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Doença do refl uxo gastroesofágico

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

anatômica é difí cil, de modo que parece ser mais uma área funcionalmente especializada, um esfí ncter fi siológico.

Existe alguma anormalidade funcional do EIE em 60 a 70% dos pacientes com DRGE. As 3 principais anormalida-des são relaxamento espontâneo do EIE, hipotonia esfi ncte-riana (redução do tônus basal) e ausência ou encurtamento do segmento intra-abdominal do esfí ncter. A pressão do EIE sofre infl uência de diversos hormônios (gastrina, secreti na), alimentos (café, álcool) e fármacos (anti colinérgicos, AINH, corti coides, bloqueador de cálcio).

Do ponto de vista anatômico, há algumas alterações causadas pelo processo infl amatório que podem ser diag-nosti cadas na DRGE, que vão desde o edema e enantema locais até erosões e ulcerações. As erosões ou úlceras rasas isoladas ou múlti plas geralmente cicatrizam sem consequên-cias morfofuncionais, porém as úlceras maiores e mais pro-fundas podem cicatrizar, levando a retração e estenose. O processo de reparação pode ser fornecido a parti r da migra-ção de células cilíndricas dos dutos das glândulas submuco-sas do esôfago e glândulas submucosas, que acabam por revesti r áreas de reparação com epitélio colunar. Tal pro-cesso é denominado esôfago de Barrett , que será discuti do posteriormente.

3. Eti ologia

A - Hérnias hiatais

Podem ser divididas em hérnias de deslizamento e de rolamento (ou paraesofágicas). Os sintomas mais comuns são dor epigástrica/subesternal, sensação de plenitude pós-prandial, náuseas e vômitos.

a) Hérnias de deslizamento

São a causa de DRGE em mais de 95% dos pacientes. No entanto, há aqueles com hérnia de hiato sem sintomas e portadores da doença do refl uxo sem hérnia de hiato. Caracterizam-se pelo afrouxamento da membrana frenoe-sofágica, permiti ndo que o esôfago abdominal e parte do estômago “deslizem” para cima do diafragma (Figura 1B). Há relação direta entre a dimensão da hérnia hiatal e a in-tensidade do refl uxo.

Pontos essenciais -Hérnias hiatais; -Diagnósti co; -Tratamento clínico e cirúrgico; -Esôfago de Barrett .

1. Defi niçãoA doença do refl uxo gastroesofágico (DRGE) é uma afec-

ção crônica decorrente do fl uxo retrógrado de parte do con-teúdo gastroduodenal para o esôfago e/ou órgãos adjacen-tes, acarretando variável espectro de sintomas esofágicos ou extraesofágicos, associados ou não a lesões teciduais.

O refl uxo gastroesofágico é um evento fi siológico e as-sintomáti co. No entanto, sua persistência determina alte-rações infl amatórias que se iniciam na lâmina própria para, posteriormente, alcançar a mucosa e manifestar-se com alterações no exame endoscópico.

2. Fisiopatologia O desequilíbrio entre fatores de agressão e de proteção

do esôfago associado a alterações dos mecanismos de con-tenção do refl uxo determina a DRGE. Tanto o refl uxo áci-do do estômago quanto o refl uxo alcalino proveniente do pâncreas e da bile são lesivos ao esôfago. Os episódios de refl uxo serão tanto mais danosos quanto mais prolongados forem.

São fatores protetores do esôfago a saliva, pela capaci-dade de neutralização; o clareamento esofágico (processo pelo qual se restaura o pH normal do esôfago após o refl u-xo), dado pela ati vidade motora; e a ação da gravidade e a resistência da própria mucosa esofágica.

Os mecanismos de barreira anti rrefl uxo são a entrada oblíqua do esôfago no estômago, ângulo de Hiss, pinça-mento esofágico pelo hiato diafragmáti co, pressão negati va torácica, peristalti smo, membrana frenoesofágica e pre-sença do Esfí ncter Inferior do Esôfago (EIE) que consti tui o principal mecanismo de contenção. O EIE tem extensão de 2 a 4cm e se relaxa durante a degluti ção. Sua caracterização

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O diagnósti co da hérnia de hiato pode ser feito por meio de Endoscopia Digesti va Alta (EDA), de exame contrastado Esôfago-Estômago-Duodeno (EED) ou de estudo manomé-trico. O tratamento está indicado a sintomáti cos, e pode-se optar por medidas clínicas (inibidores de bomba protônica ou dos receptores H2) ou cirúrgica (fundoplicatura com re-construção do hiato esofágico), dependendo do caso.

Figura 1 - (A) Hérnia paraesofágica e (B) hérnia de deslizamento

b) Hérnias paraesofágicas (de rolamento)

Ocorrem por conta de falhas anatômicas da membrana frenoesofágica e do relaxamento da musculatura próxima ao hiato esofágico. Estão, também, associadas a relaxamen-to anormal dos ligamentos gastroesplênico e gastrocólico, permiti ndo que parte do estômago “hernie” em direção à cavidade torácica. Tais hérnias nunca regridem e costumam aumentar com o tempo, estando associadas a complicações sérias como volvo, encarceramento gástrico e complicações respiratórias associadas à compressão dos pulmões pelo conteúdo herniário. O tratamento é sempre cirúrgico e deve ser realizado mesmo em assintomáti cos. Os princípios gerais são a redução do conteúdo herniário com ressecção do saco herniário e a correção do defeito.

B - Esclerose sistêmica progressiva

Esta afecção acomete a musculatura lisa do esôfago causando atrofi a, e, como consequência, surgem alterações motoras no corpo esofágico e relacionadas ao EIE, como menor pressão de repouso e acalasia. Causa esofagite de refl uxo de difí cil controle.

C - Sondagem nasogástrica prolongada

A presença da sonda nasogástrica (SNG) difi culta o clareamento esofágico e pode causar esofagite (de forma infrequente). Porém, quando esta se instala, evolui mais precocemente com estenose. Manter decúbito elevado e uti lizar drogas anti ácidas administradas pela via enteral ou parenteral são medidas preventi vas. Pacientes com tempo de sondagem maior do que semanas devem, preferencial-mente, ser submeti dos a procedimentos derivati vos, como a gastrostomia, a fi m de evitar, além da DRGE, complicações como sinusite e infecção respiratória inferior.

D - Outras causas

Intervenções cirúrgicas, como dilatação forçada junto à cárdia, cardiomiectomia, vagotomias, gastrectomias totais ou parciais, podem predispor o refl uxo patológico pela per-da dos mecanismos anatômicos de defesa do organismo.

Condições que aumentam a pressão intra-abdominal como exercício fí sico, tosse, esforço evacuatório, gravidez, obesidade e presença de ascite; ou situações que cursam com diminuição de moti lidade gástrica, como atonia ou estase gástrica (que podem ser consequentes a diabetes, vagotomias, alterações neuromusculares, disfunções moto-ras pilóricas ou do duodeno), e estenoses também podem ser causas de DRGE. Doenças respiratórias crônicas, como asma e fi brose císti ca, insti tucionalizados e acamados por períodos prolongados, têm risco aumentado de doença do refl uxo.

4. Diagnósti coOs sintomas podem ser divididos em esofágicos tí picos,

como a pirose retroesternal e a regurgitação; esofágicos atí picos, como a dor torácica de origem não cardíaca e o globus; e os extraesofágicos, que podem ser orais, otorrino-laringológicos e respiratórios (Tabela 1).

Tabela 1 - Manifestações atí picas da DRGE

Manifestação Tipo

Esofágica

- Dor torácica sem evidência de enfer-midade coronariana (dor torácica não cardíaca);

- Globus hystericus (faringeus);

- Disfagia.

Pulmonar- Asma, tosse crônica, hemopti se, bron-

quite, bronquiectasia e pneumonias de repeti ção.

Otorrinolaringológica

- Rouquidão; pigarro (clareamento da garganta);

- Laringite posterior crônica; sinusite crônica;

- Oti te média.

Oral- Desgaste do esmalte dentário; halito-

se e aft as.

Outros - Sialorreia, eructação.

A pirose retroesternal é o principal sintoma e se agra-va com refeições volumosas ou alimentos que relaxam o EIE. Nesses pacientes, é comum que o decúbito dorsal ho-rizontal piore os sintomas e possa desencadear regurgita-ção. Vale destacar que os portadores de esôfago de Barrett apresentam melhora ou desaparecimento de sintomas de pirose, devido à adaptação do epitélio para receber a se-creção ácida.

A disfagia, geralmente encontrada em casos de esteno-se, pode estar presente diante de alterações motoras es-

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pecífi cas da DRGE. É sempre importante a detalhada carac-terização do refl uxo e da disfagia, pois ambos podem estar presentes concomitantemente a outras doenças, como me-gaesôfago e esclerose sistêmica progressiva.

A dor torácica é desencadeada por estí mulo de termi-nações nervosas do próprio esôfago pelo ácido ou pelas contrações incoordenadas (alteração motora do esôfago). O globus é a sensação de “bola que sobe e desce” na re-gião retroesternal, anti gamente considerada um sintoma psicológico e denominado de globus hystericus, hoje sa-bidamente relacionado à DRGE. Os sintomas respiratórios podem aparecer devido à aspiração do conteúdo gástrico refl uído ou por ação indireta desencadeada por refl uxo vagal.

A Hemorragia Digesti va Alta (HDA) é rara, e são mais comuns quadros de anemia crônica, principalmente em casos de grandes herniações gástricas. Nestes, a isquemia da mucosa também desempenha um papel importante. A presença de úlcera sangrante no estômago herniado pelo hiato recebe o nome de úlcera de Cameron. Outras 2 com-plicações relacionadas a DRGE são as estenoses e o esôfago de Barrett . As estenoses podem ser precoces ou tardias e requerem tratamento específi co.

Não é apropriado investi gar todo paciente com sus-peita de DRGE. Pacientes com sintomas de refl uxo leves e tí picos, sem sintomas de alarme, deveriam iniciar teste terapêuti co sem investi gação. A investi gação deveria ser realizada na presença de sintomas inespecífi cos ou atí pi-cos, quando os sintomas persistem apesar do tratamento, na presença de sintomas de alarme ou suspeita de com-plicações.

O diagnósti co diferencial se faz com gastrite, esofagite infecciosa, esofagite relacionada a pílulas, doença arterial coronariana, doença do trato biliar e distúrbios da moti li-dade esofagiana.

Os exames complementares têm a fi nalidade de detec-tar 3 problemas: o refl uxo propriamente dito, as repercus-sões da DRGE e as condições desencadeantes e afecções associadas.

-EED: o exame contrastado pode caracterizar o re-fl uxo, porém, muitas vezes, depende de manobras específi cas durante sua realização (decúbito dorsal horizontal e manobras de Valsalva, por exemplo). Pode mostrar alterações anatômicas, como a perda do ângulo de Hiss e a presença de hérnias de hiato que podem contribuir para o refl uxo (Figura 2), e é pouco sensível para a detecção da esofagite, exceto em casos graves, em que se encontram ulcerações ou estenose. Contudo, é o melhor exame para a ca-racterização da hérnia de hiato, podendo evidenciar alterações funcionais esofágicas que sugiram a con-comitância de megaesôfago ou esclerose sistêmica progressiva, além de permiti r a caracterização de dis-túrbios de esvaziamento gástrico;

Figura 2 - EED – Grande hérnia hiatal mista (ti po IV)

-EDA: é específi ca (96%) e pouco sensível (50 a 62%) e pode diagnosti car o refl uxo por meio da visualização da cárdia incompetente, porém consti tui padrão-ouro para detectar complicações, como esofagite e este-noses úlceras (permite a visualização da mucosa com possibilidade de biópsia e gradua o nível de esofagite permiti ndo exames comparati vos). Em pacientes aci-ma de 45 anos com sintomas de alarme (disfagia, odi-nofagia, perda de peso, sangramento, massa abdomi-nal, anemia), deveria ser realizada prontamente, antes da terapia empírica. A endoscopia precoce também é indicada a pacientes com sintomas atí picos ou refra-tários ao tratamento inicial. Pode ser úti l àqueles com sintomatologia por mais de 5 anos para pesquisa do esôfago de Barrett .

Nas fases precoces da DRGE, a mucosa pode estar pre-servada, pois a reação infl amatória tem início na submu-cosa. Entretanto, a biópsia pode diagnosti car a chamada esofagite microscópica. À medida que a esofagite se insta-la, pode ser graduada pelas classifi cações endoscópicas de Savary-Miller ou de Los Angeles (Tabelas 2 e 3):

Tabela 2 - Classifi cação endoscópica de Savary-Miller modifi cada

Grau de aspecto endoscópico - Esofagite

0 Normal.

I1 ou mais erosões lineares ou ovaladas em uma única prega longitudinal.

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Grau de aspecto endoscópico - Esofagite

IIVárias erosões situadas em mais de 1 prega longitudinal, confl uente ou não, não envolvendo toda a circunferência do esôfago.

IIIErosões confl uentes e envolvendo toda a circunferência do esôfago.

IVLesões crônicas: úlceras e estenose, isoladas ou associadas às lesões de graus 1 e 3.

VEpitélio colunar em conti nuidade com a linha Z, circunfe-rencial ou não, de extensão variável, associado ou não às lesões de 1 a 4.

Tabela 3 - Classifi cação endoscópica da DRGE de Los Angeles

Grau Achado

A 1 ou mais erosões menores do que 5mm.

B1 ou mais erosões maiores do que 5mm em sua maior extensão, não contí nuas entre os ápices de 2 pregas esofágicas.

CErosões contí nuas (ou convergentes) entre os ápices de, pelo menos, 2 pregas, envolvendo menos do que 75% do órgão.

DErosões ocupando pelo menos 75% da circunferência do órgão.

-Manometria esofágica: objeti va a avaliação das pres-sões e a posição dos esfí ncteres superior e inferior do esôfago, assim como a função desses esfí ncteres e o padrão das ondas peristálti cas no corpo esofágico. A manometria é fundamental no diagnósti co da DRGE, principalmente quando se suspeita de outras afecções motoras concomitantes, como a esclerose sistêmica progressiva e o megaesôfago. Nesse senti do, ajuda muito na decisão adequada de tratamento. Sempre que disponível, deve ser realizada antes do tratamento cirúrgico para que sejam diagnosti cadas doenças mo-toras que possam modifi car a conduta; -pHmetria: é considerada padrão-ouro no diagnósti co da DRGE. O paciente é monitorizado com sensores que registram a variação do pH esofágico em 24 horas, du-rante a realização das ati vidades coti dianas (Figura 3). A presença de pH <4 em mais de 4% do tempo total do exame caracteriza o refl uxo patológico; é indicada a ca-sos específi cos como documentar refl uxos ácidos em pacientes que serão submeti dos a cirurgia anti rrefl uxo e que apresentam endoscopia normal, sem esofagite de refl uxo; avaliar pacientes com sintomas de refl uxo, com endoscopia normal e que não responderam ao tratamento com inibidor de bomba de próton; e de-tectar quanti dades anormais de refl uxo ou associação entre episódios de refl uxo e sintomas atí picos como dor torácica não cardíaca, asma, tosse crônica, laringi-te crônica e dor de garganta; - Impedanciometria, impedanciomanometria e impe-dâncio-pHmetria esofágicas: são novos exames que estão entrando na práti ca médica e têm potencial para

se tornarem o padrão-ouro no diagnósti co da DRGE. Possibilitam o acompanhamento do movimento ante-rógrado (transporte do bolo alimentar) e do movimen-to retrógrado do conteúdo intraluminar (refl uxo gas-troesofágico). A associação à medida do pH, na impe-dâncio-pHmetria, possibilita a correlação dos sintomas e dos episódios de refl uxo com alterações de pH. Suas indicações são similares às da manometria esofágica.

Tabela 4 - Vantagens e desvantagens dos principais métodos diag-nósti cos

Método Vantagens Desvantagens

EDA

- Avalia presença e grau de esofagite, com-plicações e afecções associadas.

- O fato de não haver achados não exclui o diagnósti co.

pHmetria esofá-gica

- Avalia presença, inten-sidade e padrão do refl uxo;

- Correlaciona refl uxo com a queixa.

- Não identi fi ca esofagite nem complicações do refl uxo;

- Não avalia a ocorrência de refl uxo “não ácido”.

EED

- Avalia morfologica-mente o esôfago;

- Avalia estenoses, ulce-rações e hérnia hiatal.

- Não identi fi ca esofagite.

Manometria eso-fágica

- Parâmetro de predição de evolução da do-ença;

- Diagnósti co de distúr-bios motores específi -cos do esôfago;

- Identi fi cação do EIE para pHmetria.

- Não avalia a capacidade real de transporte do conteúdo alimentar.

Impedanciometria esofágica

- Acompanha o movi-mento anterógrado e retrógrado do conteú-do alimentar.

- Há poucos es-tudos clínicos.

Figura 3 - (A) Aparelho de pHmetria; (B) sonda de pHmetria e (C) a pHmetria esofágica permite identi fi car se o paciente apresenta ou não refl uxo, quando ocorre este e qual é sua gravidade. Este estudo pertence a um paciente com endoscopia normal e sintomas de refl uxo. A pHmetria mostra a existência de um refl uxo gastroe-sofágico ácido patológico misto e intensidade grave

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5. Tratamento clínicoDivide-se em medidas comportamentais e tratamento

farmacológico. Ambos devem ser rigorosos e simultanea-mente efetuados. Dentre as medidas comportamentais, as principais são decúbito da cama elevado, evitar situações que elevem de maneira acentuada a pressão intra-abdomi-nal, esti mular a perda de peso e tratar a consti pação intes-ti nal (Tabela 5).

Medidas dietéti cas são importantes. Algumas substân-cias, como gordura, cafeína, chocolate, nicoti na e álcool de-vem ser evitadas, pois diminuem a pressão do EIE. Alimentos muito quentes ou temperados, cítricos, molho de tomate e álcool também irritam a mucosa esofágica e também de-vem ser evitados. Os excessos alimentares devem ser evita-dos com fracionamento da dieta. Os pacientes não devem deitar logo depois da alimentação nem ingerir alimentos de digestão lenta, como frituras, à noite. Também devem ser lembrados alguns medicamentos que podem agravar o refl uxo, como os anti colinérgicos, teofi lina, anti depressivos tricíclicos, bloqueadores de canais de cálcio, alendronato e beta-adrenérgicos.

Para o tratamento farmacológico, é importante saber que os Inibidores de Bomba de Prótons (IBP) são superiores aos antagonistas de H2. Pacientes com manifestações tí pi-cas e sem sintomas de alarme podem ser considerados para o início do teste terapêuti co com IBP em dose plena diária (omeprazol, 20mg, lansoprazol, 30mg, pantoprazol, 40mg, rabeprazol, 20mg, esomeprazol, 20mg) por 4 semanas. É importante mencionar que todos os IBPS são similarmente efi cazes para controle dos sintomas. Caso não haja resposta pode ser ampliada para 8 semanas embora não haja evi-dência clara que esta medida seja vantajosa. Pacientes com manifestações atí picas de DRGE devem uti lizar dose dobra-da por maiores períodos, 2 a 6 meses. Quando os IBP não podem ser uti lizados, podem ser prescritos os antagonis-tas de receptores de H2 em dose plena diária (cimeti dina, 800mg, raniti dina, 300mg, famoti dina, 40mg) divididos em 2 tomadas ou anti ácidos como hidróxido de alumínio. Os pacientes devem ser tratados com dose plena por 6 a 12 se-manas, associados ou não a pró-cinéti cos (metoclopramida, bromoprida), e podem potencializar de maneira limitada o efeito dos antagonistas H2 e ser úteis quando coexistem sintomas dispépti cos ti po dismoti lidade.

No entanto, a taxa de cura e de segurança dessas dro-gas tem sido questi onada. A cisaprida foi reti rada de cir-culação nos Estados Unidos e no Brasil, e o uso em lon-go prazo da metoclopramida é associado a muitos efeitos colaterais, que raramente ela é prescrita para a DRGE, a menos que seja concomitante sua uti lização para gastro-paresia. Vários agentes procinéti cos estão sendo estuda-dos para o tratamento da DRGE, mas a menor efi cácia dos procinéti cos, comparada com a dos IBP, limita sua uti liza-ção potencial. Anteriormente, pacientes que não apresen-taram resposta sati sfatória ao tratamento com IBP por 12 semanas devem ter a dose dobrada de IBP por mais 12

semanas antes de ser considerada falha terapêuti ca. De acordo com a últi ma diretriz de DRGE de 2010, a uti lização de dose dobrada não demonstrou superioridade clínica nos estudos.

Nos casos em que é necessário tratamento de manu-tenção, este deve ser parti cularizado. A possibilidade da redução da dose da medicação para a mínima possível e a tentati va sucessiva de supressão do uso de fármacos com a manutenção das medidas comportamentais devem ser consideradas. Com a manutenção da terapia com inibi-dor de bomba de prótons, a taxa de recidiva de esofagite é de 20% ou menos, é inferior a bloqueadores H2. Quanto a pacientes que necessitam de tratamento farmacológico para se manterem assintomáti cos, deve ser cogitado o tra-tamento cirúrgico.

Tabela 5 - Medidas comportamentais no tratamento da DRGE

- Elevar da cabeceira da cama (15cm);

- Moderar a ingestão dos seguintes alimentos, na dependência da correlação com os sintomas: gordurosos, cítricos, café, bebidas alcoólicas, bebidas gasosas, menta, hortelã, produtos de tomate;

- Realizar cuidados especiais para medicamentos potencial-mente “de risco”: anti colinérgicos, teofi lina, anti depressivos tricíclicos, bloqueadores de canais de cálcio, agonistas beta--adrenérgicos, alendronato;

- Evitar deitar-se nas 2 horas seguintes às refeições;

- Evitar refeições copiosas;

- Reduzir drasti camente ou abandonar o fumo;

- Reduzir o peso corporal (emagrecimento).

6. Tratamento cirúrgicoSão indicações do tratamento cirúrgico: -Falha do tratamento clínico (principal indicação): ca-racterizada pela manutenção dos sintomas, mesmo com o uso correto das medicações; -Presença de complicações da DRGE: ulceração, Barrett , estenose; -Sintomas respiratórios importantes: pneumonites ou broncoespasmos de repeti ção devido ao refl uxo; -Difi culdade para tratamento clínico: por difi culdade fi nanceira de adquirir medicações ou por ati vidades profi ssionais que impedem o tratamento adequado; -Refl uxo desencadeado por outra cirurgia no trato esofagogástrico (TEG): geralmente não se consegue controlar clinicamente o refl uxo nessas situações.

O tratamento deve atuar sobre os 3 principais fatores eti opatogênicos da DRGE, que são o relaxamento espon-tâneo do EIE, tônus pressórico e posicionamento do EIE. Dessa maneira, o procedimento cirúrgico envolve 2 tempos principais. A hiatoplasti a, que consiste na aproximação dos braços do pilar diafragmáti co por meio de sutura com fi o inabsorvível, evitando a tensão e o garroteamento do esô-

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fago distal; e a valvuloplasti a, que realiza um envolvimento circunferencial do esôfago distal, em diferentes graus, pelo fundo gástrico.

As técnicas mais comumente uti lizadas são a fundopli-catura ti po Nissen (total – 360°) ou parcial ti po Toupet-Lind (180 a 270° – Figuras 4, 5 e 6). Quanto à resposta terapêu-ti ca, não há diferença entre o Nissen e cirurgias Toupet. No entanto, a cirurgia de Nissen pode produzir disfagia em 11% dos casos, que não é correlacionada com a moti lidade.

Figura 4 - Hiatoplasti a e fundoplicatura pela técnica de Toupet-Lind

Figura 5 - Hiatoplasti a e fundoplicatura pela técnica de Nissen

Figura 6 - Aspecto intraoperatório da hiatoplasti a: na 1ª Figura, vê-se o esôfago abdominal isolado e, na 2ª, a hiatoplasti a reali-zada com pontos separados de algodão 2 a 0 em cirurgia conven-cional

A principal complicação pós-operatória é a disfagia determinada pela hiatoplasti a e pela válvula anti rrefl uxo. Portanto, é fundamental diagnosti car outro moti vo para que o doente apresente disfagia antes de empregar o tra-tamento cirúrgico. Nesse senti do, a manometria esofágica é fundamental. Nos casos em que são notadas alterações motoras do corpo esofágico, pode-se optar pela técnica de Lind, tendo em vista que ela representa uma barreira me-nor para a passagem de alimentos. Em termos de conten-ção do refl uxo (controle por pHmetria), tanto a fundoplica-tura parcial quanto a total são equivalentes.

A via laparoscópica é a mais indicada para as fundopli-caturas, e importantes detalhes técnicos devem ser sempre respeitados, como manter certa folga de 1,5 a 2cm, fundo-plicatura “frouxa”, liberação do fundo gástrico (para que não determine obstrução extrínseca do esôfago distal nem desvio do eixo esôfago-gástrico), nós sem tensão (evitando isquemia tecidual).

A lití ase biliar também deve ser tratada no mesmo pro-cedimento cirúrgico, quando presente em pacientes que serão submeti dos a procedimentos cirúrgicos para DRGE. O tratamento cirúrgico é mais efeti vo que o tratamento clíni-co no controle do refl uxo, com bons resultados em mais de 90% dos casos.

7. Esôfago de Barrett O esôfago de Barrett é uma complicação da DRGE ca-

racterizada pela metaplasia intesti nal, ou seja, substi tuição do epitélio escamoso estrati fi cado do esôfago distal por epitélio colunar, contendo células intesti nalizadas ou cali-ciformes, em qualquer extensão (Figura 7A). É denominado “Barrett curto” quando sua extensão é menor que 3cm, e

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“Barrett longo” quando maior que 3cm. Quanto mais fre-quente, grave e prolongado for o refl uxo (e os sintomas), maior será a chance de aparecimento do esôfago de Barrett .

Esse epitélio metaplásico é considerado substrato para a instalação de adenocarcinoma (por meio da sequência metaplasia-displasia-carcinoma), daí sua grande importân-cia. Portanto, deve ser diagnosti cado, tratado e acompa-nhado com bastante rigor.

Figura 7 - Esôfago de Barrett : (A) microscopia evidenciando me-taplasia intesti nal com células caliciformes e (B) aspecto endos-cópico tí pico

A incidência do esôfago de Barrett é subesti mada, pois o diagnósti co adequado não é feito por muitos endosco-pistas e pela ausência de sintomas em muitos doentes. Aproximadamente, 10% dos casos de DRGE apresentam esôfago de Barrett . A idade média dos pacientes varia em torno de 50 anos, com pequeno predomínio do sexo mas-culino. O epitélio colunar por si só não causa sintomas, po-rém os doentes podem apresentar sintomas relacionados ao refl uxo ou às complicações (estenose, úlcera e câncer). O principal sintoma é a pirose.

Cerca de 2% ao ano dos casos de esôfago de Barrett desenvolvem câncer. Porém, os pacientes com tal compli-cação apresentam riscos 30 a 125 vezes maior de desen-volverem adeno carcinoma de esôfago do que a população normal. Pacientes com Barrett longo e áreas de displasia es-tão em maior risco. O risco absoluto de câncer é aproxima-damente 0,005 por paciente por ano de câncer. Assim, um

homem de 50 anos com esôfago de Barrett e contrário da expectati va de vida normal tem uma duração de 3 a 10% de risco (incidência acumulada) de desenvolvimento de ade-nocarcinoma de esôfago.

A EDA é o principal exame para diagnósti co do esôfago de Barrett . Observa-se mudança da cor do epitélio pálido escamoso para o róseo colunar bem acima da junção esofa-gogástrica. Devem ser feitas biópsias para confi rmar o diag-nósti co endos cópico. A presença de hérnia hiatal difi culta o diagnósti co. Nesses casos, o pinçamento diafragmáti co não corresponde à transição esofagogástrica, portanto devem ser identi fi cadas as pregas gástricas e a JEG.

Até o momento, o esôfago de Barrett não apresenta ne-nhum tratamento efi caz para a regressão do epitélio me-taplásico; tanto a terapêuti ca clínica como a cirúrgica são efi cazes somente em controlar o refl uxo, diminuindo o pro-cesso infl amatório e a progressão da doença.

