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GÊNERO, AUTONOMIA E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À POBREZA NO BRASIL: reflexões sobre o Programa Bolsa Família. Mara Regina A. da Costa Farias 1 Maria Ivonete Soares Coelho 2 RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre a relação do Programa Bolsa Família no desenvolvimento da autonomia das mulheres usuárias, trazendo, de antemão, os conceitos de ideologia e autonomia, bem como suas implicações nas relações de gênero. A partir de tais conceitos e considerando alguns aspectos e limites do programa, conclui-se que, mesmo contribuindo para o processo de autonomia das mulheres, ao possibilitar renda e participação em espaços de construção coletiva, o Bolsa Família não é capaz de romper com as relações desiguais de gênero. Palavras-chave: Gênero; ideologia; autonomia; Programa Bolsa Família. ABSTRACT The purpose of this paper is to reflect on the relation of the Bolsa Família Program in the development of the autonomy of women users, bringing beforehand the concepts of ideology and autonomy, as well as their implications in gender relations. Based on these concepts and considering some aspects and limits of the program, it is concluded that, even contributing to the process of women's autonomy, by enabling income and participation in collective construction spaces, Bolsa Família is not able to break with the Unequal gender relations. Key words: Gender; ideology; autonomy; Family Grant Program. 1 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais da UERN. 2 Professora adjunta IV da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UERN. Doutora em Ciências Sociais pela UFRN.

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GÊNERO, AUTONOMIA E POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À POBREZA NO BRASIL:

reflexões sobre o Programa Bolsa Família.

Mara Regina A. da Costa Farias1 Maria Ivonete Soares Coelho2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir sobre a relação do Programa Bolsa Família no desenvolvimento da autonomia das mulheres usuárias, trazendo, de antemão, os conceitos de ideologia e autonomia, bem como suas implicações nas relações de gênero. A partir de tais conceitos e considerando alguns aspectos e limites do programa, conclui-se que, mesmo contribuindo para o processo de autonomia das mulheres, ao possibilitar renda e participação em espaços de construção coletiva, o Bolsa Família não é capaz de romper com as relações desiguais de gênero. Palavras-chave: Gênero; ideologia; autonomia; Programa Bolsa Família.

ABSTRACT The purpose of this paper is to reflect on the relation of the Bolsa Família Program in the development of the autonomy of women users, bringing beforehand the concepts of ideology and autonomy, as well as their implications in gender relations. Based on these concepts and considering some aspects and limits of the program, it is concluded that, even contributing to the process of women's autonomy, by enabling income and participation in collective construction spaces, Bolsa Família is not able to break with the Unequal gender relations. Key words: Gender; ideology; autonomy; Family Grant Program.

1 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos Sociais

da UERN. 2 Professora adjunta IV da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do

Norte (UERN). Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela UERN. Doutora em Ciências Sociais pela UFRN.

I. INTRODUÇÃO

Tratar sobre a temática da autonomia num contexto de regressão de direitos é

um grande desafio, que se torna maior quando é pensada no contexto social das relações

de gênero, as quais historicamente tende a negar essa conquista, por meio da perpetuação

da dominação e da discriminação.

Esse assunto têm incomodado à sociedade e principalmente os governos que

como tentativa de minimizar os impactos da pobreza decorrente das relações desiguais de

gênero e, como uma forma de nutrir o mínimo de condições possíveis para que as mulheres

superem essa situação, têm implementado políticas de enfrentamento à pobreza, em

especial programas de transferência direta de renda, que atrelam a transferência de um

benefício monetário à oferta de serviços e políticas de inclusão social e nesse caso o Bolsa

Família ganha destaque.

Um aspecto importante desse programa é a identificação das mulheres como

público alvo de suas ações, sob o argumento primordial de colocar em primeiro plano a

independência e a autonomia das mulheres usuárias.

O objetivo desse artigo é refletir sobre a relação do Programa Bolsa Família no

desenvolvimento de autonomia das mulheres alvo de suas ações, fazendo de antemão uma

reflexão sobre o conceito de ideologia e as implicações para a conquista da autonomia no

âmbito das relações de gênero.

