raramente entra na sala de um sargento ou numa sala do acampamento a no ser para uma inspeo formal. Respeita essas regies como territrios alheios, mesmo tendo o poder de ir l em virtude do seu papel dominante. E, nos negcios, parte do apelo dos sindicatos, alm e aqum das suas funes bvias, que com seus funcionrios, sede e reunies, atribuem uma sensao de poder territorial aos trabalhadores. quase como se cada organizao militar e empresa comercial consistissem em duas tribos em guerra: os oficiais versus as outras patentes, a direo versus os operrios. Cada uma tem a sua base domstica especial dentro do sistema, e o padro de defesa territorial se mescla com o que, em superfcie, pura hierarquia social. Negociaes entre diretorias e sindicatos so batalhas tribais combatidas no solo neutro de uma mesa de reunies, e se preocupam tanto com ostentao territorial quanto com a soluo de problemas de salrios e condies de trabalho. Na verdade, se um lado cede rpido demais e aceita as reivindicaes do outro, os vencedores se sentem estranhamente trapaceados e profundamente desconfiados de que pode se tratar de um truque. O que lhes faz falta a prolongada seqncia de ritual e contra-ritual que mantm viva a identidade de grupo territorial de cada parte.

De modo semelhante, muitas das manifestaes hostis de fs desportivos e de gangues adolescentes esto basicamente preocupadas em exibir a sua imagem de grupo aos fs-clubes e gangues rivais. Exceto em casos raros, eles no atacam a sede um do outro, expulsam os ocupantes e reduzem-nos a uma condio de submissa subordinao. suficiente ter escaramuas nas regies fronteirias entre os dois territrios rivais. Isso fica particularmente claro em partidas de futebol, em que a sede do f-clube se desloca temporariamente do clube propriamente dito para um setor das arquibancadas, e onde irrompem disputas na linha de demarcao no-oficial que separa os grupos de torcedores rivais aglomerados. Os relatos dos jornais exploram os poucos acidentes e danos que ocorrem em tais ocasies, mas, quando os estudamos em relao ao nmero total de fs declarados envolvidos, fica claro que os incidentes srios representam apenas uma frao minscula do comportamento do grupo total. Para cada soco ou pontap reais, h milhares de gritos de guerra, danas de guerra, cnticos e gestos.

Segundo: o territrio familiar. A famlia , essencialmente, uma unidade de reproduo e o territrio familiar, local de reproduo. No centro desse espao est o ninho o dormitrio , onde, encolhidos na cama, sentimo-nos o mais seguros possvel, territorialmente falando. Numa casa tpica, o dormitrio fica no andar superior, onde deve ficar um ninho seguro. Isso o coloca bem afastado do saguo de entrada, a rea onde se faz contato, intermitentemente, com o mundo exterior. As salas de recepo, menos privadas, a que se permite o acesso de intrusos, so a linha seguinte de defesa. Para alm delas, fora das paredes da construo, freqentemente h um remanescente simblico dos antigos campos de alimentao: um jardim. Seu simbolismo freqentemente se estende s plantas e aos animais que contm, que deixam de ser nutricionais para se tornarem meramente decorativos flores e bichos de estimao. Mas, como um autntico espao territorial, tem uma linha divisria exibida com toda a evidncia, a cerca do jardim, ou muro, ou grades. Geralmente no passando de uma barreira simblica, a demarcao exterior do territrio, separando o mundo privado da famlia do mundo pblico que fica alm dela. Cruz-la coloca qualquer visitante ou intruso numa desvantagem imediata. Assim que atravessa a soleira, seu domnio decresce, ligeira mas inconfundivelmente. Ele est ingressando numa rea onde sente que deve pedir permisso para fazer coisas simples que, em outro lugar, consideraria como um direito seu. Sem mover um dedo, os proprietrios do territrio exercem o seu domnio. Isso feito pelas centenas de pequenas "marcas" [p. 129] de propriedade que eles espalharam pelo seu territrio familiar: os ornamentos, os objetos "possudos" dispostos nas salas e nas paredes; a moblia e acessrios, as cores, os padres, tudo escolhido pelos proprietrios e tudo fazendo dessa base domstica em particular uma coisa exclusiva deles.

