genero sexualidade e educaçao

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Gênero, sexualidade e educação \enfoca algumas questões centrais \das práticas educativas da \atualidade. A produção das \diferenças e das desigualdades \sexuais e de gênero, em suas \articulações com outros \"marcadores sociais", como raça, \etnia, classe, é analisada pela \autora, numa perspectiva que \busca referências nas teorizações \pós-estruturalistas.

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Gnero, sexualidade e educao enfoca algumas questes centrais das prticas educativas da atualidade. A produo das diferenas e das desigualdades sexuais e de gnero, em suas articulaes com outros "marcadores sociais", como raa, etnia, classe, analisada pela autora, numa perspectiva que busca referncias nas teorizaes ps-estruturalistas. A instituio escolar o espao privilegiado no livro, mas certamente no seu alvo exclusivo. Recebe especial ateno o modo como os sujeitos, em relaes sociais atravessadas por diferentes discursos, smbolos, representaes e prticas, vo construindo suas identidades, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposies, suas formas de ser e de estar no mundo. Este processo de "fabricao" dos sujeitos continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptvel. Antes de tentar perceb-lo pela leitura das leis ou dos decretos que instalam e regulam as instituies, ou perceb-lo nos solenes discursos das autoridades, Guacira Lopes Louro se volta, aqui, especialmente para as prticas cotidianas, rotineiras e comuns. Entende que so precisamente os gestos e as palavras banalizados que devem se tornar alvos de ateno renovada, de questionamento e de desconfiana. A tarefa mais urgente seria desconfiar do que tomado como "natural". Desta orma, currculos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didticos e processos de avaliao so colocados em questo. Os aportes tericos mais relevantes para a construo de

sua argumentao vm fundamentalmente do campo dos Estudos Feministas mas, tambm, dos Estudos Culturais, dos Estudos Negros, dos Estudos Gay e Lsbicos. Voltados todos para as "diferenas", para as formas como estas so constitudas e fixadas, valorizadas ou negadas, esses vrios campos tm, seguramente, mltiplos pontos de contato. So todos, tambm, espaos de uma produo terica frtil, crtica e engajada. O livro assume, pois, a perspectiva de que as mulheres e os homens feministas precisam estar atentos s relaes de poder que se inscrevem nas vrias dinmicas sociais em que elas e eles tomam parte. Recusando a concepo de um binarismo rgido nas relaes de gnero, busca uma problematizao mais ampla e complexa, na qual tenham lugar as mltiplas e intrincadas combinaes de gnero, sexualidade, classe, raa, etnia. Longe de uma anlise distanciada e isenta, a autora acentua que estamos todos e todas envolvidos/as nesses arranjos, e chama ateno para a difcil tarefa de pr em questo relaes de poder das quais fazemos parte. A autora Guacira Lopes Louro doutora em Educao, professora titular aposentada da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora do CNPq. Coordena o GEERGE (Grupo de Estudos de Educao e Relaes de Gnero) desde 1990 e tem publicado vrios artigos nessa perspectiva. autora do livro Prendas e antiprendas - uma escola de mulheres (Porto Alegre, Editora da Universidade, 1987).

COLEO EDUCAO PS-CRTICA

Coordenadores: Tomaz Tadeu da Silva e Pablo Gentili - Gnero, sexualidade e educao Guacira Lopes Louro - Liberdades reguladas - A pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu Tomaz Tadeu da Silva (org.) - Imagens do outro Jorge Larrosa e Nuria Prez de Lara - A falsificao do consenso - Simulacro e imposio na reforma educacional do neoliberalismo Pablo Gentili - Utopias provisriasAs pedagogias crticas num cenrio ps-colonial Peter McLaren - Identidade e diferena - A perspectiva dos Estudos Culturais Tomaz Tadeu da Silva (org.) -Pedagogias crticas e subjetivao - Uma perspectiva foucaultiana Maria Manuela Alves Garcia

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Louro, Guacira Lopes Gnero, sexualidade e educao. Uma perspectiva ps-estruturalista / Guacira Lopes Louro - Petrpolis, RJ : Vozes, 1997. Bibliografia ISBN 85.326.1862-6 1. Diferenas entre sexos na educao 2. Educao - Finalidades e objetivos 3. Feminismo e educao 4. Sociologia educacional I. Ttulo. 97-3521 CDD-370.19345

ndices para catlogo sistemtico: 1. Diferenas entre sexos na educao 370.19345 2. Feminismo e educao 3 70.19345 3. Gnero e educao 370.19345

Guacira Lopes Louro

GNERO, SEXUALIDADE E EDUCAOUma perspectiva ps-estruturalista

6a Edio

W EDITORA VOZESPetrpolis 2003

1997, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Lus, 100 25689-900 Petrpolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poder ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.

Editorao e organizao literria: Tomaz Tadeu da Silva Diagramao: Tomaz Tadeu da Silva

ISBN 85.326.1862-6

Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.

Sumrio

Prefcio I Apresentao 7 1 A emergncia do "gnero" 14 A mulher visvel. Gnero, sexo e sexualidade. Desconstruindo e pluralizando os gneros. 2 Gnero, sexualidade e poder 37 Diferenas e desigualdades: afinal, quem diferente? 3 A construo escolar das diferenas 57 A escoiarizao dos corpos e das mentes. A fabricao das diferenas. Sexismo e homofobia na prtica educativa 4 O gnero da docncia 88 Magistrio: um trabalho "feminino"? Representaes de professores e professoras 5 Prticas educativas feministas 110 Pedagogias feministas: argumentos e crticas. Por uma prtica educativa no sexista. Educao sexual: que fazer? 6 Uma epistemologia feminista 142 Desafios e subverses. Tenses e alianas. 7 Para saber mais 161 Referncias bibliogrficas 174

Prefcio

A profundidade e amplitude com que so tratadas as questes da mulher neste livro nos coloca o desafio de ns (professoras/es, atores e atrizes da educao brasileira) de fato repensarmos nossas prticas educacional, sindical e cotidiana e nos abastecer de uma nova teoria cientfica que leve em conta as mulheres como sujeitos. 0 que nos prope Gnero, Sexualidade e Educao muito mais do que contar a histria do feminismo ou da visibilidade opresso sexista, em si, que recai sobre a mulher ao longo da histria. Ao enfocar gnero como uma categoria de anlise, a autora rev as teorias construdas pelas/os estudiosas/os feministas e prope um pensamento plural, que analise a fundo as representaes sociais e escape dos argumentos biolgicos e culturais da desigualdade, os quais sempre tm o masculino como ponto referencial. O exerccio que se prope aqui um rompimento com pensamento dicotmico: feminino em oposio ao masculino; razo/sentimento; teoria/prtica; pblico/privado, etc. "Os sujeitos que constituem a dicotomia no so, de fato, apenas homens e mulheres, mas homens e mulheres de diferentes

classes, raas, religies, idades, etc, e suas solidariedades e antagonismos podem provocar os arranjos mais diversos perturbando a noo simplista e reduzida de homem dominante e mulher dominada". Numa demorada passagem por Foucault, a autora expe a rede de poder que permeia esta questo e nos diz que os gneros se produzem na e pelas relaes de poder. Portanto, se no so as mulheres desprovidas de poder e se o exerccio do poder d-se entre os sujeitos capazes de resistir, tambm a ele inerente a liberdade. Para Foucault "No h poder sem liberdade e sem potencial de revolta". A autora no deixa escapar, amparada por um mergulho terico, outros pontos fundamentais que envolvem as questes de gnero: a linguagem, a sexualidade e a sala de aula, o homossexualismo, a construo da imagem, da professora e do professor, a relao da construo das identidades de gnero e a questo racial. Este livro nos instiga a pensar epistemologicamente as questes de Gnero e desprover-nos das armas e dos preconceitos. As palavras fazem histria, e acreditando na fora das palavras que a CNTE, atravs da Secretaria da Mulher, providenciou esta publicao e proporciona s/aos educadoras/es brasileiras/os a possibilidade de levar muito a srio, na prtica educacional e nas cons-

trues tericas, a formao das identidades de gnero e, lgico, contribuir para barrar a discriminao e a violncia que residem neste campo. Por fim, um privilgio termos a professora Guacira Lopes Louro como interlocutora deste tema. Historiadora, pesquisadora reconhecida, ela tem protagonizado muitos outros feitos importantes nos estudos de gnero. Por isso, soube to bem conduzir estas que so as dela e as nossas inquietaes. As palavras que se seguem vo fazer histria!

CARLOS A UGUSTO ABICALIL Presidente da CNTE NOEME DIN SILVA Secretria da Mulher Trabalhadora da CNTE

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ualquer apresentao requer um conhecimento prvio. Parece que isso acontece tanto com pessoas quanto com livros. Portanto no surpreende ningum o fato de que as apresentaes ou as introdues dos livros sejam escritas por ltimo, quando o trabalho est concludo e a autora (ou o autor) j disse, supostamente, tudo o que pretendia dizer. Escrevo a partir desta perspectiva, com os privilgios e os riscos que a cercam. E o texto integral, no formato que ele afinal acabou por adquirir, que me permite dar um sentido ao livro. Ele resultado de um processo longo e denso, no apenas na dimenso do tempo ou da intensidade do estudo, mas simplesmente na dimenso de minha vida. Apresent-lo tambm , de certa forma, apresentar-me. A marca feminista que hoje aparentamos (ele e eu) resulta de uma histria. Se hoje me reconheo como uma estudiosa feminista, tenho convico de que esta identidade foi sendo produzida, contestada, questionada e assumida em mltiplas relaes e prticas cotidianas, ao longo de vrios anos. Tal identidade (que continua se fazendo e se transformando) tambm um resultado aberto e provisrio. Encontros e desencontros que tive, questes e desafios que me foram feitos ou que eu prpria me fiz constituem minha histria e, de algum modo, a histria deste livro. Talvez eu possa7

agora dar um sentido renovado pessoal e poltico a tudo isso. Acho que eu no me via como feminista no final dos anos 60. Como no participava de nenhum grupo organizado que, intencionalmente, se ocupasse em discutir e mudar a "condio feminina", eu no me atribua essa identidade. Na verdade, eu era muito mais uma "moa bem comportada", normalista e depois estudiosa de Histria. Ser professora era mais do que uma possibilidade, parecia um destino. Filha de um professor universitrio e de uma dona-de-casa, desde muito jovem ficou claro para mim (e para quem me cercava) que eu gostava de estudar, de ensinar e de aprender. Livros, revistas e filmes (muitos filmes!) ocupavam privilegiadamente meu cotidiano. O ambiente escolar e acadmico foi, parece que desde sempre, um lugar "familiar". As regras e os valores das instituies educacionais foram-me transmitidos muito cedo; aprendi e manejei com habilidade a linguagem, os cdigos, os gestos e os hbitos que me permitiram circular nas escolas, depois nas universidades, nas associaes docentes, nos debates e nos encontros acadmicos. Ali, cercada geralmente mais por mulheres do que por homens (pois afinal acabei me tornando professora de Histria da Educao num curso de Pedagogia), talvez tenha feito as primeiras aproximaes explcitas com as discusses feministas. Novas condies sociais e culturais permitiam que se colocassem novas questes. Essas questes vinham das salas de aula e dos centros acadmicos, de estudantes e de colegas; muitas vezes aconteciam de8