II. AS RELAÇÕES CAPITALISTAS DE GÊNERO E A IMPLICAÇÕES PARA A

AUTONOMIA DAS MULHERES

As relações sociais de gênero, ao longo da história, conduziram às mulheres à

situação de subordinação frente ao seu papel na sociedade, bem como no seio familiar. Tais

relações são atravessadas por um elo de poder e dominação do sexo masculino sobre o

feminino, sendo o ambiente doméstico o lugar mais propício para o germinar de tais

relações.

Rêgo e Pinzani (2014) ao discorrerem sobre a relação autonomia e gênero

recorrem às reflexões de John Stuart Mill (1911), no sentido de compreender a dominação

masculina sustentada por um arcabouço de ideias e valores difundidos por instituições

políticas, sociais e culturais, as quais incutem na consciência dos sujeitos, nesse caso, das

mulheres, o comportamento da subserviência e da sujeição como sendo natural à sua

própria existência biológica e social. Nesse contexto “as mulheres não são treinadas apenas

para servirem aos homens (maridos, pais, irmãos mais velhos, sogros, cunhados); mais do

que isso, são treinadas para “desejarem servi-los”” (REGO E PINZANI, 2014, p. 58 apud

MILL, 1911).

Tem-se a favor de tal realidade a difusão de uma ideologia propícia ao processo

de dominação e exploração da sociedade capitalista, a qual falseia as relações sociais,

agindo diretamente na formação da consciência dos sujeitos e como estes se organizam em

sociedade, chegando a determinar todo o conteúdo de uma época histórica (MARX, 2009).

Não cabe nos limites desse texto explorar amplamente o conceito de ideologia,

haja vista as várias definições que lhe são atribuídas dentro da filosofia e da sociologia,

porém cabe-nos compreendê-lo ao menos genericamente e sob a perspectiva marxiana,

para assim relacionarmos à categoria autonomia no universo feminino.

Comumente, o conceito de ideologia está relacionado às formas de consciência

social, o que abrange o sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe

dominante. Esse entendimento parte do conceito de ideologia tratado por Marx e Engels na

obra clássica A Ideologia Alemã, em que tais autores afirmam serem as ideias da classe

dominante em todas as épocas, as ideias dominantes. Assim:

As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio (2009, p. 67).

Portanto, a noção de ideologia para Marx está profundamente ligada à divisão

da sociedade em classes e nas estratégias que a classe dominante utiliza para difundir sua

visão de mundo, tornando-a universal (IASI, 2007).

Ainda sobre a concepção de ideologia, Iasi (2007) afirma que esta não pode ser

compreendida apenas como um conjunto de ideias impostas pelas instituições sociais,

culturais, religiosas, ou pelos meios de comunição, mas pressupõe um arcabouço de

sustentação para a garantia da dominação econômica, essa exercida por aquela classe que

detêm os meios de produção.

É justamente no cotidiano das relações materiais, fruto da divisão social do

trabalho que a ideologia dominante se dissemina, invertendo, naturalizando e justificando as

relações de dominação. Para isso, necessita de uma base, um solo em que possa germinar

e, no entendimento de Marx, esse solo é a alienação.

De acordo com Iasi (2007) a alienação se diferencia substancialmente da

ideologia. A mesma se manifesta na primeira forma de consciência e é baseada em

modelos de fundo psicológico, ou seja, nas percepções superficiais que o ser humano tem

do mundo, nas relações afetivas, do círculo social que o rodeia. Nesse contexto:

Antes mesmo que a criança venha a receber qualquer informação sistematizada, já possui um conjunto de valores interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois estabelece com eles profundos vínculos afetivos e percebe uma correspondência com as relações concretas em que está inserida (IASI, 2007, p. 22).

Dessa forma, a alienação pode ser compreendida como a forma de

manifestação inicial da consciência, sua forma mais elementar, onde a realidade é

naturalizada e vista como imutável, velando assim o caráter contraditório e desigual das

relações sociais.

Partindo desses pressupostos, compreendemos que a ideologia, sobre a base

da alienação, incide diretamente na vida das mulheres ao passo que sobre estas vigora um

padrão social de conduta voltado para a valoração suprema das virtudes e valores ligados à

vida privada e destituídos dos princípios de autonomia e autogoverno. Nesse contexto, a

educação feminina está mais voltada para a reprodução de sujeitos privados do que para a

formação de cidadãos. “O resultado histórico disso é, como bem se sabe, a reprodução de

sujeitos modelados para a dominação, no caso masculino, e para o servilismo no caso das

mulheres” (REGO E PINZANI, 2014, p. 60).