Uma das tragdias da arquitetura moderna ter havido uma padronizao dessas unidades territoriais vitais. Um dos aspectos mais importantes de uma casa que ela deve ser semelhante s outras apenas de um modo genrico, enquanto nos detalhes deveria ter muitas diferenas, tornando-a uma casa particular. Infelizmente mais barato construir uma fileira de casas, ou um prdio de apartamentos, de modo que todas as unidades de vida familiar so idnticas. Mas o impulso territorial rebela-se contra essa tendncia e os proprietrios da casa lutam o melhor que podem para colocar a prpria marca na propriedade produzida em massa. Fazem isso com o projeto do jardim, com as cores da porta principal, com o desenho das cortinas, com o papel de parede e todos os outros elementos decorativos que, juntos, criam um ambiente familiar nico e diferente. S ao completar a construo desse ninho se sentem "em casa" e seguros.

Quando se aventuram a sair como unidade familiar, repetem o processo em menor escala. Numa viagem de um dia praia, enchem o carro de objetos pessoais e o carro se transforma no seu territrio porttil provisrio. Chegando praia, delimitam um pequeno territrio, marcando-o com esteiras, toalhas, cestas e outros pertences aos quais podem retornar depois de vagar pela orla do mar. Mesmo que vo todos dar um mergulho ao mesmo tempo, o lugar conserva a sua qualidade territorial caracterstica, e outros grupos familiares que cheguem reconhecero isso instalando a prpria base "domstica" a uma distncia respeitosa. S quando a praia inteira estiver cheia desses espaos demarcados que os recm-chegados comearo a se posicionar de um modo tal que a distncia entre as bases se reduza. Forados a se acomodar entre diversos territrios de praia j existentes, tero uma sensao momentnea de intruso, e os "proprietrios" estabelecidos tero uma sensao semelhante de invaso, ainda que no estejam sendo diretamente incomodados.

O mesmo espetculo territorial representado em parques, no campo e em praias de rio, sempre que grupos familiares se renem nas suas unidades de aglomerao. Mas, se a rivalidade por espaos gera moderadas sensaes de hostilidade, verdade dizer que, sem o sistema territorial de partilha e domnio sobre espao limitado, haveria uma desordem catica.

Terceiro: o espao pessoal. Se um homem entra numa sala de espera e se senta numa extremidade de uma longa fileira de cadeiras vazias, possvel prever onde que vai se sentar o prximo homem que entrar. No vai se sentar ao lado do primeiro, nem na outra extremidade, bem longe dele. Escolher uma posio a meio caminho entre esses dois pontos. O prximo homem que entrar vai tomar o intervalo maior que restar e sentar-se mais ou menos no meio dele, e assim por diante, at que, finalmente, o ltimo recm-chegado ser forado a escolher uma cadeira que o coloque bem ao lado de um homem j sentado. Padres semelhantes podem ser observados em cinema, mictrios pblicos, avies, trens e nibus. um reflexo do fato de que todos ns carregamos conosco, a todo lugar a que vamos, um territrio porttil chamado espao pessoal. Se as pessoas se movem para dentro desse espao, sentimo-nos ameaados. Se se pem afastadas demais, sentimo-nos rejeitados. O resultado uma srie sutil de ajustes espaciais, geralmente operando de modo totalmente inconsciente, e produzindo acomodaes ideais na medida do possvel. Se um local se torna excessivamente cheio de gente, adaptamos as nossas reaes adequadamente e permitimos que o nosso espao pessoal diminua. Comprimidos num elevador, num vago de metr na hora do rush ou numa sala aglomerada, cedemos completamente e permitimos o contato corpo a corpo, mas, quando renunciamos ao nosso espao pessoal desse modo, adotamos certas tcnicas especiais. Em essncia, o que fazemos converter esses outros corpos em "no-pessoas". Intencionalmente as ignoramos e elas a ns. Tentamos no encar-las se pudermos evit-lo. Apagamos toda a expressividade do rosto, deixando-o opaco. Podemos levantar os olhos para o teto ou baix-los para o soalho, e reduzimos os movimentos corporais [p. 130] a um mnimo. Prensados como sardinhas em lata, ficamos em p silenciosamente imveis, enviando to poucos sinais sociais quanto possvel.

Mesmo que o aglomerado seja menos grave, tendemos a suprimir nossas interaes sociais na presena de muitas pessoas. Cuidadosas observaes de crianas brincando em grupo revelaram que, se forem agrupamentos de alta densidade, h menos interao social entre as crianas individualmente, ainda que, teoricamente, haja mais oportunidade para tais contatos. Ao mesmo tempo, os grupos de alta densidade mostram uma freqncia mais alta de padres de comportamento agressivo e destrutivo nas brincadeiras. O espao pessoal artigo vital para o animal humano, e que no pode ser ignorado sem o risco de srios problemas.