O tratamento clínico obedece aos cuidados observa-dos para DRGE, mas não é o tratamento mais aceito. Pode ser realizado em pacientes que não desejam o tratamento cirúrgico ou para os de alto risco. Diminui a incidência de complicações como estenose e úlceras, mas ainda não se sabe se altera a história natural em caso de displasia.

A cirurgia está indicada a todos os casos de esôfago de Barrett que não tenham contraindicação clínica para tal. A hiatoplasti a com fundoplicatura está indicada àqueles com esôfago de Barrett sem complicações ou com estenose pos-sível de dilatação. A esofagectomia está indicada aos casos em que há displasia de alto grau, casos de estenose impos-sível de ser dilatada, associação de esclerodermia e megae-sôfago e na presença de câncer.

Mesmo após a correção do refl uxo, é indicada endos-copia para o rastreamento de neoplasia. Há autores que indicam a endoscopia anual e outros a cada 3 anos, para os pacientes sem displasia ao estudo anatomopatológico. Entretanto, o consenso brasileiro de DRGE sugeriu uma EDA a cada 2 anos. Aqueles com displasia de baixo grau devem ser submeti dos ao exame a cada 6 ou 3 meses. Os pacientes com displasia de alto grau devem ter o exame repeti do e, caso haja confi rmação, tratado como carcinoma in situ.

8. ResumoQuadro-resumo

- Deve-se suspeitar da DRGE, além dos quadros tí picos, na pre-sença de manifestações atí picas;

- O exame padrão-ouro para diagnósti co de esofagite é a EDA com biópsia. Já o exame padrão-ouro para o diagnósti co de re-fl uxo patológico é a pHmetria;

- O tratamento envolve medidas higienodietéti cas, medicações e cirurgia. A combinação desses elementos varia de acordo com o paciente;

- O esôfago de Barrett é lesão pré-neoplásica e requer vigilância contí nua.

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Dispepsia e Helicobacter pylori

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

2. EpidemiologiaDispepsia é um diagnósti co comum, com prevalência

variando entre 30 e 40%, dependendo da população estu-dada, sendo dispepsia funcional o diagnósti co mais comum. A incidência é de cerca de 1% ao ano. A maioria dos dispép-ti cos permanece sintomáti ca por longos períodos, apesar dos períodos de remissão espontânea.

O risco de desenvolver doença ulcerosa pépti ca, contu-do, não parece ser diferente da população assintomáti ca. A prevalência é menor em idosos e parece ser discretamente maior no sexo masculino. A minoria dos pacientes procura atenção médica por essa queixa (cerca de 25%). Quando submeti dos à endoscopia digesti va alta, de 50 a 60% dos dispépti cos têm dispepsia funcional, de 15 a 20% apresen-tam úlcera pépti ca, de 20 a 30% possuem doença do refl uxo gastroesofágico e de 0,5 a 2% são portadores de neoplasia gástrica.

Alguns dados epidemiológicos são importantes, como a idade, pois doenças orgânicas frequentemente causam mais sintomas dispépti cos em pacientes com idade ≥50 anos. Úlcera pépti ca e neoplasias gástricas são mais fre-quentes com o avançar da idade, o que não se observa em relação à dispepsia funcional e à doença do refl uxo.

Tabagismo e eti lismo são fatores de risco tanto para sin-tomas dispépti cos como para o desenvolvimento de doença pépti ca e neoplasias. A ingestão abusiva de sal e conservas também aumenta o risco de câncer gástrico. O uso de medi-camentos deve ser interrogado, pois é comum a incidência de úlcera pépti ca com o uso de anti -infl amatórios não es-teroidais. Alguns pacientes não conseguem identi fi car tais medicações, sendo extremamente importante exemplifi -car com algumas das mais comuns do gênero (diclofenaco, AAS, naproxeno, tenoxicam, entre outras).

3. Classifi caçãoA dispepsia orgânica acontece quando os sintomas rela-

cionados ao aparelho digesti vo alto são secundários a doen-ças orgânicas específi cas, como úlcera pépti ca, pancreati te, colelití ase, neoplasia, entre outras. Já a dispepsia funcional (ou não ulcerosa) é a condição em que se apresentam sin-

Pontos essenciais -Defi nição de dispepsia; -Abordagens terapêuti cas; -Erradicação do H. pylori.

1. Defi niçõesA dispepsia é defi nida como a sensação de dor ti po azia

ou queimação, ou desconforto na parte superior do abdo-me. É uma síndrome clínica extremamente comum, com eti ologias e manifestações clínicas diversas, exigindo uma abordagem críti ca para economia de recursos, sem prejuízo ao paciente. Estatí sti cas americanas sugerem que, a cada ano, 25% da população apresentam sintomas dispépti cos, porém a minoria procura atenção médica. Em muitos casos, os pacientes não apresentam doença orgânica associada (dispepsia funcional). Contudo, apesar de ser uma condição benigna, deve-se considerar que está associada a absenti s-mo e custos com medicamentos e exames subsidiários.

O Consenso Internacional Roma Committ ee III defi niu dispepsia como a presença de 1 ou mais dos seguintes sin-tomas:

-Sensação de plenitude pós-prandial (síndrome de des-conforto pós-prandial); -Saciedade precoce (defi nida pela incapacidade de ter-minar uma refeição de tamanho normal); -Dor epigástrica ou queimação (síndrome de dor epi-gástrica).

Tais critérios são preferidos para uti lização na práti ca clí-nica em relação aos critérios previamente uti lizados (Roma II), que incluíam, ainda, dor localizada no centro do abdo-me. Os pacientes apresentando sintomas de pirose retroes-ternal ou outros compatí veis com refl uxo gastroesofágico não devem ser rotulados como apresentando dispepsia. A American Gastroenterology Associati on considera a defi ni-ção desses indivíduos como apresentando doença do re-fl uxo gastroesofágico, mesmo que apresentem endoscopia sem evidências de esofagite.

CAPÍTULO

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tomas do aparelho digesti vo alto, com duração de mais de 4 semanas, não relacionados à ati vidade fí sica e não secundá-rios a doenças orgânicas localizadas ou sistêmicas.

Para caracterizar a dispepsia, é necessário que a dura-ção dos sintomas seja maior que 4 semanas e que não haja relação com exercícios fí sicos. Caso contrário, os pacien-tes podem apresentar diagnósti cos diferenciais, inclusive cardiológicos, de abordagem mais complexa. Algumas do-enças, incluindo alterações digesti vas e endocrinológicas, se associam a maior incidência de sintomas dispépti cos (Tabela 1).

Considerando que o diagnósti co de dispepsia funcio-nal seria de exclusão, uma maneira de conduzir esses ca-sos, minimizando gastos com exames, seria excluir sinais que aumentassem a probabilidade de causas secundárias por meio de uma prova terapêuti ca medicamentosa inicial e observação da evolução. Os critérios de Roma III defi ni-ram a dispepsia funcional como a presença de sintomas sabidamente originados da região gastroduodenal, sem evidências de alteração orgânica, sistêmica ou metabólica que explique tais sintomas. Há uma considerável sobreposi-ção entre a Síndrome do Intesti no Irritável (SII) e a dispepsia funcional. Pacientes com SII podem apresentar-se com uma grande variedade de sintomas que incluem queixas gas-trintesti nais e extraintesti nais. No entanto, o complexo do sintoma de dor abdominal crônica e hábitos intesti nais al-terados conti nua a ser a característi ca principal ainda não específi ca da SII.

Tabela 1 - Condições associadas a sintomas dispépti cos

Digesti vas

- Úlcera pépti ca;

- Refl uxo gastroesofágico;

- Doença biliar;

- Gastrite e duodenite;

- Pancreati te;

- Neoplasia;

- Síndrome de má absorção;

- Doenças infi ltrati vas.

Não digesti vas

- Diabetes mellitus;

- Tireoidopati as;

- Hiperparati reoidismo;

- Alterações eletrolíti cas;

- Isquemia coronariana;

- Colagenoses;

- Síndrome de Cushing.

4. FisiopatologiaOs mecanismos que parti cipam da origem dos sintomas

na dispepsia funcional não são completamente conhecidos. Os 3 fatores que parecem ser os mais relevantes são as anor-

malidades da moti lidade gastrintesti nal, aumento da sensibi-lidade a estí mulos provenientes do lúmen do tubo digesti vo e anormalidades psicológicas e emocionais. Entretanto, ou-tros fatores podem ocasionar sintomas dispépti cos.

Existe uma considerável sobreposição entre a SII e a dispepsia funcional. Os pacientes com a síndrome podem se apresentar com uma grande variedade de sintomas que incluem queixas gastrintesti nais e sintomas extraintesti nais. No entanto, o complexo do sintoma de dor abdominal crô-nica e hábitos intesti nais alterados conti nua a ser a caracte-rísti ca principal ainda não específi ca da SII.

A - Dismoti lidade

A alteração da moti lidade do aparelho gastrintesti nal, em parti cular a moti lidade antropiloroduodenal, provavel-mente consiste na alteração mais estudada e há mais tem-po, associada à dispepsia. Estudos realizados há algumas décadas demonstraram que pacientes com dispepsia fun-cional podem apresentar alterações da ati vidade mioelétri-ca gástrica, redução da contrati lidade do antro, incoordena-ção antropiloroduodenal e anormalidades da ati vidade mo-tora duodenojejunal. Essas alterações resultam em retardo do esvaziamento gástrico, presente em 30% dos casos de dispepsia funcional em um estudo recente e em cerca de metade dos pacientes em estudos mais anti gos.

Um grande número de pacientes apresenta melhora com o uso de medicações pró-cinéti cas, sugerindo que es-ses mecanismos de fato têm um papel importante na fi sio-patologia da síndrome. Alterações de moti lidade parecem ainda estar associadas à síndrome do cólon irritável.

B - Hipersensibilidade visceral

A diminuição do limiar para o aparecimento de dor, ou aumento de sensibilidade a certos estí mulos, tem sido de-monstrada em pacientes com dispepsia funcional. Uma das constatações é que os dispépti cos funcionais podem apre-sentar sintomas desencadeados pela distensão do estôma-go com volumes bem menores que os que seriam neces-sários para causar qualquer ti po de sensação desagradável em pessoas sem dispepsia. Com o enchimento isobárico do estômago, ocorrem de 3 a 4 vezes mais sintomas nos dis-pépti cos. É importante notar que essa anormalidade não está associada a alterações em testes psicométricos especí-fi cos e parece restringir-se às vias sensoriais viscerais, uma vez que medidas de tolerância a estí mulos aplicados em ór-gãos de inervação do ti po somáti co, como a pele ou a mus-culatura esqueléti ca, não revelam anormalidades.

C - Alterações psicológicas

Entre os pacientes com dispepsia funcional, há indicati vos de maior prevalência de antecedentes de problemas emocio-nais na infância ou na adolescência, ou anormalidades como ansiedade, depressão, hipocondria e neuroses. Relaciona-se à dispepsia funcional com maiores níveis de ansiedade, de-

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pressão e outras psicopati as. Os pacientes com dispepsia funcional, apesar da associação a vários transtornos psíqui-cos, não parecem apresentar perfi l psicológico característi co, podendo apresentar perfi l depressivo, ansioso ou neuróti co. Assim, há grande difi culdade em estabelecer se essas altera-ções são causa ou consequência da dispepsia.

D - Hipersecreção gástrica

A presença de sintomas, muitas vezes similares aos da doença ulcerosa pépti ca, levanta a possibilidade de fi sio-patologia semelhante, parti cularmente em relação à hiper-secreção de ácido e à maior ati vação de pepsina. Porém, diversos trabalhos mostraram que não há correlação entre hipersecreção ácida e dispepsia funcional. Além disso, di-ferentemente da úlcera pépti ca, a maioria dos dispépti cos funcionais não melhora com a supressão ácida. Portanto, embora os sintomas sejam semelhantes, a fi siopatologia é diferente e, consequentemente, o tratamento.

E - Infecção pelo Helicobacter pylori

A associação da bactéria à doença ulcerosa pépti ca é inequívoca, o que levanta a hipótese de sua parti cipação na dispepsia funcional. O papel do H. pylori será discuti do posteriormente.

F - Irritantes da mucosa gastrintesti nal

Tabagismo, álcool, café e condimentos têm relação com dispepsia. Alguns trabalhos demonstram que o taba-gismo propicia resistência à cicatrização de úlceras e está associado a maior recidiva. Alterações do fl uxo sanguíneo mucoso podem explicar essas observações. O uso de con-dimentos, como pimenta, parece apresentar ação similar à dos anti -infl amatórios, com potencial de lesar a mucosa gastrintesti nal. Poucos trabalhos documentaram uma rela-ção causal isolada entre álcool, fumo, cafeína e dispepsia. Conceitualmente, a dispepsia associada aos anti -infl ama-tórios é considerada orgânica. A 1ª conduta em pacientes com sintomas dispépti cos em uso de tais medicações é a reti rada da medicação, antes de procedimentos diagnósti -cos ou de outras intervenções terapêuti cas.

5. Diagnósti coHistória, exame fí sico e uso criterioso e apropriado dos

exames complementares levam ao diagnósti co correto da dispepsia na grande maioria dos casos. Existem 3 apresen-tações principais de dispepsia funcional (Tabela 2).

Tabela 2 - Classifi cação da dispepsia

OrgânicaSintomas do aparelho digesti vo alto

são relacionados à presença de doença orgânica

Funcional (sem doença orgâ-nica)

Tipo úlcera Predomina dor epigástrica

Tipo dismoti li-dade

Predomina alteração de mo-ti lidade

Inespecífi ca Predominam outros sintomas

-Dispepsia do ti po ulcerosa: as queixas de dor epigás-trica assemelham-se às da úlcera pépti ca, muitas ve-zes com periodicidade, e diminuem com a ingestão de substâncias alcalinas. A dor localiza-se no epigástrio e pode irradiar-se para outros locais, mas, geralmente, não é de forte intensidade. Pode apresentar caráter de clocking (acordar à noite pela dor) ou ritmo asso-ciado à alimentação (melhora ou piora com a inges-tão de alimentos), embora esses dados não sejam su-fi cientes para diferenciar úlcera pépti ca de dispepsia funcional. A presença de vômitos frequentes, perda de peso ou disfagia é característi ca de gravidade em doença orgânica e exige investi gação diagnósti ca pre-coce. Pacientes com maior idade apresentam doença orgânica com maior frequência. Sintomas dispépti cos associados a sintomas digesti vos baixos (evacuação ou eliminação de gases) sugerem o diagnósti co de doen-ças intesti nais; -Dispepsia do ti po dismoti lidade: predomínio de sinto-mas sugesti vos de alteração de moti lidade, como ple-nitude epigástrica, empachamento, saciedade preco-ce, náuseas (principalmente mati nal) e vômitos, sendo a dor de menor intensidade e referida comumente como desconforto ou sensação de peso abdominal; -Dispepsia do ti po inespecífi ca: os pacientes desse gru-po referem sintomas vagos, com característi cas de sin-tomas digesti vos altos, como eructação ou aerofagia, mas mantendo relação com a alimentação. Em alguns casos, sintomas semelhantes aos da úlcera pépti ca superpõem-se aos que sugerem alterações motoras, sem claro predomínio de um ou outro grupo de ma-nifestações.

Ao avaliar pacientes com suspeita de dispepsia, é impor-tante não considerar certos sintomas relacionados ao trato digesti vo baixo (tenesmo, urgência fecal, cólica intesti nal, meteorismo) como parte de um quadro dispépti co. Em pa-cientes com dispepsia ti po dismoti lidade e dispepsia ines-pecífi ca, é necessário excluir causas orgânicas não digesti -vas, como doenças metabólicas, distúrbios hidroeletrolíti -cos, endocrinopati as, infecções crônicas, doenças do tecido conecti vo, distúrbios do humor, entre outras. Também é im-portante tentar identi fi car sinais ou sintomas que possam indicar gravidade e maior probabilidade de doença orgâni-ca, o que é denominado pela literatura de sinais de alarme (Tabela 3). Esses sinais podem ser resumidos na sigla DISPEF (Disfagia, Icterícia, Sangramento, Perda de peso, alteração de Exame Físico).

Tabela 3 - Sinais de alerta na síndrome dispépti ca

- Disfagia ou odinofagia;

- Icterícia;

- Sangramento (hematêmese, anemia, sangue nas fezes);

- Perda de peso não intencional;

- Vômitos persistentes;

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- Defi ciência de ferro inexplicada;

- Massa palpável e linfadenopati a;

- História familiar de câncer gástrico;

- Cirurgia gástrica prévia.

Sintomas de alarme identi fi cam 75% dos pacientes dis-pépti cos com câncer, enquanto o risco de câncer sem sin-tomas de alarme é muito baixo (<1%). Conclusão com base na meta-análise de 9 estudos de coorte de 16.161 pacientes com dispepsia e endoscopia digesti va alta.

Desde que o paciente não apresente sinais de alarme, in-dicam-se exames complementares a parti r de 45 anos. Parte da literatura recomenda considerar exames complementa-res, principalmente endoscopia, apenas a parti r dos 50 anos. Para pacientes com menos de 45 anos sem sinais de alarme, indica-se a prova terapêuti ca com pró-cinéti co associado a anti ácido em dose baixa. Se, em 2 semanas, o paciente apre-senta melhora dos sintomas, pode-se manter o tratamento, em média por 4 semanas, mas até um máximo de 8 a 12 se-manas. No caso de não apresentar melhora em 2 semanas ou os sintomas recidivarem com a suspensão da terapêuti ca medicamentosa, deve-se iniciar investi gação armada.

Outra abordagem possível é a terapia empírica contra H. pylori em indivíduos com menos de 45 anos e dispepsia sem causa orgânica evidente. O problema é que grande nú-mero de pacientes é tratado para o agente sem apresentar infecção, por isso a maior parte da literatura defende o tes-te não invasivo para pesquisa da bactéria. Em nosso meio, essa abordagem não é recomendada. Uma 3ª abordagem é a endoscopia digesti va alta a todos os pacientes com sin-tomas dispépti cos, com pesquisa opcional de H. pylori por meio da histologia.

Nos casos em que ainda há dúvida diagnósti ca, outros exames que podem ser considerados são hemograma, bio-química, pesquisa de sangue oculto nas fezes e ultrassono-grafi a de abdome (para descartar cólica biliar). Em nosso meio, há um número aumentado de parasitoses, como giar-díase e ancilostomíase, que podem evoluir com sintomas dispépti cos e até com anemia ferropriva, o que justi fi ca a realização de protoparasitológicos seriados de fezes nesses pacientes.

6. TratamentoA 1ª conduta em pacientes com dispepsia é verifi car que

medicações estão usando. Caso sejam anti -infl amatórios não esteroidais mesmo aqueles que são inibidores seleti vos cox-2, a simples desconti nuação pode ser sufi ciente para a melhora. Redução da ingesta de cafeína e absti nência ao cigarro e ao álcool podem amenizar os sintomas, mas o benefí cio de maiores restrições dietéti cas é questi onável. Devem-se evitar alimentos que, em ocasiões anteriores, causaram sintomas dispépti cos. Recomenda-se, ainda, co-mer devagar, para facilitar a digestão. O ambiente em que se alimenta deve ser tranquilo, evitando discussões durante

o ato de comer. Devem ser evitados líquidos, sobretudo ga-sosos, e refeições muito vultosas.

O médico deve se lembrar da possível relação entre emoções e sintomas dispépti cos e de que alguns pacientes podem se benefi ciar com a psicoterapia.

Em casos de dispepsia do ti po ulcerosa, indica-se anti á-cido ou bloqueador H2. Na dispepsia do ti po dismoti lidade, indicam-se pró-cinéti cos. A terapia empírica é uti lizada por 2 a 4 semanas, e, se o paciente apresenta melhora, man-tém-se o tratamento por 4 a 12 semanas, no máximo. Em casos refratários, deve-se tentar supressão ácida adequada com uso de bloqueadores H2 ou inibidores de bomba de prótons em dose plena (Tabela 4).

Tabela 4 - Dose plena de bloqueadores H2 e inibidores de bomba de prótons

Bloqueador H2

Cimeti dina, 800mg/dia, raniti dina, 300mg/dia, famoti dina, 40mg/dia.

Inibidores de bomba de prótons

Omeprazol, 40mg/dia, pantoprazol, 40mg/dia, e esomeprazol, 40mg/dia.

Lesões agudas da mucosa gástrica tendem a ser superfi -ciais e podem cicatrizar rapidamente. O uso de inibidor de bomba de prótons associa-se a cicatrização de mais de 90% das úlceras pépti cas, e a doença do refl uxo também pode apresentar melhora importante com essas medicações. A presença do H. pylori poderá ser mascarada na vigência do uso de inibidores de bomba de prótons e pode apresentar resultados falsos negati vos.

Dentre os agentes pró-cinéti cos, a bromoprida e a dom-peridona são os mais uti lizados, devendo ser administrados de 15 a 30 minutos antes de cada refeição principal. A me-toclopramida também pode ser uti lizada, na dose de 10mg antes das refeições. Os anti ácidos, como a associação de hidróxido de alumínio e magnésio, são uti lizados de 1 a 2h antes das refeições e podem ser sufi cientes para controle de sintomas. Entre os antagonistas dos receptores 5HT3, ondansetrona é o mais estudado. Estas drogas aceleram discretamente o esvaziamento gástrico e inibem os vômitos induzidos por quimioterápicos. Dose: 4 a 8mg/dia.

Os protetores de mucosa, como o misoprostol, são outras drogas potencialmente uti lizáveis, mas apresentam, como efeitos colaterais, diarreia e abortamento. O sucralfato na dose de 1g antes das refeições e antes de dormir também tem sido uti lizado, mas com resultados menos evidentes.

Os anti depressivos possuem grande potencial para tratamento de dispepsia, devido à grande associação de sintomas como depressão e ansiedade. São mais frequen-temente recomendados os anti depressivos tricíclicos e drogas que interferem na recaptação de serotonina. Em alguns estudos, a amitripti lina em dose baixa (50mg/dia) produziu signifi cati va melhora dos sintomas e dos índices de qualidade de vida. Contudo, o tratamento padrão da dispepsia ainda é feito com pró-cinéti cos, bloqueadores H2 e anti ácidos.

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-O que fazer para a dispepsia em doentes que não to-mam anti -infl amatórios não esteroidais e sem sinto-mas de doença do refl uxo gastroesofágico (DRGE)?

Fazer endoscopia, se >55 anos de idade ou sintomas de alarme (como perda de peso, disfagia progressiva, vômitos recorrentes, sinais de hemorragia gastrintesti nal ou história familiar de câncer); se <55 anos e sem sintomas de alarme, teste para H. pylori (se prevalência esti mada de H. pylori é >10% como é o caso do Brasil em que foi esti mada entre 16 e 43%).

-Onde é menor, não é custo efeti vo testar?Faça tratamento para H. pylori, se for identi fi cado, e

adicione inibidor de bomba de prótons durante 4 semanas, se não respondem a erradicação do H. pylori, tratamento empírico com inibidores da bomba de prótons por 4 a 6 se-manas, se H. pylori negati vo.

-E se os sintomas não respondem?Reavaliar os sintomas e diagnósti co, considerar a en-

doscopia, incluindo testes invasivos H. pylori com o teste rápido da uréase e/ou histologia e cultura, com sensibilida-de se previamente tratados para a erradicação do H. pylori. Considerar anti depressivos, hipnoterapia, terapia de com-portamento.

7. Helicobacter pyloriIdenti fi cado pela 1ª vez em 1982 por Marshall e Warren,

o H. pylori é um espiroqueta Gram negati vo. Esse micro--organismo não é invasivo, e o único local que coloniza no ser humano é a região pilórica. Morris conseguiu determi-nar que 3x105 UFC é a quanti dade mínima necessária para causar infecção. A transmissão ocorre, principalmente, via oral-oral e oral-fecal. Pode, raramente, ocorrer secundária a vetores ou por água contaminada. A infecção é, em geral, adquirida na infância, e a minoria dos pacientes apresenta reinfecção após erradicação.

Algumas característi cas do micro-organismo possibi-litam seu crescimento e aumentam seu potencial patogê-nico, como produção de uréase e da catalase, que diminui o pH e facilita seu crescimento; fl agelos, que facilitam sua movimentação até o local de seu desenvolvimento; e vários ti pos de adesinas, que facilitam sua adesão ao epitélio gás-trico (o potencial patogênico é extremamente dependen-te desse processo). Também são importantes a virulência (embora não invasivo, o micro-organismo causa agressões devido à liberação de fatores bacterianos) e a persistência (devido à inacessibilidade). Quanto à virulência, ocorrem citólise epitelial e ruptura das zônulas de oclusão pelas ci-totoxinas; há, também, indução de resposta imune infl a-matória (quimiotaxinas, lipopolissacarídeos, moduladores imunes, esti mulação anti gênica).

Diferentes cepas do H. pylori apresentam potencial di-ferenciado de desenvolver complicações, como a úlcera pépti ca. Além dos genes de virulência CagA e VacA, fatores socioambientais, como status socioeconômico na infância,

abastecimento de água e até mesmo a dieta, infl uenciam a virulência do H. pylori. O HLA-DQB1, associado a maior risco de desenvolver adenocarcinoma gástrico e úlcera duode-nal, também é mais frequente em infectados pelo H. pylori com ti po sanguíneo O.

A - Fisiopatologia

Em pacientes com predisposição genéti ca para o de-senvolvimento de úlcera gástrica, a infecção da mucosa do estômago pelo H. pylori leva à pangastrite crônica, o que facilita a ulceração da mucosa. A bactéria está presente em 60 a 80% desses casos.

Nos propensos à úlcera duodenal, a infecção da mucosa gástrica pelo H. pylori determina uma disfunção das células D do antro gástrico, que deixam de suprimir a função das células G, com hipergastrinemia e consequente metaplasia gástrica duodenal. A presença da bactéria determina uma infl amação crônica, mais especifi camente uma artrite crôni-ca, que facilita a lesão ulcerosa no duodeno. A infecção pelo H. pylori é o maior determinante da ocorrência dessa lesão, ocorrendo em até 95% dos pacientes com úlcera duodenal.

A relação do H. pylori com o refl uxo gastroesofágico não é bem estabelecida. Alguns autores postulam que o 1º é fator protetor contra a doença do refl uxo e apresentam como prova o aumento de incidência do câncer de esôfago, em parti cular do adenocarcinoma, após o início da terapia de erradicação desse agente. Porém, a maioria dos autores considera que não há infl uência positi va nem negati va do H. pylori na doença do refl uxo. O Consenso Brasileiro con-sidera que o H. pylori não causa nem prejudica a evolução.

B - Diagnósti co

Os sintomas são muito variáveis. A endoscopia digesti va alta também demonstra achados variáveis, como gastrite, erosões e espessamento da parede gástrica. O diagnósti co pode ser feito por testes não invasivos como a medida da uréase, ou por meio da peça histológica obti da por biópsia com endoscopia.

C - Tratamento

Após a descoberta do H. pylori, o tratamento da doença ulcerosa pépti ca foi modifi cado. Procedimentos cirúrgicos que eram comuns passaram a ser cada vez menos neces-sários. A terapia de erradicação do H. pylori diminuiu a taxa de recorrência das úlceras para menos de 10% (Tabela 5) e a necessidade da terapêuti ca anti ssecretora de manutenção, a incidência das complicações e os custos (comparando à terapia anti ssecretora). O sucesso com essa terapia é simi-lar ao da erradicação do H. pylori, porém a recorrência é extremamente diminuída com a erradicação (Tabela 6).

A associação da infecção pelo H. pylori ao desenvolvi-mento de linfoma MALT também é bem documentada pela literatura. Estudos demonstraram que pacientes com está-gios iniciais do linfoma MALT se benefi ciam com a erradi-

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cação do H. pylori, com índices de cura variando entre 60 e 93%. Ainda precisa ser defi nido se a cura é duradoura, pois o PCR de tais pacientes conti nua positi vo, o que não signifi -ca que não tenha havido regeneração.