pois de um filme ou de uma pea de teatro, no bar, inventadas junto com amigas e amigos, motivadas pelos encontros e desencontros afetivos, pelas "diferenas" que percebamos entre ns... Algumas das perguntas foram suficientemente instigantes para me lanar a uma tese de doutorado que se ocupava da "educao da mulher". Ao produzi-la, escolhendo como locus de estudo a escola onde fizera minha formao (dos cinco aos dezenove anos de idade), eu fazia tambm uma espcie de reviso, produzia um novo sentido para a histria que vivera. Mas j no era mais apenas uma histria pessoal, eu j aprendera, de algum modo, que "o pessoal poltico" e reconhecia em minha trajetria as tramas sociais, via-me constituda pelo social e tambm sua constituidora, percebia-me como pertencendo a grupos (de classe, de etnia, de sexo, de gnero). Talvez eu no "soubesse" disso tudo naquele momento ou no fosse capaz de diz-lo desta maneira, mas esses "marcadores sociais" estavam l. Aprendia, de modo muito intenso, a no mais me separar de meu objeto de investigao. (Teria sido isso possvel, algum dia?). As perguntas que valiam a pena fazer, as pesquisas que importavam, as aulas ou os debates proveitosos, as lutas que faziam sentido lutar tinham a ver com as mulheres e os homens que eu conhecia ou que podia conhecer, tinham a ver comigo. As diferenas e desigualdades que me perturbavam no estavam apenas "l fora", distantes, mas estavam se fazendo e refazendo constantemente, prximas, no coti9

diano, tinham a ver com minhas/nossas prticas sociais imediatas. Aps concluir o doutorado, a volta para minha universidade de origem teve sabor de um recomeo e tambm de novidade. Outros encontros, novos afetos, outros questionamentos e prticas ajudavam a produzir novas compreenses do social e do pessoal, do ntimo e do coletivo. Se eu continuava uma professora "dedicada" e inquieta, talvez fosse agora mais inconformada e ousasse mais. De algum modo o carter de "boa moa", sempre ansiosa pela harmonia e pelo acordo, desestabilizava-se, e eu entendia que o desacordo algumas vezes pode ser valioso, que a divergncia pode servir para esclarecer. Alargava-se (certamente no apenas para mim) o sentido e a natureza do poltico. Isso no acontecia por acaso, no fora "descoberto" numa discusso entre colegas, mas era conseqncia de um processo amplo no qual centenas de mulheres e homens estavam envolvidas/os. As questes eram feitas de mltiplos lugares, as perspectivas tericas eram confrontadas e analisadas, as formas de intervir estendiam-se. Essa histria eu a vivia, evidentemente, com parceiras e parceiros. O livro tem a ver com tudo isso. preciso que eu fale aqui de algumas dessas parcerias. Certamente a mais intensa e especial tem sido com o Tomaz, meu companheiro afetivo e intelectual. Ele rene, de modo singular, a seriedade intelectual e acadmica, o no-conformismo e o comprometimento poltico. Tenho partilhado privilegiadamente de suas pr10

ticas e aprendido muito com ele. Para escrever este livro, tive seu desafio, sua confiana e seu apoio, sempre. Eu no poderia t-lo escrito, deste modo, sem essa carinhosa parceria. O G E E R G E Grupo de Estudos de Educao e Relaes de Gnero que "inventamos" h alguns anos atrs, representa o "lugar" mais constante das perguntas, da construo dos problemas e do aprofundamento dos estudos. Mas o GEERGE, longe de ser uma entidade abstrata, gente: Dagmar, Tnia, Rosngela, Jane, Nara, Alex. Parceiras e parceiro de muitas tardes de discusso acalorada, de sentidos impasses tericos e da construo de uma estreita amizade. Ali no se sabe (e tambm no importa) quem faz as perguntas, quem provoca o debate, quem discorda ou tem uma idia notvel: somos um grupo. Este livro nutriu-se deste grupo. preciso tambm dizer da Gelsa, amiga sempre entusiasmada e vibrante, alm de intelectual atenta e crtica. Seu olhar juntou-se aos olhares do G E E R G E na paciente leitura deste texto. De modo especial com estas parcerias mas no apenas com elas - fui me constituindo como uma estudiosa feminista e construindo o projeto deste livro. Ele revela, tambm, meus intensos laos familiares e carrega, claro, marcas de minhas outras identidades e de minhas mltiplas posies. Gnero, sexualidade e educao pretende ser um livro de "introduo" que, sem abrir mo da densidade terica, possa tambm ser lido por um pblico mais 11

amplo, articulando-se ao projeto de pesquisa que venho desenvolvendo com o apoio do CNPq. O livro apresenta alguns conceitos e teorizaes recentes do campo dos Estudos Feministas e discute suas possveis relaes com a Educao, em especial com a educao escolar. A emergncia do conceito de "gnero", sua distino e relaes com referncia a sexo e sexualidade, as intrincadas redes de poder em que essas e outras categorias esto implicadas constituem tema para os dois primeiros captulos. A observao sobre quem "diferente" e a participao da escola na produo das diferenas continua e estende a discusso, trazendo tambm o aporte dos Estudos Culturais, dos Estudos Negros, dos Estudos Gays e Lsbicos. Os/as estudantes so, privilegiadamente, o foco de ateno do captulo 3, enquanto que o seguinte se volta para as professoras e os professores e para as suas representaes. As iniciativas pedaggicas feministas e as propostas de "educao sexual" so analisadas criticamente no captulo 5 e, a seguir, o captulo 6 trata dos desafios epistemolgicos postos pela e para a pesquisa feminista, acentuando as tenses e as alianas que ali vm sendo experimentadas mais recentemente. Por ltimo, o captulo 7 traz indicaes de revistas, livros, filmes ou sites da Internet para aqueles/as que desejam saber mais. As caractersticas deste campo de estudos, marcadamente poltico e contemporneo, impedem-no de ser visto como um campo terico estvel e slido. Seu carter de instabilidade e constante construo, sua proposta de auto-questionamento e de subverso de 12

paradigmas cientficos no so, no entanto, negados pelas estudiosas e estudiosos feministas. Muito pelo contrrio, tais caractersticas tm sido reivindicadas como fundamentais para a produo de uma teorizao frtil (e polmica) e para a elaborao de distintas formas de interveno social. Busco, dentro de minhas possibilidades, expressar essas marcas neste livro. Como outras/os estudiosas/os de gnero e sexualidade, provavelmente trago mais perguntas, sugestes e possibilidades do que afirmaes conclusivas. Acredito na importncia de se fazer perguntas possvel at que elas sejam mais importantes do que as respostas. No sero as perguntas que nos permitem dar sentido s nossas prticas, aos nossos livros e s nossas vidas?

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uem confia nos dicionrios (e desconfia do que ali no est) talvez tenha resistncias em iniciar este dilogo. No sentido muito especfico e particular que nos interessa aqui, gnero no aparece no Aurlio.1 Mas as palavras podem significar muitas coisas. Na verdade, elas so fugidias, instveis, tm mltiplos apelos... Admitindo que as palavras tm histria, ou melhor, que elas fazem histria, o conceito de gnero que pretendo enfatizar est ligado diretamente histria do movimento feminista contemporneo. Constituinte desse movimento, ele est implicado lingstica e politicamente em suas lutas e, para melhor compreender o momento e o significado de sua incorporao, preciso que se recupere um pouco de todo o processo. Aes isoladas ou coletivas, dirigidas contra a opresso das mulheres, podem ser observadas em muitos e diversos momentos da Histria e, mais recentemente, algumas publicaes, filmes etc. vm se preocupando em reconhecer essas aes. No entanto, quando se pretende referir ao feminismo como um movimento social organizado, esse usualmente remetido, no Ocidente, ao sculo XIX. Na virada do sculo, as manifestaes contra a discriminao feminina adquiriram uma visibilidade e 14

uma expressividade maior no chamado "sufragismo", ou seja, no movimento voltado para estender o direito do voto s mulheres. Com uma amplitude inusitada, alastrando-se por vrios pases ocidentais (ainda que com fora e resultados desiguais), o sufragismo passou a ser reconhecido, posteriormente, como a "primeira onda" do feminismo. Seus objetivos mais imediatos (eventualmente acrescidos de reivindicaes ligadas organizao da famlia, oportunidade de estudo ou acesso a determinadas profisses) estavam, sem dvida, ligados ao interesse das mulheres brancas de classe mdia, e o alcance dessas metas (embora circunscrito a alguns pases) foi seguido de uma certa acomodao no movimento. Ser no desdobramento da assim denominada "segunda onda" aquela que se inicia no final da dcada de 1960 que o feminismo, alm das preocupaes sociais e polticas, ir se voltar para as construes propriamente tericas. No mbito do debate que a partir de ento se trava, entre estudiosas e militantes, de um lado, e seus crticos ou suas crticas, de outro, ser engendrado e problematizado o conceito de gnero. J se tornou lugar comum referir-se ao ano de 1968 como um marco da rebeldia e da contestao. A referncia til para assinalar, de uma forma muito concreta, a manifestao coletiva da insatisfao e do protesto que j vinham sendo gestados h algum tempo. Frana, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha so 15

locais especialmente notveis para observarmos intelectuais, estudantes, negros, mulheres, jovens, enfim, diferentes grupos que, de muitos modos, expressam sua inconformidade e desencanto em relao aos tradicionais arranjos sociais e polticos, s grandes teorias universais, ao vazio formalismo acadmico, discriminao, segregao e ao silenciamento. 1968 deve ser compreendido, no entanto, como uma referncia a um processo maior, que vinha se constituindo e que continuaria se desdobrando em movimentos especficos e em eventuais solidariedades. , portanto, nesse contexto de efervescncia social e poltica, de contestao e de transformao, que o movimento feminista contemporneo ressurge, expressando-se no apenas atravs de grupos de conscientizao, marchas e protestos pblicos, mas tambm atravs de livros, jornais e revistas. Algumas obras hoje clssicas como, por exemplo, Le deuxime sexe, de Simone Beauvoir (1949), The feminine mystque, de Betty Friedman (1963), Sexual politics, de Kate Millett (1969) marcaram esse novo momento. Militantes feministas participantes do mundo acadmico vo trazer para o interior das universidades e escolas questes que as mobilizavam, impregnando e "contaminando" o seu fazer intelectual como estudiosas, docentes, pesquisadoras com a paixo poltica. Surgem os estudos da mulher.