Papel importante assume a família no âmbito das relações de dominação e

exploração, pois tal instituição assume o poder de atribuir papéis e funções aos seus

membros, precedendo uma divisão de trabalho no lar, em que a mulher se delimita ao

privado e o homem, por sua vez à vida pública. Isso destitui a mulher da capacidade de ver-

se como cidadã, perpetuando assim “um círculo vicioso de não direitos, de não cidadania e

de não participação igualitária na vida pública” (idem, p. 62). Destarte, destituídas da

capacidade de tornarem-se sujeitos autônomosi.

O conceito de autonomia é complexo e denso, principalmente quando se trata da

autonomia no universo feminino. Por tal motivo, tentaremos compreendê-lo em seu sentido

mais amplo a partir de sugestões simples, porém não simplistas.

A noção de autonomia (auto = próprio, nomos = norma, regra lei) sugere a ideia

de capacidade do exercício ativo de si, ou seja, capacidade de o sujeito decidir sobre suas

próprias ações e agir conforme um projeto pessoal de vida, reconhecendo a si e a outros

sujeitos como capazes de estabelecer relações de direitos e de deveres (REGO E PINZANI,

2014). Portanto a autonomia pressupõe atividades individuais e coletivas.

No universo do que compreendemos como autonomia, a mulher a adquire sob

dois aspectos, o primeiro quando consegue construir seu próprio projeto de vida, por ela

considerado “bom”, independente dos modelos ideologicamente fornecidos, e o segundo,

quando consegue atribuir a si e aos outros direitos e deveres, não com base em princípios

individuais, mas universais, ou seja, coletivos (ibdem, 2014).

Bem, para esclarecermos o raciocínio ora exposto, contamos com a contribuição

de Marques e Maia (2007). Tais autoras, à luz de outros como Cooke (1999), Held (1987) e

Warren (2001) defendem a existência de dois tipos de autonomia que são interligadas e

interdependentes: a autonomia individual e a autonomia política.

Em relação à autonomia individual/pessoal, trata-se não do individualismo ou da

autossuficiência, mas da capacidade de o sujeito realizar um exame crítico de si mesmo e

dos outros, no âmbito das relações sociais, ou seja, “no âmbito da autonomia pessoal,

destaca-se a capacidade de avaliação dos indivíduos diante do leque de escolhas de que

dispõem para seguir aquilo que entendem por “bem-viver”” (MARQUES E MAIA, 2007, p.

63). Ainda para essas autoras e sob a ótica de Cooke (1999), a autonomia individual

envolve:

a) adoção de uma atitude reflexiva com relação às próprias necessidades e desejos; b) decidir entre alternativas de expressar suas necessidades aos outros mediante a troca de pontos de vista; c) elaborar os próprios meios e estratégias de encontrar e propor soluções para suas próprias ações cotidianas; d) eleger e perseguir objetivos sustentando-os publicamente, desde que orientem seus planos e ações futuras a partir de suas próprias avaliações (ibdem).

Portanto, a autonomia individual envolve um autoexame e ainda o

reconhecimento de suas próprias necessidades, bem como a possibilidade de defendê-las,

inclusive publicamente e, por vezes, sob condição de adversidade ou contraditoriedade, às

quais se manifestam nas relações sociais de classe. Ao avaliar-se a si mesmo e ao se

autoexaminar criticamente o sujeito pode romper com o processo de alienação que o

subjuga, por sua vez minimizando a condição de oprimido, explorado (MARX, 2009).

No que tange à autonomia política, estaria atrelada aos processos de formulação

dos direitos e das políticas sociais, ou seja, ocorre quando os indivíduos, enquanto sujeitos

de direitos se reconhecem como tal e num processo de solidariedade mútua tornam-se

capazes de agirem como “autores dos direitos aos quais desejam submeter-se como

destinatários” (MARQUES E MAIA, 2007, apud HABERMAS).

O desenvolvimento da autonomia política pressupõe participação social na

esfera dos interesses coletivos, isto é, que os indivíduos sejam capazes de elaborar

publicamente suas demandas, num processo de comunicação interativa com outros sujeitos,

considerando o contexto econômico, cultural e social de tais relações. Portanto, autonomia

política tem a ver com a vida pública.