Claro, todos ns apreciamos a animao de estar numa multido, e essa reao no pode ser ignorada. Mas h multides e multides. bastante agradvel estar numa "multido de espectadores", mas no to atraente encontrar-se no meio de um aglomerado na hora do rush. A diferena entre as duas coisas que a multido de espectadores est toda voltada para a mesma direo e concentrando-se num ponto distante de interesse. Assistindo a uma pea teatral, temos pontadas de hostilidade contra o estranho que se senta imediatamente nossa frente, ou contra o que se espreme na poltrona ao lado da nossa. O brao compartilhado do assento pode se tornar uma regio de polida mas ntida disputa por demarcao territorial. Entretanto, assim que o espetculo comea, essas invases de espao pessoal so esquecidas e a ateno se concentra alm do pequeno espao onde est ocorrendo a aglomerao. Agora, cada membro da platia se sente espacialmente relacionado no com seus vizinhos confinados, mas com o ator no palco, e essa distncia bem grande. Na multido na hora do rush, ao contrrio, cada membro do aglomerado que se atropela compete com os vizinhos o tempo todo. No h a escapatria para uma relao espacial com um ator distante, apenas os corpos que empurram e apertam a toda a volta.

Os que tm que passar muitas horas em condies de aglomerao tornam-se gradualmente mais capazes de se adaptar, mas ningum consegue jamais se tornar completamente imune a invases do espao pessoal. Isso porque tais invases estaro para sempre associadas com vigorosos sentimentos de hostilidade ou com sentimentos de afeio igualmente vigorosos. No decorrer de toda a infncia, seguram-nos para nos amar e seguram-nos para nos machucar, e qualquer um que invada o nosso espao pessoal, quando somos adultos, est, na verdade, ameaando estender seu comportamento a uma dessas reas altamente carregadas da interao humana. Mesmo que seus motivos no sejam claramente hostis nem sexuais, ainda achamos difcil suprimir nossas reaes sua aproximao estreita. Infelizmente, em diferentes pases h idias diferentes sobre quo perto, exatamente, o perto . fcil testar qual a sua "reao de espao": quando estiver conversando com algum na rua, ou em qualquer lugar aberto, estenda o brao e veja qual o ponto mais prximo a que o corpo da outra pessoa chega. Se voc natural da Europa ocidental, descobrir que ela est a uma "distncia de ponta dos dedos" de voc. Em outras palavras, quando voc esticar o brao, a ponta dos seus dedos far contato com o ombro da pessoa. Se voc provm da Europa oriental, descobrir que est parado "distncia de pulso". Se da regio mediterrnea, estar bem mais perto, "distncia de cotovelo".

O problema surge quando um membro de uma dessas culturas se encontra e conversa com um membro de outra. Digamos que um diplomata britnico encontre um diplomata italiano ou rabe numa recepo de embaixada. Comeam a conversar de modo cordial, mas logo o homem "ponta dos dedos" comea a se sentir inquieto. Sem saber absolutamente por qu, pe-se gentilmente a recuar do companheiro. O interlocutor avana. Cada um tenta desse modo criar um relacionamento de espao pessoal que se coadune com o prprio background individual. Mas impossvel. Cada vez que o diplomata mediterrneo avana a uma distncia que considera confortvel, o britnico se sente ameaado. Cada vez que o britnico recua, o outro se sente rejeitado. As tentativas de ajustar essa situao freqentemente levam a dupla que conversa a se deslocar lentamente at o outro lado da sala, e muita recepo de embaixada fica pontilhada de europeus ocidentais "ponta dos dedos" encostados s paredes por impetuosos [p. 131] homens "cotovelo". At que tais diferenas nos "territrios corporais" sejam integralmente compreendidas, e levadas em considerao, continuaro a atuar com um fator de antipatia que pode interferir, de modo sutil, na harmonia diplomtica e em outras formas de transao internacional.