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Tornar visvel aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas desses primeiros tempos. A segregao social e poltica a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como conseqncia a sua ampla invisibilidade como sujeito inclusive como sujeito da Cincia. preciso notar que essa invisibilidade, produzida a partir de mltiplos discursos que caracterizaram a esfera do privado, o mundo domstico, como o "verdadeiro" universo da mulher, j vinha sendo gradativamente rompida, por algumas mulheres. Sem dvida, desde h muito tempo, as mulheres das classes trabalhadoras e camponesas exerciam atividades fora do lar, nas fbricas, nas oficinas e nas lavouras. Gradativamente, essas e outras mulheres passaram a ocupar tambm escritrios, lojas, escolas e hospitais. Suas atividades, no entanto, eram quase sempre (como so ainda hoje, em boa parte) rigidamente controladas e dirigidas por homens e geralmente representadas como secundrias, "de apoio", de assessoria ou auxlio, muitas vezes ligadas assistncia, ao cuidado ou educao. As caractersticas dessas ocupaes, bem como a ocultao do rotineiro trabalho domstico, passavam agora a ser observadas. Mais ainda, as estudiosas feministas iriam tambm demonstrar e denunciar a ausncia feminina nas cincias, nas letras, nas artes. Assim, os estudos iniciais se constituem, muitas vezes, em descries das condies de vida e de tra17

balho das mulheres em diferentes instncias e espaos. Estudos das reas da Antropologia, Sociologia, Educao, Literatura etc. apontam ou comentam as desigualdades sociais, polticas, econmicas, jurdicas, denunciando a opresso e submetimento feminino. Contam, criticam e, algumas vezes, celebram as "caractersticas" tidas como femininas. Com o objetivo de fazer avanar essas anlises e acreditando na potencialidade dos empreendimentos coletivos, algumas mulheres vo fundar revistas, promover eventos, organizar-se em grupos ou ncleos de estudos... s vezes transformados em guetos, mediante processos nos quais tambm tm responsabilidade e envolvimento, muitos desses grupos acabam por ser excludos (e por se exclurem) da dinmica mais ampla do mundo acadmico. Torna-se comum a tendncia de deixar que nesses espaos (e apenas neles) se tratem das questes relacionadas mulher. Deste modo, propostas, que iam desde a "integrao do universo feminino ao conjunto social" at pretenses mais ambiciosas de "subverso dos paradigmas tericos vigentes", enfrentam muitas dificuldades para se impor. H uma disposio para que pesquisadoras mulheres se ocupem em discutir ou construir uma Histria, uma Literatura, ou uma Psicologia da mulher de algum modo perturbando pouco a noo de um universo feminino separado. Seria, no entanto, um engano deixar de reconhecer a importncia destes primeiros estudos. Acima de tudo, 18

eles tiveram o mrito de transformar as at ento esparsas referncias s mulheres as quais eram usualmente apresentadas como a exceo, a nota de rodap, o desvio da regra masculina em tema central. Fizeram mais, ainda: levantaram informaes, construram estatsticas, apontaram lacunas em registros oficiais, vieses nos livros escolares, deram voz quelas que eram silenciosas e silenciadas, focalizaram reas, temas e problemas que no habitavam o espao acadmico, falaram do cotidiano, da famlia, da sexualidade, do domstico, dos sentimentos. Fizeram tudo isso, geralmente, com paixo, e esse foi mais um importante argumento para que tais estudos fossem vistos com reservas. Eles, decididamente, no eram neutros. Coloca-se aqui, no meu entender, uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu carter poltico. Objetividade e neutralidade, distanciamento e iseno, que haviam se constitudo, convencionalmente, em condies indispensveis para o fazer acadmico, eram problematizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a lanar mo, cada vez com mais desembarao, de lembranas e de histrias de vida; de fontes iconogrficas, de registros pessoais, de dirios, cartas e romances. Pesquisadoras escreviam na primeira pessoa. Assumia-se, com ousadia, que as questes eram interessadas, que elas tinham origem numa trajetria histrica especfica que construiu o lugar social das mulheres e que o estudo de tais questes tinha (e tem) pretenses de mudana. 19

Estudos sobre as vidas femininas formas de trabalho, corpo, prazer, afetos, escolarizao, oportunidades de expresso e de manifestao artstica, profissional e poltica, modos de insero na economia e no campo jurdico aos poucos vo exigir mais do que descries minuciosas e passaro a ensaiar explicaes. Se para algumas as teorizaes marxistas representaro uma referncia fundamental, para outras as perspectivas construdas a partir da Psicanlise podero parecer mais produtivas. Haver tambm aquelas que afirmaro a impossibilidade de ancorar tais anlises em quadros tericos montados sobre uma lgica androcntrica e que buscaro produzir explicaes e teorias propriamente feministas, originando o "feminismo radical". Em cada uma dessas filiaes tericas usualmente se reconhece um mvel ou causa central para a opresso feminina e, em decorrncia, se constri uma argumentao que supe a destruio dessa causa central como o caminho lgico para a emancipao das mulheres. Essas diferentes perspectivas analticas, embora fonte de debates e polmicas, no impedem que se observem motivao e interesses comuns entre as estudiosas. Numa outra posio, estaro aqueles/as que justificam as desigualdades sociais e n t r e homens e mulheres, rementendo-as, geralmente, s caractersticas biolgicas. O argumento de q u e homens e mulheres so biologicamente distintos e que a relao entre ambos decorre dessa distino, que complementar e na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente, acaba por ter o carter de 20

argumento final, irrecorrvel. Seja no mbito do senso comum, seja revestido por uma linguagem "cientfica", a distino biolgica, ou melhor, a distino sexual, serve para compreender e justificar a desigualdade social. imperativo, ento, contrapor-se a esse tipo de argumentao. necessrio demonstrar que no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a forma como essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai constituir, efetivamente, o que feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histrico. Para que se compreenda o lugar e as relaes de homens e mulheres numa sociedade importa observar no exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, ento, atravs de uma nova linguagem, na qual gnero ser um conceito fundamental.Gnero, sexo e sexualidade

E atravs das feministas anglo-saxs que gender passa a ser usado como distinto de sex. Visando "rejeitar um determinismo biolgico implcito no uso de termos como sexo ou diferena sexual", elas desejam acentuar, atravs da linguagem, "o carter fundamentalmente social das distines baseadas no sexo" (Scott, 1995, p. 72). O conceito serve, assim, como uma ferramenta analtica que , ao mesmo tempo, uma ferramenta poltica. Ao dirigir o foco para o carter "fundamentalmente 21

social", no h, contudo, a pretenso de negar que o gnero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, no negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construo social e histrica produzida sobre as caractersticas biolgicas. Como diz Robert Connell (1995, p. 189), "no gnero, a prtica social se dirige aos corpos". O conceito pretende se referir ao modo como as caractersticas sexuais so compreendidas e representadas ou, ento, como so "trazidas para a prtica social e tornadas parte do processo histrico". Pretende-se, dessa forma, recolocar o debate no campo do social, pois nele que se constroem e se reproduzem as relaes (desiguais) entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser buscadas no nas diferenas biolgicas (se que mesmo essas podem ser compreendidas fora de sua constituio social), mas sim nos arranjos sociais, na histria, nas condies de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representao. O conceito passa a ser usado, ento, com um forte apelo relacionai j que no mbito das relaes sociais que se constroem os gneros. Deste modo, ainda que os estudos continuem priorizando as anlises sobre as mulheres, eles estaro agora, de forma muito mais explcita, referindo-se tambm aos homens. Busca-se, intencionalmente, contextualizar o que se afirma ou se supe sobre os gneros, tentando evitar as afirmaes generalizadas a respeito da "Mulher" ou do "Homem". 22

Na medida em que o conceito afirma o carter social do feminino e do masculino, obriga aquelas/es que o empregam a levar em considerao as distintas sociedades e os distintos momentos histricos de que esto tratando. Afasta-se (ou se tem a inteno de afastar) proposies essencialistas sobre os gneros; a tica est dirigida para um processo, para uma construo, e no para algo que exista a priori. O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representaes sobre mulheres e homens so diversos. Observa-se que as concepes de gnero diferem no a p e n a s e n t r e as s o c i e d a d e s ou os momentos histricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos (tnicos, religiosos, raciais, de classe) que a constituem. O que ocorre , ento, uma importante transformao nos Estudos Feministas transformao essa que no se faz sem intensas discusses e polmicas. Vale notar que, implicado lingstica e politicamente no debate anglo-saxo, o termo no poderia ser simplesmente transposto para outros contextos sem que sofresse, tambm nesses novos espaos, um processo de disputa, de ressignificao e de apropriao. Assim, no Brasil, ser j no final dos anos 80 que, a princpio timidamente, depois mais amplamente, feministas passaro a utilizar o termo "gnero". A caracterstica fundamentalmente social e relacional do conceito no deve, no entanto, levar a pens-lo como se referindo construo de papis masculinos e 23

femininos. Papis seriam, basicamente, padres ou regras arbitrrias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar... Atravs do aprendizado de papis, cada um/a deveria conhecer o que considerado adequado (e inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas. Ainda que utilizada por muitos/as, essa concepo pode se mostrar redutora ou simplista. Discutir a aprendizagem de papis masculinos e femininos parece remeter a anlise para os indivduos e para as relaes interpessoais. As desigualdades entre os sujeitos tenderiam a ser consideradas no mbito das interaes face a face. Ficariam sem exame no apenas as mltiplas formas que podem assumir as masculinidades e as feminilidades, como tambm as complexas redes de poder q u e (atravs das instituies, dos discursos, dos cdigos, das prticas e dos smbolos...) constituem hierarquias entre os gneros. A pretenso , ento, entender o gnero como constituinte da identidade dos sujeitos. E aqui nos vemos frente a outro conceito complexo, que pode ser formulado a partir de diferentes perspectivas: o conceito de identidade. Numa aproximao s formulaes mais crticas dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais, compreendemos os sujeitos como tendo identidades plurais, mltiplas; identidades que se transformam, que no so fixas ou permanentes, que podem, at mesmo, ser contraditrias. Assim, o sentido 24