É importante frisar que a autonomia política não sobrepõe a autonomia individual

ou vice-versa, ao contrário, são interdependentes, ou seja, não há conquista de autonomia

política sem o desenvolvimento da autonomia individual e assim reciprocamente. Marques e

Maia (2007) sintetizam os conceitos de autonomia individual e política da seguinte forma:

Assim, a autonomia individual – a capacidade coletiva de identificar-se como indivíduo, localizando-se em termos de projeção biográfica, “interpretando,

transformando, censurando, proporcionando denominações para necessidades, impulsos e desejos, bem como expressando-os aos outros como interesses e compromissos” (warren, 2001:63) – e autonomia política – a capacidade de produzir julgamentos coletivos e dar razões para sustentar compromissos recíprocos – pressupõem-se mutuamente. A autonomia individual e a autonomia política são co-determinantes, e ambas precisam ser realizadas para assegurar um processo de produção de lei legítimo (p. 63).

Partindo desse entendimento, compreendemos que no caso particular das

mulheres, não é fácil o processo de desenvolvimento da autonomia, haja vista

historicamente estas serem privadas de uma participação mais plena da vida pública ou dos

processos decisórios que implicam na condição de vida das mesmas.

Um dos obstáculos para o desenvolvimento da autonomia é a ausência de bens

materiais primários e essenciais para a sobrevivência humana como o alimento, o vestuário,

a moradia digna, dentre outros elementos. Marx e Engels, no já citado clássico A Ideologia

Alemã corroboram com esse entendimento afirmando:

O pressuposto de toda a existência humana, e portanto, também, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poderem “fazer história”. Mas da vida fazem parte sobretudo comer e beber, habitação, vestuário e ainda algumas outras coisas” (2009, p. 40)

Isso nos leva a inferir que a ausência dos bens materiais supracitados ou a falta

de oportunidades para adquiri-los implica num conjunto de privações objetivas e subjetivas

que quase sempre estão presentes nas relações desiguais de gênero e se expressam,

sobretudo, nos espaços onde a pobreza é predominante, fazendo emergir uma classe de

pessoas que possuem duas características em comum: ser do sexo feminino e ser carente,

ou seja, a mulher pobre.

No universo da pobreza, que não se traduz somente na ausência de condições

materiais básicas de subsistência, “mas está atrelada à ausência à informação; ao trabalho;

à renda digna e ainda à não participação social e política” das mulheres (SILVA, 2014), o

processo de conquista da autonomia individual e coletiva vê-se limitado e por vezes

inexistente, pois carece de um conjunto de mecanismos e estratégias de base econômica,

política, social e cultural para o seu desenvolvimento.

Isto posto, compreendemos que cabe ao Estado, por meio de políticas sociais

públicas fornecer os subsídios necessários para que os cidadãos se desenvolvam, mesmo

que primariamente, como sujeitos autônomos. Nesse contexto, as políticas de

enfrentamento à pobreza, em especial o programa brasileiro de transferência de renda

Bolsa Família tem apresentado resultados interessantes no que tange a autonomia das

mulheres beneficiárias.

III. POLÍTICAS DE ENFRENTAMENTO À POBREZA E AUTONOMIA: um olhar sobre o

Programa Bolsa Família

Conforme já explicitado, historicamente as relações de gênero são desiguais e

marcadas pela dominação e pela privação de condições materiais e sociais básicas,

necessárias à conquista da autonomia das mulheres. A ausência dessas condições não se

resume ao ambiente privado doméstico, mas é refletida também no mercado de trabalho,

onde, via de regra, as mulheres recebem rendimentos menores por desempenharem

atividades “menos qualificadas”.

Diante desse quadro, um percentual gigantesco de mulheres encontra-se em

situação de dependência e vulnerabilidade, fazendo emergir na contemporaneidade,

principalmente a partir da década de 1990, o fenômeno da feminização da pobreza, e sendo

as mulheres responsáveis pelo processo de reprodução social, a pobreza não as atinge

somente, mas reflete diretamente no desenvolvimento econômico, político e social de um

país.