Se existem problemas de distncia quando as pessoas conversam, claro que vai haver dificuldades maiores quando elas tiverem que trabalhar em particular num espao compartilhado. A estreita proximidade de outros, pressionando as demarcaes invisveis do nosso territrio pessoal, torna difcil a concentrao em questes no-sociais. Companheiros de apartamento, estudantes compartilhando a mesma sala de estudos, marinheiros nos alojamentos apertados de um navio, e pessoal de escritrio em locais de trabalho cheios de gente tm, todos, que enfrentar esse problema. Resolvem-no "fazendo casulo". Usam uma variedade de estratagemas para se isolar dos outros presentes. O melhor casulo possvel, claro, uma pequena sala privada um gabinete, um escritrio particular, uma sala de estudos ou um ateli , que obscurece fisicamente a presena de outros proprietrios do territrio. Essa a situao ideal para o trabalho no-social, mas os que compartilham o espao no podem gozar desse luxo. Seu encasulamento tem que ser simblico. Podem, em certos casos, ter condies de erguer barreiras fsicas, como biombos e divisrias, que do substncia aos seus limites invisveis de espao pessoal, mas, quando isso no feito, outros meios precisam ser procurados. Um deles o "objeto favorito". Cada compartilhador de espao desenvolve uma preferncia, expressa repetidamente at se tornar um padro fixo, por uma cadeira em particular, uma mesa ou um nicho. Os outros acabam por respeitar isso e o atrito se reduz. O sistema freqentemente se arranja de modo formal (esta a minha escrivaninha, aquela a sua), mas, mesmo quando no o , logo se desenvolve a preferncia por lugares determinados. O Professor Smith tem uma poltrona favorita na biblioteca. No formalmente sua, mas ele sempre a usa e os outros a evitam. Os assentos em torno de uma mesa na sala de reunies ou na diretoria tornam-se quase que propriedade pessoal de indivduos especficos. Mesmo em casa, o pai tem sua poltrona favorita para ler o jornal ou assistir televiso. Outro estratagema a postura de antolhos. Exatamente como um cavalo que se excita com outros cavalos e com as distraes do barulhento campo de corridas recebe um par de antolhos para tapar-lhe os olhos, assim as pessoas ao estudar num local pblico colocam pseudo-antolhos na forma de mos em escudo. Apoiando os cotovelos sobre a mesa, sentam-se com as mos tapando os olhos do que acontece de cada lado.

Um terceiro mtodo de reforar o territrio corporal usar marcas pessoais. Livros, papis e outros pertences pessoais so espalhados pelo local favorito para torn-lo, aos olhos dos companheiros, mais particularmente "possudo". Espalhar os prprios pertences um truque bem conhecido nas situaes de transporte coletivo, em que um passageiro tenta dar a impresso de que os assentos ao seu lado esto tomados. Em muitos contextos, marcas pessoais cuidadosamente dispostas podem atuar como uma ostentao territorial eficaz, mesmo na ausncia do proprietrio do territrio. Experincias numa biblioteca revelaram que colocar uma pilha de revistas sobre a mesa, sugerindo a presena de algum sentado, conseguiu manter o lugar reservado com xito por uma mdia de setenta e sete minutos. Se se juntava uma jaqueta, pendurada na cadeira, o "efeito de reserva" durava por mais de duas horas.

Por esses meios, reforamos as defesas do nosso espao pessoal, mantendo os intrusos a distncia com o mnimo de franca hostilidade. Assim como com todo o comportamento territorial, o objetivo defender o espao com sinais e no com os punhos e, aos trs nveis tribal, familiar e pessoal um sistema notavelmente eficaz de dividir o espao. Nem sempre parece ser assim porque os jornais e telejornais inevitavelmente ampliam as excees e insistem em casos onde os sinais falharam e irromperam guerras, gangues lutaram, famlias vizinhas se indispuseram ou colegas entraram em conflito, mas, para cada sinal territorial que falhou, h milhes de outros que no falharam. No merecem meno nos noticirios, mas ainda assim constituem um trao dominante da sociedade humana a sociedade de um animal extraordinariamente territorial. [p. 132]

As Fronteiras

Noes de diferenas, de limites e de propriedade parecem ser naturais ao homem, sem dvida inerentes sob suas formas primitivas. A maior parte dos animais marca seus territrios e tenta defend-los. Na poca atual, diremos que uma fronteira poltica a separao entre duas soberanias. Mas j uma fronteira poltica a separao entre duas soberanias. Mas j que, desde as semelhanas humanas do Neoltico (por volta de 8000 a.C.), a histria humana, em sua enorme complexidade, foi feita de tomadas de poder, de conquistas, de modificao de limites, de desagregao e de fuso, impossvel dar uma viso de conjunto em algumas pginas, mesmo resumida ou esboada. Proponho ento escolher alguns problemas mais importantes e analis-los sucessivamente.

Nessa perspectiva, muito geral, no farei nem estudo jurdico, nem estratgico, nem econmico. Eu me coloco sob o ponto de vista do historiador e procuro evitar, sobretudo, anacronismos.