de pertencimento a diferentes grupos tnicos, sexuais, de classe, de gnero, etc. constitui o sujeito e pode lev-lo a se perceber como se fosse "empurrado em diferentes direes", como diz Stuart Hall (1992, p. 4). Ao afirmar que o gnero institui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que transcende o mero desempenho de papis, a idia perceber o gnero fazendo parte do sujeito, constituindo-o. O sujeito brasileiro, negro, homem, etc. Nessa perspectiva admite-se que as diferentes instituies e prticas sociais so constitudas pelos gneros e so, tambm, constituintes dos gneros. Estas prticas e instituies "fabricam" os sujeitos. Busca-se compreender que a justia, a igreja, as prticas educativas ou de governo, a poltica, etc. so atravessadas pelos gneros: essas instncias, prticas ou espaos sociais so "generificados" produzem-se, ou "engendram-se", a partir das relaes de gnero (mas no apenas a partir dessas relaes, e sim, tambm, das relaes de classe, tnicas, etc.).2 importante que notemos que grande parte dos discursos sobre gnero de algum modo incluem ou englobam as questes de sexualidade (Mac An Ghaill, 1996). Antes de avanarmos, no entanto, talvez seja importante tentar estabelecer algumas distines entre gnero e sexualidade, ou entre identidades de gnero e identidades sexuais. verdade que, ao fazer isso, corremos o risco de cair numa esquematizao, j que na prtica social tais dimenses so, usualmente, articu25

ladas e confundidas. Apenas mais recentemente alguns estudiosos e estudiosas esto buscando um refinamento nas anlises, acentuando algumas distines que podem ser importantes. Ao longo de seus estudos, Jeffrey Weeks (1993, p. 6) afirma inmeras vezes que "a sexualidade tem tanto a ver com as palavras, as imagens, o ritual e a fantasia como com o corpo". Compartilhando da posio de muitos outros estudiosos e estudiosas, ele fala da impossibilidade de se "compreender a sexualidade observando apenas seus componentes 'naturais'(...), esses ganham sentido atravs de processos inconscientes e formas culturais" (p. 21).3 Se Foucault foi capaz de traar uma Histria da Sexualidade (1988), isso aconteceu pelo fato de compreend-la como uma "inveno social", ou seja, por entender que ela se constitui a partir de mltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normalizam, que instauram saberes, que produzem "verdades". Observamos que os sujeitos podem exercer sua sexualidade de diferentes formas, eles podem "viver seus desejos e prazeres corporais" de muitos modos (Weeks, apud Britzman, 1996). Suas identidades sexuais se constituiriam, pois, atravs das formas como vivem sua sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros/as. Por outro lado, os sujeitos tambm se identificam, social e historicamente, como masculinos ou femininos e assim constroem suas identidades de gnero. Ora, evidente 26

que essas identidades (sexuais e de gnero) esto profundamente inter-relacionadas; nossa linguagem e nossas prticas muito freqentemente as confundem, tornando difcil pens-las distintivamente. No entanto, elas no so a mesma coisa. Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais (e, ao mesmo tempo, eles tambm podem ser negros, brancos, ou ndios, ricos ou pobres etc). O que importa aqui considerar que tanto na dinmica do gnero como na dinmica da sexualidade as identidades so sempre construdas, elas no so dadas ou acabadas num determinado momento. No possvel fixar um momento seja esse o nascimento, a adolescncia, ou a maturidade que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou a identidade de gnero seja "assentada" ou estabelecida. As identidades esto sempre se constituindo, elas so instveis e, portanto, passveis de transformao. Deborah Britzman (1996, p. 74) afirma: Nenhuma identidade sexual mesmo a mais normativa automtica, autntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociao ou construo. No existe, de um lado, uma identidade heterossexual l fora, pronta, acabada, esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instvel, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual um constructo instvel, mutvel e voltil, uma relao social contraditria e no finalizada (grifos da autora).27

possvel pensar as identidades de gnero de modo semelhante: elas tambm esto continuamente se construindo e se transformando. Em suas relaes sociais, atravessadas por diferentes discursos, smbolos, representaes e prticas, os sujeitos vo se construindo como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposies, suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construes e esses arranjos so sempre transitrios, transformando-se no apenas ao longo do tempo, historicamente, como tambm transformando-se na articulao com as histrias pessoais, as identidades sexuais, tnicas, de raa, de classe ... Mais uma observao a ser feita: algumas estudiosas e estudiosos (como Judith Butler) vm sugerindo que usualmente pensamos e trabalhamos sobre gnero "numa matriz heterossexual". Contudo, Butler (apud Mac An Ghaill, 1996, p. 198) diz que ... crucial manter uma conexo no-causal e noredutiva entre gnero e sexualidade. Exatamente devido ao fato de a homofobia operar muitas vezes atravs da atribuio aos homossexuais de um gnero defeituoso, de um gnero falho ou mesmo abjeto, que se chama os homens gay de "femininos" ou se chama as mulheres lsbicas de "masculinas". A homofobia, o medo voltado contra os/as homossexuais, pode se expressar ainda numa espcie de "terror em relao perda do gnero", ou seja, no terror de no28

ser mais considerado como um homem ou uma mulher "reais"ou "autnticos/as". Por tudo isso, Judith afirma que "crucial manter um aparato terico que leve em considerao o modo como a sexualidade regulada atravs do policiamento e da censura do gnero".Desconstruindo e pluralizando os gneros

Ainda que gnero, enquanto categoria analtica, passe a ser utilizado, com maior ou menor propriedade e ajustamento, no contexto de vrios paradigmas tericos, uma parte significativa das formulaes produzidas pelas/os feministas atuais estabelece articulaes entre essa conceptualizao e algumas teorizaes ps-estruturalistas. Na verdade, seria difcil supor que movimentos contemporneos (no caso, o feminismo e o psestruturalismo, ambos se constituindo em meio efervescncia intelectual do final dos anos 60) deixassem de produzir efeitos mtuos e fossem capazes de se manter isolados. Expressando-se de formas diversas, por vezes aparentemente independentes, feministas e ps-estruturalistas compartilham das crticas aos sistemas explicativos globais da sociedade; apontam limitaes ou incompletudes nas formas de organizao e de compreenso do social abraadas pelas esquerdas; problematizam os modos convencionais de produo e divulgao do que admitido como cincia; questionam a concepo de um poder central e unificado regendo o todo social, etc. 29

As produes dos/as pensadores/as ps-estruturalistas e feministas tero, pois, pontos de contato, mesmo que sejam tambm evidentes algumas zonas de discordncia ou atrito. Acentua-se e amplia-se, assim, o debate entre as/os estudiosas/os feministas, na medida em que a apropriao de insights ou conceitos ps-estruturalistas assumida por algumas/alguns e rejeitada por outras/outros. Entre as estudiosas mais conhecidas nesse campo est Joan Scott, historiadora norte-americana que escreve, em 1986, um artigo instigante: Gender: a useful category of historical analysis. Traduzido e divulgado no Brasil,4 o texto passa a ser utilizado amplamente por aquelas/es interessadas/os nas relaes de gnero. No entanto, as implicaes tericas da abordagem de Scott talvez tenham sido, muitas vezes, observadas um tanto superficialmente, j que seu estudo serve de suporte a trabalhos marcados pelas mais diversas perspectivas (Louro, 1995a). Ela no esconde, entretanto, que toma de emprstimo alguns conceitos ps-estruturalistas, em especial elaborados por Michel Foucault e Jacques Derrida. No nega, tambm, que, para uma historiadora social feminista, aproximar-se e apropriar-se de teorizaes feitas no campo da Filosofia e da Teoria Literria foi difcil. Por tudo isso possvel compreender que as idias que ela prope tenham sido frteis e, ao mesmo tempo, perturbadoras. Um ponto importante em sua argumentao a idia de que preciso desconstruir o "carter perma30

nente da oposio binria" masculino-feminino. Em outras palavras: Joan Scott observa que constante nas anlises e na compreenso das sociedades um pensamento dicotmico e polarizado sobre os gneros; usualmente se concebem homem e mulher como plos opostos que se relacionam dentro de uma lgica invarivel de dominao-submisso. Para ela seria indispensvel implodir essa lgica. Scott no est sozinha nessas observaes, outras estudiosas e estudiosos tambm apontam as limitaes implcitas nessa rgida viso polarizada. A base de algumas dessas argumentaes pode ser encontrada em Jacques Derrida. Lembra esse filsofo que o pensamento moderno foi e marcado pelas dicotomias (presena/ausncia, teoria/prtica, cincia/ideologia etc). No "jogo das dicotomias" os dois plos diferem e se opem e, aparentemente, cada um uno e idntico a si mesmo. A dicotomia marca, tambm, a superioridade do primeiro elemento. Aprendemos a pensar e a nos pensar dentro dessa lgica e abandon-la no pode ser tarefa simples. A proposio de desconstruo das dicotomias problematizando a constituio de cada plo, demonstrando que cada um na verdade supe e contm o outro, evidenciando que cada plo no uno, mas plural, mostrando que cada plo , internamente, fraturado e dividido pode se constituir numa estratgia subversiva e frtil para o pensamento. Desconstruir a polaridade rgida dos gneros, ento, significaria problematizar tanto a oposio entre 31

eles quanto a unidade interna de cada um. Implicaria observar que o plo masculino contm o feminino (de modo desviado, postergado, reprimido) e vice-versa; implicaria tambm perceber que cada um desses plos internamente fragmentado e dividido (afinal no existe a mulher, mas vrias e diferentes mulheres que no so idnticas entre si, que podem ou no ser solidrias, cmplices ou opositoras). Por outro lado, essa eterna oposio binria usualmente nos faz equiparar, pela mesma lgica, outros pares de conceitos, como "produo-reproduo", "pblico-privado", "razo-sentimento", etc. Tais pares correspondem, possvel imediatamente perceber, ao masculino e ao feminino, e evidenciam a prioridade do primeiro elemento, do qual o outro se deriva, conforme supe o pensamento dicotmico. Ora, fcil concluir que essa lgica problemtica para a perspectiva feminista, j que ela nos "amarra" numa posio que , aparentemente, conseqente e inexorvel. Uma lgica que parece apontar para um lugar "natural" e fixo para cada gnero. A desconstruo trabalha contra essa lgica, faz perceber que a oposio construda e no inerente e fixa. A desconstruo sugere que se busquem os processos e as condies que estabeleceram os termos da polaridade. Supe que se historicize a polaridade e a hierarquia nela implcita. Teresa de Lauretis (1986, p. 12), uma importante estudiosa feminista, lembra que o prprio "significado32

da diferena sexual" colocado em termos de oposio ("natureza ou cultura, biologia ou socializao"), o que um modo de compreenso que est muito prximo da conhecida expresso "anatomia-destino". H pouco avano, segundo Teresa, em se dizer que a diferena sexual cultural; o problema que permanece o de conceber as diferenas (sejam elas consideradas culturais, sociais, subjetivas) "em relao ao homem sendo ele a medida, o padro, a referncia de todo discurso legitimado". A lgica dicotmica carrega essa idia. Em conseqncia, essa lgica supe que a relao masculino-feminino constitui uma oposio entre um plo dominante e outro dominado e essa seria a nica e permanente forma de relao entre os dois elementos. O processo desconstrutivo permite perturbar essa idia de relao de via nica e observar que o poder se exerce em vrias direes. O exerccio do poder pode, na verdade, fraturar e dividir internamente cada termo da oposio. Os sujeitos que constituem a dicotomia no so, de fato, apenas homens e mulheres, mas homens e mulheres de vrias classes, raas, religies, idades, etc. e suas solidariedades e antagonismos podem provocar os arranjos mais diversos, perturbando a noo simplista e reduzida de "homem dominante versus mulher dominada". Por outro lado, no custa reafirmar que os grupos dominados so, muitas vezes, capazes de fazer dos espaos e das instncias de opresso, lugares de resistncia e de exerccio de poder. 33