Tal conjuntura tem levado os governos a formularem políticas de combate à

pobreza, que contemplem a dimensão de gênero e priorizem as mulheres como principais

favorecidas. Os Programas de Transferência Condicionada de Renda são exemplos dessas

políticas que ganham destaque no âmbito do Estado; no Brasil o Programa Bolsa Família

contempla fortemente a dimensão de gênero e tem sido a principal estratégia de combate à

pobreza.

Alocado na política pública de assistência social, o Programa Bolsa Família é um

programa de transferência de renda com condicionalidades, destinado às famílias em

situação de pobreza e extrema pobreza e assume a centralidade do Sistema de Proteção

Social Brasileiro. Foi criado em 2003, mas regulamentado somente em 2004, pelo Decreto

5.509, de 17 de janeiro de 2004. Atualmente esse programa, juntamente com dezenas de

outras políticas, integra o Plano Brasil sem Miséria (BSM), instituído pelo Decreto 7.492, de

2 de junho de 2011ii.

O principal objetivo do programa é prover as necessidades básicas e garantir o

acesso e a permanência na escola. Conforme Brasil (2006) apud Silva (2014), o Programa

Bolsa Família visa ainda combater a fome, a pobreza e as desigualdades, bem como

promover a inclusão social, corroborando assim para a emancipação das famílias

beneficiárias. O mesmo é compreendido por seus formuladores como:

Proposta para erradicar a pobreza e emancipar as famílias mais pobres do país e possui metas de curto e longo prazo. De curto prazo seria aliviar a fome através das transferências de renda associada à garantia de acesso aos direitos sociais básicos (saúde, educação, segurança alimentar) e em longo prazo por meio das condicionalidades (o acompanhamento das gestantes bem como a vacinação das crianças e suas respectivas presenças em sala de aula) que visam alterar estruturalmente a situação socioeconômica dos beneficiados. (TESSAROLO E

KROHLING (2011, apud SANTOS et al., 2012, p. 15).

Portanto, o Programa Bolsa Família, ora administrado pelo Ministério de

Desenvolvimento Social e Combate a Fome - MDS, do governo brasileiro, assume um

caráter focalizado em segmentos específicos da população, que recebem diretamente do

governo uma renda monetária que seja capaz de satisfazer suas necessidades básicas,

com vistas à superação das vulnerabilidades e contingências socioeconômicas (SILVA,

2014).

Além disso, tais programas estão sujeitos a determinadas condicionalidades,

que são compromissos assumidos pelas famílias, como uma das condições para o

recebimento do benefício monetário, sendo que o descumprimento pode implicar no

bloqueio ou mesmo na exclusão definitiva do programa.

Em relação às condicionalidades, estão ligadas à educação e à saúde, sendo

que na educação as famílias têm a obrigação de matricularem na escola as crianças e

adolescentes de 6 a 17 anos garantindo a frequência mínima de 85% mensalmente para as

crianças de 6 a 15 anos e de 75% para os adolescentes de 16 a 17 anos. Quanto aos

compromissos com a saúde, as famílias devem obedecer ao calendário de vacinação das

crianças menores de 7 anos, realizando o acompanhamento do crescimento e

desenvolvimento. Além disso, caso haja gestantes no núcleo familiar, estas devem realizar o

pré-natal nas unidades básicas de saúde (BRASIL/MDSA, 2017).

Feita a breve caracterização do Programa Bolsa Família, cabe refletirmos sobre

a sua relação com a autonomização das mulheres, que é o principal objetivo deste trabalho,

haja vista que o referido programa, ao ser apresentado à sociedade brasileira, trouxe como

principal argumento a promoção da independência e da autonomia das mulheres usuárias.

Um dos primeiros pontos a ser destacado é o fato de o governo primar pela

mulher como principal responsável pelo benefício, “sob a justificativa de que a transferência

dos recursos para as mulheres aumenta seu empoderamento, propiciando-lhe maior

autonomia decisória na família e com melhor qualidade na aplicação dos recursos para os

filhos” (SILVA, 2014, p. 139).