Tabela 5 - Indicações de erradicação do H. pylori

Úlcera gastroduodenal ati va ou cicatrizada

- Linfoma MALT de baixo grau;

- Pós-cirurgia para câncer gástrico avançado, em submeti dos à gastrectomia parcial;

- Pós-ressecção de câncer gástrico precoce (endoscópica ou ci-rúrgica);

- Gastrite histológica;

- Pacientes de risco para úlcera/complicações que uti lizarão AINEs cronicamente, inclusive derivados do ácido aceti lsalicí-lico (AAS), mesmo que em baixa dose;

- Pacientes com história prévia de úlcera ou hemorragia digesti va alta que deverão usar AINEs inibidores específi cos ou não da COX-2;

- Indivíduos de risco para câncer gástrico;

- Pacientes com gastrite crônica autoimune, como a associada à anemia perniciosa, bem como pacientes com imunodefi ciência comum variada (aumento do risco de neoplasia gástrica e linfo-ma MALT, respecti vamente).

O controle da erradicação deve ser realizado após, pelo menos, 8 semanas do fi nal do tratamento, com tes-tes não invasivos, como teste respiratório com ureia mar-cada, quando não há indicação para endoscopia. Nesta, a pesquisa pode ser feita por teste da uréase ou histologia. Anti ssecretores deverão ser suspensos de 7 a 10 dias antes do exame de controle da erradicação, pois causam resulta-dos falsos negati vos. Também podem ocorrer falsos negati -vos após hemorragia digesti va.

Tabela 6 - Esquemas de tratamento

Esquema I – 7 dias (associado a cura

em mais de 90% dos casos)

Esquema II – 7 dias Esquema III – 7 dias

IBP em dose-padrão Amoxicilina, 1gClaritromicina, 500mg, 2x/dia

IBP em dose--padrãoFurazolidona, 200mg, 2x/diaClaritromicina, 500mg, 2x/dia

IBP em dose-padrãoFurazolidona, 200mg, 3x/diaCloridrato de te-traciclina, 500mg, 4x/dia

Após a falência de um dos tratamentos iniciais propos-tos pelo Consenso Brasileiro, recomendam-se mais 2 tenta-ti vas de tratamento, com duração de 10 a 14 dias, não re-peti ndo nem prolongando o esquema inicial. A falência do tratamento ocorre em até 20% dos casos. Os esquemas a serem uti lizados dependem do tratamento inicial. É impor-tante mencionar que, em alérgicos à amoxicilina, se pode uti lizar o metronidazol na dose de 500mg, 2 vezes ao dia, e, em casos de alergia a macrolídeo, se associa este à tetraci-

clina. A resistência ao metronidazol em países subdesenvol-vidos costuma ser maior que 50%, e os esquemas tendem a ter efeti vidades reduzidas.

A resistência bacteriana tem sido uma preocupa-ção. Cepas resistentes ao metronidazol e/ou à claritromi-cina foram encontradas. A resistência não foi encontra-da para amoxicilina, tetraciclina ou bismuto. É importante ressaltar que a adição de um PPI ao metronidazol reduz a possibilidade de resistência. Em casos de falha terapêuti ca podem ser considerados os esquemas de 3ª linha que in-cluem a levofl oxacina e rifabuti na.

a) Se foi uti lizado esquema I ou II

1ª opção (2x/dia, por 10 a 14 dias)

2ª opção (1x/dia, por 10 dias)

IBP em dose plenaAmoxicilina, 1g (ou doxicicli-na, 100mg)Furazolidona, 200mg Sal de bismuto, 240mg

IBP (dose plena) Amoxicilina, 1g (ou furazolido-na, 400mg) Levofl oxacino, 500mg

b) Se o inicial foi esquema III

1ª opção = Esquema I (2x/dia, por 7 dias)

2ª opção = 1ª opção se uti liza-do esquema I ou II (2x/dia, por

10 a 14 dias)

IBP em dose plenaAmoxicilina, 1g Claritromicina, 500mg

IBP em dose plenaAmoxicilina, 1g (ou doxiciclina, 100mg)Furazolidona, 200mg Sal de bismuto, 240mg

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Doença ulcerosa pépti ca

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Tabela 1 - Principais causas de úlcera pépti ca

Causas comuns

- Infecção por HP;- Uso de AINEs.

Causas raras

- Síndrome de Zollinger-Ellison;- Hiperparati reoidismo;- Doenças granulomatosas (doença de Crohn, sarcoidose);- Neoplasias (carcinoma, linfoma, leiomioma, leiomiossarcoma);- Infecções (tuberculose, sífi lis, herpes-simples, citomegalovírus);- Tecido pancreáti co ectópico.

2. Úlcera gástrica

A - Epidemiologia e classifi cação

A úlcera gástrica é mais comum em idosos, e a distribui-ção é semelhante entre os sexos. Tem pico entre a 5ª e a 7ª década de vida, e sua incidência não se tem alterado muito, tendo havido apenas uma elevação discreta, atualmente de 0,3 caso: 1.000 habitantes/ano. A mortalidade e a hospitali-zação não diminuíram nas últi mas décadas, o que pode ser explicado pelo aumento do número de idosos na população e do maior uso de AINHs.

Figura 1 - Úlcera gástrica benigna (peça cirúrgica)

Pontos essenciais

-Eti ologia da doença ulcerosa;

-Fisiopatologia;

-Sinais e sintomas de alerta;

-Diferenças entre úlceras duodenal e gástrica;

-Tratamento clínico;

- Indicações de tratamento cirúrgico.

1. EpidemiologiaA doença ulcerosa pépti ca teve uma diminuição pro-

gressiva nos últi mos anos, principalmente a úlcera duode-nal. A melhora no diagnósti co e no tratamento clínico le-vou à diminuição das internações e à grande redução de cirurgias para a doença ulcerosa pépti ca, assim como de suas complicações. Aproximadamente, 2% da população nos EUA têm úlcera pépti ca. A proporção entre homens e mulheres é de 3:1. Em jovens, a úlcera duodenal é 10 vezes mais comum do que a gástrica, mas, em idosos, essa pro-porção torna-se igual.

Os indivíduos infectados com H. pylori apresentam uma incidência anual de 1% de úlcera pépti ca, que é de 6 a 10 vezes maior do que a apresentada nos não infectados. O tabagismo também está associado a aumento da incidência da afecção.

A maior parte da atenção em relação à doença ulcerosa pépti ca concentrou-se sempre nos papéis do ácido clorídri-co, do Helicobacter pylori e dos medicamentos anti -infl ama-tórios (AINEs). É importante frisar que a pepsina também desempenha papel fundamental na patogênese da doença, pois o ácido associado a ela é muito mais ulcerogênico que ele isoladamente. Portanto, o rótulo de doença pépti ca é considerado muito apropriado, pois refl ete adequadamente o papel fundamental da ati vidade proteolíti ca do suco gástri-co em relação à formação da úlcera. É importante salientar que 30 a 40% dos pacientes portadores de úlcera pépti ca têm familiares de 1º grau acometi dos pela doença.

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Localiza-se na pequena curvatura gástrica em 95% dos casos e está próxima (até 6cm) do piloro em 60% das vezes (Figura 1). A úlcera aguda, normalmente, restringe-se à mu-cosa e submucosa; a úlcera crônica penetra na musculatu-ra da parede gástrica. As úlceras podem ser classifi cadas de acordo com a sua localização, segundo a classifi cação pro-posta por Johnson (Tabela 2 e Figura 2). Os achados endos-cópicos permitem a classifi cação da úlcera de acordo com a fase evoluti va, segundo a classifi cação de Sakita (Tabela 3).

Figura 2 - Localização das úlceras gástricas, segundo a classifi ca-ção de Johnson

Tabela 2 - Classifi cação de Johnson

Tipo I

Úlcera gástrica primária. Em antro proximal na peque-na curvatura, na junção de mucosa oxínti ca com a an-tral. Está associada à gastrite antral difusa ou atrofi a multi focal e apresenta secreção ácida normal ou dimi-nuída, geralmente com H. pylori positi vo.

Tipo IIAssociada à úlcera duodenal. Geralmente, apresenta hipersecreção ácida.

Tipo III Úlcera pré-pilórica. Pode apresentar hipersecreção ácida.

Tipo IVEstômago proximal e cárdia. Fisiopatologia semelhante à do ti po I.

Tabela 3 - Classifi cação endoscópica de Sakita

A (ati va)1, bordas edema-ciadas.

2, bordas delimitadas.

H (cicatrizando) 1, fi brina fi na.2, convergência de drogas.

S (cicatrizada)1, reação infl ama-tória.

2, branco linear.

B - Patogênese

A doença resulta da redução da defesa normal da mu-cosa contra o ácido luminar e irritante e da alteração da ci-catrização da mucosa. A secreção ácida, em geral, é normal ou baixa, diminuindo com a idade. A gastrite está quase sempre presente e, quando severa, está associada à atrofi a das células oxínti cas. O refl uxo duodenal para o estômago também é um fator importante, pela presença de agentes citotóxicos como sais biliares e lisoleciti na, que causam agressão à mucosa.

O H. pylori é um importante fator de risco e pode ser encontrado em 65 a 95% dos pacientes com úlceras gás-tricas e 80 a 95% dos acometi dos por úlceras duodenais. Entre os fatores relacionados com a patogenicidade dessa bactéria, estão o aumento de secreção ácida, metaplasia gástrica, resposta imune do hospedeiro e diminuição dos mecanismos de defesa da mucosa (há redução da produção de muco e bicarbonato).

Os AINEs inibem a cicatrização normal e os mecanis-mos citoprotetores. A úlcera ocorre em 10% dos usuários desses anti -infl amatórios, e o sangramento é 2 vezes mais comum nessa população. Está relacionada diretamente ao tempo desses medicamentos. Outros fatores estão asso-ciados ao aumento do risco para desenvolvimento de úl-ceras, podendo-se destacar o tabagismo e o alcoolismo. O 1º está associado tanto à formação quanto à recorrência de úlcera gástrica. Até o momento, não há trabalhos con-sistentes que mostrem alguma associação à dieta.

C - Diagnósti co

O quadro clínico caracteriza-se por epigastralgia que piora com a alimentação, geralmente após 30 minutos, com episódios mais longos e severos que a úlcera duodenal, com dor classicamente em 4 tempos (sem dor-come-dói-passa). O paciente diminui a ingestão alimentar e pode ter perda de peso, anorexia e vômitos. Cerca de 20% são assintomáti cos.

Entre os exames de imagem, a radiografi a contrastada mostra lesão oval, circundada por edema, com convergência de pregas. O duplo contraste detecta de 80 a 90% das lesões.

Figura 3 - (A) Radiografi a contrastada de paciente com úlcera gás-trica; (B) úlcera antral e (C) úlcera pré-pilórica

A endoscopia digesti va alta é, hoje, o exame mais em-pregado para o diagnósti co e possibilita biópsia (Figura 3B e C). Para realizar a pesquisa de H. pylori, a biópsia de mu-cosa com exame histológico é o padrão-ouro, mas também pode ser realizado o teste de uréase com o fragmento de mucosa. Outras possibilidades são o teste sorológico para o diagnósti co inicial e o teste respiratório para o controle do tratamento. Em úlceras refratárias ao tratamento, deve-se realizar a dosagem sérica de gastrina para afastar doenças raras como a síndrome de Zollinger-Ellison.

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D - Tratamento

A maioria dos pacientes responde bem ao tratamento clínico. Orienta-se a suspensão de fatores irritantes como AINEs, álcool e fumo. Entre os medicamentos, preconizam-se aqueles que atuam contra a hipersecreção ácida (Tabela 4).

Tabela 4 - Principais medicamentos uti lizados no tratamento da úlcera gástrica

Classe farmaco-lógica

Exemplos Mecanismo de ação

Anti ácidosHidróxido de alu-mínio, hidróxido de magnésio.

Cicatrização de, aproximadamente, 60% em 4 semanas em usuários de AINH. Podem ser usados como coadjuvantes.

Antagonistas dos receptores H2 de histamina

Cimeti dina, raniti di-na, famoti dina.

Cicatrização em 70 a 80% após 4 semanas e de 80 a 90% após 8 semanas. Podem ser uti lizados quando os bloqueadores não são acessíveis.

Bloqueadores de bomba de prótons

Omeprazol, panto-prazol, lansoprazol.

Bloqueia a ATPase na célula parietal. A cicatrização da úlcera é mais rápida do que no tratamento com antagonistas dos receptores de hista-mina.

Sucralfato

É um sal de alumínio com sucrose sulfata-da. Dissocia-se com o ácido do estômago e liga-se à proteína na parede gástrica no local da úlcera, for-mando uma camada protetora. Pode ser usada em associação aos outros medica-mentos.

É importante ressaltar que, recentemente, tem sido de-monstrado que os inibidores de bomba de prótons, como o omeprazol, podem reduzir o efeito de agregação plaque-tária do clopidogrel. O pantoprazol parece ser mais seguro nesse aspecto. A erradicação do H. pylori tem indicação no caso de úlcera pépti ca pela diminuição da recidiva.

O tratamento cirúrgico é reservado, atualmente, às complicações como hemorragia (quando não se consegue o controle endoscópico), perfuração e obstrução; e aos ra-ros casos refratários ao tratamento clínico. O procedimento cirúrgico de escolha é a antrectomia, sempre englobando a úlcera (pois é fundamental o estudo anatomopatológico para a exclusão de doença maligna). A menos que o pacien-

te tenha uma úlcera pré-pilórica ou uma úlcera duodenal concomitante, a vagotomia não se mostrou capaz de dimi-nuir os índices de recidiva, portanto não é indicada.

3. Úlcera duodenal

A - Epidemiologia

A úlcera duodenal pode ocorrer em qualquer faixa etá-ria, mas é mais comum entre os 20 e os 45 anos, no sexo masculino, em nível socioeconômico baixo. Em 95% dos casos, encontra-se a até 2cm do piloro. Tem associação a H. pylori em mais de 90% dos casos, mas apenas 1/6 dos pacientes tem aumento da secreção ácida.

B - Diagnósti co

O quadro clínico clássico é de dor epigástrica episódica em queimação, que pode irradiar-se para o dorso. Tem alí-vio com alimentação ou anti ácidos, e apresenta-se, classi-camente, em 3 tempos (dói-come-passa). O paciente pode acordar à noite com dor (clocking), além de apresentar náu-seas e vômitos, mesmo sem obstrução.

O diagnósti co defi niti vo é obti do por meio de endosco-pia (Figura 4). Deve-se fazer sempre pesquisa de H. pylo-ri, pela sua forte associação. Em caso de H. pylori negati -vo, deve-se investi gar associação a uso de AINEs, doença de Crohn, linfoma, câncer de pâncreas ou síndrome de Zollinger-Ellison (gastrinoma). Além do diagnósti co, a en-doscopia pode tratar complicações, como sangramento. A dosagem da secreção ácida e de gastrina pode ser realizada no caso de não responsividade ao tratamento clínico.

Figura 4 - Aspecto endoscópico de úlceras duodenais: na fi gura da direita, observar a presença de 2 úlceras

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C - Tratamento

O tratamento clínico é semelhante ao tratamento para a úlcera gástrica. Os bloqueadores de bomba de prótons são os mais efi cazes na cicatrização de úlcera duodenal. Há alto índice de recorrência pós-cicatrização, por isso é necessária a erradicação do H. pylori.

As indicações de cirurgia são as mesmas da úlcera gás-trica, como intratabilidade clínica, sangramento que não se resolve com a endoscopia, perfuração ou obstrução. Na úl-cera duodenal, é importante associar uma das técnicas de vagotomia (Figura 5):

-Vagotomia troncular ou seleti va + piloroplasti a: a sec-ção deve ser feita adjacente à porção intra-abdominal do esôfago, acima dos ramos celíaco e hepáti co; -Vagotomia superseleti va: preserva a inervação piló-rica. São sinônimos vagotomia das células parietais, vagotomia gástrica proximal. Esse procedimento é rea-lizado dissecando-se os nervos de Latarjet da pequena curvatura do estômago de um ponto, aproximadamen-te, 7cm proximal ao piloro até um ponto, pelo menos, 5cm proximal à junção gastroesofágica (no esôfago). Em centros especializados, a recidiva com essa técnica gira em torno de 10 a 15%, ligeiramente maior que a vagotomia + piloroplasti a; -Vagotomia troncular + antrectomia: é a mais efeti va, com menor índice de recidiva (menor que 2%), entre-tanto é a mais mór bida.

Figura 5 - Técnicas de vagotomia

4. Úlcera pépti ca associada a anti -infl a-matórios não esteroides A prevalência da úlcera gástrica em usuários crônicos de

AINEs tem variado de 9 a 13% e, da úlcera duodenal, entre 0 e 19%. O risco relati vo calculado de um usuário crônico des-sas drogas desenvolver úlcera gástrica ou duodenal é de 46 e 8 vezes, respecti vamente, maior que a população normal. Os sintomas dispépti cos nos usuários crônicos de AINEs são frequentes, sendo impossível identi fi car clinicamente os portadores de ulceração.

-História prévia de úlcera pépti ca ou sangramento di-gesti vo;

- Idade superior a 60 anos, especialmente em mulheres; -Dose, duração e ti po do anti -infl amatório: quanto maior a dosagem empregada, maior o risco de compli-cações gastrintesti nais; -Coadministração de corti costeroides e anti coagulan-tes: enquanto o uso combinado de corti costeroides e AINEs se associa a um risco 2 a 3 vezes maior de com-plicações gastrintesti nais, o uso de anti -infl amatórios isolado reduz tal risco pela metade.

Há algumas evidências sugerindo que o risco de desen-volvimento de úlcera e outras complicações depende tam-bém da duração do tratamento, cujo 1º mês é o período mais vulnerável para complicações.

Aos pacientes que farão uso crônico de anti -infl amató-rios não hormonais, deve ser considerada a associação de inibidores de bomba de prótons ou a uti lização de inibido-res seleti vos da enzima COX-2 (coxibs). Os pacientes devem ser pesquisados para presença de H. pylori, e, em caso po-siti vo, a infecção deve ser erradicada. Os últi mos devem ser usados criteriosamente, devido a aumento de risco cardio-vascular associado à sua uti lização crônica.

5. Complicações das úlceras pépti cas

A - Perfuração

Ocorre em 7% dos pacientes hospitalizados por úlce-ra pépti ca e, aproximadamente, 7 a 10 casos por 100.000 habitantes/ano. Além disso, está presente em até 60% das úlceras duodenais e 20% das úlceras gástricas e antrais. No duodeno, frequentemente a úlcera anterior perfura, e a úlcera posterior sangra (kissing ulcers). É a causa mais fre-quente de abdome agudo perfurati vo, levando a óbito em 15% dos casos, com risco maior em idosos, mulheres e por-tadores de úlceras gástricas.

Os principais fatores de risco para perfuração são uso de AINEs (principal causa), imunossupressão (uso de este-roides, pós-transplantes), pacientes idosos, DPOC, grandes queimados e falência de múlti plos órgãos no choque.

Apresenta-se clinicamente como dor epigástrica abrupta, com ou sem irradiação para o ombro. Após algumas horas, tem início peritonite generalizada com defesa e contratura ab-dominal (abdome “em tábua”). Há aumento das frequências respiratória e cardíaca, diminuição dos ruídos hidroaéreos e febre. Tardiamente, a dor pode amenizar pela grande secre-ção de líquido peritoneal. O sinal de Joubert, representado por ti mpanismo à percussão da base do hemitórax direito, onde, normalmente, se tem a macicez hepáti ca, é característi co.

O diagnósti co diferencial se dá com outras causas de ab-dome agudo, como apendicite, colecisti te ou pancreati te. A confi rmação é realizada pelo quadro clínico e pelo exa-me radiológico mostrando pneumoperitônio (presente em até 70% dos casos – Figura 6). Exames laboratoriais podem mostrar alterações devido à infecção, como leucocitose

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com desvio à esquerda; alteração de eletrólitos; e aumento do hematócrito, por desidratação.

Figura 6 - Pneumoperitônio

O tratamento baseia-se na compensação dos distúrbios clínicos e no procedimento cirúrgico. Na úlcera duodenal, faz-se sutura da úlcera, podendo usar o omento para refor-ço (Figura 7), e, caso o paciente se encontre estável, pode--se associar à vagotomia para diminuir o risco de recidiva.

Figura 7 - Tratamento da úlcera duodenal perfurada por epiploplasti a

Na úlcera gástrica, há a necessidade de descartar lesão neoplásica, e a biópsia é obrigatória. A opção por excisão da úlcera e sutura primária ou antrectomia depende das condições clínicas do doente, da idade, da localização da úlcera, se é aguda ou crônica, e do grau de contaminação peritoneal, entre outros fatores. Em estáveis, com úlcera distal crônica, tende-se a optar por antrectomia.

B - Sangramento

Mais comum na úlcera duodenal do que na gástrica, ocorre em 20% dos pacientes com úlcera duodenal e é 4 vezes mais comum do que a perfuração. A mortalidade va-ria de 10 a 14%. No ressangramento, aumenta para cerca de 30% o risco. O uso de AINEs é o principal fator de risco.

Outras situações são o uso de corti costeroides, doente críti -co em terapia intensiva e presença de H. pylori.

Clinicamente, manifesta-se como enterorragia, melena ou ambas. Grande sangramento (mais de 1.000mL) pode manifestar-se com hematoquezia e, em 15% dos casos, pode apresentar-se, inicialmente, com choque hipovolêmico. Cerca de 85% dos pacientes param de sangrar após algumas horas. Cerca de 3/4 dos doentes têm história prévia de doen-ça pépti ca. Ainda que a hemorragia tenha cessado, cerca de 2% destes pacientes evoluirão desfavoravelmente, devido à comorbidades descompensadas pela perda sanguínea.

Nos demais 20%, a hemorragia persiste ou recorre. Neles, a mortalidade é consistentemente maior, ati ngindo cerca de 25 a 30%. Este grupo é formado por pacientes ou lesões de alto risco. A identi fi cação precoce destes fatores prognósti -cos é desejável, uma vez que permite alocação melhor de re-cursos humanos e estruturais para os pacientes mais graves.

-Tratamento

O tratamento inicial visa à estabilização hemodinâmica com reposição volêmica à custa de cristaloides e sangue, associado ao uso de bloqueadores de bomba de prótons. A endoscopia re-aliza o diagnósti co, verifi ca se há sangramento ati vo e possibilita o tratamento (Figura 8). Entretanto, não deve ser realizada até que o paciente esteja estável hemodinamicamente.

Figura 8 - Aspecto endoscópico de úlceras pépti cas com sangra-mento, segundo a classifi cação de Forrest (Tabela 5)

Tabela 5 - Classifi cação de Forrester

Classifi cação de Forrester

Achado endoscópico

Hemorragia ati va

Ia Hemorragia “em jato”

Ib Hemorragia “em lençol”

Hemorragia recente

IIaProtuberância pigmentada ou não, sem sangramento

IIb Coágulo aderido

IIcCobertura plana de hema-ti na

Sem sinais de sangramento

III Base clara ou com fi brina

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Alguns podem apresentar fatores de risco para ressan-gramento. São pessoas com idade superior a 60 anos, co-morbidades cardíaca, pulmonar, hepáti ca ou neoplásica; presença de choque na apresentação, de sangramento vi-sível ou coágulo recente na endoscopia, úlcera gástrica e hematêmese persistente. Esses doentes devem ser avalia-dos quanto à indicação de cirurgia precoce. A classifi cação endoscópica, embora possua alta taxa de variação entre en-doscopistas, pode ajudar a defi nir o prognósti co de acordo com a lesão encontrada (Tabela 6).

Tabela 6 - Frequência dos esti gmas endoscópicos e incidência de ressangramento

Esti gmas Frequência Ressangramento

Sangramento em jato 8 a 15% >90%

Vaso visível vermelho 26 a 55% 30 a 51%

Coágulo aderido 10 a 18% 25 a 41%

Sangramento babando 10 a 20% 10 a 20%

Coágulo plano (hemati na) 12% 0 a 30%

Base clara ou fi brina 36% 0 a 2%

Outras indicações de cirurgia incluem a falha da en-doscopia no controle do sangramento, necessidade de transfusão de mais de 4 unidades de concentrado de hemácias nas primeiras 24h, ou hemorragia persistente após 48h.

Na úlcera gástrica, as opções são antrectomia (ressecan-do a úlcera), excisão da úlcera com vagotomia ou sutura da úlcera com biópsia (paciente instável). Na úlcera duodenal, é possível realizar a duodenotomia e hemostasia com pon-tos, associadas à vagotomia troncular com piloroplasti a. Caso o paciente esteja bem, tem-se a opção de antrecto-mia, que apresenta menor índice de recorrência.

Figura 9 - Exposição e sutura-ligadura de úlcera duodenal com he-morragia

C - Obstrução

Ocorre em úlcera duodenal ou pré-pilórica crônica, além de ser a complicação menos frequente, que acontece em 2 a 4% das úlceras duodenais. Pode melhorar após internação, em decorrência da redução do edema em torno da úlcera.

O paciente relata saciedade precoce e história longa de doença pépti ca e apresenta vômitos não biliares após ali-mentação, com conteúdo semidigerido. Ao exame fí sico, apresenta perda de peso, desidratação e distúrbios hidro ele-tro líti cos (alcalose metabólica hipocalêmica hipoclorêmica e acidúria paradoxal). Ao exame fí sico, o abdome pode estar distendido ou apresentar peristalti smo visível de Kussmaul.

Confi rma-se o diagnósti co com exame radiológico con-trastado, em que se observa passagem de pouco ou ne-nhum bário para o duodeno (Figura 10). A endoscopia iden-ti fi ca a deformidade e não consegue ultrapassar o aparelho. Além disso, pode-se realizar biópsia e descartar neoplasia.

Figura 10 - Raio x contrastado mostrando obstrução

-Tratamento

Inicia-se o tratamento com hidratação e correção dos distúrbios hidro e letro líti cos. Sempre que possível, deve-se oferecer suporte nutricional pré e pós-operatório. Os blo-queadores de bomba de prótons também devem ser uti -lizados.

Cerca de 2/3 dos casos necessitarão de tratamento ci-rúrgico. As principais opções são antrectomia com vagoto-mia (quando não esti ver muito infl amado), ou vagotomia com gastrojejunostomia (em casos de duodeno difí cil).

6. ResumoQuadro-resumo

- Clinicamente, é possível diferenciar a úlcera gástrica da duodenal;

- O H. pylori está relacionado principalmente com as úlceras duo-denais;

- Com o advento de medicações como os inibidores de bomba protônica, o tratamento cirúrgico acaba reservado aos casos de intratabilidade clínica, ou às complicações como hemorragia, perfuração e obstrução.

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Câncer gástrico

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Tabela 1 - Fatores envolvidos no câncer gástrico

Meio ambiente

- Falta de refrigeração;- Alimentos mal preparados;- Água não tratada (poço, nitratos);- Tabagismo;- Fatores ocupacionais (mineradores de carvão, vulcanizadores);- Baixa condição socioeconômica;- Infecção pelo Helicobacter pylori.

Nutricional

- Baixo consumo de proteínas;- Peixes ou carnes salgadas;- Alta concentração de nitratos (conservantes usados para pre-

servação de alimentos antes da era dos refrigeradores);- Baixo consumo de vegetais frescos e frutas;- Baixo consumo de vitaminas A e C;- Operações gástricas prévias;- Gastrite atrófi ca.

Fatores genéti cos

- E-caderina;- Grupo sanguíneo A.

Em relação à genética, a ativação dos proto-onco-genes formando os oncogenes e a inativação dos genes supressores tumorais podem alterar a apoptose e desen-cadear o aparecimento de tumores (Tabela 2). Há ainda a denominada síndrome do câncer gástrico difuso heredi-tário, autossômica dominante com franca predisposição familiar.

O diagnósti co dessa síndrome exige um dos critérios entre 2 ou mais parentes de 1º ou 2º graus com, pelo me-nos, 1 diagnosti cado antes dos 50 anos; ou 3 parentes de 1º ou 2º graus, independentemente da idade ao diagnós-ti co. Tais pacientes apresentam uma mutação que altera a E-caderina, molécula que age inibindo o crescimento tumo-ral, invasão e metástases. Quando tal molécula é inati vada, a célula cancerosa aumenta a sua moti lidade e o seu poten-cial de invasão e de gerar metástases.