Variedade histricas das fronteiras

A ambigidade da palavra

A palavra "fronte" existe em inmeras lnguas indo-europias sob formas aparentadas, desde Bhurva , em snscrito; oqpus, em grego; frontem, em latim; a-bhra, em galico; a-brant, em baixo-breto; at brow, em ingls. No entanto, se ela resultou em frontere, fronteira, etc., nas lnguas latinas (at o sculo XVI com sentido da primeira linha de um exrcito), outras lnguas adotaram palavras de diferentes origens para dizer fronteira. A palavra inglesa border originou-se do alto alemo antigo bort ou do ingls boundary; do baixo latim bodena por meio do francs arcaico. Os alemes adotaram a palavra eslava Grenze (que vem de granica), sinal de que, para eles os problemas de fronteira se desenvolveram sobretudo no leste.

A palavra frontier, em anglo-americano, adquiriu um sentido clebre; a zona que separa a civilizao da wilderness, quer dizer, no da selvageria, mas do deserto (cf. cassels English Dictionary; este definia frontier como the part of a country which fronts or borders upon another; country, e no line). O historiador Frederic Jackson Turner buscou, em 1893, explicar a democracia americana pela frontier.

Notemos tambm que os clssicos gregos e romanos utilizavam palavras de outras origens. Para os gregos o "oroj" ou, para precisar uma fronteira comum a dois povos to meqoriog. A palavra Vroz significa igualmente montanha, o que uma caracterstica da geografia poltica grega. Mas como diz Charles Rosseau:

O conceito de fronteira parece ignorado na Antiguidade grega. A cidade grega no se adapta a nenhum quadro geogrfico. Atenas e Espar ultrapassam suas fronteiras naturais. Entre as cidades-estados da Grcia no existem nem linha aduaneira nem fronteira militar. As nicas violaes de fronteira so delitos ou crimes de lesa-propriedade (roubo da colheita, assalto ao rebanho).

Em latim, a palavra equivalente finis. Mas significa igualmente regio, da a expresso bastante conhecida ad extremum finem galliae. Uma cidade fronteira urbs in finibus sita. Do Finis latino Confin e, em ingls, confine.

Obtemos desse estudo bastante resumido a concluso de que frontire (empregarei daqui por diante a palavra francesa) deriva de origens e de preocupaes diversas.

A fronteira expressa ou "marca"

Estamos habituados hoje em dia a considerar todas as fronteiras como linhas, bem traadas, marcadas pelo menos por postes ou marcos, infelizmente, muitas vezes, por arame farpado ou mesmo por muros. Logo, esse sistema relativamente recente. Ele depende totalmente dos progressos alcanados em topografia. Tm a vantagem de evitar inmeros incidentes. Mesmo quando os marcos de fronteira so distantes um do outro, a linha existe e, a princpio, ela conhecida dos funcionrios da fronteira. Porm, ela difcil de ser estabelecida de imediato, e todos os grandes ministrios das Relaes Exteriores possuem um servio geogrfico encarregado de supervisionar a fronteira (por exemplo, no Quai dOrsay, esse servio ajuda numerosos pases africanos a estabelecer suas fronteiras exatas).

Quando se estabeleceu a fronteira do efmero "Territrio Livre de Trieste", foi escolhida a linha francesa (pela simples razo de que ela se encontrava prxima ao centro, a linha sovitica passava muito a oeste e alinha americana muito a leste). Logo, desenhando essa linha, o lpis do diplomata Jean Wolfrom (ajudado pelos gegrafos Jean Welersse e Maurice Le Lannou) marcou um limite que, na escala do terreno, representava quinhentos metros de limite que, na escala do terreno, representava quinhentos metros de limite que, na escala do terreno, representava quinhentos metros de comprimento, fonte de inmeros incidentes ulteriores. Um exemplo interessante porque mostra bem uma transio o da fronteira da Arglia com o Marrocos, tal qual resultou do tratado de Lalla Marnia (18 de maro de 1845):

1. Do mar Mediterrneo at Teniet es Sassi, por uma extenso de oitenta quilmetros, a delimitao foi estabelecida com preciso.

2. Sobre uma Segunda seo, de Teniet es-Sassi at figuig, o tratado contentava-se em definir quais Ksars, ou cidades fortificadas, seriam argelina e quais seriam marroquinas.

3. Ao sul de Figuig, at Oued Guir, contentou-se em criar duas linhas que podiam ser postos de aduana e de guarda. "No territrio compreendido entre essas duas linhas, as tribos representando os dois governos poderiam comerciar livremente.

Essa idia de fronteira espessa seguiu simplesmente uma velha tradio, a dos romanos e, como parece, a dos chineses. Contrariamente lenda, o famoso limes romanos (9.000 quilmetros no total) no uma linha (salvo em certa medida a de Adriano, depois a de Antonino na Gr-Bretanha). O limes composto de uma sucesso de fortes. A maioria das legies romanas (cada vez mais compostas de brbaros) estacionava atrs. Mas h