Assim, ao receber a transferência monetária e controlar a sua utilização, a

mulher passa a adquirir maior poder de barganha e maior capacidade de fazer escolhas e

tomar decisões. Nessa perspectiva, estudos empíricos (Instituto Brasileiro de Análises

Sociais e Econômicas, 2008 apud Silva, 2014) demonstram que as mulheres se sentem

mais independentes financeiramente ao receberem o benefício e que houve um aumento no

poder de decisão em relação ao dinheiro da família, apresentando assim um aspecto

positivo do ponto de vista das relações de gênero na esfera privada.

Consoante ao exposto, Sen (2000) argumenta que a auferição de renda por

parte da mulher pode alterar as relações de poder no interior do ambiente doméstico e até

mesmo na distribuição da autoridade familiar, contribuindo assim para melhorar a sua

posição e as relações de dominação no seio da família.

Em contraponto, Nascimento (2016) afirma que conceber autonomia e

empoderamento às mulheres com base na administração do benefício e/ou cartão do Bolsa

Família constitui-se numa “visão simplista e imediatista da realidade, posto que não altera as

relações desiguais de gênero [...]” (p. 388). A autora ainda reporta-se à Carloto e Mariano

(2010) para esclarecer que a condição de principais responsáveis pelo benefício e

consequentemente pelas contrapartidas exigidas reforça o papel supostamente considerado

feminino e contribui com a manutenção das relações desiguais entre homens e mulheres

(CARLOTO E MARIANO apud NASCIMENTO, 2016).

Outro aspecto que merece destaque é o fato de o benefício do Bolsa Família ser

em dinheiro e não em alimentos ou outros tipos de bens materiais, o que reforçaria o caráter

paternalista e assistencialista das políticas sociais. Ter acesso ao dinheiro, através de um

cartão magnético torna impessoal a relação entre aquele que dá e aquele que recebe.

Portanto concordamos que:

Distribuir renda monetária aos indivíduos visa precisamente emancipá-los não somente da miséria ou da pobreza, mas também de um ambiente social que pode ser causa ulterior de sofrimento. [...] sendo o dinheiro um elemento necessário para a construção de uma base de autonomia (REGO E PINZANI, 2014. p. 79).

Vê-se, portanto, o papel do dinheiro no processo de construção da autonomia, e,

nesse contexto, o recebimento de um beneficio, que vem em forma de pecúnia, pode

contribuir para minimizar a condição de dependência e humilhação a que são expostas as

mulheres no ambiente doméstico. Por outro lado, aumentam a capacidade enquanto

consumidoras, tendo a “possibilidade de adquirir bens, fazer crédito e programar gastos”[...]

(TEIXEIRA RODRIGUES, 2009).

O terceiro ponto de destaque no que se refere a possibilidade de autonomia das

mulheres é que o Programa Bolsa Família tem como um dos seus objetivos a inclusão social

das famílias usuárias, no sentido de que estas ampliem sua cidadania, que vai desde a

melhoria no atendimento à saúde e à educação à participação nos espaços públicos

decisórios e de defesa dos direitos.

Nesse contexto, ganha destaque as prefeituras, em especial as Secretarias

Municipais de Assistência Social, através dos Centros de Referência da Assistência Social,

os quais ofertam espaços de discussão e interação coletiva, por meio de vivências e troca

de experiências. Se a conquista da autonomia política depende da participação na vida

pública, conforme defendida nesse texto, esses espaços são ao certo importantes para o

desenvolvimento de habilidades políticas e críticas, em relação a si enquanto sujeito singular

e em relação aos outros enquanto sujeito coletivo. Marques e Maia (2007, p. 81) sintetizam

esse pensamento:

Acreditamos que o movimento de “sair de casa” para associar-se aos outros por intermédio de conversações e do trabalho conjunto é a grande contribuição que o Bolsa Família pode oferecer à dissolução da imagem do “pobre carente”, para que possa revelar-se como cidadão. Esse movimento permite também que as beneficiárias vislubrem nova alternativas para suas vidas, inclusive de integração em projetos coletivos, o que lhes abre um novo leque de direitos e possibilidades de conquista de autonomia.

Retomando as reflexões de Iasi (2007) é na vivência de novas relações, quando

há a contradição entre antigos valores e uma nova realidade vivida, que o sujeito pode

iniciar o processo de superação da alienação. O referido autor chama esse processo de

consciência em si, o qual tem por condição fundante a convivência em grupo. Sobre esse

aspecto, ele declara:

Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circunstancias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um mecanismo de identificação da primeira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade (p. 29).