Pontos essenciais

-Fatores de risco;

-Classifi cações de Lauren e Borrmann;

-Câncer gástrico precoce;

-Tratamento.

1. EpidemiologiaO câncer gástrico é a 5ª neoplasia com maior incidên-

cia no Brasil, segundo dados do INCA. No país, o mesmo insti tuto tem os seguintes dados: esti mati va de novos ca-sos: 21.500, 13.820 homens e 7.680 mulheres (2010); nú-mero de mortes: 12.706, 8.223 homens e 4.483 mulheres (2008). Embora a mortalidade por esses tumores venha di-minuindo, ainda é a 2ª causa de óbito por câncer. A incidên-cia do câncer gástrico aumenta com a idade, maior em ho-mens e em níveis socioeconômicos mais baixos. No Japão, o carcinoma gástrico é o câncer mais frequente em am-bos os sexos, com uma produção anual de 78/10.000 ho-mens, 34/100.000 mulheres, cerca de 8 vezes superior à in-cidência nos Estados Unidos.

A incidência do câncer gástrico diminuiu, principalmen-te, nos países desenvolvidos. Isso se deve à melhoria das condições alimentares, ao aumento do uso de refrigera-dor, à diminuição na ingestão de defumados e ao aumento na ingesta de vitaminas. O desenvolvimento desse câncer é multi fatorial e envolve aspectos ambientais e genéti cos (Tabela 1). Parentes de 1º grau de pacientes com cân-cer gástrico têm 2 a 3 vezes maior incidência dessa ne-oplasia. Os estudos de caso-controle têm mostrado que a agregação familiar de câncer gástrico potencialmen-te poderia ser explicada pelos mesmos riscos ambien-tais ou alimentares, e não estritamente uma predisposi-ção genéti ca. Recentemente se descobriu que a ingesta de cebola, alho e alho-poró está associada a redução do risco de câncer gástrico.

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CÂNC E R G Á S T R I CO

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Tabela 2 - Proto-oncogenes envolvidos no câncer gástrico

p53

Presente no braço curto do cromossomo 17. Induz a apoptose, evitando a replicação de DNA mutante. No câncer gástrico, ocorre ina-ti vação do p53 por deleção ou mutação em 60% dos casos no tumor do ti po intesti nal e em 76% dos casos no tumor do ti po difuso. A inati vação do p53 também tem relação com o prognósti co da doença.

APC (Ausente na Polipose Colônica)

Localiza-se no cromossomo 21. A perda do alelo do gene APC é a alteração genéti ca mais comum relacionada ao câncer gástrico. Ocorre em 87% dos pacientes com câncer gástrico.

DCC (Depletado no Câncer de Cólon)

Localiza-se no braço longo do cromossomo 18. Sua alteração está presente em 30 a 60% dos pacientes com câncer gástrico.

2. Lesões pré-malignas

A - Pólipos epiteliais e adenomas

Tabela 3 - Pólipos gástricos e potencial pré-neoplásico

Pólipos hiper-plásicos

São os mais comuns. Formados por lesões re-generati vas. Muito baixo risco de transforma-ção maligna (<2%).

Pólipos adeno-matosos

Maior risco de transformação maligna. Lesões planas têm risco de 6 a 21%, e lesões polipoi-des de 20 a 75%. O risco de transformação ma-ligna aumenta de acordo com o tamanho.

Pólipos hamar-tomatosos É muito raro o câncer.

Pólipos infl a-matórios Sem potencial maligno.

Pólipos hetero-tópicos

Por exemplo, no tecido pancreáti co. É raro o câncer.

B - Gastropati a hiperplásica

Ocorre hipertrofi a de camada mucosa do estômago com hiperplasia epitelial. Existem 3 ti pos:

-Hiperplasia glandular com hiperacidez devido à síndro-me de Zollinger-Ellison: não induz ao câncer gástrico; -Hiperplasia das células mucosas superfi ciais com per-da de proteína (doença de Ménétrier): risco de câncer em 5 a 10%. Ocorre mais no antro; -Hiperplasia do ti po misto: aumento de todos os ti pos de glândulas. Maior risco de câncer, em mulheres jo-vens. Os tumores são geralmente difusos e infi ltrati vos.

C - Metaplasia intesti nal

Esta é uma condição pré-maligna que acompanha a gas-trite crônica atrófi ca e se caracteriza por substi tuição, em uma área do estômago, do epitélio gástrico pelo epitélio intesti nal. Consti tui um fator de risco para câncer do ti po intesti nal, ou seja, bem diferenciado.

A metaplasia pode ser completa (epitélio semelhante ao do intesti no delgado) ou incompleta (epitélio semelhante

ao colônico). Quando a área de metaplasia apresenta célu-las produtoras de mucina, há risco muito aumentado para o desenvolvimento de câncer gástrico.

D - DisplasiaTrata-se de perda parcial funcional e estrutural do teci-

do que se assemelha ao epitélio de origem. É um fenômeno regenerati vo ou uma alteração neoplásica inicial. Displasia de alto grau tem alto risco de câncer, e deve-se fazer vigilân-cia com endoscopia.

E - Úlcera pépti ca gástricaTem baixa associação a câncer (cerca de 0,68%). O risco

aumenta, provavelmente, com a presença de H. pylori e de metaplasia intesti nal. Submeti dos à gastrectomia prévia por doença benigna com reconstrução à Billroth II têm maior risco de câncer, especialmente em pós-operatório de 20 anos ou mais. Infecção por H. pylori tem sido considerada como potencial carcinógeno, entretanto muitas questões ainda não foram esclarecidas. Parentes de 1º grau de pa-cientes com câncer gástrico não cárdia devem ser testados para infecção por H. pylori e, embora os dados não estejam disponíveis para apoiarem essa recomendação, devem ser tratados se infectados com a bactéria.

F - Outros fatores de risco A gastrectomia prévia parece aumentar discretamente o

risco de câncer gástrico, a doença de Ménétrier (gastropati a hipertrófi ca) e a anemia perniciosa.

3. Classifi cações

A - Classifi cação macroscópica de Borrmann (1926)Classifi ca os tumores de acordo com o aspecto endos-

cópico da lesão (Figura 1). Essa classifi cação pode ser em-pregada em todos os tumores do trato gastrintesti nal, mas sua aplicação no câncer gástrico é a mais comum na práti ca clínica diária.

Figura 1 - Classifi cação macroscópica de Borrmann

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GASTROCL ÍN ICA

B - Classifi cação histológica de Lauren (1965)

Pela classifi cação de Lauren, os tumores podem ser divi-didos em 2 subti pos: intesti nais e difusos.

O ti po intesti nal tem padrão glandular e se caracteriza pela presença de células neoplásicas coesas formando es-truturas tubulares e uma massa discreta. A parti r do epitélio normal, ocorre instabilidade gênica, levando inicialmente à metaplasia intesti nal, de modo a substi tuir o epitélio gástrico por elementos histológicos que reproduzem o epitélio duo-denal, levando a displasia ou adenoma, câncer precoce, cân-cer avançado e metástases, sequencialmente. Normalmente, acomete indivíduos idosos. É bem ou moderadamente dife-renciado, tem melhor prognósti co que o ti po difuso e locali-za-se mais no antro e na pequena curvatura.

Já o ti po difuso se inicia em um epitélio normal, sem processo de metaplasia, em que ocorre instabilidade gê-nica que pode levar a câncer precoce, câncer avançado e metástases. As células cancerosas infi ltram-se difusamente na parede do estômago. É um tumor produtor de mucina e composto por células separadas ou por pequenos agru-pamentos de células com secreção mucinosa distribuída por todo o citoplasma das células, ou dispersa no estroma. Acomete indivíduos mais jovens, é indiferenciado e tem pior prognósti co que o ti po intesti nal.

C - Câncer gástrico precoce

Defi ne-se câncer gástrico precoce como aquele que não ultrapassa a submucosa (Figura 2). A importância do diag-nósti co de tumores nessa fase (por ecoendoscopia) está na possibilidade de cura (cerca de 95%) com procedimentos minimamente invasivos.

Figura 2 - Classifi cação do câncer gástrico precoce

4. Diagnósti coPacientes com lesões pequenas podem ser assinto-

máti cos. Nesses casos, apenas 30 a 40% apresentam sinto-mas, como dor epigástrica, emagrecimento, anorexia, ane-mia e náusea. Nos casos avançados, os sintomas são mais preva lentes.

Além dos sintomas já mencionados, podem apresentar, também, vômitos tardios, hematêmese e/ou melena. Esta últi ma é pouco frequente, pois o sangra mento geralmente

é pequeno e crônico. Além disso, podem apresentar ainda disfagia precoce, no caso de obstrução próxima à cárdia, ou tardia, quando a obstrução é próxima ao piloro.

O exame fí sico pode demonstrar anemia, sinais de ema-grecimento, massa abdominal palpável no epigástrio (su-gesti vo de irressecabilidade) e ascite (pode estar associada à disseminação peritoneal em até 2/3 dos casos). A icterícia pode estar presente em casos avançados que apresentam metástases hepáti cas com compressão de via biliar ou com-prometi mento linfonodal no hilo hepáti co.

Existem alguns epônimos e sinais propedêuti cos ineren-tes ao câncer gástrico. O gânglio de Virchow (ou sinal de Troisier) é um gânglio endurecido na fossa supraclavicular esquerda; sinal de sister Mary Joseph, um nódulo na região umbilical, que indica implante peritoneal nessa região além de ser sinal de doença disseminada; prateleira de Blummer, que consiste na irregularidade ao toque retal no fundo de saco de Douglas, e também indica implantes perito neais. A disseminação peritoneal do câncer gástrico (assim como de qualquer outro tumor do trato gastrintesti nal) para o ovário recebe o nome de tumor de Kruken berg.

Não há marcador tumoral específi co com benefí cio com-provado na uti lização clínica para os pacientes com câncer gástrico. Entre os mais uti lizados, destacam-se:

-CA 19-9: aumenta no câncer de pâncreas, colorretal e de estômago; -CA 72-4: presente em cerca de 50% nos pacientes com câncer gástrico, principalmente nos estadios III e IV; -CEA: está aumentado em 10 a 30% dos pacientes com câncer gástrico. Associado a pior prognósti co.

A Endoscopia Digesti va Alta (EDA) é o método diagnós-ti co de escolha (Figura 3). Além de fazer o diagnósti co, já possibilita o início do estadiamento, indicando se o tumor é precoce ou avançado, seu tamanho e sua localização. A ra-diologia convencional contrastada prati camente não é mais uti lizada nos dias de hoje como método diagnósti co.

Figura 3 - Câncer gástrico Borrmann I

5. EstadiamentoO estadiamento dos pacientes com câncer gástrico tem

início com a história clínica em busca de sinais e de sinto-

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mas de doença avançada ou metastáti ca, como perda de peso, aumento do volume abdominal, icterícia, dor abdo-minal, vômitos, disfagia, hemorragia digesti va etc. Depois de anamnese e exame fí sico cuidadosos, devem-se solicitar exames complementares, de acordo com a disponibilidade de cada insti tuição, a fi m de prosseguir com o estadiamento que só estará completo depois das fases intraoperatória e anatomopatológica.

O ultrassom (USG) de abdome pode ser um bom méto-do para a detecção de metástases hepáti cas, mas ruim para avaliar invasão locorregional do tumor gástrico. Em casos de lesões pequenas à endoscopia, o USG pode ser um bom método para o estadiamento abdominal, juntamente com a endoscopia.

A Tomografi a Computadorizada (TC) de abdome é um método muito efi caz, tanto para tumores menores, e ain-da mais para tumores gástricos avançados. Possibilita a avaliação de metástases hepáti cas, a presença de linfono-dos aumentados, dando ideia de seu acometi mento e es-tadiamento locorregional, avaliando invasão de estruturas adjacentes. O tumor pode apresentar-se como um espes-samento da parede gástrica, e a tomografi a pode sugerir disseminação peritoneal quando mostrar irregularidade pe-ritoneal, que pode vir acompanhada de ascite (Figura 4). A Ressonância Nuclear Magnéti ca (RNM) de abdome tem as mesmas vantagens da tomografi a.

Figura 4 - Tomografi a de abdome evidenciando espessamento da parede gástrica

O estadiamento do tórax pode ser realizado com ra-diografi a simples de tórax nas posições anteroposterior e perfi l. As radiografi as contrastadas podem ser úteis na avaliação da extensão do tumor para outros órgãos como o esôfago e o duodeno, principalmente quando o tumor é infi ltrati vo, e a mucosa é normal à endoscopia.

A ecoendoscopia possibilita estadiamento locorregional do tumor. No caso de câncer gástrico precoce, a ecoendos-copia dá uma ideia mais precisa da profundidade da invasão tumoral, tornando-se indispensável quando se pensa em tratamentos não cirúrgicos. Ainda é pouco disponível em nosso meio.

A laparoscopia diagnósti ca pode ajudar no estadia-mento abdominal, principalmente no caso de suspeita de

implantes peritoneais que não foram confi rmados pela to-mografi a ou paracentese, nos casos de ascite. Pode avaliar também a localização do tumor, a invasão da serosa gás-trica, metástases hepáti cas que afl oram na superfí cie (70 a 90%), o comprometi mento linfonodal e dos epíploons, a fi xação do tumor a estruturas adjacentes e, como já descri-to, a disseminação peritoneal (Figura 5).

Figura 5 - Estadiamento por laparoscopia com múlti plas metásta-ses hepáti cas

O estadiamento segue a padronização da UICC, seguin-do os critérios TNM (Tabela 4).

Tabela 4 - Estadiamento do câncer gástrico

Classifi cação TNM – UICC 2004Tx Não avaliadoT0 Sem tumor primárioTis CA in situ (restrito à mucosa)T1 Lâmina própriaT2 Muscular própria ou submucosaT3 SerosaT4 Estruturas adjacentesNx Não avaliadoN0 Ausência de metástasesN1 1 a 6 linfonodos comprometi dosN2 7 a 15 linfonodos comprometi dosN3 Mais de 15 linfonodos comprometi dosMx Não avaliadoM0 Sem metástaseM1 Metástase a distânciaEstadio T N M

0 is 0 0IA 1 0 0

IB1 1 0

2a/b 0 0

II1 2 0

2a/b 1 03 0 0

IIIA2a/b 2 0

3 1 04 0 0

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Estadio T N MIIIB 3 2 0

IV4 1, 2 e 3 0

1, 2 e 3 3 0Qualquer Qualquer 1

Observação: a classifi cação e o estadiamento TNM - UICC 2010 encontram-se no anexo, ao fi nal do livro.

6. TratamentoA cirurgia-padrão com intuito curati vo é a gastrectomia

com linfadenectomia D2, que signifi ca uma linfadenec-tomia estendida determinada sempre pela localização do tumor. Portanto, uma linfadenectomia D2 de um tumor de fundo gástrico não reti ra os mesmos linfonodos de uma lin-fadenectomia D2 de um tumor de antro.

Deve-se deixar margem cirúrgica proximal da lesão maior que 2cm no câncer gástrico precoce, maior que 5cm no câncer gástrico avançado bem diferenciado, e maior que 8cm no câncer gástrico avançado indiferenciado. A margem distal sempre deve ser de 4cm do duodeno, exceto nas gas-trectomias em cunha.

O ti po de gastrectomia, total ou subtotal (reti rada de 4/5 do estômago, devendo restar apenas 1 ou 2 vasos cur-tos), dependerá da localização do tumor e da margem cirúr-gica desejada. Tumores proximais normalmente necessitam de gastre ctomia total, e tumores distais bem diferenciados possibilitam gastrectomia subtotal, especialmente se bem diferenciados (Figura 6).

A ressecção endoscópica pode ser realizada apenas em tumores restritos à mucosa, bem diferenciados, sem ulce-ração e menores que 2cm. A laparoscopia é um bom méto-do, principalmente para câncer gástrico precoce. Também

é possível fazer gastrectomia e linfadenectomia D2, contu-do é necessário um cirurgião experiente no método e não traz grandes vantagens. Pode ser úti l nas cirurgias paliati vas (Figura 7).

As técnicas de reconstrução são discuti das em capítu-lo à parte. Entretanto, no câncer gástrico, a preferência da maioria dos serviços é a reconstrução em Y de Roux.

Figura 6 - (A) Produto de gastrectomia total com linfadenectomia D2 e (B) leito operatório após a linfadenectomia do hilo hepáti co e reti rada da cápsula pancreáti ca

Diagnóstico de câncer gástrico: realização de estadiamento

completo (clínico e intraoperatório)

Câncer gástrico avançado

Câncer gástrico precoce

Câncer gástrico metastático

Ausência de metástases linfonodais.

Preenche critérios para ressecção

endoscópica

Metástases perigástricas ou

ausência de critérios para

ressecção local

Ressecção local ou gastrectomia com ou sem linfadenectomia

Gastrectomia com linfadenectomia D2

Ressecável Irressecável

Cirurgia paliativa: derivação interna

ou externa

Boas condições clínicas, ausência de carcinomatose

Más condições clínicas,

carcinomatose

Gastrectomia paliativa

Tratamento oncológico e/ou

jejunostomia

Figura 7 - Conduta cirúrgica sugerida no câncer gástrico

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A quimioterapia pode ser empregada como neoadju-vância e como tratamento adjuvante. Atualmente, vem-se estudando o uso de quimioterapia intraperitoneal hiper-térmica em tumores com risco de disseminação peritoneal (tumores T3 ou N1). A radioterapia adjuvante acrescenta muita morbidade ao tratamento e vem caindo em desuso. Ambas as técnicas podem ser uti lizadas de maneira paliati -va, nos casos de dor e sangramento. Dados de vários estu-dos sugerem que alguns pacientes com doença localmente avançada, inicialmente irressecável, podem responder à quimioterapia ou combinação de quimioterapia e radiote-rapia de maneira sufi ciente para serem submeti dos à cirur-gia potencialmente curati va. Ressecção de metástase hepá-ti ca ou pulmonar de lesões isoladas pode potencialmente resultar em sobrevida longa em um grupo altamente sele-cionado de pacientes.

7. Prognósti co O principal fator prognósti co é o estadio TNM. A dife-

renciação também é um desses fatores; quanto mais indi-ferenciado, pior o prognósti co. Além disso, tumores mais proximais tendem a ter pior prognósti co. E pacientes com marcadores tumorais elevados (CEA, CA 19-9, CA 72) têm pior sobrevida.

Tabela 5 - Percentual de sobrevida em 5 anos

EUA Alemanha Japão Brasil

Geral 17,5 36,5 63,5 89

IA 59 85,2 69,2 80

IB 44 69,2 89,9 72

II 29 43,7 71,2 47

IIIA 15 28,6 47,9

IIIB 9 17,7 28,8

IV 3 8,7 11,5

8. ResumoQuadro-resumo

- A maioria dos pacientes com câncer gástrico é assintomáti ca ou apresenta sintomas inespecífi cos;

- O câncer gástrico precoce, que não ultrapassa a submucosa, pode ser curado com ressecção local em até 95% dos casos;

- Os princípios do tratamento curati vo são a ressecção com mar-gens e a linfadenectomia alargada (a D2).

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Alterações funcionais dos intesti nos

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

tão resumidas na Tabela 2. A diminuição na absorção de nutrientes provoca desordens orgânicas variadas (diarreia e perda de peso, anemia, doenças ósseas, coagulopati as, enfermidades relacionadas a defi ciências vitamínicas como escorbuto e pelagra), exigindo do médico todo o cuidado e uma investi gação sistemáti ca do seu paciente.

Tabela 2 - Manifestações clínica e laboratorial da má absorção

Manifestação Achados laboratoriais

Nutrientes não absorti vos

Esteatorreia (fezes volumosas, brilhan-tes, claras).

Aumento de gordura fecal, diminuição do colesterol sérico.

Gorduras.

Diarreia (aumento da água fecal).

Aumento da gordura fecal e testes positi -vos para sais biliares.

Ácidos graxos e sais biliares.

Perda de peso, desnutrição (perda mus cular importan-te); fraqueza; fadiga e distensão abdo-minal.

Aumento da gordura fecal e nitrogênio; di-minuição da absorção de glicose e xilose.

Perda de energia calórica dos nu-trientes (gorduras, proteínas, carboi-dratos).

Anemia por defi ci-ência de ferro.

Anemia hipocrômica; baixa ferriti na sérica. Ferro.

Anemia megalo-blásti ca.

Macrocitose; decrés-cimo da absorção de vitamina B12, decrés-cimo de vitamina B12 e folato séricos.

Vitamina B12 e ácido fólico.

Parestesias; tétano; sinais de Trousseau e Chvostek positi -vos.

Decréscimo do cálcio sérico, magnésio e potássio.

Cálcio, vitamina D, magnésio, po-tássio.

Dor óssea; fraturas patológicas; defor-midades ósseas.

Osteoporose no raio x; osteomalácia na biópsia.

Cálcio, proteínas.

Tendências às he-morragias (equimo-ses, melena).

Tempo de protrombi-na alargado. Vitamina K.

Edemas.

Diminuição de albu-mina sérica; aumento das perdas fecais de anti tripsina (anti pro-tease).

Proteínas (entero-pati a perdedora de proteínas).

Pontos essenciais

-Má absorção intesti nal e síndrome do intesti no curto;

-Diarreias agudas;

-Diarreias crônicas.

1. Má absorção intesti nal

O aporte de nutrientes, que favorece a eutrofi a do or-ganismo, depende de muitos fatores. Há a necessidade de adequada absorção intesti nal, de uma quanti dade sati sfa-tória de alimentos de alto valor nutriti vo, de apeti te e da normalidade dos mecanismos de ingestão e de transporte dos alimentos no tubo digesti vo. A capacidade de absorção intesti nal também varia e depende da área exposta aos nu-trientes e da capacidade absorti va por unidade de superfí -cie (Tabela 1).

Tabela 1 - Morfofi siologia da mucosa intesti nal

Superfí cie absorti va Intesti no delgado

Estruturas intesti nais Superfí cie absorti va

Válvulas coniventes (pregas de Kerckring) 3xs

Vilosidades (>106) 9xs

Microvilosidades (±1.500/enterócito = ±200x106 21xs

Total da superfí cie absorti va (= ±250m2 = quadra de tênis)

570 a 600xs

O termo má absorção denota uma desordem em que há uma ruptura do equilíbrio da digestão e absorção de nutrientes pelo trato gastrintesti nal. É importante enfati -zar que alguns autores uti lizam o termo má digestão que signifi ca redução na quebra de nutrientes (carboidratos, proteínas, gorduras) em subprodutos absorvíveis (mono, di ou oligossacarídeos; aminoácidos; oligopeptí dios; ácidos graxos, monoglicerídeos). A despeito dessas disti nções, re-fl eti ndo a fi siopatologia subjacente, má absorção é ainda amplamente uti lizada como o termo global para todos os aspectos do comprometi mento da digestão e absorção. As manifestações clínicas e laboratoriais da má absorção es-

CAPÍTULO

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A LT E RAÇÕ E S F U NC I O N A I S DOS I N T E S T I NO S

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Manifestação Achados laboratoriais

Nutrientes não absorti vos

Noctúria; distensão abdominal.

Distensão de alças de delgado no raio x. Água.

Intolerância ao leite.

Teste de tolerância de lactose. Lactose.

Neuropati a peri-férica.

Testes de função neurológica clínicos e complementares (eletroneuromiogra-fi a) alterados.

Vitaminas B1, B6 e B12.

Em complemento aos sinais, sintomas e achados labo-ratoriais da Tabela 1, outras pistas diagnósti cas importantes podem ser descobertas na anamnese:

-História de cirurgia gastrintesti nal prévia; -Gastrectomia parcial ou total; -Ressecções do intesti no delgado (jejuno? Íleo? Válvula ileocecal? Extensão da ressecção?); -Ressecção parcial ou total do pâncreas; -História de pancreati te crônica; -História ou evidência de colestase crônica; -História de radioterapia.

Algumas doenças relacionadas a má absorção têm maior incidência familiar, devendo ser questi onadas na anamnese: doença celíaca, doença de Crohn, fi brose císti ca.

A - Fisiopatologia da má absorção

A absorção de micronutrientes não é igual em todo o trato digesti vo. A absorção dos diferentes elementos (pro-teínas, carboidratos e ácidos graxos simples) tem início no duodeno e se completa nos primeiros 100cm do intesti no delgado. Também é a região em que existe a absorção de ferro, cálcio e vitaminas hidrossolúveis. A absorção de água e eletrólitos é realizada tanto no delgado quanto no cólon. Os nutrientes são absorvidos ao longo de todo o delgado, com exceção de ferro e folato (absorvidos no duodeno e no jejuno proximal) e dos sais biliares e cobalamina (íleo distal).

Para o transporte dos nutrientes, existe a moti lidade do tubo digesti vo, que auxilia na diluição do bolo alimentar e sua distribuição pela mucosa, para os processos de digestão enzimáti ca. A absorção dos nutrientes pode ser passiva (não requer gasto energéti co celular) e ocorre através dos poros da membrana (moléculas pequenas e hidrossolúveis) ou por difusão facilitada, por meio de carregadores específi cos da membrana celular, para as moléculas maiores. O transpor-te ati vo é determinado por carreadores de membrana que promovem o movimento do nutriente contra o gradiente de concentração (requer gasto energéti co celular).

A efi ciência da absorção/captação de nutrientes pela mucosa é infl uenciada pelo número de células absorti vas, pela existência de hidrolases funcionais e proteínas trans-portadoras específi cas de nutrientes na borda “em escova” e pelo tempo de trânsito.

B - Manifestações clínicas e eti ologias da má absorção

Diarreia, cólicas abdominais, fl atulência, distensão ab-dominal, esteatorreias, perda de peso, fraqueza e pareste-sias são as manifestações mais comuns do paciente com a má absorção intesti nal.

A síndrome de má absorção pode ser consequente a um problema na absorção. Existe uma insufi ciência de digestão (os alimentos não estão completamente digeridos), e os ali-mentos não são metabolizados em macro e micronutrien-tes, para a mucosa intesti nal absorvê-los normalmente. As causas podem ser:

- Insufi ciência pancreáti ca exócrina: provocada por pro-cessos infl amatórios, crônicos e neoplásicos. Devem ser lembradas ressecções cirúrgicas parciais ou totais; - Insufi ciência hepatobiliar: a diminuição dos sais bilia-res no duodeno determina a insufi ciência de digestão do bolo alimentar e nos processos de absorção de gor-duras e vitaminas lipossolúveis. Exemplos: colestase por obstrução da bile por obstáculos intra ou extra--hepáti cos; -Hipersecreção gástrica: a síndrome de Zollinger-Ellison é o exemplo clássico. O baixo pH do duodeno pode bloquear a ati vidade digesti va; -Condições cirúrgicas pós-operatórias: ressecções pan-creáti cas extensas, derivações digesti vas (segmentos extensos de delgado sem receber alimentos ou secre-ções importantes para a digestão), enterectomias ex-tensas (diminuição da superfí cie intesti nal absorti va). Essa últi ma condição é conhecida pela denominação de síndrome do intesti no curto; -Diminuição da superfí cie de absorção: as ressecções cirúrgicas (já comentadas), doença de Crohn do intesti -no delgado, doença celíaca, o espru tropical e a doença de Whipple; -Obstrução linfáti ca: linfangiectasias, linfomas, tuber-culose intesti nal; -Defi ciências enzimáti cas: defi ciência de dissacaridases; -Crescimento bacteriano excessivo: consequência pós--operatória de modifi cações anatômicas no tubo di-gesti vo por anastomoses cirúrgicas (síndrome da alça cega); -Doenças vasculares: vasculites e insufi ciência vascu-lar intesti nal crônica (comum nos idosos com doenças crônicas vasculares, consequentes à ateromatose sis-têmica). -Exames laboratoriais a serem considerados em pa-cientes com má absorção:

• Má absorção de gordura:

* Sudão III. • Técnica de Van de Kamer:

* Mais sensível e específi co;

* Medir o conteúdo fecal de ácidos graxos;

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GASTROCL ÍN ICA

* Coleta de fezes por 72 horas, proporcionando uma dieta com 100g diária de gordura;

* > 6g/dia é considerado positi vo.