Uma das conseqncias mais significativas da desconstruo dessa oposio binria reside na possibilidade que abre para que se compreendam e incluam as diferentes formas de masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A concepo dos gneros como se produzindo dentro de uma lgica dicotmica implica um plo que se contrape a outro (portanto uma idia singular de masculinidade e de feminilidade), e isso supe ignorar ou negar todos os sujeitos sociais que no se "enquadram" em uma dessas formas. Romper a dicotomia poder abalar o enraizado carter heterossexual que estaria, na viso de muitos/as, presente no conceito "gnero". Na verdade, penso que o conceito s poder manter sua utilidade terica na medida em que incorporar esses questionamentos. Mulheres e homens, que vivem feminilidades e masculinidades de formas diversas das hegemnicas e que, portanto, muitas vezes no so representados/as ou reconhecidos/as como "verdadeiras/verdadeiros" mulheres e homens, fazem crticas a esta estrita e estreita concepo binria. Vale notar que as crticas a tal concepo so tambm feitas por outras feministas que percebem o conceito como extremamente marcado por sua origem acadmica, branca, de classe mdia. Sendo assim, a menos que se desconstrua a polarizao dos gneros e se problematize a identidade no interior de cada plo, se deixar de contemplar os interesses, as experincias e os questionamentos de muitas mulheres, como os das mulheres no-brancas e as lsbicas (bem como se deixaro de fora as diferentes formas de masculinidade). 34

"Paradoxalmente", como diz Teresa de Lauretis (1994, p. 209), "a construo do gnero tambm se faz por meio de sua desconstruo". Ao aceitarmos que a construo do gnero histrica e se faz incessantemente, estamos entendendo que as relaes entre homens e mulheres, os discursos e as representaes dessas relaes esto em constante mudana. Isso supe que as identidades de gnero esto continuamente se transformando. Sendo assim, indispensvel admitir que at mesmo as teorias e as prticas feministas com suas crticas aos discursos sobre gnero e suas propostas de desconstruo esto construindo gnero.Notas1. No Dicionrio do Aurlio (1994), aparece uma srie de definies para gnero, desde seus significados no mbito da Lgica, da Biologia, da Gramtica, at usos mais correntes como "maneira, modo, estilo", "classe ou natureza do assunto abordado por um artista" ou, ainda, expresses classificadas como gria: "fazer gnero" ("fingir ser o que no ") e "no fazer o gnero de" ("no estar conforme a opinio ou gosto de 'algum; no agradar a"). 2. Vale notar que o American Heritage Dictionary inclui entre suas definies, gender como "sexual identity, especially in relation to society or culture", acrescentando tambm o verbo to gender (como sinnimo de to engender, o que se poderia traduzir por engendrar, criar, produzir). Por outro lado, o Dicionrio do Aurlio ainda permanece sem registrar nenhuma conotao prxima reclamada pelos Estudos Feministas. 3. Para Jeffrey Weeks (1993, p. 21) no existem relaes simples ou fceis entre "sexo" e "sociedade"; qualquer forma de pensar que separe essas duas instncias resulta num reducionismo. "As possibilidades erticas do animal humano, sua capacidade de ternura,

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intimidade e prazer nunca podem ser expressadas 'espontaneamente', sem transformaes muito complexas: organizam-se numa intrincada rede de crenas, conceitos e atividades sociais, numa histria complexa e cambiante". 4. O artigo, publicado inicialmente em 1986 no American Historical Review, 91 (5), posteriormente integrou o livro de Joan Scott, Gender and Politics of History (Nova York, Columbia University Press, 1988). Uma traduo em portugus, realizada por mim, a partir do texto em francs (Les cahiers de GRIF, de 1988), foi publicada na revista Educao e Realidade, 16 (2), de 1990. Uma nova traduo, revista por Tomaz Tadeu da Silva, do original em ingls, foi publicada em Educao e Realidade, 20 (2), de 1995.

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O

s Estudos Feministas estiveram sempre centralmente preocupados com as relaes de poder. Como j foi salientado, inicialmente esses estudos procuraram demonstrar as formas de silenciamento, submetimento e opresso das mulheres. A exposio dessas situaes parece ter sido indispensvel para que se visibilizasse aquelas que, histrica e lingisticamente, haviam sido negadas ou secundarizadas. Mas se a denncia foi imprescindvel, ela tambm permitiu, algumas vezes, que se cristalizasse uma vitimizao feminina ou, em outros momentos, que se culpasse a mulher por sua condio social hierarquicamente subordinada. De qualquer modo, a concepo que atravessou grande parte dos Estudos Feministas foi (e talvez ainda seja) a de um homem dominante versus uma mulher dominada como se essa fosse uma frmula nica, fixa e permanente. No entanto, j h algum tempo, algumas estudiosas e estudiosos vm problematizando essa concepo. Por um lado, so enfatizadas as formas e locais de resistncia feminina; por outro lado, so observadas as perdas ou os custos dos homens no exerccio de sua superioridade" social; alm disso, o movimento gay e o movimento de mulheres lsbicas tambm vm demons37

trando que o esquema polarizado linear no d conta da complexidade social. Nos ltimos anos, a leitura de Michel Foucault por estudiosas/os das relaes de gnero resultou em novos debates e, de um modo especial, trouxe contribuies para as discusses sobre as relaes de poder. Aquelas/es que se aproximam de Foucault provavelmente concordam que o poder tem um lugar significativo em seus estudos e que sua "analtica do poder" inovadora e instigante. Foucault desorganiza as concepes convencionais que usualmente remetem centralidade e posse do poder e prope que observemos o poder sendo exercido em muitas e variadas direes, como se fosse uma rede que, "capilarmente", se constitui por toda a sociedade. Para ele, o poder deveria ser concebido mais como "uma estratgia"; ele no seria, portanto, um privilgio que algum possui (e transmite) ou do qual algum se "apropria". Mais preocupado com os efeitos do poder, Foucault diz que seria importante que se percebesse esses efeitos como estando vinculados "a disposies, a manobras, a tticas, a tcnicas, a funcionamentos" (Foucault, 1987, p. 29). No contexto desse referencial terico, fica extremamente problemtico aceitar que um plo tem o poder estavelmente e outro, no. Em vez disso, deve-se supor que o poder exercido pelos sujeitos e que tem efeitos sobre suas aes. Torna-se central pensar no exerccio do poder; exerccio que se constitui38

por "manobras", "tcnicas", "disposies", as quais so, por sua vez, resistidas e contestadas, respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas. E importante notar que, na concepo de Foucault, o exercco do poder sempre se d entre sujeitos que so capazes de resistir (pois, caso contrrio, o que se verifica, segundo ele, uma relao de violncia). Antonio Maia (1995, p. 89), estudando a "analtica do poder de Foucault", afirma: H nas relaes de poder um enfrentamento constante e perptuo. Como corolrio desta idia teremos que estas relaes no se do onde no haja liberdade. Na definio de Foucault a existncia de liberdade, garantindo a possibilidade de reao por parte daqueles sobre os quais o poder exercido, apresenta-se como fundamental. No h poder sem liberdade e sem potencial de revolta. A polaridade fixa , pois, impossvel dentro de seu raciocnio. De fato, Foucault acrescenta que se deve buscar observar o poder como "uma rede de relaes sempre tensas, sempre em atividade". Sugere que, preferentemente, se d ao poder "mais como modelo a batalha perptua do que o contrato que faz uma cesso ou uma conquista que se apodera de um domnio" (Foucault, 1987, p. 29). Tais referncias podem ser teis para os Estudos Feministas. Afinal, homens e mulheres, atravs das mais diferentes prticas sociais, constituem relaes em Que h, constantemente, negociaes, avanos, recuos, 39

consentimentos, revoltas, alianas. Talvez uma interessante representao dessas prticas seja imagin-las como semelhantes a jogos em que os participantes esto sempre em atividade, em vez de reduzi-las, todas, a um esquema mais ou menos fixo em que um dos "contendores" , por antecipao e para sempre, o vencedor. Isso no significa, no entanto, desprezar o fato de que as mulheres (e tambm os homens que no compartilham da masculinidade hegemnica) tenham, mais freqente e fortemente, sofrido manobras de poder que os constituem como o outro, geralmente subordinado ou submetido mas tais manobras no as/os anularam como sujeitos. Nas palavras de Foucault (1988, p. 91): "l onde h poder, h resistncia e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posio de exterioridade em relao ao poder". A resistncia ou melhor, "a multiplicidade de pontos de resistncia" seria inerente ao exerccio do poder. As concepes tradicionais so tambm perturbadas por outro insight de Foucault, que consiste em perceber o poder no apenas como coercitivo e negativo, mas como produtivo e positivo. O poder no apenas nega, impede, cobe, mas tambm "faz", produz, incita. Chamando a ateno para as mincias, para os detalhes, para tticas ou tcnicas aparentemente banais, ele nos faz observar que o poder produz sujeitos, fabrica corpos dceis, induz comportamentos, "aumenta a utilidade econmica" e "diminui a fora poltica" dos indivduos (Machado, 1993, p. XVI).40