Isto posto, mesmo longe do ideal, o Programa Bolsa Família, por intermédio das

ações socioeducativas promove às mulheres usuárias um tipo de inclusão política, dando-

lhes a oportunidade de se reconhecerem como cidadãs de direitos e sujeitos de um luta que

não pertence somente a elas enquanto pessoas individuais e isso, ao nosso ver, contribui

para a conquista de autonomia.

Além disso, a oferta de um benefício monetário, atrelado à serviços básicos de

educação, saúde, assistência social e demais políticas públicas, contribui para a ampliação

da cidadania das mulheres usuárias, estas que historicamente foram excluídas de possuir

quaisquer direitos.

IV. CONCLUSÃO:

Mediante as reflexões expostas nesse trabalho, é inegável que o Programa

Bolsa Família traz inúmeros benefícios, principalmente para as mulheres que são as

principais protagonistas nesse contexto, contrariando uma cultura de resignação,

subordinação e ausência de direitos.

Considerando o que já foi explicitado, isto é, que a ausência de condições

materiais objetivas dificultam o processo de aquisição de autonomia, o programa Bolsa

Família, através da transferência de renda é capaz de fornecer essas condições, mesmo

que minimamente, o que já é um começo para a tomada de consciência das mulheres

beneficiárias.

No entanto, em detrimento do alcance do programa, não deixamos de perceber

os limites e desafios que dificultam a sua plena efetividade. O fato de ser um programa de

governo e não um direito garantido constitucionalmente é um dos limites “em que a condição

de beneficiária tende a ser um componente a mais no conjunto de estigmas com os quais a

mulher lida diariamente” (RODRIGUES, 2009, p. 222)

Outro limite é o recebimento do benefício atrelado ao cumprimento de

determinadas condicionalidades, responsabilizando tais mulheres pelo cumprimento de

certas obrigações, que se não cumpridas implica na perda do benefício. Assim “ainda que

associado a uma questão fundamental de cidadania, que é o acesso à renda, a

possibilidade de sua perda, por não cumprimento das condicionalidades, dificulta seu

reconhecimento com direito” (RODRIGUES, 2009, p.231).

Entendemos que as condicionalidades não devem servir para a

responsabilização ou punição das famílias, mas devem ser um mecanismo que provoque o

poder público a investir na ampliação de na qualidade dos serviços prestados, de modo a

facilitar acesso das famílias aos direitos sociais básicos de cidadania.

Silva (2014) aponta ainda outros limites do Programa Bolsa Família. Segundos

os seus estudos um desses limites é o baixo valor do benefício, ou seja, o valor que é

repassado, embora de importância inestimável para quem o recebe, não é suficiente para

alterar de forma significativa as condições de vida das famílias. A mesma autora ainda

aponta como limites a focalização e o baixo investimento em políticas complementares de

inserção da mulher no mercado de trabalho.

Compreendemos que a transferência de renda, a oferta de políticas

complementares ou mesmo a abertura de espaços de discussão, embora essenciais, não

são suficientes e não conduzem instantaneamente o desenvolvimento ou fortalecimento da

autonomia individual e política das mulheres. É necessário garantir condições de ampla

participação social na formulação das políticas sociais, assim como na avaliação destas, no

sentido de dar voz e visibilidade às necessidades humanas e sociais.

Por fim, mesmo contribuindo para o processo de autonomia, o Bolsa Família não

é capaz de romper com as relações desiguais de gênero, e eis aí o grande desafio: “torná-lo

uma “política de gênero”, que considere a diversidade dos processos de socialização de

homens e mulheres e suas consequências, nas relações, individual e coletiva, ao longo de

suas vidas” (TEIXEIRA RODRIGUES, 2009, P. 223).

REFERÊNCIAS:

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i Além da família outros aparelhos idológicos como escola, comunidades religiosas, grupos políticos,

dentre outros, exercem uma função precípua na reprodução de valores ético-morais. Na visão de Gramsci (1977), essas instituições, em sua maioria controladas pelo Estado, funcionam a cargo da classe dominante para a reprodução de suas doutrinas. ii O Programa Bolsa Família partiu da unificação de alguns programas federais de transferência de

renda já existentes, a saber: o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação, o Auxílio Gás e o Cartão Alimentação.