• Alteração da mucosa intesti nal

* Teste da D-xilose:◊ D-xilose é uma pentose, que é absorvido no in-

testi no delgado proximal por difusão passiva;◊ Absorção independente da digestão intralumi-

nal, da ação dos sucos pancreáti cos e da secre-ção da bile;

◊ Indica má absorção de doença difusa da muco-sa do intesti no delgado proximal;

◊ Consiste na ingestão de 25g. D-xilose após a pri-meira urina da manhã. A urina é recolhida para as próximas 5 horas e uma amostra de sangue uma hora após;

◊ É positi vo se a excreção urinária é menor que 4g de D-xilose e os níveis séricos <20mg/dL.

* Teste de Schilling:◊ Avaliar o grau de absorção intesti nal de vitami-

na B12; ◊ Má absorção de vitamina B12:

» Defi ciência de fator intrínseco (anemia perni-ciosa, gastrectomia);

» Insufi ciência pancreáti ca exócrina; » Supercrescimento bacteriano; » Doença ou ressecção do íleo terminal.

◊ Ela consiste na administração oral de uma pe-quena dose de B12 radioati va e, simultanea-mente, uma alta dose intramuscular não radio-ati va;

◊ Se a excreção urinária dentro de 24 horas é <5%, é confi rmada má absorção;

◊ Se o teste for repeti do, acrescentando o fator intrínseco e normalizados, então o problema é a defi ciência deste fator;

◊ Se o teste é repeti do pela adição de enzimas pancreáti cas e são normalizados, o problema é uma defi ciência do pâncreas exócrino;

◊ Se o teste é repeti do após o tratamento anti -bióti co e normalizado, o problema é devido ao crescimento excessivo de bactérias;

◊ Se o teste não é normalizado por qualquer dos métodos descritos, o defeito é devido à doença ou ressecção ileal.

C - Principais doenças que levam à má absorção

a) Doença celíaca

É também denominada espru celíaco, espru não tropical e enteropati a sensível ao glúten, o qual é um componente

proteico presente em alimentos feitos à base dos seguintes cereais: trigo, cevada, aveia e centeio. Caracteriza-se por da-nos na mucosa das porções proximais do intesti no delgado e resulta na síndrome de má absorção de muitos nutrientes. Embora sua manifestação ocorra na infância, pode haver o ataque na 2ª ou na 4ª décadas de vida. Está fortemente as-sociada a antí genos HLA classe II (HLA-DR3 e HLA-DQw2). O mecanismo ainda não é bem compreendido, mas dietas res-tritas de glúten determinam a resolução dos sintomas.

Há a hipótese de que o hospedeiro é geneti camente suscetí vel ao glúten, e, talvez, uma infecção viral em con-junto a essa sensibilidade determine uma resposta celular infl amatória com a destruição da mucosa intesti nal. Grupos com maior risco incluem parentes de 1º grau com doença celíaca, diabetes mellitus ti po 1, doença autoimune da ti -reoide e dermati te herpeti forme.

As manifestações variam de acordo com a faixa etária. Nas crianças pequenas, diarreia, distensão abdominal e problemas de desenvolvimento. Vômitos, irritabilidade, fal-ta de apeti te e obsti pação podem dominar o quadro. Na puberdade e na adolescência, anemia, baixa estatura e sin-tomas neurológicos. Nos adultos, a apresentação clássica é de crises de diarreia acompanhadas de dor e desconforto abdominal. A diarreia, no entanto, não é o sintoma domi-nante na metade dos casos.

O diagnósti co é estabelecido pela biópsia, a qual tem achados característi cos como ausência de vilosidades, hi-perplasia das criptas, aumento dos linfócitos intraepiteliais e infi ltração da lâmina própria por plasmócitos e linfócitos. A dieta sem glúten melhora todo o quadro clínico, confi r-mando o diagnósti co (Tabela 3). Alguns testes sorológicos são úteis para diagnósti co ou triagem de parentes de 1º grau. Os anti corpos IgG e IgA anti gliadina são sensíveis, po-rém não específi cos. Já os anti corpos IgA anti endomisiais (anti corpo contra a transglutaminase tecidual) são sensíveis (90%) e específi cos (90 a 100%).

Em algumas pessoas, ocorre anemia ou osteoporose sem sintomas gastrintesti nais. Outras manifestações ex-traintesti nais incluem erupção cutânea (dermati te her-peti forme), distúrbios neurológicos (miopati a, epilepsia), distúrbios psiquiátricos (depressão) e distúrbios da repro-dução (inferti lidade, aborto espontâneo). O tratamento é feito com dieta sem glúten, sendo observada melhora em 90% dos pacientes, dentro de 2 semanas. Pacientes com doença celíaca correm maior risco de desenvolver linfoma de células T e carcinomas intesti nais, mas tais riscos podem ser diminuídos com dieta estritamente sem glúten.

Tabela 3 - Diagnósti co da doença celíaca

- Perda de peso;

- Distensão, fl atulência e fezes oleosas;

- Aumento da gordura fecal (>7g/24h);

- Biópsia do intesti no delgado anormal nas porções distais do duodeno e proximais do jejuno;

- Melhora com restrição do glúten.

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b) Doença de Whipple

É uma rara doença multi ssistêmica, causada por uma in-fecção do bacilo Tropheryma whipplei. Ocorre em qualquer idade, mas é mais comum em homens brancos na 4ª e na 5ª décadas de vida. A via de contaminação não é conhecida, e nenhum caso de endemia foi reconhecido. Manifesta-se com artralgias migratórias e não deformantes (80% dos ca-sos), que são a 1ª manifestação clínica, na maioria dos casos podendo preceder o diagnósti co em cerca de 10 anos, sendo normalmente simétricas, migratórias e de curta duração. As manifestações gastrintesti nais ocorrem em 75% dos casos (dor abdominal ti po cólica, diarreia e certo grau de má ab-sorção com distensão, fl atulência e esteator reia), e a perda de peso está presente em todos os casos (Tabela 4). Podem ocorrer enteropati a perdedora de proteínas com o envolvi-mento linfáti co, hipoalbuminemia e edemas corporais.

O diagnósti co pode ser muito difí cil se o paciente não apresenta sintomas gastrintesti nais, e, em 50% dos ca-sos, pode haver febre baixa e tosse crônica. Podem existi r linfono domegalias que lembram sarcoidose. O envolvimen-to das válvulas cardíacas e o miocárdio levam à insufi ciência cardíaca e refl uxo. Podem ocorrer achados oculares como uveíte, vitreíte, cerati te e hemorragias reti nianas. Em 10% dos casos, o envolvimento do sistema nervoso central de-termina a demência, letargia, coma, desmaios, mioclonias e sinais hipota lâmicos. Envolvimentos de pares cranianos determinam oft almoplegia ou nistagmo.

O diagnósti co é histopato lógico dos tecidos suspeitos. Na maioria dos casos, a biópsia do duodeno pode revelar a infi ltração da lâmina própria com macrófagos PAS-positi vos que contêm o bacilo Gram positi vo. Nos pacientes sem sin-tomas gastrintesti nais, a biópsia pode ser normal, e deve--se proceder à investi gação com outras biópsias de áreas suspeitas. Teste com PCR tem sensibilidade em torno de 97% e especifi cidade de 100% e é uti lizado nas amostras de fl uidos corporais, como liquor cerebrospinal, humor vítreo, líquido sinovial ou válvulas cardíacas.

Tabela 4 - Principais característi cas da doença de Whipple

- Má absorção;

- Doença multi ssistêmica;

- Febre, linfonodomegalias, artralgias;

- Biópsia duodenal com macrófagos PAS-positi vos com caracte-rísti cas de bacilos.

O tratamento consiste no uso de anti bióti cos com me-lhora progressiva dos quadros apresentados. Não há um es-quema específi co, mas o uso é prolongado pelo período de 1 ano. As sulfas são uti lizadas como 1ª escolha. Nos pacientes alérgicos, uti liza-se ceft riaxona ou cloranfenicol. E é necessá-ria uma nova biópsia para a certeza da remissão da infecção.

c) Supercrescimento bacteriano

No intesti no delgado, existe uma quanti dade de bacté-rias, normalmente em simbiose com o meio intesti nal. O

supercrescimento de bactérias no intesti no delgado pode determinar a má absorção por inúmeros mecanismos.

A desconjugação dos sais biliares causa a inadequada formação de micelas, resultando na má absorção de gor-duras com esteatorreia. A proliferação bacteriana consome nutrientes, reduzindo a absorção de vitamina B12 e carboi-dratos. As bactérias também causam danos, diretamente, na mucosa intesti nal (células epiteliais e da borda “em esco-va”), impedindo a absorção de açúcares e proteínas.

A passagem dos ácidos biliares não absorvidos e car-boidratos para os cólons determina as diarreias osmóti ca e secretora. O supercrescimento bacteriano é uma impor-tante causa de má absorção no idoso, talvez porque há um decréscimo da acidez gástrica ou moti lidade intesti nal di-minuída. As causas para o crescimento bacteriano incluem:

-História de cirurgia do trato gastrintesti nal superior;

-Anastomose gastrojejunal;

-Ressecção antral;

-Acloridria gástrica;

-Anormalidades anatômicas do intesti no delgado com estagnação (alça aferente da gastroenteroanastomose Billroth II, divertí culos do intesti no delgado, obstrução intesti nal, alça cega e enterite por radiação);

-Mobilidade intesti nal prejudicada (esclerodermia, dia-betes, pseudo-obstrução intesti nal crônica); -Fístulas intesti nais nas doenças de Crohn (gastrocólica ou coloentérica), cânceres e ressecções cirúrgicas; -Causas associadas: AIDS e pancreati te crônica.

O tratamento consiste na correção do defeito anatômi-co que está potencializando o processo. O uso de anti bió-ti cos, de amplo espectro, contra agentes anaeróbicos e ae-róbicos, por 1 a 2 semanas, promove a melhora progressiva do paciente. Sensibilidade bacteriana da intubação duode-nal com síndrome de supercrescimento bacteriano oferece suporte ao uso de amoxicilina-clavulanato. Já clindamicina e metronidazol são úteis em idosos com síndrome do su-percrescimento bacteriano idiopáti ca. O uso conti nuado de anti bióti cos deve ser evitado, pelo risco de resistência bacteriana.

D - Síndrome do intesti no curto

Esta é uma condição de má absorção que se instala após a remoção de 2/3 do intesti no delgado. As causas mais co-muns são doença de Crohn, infarto mesentérico, enterite por radiação e trauma. Como causas, na Pediatria, encon-tram-se malformações congênitas em que o cirurgião é obrigado a reti rar grandes porções intesti nais. O ti po de má absorção depende da extensão e topografi a da ressecção e do grau de adaptação do intesti no remanescente. O quadro clínico é dominado por diarreia e perda de peso.

Há uma série de modifi cações adaptati vas que aumen-tam a capacidade absorti va por unidade de superfí cie do

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intesti no remanescente, além do retardo no esvaziamento gástrico e na velocidade do intesti no residual. Ressecções de 40 a 50% do comprimento total do delgado são tolerá-veis. Quanto maior a ressecção intesti nal, maiores as perdas de água e eletrólitos, além dos desequilíbrios já citados. Em média, até 100cm de jejuno proximal podem ser sufi cientes para manter o equilíbrio nutricional com dietas orais so-mente, apesar de as perdas de água e eletrólitos se mante-rem. A adaptação gradual ocorre em, aproximadamente, 1 ano. Hiperplasia de vilosidades, aumento de profundidade das criptas e dilatação intesti nal também podem ocorrer.

Já os pacientes com ressecções maiores, nos casos em que estejam presentes menos de 100cm de jejuno proxi-mal, necessitam de suple mentação enteral específi ca (die-tas elementares ou poliméricas). A nutrição parenteral pode ser necessária nos casos graves (taxa de mortalidade em torno de 2 a 5% ao ano). A morte dos pacientes com nutrição parenteral crônica decorre das doenças hepáti cas induzidas por quadro disabsorti vo, infecção genera lizada, perda de acesso venoso e infecções dos cateteres centrais. O transplante intesti nal está indicado aos casos extremos, com uma taxa de sobrevida em 5 anos de 60 a 70%.

A ressecção do íleo terminal resulta na má absorção de sais biliares e vitamina B12, os quais são absorvidos nessa região. Nos casos de pouca perda intesti nal, os pacientes te-rão de receber suplementação de vitamina B12. Nas maiores ressecções desse segmento ileal, a má absorção de sais bilia-res esti mula a secreção de fl uidos dos cólons, resultando em diarreia aquosa. Devem ser tratados com quelantes de sais biliares (colesti ramina, de 2 a 4g, 3x/dia, com as refeições).

Esteatorreia pode estar associada, além de perdas de vitaminas lipossolúveis. Empregam-se dietas com baixas gorduras, vitaminas e suplementos de gorduras de cadeias médias, que não necessitam de micelas para a sua absor-ção. Gorduras não absorvidas ligam-se ao cálcio, também reduzindo a sua absorção. Calculose renal ocorre por cris-tais de oxalato. Reposição oral de cálcio favorece a ligação de oxalato e aumenta os níveis séricos de cálcio. Há calcu-lose biliar por colesterol, devido ao decréscimo dos sais bi-liares (ciclo êntero-hepáti co diminuído). Se ti ver ocorrido ressecção da válvula ileocecal (ressecção do ceco e cólon ascendente, comuns na hemicolectomia direita), haverá a contaminação bacteriana do intesti no delgado em grau maior, complicando a má absorção.

O hormônio de crescimento recombinante produz efei-to anabólico e anti catabólico em várias células, incluindo mioides, hepatócitos, adipócitos, linfócitos, e células hema-topoéti cas. Ele exerce ati vidade em receptores celulares es-pecífi cos incluindo fator de crescimento semelhante à insu-lina (IGF-1). A medicação é uti lizada de maneira adjuvante a terapia nutricional.

E - Espru tropical

Espru tropical é uma doença disti nta que pode se mani-festar como uma doença aguda ou crônica. A doença crô-

nica, que normalmente requer de 2 a 4 anos de residên-cia em uma região tropical, ocorre em 3 etapas. O diag-nósti co deve ser considerado em qualquer paciente com sinais de má absorção e anemia megaloblásti ca grave, que tem sido a de um clima tropical. O diagnósti co diferen-cial pode incluir a Giardia lamblia, Strongyloides stercora-lis, Isospora belli, Philippinensis capillaria e Metagonimus yokogawai.

F - Defi ciência de lactase

Os baixos níveis de lactase, uma enzima do intesti no delgado, são responsáveis por esta enfermidade. A preva-lência de defi ciência de lactase de adultos é baixa no norte da Europa (2 a 7%) e EUA, e é maior nos hispânicos (50 a 80%), afro-americanos (60 a 80%), nati vos americanos (80 a 100%) e asiáti cos (98 a 100%). A prevalência aumenta com a idade. A lactase é normalmente presente na borda da es-cova de pequenas células do epitélio intesti nal. Ao nascer, os níveis da enzima são altos, mas diminuem rapidamente após o desmame na maioria das populações. A defi ciência é adquirida devido a infecção (por exemplo, Giardia), drogas ou outras doenças do intesti no.

Quando a lactose da dieta não é adequada, decompos-tos em glicose e galactose, que não é absorvida, passam para o cólon. No cólon, as bactérias fermentam a lactose para gás, produção e outros metabólitos que causam a se-creção de fl uido líquido no cólon. A maioria dos sintomas associa-se à produção de gás. Os principais sintomas são dor abdominal, distensão abdominal, fl atulência e diarreia após o consumo de lactose. Distensão normalmente não é detectável clinicamente. A intolerância à lactose é mais comum em IBS como na população em geral. Vários testes estão disponíveis para o diagnósti co de defi ciência de lac-tase. A mais uti lizada é o teste do hidrogênio expirado, que mede a quanti dade de hidrogênio produzido após a inges-tão de lactose.

2. Diarreia agudaA diarreia pode ser defi nida como o excesso de água nas

fezes com a diminuição da consistência fecal e inúmeros episódios de eliminações por dia. Na práti ca, consideram--se mais do que 2 a 3 evacuações ao dia ou fezes liquefei-tas em todos os episódios. Defi ne-se diarreia aguda como aquela com até 3 semanas de duração dos sintomas. O qua-dro clínico das diarreias pode manifestar-se com sintomas de leve intensidade a piora clínica progressiva, em poucas horas, com risco de morte por desidratação e infecção ge-neralizada.

A - Epidemiologia

Em menores de 5 anos, os episódios agudos de diarreia prevalecem de 2 a 3 surtos por ano nos países desenvolvi-dos e de 10 a 18 episódios em crianças nos países subde-senvolvidos. Na Ásia, África e América Lati na, as diarreias

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agudas não são apenas as maiores causas de doenças nas crianças (esti mam-se 1 bilhão de casos por ano), mas tam-bém a maior causa de mortalidade infanti l, sendo respon-sável por 4 a 6 milhões de mortes por ano (12.600 mortes/dia). Nas regiões críti cas do planeta, a desnutrição proteico--calórica contribui muito para a morbimortalidade infanti l.

O rotavírus é um agente muito comum entre as crianças com menos de 2 anos e acomete de 75 a 100% dos indiví-duos expostos. G. lamblia é mais comum nas crianças mais velhas, com baixos índices de prevalência. A maior morbi-dade e mortalidade dos agentes enteropatogênicos envolve crianças menores de 5 anos. Os outros micro-organismos mais comuns em crianças que em adultos são as cepas en-terotoxigênicas, enteropatogênicas e êntero-hemor rágicas da E. coli; C. jejuni; G. lamblia. A incidência de infecção por Salmonella é mais comum em crianças menores de 1 ano, enquanto a infecção por Shigella é maior nas crianças na faixa de 6 meses a 4 anos (Figura 1).

Nos hospitais, concentram-se casos de diarreia espe-cífi cos e estão relacionados ao próprio ambiente hospita-lar com a sua população de bactérias locais, aos pacientes debilitados e internados nas unidades de terapia intensiva e nas enfermarias de Pediatria. C. diffi cile é o agente pre-dominante nas infecções hospitalares, as infecções por rotavírus podem espalhar-se com rapidez nas enferma-rias de Pediatria, e a diarreia por E. coli enteropatogênica pode acometer a equipe de enfermagem dos berçários de Neonatologia. Cerca de 1/3 da população de idosos interna-dos, frequentemente, por suas condições clínicas crônicas, desenvolve surtos diarreicos todos os anos. A anti bioti cote-rapia prolongada pode predispor a colite pseudomembra-nosa, provocada pela alteração da fl ora intesti nal e facili-tando a proliferação de C. diffi cile.

Figura 1 - (A) Escherichia coli; (B) rotavírus; (C) Campylobacter; (D) Giardia lamblia; e (E) Salmonella

B - Fisiopatologia

A presença de qualquer fenômeno que interfi ra na fi -siologia da absorção ou na secreção de fl uidos fecais pode provocar a síndrome diarreica. O intesti no delgado pode conter até 10L de fl uidos ao dia (originados da ingestão via oral, das secreções gástricas, biliar e pancreáti ca). O cólon pode absorver de 4 a 5L/dia, mas, normalmente, chega ao

cólon 1L de água diariamente; no balanço fi nal, a capacida-de absorti va dos intesti nos delgado e grosso pode resultar em até 100mL de líquidos para as fezes, apenas. A água é absorvida de forma passiva no intesti no e depende do gra-diente osmóti co intraluminal.

A absorção intesti nal do delgado pode ser alterada por excesso de volume, fl uxo rápido e presença de gorduras e ácidos biliares não absorvidos. Já no cólon, pode ter sua fun-ção absorti va alterada por uma variedade de fatores, como doença mucosa, aumento do trânsito, alteração da fl ora bac-teriana, agressões por agentes infecciosos, aumento de sais biliares e aumento dos ácidos graxos de cadeia longa.

A diarreia determina a perda de fl uidos intesti nais osmo-ti camente ati vos, e o resultado é a diminuição da absorção de nutrientes e eletrólitos, o excesso de secreção de eletróli-tos ou ambos. O equilíbrio hidroeletrolíti co intraluminal de-pende da osmolalidade das fezes. É próxima da osmolalidade sérica, em torno de 290mOsm/kg. Normalmente, a maior parte da osmolalidade fecal está relacionada às concentra-ções de sódio e de potássio multi plicada por 2 (para contar, também, os ânions associados). Os produtos da fermentação bacteriana no cólon, como os derivados dos ácidos graxos, determinam as concentrações maiores do gap osmóti co. A diferença osmóti ca é calculada da seguinte forma:

Gap osmóti co = 290 – [2(Na fecal + K fecal)]

Na diarreia osmóti ca, a presença de solutos não absor-víveis contribui, signifi cati vamente, para a osmolalidade, tornando o material intraluminal hiperosmolar, promoven-do um movimento de água para dentro da luz intesti nal. As principais causas são as defi ciências de dissacaridase, a insufi ciência pancreáti ca e a ingestão de substâncias não absorvíveis (drogas laxati vas como manitol, lactulose, sor-bitol). O gap osmóti co, em todas as formas de diarreia os-móti ca, é maior do que 125mOsm/kg, embora, na diarreia secretora, apresente um valor menor.

C - Mecanismo de ação dos agentes patogênicos

a) Quanti dade do inóculo (micro-organismo introduzi-do no corpo)

O número de agentes microbianos varia de espécie para espécie. Para agentes, como Shigella, E. coli êntero-hemor-rágica, Giardia lamblia ou Entamoeba, de 10 a 100 bacté-rias ou cistos são capazes de produzir a infecção, enquanto de 105 a 108 organismos de Vibrio cholerae devem ser inge-ridos para causar a doença intesti nal aguda. A habilidade do organismo de vencer as defesas do hospedeiro tem implica-ção para a sua transmissão para outros indivíduos: Shigella, E. coli êntero-hemorrágica, Giardia lamblia e Entamoeba podem se espalhar por contato de pessoa para pessoa, em-bora, no caso da contaminação por Salmonella, deva haver um crescimento prévio no alimento contaminado, por vá-rias horas antes, para obter uma quanti dade de inóculo su-fi ciente ao desenvolvimento da infecção intesti nal.

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b) Aderência

Muitos micro-organismos aderem-se à mucosa gastrintes-ti nal como passo inicial no seu processo patogênico, enquanto outros entram em contato com a fl ora local e se desenvolvem, determinando a colonização progressiva dos segmentos do tubo digesti vo. As aderências dos agentes infecciosos estão associadas à presença de receptores específi cos da membra-na celular das células da mucosa. Como exemplo desse meca-nismo de ação, há o agente da cólera (V. cholerae), o modelo clássico de ligação direta da mucosa. A bactéria da cólera se adere aos enterócitos do intesti no delgado, determinando o desequilíbrio da absorção e secreção intesti nal.

As várias formas patogênicas da família da E. coli apre-sentam mecanismos diferentes de aderência entre si. O subti po da E. coli enterotoxigênica produz uma proteína chamada fator anti gênico colonizador, que possibilita a co-lonização do trato digesti vo superior antes da produção de sua enterotoxina, enquanto o subti po enteropatogênico (causador de diarreia nas crianças) e a forma êntero-he-morrágica (causadora da colite hemorrágica e da síndrome hemolíti co-urêmica) determinam a destruição da mucosa intesti nal e a invasão tecidual do trato digesti vo.

c) Produção de toxinas

A produção de 1 ou muitos ti pos de exotoxinas é impor-tante na patogênese de inúmeros agentes entéricos. Tais toxinas incluem as enterotoxinas, que causam a diarreia aquosa por ação direta no mecanismo secretor da mucosa intesti nal (E. coli enterotoxigênica); as citotoxinas, que cau-sam a destruição das células e estão associadas às diarreias infl amatórias (S. dysenteriae ti po 1, Vibrio parahaemolyti -cus e Clostridium diffi cile); e as neurotoxinas, as quais agem diretamente no sistema nervoso central ou periférico (Sta-phylococcus sp e Bacillus cereus).

d) Invasão

A invasão tecidual dos agentes microbianos é um agra-vante dentro dos quadros da síndrome diarreica, de uma forma geral. Imunodeprimidos (portadores de HIV, uso de quimio terapia para o câncer, imunossupressores para trans-plantados, síndromes mieloproliferati vas e estados pré-leu-cêmicos) correm maior risco de desenvolver a invasão teci-dual da mucosa, quando inoculados por micro-organismos intesti nais. Esses estados de resistência imunológica altera-da podem desenvolver a diminuição das defesas naturais do intesti no (diminuição da produção de IgA, diminuição dos linfócitos intesti nais, leucopenia).

A invasão bacteriana e a destruição celular da mucosa intesti nal são situações presentes nos quadros de infecção disentérica (por meio da produção de citotoxinas), e os agentes microbianos responsáveis são as infecções causa-das pela Shigella e as cepas enteroinvasivas da E. coli. Esses agentes caracterizam-se pelo predomínio da invasão teci-dual, proliferação intraepitelial e disseminação pelas célu-las adjacentes. Os micro-organismos da Salmonella causam a diarreia infl amatória por invasão da mucosa do intesti no,

mas não estão associados à destruição celular dos enteró-citos; não determinam um quadro completo da síndrome disentérica. As cepas da Salmonella typhi e da Yersinia ente-rocoliti ca podem penetrar a mucosa intesti nal intacta, pro-mover a multi plicação celular nas placas de Peyer (nódulos linfáti cos agregados do intesti no delgado) e nos linfonodos intesti nais, e se disseminar através da corrente sanguínea, causando a febre entérica (uma síndrome caracterizada por febre, cefaleia, bradicardia relati va, dores abdo mi nais, es-plenomegalia e leucopenia).

D - Mecanismos de defesa do hospedeiro

a) Flora normal

A microfl ora habitual do trato digesti vo exerce um me-canismo de proteção natural, prevenindo a colonização de patógenos entéricos potenciais. Portadores de poucas bac-térias intesti nais, como recém-nascidos ou pacientes que recebem anti bioti coterapia prolongada, são mais suscetí -veis a desenvolverem infecção intesti nal. Mais de 99% da fl ora colônica são compostos por bactérias anaeróbias. O pH ácido e a presença dos gases, provenientes da fermen-tação das gorduras digeridas por essas bactérias, surgem como elementos importantes para a resistência contra a colonização de agentes externos.

b) Acidez gástrica

A acidez da mucosa gástrica é um importante elemen-to de barreira. O aumento na frequência de infecções in-testi nais, como Salmonella, G. lamblia e uma variedade de helmintos têm sido reportados nos submeti dos à ressecção gástrica ou que possuam acloridria por qualquer razão. A neutralização da acidez gástrica com o uso de anti ácidos ou bloqueadores H2 – muito uti lizada no paciente hospitaliza-do –, similarmente, aumenta o risco de colonização intesti -nal. Alguns micro-organismos, entretanto, podem sobrevi-ver na extrema acidez do meio gástrico, como o rotavírus, que é estável na acidifi cação.

c) Mobilidade intesti nal

A mobilidade intesti nal é um mecanismo de limpeza das bactérias intesti nais localizadas nos segmentos proximais do tubo digesti vo. Quando associada à acidez gástrica e à produção de imunoglobulinas, há a limitação da prolifera-ção da fl ora bacteriana natural. Quando a mobilidade in-testi nal está prejudicada – por exemplo, por intermédio do tratamento da dor com o uso de opioides ou drogas anti es-pasmódicas; de anormalidades anatômicas (diver tí culos, fí stulas, bloqueio infl amatório da alça de delgado, estase de alça aferente pós-cirúrgico); de estados de hipomoti lidade (como no diabetes mellitus e na esclerodermia) –, a prolife-ração bacteriana local aumenta, e a infecção por patógenos entéricos está potencializada.

d) Imunidade

A resposta imunológica celular e a produção de anti cor-pos são elementos importantes para a proteção dos indi-

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víduos suscetí veis à infecção intesti nal. A ampla variedade de infecções gastrintesti nais provocadas por agentes virais, bacterianos, fúngicos e parasitários, nos portadores de HIV, demonstra a importância da imunidade celular na proteção do hospedeiro normal contra esses patógenos. A imunidade humoral consiste na produção de imunoglobulina sistêmica IgG e IgM, assim como a produção local de IgA. Hoje se con-sidera o tubo digesti vo como um grande órgão imunológico capaz de produzir imunoglo bulinas locais e ter, em sua es-trutura, o sistema linfocitário (placas de Peyer). A imunoglo-bulina secretora IgA liga-se aos antí genos bacterianos e os conduz até as porções distais dos intesti nos, apresentando ao sistema subepitelial linfoide, os quais esti mulam a pro-liferação de linfócitos sensibilizados. Tais linfócitos ati vados circulam e povoam por toda a mucosa e, assim, aumentam a produção da IgA secretora.