Homens e mulheres certamente no so construdos apenas atravs de mecanismos de represso ou censura, eles e elas se fazem, tambm, atravs de prticas e relaes que instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir, condutas e posturas apropriadas (e, usualmente, diversas). Os gneros se produzem, portanto, nas e pelas relaes de poder. Certamente se poderia estender a reflexo para alm dessas idias sobre o "poder disciplinar" o qual constitui, atravs de prticas cotidianas e de tcnicas minuciosas, os sujeitos. O conceito foucaultiano de "biopoder", ou seja, o poder de controlar as populaes, de controlar o "corpo-espcie" tambm parece ser til para que se pense no conjunto de disposies e prticas que foram, historicamente, criadas e acionadas para controlar homens e mulheres. Nelas possvel identificar estratgias e determinaes que, de modo muito direto, instituram lugares socialmente diferentes para os gneros, ao tratarem, por exemplo, de "medidas de incentivo ao casamento e procriao". Aqui tambm se trata de um poder que exercido sobre os corpos dos sujeitos, ainda que agora esses sejam observados de um modo mais coletivo trata-se do "corpo-molar da populao". As relaes entre os gneros continuam, sem dvida, objeto de ateno, uma vez que distintas estratgias p r o c u r a m intervir nos agrupamentos humanos, buscando regular e controlar taxas de nascimento e mortalidade, condies de sade, expectativas de vida, deslocamentos geogrficos, etc. 41

As lentes de Foucault ainda poderiam provocar outros olhares sobre as relaes de poder entre os gneros: a normalizao da conduta dos meninos e meninas, a produo dos saberes sobre a sexualidade e os corpos, as tticas e as tecnologias que garantem o "governo" e o "auto-governo" dos sujeitos... Deixo de desenvolver essas idias aqui, uma vez que elas sero retomadas ao longo dos outros captulos. Sem dvida o governo das crianas e das mulheres, exercido pelos homens (pais, magistrados, religiosos, mdicos), bem como o "governo de si" (objetivo final dos mltiplos processos educativos exercidos sobre meninos e meninas, homens e mulheres) ocuparo nossa ateno quando nos voltarmos mais diretamente para o campo da Educao. Essas indicaes bsicas sobre as relaes de poder entre os gneros podem ser provisoriamente arrematadas por palavras do filsofo que acenam para a despolarizao de nosso pensamento. Diz Foucault (1988, p. 96): ... no se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excludo, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrrio, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratgias diferentes. (...) Os discursos, como os silncios, nem so submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. preciso admitir um jogo complexo e instvel em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e42

efeito de poder, e tambm obstculo, escora, ponto de resistncia e ponto de partida de uma estratgia oposta. O discurso veicula e produz poder; refora-o mas tambm o mina, expe, debilita e permite barr-lo. Da mesma forma, o silncio e o segredo do guarida ao poder, fixam suas interdies; mas, tambm, afrouxam seus laos e do margem a tolerncias mais ou menos obscuras. Diferenas e desigualdades: afinal, quem diferente? No interior das redes de poder, pelas trocas e jogos que constituem o seu exerccio, so institudas e nomeadas as diferenas e desigualdades. Certamente essas distines se referem s vrias categorias ou, como diz Deborah Britzman (1996), aos diversos "marcadores sociais": gnero, classe, sexualidade, aparncia fsica, nacionalidade, etnia... Aqui vamos nos voltar de modo privilegiado (ainda que no exclusivo) para o gnero e a sexualidade, buscando observar como so fixadas as diferenas nesses terrenos. Dizer que as mulheres so diferentes dos homens se constitui, a princpio, numa afirmao irrefutvel. Afirmao que acompanhada, freqentemente, da exclamao: "E viva a diferena!". Muito se poderia pensar sobre isso. Inicialmente, parece evidente que a diferena a que se est aludindo aqui, de modo irrecorrvel, remete-se a um estrito ou estreito domnio biolgico mais explicitamente, ao domnio sexual. (E vol43

taramos a questionar: existe um domnio biolgico que possa ser compreendido fora do social? possvel separar cultura e biologia?). No preciso grande esforo para perceber que a frase suficientemente sinttica para permitir representar muitos atributos nessa nomeao de "diferena". possvel observar, tambm, que usualmente se diz: "as mulheres so diferentes dos homens", ou seja, elas diferem deles que devem ser tomados como a norma. Vale ento repetir a reflexo de Terry Eagleaton (1983, p.143): "a mulher o oposto, 'o outro' do homem: ela o no-homem, o homem a que falta algo..." Mas a exclamao que segue "Viva a diferena!" talvez seja ainda mais problemtica. Essa saudao ou elogio da diferena, proferida por homens e por mulheres, parece implicar (queiram ou no aqueles/as que a emitem) uma conformao ao status quo das relaes entre os gneros, ou seja, parece indicar que se aceita (ou at que se "v com bons olhos") essas relaes tal como elas esto atualmente constitudas. necessrio, ento, aprofundarmos um pouco essa questo. Nos discursos atuais, o apelo diferena est se tornando quase um lugar comum (o que j nos leva a sermos cautelosas/os, desconfiando de seu uso irrestrito). Certamente o carter poltico que a questo teve (e tem) no mbito dos Estudos Feministas e dos Estudos Culturais no pode ser o mesmo com que ela admitida e repetida pelos setores mais tradicionais, pela mdia ou at pela nova direita. 44

Ainda que a expresso "diferena" possa como de resto qualquer outra adquirir diferentes significados em diferentes contextos sociais, polticos ou culturais, para a sua importncia no campo do feminismo que vamos nos voltar aqui. Se a primeira referncia, nesse campo, acena para a distino entre os gneros, importante observar que ela tambm est carregada da afirmao da diferena entre as mulheres. Relacionada, a princpio, s distines biolgicas, a diferena entre os gneros serviu para explicar e justificar as mais variadas distines entre mulheres e homens. Teorias foram construdas e utilizadas para "provar" distines fsicas, psquicas, comportamentais; para indicar diferentes habilidades sociais, talentos ou aptides; para justificar os lugares sociais, as possibilidades e os destinos "prprios" de cada gnero. O movimento feminista vai, ento, se ocupar centralmente dessa diferena e de suas conseqncias. A diferena entre as mulheres, reclamada, num primeiro momento, pelas mulheres de cor,1 foi, por sua vez, desencadeadora de debates e rupturas no interior do movimento feminista. Com o acrscimo dos questionamentos trazidos pelas mulheres lsbicas, os debates tornaram-se ainda mais complexos, acentuando a diversidade de histrias, de experincias e de reivindicaes das muitas (e diferentes) mulheres. Mas o que estava centralmente implicado em todas essas discusses eram as relaes de poder que ali se construam e se pretendiam fixar. Importava saber 45

quem definia a diferena, quem era considerada diferente, o que significava ser diferente. O que estava em jogo, de fato, eram desigualdades. A esse propsito, Joan Scott (1988) aponta o equvoco de se conceber o par "diferena-igualdade" como um "dilema", ao qual as feministas teriam necessariamente de se entregar. Lembra que a luta primeira se centrava na reivindicao da igualdade entre as mulheres e os homens (igualdade social, poltica, econmica). Avanando em suas teorizaes, o feminismo vai responder "acusao" da diferena transformandoa numa afirmao, ou seja, no apenas reconhecendo mas procurando valorizar, positivamente, a diferena entre mulheres e homens. Crticos do movimento vo, ento, colocar essas duas proposies igualdade ou diferena como alternativas inconciliveis. Afinal, dizem eles, o que querem as mulheres, o que buscam afirmar: a igualdade ou a diferena? Scott observa que esse desafio representa uma armadilha, uma "falsa dicotomia", j que igualdade um conceito poltico que supe a diferena. Segundo ela, no h sentido em se reivindicar a igualdade para sujeitos que so idnticos, ou que so os mesmos. Na verdade, reivindica-se que sujeitos diferentes sejam considerados no como idnticos, mas como equivalentes. O que Joan procura fazer, com essa argumentao, dar sentido a alguns "momentos" e problematizaes colocadas para e pelos Estudos Feministas. Aqui nos interessa salientar, acima de tudo, o fato de que a atribu-

io da diferena est sempre implicada em relaes de poder, a diferena nomeada a partir de um determinado lugar que se coloca como referncia. Estudiosas e estudiosos ligados aos estudos lsbicos, estudos de etnia e de raa tm contribudo particularmente para a teorizao e tambm para a proposio de prticas polticas e educativas atentas diferena. Suas contribuies vm representando uma importante oxigenao dos Estudos Feministas, implodindo suas caractersticas iniciais de uma construo terica m a r c a d a m e n t e c o n d u z i d a por m u l h e r e s brancas, heterossexuais, urbanas e de classe mdia. Essas discusses tambm representam, claro, desestabilizao, e exigem uma capacidade de contnuo questionamento e problematizao. Isso no facilmente assimilvel por aquelas/es que buscam lidar com paradigmas permanentes, ligados a uma concepo mais "dura" de cincia e que desejam operar dessa forma no campo dos Estudos Feministas. Teresa de Lauretis (1986, p. 14) provocativa a esse respeito: ... um quadro de referncia feminista que sirva para tudo no existe. Ele tampouco deveria, jamais, ser um pacote pronto para usar. Ns precisamos continuar construindo esse quadro, um quadro absolutamente flexvel e reajustvel, a partir da prpria experincia das mulheres com relao diferena, a partir de nossa diferena em relao Mulher e das diferenas entre as mulheres; diferenas que (...) so percebidas como tendo a ver tanto (ou mais) com a raa, a classe ou a 47

etnia quanto com o gnero ou a sexualidade per se. O que venho comentando aqui com relao s mulheres tambm pode ser pensado em relao aos homens. Como j observamos, a concepo fortemente polarizada dos gneros esconde a pluralidade existente em cada um dos plos. Assim, aqueles homens que se afastam da forma de masculinidade hegemnica so considerados diferentes, so representados como o outro e, usualmente, experimentam prticas de discriminao ou subordinao. Robert Connell (1995, p. 190) est atento para essas questes, quando se ocupa das "polticas de masculinidade". Ele comenta que h uma "narrativa convencional" sobre a maneira como as masculinidades so construdas e que se supe, por essa narrativa, que "toda a cultura tem uma definio da conduta e dos sentimentos apropriados para os homens". Meninos e rapazes em sua maioria aprenderiam tal conduta e sentimentos e, assim, se afastariam do comportamento das mulheres. Mas essa seria apenas uma das histrias possveis. Conforme Connell, "a narrativa convencional adota uma das formas de masculinidade para definir a masculinidade em geral". Em outras palavras, o que se tem, aqui, seria uma representao do ser homem que mais visvel. No entanto, como ele lembra, essa masculinidade se produz "juntamente" e "em relao" com outras masculinidades. Alm disso, essa narrativa convencional "v o gnero como um molde social cuja marca estampada na criana, como se as personali48