E - Quadro clínico

Tabela 5 - Principais sintomas e tempo de contaminação conforme o agente eti ológico

Período de incubação

Agente eti ológico Sintoma

De 1 a 6 horas

- Staphylococcus aureus, Bacillus cereus.

- Náuseas, vômitos e diarreia.

De 8 a 16 horas

- Clostridium perfringens, B. cereus.

- Dores abdominais, diarreia líquida e vômitos raros.

>16 horas

- Vibrio cholerae;- E. coli enterotoxigênica; - E. coli êntero-hemor-

rágica;- Salmonella spp;- Campylobacter jejuni;- Shigella spp.;- Vibrio parahaemolyti -

cus.

- Diarreia líquida; - Diarreia líquida;- Diarreia sanguino-

lenta;

- Diarreia infl amatória;- Diarreia infl amatória; - Disenteria;- Disenteria.

É possível dividir as diarreias em altas e baixas, de acor-do com a sintomatologia. A diarreia baixa é decorrente do segmento do cólon e caracteriza-se pela presença de muco, sangue e até secreção purulenta nas fezes (descarga de leucócitos na luz intesti nal, nas colites de grau intenso). O paciente apresenta inúmeras evacuações (de 10 a 20/dia) e sensação de esvaziamento incompleto do reto, após cada episódio de defecação (tenesmo retal). A defi nição de disenteria é a mesma que a da diarreia baixa descrita. Leucócitos estão presentes nas fezes, e, assim, a diarreia baixa é considerada infl amatória.

Na diarreia alta (ti po delgado), a frequência das eva-cuações é elevada, e não há perdas sanguíneas nas fezes. Além disso, não é classifi cada como infl amatória (ausência de leucócitos nas fezes – Tabela 6). Em geral, a eliminação é líquida, e, quando existe má absorção, as fezes apresen-tam maior proporção de gordura (fezes esteatorreicas).

Essas fezes têm, como característi cas, aspecto espumoso, de coloração brilhante e de odor muito forte (fermentação excessiva). O paciente pode ter dermati te perianal devido à acidez fecal. A diarreia alta é causada por agentes infeccio-sos (S. aureus, rotavírus, por exemplo), agentes parasitários (giardíase) e má absorção (pancreati te crônica nos alcoóla-tras, por exemplo).

Nos portadores da infecção por HIV, os quadros gas-trintesti nais são muito variados em razão de uma gama de agentes infecciosos que podem estar envolvidos. A enterocolite é a forma mais comum de manifestação. Os agentes responsáveis são as bactérias (Campylobac-ter sp., Salmonella, Shigella), viroses (citome galovírus e adenovírus) e protozoários (criptos porídio, Entamoeba hystoliti ca, Giardia, Isospora, microsporídia). Tais agentes podem estar envolvidos, também, nos pacientes imuno-comprometi dos. Eles tendem a apresentar sintomas mais graves e crônicos, incluindo febre alta, dores abdominais intensas que podem mimeti zar abdome agudo cirúrgico. Bacteremia e envolvimento das vias biliares podem estar presentes na enterocolite. Nas recorrências do quadro in-testi nal, após tratamento adequado, sugere-se infecção por Salmonella e Shigella.

Tabela 6 - Leucócitos nas fezes nas doenças intesti nais

InfecciosaNão

infecciosa

Presente Variável Ausente Presente

Shigella Salmonella Vírus NorwalkColite ulcera-ti va

Campylobacter Yersinia Rotavírus Doença de Crohn

E. coli ente-roinvasiva

Vibrio parahae-molyti cus

Giardia lamblia Colite ulcera-ti va

-Clostridium diffi cile

Entamoeba hys-toliti ca

Colite isquê-mica

- Aeromonas Cryptosporidium -

- -

Envenenamento alimentar por:Staphylococcus aureus; Bacillus cereus;Clostridium per-fringens;Escherichia coli; enterotoxigênica e êntero-hemor-rágica.

-

A maioria dos casos de diarreia aguda dura menos de 24 horas e não merece investi gação. A avaliação completa deve ser realizada em pacientes com doença mais grave, como indicado por quaisquer das seguintes característi cas: profusa, aquosa com depleção de volume, como evidencia-do por hipotensão ortostáti ca.

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-Disenteria (fezes frequente com sangue e muco); -Febre; -Diarreia com dor abdominal intensa; -Diarreia em adultos mais velhos; -Pacientes imunocomprometi dos (por exemplo, síndro-me da imunodefi ciência adquirida, estado pós-trans-plante, quimioterapia, diabetes).

F - Avaliação laboratorial

A avaliação laboratorial deve ser realizada em doentes graves, aqueles que sati sfaçam os critérios já descritos ou aqueles com história prévia de anti bioti coterapia.

-Culturas de fezes devem ser obti das em pacientes que sati sfazem os critérios descritos, aqueles que apa-recem clinicamente doentes ou com exame de fezes positi vo para leucócitos fecais, lactoferrina, ou sangue oculto; -A avaliação das fezes para parasitas é indicada no caso da diarreia persistente ou crônica, ou em áreas mon-tanhosas, a exposição a crianças que frequentam cre-ches, coito anal recepti vo, síndrome da imunodefi ciên-cia adquirida, outros estados imunocomprometi dos, diarreia sanguinolenta com poucos leucócitos fecais ou nenhum; -A avaliação de toxina de Clostridium diffi cile é indica-da a pacientes que receberam terapia anti microbiana nos últi mos 2 meses e pacientes internados há mais de 72 horas. Geralmente, 2 períodos consecuti vos de exames de fezes têm uma sensibilidade de 90% na de-tecção de C. diffi cile.

G - Tratamento

a) Dieta e hidratação

A maioria dos casos de diarreia não chega a determi-nar a desidratação grave, e a reposição adequada de fl uidos orais, contendo carboidratos e eletrólitos, é capaz de repor as perdas hidroeletrolíti cas. Alteração da dieta, evitando o uso de alimentos com fi bras, gorduras e derivados do leite, proporciona repouso digesti vo sati sfatório. Deve-se lem-brar que a diarreia, de forma geral, é autolimitada.

Nos casos graves, a desidratação acontece de forma rá-pida, principalmente nas crianças. A reidratação oral, com soro caseiro ou preparados com glicose, sódio, potássio, cloretos e bicarbonatos, é ideal como reposição das perdas de fl uidos intesti nais. Deve haver o uso de hidratação intra-venosa nos casos graves com repercussão hemodinâmica ou à intolerância oral devido às náuseas e aos vômitos de repeti ção.

b) Agentes anti diarreicos

São medicamentos que podem ser uti lizados em pa-cientes com quadros moderados, proporcionando-lhes mais conforto. O mais comumente uti lizado é a loperamida.

É preciso lembrar que há o risco de estase dos conteúdos intesti nais tóxicos, caso tais agentes sejam usados demasia-damente. Não podem ser uti lizados naqueles com diarreia sanguinolenta, febre alta ou toxemia e devem ser descon-ti nuados nos casos leves e que evoluem com piora clínica progressiva.

c) Anti bioti coterapia

Depende de cada caso. O uso indiscriminado não é indi-cado por alterar a microfl ora e favorecer a proliferação de outros agentes microbianos e diminuir as barreiras intesti -nais naturais.

O tratamento empírico é recomendado aos casos de apresentação moderada a grave com febre, ou fezes com sangue, ou na presença de leucócitos nas fezes, enquanto a cultura está em andamento. Os anti bióti cos mais recomen-dados para esses casos são os derivados das fl uoroquinolo-nas (ciprofl oxacino; ofl oxacino; norfl oxa cino) por um perío-do de 5 a 7 dias. Pode ser feito tratamento alternati vo com sulfametoxazol-trimetoprim ou eritromicina. O metronida-zol está indicado nas infecções por giárdia.

Anti microbianos específi cos não são indicados para as infecções por salmonelas não ti foides, Campylobacter, Aeromonas, Yersinia, ou E. coli O157:H7, exceto nos casos graves. Nessas infecções, não há melhora na recuperação ou diminuição do período de excreção de bactérias fecais patogênicas. As diarreias infecciosas para os quais o uso de anti bióti cos é recomendado são: shigelose, cólera, sal-monelose extraintesti nal, diarreia dos viajantes, infecções por C. diffi cile, giardíase, amebíase e doenças sexualmen-te transmis síveis (gonorreia, sífi lis, infecção por clamídia e herpes-simples). As terapias aos portadores de HIV são bem específi cas e dependem das patologias associadas; em geral, uti lizam-se anti bióti cos de largo espectro de ação e anti virais.

d) Probióti cos

Recentemente foi demonstrado que o uso de probióti cos como Enterococcus faecium, Streptococcus faecium SF68 e determinadas cepas de lactobacillus podem reduzir a dura-ção de diarreia em adultos.

3. Diarreia crônicaUm quadro de diarreia prolongada implica alterações

na fi siologia intesti nal, necessitando de uma investi gação criteriosa. O diagnósti co eti ológico é um grande desafi o, e a anamnese é fundamental para direcionar a investi gação diagnósti ca. A solicitação de inúmeros exames complemen-tares pode mais difi cultar do que ajudar, e a suspeita inicial pode não ser defi nida com precisão, acarretando prejuízo ao paciente. Podem ser usados anti diarreicos nos quadros graves com repercussão sistêmica, e os demais testes se-rão empregados, ao longo do tempo, para defi nir a causa básica.

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A - Classifi cação

Didati camente, é possível classifi car o quadro diarreico em 6 categorias diferentes (Tabela 7).

Tabela 7 - Característi cas dos principais quadros de diarreias crônicas

Diarreia osmóti ca

- Suspeita: quanti dade de fezes diminui com o jejum prolongado; aumento do gap osmó-ti co;

- Medicações: anti ácidos, lactulose, sorbitol;

- Defi ciência de dissacaridase: intolerância à lactose;

- Diarreia propositalmente provocada (dis-túrbio de comportamento neuróti co/psi-quiátrico): drogas irritantes e osmóti cas (magnésio, laxantes, fi toterápicos).

Diarreia secre-tora

- Suspeita: grande quanti dade de fezes (>1L/dia) e pouca mudança no jejum prolongado; gap osmóti co normal;

- Diarreia provocada por ação hormonal: VIPoma, tumor carcinoide, carcinoma me-dular da ti reoide (calcitonina), síndrome de Zollinger-Ellison (gastrina);

- Diarreia provocada (uso abusivo de laxan-tes): fenolft aleína, fi toterápicos (cascara, senna);

- Adenoma viloso;

- Má absorção de sais biliares: ressecção ci-rúrgica ileal, ileíte de Crohn, pós-colecistec-tomia;

- Medicações variadas: efeito colateral.

Condições infl a-matórias intes-ti nais

- Suspeita: febre, hematoquezia, dor abdo-minal;

- Colite ulcerati va;

- Doença de Crohn;

- Colite microscópica;

- Malignidade: linfoma, adenocarcinoma (com obstrução e pseudodiarreia);

- Enterite actí nica.

Síndromes disa-bsorti vas

- Suspeita: perda de peso, valores laborato-riais, gordura fecal elevada (>10g/24h);

- Desordens da mucosa do intesti no delga-do: doença celíaca, espru tropical, doença de Whipple, gastroenterite eosinofí lica, enterectomias alargadas (síndrome do intesti no curto), doença de Crohn;

- Obstrução linfáti ca: linfoma, tumor car-cinoide, tuberculose, sarcoma de Kaposi, sarcoidose, fi brose retroperitoneal;

- Doenças pancreáti cas: pancreati te crôni-ca, carcinoma do pâncreas;

- Crescimento bacteriano: desordens da moti lidade (vagotomia, diabetes), esclero-dermia, fí stulas e divertí culos do intesti no delgado.

Desordens da moti lidade in-testi nal

- Suspeita: doença sistêmica ou cirurgia abdominal prévia;

- Pós-operatório: vagotomia, gastrectomia parcial, alça cega com crescimento bac-teriano;

- Desordens sistêmicas: esclerodermia, diabetes mellitus, hiperti reoidismo;

- Síndrome do cólon irritável.

Infecções crôni-cas intesti nais

- Parasitas: Giardia lamblia, Entamoeba hystoliti ca;

- Virais: citomegalovírus, infecção HIV;

- Bacteriana: Clostridium diffi cile, Myco-bacterium avium;

- Protozoários: microsporídia (Enterocytozoon bieneusi, Cryptosporidium, Isospora belli).

B - Diagnósti co

Na avaliação médica inicial, devem-se classifi car os sin-tomas se pertencem a estados funcionais ou puramente orgânicos; afastar o diagnósti co diferencial de má absorção e diarreia colônica ou infl amatória; e avaliar se há questões sistêmicas envolvidas ou agentes microbianos oportunistas (Tabela 8). Suspeita-se de doença orgânica quando há per-da de peso, anemia, perdas sanguíneas e diarreia com dura-ção inferior a 3 meses e prevalência dos sintomas de forma contí nua ou noturna. Nos doentes idosos, acamados, que usam medicamentos obsti pantes, podem-se formar fecalo-mas (massas compactas de fezes, por vezes muito duras) na ampola retal. Os fecalomas esti mulam a secreção de muco na ampola retal, que arrasta pedaços do fecaloma para o exterior. A repeti ção desse fenômeno várias vezes por dia leva à confusão com a diarreia e à uti lização de obsti pantes que vão agravar a situação. Esse ti po de diarreia é chamado diarreia paradoxal. O médico faz o diagnósti co de tais situa-ções com facilidade, pelo toque retal, e ensina a esvaziar o fecaloma da ampola retal, o que nem sempre é muito fácil.

Tabela 8 - Característi cas diferenciais da diarreia crônica

Característi cas da

apresentaçãoIntesti no delgado Intesti no grosso

Número de evacuações

Pouca Grande

Volume das fezes e consis-tência

Grande e fezes nor-mais ou pastosas

Pequena e fezes líqui-das não consistentes

Coloração das fezes

Normal ou brilhante Normal

Puxo e tenesmo Não Sim

Urgência para evacuação

Rara Frequente

Dor abdominal Periumbilical e/ou dor na fossa ilíaca direita

Dor localizada na fossa ilíaca esquerda

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Característi cas da

apresentaçãoIntesti no delgado Intesti no grosso

Alívio da dor após evacuação Não Sim

Muco Não Sim

Sangue nas fezes Não é frequente Comum

Resíduos ali-mentares visí-veis

Frequentes Pouco frequente

Desnutrição associada Frequente Pouco frequente

A diarreia colônica ou infl amatória apresenta-se com fe-zes líquidas ou pastosas, com muco, sangue ou pus. Nesse caso, a própria anamnese defi ne a localização anatômica do processo. Nos quadros de má absorção, pode haver este-atorreia (fezes brilhantes, claras, espumantes, volumosas). História de cólicas abdominais e fl atulência excessiva são elementos comuns provocados pela fermentação intesti nal dos carboidratos não absorvidos. A perda de peso ocorre nos quadros mais graves e com história prolongada.

Durante a investi gação diagnósti ca, não se devem esque-cer outros elementos que podem determinar o quadro orgâ-nico, como cirurgias prévias com suspeita de ressecções intes-ti nais alargadas, doença pancreáti ca crônica, eti lismo, viagem recente a regiões de risco para infecção intesti nal por agentes microbianos, diabetes mellitus, hiperti reoidismo, colagenoses, suspeita de neoplasia maligna e doença intesti nal específi ca (por exemplo, doença infl amatória intesti nal e celíaca).

Exames básicos na avaliação de má absorção intesti nal incluem hemograma completo, função hepáti ca, dosagem de folato e vitamina B12, função renal, VHS, hormônios ti -reoidianos, proteína C reati va, ferriti na, protoparasitológi-co de fezes, coprocultura, pesquisa de leucócitos fecais e pesquisa de gordura fecal. Nas suspeitas de doença celíaca, pede-se a análise do anti endomísio (IgA) e anti transgluta-minase, com alta especifi cidade e sensibilidade. Quando positi vos, devem ser empregados os exames endoscópicos para biópsias da 2ª e da 3ª porções duodenais. Pode haver teste negati vo, e a biópsia é sempre empregada para tenta-ti va de confi rmação histopatológica.

Para analisar se há perda de leucócitos nas fezes (diar-reia infl amatória), emprega-se o teste de avaliação da ex-creção de lactoferrina fecal (presente nos leucócitos). Na suspeita de infecção parasitária por amebas e giárdia, rea-liza-se o exame de 3 amostras de fezes com a sensibilidade do teste muito sati sfatória (de 60 a 90% de detecção).

Os exames de imagem podem ajudar no raciocínio diagnósti co. A presença de calcifi cação nas radiografi as do abdome levanta a suspeita de pancreati te crônica. A tomo grafi a computadorizada e a ressonância nuclear magnéti ca ajudam a determinar, com mais precisão, o dife rencial de pancreati te crônica ou câncer. E o trânsito intesti nal com contraste auxilia no diagnósti co da doença de Crohn, linfoma intesti nal e divertí culos jejunais (Figuras 2C, D e E).

Figura 2 - (A) Aspecto da mucosa na doença celíaca; (B) aspecto endoscópico da doença de Crohn; (C) doença de Crohn; (D) ascari-díase e (E) aspecto radiológico da retocolite ulcerati va

A colonoscopia é um exame importante no diagnósti co de doença infl amatória intesti nal ou câncer (Figuras 2A e B). Se os exames diagnósti cos não revelarem anormalidades, será necessária a pesquisa dos componentes das fezes (ele-trólitos, osmolali dade, peso das fezes, gordura quanti tati va).

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Se existi r aumento do gap osmóti co e das gorduras fe-cais, as hipóteses serão síndromes disabsorti vas, insufi ciên-cia pancreáti ca e crescimento bacteriano. Se o aumento do gap osmóti co não determinar aumento das gorduras fecais, então os diagnósti cos de intolerância à lactose, sorbitol, lactulose ou uso abusivo de laxati vos serão os mais pro-váveis. Para os casos de gap osmóti co normal e peso fecal normal, as hipóteses serão síndrome do intesti no irritável e diarreias provocadas. Em caso de gap osmóti co normal e aumento do peso das fezes (>1.000g), deve-se avaliar a exis tência de uso abusivo de laxati vos.

É importante fazer a diferenciação no caso das diarreias crônicas com os distúrbios funcionais dos intesti nos, em ra-zão da sua alta prevalência na população (Tabela 9).

Tabela 9 - Característi cas das diarreias

Característi cas Diarreia funcional Diarreia orgânica

Duração dos sintomas

Vários anosUsualmente mais curta

Volume das fezes

Usualmente pequeno <300g/dia

Usualmente gran-de >300g/dia

Sangue e muco

Ausentes Presentes ou au-sentes

Horário das evacuações

Usualmente mati nal/ não interfere no sono

Sem padrão tem-poral

Febre e ema-grecimento

AusentesFrequentemente presente

Emoções Precede ou coincidem com os sintomas

Sem relação com os sintomas

Queixas múl-ti plas

Geralmente presenteGeralmente au-sentes

Cólicas Geralmente presenteGeralmente au-sentes

Localização da dor

Difusa Localizada

Urgência Presente ou ausenteQuase sempre presentes

C - Tratamento

Inúmeros agentes anti diarreicos podem ser emprega-dos. Já os opioides podem ser empregados para os quadros mais estáveis. Entre os mais uti lizados, estão:

-Loperamida: 4mg, inicial; metade da dose após cada evacuação (dose máxima diária de 16mg); -Difenoxilato com atropina: de 1 a 4 tabletes por dia; -Codeína: é um potente analgésico com efeito colateral de obsti pação intesti nal. Pode ser empregado de 15 a 60mg, a cada 4 horas; -Tintura de opium: muito pouco empregada, apresen-ta difi culdade de manipulação farmacológica, devido às leis federais, e pode causar dependência química. Pode-se uti lizar o sulfato de morfi na (receita especial controlada), que é a droga mais uti lizada em conjun-to com outras medicações para o controle das dores

intratáveis (por exemplo, dores oncológicas). Tem o efeito colateral de diminuir a moti lidade intesti nal e é uti lizada em casos estritos com cronicidade e deterio-ração clínica do paciente; -Clonidina: é um agonista adrenérgico que inibe a se-creção intesti nal de eletrólitos. Além disso, é úti l nos casos de diarreias secretoras, de origem diabéti ca, e na criptosporidiose (de 0,1 a 0,6mg/dia, em 2 tomadas); -Octreoti de: é o análogo da somatostati na que esti mu-la a absorção dos eletrólitos e inibe a secreção intesti -nal e de peptí dios. É usado nas diarreias decorrentes dos tumores neuroendócrinos (VIPomas, carcinoide) e em alguns casos de diarreia relacionada a AIDS (3 do-ses diárias subcutâneas de 50 a 250μg); -Colesti ramina: é um quelante de ácidos biliares, úti l nas diarreias secundárias a ressecções intesti nais ou doenças no íleo (dose de 4g, em até 3 tomadas ao dia).

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GASTROCL ÍN ICA

Doenças infl amatórias intesti nais

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

antí genos infecciosos desencadeando uma resposta infl a-matória excessiva.

Outras pesquisas apontam a importância de fatores ge-néti cos; existe história familiar de outros casos de DII em 5 a 30% dos casos. A concordância em gêmeos monozigóti -cos para DC supera 60% e, para retocolite ulcerati va, 20%, enquanto, em gêmeos heterozigóti cos, a concordância é de, respecti vamente, 8 e 0%. O gene NOD 2 foi envolvido no fenóti po da DC. Há correlações com síndromes genéti -cas (Turner) e marcadores moleculares (HLA-DR1 para DC e HLA-DR2 para RCUI).

Diversos fatores ambientais parecem envolvidos nas DIIs. São acometi dos pacientes com nível socioeconômico elevado. O uso de contracepti vo oral foi relacionado a maior incidência dessas doenças, e, enquanto o tabagismo pare-ce apresentar proteção contra a retocolite ulcerati va para o desenvolvimento da DC, mostra-se fator de risco. O con-sumo de açúcar refi nado aumenta a incidência de tal doen-ça. A exposição a antí genos alimentares ou micro biológicos também foi relacionada às DIIs, e o consumo de AINH pode estar relacionado a surtos dessas mesmas doenças.

3. Doença de Crohn

A - Epidemiologia

Trata-se de uma doença que causa infl amação crônica granulomatosa não caseifi cante que pode ocorrer da boca ao ânus. O intesti no delgado é o principal síti o da doença, acometi do em 90% dos casos, principalmente o íleo ter-minal (75% das vezes). Metade dos pacientes possui en-volvimento ileocecal, e 30 a 40%, ileíte isolada. Um terço apresenta acometi mento perianal, muitas vezes associado à colite, que ocorre em 20% dos indivíduos. A incidência maior está entre a 2ª e a 4ª décadas de vida, em brancos e judeus. Não há preferência por sexo. Há clara associação ao tabagismo, ao contrário do que se observa na retocolite ulcerati va. Estudos recentes têm implicado a gastrenterite por Salmonella ou Campylobacter e uso de tetraciclinas como prováveis fatores de risco para DC.

Pontos essenciais -Doença de Crohn;

-Retocolite ulcerati va idiopáti ca.

1. IntroduçãoO termo Doença Infl amatória Intesti nal (DII) é usado

para designar 2 doenças crônicas e idiopáti cas do aparelho digesti vo, a Doença de Crohn (DC) e a retocolite ulcerati va idiopáti ca (RCUI). A diferenciação entre elas é de suma im-portância, tendo em vista diferenças existentes na evolução e no tratamento.

A incidência da DC parece ter aumentado nas últi mas décadas (de 5 a 15 indivíduos afetados para cada 100.000 habitantes nos EUA), enquanto a incidência da retocolite ulcerati va permanece constante. O tratamento dos porta-dores de DII representa um gasto que ultrapassa 1 bilhão de dólares por ano nos EUA, já que as DIIs têm repercussões fí sicas e psicológicas, que reti ram indivíduos jovens do mer-cado de trabalho.

De 10 a 15% dos pacientes com colite ulcerati va têm um parente com DII, sobretudo a retocolite ulcerati va e, menos comumente, a DC. E cerca de 15% dos pacientes com DC têm um parente com DII, principalmente a DC e, menos co-mumente, a RCUI. O início da IBD é o mais elevado entre os adolescentes, e o pico de incidência se situa entre as idades de 15 e 25 anos.

2. FisiopatologiaAs DIIs resultam de uma interação complexa entre fato-

res genéti cos, mecanismos imunes e infl uências ambientais, sendo doenças multi fatoriais. Não há indícios que apontam um fator específi co causador de DII.

Evidências apontam para o aumento do número e da produção de citocinas de linfócitos T na lâmina própria do intesti no de indivíduos afetados de causa não conhecida, suspeitando-se de um controle imunológico alterado, ou de

CAPÍTULO

66

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DO E NÇA S I N F L AMATÓR I A S I N T E S T I N A I S

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B - Patologia

Ocorre infl amação transmural acometendo todas as ca-madas da parede intesti nal, envolvendo o mesentério ad-jacente e linfonodos. O padrão descontí nuo ou salteado é característi co, com áreas doentes entremeadas por regiões preservadas.

Macroscopicamente, na inspeção externa das alças, en-contram-se alça e meso espessados, gordura mesentérica com projeções digiti formes e aderências. As estenoses tam-bém são comuns. Podem ser vistos abscessos e fí stulas en-tre as vísceras ou com a pele. Na inspeção da mucosa, são identi fi cadas úlceras aft oides, úlceras lineares profundas ou fi ssuras e aspecto “em paralelepípedo” (cobblestone), alte-rações de caráter progressivo.

No estudo microscópico, pode ser visto o comprome-ti mento transmural, porém o achado mais específi co é a presença de granuloma não caseoso, que pode ser visto em 60% das peças cirúrgicas e em apenas 20% das biópsias. Sua baixa sensibilidade faz que raras vezes haja confi rmação histológica do diagnósti co de DC.

C - Diagnósti co

O quadro clínico depende da localização e da fase da doença, mas se caracteriza por períodos de exacerbação al-ternados com períodos de remissão. As manifestações clíni-cas podem ser divididas em infl amatórias, fi broestenóti cas e perfurati vas.

As manifestações infl amatórias sistêmicas são perda de peso, astenia e febre baixa. Há dor abdominal, principal-mente na fossa ilíaca direita e associada à doença ileocecal. Podem ser encontradas má absorção e diarreia. Quando presente, a diarreia geralmente não é sanguinolenta, está associada à doença ileal e pode ser decorrente de infl ama-ção ou de fí stulas entéricas.

O quadro de lesões fi broestenóti cas pode apresentar-se no contexto de abdome agudo obstruti vo ou suboclusão in-testi nal. São comuns a distensão abdominal e os vômitos. A dor abdominal nesses pacientes é em cólicas e sem a defesa local vista nos quadros predominantemente infl amatórios.

Os sintomas perfurati vos raramente se apresentam como perfuração livre, mas como fí stulas ou abscessos. Os indivíduos podem ter febre alta e diarreia de início agudo. Quando ocorrem fí stulas externas, a identi fi cação do traje-to fi stuloso é evidente.

As manifestações perianais ou de retocolite, como perda de sangue nas fezes e lesões perianais com fi ssuras, fí stulas e plicomas aberrantes, podem estar presentes (Figura 1). Algumas vezes, pode haver fí stulas com o aparelho urinário ou com o trato genital, levando a sintomas em outros ór-gãos e sistemas. Pacientes com DC fi stulizante (penetrante) são considerados de maior gravidade, independentemen-te da ati vidade infl amatória luminal, e requerem avaliação e abordagem diferenciadas. Em crianças, o aparecimen-to da DC geralmente é insidioso. Perda de peso acontece

em até 87% antes do diagnósti co e 30% de crianças com insufi ciência de crescimento antes do início dos sintomas intesti nais.