dades masculinas sassem, como numa fbrica de chocolate, da ponta de uma esteira". Ao invs disso, Connell pensa na construo da masculinidade como um "projeto" tanto coletivo quanto individual no sentido de que esse um processo que est continuamente se transformando, afetando e sendo afetado por inmeras instituies e prticas. Sendo assim, o que "normal" e o que "diferente"? Quando afirmamos que as identidades de gnero e as identidades sexuais se constroem em relao, queremos significar algo distinto e mais complexo do que uma oposio entre dois plos; pretendemos dizer que as vrias formas de sexualidade e de gnero so interdependentes, ou seja, afetam umas s outras. Richard Johnson (1996, p. 183) aponta isso, ao sustentar que os conservadores esto corretos quando dizem que a "celebrao" da identidade gayAsbica afeta a famlia (tal como eles a percebem e como a desejariam conservar). De fato, a crescente exposio pela mdia de sujeitos homossexuais interfere nas suas representaes sociais. Mas Richard acrescenta: Eles (os conservadores) esto errados em apresentar isso como uma ameaa. Quem, exatamente, ameaado? Devemos sempre policiar os limites sexuais e congelar nossas formas de viver? Por que no podemos ver a diversidade sexual como uma fonte de construo de algumas novas possibilidades? Em nossa sociedade, devido hegemonia branca, mas49

culina, heterossexual e crist, tm sido nomeados e nomeadas como diferentes aqueles e aquelas que no compartilham desses atributos. A atribuio da diferena sempre historicamente contingente ela dependente de uma situao e de um momento particulares. Jonathan Katz (1996, p. 27), em livro no qual busca escrever uma histria da heterossexuahdade, aposta num argumento interessante: A no ser pressionado por vozes fortes e insistentes, no damos nome norma, ao normal e ao processo social de normalizao, muito menos os consideramos desconcertantes, objetos de estudo. A anlise do anormal, do diferente e do outro, das culturas da minoria, aparentemente tem despertado um interesse muito maior (grifos do autor). por isso que hoje se escreve uma "Histria das mulheres" e no uma Histria dos Homens afinal essa ltima a Histria geral, a Histria oficial. (Estou segura, no entanto, de que preciso qualificar esse "interesse maior" a que o autor se refere: ele precisa, necessariamente, ser compreendido como uma ateno que dirigida para tudo o que considerado como extico, como estranho ou alheio. Portanto, esse interesse no pode ser entendido como carregado de uma acolhida ou de uma valorizao positiva). As contribuies de importantes analistas culturais so teis para melhor compreender a questo da diferena. Stuart Hall (1992, p. 6) recorre a Laclau para50

dizer que: As sociedades da modernidade tardia (...) so caracterizadas pela "diferena"; elas so atravessadas por diferentes divises e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes "posies de sujeito" isto , de identidades para os indivduos. De fato, os sujeitos so, ao mesmo tempo, homens ou mulheres, de determinada etnia, classe, sexualidade, nacionalidade; so participantes ou no de uma determinada confisso religiosa ou de um partido poltico... Essas mltiplas identidades no podem, no entanto, ser percebidas como se fossem "camadas" que se sobrepem umas s outras, como se o sujeito fosse se fazendo "somando-as" ou agregando-as. Em vez disso, preciso notar que elas se interferem mutuamente, se articulam; podem ser contraditrias; provocam, enfim, diferentes "posies". Essas distintas posies podem se mostrar conflitantes at mesmo para os prprios sujeitos, fazendo-os oscilar, deslizar entre elas perceber-se de distintos modos. Entender dessa forma os efeitos dos vrios "marcadores" sociais obriga-nos a rever uma das idias mais assentadas nas teorias sociais crticas, isto , a de que h uma categoria central, fundamental consagradamente a classe social que seria a base para a compreenso de todas as contradies sociais. Se aceitamos que os sujeitos se constituem em mltiplas identidades, ou se afirmamos que as identidades so sempre par51

ciais, no-unitrias, teremos dificuldade de apontar uma identidade explicativa universal. Diferentes situaes mobilizam os sujeitos e os grupos de distintos modos, provocam alianas e conflitos que nem sempre so passveis de ser compreendidos a partir de um nico mvel central, como o antagonismo de classe. Examinando uma situao concreta, em que questes de classe, gnero e raa pareciam emaranhar-se, diz Stuart Hall (1992, p. 7), reportando-se a Mercer: Nenhuma identidade singular por exemplo, de classe social podia alinhar todas as diferentes identidades com uma "identidade mestra", nica, abrangente, na qual se pudesse, de forma segura, basear uma poltica. As pessoas no identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de classe; a classe no pode servir como um dispositivo discursivo ou uma categoria mobilizadora atravs da qual todos os variados interesses e todas as variadas identidades da pessoa possam ser reconciliadas e representadas. De forma crescente, as paisagens polticas do mundo moderno so fraturadas por identificaes rivais e deslocantes advindas, especialmente, da eroso da "identidade mestra" da classe e da emergncia de novas identidades, pertencentes nova base poltica definida pelos novos movimentos sociais: o feminismo, as lutas negras, os movimentos de libertao nacional, os movimentos antinucleares e ecolgicos. As diferentes divises sociais provocam, ento, distintas 52

lutas e solidariedades parciais ou provisrias. Colocar uma nica e permanente base para a luta poltica representar, provavelmente, a subordinao ou o escamoteamento de outras disputas igualmente significativas. As formas de insero nessas disputas podem, tambm, ser diversas para cada sujeito que pode viver instncias ou situaes de subordinao e, ao mesmo tempo, situaes de dominao. Certamente possvel que um sujeito viva, simultaneamente, vrias condies de subordinao. Seria um tanto simplista, no entanto, "somar" essas subordinaes, pois elas se combinam de formas especiais e particulares. Evidentemente, h histrias mais longas e dolorosas de opresso do que outras. Portanto, sero sempre as condies histricas especficas que nos permitiro compreender melhor, em cada sociedade especfica, as relaes de poder que esto implicadas nos processos de submetimento dos sujeitos. Floya Anthias e Nira Yuval Davis (1993, p. 104) lembram que "separar as opresses a nvel analtico no implica que possamos fazer isso facilmente no nvel concreto" (vale lembrar os comentrios sobre gnero e sexualidade do captulo anterior). Est implcita, aqui, a idia de que as identidades dos sujeitos no podem ser entendidas como fixas, estveis, como "essncias". Numa perspectiva semelhante, Avtar Brah (1992), outra estudiosa de gnero, raa e etnia, chama ateno para o fato de que o termo "negro" no pode ser tomado de um modo essencialista, como se tivesse um nico significado, imediatamente reconhecido por todos/as; "negro" 53

adquire diferentes sentidos polticos e culturais em diferentes contextos. Diz ela (p. 143); "nossas identidades culturais so simultaneamente nossas culturas em processo, mas elas adquirem significados especficos num dado contexto". A maneira como se entrelaam as diferentes formas de opresso no , pois, uma equao que possa ser resolvida facilmente. "Relaes de gnero racializadas", "etnicidades generificadas" so apenas algumas das "combinaes" que vm ocupando estudiosas/os e cujos resultados esto longe de ser previsveis ou estveis. Ao discutir sexualidade e gnero, Eve Sedgwick (1993, p. 253) traz um exemplo instigante: ela lembra que "o uso do nome de casada por uma mulher torna evidente, ao mesmo tempo, tanto sua subordinao como mulher quanto seu privilgio como uma presumida heterossexual" (grifos meus). Estamos diante, portanto, de imprevisveis combinaes, de efeitos contraditrios, de identidades mltiplas e transitrias. Como lembra Avtar Brah (1992, p. 137), essas diferentes "estruturas" (ou, se preferirmos, esses vrios "marcadores" ou categorias) classe, raa, gnero, sexualidade "no podem ser tratadas como 'variveis independentes', porque a opresso de cada uma est inscrita no interior da outra constituda pela outra e constituinte da outra". A estudiosa brasileira Sandra Azeredo (1994, p. 206) fala num tom parecido, quando procura discutir porque "em um pas racista e desigual como o Brasil"54

damos to pouca ateno questo racial, seja em nossos trabalhos tericos, seja em nossas prticas. Analisando as produes acadmicas nacionais e internacionais, Sandra assim se manifesta: Minha inteno ao tentar estabelecer uma conversa entre essas diversas formas de fazer teoria explicitar minha aposta na idia de que complexificar a categoria gnero historiciz-la e politizla , prestando ateno em nossa anlise a outras relaes de opresso, pode nos abrir caminhos sequer imaginados ainda de uma sociedade mais igualitria. Para tanto, preciso considerar gnero tanto como uma categoria de anlise quanto como uma das formas que relaes de opresso assumem numa sociedade capitalista, racista e colonialista. Todas essas estudiosas e esses estudiosos, ao combinarem o rigor das anlises com o entusiasmo das lutas sociais, nos fazem pensar que as formas de opresso e a instituio das diferenas so muito mais do que temas acadmicos de ocasio elas se constituem em apaixonante questo poltica.Nota 1- A expresso "mulheres de cor" ainda que problemtica pretende traduzir colored women. Na verdade, o termo no adequado, pois implica que se toma como referncia as mulheres brancas, das quais as outras (colored) se distinguiriam. As mulheres brancas que se constituem na "norma" no teriam cor. Alm disso tambm me parece que a expresso "de cor" acaba por se constituir num dos disfarces mais comuns do racismo no Brasil. Uma outra traduo para o expresso tem sido "mulheres no55

brancas" que, como se percebe, tambm no se constitui numa boa soluo.