Figura 1 - Aspecto perineal de paciente com DC perianal

A DC pode cursar com manifestações extraintesti nais oft almológicas, como irite e episclerite. Também podem estar presentes acometi mentos de pele (eritema nodoso e pioderma granuloso), arti culações (artrite de grandes arti -culações, manifestação extraintesti nal mais comum da DC), via biliar (colelití ase colangite esclerosante primária), renal (amiloidose secundária) e vascular (trombose venosa e ar-terial). Outras complicações intesti nais estão indiretamente relacionadas com a doença do intesti no delgado. Os ácidos biliares são normalmente absorvidos pelos receptores es-pecífi cos no íleo distal, circulam no fí gado e são excretados na 2ª porção do duodeno (um processo chamado circulação êntero-hepáti ca). Má absorção de sais biliares ocorre quan-do 50 a 60cm do íleo terminal são doentes ou ressecados. Se o acometi mento é mais grave, pode haver uma síndrome de má absorção com esteatorreia e complicações associa-das, como defi ciências de nutrientes.

O diagnósti co de DC baseia-se na avaliação conjunta de aspectos clínicos, endoscópicos, radiológicos e anato-mopatológicos. A solicitação de exames complementares deve ser guiada pelo quadro clínico, mas, uma vez fi rmado o diagnósti co de DC, todo o tubo intesti nal deve ser estu-dado.

O estudo radiológico inicia-se com radiografi a simples de abdome, que é úti l nos quadros perfurati vos e fi broes-tenóti cos, podendo mostrar dilatação de alças de delgado com níveis hidroaéreos ou pneumoperitônio. O estudo con-trastado do trânsito intesti nal detecta áreas de estenose, fí stulas, aspecto calcetado de mucosa e lesões salteadas,

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sendo fundamental na avaliação do intesti no delgado. O enema opaco é úti l na colite de Crohn. A TC e outros mé-todos não radiológicos de imagem seccional, como a resso-nância nuclear magnéti ca e, em menor grau, o ultrassom, podem ser úteis na identi fi cação de abscessos intracavitá-rios e espessamento de alça.

Na avaliação endoscópica, a endoscopia digesti va alta detecta lesões semelhantes às notadas no intesti no delga-

do e cólon, com biópsias que podem revelar granulomas

não caseosos ao exame anatomopatológico. Na retoscopia,

em geral o reto é poupado, mas biópsias podem revelar in-

fl amação e granuloma. A colonoscopia é fundamental para

caracterizar a colite de Crohn, determinar sua extensão e

diferenciar da retocolite ulcerati va, sendo solicitada roti nei-

ramente (Figura 2).

Figura 2 - Aspecto colonoscópico da DC: (A) úlceras aft oides; (B) distribuição segmentar; (C) acometi mento ileal; (D) ulceração >1cm; (E) aspecto calcetado (cobblestone) e (F) pseudopólipos

Os exames laboratoriais são úteis na análise geral do paciente, na pesquisa de complicações e na avaliação da ati vidade infl amatória. Anemia e leucocitose são comuns, e a trombocitose está presente em casos graves. Pode ha-ver hipoalbuminemia, sinalizando desnutrição. Quando há ati vidade infl amatória, há elevação de VHS e dos níveis de proteína C reati va. A coprologia pode mostrar esteatorreia, aumento dos leucócitos fecais e ausência de patógenos específi cos. O anti corpo anti -Saccharomyces cerevisiae (ASCA) é positi vo em cerca de 2/3 dos pacientes com DC e cerca de 1/3 dos pacientes com RCUI. O perfi l de anti corpo, apesar da baixa sensibilidade, possui uma especifi cidade razoável para auxílio no diagnósti co; o tí pico de DC é en-contrar p-ANCA e ASCA+, e o contrário na RCUI. Má absor-ção de vitamina B12 ou folato é uma causa adicional para a anemia em pacientes com DC.

O principal diagnósti co diferencial é com a retocolite ul-cerati va. Pode ser difí cil a diferenciação entre RCUI e DC co-

lônica, mas o comprometi mento difuso e contí nuo da mu-cosa, a parti r do reto, sem áreas de mucosa normal (Figura 2), sugere mais a 1ª, enquanto áreas doentes entremeadas com áreas de mucosa normal sugerem DC. Contudo, devem ser afastadas inúmeras outras possibilidades, como colite isquêmica, enterites infecciosas (tuberculose intesti nal), colites infecciosas (especial atenção às colites por citome-galovírus e herpes-vírus em pacientes HIV positi vo e imu-nocomprometi dos), colite isquêmica, síndrome carcinoide, apendicite, amiloidose, sarcoidose, esquistossomose (for-ma pseudotumoral) e ameboma (região cecal).

D - Tratamento clínico

Consiste em medidas de suporte e tratamento medi-camentoso. Dentre as primeiras, devem-se propor repou-so no leito, suporte nutricional com terapia enteral e/ou parenteral e suplementação vitamínica, além de suporte

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emocional. A Tabela 1 mostra os principais medicamentos uti lizados no tratamento da DC.

Tabela 1 - Tratamento medicamentoso na DC

Corti coides

- São especialmente benéfi cos na doença de delgado;

- Dose inicial de prednisona: 40 a 60mg/dia com redução gradual (5mg/semana);

- Efeitos colaterais graves de uso prolongado (HAS, DM, osteopo-rose, síndrome de Cushing);

- Não é ideal para manutenção, e o uso em surtos agudos pode ser intravenoso;

- Há pacientes corti codependentes;

- A budesonida (9mg/dia VO) diminui efeitos colaterais, mas é muito cara.

Sulfassalazina

- É benéfi ca em colites de Crohn;

- Dose inicial: de 3 a 5g/dia;

- Efeitos colaterais diminuem com uso de 5-ASA na forma nati va (mesalazina);

- É necessária a reposição de folato;

- Outras formas de 5-ASA têm preparação com liberação da dro-ga no intesti no delgado, portanto podem ser usadas como dro-gas de manutenção.

Metronidazol

- Dose inicial: 800mg/dia VO;

- Não é recomendado o uso por mais de 4 meses;

- É parti cularmente úti l na doença perianal;

- Tem resultados potencializados com a ação de ciprofl oxacino e pode ser usado na falha do 5-ASA para postergar corti coides.

Ciprofl oxacino

- Dose usual: 500mg/2x/dia VO;

- É úti l na doença perianal ou na ausência de resposta ao 5-ASA;

- Tempo de uso mínimo: de 6 semanas a 1 ano.

Imunossupressores

- Azati oprina: (derivado da 6-mercaptopurina) por, pelo menos, 4 meses – pode gerar toxicidade hematológica. Hemograma e provas de função hepáti ca a cada 45 dias;

- Ciclosporina: alternati va à azati oprina.

Infl iximabe e adalimumabe ou (inibidores do TNF-alfa)

- É uti lizado na doença perianal grave;

- Tem custo elevado, e questi ona-se a relação com doenças lin-foproliferati vas;

- Eleva o risco de infecção por tuberculose.

E - Tratamento cirúrgico

A cirurgia na DC é reservada para o tratamento das com-plicações, já que ela não é curati va. O princípio é a realiza-ção da menor intervenção possível para alívio de sintomas e resolução das complicações. As incisões devem ser sempre medianas, pois deve ser preservada a parede abdominal, já que as reoperações são frequentes. As ressecções intesti -

nais devem ser mínimas, para evitar sequelas como a sín-drome do intesti no curto.

São indicações de cirurgias eleti vas: intratabilidade clí-nica, fí stulas, obstruções intesti nais (não extensas), doen-ça perianal extensa, retardo de crescimento, manifestação extraintesti nal (pioderma gangre noso) e difí cil controle dos efeitos colaterais medicamentosos.

A técnica cirúrgica depende da extensão da doença ou da complicação. Em enterites exclusivas, preconizam-se as ressecções econômicas ou enteroplasti as (Figura 3). Já nas colites exclusivas, devem ser realizadas ressecções de seg-mentos ou colectomia total com anastomose ileorretal.

Figura 3 - Aspectos externo e interno de peça cirúrgica de enterec-tomia segmentar por enterite de Crohn

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Deve-se uti lizar proctocolectomia total com ileostomia defi niti va na vigência de lesões perianais extensas. A proc-tocolectomia total com bolsa ileal e anastomose ileoanal é discutí vel, em virtude da probabilidade de perda da bolsa ileal em cerca de 20% dos casos.

Nos abscessos, a drenagem simples, muitas vezes, é resoluti va. Nas fí stulas, devem-se evitar fi stulotomias que envolvam o esfí ncter anal. Fissuras e úlceras, inicialmente, são candidatas a tratamento conservador, e os plicomas só devem ser ressecados em caso de muita dor.

Indica-se cirurgia de urgência em hemorragias maciças, megacólon tóxico (colectomia total com ileosto mia termi-nal), perfuração com peritonite, abdome agudo obstruti vo e suspeita de apendicite.

Quanto ao prognósti co, 20% dos pacientes têm apenas 1 ou 2 surtos da doença. Apesar de a mortalidade ser redu-zida em decorrência da doença, metade dos doentes apre-senta complicações decorrentes do tratamento cirúrgico.

4. Retocolite ulcerati va idiopáti ca ou ines-pecífi ca

A - Epidemiologia

A RCUI consiste na infl amação crônica da mucosa colô-nica de eti ologia desconhecida. As manifestações clínicas geralmente ocorrem em surtos com intervalos imprevisí-veis. A prevalência se manteve estável nos últi mos anos, com incidência de 2 a 6/100.000/ano nos EUA em 2 picos de idade, dos 15 aos 35 anos e dos 60 aos 70 anos. É mais frequente em judeus e mulheres. Recentemente, demons-trou-se que a alta ingestão de gorduras totais, ácidos graxos poliinsaturados, ácidos graxos ômega-6, fi bras insolúveis (frutos secos, farelo, sementes e milho) e carne está asso-ciada a maior risco de colite ulcerati va, e a ingestão de fru-tas e vegetais de alto teor de fi bras solúveis (laranja, maçã e cenoura) está associada a diminuição do risco de colite ulcerosa.

B - Patologia

Ocorre um processo infl amatório limitado à mucosa, ra-ramente acometendo toda a parede colônica. O processo infl amatório crônico determina atrofi a da mucosa e espes-samento da musculatura da mucosa. A lesão característi ca é o microabscesso de cripta, e a confl uência dos abscessos acaba formando úlceras, as quais delimitam áreas de muco-sa normal, denominadas pseudopólipos.

O acometi mento da mucosa colônica inicia-se a parti r do reto e conti nua em extensão variável, porém restrito ao cólon. Raramente, o íleo terminal é acometi do pela reto-colite (lesão do ti po back wash). Em, aproximadamente, 20% dos casos de DII restrita aos cólons, não se consegue disti nguir RCUI e DC, portanto o diagnósti co é de colite in-determinada.

A RCUI pode ser classifi cada, de acordo com sua exten-são, em distal (30%: pode ser subdividida em procti te – até 15cm – e proctossigmoidite – até 30cm) do cólon esquerdo (30%) e pancolite (30%).

C - Diagnósti co

O quadro clínico depende da extensão da doença. Localizações mais distais manifestam-se com sangramento retal, perda de muco e pus, puxos, diarreia e dor abdominal sem grande alteração no exame fí sico. Na RCUI do cólon esquerdo e na pancolite, geralmente ocorre diarreia com sangue, e a presença de muco e pus é mais pronunciada. Pode haver febre, anorexia, perda de peso, taquicardia, hi-potensão.

A doença pode evoluir com megacólon tóxico, sendo essa uma forma fulminante da doença. Tal forma manifes-ta-se com febre, distensão abdominal, taquicardia e sinais de peritonite. O processo infl amatório muito intenso acaba adelgaçando a parede colônica, que se dilata (principalmen-te o cólon transverso) e pode perfurar. A detecção de dila-tação do transverso maior que 6cm na radiografi a simples de abdome, na presença de quadro clínico característi co, estabelece o diagnósti co dessa forma da doença.

Os exames laboratoriais podem revelar anemia, leuco-citose, elevação das provas de ati vidade infl amatória (VHS, proteína C reati va) e presença de leucócitos nas fezes. Podem ocorrer hipoalbuminemia, distúrbios de eletrólitos e desequilíbrio ácido-base.

A radiografi a simples de abdome é úti l para o diagnós-ti co de forma fulminante. No enema opaco, é possível ob-servar perda de haustrações, aspecto granuloso da mucosa, aumento do espaço pré-sacral, cólon tubulizado, além de estenoses (suspeita de neoplasia).

A retossigmoidoscopia e a colonoscopia são fundamen-tais, pela capacidade de detecção de mucosa friável com erosões, ulcerações e pseudopólipos (Figura 4). Também avaliam a extensão da doença e permitem o diagnósti co histológico. Não devem ser realizadas na suspeita de me-gacólon tóxico.

Os principais diagnósti cos diferenciais são DC, colite is-quêmica, colite colagenosa, colite infecciosa e outras doen-ças como diverti culite, colite eosinofí lica e amiloidose.

O risco do aparecimento de adenocarcinoma em porta-dores de RCUI está diretamente relacionado à extensão da colite (pancolite) e ao seu tempo de colonoscopia a cada 1 ou 2 anos com biópsias seriadas. O câncer associado à RCUI tem comportamento geralmente mais agressivo e, com fre-quência, se desenvolve a parti r do epitélio colônico com displasia grave. Assim, o achado colonoscópico de displasia grave e/ou displasia associada a massas tumorais é indicati -vo de tratamento cirúrgico.

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Figura 4 - Aspecto colonoscópico da RCUI: (A) distribuição universal; (B) envolvimento simétrico da mucosa; (C) friabilidade da mucosa; (D) granulação; (E) ulceração <1cm e (F) pseudopólipos

A sulfassalazina, na dose de 2 a 4g/dia VO, é indicada às formas leves e moderadas e úti l para evitar recaídas. Deve ser administrada com ácido fólico para evitar anemia macrocíti -ca provocada pela droga. O 5-ASA é indicado aos indivíduos com intolerância à sulfassalazina com a vantagem de evitar efeitos adversos, como cefaleia, tontura, reações alérgicas e inferti lidade masculina. Neste grupo, têm-se a mesalazina, a olsalazina e a balsalazida, uma pró-droga da mesalazina re-centemente aprovada para uti lização na retocolite ulcerati va.

Entre os imunossupressores, a azati oprina leva de 3 a 4 meses para agir e é recomendada a corti codependentes nos quais a colectomia é adiada por algum moti vo. A dose é de 2 a 2,5mg/kg/dia VO. A ciclosporina deve ser uti lizada em casos graves, resistentes aos corti coides na dose de 2 a 4mg/kg/dia IV. Apresentam efeitos colaterais frequentes (50%), com destaque para nefro e hepatotoxicidade, hiper-tensão arterial, infecções. Logo, o nível sérico de drogas deve ser monito rizado e uti lizado em centros especializa-dos, como conduta de exceção. Nos últi mos anos, o infl ixi-mabe melhorou remissão clínica em 8 semanas em pacien-tes com colite ulcerati va refratária.

E - Tratamento cirúrgico

Cerca de 20 a 30% dos pacientes com RCUI necessitam de tratamento cirúrgico. São indicações eleti vas de cirurgia

D - Tratamento clínico

Devem ser empregadas as mesmas medidas de suporte da DC, com reposição hidroeletrolíti ca, correção de anemia e suporte nutricional (dieta hiperproteica e hipercalórica). Nutrição enteral ou parenteral pode ser necessária em ca-sos graves e no preparo pré-operatório.

Anti bióti cos devem ser uti lizados nos casos graves e ful-minantes (aminoglicosídeo + metronidazol + ampicilina ou ciprofl oxacino + metronidazol). Nas manifestações peria-nais, a indicação é semelhante à da DC.

Corti coides são indicados na fase aguda, e a dose de-pende da gravidade. Recomendam-se, por VO, 40 a 60mg/dia de prednisona para remissão (reti rada gradual), ou IV, hidrocorti sona, 100mg, 3x/dia, em casos muito graves (substi tuição por prednisona após 7 a 10 dias). Após remis-são, a manutenção de prednisona VO, de 5 a 10mg/dia, não previne futuras exacerbações. Pacientes que se mostram corti codependentes são candidatos a tratamento cirúrgico.

Na doença restrita ao reto e sigmoide, pode ser uti lizado enema de corti coides (50mL de água + 100mg de hidrocor-ti sona, 2x/dia) ou enema de budesonida (melhor devido à metabolização hepáti ca mais rápida). Medicações de uso tópico, como supositório ou enema, têm resultados seme-lhantes aos dos enemas de corti coide nas reti tes e sigmoi-dites.

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instabilidade clínica, mais frequentemente casos de mani-festações extracolônicas, retardo de crescimento e suspeita de câncer. O princípio básico, ao contrário da DC, é a ressec-ção do intesti no grosso a parti r do reto que é o local em que se inicia o processo, podendo-se optar por preservação do esfí ncter ileocecal.

Dentre as opções cirúrgicas, a proctocolectomia total com anastomose ileoanal e reservatório ileal (PTAIA) é in-dicada às pancolites com aparelho esfi ncteriano íntegro, conti nência anal preservada e ausência de câncer no reto. A Proctocolectomia Total com Ileostomia defi niti va (PTI) é a opção nas pancolites com inconti nência anal, difi culdade de locomoção (idade avançada) e suspeita ou câncer do reto confi rmado. Por fi m, a colectomia total com anastomose ileorretal (CT) fi ca reservada aos casos em que o paciente se recusa a aceitar ileostomia e pode fazer seguimento am-bulatorial rigoroso.

A opção cirúrgica ideal não é bem determinada. A PTAIA tem a vantagem de reti rar o reto e evitar a ileostomia defi -niti va, apesar de, roti neiramente, se realizar ileostomia em alça de proteção para o reservatório ileal, a qual é fechada após 8 a 12 semanas. Como desvantagem, o paciente evo-lui com diarreia importante no pós-operatório, e existem complicações relacionadas à anastomose ileoanal (fí stulas, disfunção do reservatório, infl amação do reservatório ou pouchiti s) que podem abrigar a reti rada do reservatório ile-al e ileostomia defi niti va em até 17% dos casos.

A proctocolectomia total com ileostomia defi niti va re-ti ra o reto, eliminando totalmente a doença, porém tem a desvantagem da ileostomia defi niti va. Já a CT mantém o reto obrigando o tratamento clínico constante e a probabi-lidade de desenvolvimento de câncer.

Megacólon tóxico e hemorragia maciça são indicações de cirurgia de urgência. A colectomia total com sepulta-mento do coto retal e ileostomia terminal é um procedi-mento seguro e permite ao paciente sair do surto agudo, podendo ser reoperado eleti va mente para reconstrução do trânsito intesti nal.

F - Rastreamento para câncer de cólon

-Longa duração da doença;

-Presença de colangite esclerosante primária associada;

-História familiar de câncer colorretal;

-Doença extensa;

-História prévia de displasia colônica.

O rastreamento do câncer colorretal por colonoscopia na RCU (pancolite) está indicado após 8 a 10 anos de evo-lução e, na colite esquerda, após 12 a 15 anos de doença. O rastreamento deverá ser feito por colonoscopia a cada 3 anos na 2ª década, 2 anos na 3ª e, anualmente, na 4ª déca-da da doença, com realização de biópsias dos 4 quadrantes de mucosa não infl amada a cada 10cm, no cólon inteiro, associadas a biópsias de áreas suspeitas. Pacientes com co-langite esclerosante primária têm alto risco de desenvolver

câncer colorretal, portanto devem submeter-se à colonos-copia com biópsias anualmente, logo após o diagnósti co.

G - Prognósti co

Cerca de 10 a 15% têm curso crônico da doença com ati vidade contí nua, 80% têm crises intercaladas e, 5%, sur-tos agudos fulminantes. Observa-se que 70% dos pacientes com doença distal não evoluem para formas mais extensas da doença.

5. Manifestações extraintesti nais Podem estar presentes em 10 a 20% dos casos (Tabela 2).

Tabela 2 - Manifestações extraintesti nais das doenças infl amató-rias intesti nais

Reumatológicas

- Artrite/artralgias: grandes arti culações, geralmente monoarti culares;

- Espondilite anquilosante: relacionada ao HLA-B27.

Dermatológicas

- Eritema nodoso: mais frequente;- Aft as orais: mais na DC;- Pioderma gangrenoso: indicação de trata-

mento cirúrgico para a doença intesti nal.

Oft almológicas- Episclerite, uveíte;- Uveíte: indicação de tratamento cirúrgico

para a doença intesti nal.

Pulmonares- Doença pulmonar, variando em gravidade de

diminuição assintomáti ca na capacidade de difusão para bronquiectasias incapacitantes.

Vias biliares e fí gado

- Pericolangite;- Infi ltração gordurosa;- Colangite esclerosante primária: mais asso-

ciada à RCUI.

Outras

- Amiloidose;- Nefrolití ase;- Fenômenos tromboembólicos;- Colelití ase (na DC);- Anemia hemolíti ca autoimune.

-Diferenças entre a doença de Crohn e a retocolite ul-cerati va

Talvez o aspecto de maior importância no estudo das doenças infl amatórias intesti nais seja a correta diferencia-ção entre a DC e a RCUI. A Tabela 3 resume as principais diferenças.

Tabela 3 - Principais diferenças entre a DC e a retocolite ulcerati va

Achados macroscópicos RCUI DC

Comprometi mento do reto Comum Raro

Lesões salteadas Não Sim

Úlceras aft osas Não Sim

Aspecto pavimentoso Não Sim

Pseudopólipos Sim Não

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Achados macroscópicos RCUI DC

Atrofi a mucosa Sim Não

Doença perianal Raro Comum

Lesões contí nuas Sim Não

Achados microscópicos RCUI DC

Lesões transmurais Não Sim

Granulosa NãoSim (20% da biópsia

endoscópica)

Abscesso de cripta Sim Raro

Metaplasia pilórica ileal Não Sim

Metaplasia de células de Paneth

Sim Raro

Apresentação clínica RCUI DC

Fístulas - +

Abscessos - +

Estenoses - +

Reti te + -

Ileíte - +

Padrão Contí nuo Salteado

Camadas Mucosa Transmural

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Afecções benignas dos cólons

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Figura 1 - Secção transversa de alça colônica ilustrando os síti os de

formação de divertí culos

Alterações na composição de fi bras de colágeno e elasti -na que acontecem com o passar dos anos contribuem para a formação dos divertí culos. Histologicamente encontra--se espessamento muscular, e não hipertrofi a celular, na camada muscular. Como não são consti tuídos de todas as camadas da parede intesti nal, os divertí culos colônicos são divertí culos “falsos”, contendo apenas mucosa, submucosa e serosa (Figura 2).

Até 95% das diverti culoses envolvem o cólon sigmoide, por ser um local com alto nível de ati vidade motora colô-nica, sujeito a elevadas pressões intraluminais. Também, pela lei de Laplace, o sigmoide é o segmento colônico mais propenso à formação de divertí culos devido ao seu menor calibre. É importante ressaltar que não existem divertí culos no reto.

Pontos essenciais

-Doença diverti cular dos cólons;

-Diverti culite aguda;

-Megacólon chagásico.

1. Doença diverti cular dos cólons

A - Conceitos

A presença de formações diverti culares no cólon sem

relação com sintomas caracteriza a diverti culose. Na pre-

sença de sinais e sintomas decorrentes ou associados a es-

ses divertí culos, há a Doença Diverti cular dos Cólons (DDC).

Diverti culite é o processo infl amatório/infeccioso de um

divertí culo.

B - Epidemiologia

O aparecimento dos divertí culos colônicos parece ser o

resultado de um processo degenerati vo dos cólons. Um ter-

ço da população apresenta divertí culos a parti r dos 50 anos,

1/2 aos 60 anos e 2/3 a parti r dos 80 anos. A incidência de

doença diverti cular independe do sexo.

C - Fisiopatologia

Os divertí culos formam-se nas áreas de penetração dos

vasa recta na parede colônica, que são as regiões de maior

fragilidade (Figura 1). Contrações musculares segmentares

e não propul sivas em áreas diferentes podem formar zonas

de alta pressão intraluminal e, consequentemente, pseudo-

divertí culos de pulsão nas áreas de maior fraqueza da pa-

rede colônica, associada à hipertrofi a da musculatura local.

CAPÍTULO

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A F ECÇÕE S B E N I G N A S DOS CÓ LONS

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Figura 2 - Diferença entre o divertí culo verdadeiro e o falso

D - Eti ologia

Diversos fatores parecem estar relacionados com o sur-gimento de divertí culos colônicos. São sugeridos fatores ambientais como as mudanças nos hábitos alimentares da sociedade ocidental, ou seja, dieta pobre em fi bras. A obesi-dade e a maior longevidade da população também têm sido envolvidas na elevação da incidência dessa afecção. Fatores genéti cos, que levem à alteração na composição dos teci-dos, são outras possibilidades.

E - Diagnósti co

A diverti culose geralmente é assintomáti ca e represen-ta diagnósti co incidental de enema opaco ou colonoscopia (Figura 3) realizados por alguma outra razão. É importante lembrar que o enema e a colonoscopia devem ser uti lizados para o diagnósti co de diverti culose e não na suspeita de di-verti culite, devido ao risco de perfuração ou outras com-plicações advindas desses procedimentos na fase aguda da doença.

Figura 3 - (A) Colonoscopia mostrando ósti os ventriculares e (B) enema opaco, caracterizando a presença de divertí culos em todo o cólon

A DDC caracteriza-se por dor principalmente na Fossa Ilíaca Esquerda (FIE), ti po cólica, de caráter intermitente, sem febre ou outras alterações, exceto alteração no ritmo de evacuações. Nesses pacientes, o quadro clínico decorre da dismoti lidade que leva à formação dos divertí culos e não à presença dos divertí culos. Hemorragia digesti va baixa, perfuração, obstrução e diverti culite são as complicações mais comuns.

A Síndrome do Intesti no Irritável (SII) é o principal diag-nósti co diferencial da DDC, pois é considerada uma dis-moti lidade colônica que pode ser colocada num espectro juntamente com a diverti culose. Caracteriza-se a SII com critérios clínicos persistentes por mais de 6 meses, que são dor abdominal que melhora após defecação e eliminação de fl atos, associada ou não à alteração na consistência das fezes, e de 2 a 25% das evacuações difí ceis são associados a 3 ou mais dos seguintes sintomas: alteração na frequên-cia das evacuações, alteração na forma das fezes, altera-ções na passagem das fezes (tenesmo ou urgência evacua-tória), perda de muco nas fezes e distensão abdominal. O tratamento da SII baseia-se principalmente na regulação da dieta do paciente, rica em fi bras vegetais, na redução de lipídios e carboidratos, e orientando ingestão abundante de líquidos e, se necessário, medidas farmacológicas.

Outros diagnósti cos diferenciais são casos de colite, cân-cer colorretal e doenças ginecológicas como endometriose, Molésti a Infl amatória Pélvica Aguda (MIPA) e afecções ova-rianas.

F - Tratamento

Não há meios de regredir a doença. São sugeridas fi bras na dieta para a correção da dismoti lidade. Anti espasmódicos e outras drogas que alteram a moti lidade colônica não são efeti vos. Evitar sementes não tem base cientí fi ca para pre-venir diverti culite; trata-se apenas de uma conduta anti ga, de origem popular.

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2. Diverti culite

A - Eti ologia

A diverti culite é causada pela perfuração de um divertí -culo, resultado da ação erosiva de um fecalito ou do aumen-to excessivo da pressão intraluminal, levando ao quadro de peritonite. Pode ocorrer em 15 a 20% das diverti culoses.

B - Classifi cação de Hinchey

A classifi cação proposta por Hinchey em 1977 (Figura 4) considera a localização dos abscessos e a extensão do pro-cesso infeccioso. Por essa classifi cação, também é possível determinar a conduta perante cada caso.