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iferenas, distines, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus incios, a instituio escolar exerceu uma ao distintiva. Ela se incumbiu de separar os sujeitos tornando aqueles que nela entravam distintos dos outros, os que a ela no tinham acesso. Ela dividiu tambm, internamente, os que l estavam, atravs de mltiplos mecanismos de classificao, ordenamento, hierarquizao. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna comeou por separar adultos de crianas, catlicos de protestantes. Ela tambm se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das meninas. Concebida inicialmente para acolher alguns mas no todos ela foi, lentamente, sendo requisitada por aqueles/as aos/s quais havia sido negada. Os novos grupos foram trazendo transformaes instituio. Ela precisou ser diversa: organizao, currculos, prdios, docentes, regulamentos, avaliaes iriam, explcita ou implicitamente, "garantir" e tambm produzir as diferenas entre os sujeitos. E necessrio que nos perguntemos, ento, como se produziram e se produzem tais diferenas e que efeitos elas tm sobre os sujeitos. 57

A escolarizao dos corpos e das mentes

A escola delimita espaos. Servindo-se de smbolos e cdigos, ela afirma o que cada um pode (ou no pode) fazer, ela separa e institui. Informa o "lugar" dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas. Atravs de seus quadros, crucifixos, santas ou esculturas, aponta aqueles/as que devero ser modelos e permite, tambm, que os sujeitos se reconheam (ou no) nesses modelos. O prdio escolar informa a todos/as sua razo de existir. Suas marcas, seus smbolos e arranjos arquitetnicos "fazem sentido", instituem mltiplos sentidos, constituem distintos sujeitos. Tomemos como exemplo um desses tradicionais quadros alegricos comumente representativos de momentos especiais da Histria.1 Destaca-se ali a figura difana de uma mulher, vestida com trajes da Antiga Grcia e aparentemente guiando um grupo de soldados. Esses soldados tm frente um comandante, cujos trajes atestam sua importncia e nobreza. Os rostos so iluminados, compenetrados. Alguns podem ter tombado, mas os demais avanam, destemidos. Que leituras podem fazer desse quadro meninos e meninas, brancos/as e negros/as, ricos/as e pobres? Que detalhe parecer a cada um/a deles/as mais significativo, mobilizador de sua ateno, provocador de sua fantasia? Certamente muitas e diferentes estrias podem ser construdas. impossvel ignorar, contudo, que ali a mulher (ainda que em destaque) no personagem da luta concreta, ela a "inspiradora" da ao (representando, 58

talvez, a ptria ou a liberdade); os homens todos brancos so os verdadeiros guerreiros, aqueles que efetivamente esto "fazendo a Histria" (com maisculas). A sua frente, um homem especial: um heri, um lder que, aparentemente, tem uma posio social superior a dos outros homens. Esses homens no tm medo, parecem saber qual o seu "dever", no parecem hesitar. Essas "informaes" (e muitas outras de tantas outras leituras) podem permitir que alguns pretendam chegar, algum dia, a ser iguais ao heri e que outras e outros no se coloquem essa meta, seja por no a considerarem atrativa, seja por no se julgarem dignos/as dela. Os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as mltiplas formas de constituio dos sujeitos implicadas na concepo, na organizao e no fazer cotidiano escolar. O olhar precisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas; preciso perceber os sons, as falas, as sinetas e os silncios; necessrio sentir os cheiros especiais; as cadncias e os ritmos marcando os movimentos de adultos e crianas. Atentas/os aos pequenos indcios, veremos que at mesmo o tempo e o espao da escola no so distribudos nem usados portanto, no so concebidos do mesmo modo por todas as pessoas. Ao longo da histria, as diferentes comunidades (e no interior delas, os diferentes grupos sociais) construram modos tambm diversos de conceber e lidar com o tempo e o espao: valorizaram de diferentes formas o 59

tempo do trabalho e o tempo do cio; o espao da casa ou o da rua; delimitaram os lugares permitidos e os proibidos (e determinaram os sujeitos que podiam ou no transitar por eles); decidiram qual o tempo que importava (o da vida ou o depois dela); apontaram as formas adequadas para cada pessoa ocupar (ou gastar) o tempo... Atravs de muitas instituies e prticas, essas concepes foram e so aprendidas e interiorizadas; tornam-se quase "naturais" (ainda que sejam "fatos culturais"). A escola parte importante desse processo. Tal "naturalidade" to fortemente construda talvez nos impea de notar que, no interior das atuais escolas, onde convivem meninos e meninas, rapazes e moas, eles e elas se movimentem, circulem e se agrupem de formas distintas. Observamos, ento, que eles parecem "precisar" de mais espao do que elas, parecem preferir "naturalmente" as atividades ao ar livre. Registramos a t e n d n c i a nos m e n i n o s de "invadir" os espaos das meninas, de interromper suas brincadeiras. E, usualmente, consideramos tudo isso de algum modo inscrito na "ordem das coisas". Talvez tambm parea "natural" que algumas crianas possam usufruir de tempo livre, enquanto que outras tenham de trabalhar aps o horrio escolar; que algumas devam "poupar" enquanto que outras tenham direito a "matar" o tempo. Um longo aprendizado vai, afinal, "colocar cada qual em seu lugar". Mas as divises de raa, classe, etnia, sexualidade e gnero esto, sem dvida, implicadas nessas construes e somente na histria dessas divises que podemos encontrar uma explicao para a 60

"lgica" que as rege. Por um aprendizado eficaz, continuado e sutil, um ritmo, uma cadncia, uma disposio fsica, uma postura parecem penetrar nos sujeitos, ao mesmo tempo em que esses reagem e, envolvidos por tais dispositivos e prticas, constituem suas identidades "escolarizadas". Gestos, movimentos, sentidos so produzidos no espao escolar e incorporados por meninos e meninas, tornamse parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. Todos os sentidos so treinados, fazendo com que cada um e cada uma conhea os sons, os cheiros e os sabores "bons" e decentes e rejeite os indecentes; aprenda o que, a quem e como tocar (ou, na maior parte das vezes, no tocar); fazendo com que tenha algumas habilidades e no outras... E todas essas lies so atravessadas pelas diferenas, elas confirmam e tambm produzem diferena. Evidentemente, os sujeitos no so passivos receptores de imposies externas. Ativamente eles se envolvem e so envolvidos nessas aprendizagens reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente. Os mais antigos manuais j ensinavam aos mestres os cuidados que deveriam ter com os corpos e almas de seus alunos. O modo de sentar e andar, as formas de colocar cadernos e canetas, ps e mos acabariam por produzir um corpo escolarizado, distinguindo o menino u a menina que "passara pelos bancos escolares". Nesses manuais, a postura reta transcendia a mera dis61

posio fsica dos membros, cabea ou tronco: ela devia ser um indicativo do carter e das virtudes do educando (Louro, 1995b). As escolas femininas dedicavam intensas e repetidas horas ao treino das habilidades manuais de suas alunas produzindo jovens "prendadas", capazes dos mais delicados e complexos trabalhos de agulha ou de pintura. As marcas da escolarizao se inscreviam, assim, nos corpos dos sujeitos. Por vezes isso se fazia de formas to densas e particulares que permitia a partir de mnimos traos, de pequenos indcios, de um jeito de andar ou falar dizer, quase com segurana, que determinada jovem foi normalista, que um rapaz cursou o colgio militar ou que um outro estudou num seminrio. Certamente as recomendaes dos antigos manuais foram superadas, os repetidos treinamentos talvez j no existam. No entanto, hoje, outras regras, teorias e conselhos (cientficos, ergomtricos, psicolgicos) so produzidos em adequao s novas condies, aos novos instrumentos e prticas educativas. Sob novas formas, a escola continua imprimindo sua "marca distintiva" sobre os sujeitos. Atravs de mltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes.A fabricao das diferenas. Sexismo e homofobia na prtica educativa

Foucault dizia, no seu conhecido Vigiar e Punir (1987, p. 153): A disciplina "fabrica" indivduos: ela a tcnica 62

especfica de um poder que toma os indivduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exerccio. No um poder triunfante (...); um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades, procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou aos grandes aparelhos de Estado. O processo de "fabricao" dos sujeitos continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptvel. Antes de tentar perceb-lo pela leitura das leis ou dos decretos que instalam e regulam as instituies ou perceb-lo nos solenes discursos das autoridades (embora todas essas instncias tambm faam sentido), nosso olhar deve se voltar especialmente para as prticas cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. So, pois, as prticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de ateno renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiana. A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar do que tomado como "natural". Afinal, "natural" que meninos e meninas se separem na escola, para os trabalhos de grupos e para as filas? preciso aceitar que "naturalmente" a escolha dos brinquedos seja diferenciada segundo o sexo? Como explicar, ento, que muitas vezes eles e elas se misturem" para brincar ou trabalhar? de esperar que os desempenhos nas diferentes disciplinas revelem as diferenas de interesse e aptido "caractersticas" de cada gnero? Sendo assim, teramos que avaliar esses 63

alunos e alunas atravs de critrios diferentes? Como professoras de sries iniciais, precisamos aceitar que os meninos so "naturalmente" mais agitados e curiosos do que as meninas? E quando ocorre uma situao oposta esperada, ou seja, quando encontramos meninos que se dedicam a atividades mais tranqilas e meninas que preferem jogos mais agressivos, devemos nos "preocupar", pois isso indicador de que esses/as alunos/as esto apresentando "desvios" de comportamento? Currculos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didticos, processos de avaliao so, seguramente, loci das diferenas de gnero, sexualidade, etnia, classe so constitudos por essas distines e, ao mesmo tempo, seus produtores. Todas essas dimenses precisam, pois, ser colocadas em questo. indispensvel questionar no apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as do ao que aprendem. Atrevidamente preciso, tambm, problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, at mesmo aquelas teorias consideradas "crticas"). Temos de estar atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela freqentemente carrega e institui. Os questionamentos em torno desses campos, no entanto, precisam ir alm das perguntas ingnuas e dicotomizadas. Dispostas/os a implodir a idia de um binarismo rgido nas relaes de gnero, teremos de ser capazes de um olhar mais aberto, de uma problemati64

zao mais ampla (e tambm mais complexa), uma problematizao que ter de lidar, necessariamente, com as mltiplas e complicadas combinaes de gnero, sexualidade, classe, raa, etnia. Se essas dimenses esto presentes em todos os arranjos escolares, se estamos ns prprias/os envolvidas/os nesses arranjos, no h como negar que essa uma tarefa difcil. Trata-se de pr em questo relaes de poder que compartilhamos, relaes nas quais estamos enredadas/os e que, portanto, tambm nos dizem respeito. Dentre os mltiplos espaos e as muitas instncias onde se pode observar a instituio das distines e das desigualdades, a linguagem , seguramente, o campo mais eficaz e persistente tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas prticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito "natural". Seguindo regras definidas por gramticas e dicionrios, sem questionar o uso que fazemos de expresses consagradas, supomos que ela , apenas, um eficiente veculo de comunicao. No entanto, a linguagem no apenas expressa relaes, poderes, lugares, ela os institui; ela no apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenas. Denise Portinari (1989, p. 18) diz: A linguagem um turbilho e nos usa muito mais do que ns a usamos. Ela nos carrega, molda, fixa, modifica, esmaga (seria talvez a depresso: sou esmagada pela palavra) e ressuscita (no h a "palavra da salvao"?). E impossvel esquecer que uma das primeiras e mais65

slidas aprendizagens de uma menina, na escola, consiste em saber que, sempre que a professora disser que "os alunos que acaba