Figura 4 - Classifi cação de Hinchey

C - Diagnósti co

O quadro clínico da diverti culite aguda não complicada já foi descrito como apendicite do lado esquerdo. O paciente apresenta dor na FIE e febre persistentes. Ao exame fí sico, há defesa e sinais de peritonite como descompressão brusca no quadrante inferior esquerdo. Nos casos em que há abscesso de maiores dimensões, pode ser palpada uma massa ou plas-trão local (processo infl amatório bloqueado por sobreposi-ção de alças intesti nais, mesentério e epíploon).

Os sintomas urinários são comuns em razão da proximi-dade da bexiga com o sigmoide. Podem ocorrer fí stulas, e a mais frequente é a colovesical. Nesses casos, observam-se pneumatúria e infecção urinária, que não responde ao tra-tamento clínico. Queda do estado geral, náuseas, vômitos e distensão abdominal denotam casos mais graves com peri-tonite generalizada.

Entre os exames complementares, o hemograma pode mostrar leucocitose e desvio à esquerda. Leucocitúria e bacteriúria podem ocorrer no exame de urina I.

As radiografi as simples de abdome podem ser normais na diverti culite leve. Em casos com evolução mais arrasta-da, podem-se observar imagens de níveis hidroaéreos e, até mesmo, o contorno de um abscesso pélvico. Nas peritoni-tes generalizadas, pode-se observar pneumoperitônio, em

caso de perfuração. A colonoscopia e o enema opaco são contraindicados na fase aguda, pelo risco de desbloqueio de uma possível perfuração e contaminação da cavidade.

O exame considerado padrão-ouro para avaliar a doen-ça é a tomografi a computadorizada de abdome e pelve, que confi rma a presença do processo infeccioso e afasta outras hipóteses diagnósti cas. O ultrassom é uma alternati va ape-nas quando a tomografi a não é disponível.

D - Tratamento

O tratamento deve ser orientado conforme a apresen-tação da doença pela classifi cação de Hinchey. Nos casos Hinchey I, preconizam-se internação hospitalar para jejum, hidratação, anti espasmódicos, anti bióti cos e observação por 48 a 72h. Alguns casos selecionados podem ser tratados em regime ambulatorial, desde que seja possível o acompa-nhamento rigoroso. Na anti bioti coterapia, deve-se preconi-zar a cobertura de Gram negati vos e anaeróbios, sendo o esquema ciprofl oxacino ou ceft riaxona e metronidazol mais comumente uti lizado. Ciprofl oxacina (Cipro) 500 a 750mg a cada 12 horas mais metronidazol (Flagyl) 500mg a cada 6 a 8 horas; trimetoprim-sulfametoxazol 160mg/800mg a cada 12 horas mais metronidazol 500mg a cada 6 a 8 ho-ras; amoxicilina-ácido clavulânico 875mg a cada 12 horas. Esquemas sugeridos incluem anti bióti cos IV ciprofl oxacina (Cipro) 400mg a cada 12 horas mais metronidazol (Flagyl) 500mg a cada 6 a 8 horas ; ceft riaxona 1 a 2g cada 24 horas mais metronidazol 500mg a cada 6 a 8 horas; ampicilina--sulbactam (Unasyn) 3g cada 6 horas. Regime de anti bióti -cos orais e intravenosos são equivalentes. A dieta durante a fase aguda deve ser pobre em fi bras para repouso intesti nal durante o período críti co. Após a melhora do quadro agu-do, deve ser insti tuída uma dieta rica em fi bras e laxati vos formadores de bolo fecal. Cerca de 10 a 20% dos pacientes tratados conservadoramente com sucesso na 1ª manifesta-ção apresentam outra crise.

Nos casos ti po II, a internação é obrigatória. A falha no tratamento clínico de um abscesso pequeno ou a presença de uma grande coleção pélvica demandam drenagem, que pode ser feita preferencialmente por meio de radiologia in-tervencionista, guiada por USG ou TC. Quando tais métodos não estão disponíveis, é necessária abordagem cirúrgica.

Deve-se ressaltar que casos tratados clinicamente ou só com drenagem do abscesso devem ser operados de forma eleti va. Outros critérios de indicação cirúrgica são:

1 - Duas ou mais crises bem documentadas em pacien-tes com mais de 50 anos.

2 - Um quadro agudo em paciente com menos de 50 anos.

3 - Presença de complicações (fí stulas, estenose seg-mentar, perfuração e hemorragia).

4 - Pacientes imunodeprimidos.5 - Impossibilidade de excluir câncer.

Casos Hinchey III e IV, com a presença de peritonite puru-lenta ou fecal, demandam tratamento cirúrgico de urgência. A

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conduta depende do segmento colônico acometi do e do grau de peritonite. Como o sigmoide é a localização mais comum, deve-se realizar a retossigmoidectomia. Casos com pouca con-taminação da cavidade ou pacientes com boa reserva fi sioló-gica podem ser submeti dos à anastomose primária. A videola-paroscopia pode ser uti lizada em casos Hinchey III.

Na presença de grande contaminação, ou em doentes graves, preconiza-se a cirurgia de Hartmann, que consiste na retossigmoidectomia com sepultamento do coto retal ao ní-vel do promontório e colostomia terminal do coto proximal. Aos casos Hinchey IV, contraindica-se a videolaparoscopia.

Tabela 1 - Tratamento da diverti culite aguda com base na classifi -cação de Hinchey

Hinchey I

Internação hospitalar para jejum, hidratação, an-ti espasmódicos, anti bióti cos (cobertura de Gram negati vos e anaeróbicos) e observação por 48 a 72 horas.

Hinchey II

A falha no tratamento clínico de um abscesso pequeno ou a presença de uma grande coleção pélvica demandam drenagem, que pode ser feita preferencialmente pelo meio de radiologia inter-vencionista ou com abordagem cirúrgica.

Hinchey IIIRessecção cirúrgica e, dependendo do caso, anas-tomose primária. Pode ser realizada ressecção videolaparoscópica.

Hinchey IV Cirurgia de Hartmann por laparotomia.

3. Hemorragia diverti cularA doença diverti cular permanece a causa mais comum de

sangramento gastrintesti nal baixo maciço, responsável por 30 a 50% dos casos. Esti ma-se que 15% de todos os pacientes com diverti culose apresentarão sangramento em algum mo-mento de suas vidas. A hemorragia geralmente é abrupta, in-dolor e de grande volume, sendo 33% maciças, exigindo he-motransfusão de emergência. Apesar disso, o sangramento para espontaneamente em 70 a 80% dos casos. Demonstrou-se que o uso de anti -infl amatórios não esteroidais aumenta o risco de sangramento por doença diverti cular, sendo que mais de 50% dos pacientes que se apresentam com divertí -culo sangrante estão fazendo uso de AINEs.

4. Megacólon chagásico

A - Introdução

A doença de Chagas está presente na América do Sul, principalmente no Brasil, na Argenti na e no Chile. Em nosso meio, o megacólon chagásico é endêmico em vários esta-dos, como Goiás, São Paulo, Minas Gerais e Bahia.

O agente eti ológico é o Trypanossoma cruzi, e o vetor, o barbeiro. O protozoário tem tropismo por células mus-culares lisas das vísceras ocas e pelo músculo cardíaco. As ações do protozoário associam-se à resposta infl amatória do hospedeiro que determinam o quadro clínico da doença.

Não há relação entre o megacólon e o desenvolvimento de câncer colorretal.

Durante décadas, acreditou-se que a doença de Chagas levava, exclusivamente, à degeneração dos plexos de Auerbach e Meissner, ocasionando dismoti lidade intes-ti nal, alteração da função do esfí ncter inferior do ânus e consequente retenção de fezes e dilatação colônica (teoria plexular). Atualmente, sabe-se que a doença acomete o sis-tema nervoso autônomo e causa alterações estruturais na musculatura, além das lesões plexulares, de forma difusa, porém mais acentuadas nas porções distais do cólon e no reto (teoria difusa).

B - Quadro clínico

Os pacientes apresentam consti pação intesti nal grave de longa data. Podem apresentar distensão abdominal e, eventualmente, fecaloma palpável na topografi a do sigmoi-de (sinal de Gersuny). O emagrecimento é comum. Ao to-que retal, pode-se notar a presença de um fecaloma.

Deve-se sempre lembrar a associação frequente a me-gaesôfago e cardiopati a chagásica e os sintomas decorren-tes do comprometi mento de outros órgãos pela doença de Chagas. A associação entre megaesôfago e megacólon deve levar à priorização do tratamento do megaesôfago, que é a via para nutrição do paciente. As alterações cardíacas mais frequentes ao eletrocardiograma no chagásico são bloqueio de ramo direito e bloqueio divisional anterossuperior.

O diagnósti co baseia-se no quadro clínico e na epide-miologia. A sorologia para doença de Chagas, teste de Machado-Guerreiro, é positi va em 80 a 90% dos casos. Na radiografi a simples de abdome, pode ser visto um fecalo-ma. O enema opaco é o exame que melhor caracteriza a doença (Figura 5). A colonoscopia não é necessária roti nei-ramente, somente na necessidade de algum diagnósti co diferencial específi co, ou para a distorção de um volvo de sigmoide sem sinais de sofrimento.

Figura 5 - Enema opaco mostrando megacólon com volvo

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C - Tratamento

Nos pacientes oligossintomáti cos, pode-se tentar o tra-tamento clínico com dieta e laxati vos. As lavagens retais programadas podem ser indicadas, principalmente aos pa-cientes sem condições clínicas ou nutricionais ao tratamen-to cirúrgico. Devido ao caráter difuso da doença, sabe-se que ela não é passível de cura defi niti va. Dessa forma, o tra-tamento cirúrgico só deve ser indicado na obsti pação grave intratável e nas complicações do megacólon, como o volvo, o fecaloma e a perfuração.

As opções de operação para o tratamento eleti vo do megacólon chagásico incluem a sigmoidectomia, que apre-senta elevados índices de recidiva dos sintomas (cerca de 30% recidivam), o abaixamento de cólon, com elevada mor-bidade associada e, mais recentemente, a retossigmoidec-tomia abdominal com anasto mose terminolateral do cólon com a parede posterior do reto ou operação de Habr-Gama. Este últi mo procedimento vem mostrando bons resultados em longo prazo e baixa morbidade associada.

D - Complicações

a) Volvo

Volvo é a complicação mais grave do megacólon cha-gásico, principalmente em caso de sofrimento vascular e perfuração, e representa a torção do sigmoide sobre o seu próprio eixo. O quadro clínico compreende a parada de eli-minação de fezes e gases, associada à distensão abdominal e hiperti mpanismo à percussão.

A evolução do volvo de sigmoide depende do tempo de instalação do quadro. Nas primeiras horas, o paciente evolui sem grande comprometi mento do estado geral, ape-sar da distensão abdominal. À medida que o tempo passa, pode ocorrer sofrimento vascular da alça torcida com con-sequente perfuração colônica, caracterizando um quadro de peritonite difusa.

O diagnósti co baseia-se na história clínica sugesti va e na radiografi a simples de abdome que mostra distensão colô-nica, com alça em “U” inverti do (sinal de Frimann-Dahl ou do “grão de café” – Figura 6). Nos casos de perfuração, pode ser visualizado o pneumoperitônio.

Figura 6 - Apresentação radiológica do volvo sigmoide e equiva-lente anatômico

O tratamento depende da presença ou não de sofri-mento vascular do sigmoide, que pode ser confi rmado cli-nicamente ou por meio de retoscopia. Caso ele não exis-ta, pode-se tentar a distorção do sigmoide por meio da introdução de sonda retal pela retoscopia ou colonoscopia (manobra de Bruusgaard). Quando não é possível o trata-mento endoscópico, deve-se realizar a distorção cirúrgica do sigmoide, reservando-se o tratamento cirúrgico defi ni-ti vo para um 2º momento, em caráter eleti vo. Na vigência de sofrimento vascular intesti nal, indica-se a operação de Hartmann.

b) Fecaloma

O termo refere-se à presença de fezes desidratadas e en-durecidas na luz de algum segmento colorretal, geralmente a ampola retal. Pode levar à impactação fecal e à obstrução intesti nal. O diagnósti co é simples, com história, epidemio-logia, toque retal e raio x simples de abdome (Figura 7).

Figura 7 - Radiografi a de abdome com grande fecaloma em ampo-la retal (“em miolo de pão”)

O tratamento do quadro agudo depende da sua loca-lização. Se tocável, deve ser feito o esvaziamento manual associado a enemas e lavagens. Em grandes fecalomas, é prudente levar o paciente ao centro cirúrgico e realizar o procedimento sob raquianestesia. O insucesso de resolu-ções do quadro com medidas conservadoras implica lapa-rotomia com ressecção do segmento colorretal acometi do.

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5. ResumoQuadro-resumo

- A perfuração de um divertí culo caracteriza a diverti culite. O tratamento pode ser exclusivamente clínico (Hinchey I), clínico com drenagem do abscesso (Hinchey II) ou cirúrgico (Hinchey III e IV);

- A eti ologia mais comum do megacólon é a doença de Chagas. Na presença concomitante de megaesôfago, o tratamento do esôfago deve ser a prioridade;

- O volvo é a principal complicação do megacólon e pode ser des-feito por colonoscopia, mas requer tratamento cirúrgico.

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Câncer colorretal

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

nósti co e decorre do silencioso desenvolvimento da lesão e do longo período em que ela permanece assintomáti ca.

A prevenção primária do CCR, por intermédio de orien-tação dietéti ca e comportamental, é de extrema impor-tância, e a prevenção secundária, por meio da remoção de lesões precoces ou pré-neoplásicas, melhora o prognósti co com impacto econômico positi vo.

2. Eti opatogeniaÉ a interação de infl uências genéti cas e ambientais, não

sendo possível defi nir o peso de ambos os fatores na gênese do CCR. Fatores genéti cos acabam por defi nir síndromes he-reditárias, como a Polipose Adenomatosa Familiar (PAF) e o HNPCC (Hereditary Non-Poliposis Colorectal Cancer, ou CCR hereditário não associado à polipose). O câncer esporádico se desenvolve durante longo período e é o produto de in-fl uências ambientais, eventualmente, levando a alterações genéti cas que culminam com o seu aparecimento. Foram reconhecidos como fatores de risco para o desenvolvimen-to de CCR a idade avançada, a história familiar de câncer, alguns hábitos higienodietéti cos, a presença de alguns ti pos de pólipos, as síndromes genéti cas relacionadas ao CCR e as Doenças Infl amatórias Intesti nais (DII) na forma de pancolite.

A - Fatores ambientais

Muitos fatores ambientais foram envolvidos no aumen-to da incidência de CCR. Dentre os hábitos sociais, podem ser referidos o tabagismo e o alcoolismo como associados a aumento da incidência de câncer de cólon. Destes, sem dúvida, os dietéti cos têm a maior importância e foram bas-tante estudados.

Dietas contendo alto teor de gordura predispõem ao CCR, especialmente em suas porções distais, como o sig-moide. A dieta rica em gordura aumenta a síntese de co-lesterol e ácidos biliares pelo fí gado. Essas substâncias são converti das pela fl ora bacteriana colônica em ácidos bilia-res secundários, metabólitos do colesterol e outros compo-nentes potencialmente tóxicos que danifi cam a mucosa co-lônica e aumentam a proliferação celular. Esse epitélio em proliferação tem maior susceti bilidade ao dano genéti co.

Pontos essenciais

-Fatores de risco: lesões pré-neoplásicas e síndromes de câncer familiar;

-Métodos diagnósti cos e rastreamento;

-Estadiamento;

-Modalidades terapêuti cas.

1. Considerações geraisO câncer colorretal (CCR), uma das maiores causas de

morte em países ocidentais, pode ser classifi cado como epi-telial ou não epitelial e secundário ou primário. Apesar de haver outros ti pos de tumores, como os linfomas, GISTs e carcinoides, 95% dos casos são adenocarcinomas, e serão o alvo de discussão deste capítulo. O número de casos novos de câncer de cólon e reto esti mado para o Brasil no ano de 2010 foi de 13.310 casos em homens e de 14.800 em mulheres. Esses valores correspondem a um risco esti mado de 14 casos novos a cada 100.000 homens e 15 para cada 100.000 mulheres.

Sem considerar os tumores de pele não melanoma, o câncer de cólon e reto em homens é o 3º mais frequente nas regiões Sul (21/100.000) e Sudeste (19/100.000). Na Região Centro-Oeste (11/100.000), ocupa a 4ª posição. Nas regiões Nordeste (5/100.000) e Norte (4/100.000), ocupam a 5ª posição. Para as mulheres, é o 2º mais frequente nas regiões Sul (22/100.000) e Sudeste (21/100.000); o 3º nas regiões Centro-Oeste (11/100.000) e Nordeste (6/100.000), e o 5º na região Norte (4/100.000).

O tempo de desenvolvimento da neoplasia é longo e o resultado da interação entre predisposição genéti ca e infl u-ências ambientais. Dessa maneira, lesões pré-neoplásicas ou neoplasias precoces podem ser identi fi cadas, melhoran-do o prognósti co. Programas de rastreamento em popula-ções específi cas ou em pessoas com mais de 50 anos (na população geral) por meio do teste de sangue oculto nas fe-zes ou da colonoscopia (economicamente desfavorável) são fundamentais neste senti do. O aspecto mais desfavorável de implicação com o do câncer de cólon está ligado ao diag-

CAPÍTULO

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Dieta rica em fi bras aumenta o bolo fecal, “diluindo” carcinógenos e promotores de tumor, diminuindo o contato dessas substâncias com a mucosa colônica e aumentando sua taxa de eliminação. Acredita-se que a diminuição histó-rica na ingestão de fi bras esteja envolvida no aumento da incidência do CCR e que o aumento individual na sua inges-tão possa diminuir os riscos pessoais de desenvolvimento das lesões, embora ainda não haja confi rmação cientí fi ca bem controlada de tal suposição.

O cálcio aumenta a excreção fecal de ácidos biliares e diminui a proliferação celular da mucosa colônica, sendo re-conhecido como um fator protetor. O consumo de vegetais amarelos e verdes, vitaminas A, C, E e sais de selênio tam-bém tem sido implicado na redução do desenvolvimento de CCR. Ati vidade fí sica e manutenção de IMC baixo parecem ser fatores protetores contra CCR, assim como a reposição hormonal em mulheres com estrógeno.

O risco de desenvolvimento de adenoma e carcinoma parece estar reduzido com o consumo contí nuo de AINH (inibidores da COX-2). Essas substâncias inibem a produção de substâncias moduladoras do crescimento celular, adesão celular, diferenciação celular e apoptose. A ati vidade fí sica tem sido consistentemente associada a 40% a 50% de redu-ção no risco de CRC, em especial no cólon distal, através da esti mulação do trânsito intesti nal.

B - Fatores genéti cos

O CCR é o ti po de câncer de que mais se tem conhecimen-to com relação à genéti ca e biologia molecular. Tanto as for-mas esporádicas quanto as hereditárias têm um componente genéti co associado, existi ndo basicamente 3 ti pos de genes cujas alterações genéti cas podem levar ao CCR (Tabela 1).

Tabela 1 - Genes relacionados ao CCR

Gene Cromossomo% de alte-rações nos tumores

Classe de gene

K-ras 12 50 Proto-oncogene

APC 5 70Gene supressor tumoral

DCC 18 70Gene supressor tumoral

SMAD4 (DPC4, MADH4)

18 ?Gene supressor tumoral

p53 17 75Gene supressor tumoral

hMSH2 2 X Gene reparador DNA

hMSH1 3 YGene reparador DNA

hMSH6 2 WGene reparador DNA

TGF-beta1 RII 3 ZGene supressor tumoral

Obs.: X + Y + W + Z = 15% dos tumores esporádicos.

Os proto-oncogenes, por exemplo, o K-ras, têm papel na regulação do crescimento celular normal. Alterações desses proto-oncogenes contribuem para a proliferação celular ex-cessiva e eventual carcinogênese.

Outro mecanismo é a perda de genes supressores tu-morais. O gene APC é o exemplo clássico de gene supressor tumoral. Sua deleção causa alterações na transmissão de sinais extracelulares para o núcleo celular (por meio da pro-teína beta-catenina do citoesqueleto), alterando o ciclo e o crescimento celular. Além disso, esse gene mo du la a adesão célula-célula, e a sua deleção desorganiza tal sinalização. Outros exemplos de genes supre ssores tumorais são o DCC e p53.

A 3ª classe de genes é aquela em que reparam erros no pareamento de bases que ocorre durante a replicação de DNA. Alterações nesses genes (hMSH2, hMLH1, hMSH3 e hMSH6) levam a erros de replicação e propensão à muta-ção. Tal alteração genéti ca é a base para a HNPCC, mas tam-bém pode ser encontrada no câncer esporádico. A instabili-dade de microssatélite é um marcador cromossômico de tal apresentação. A Figura 1 esquemati za as principais etapas do desenvolvimento do CCR.

Figura 1 - Sequência de eventos genéti cos propostos para explicar a evolução do câncer colorretal

3. Fatores de risco para o desenvolvi-mento

A - Pólipos adenomatosos

A maioria dos CCRs surge a parti r de pólipos macros-cópicos que evoluem com displasia. O risco da evolução

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adenoma-carcinoma depende do tamanho e da histologia do pólipo. A evolução do carcinoma pode levar 1 década, e o progresso de adenoma para neoplasia invasiva, 5 anos. Há várias evidências epidemiológicas que apontam à evolução de adenomas para carcinomas:

-Adenomas são raros em regiões geográfi cas com baixa incidência de CCR; -A distribuição de adenomas nos diferentes segmentos do cólon segue a distribuição das neoplasias; -Geralmente, ocorrem adenomas em localização anatô-mica próxima de neoplasias (pólipos senti nelas); -O risco para o desenvolvimento de CCR é proporcional ao número de pólipos presentes; -É comum o achado de câncer em pólipos removidos por colonoscopia ou cirurgicamente, e o risco é pro-porcional ao grau de displasia encontrado no pólipo; -A remoção de pólipos adenomatosos por colonos copia em pacientes sob seguimento diminui o risco de morte por câncer.

B - História familiar

a) Câncer esporádico

Parece que, além das síndromes hereditárias bem de-fi nidas, como a PAF e HNPCC, existe uma susceti bilidade maior para o desenvolvimento de CCR em familiares de por-tadores de CCR, especialmente em parentes de 1º grau. O câncer esporádico é responsável por 70 a 75% de todos os casos de CCR. O mais alto grau de risco representa pessoas com parentes de 1º grau com CRC sob a idade de 45 anos.

b) PAF (polipose heredofamiliar)

A síndrome tem servido como modelo para o estudo da sequência de eventos da evolução adenoma-carcinoma e é responsável por cerca de 1% de todos os casos de CCR. Nela, os pólipos (centenas a milhares) começam a se de-senvolver no cólon e reto a parti r dos 15 a 20 anos e, caso não haja remoção, evoluem para câncer em aproximada-mente 1 década. Hoje, é possível a detecção de indivíduos em risco para o desenvolvimento dessa síndrome por meio da detecção da proteína trancada do gene APC (diagnósti co molecular ainda não disponível em larga escala).

Na práti ca, o diagnósti co é feito por meio de colonos-copia em indivíduos sintomáti cos ou em parentes assinto-máti cos de portadores da síndrome. Após o diagnósti co, é recomendado o tratamento cirúrgico.

c) HNPCC (câncer hereditário não relacionado à poli-pose)

O CCR hereditário não associado à polipose (síndrome de Lynch) é uma doença autossômica dominante na qual a ocorrência de adenomas e câncer associado é bem menor que na PAF. É responsável por 5 a 10% dos casos de CCR e ati nge pacientes jovens de até 40 ou 45 anos, com lesões tumorais ocorrendo no cólon direito em 60 a 80% das vezes,

cursando com lesões metacrônicas em 45% das vezes. O ris-co de mulheres desenvolverem câncer de endométrio está entre 39 e 43%. Outras neoplasias associadas ao HNPCC são ureter e pelve renal, intesti no delgado, estômago, pân-creas, vias biliares e ovário. A Tabela 2 mostra as principais diferenças epidemiológicas entre pacientes com HNPCC e câncer esporádico.

Tabela 2 - Diferenças entre HNPCC e CCR esporádico

HNPCC Câncer esporádico

Idade do diagnósti co. ± 40 anos ± 60 anos

Tumores múlti plos:- Sincrônicos;- Metacrônicos.

20%25%

3 a 6%1 a 5%

Localização proximal. 70% 35%

Tumores indiferenciados. Comum Incomum

Instabilidade. 80% 15%

Prognósti co. Favorável Variável

O achado de instabilidade de microssatélites é positi vo em aproximadamente 80% dos casos de HNPCC, mas tam-bém não é disponível em larga escala. Os principais genes envolvidos na gênese do câncer são hMSH2 e hMLH1.

Existem critérios clínicos para a defi nição de HNPCC, de-fi nidos por consensos internacionais como de Amsterdam I e II.

Tabela 3 - Critérios de Amsterdam I e II

Amsterdam I

- Pelo menos 3 membros da mesma família com CCR;

- Um dos membros deve ser parente em 1º grau dos outros 2;

- Acometi mento de pelo menos 2 gerações sucessivas;

- Um dos membros deve ter menos de 50 anos na data do diagnósti co;

- Deve ser excluído o diagnósti co de PAF;- Confi rmação anatomopatológica de CCR.

Amsterdam II

- Critérios de Amsterdam I, podendo os 3 mem-bros da mesma família serem portadores de tumores de endométrio, intesti no delgado, ureter ou pelve renal, além do CCR.

d) Outras síndromes

A síndrome de Peutz-Jeghers (associada ao gene STKII) e a síndrome da polipose juvenil familiar (associada ao gene SMAD4) estão associadas a risco aumentado para o desen-volvimento de CCR.

e) Doença Infl amatória Intesti nal (DII)

Nos casos de retocolite ulcerati va inespecífi ca (RCUI), há risco aumentado para CCR especialmente após 8 anos de instalação da doença, sendo maior nas pancolites, mas tam-bém presente nas formas de reti te e colite esquerda. Nessa situação, o câncer aparece em epitélio displásico sem ade-noma visível (“de novo”) ou associado a massas (displasia

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associada à massa). A colonoscopia para rastreamento de CCR com biópsias seriadas é recomendada com frequência anual. E a detecção de displasia de alto grau ou displasia as-sociada à massa são determinantes de ressecção colônica.

Na doença de Crohn, há risco aumentado para desen-volvimento de CCR somente nas formas de pancolite, mas não tão bem demonstrado quanto na RCUI.

4. Prevenção primária Para cada segmento do trato digestório, há uma propo-

sição relati va aos componentes da dieta – de modo geral, o que se preconiza é a diminuição do total de energia consu-mida, evitando-se gorduras e gorduras saturada, grelhados e defumados com o concomitante aumento da ingestão de frutas, vegetais e fi bras. Por outro lado, não há nenhuma evidência defi niti va que suporte o papel de dieta rica em fi bras ou pobre em gordura na redução dos adenomas dos cólons.

5. Rastreamento (prevenção secundária) O CCR é curável se detectado precocemente, portanto

é recomendado o rastreamento de lesões pré-neoplásicas na população. Na população geral, o teste de sangue oculto nas fezes é mais uti lizado devido à viabilidade econômica de uti lizar esse teste em larga escala, porém a grande quan-ti dade de exames falsos positi vos serve como críti ca a esse método. O teste permite detectar cerca de 50% dos cânce-res e 20% dos adenomas com mais de 1cm.

Com isso, a redução da mortalidade esperada varia de 15 a 18%, em 7 a 10 anos, destacando a importância da apli-cação sistemáti ca do teste no rastreamento populacional do CCR. A uti lização da retossigmoidoscopia rígida ati nge o sigmoide distal, e a fl exível, os 60cm distais do cólon, ofe-recendo maior possibilidade de detecção de lesões preco-ces. Levando-se em conta que 70% dos CCR estão presentes no sigmoide e no reto, esses exames são bastante efeti vos quando usados para rastrea mento.

O exame mais efeti vo para o rastreamento de CCR é a colonoscopia, sendo o seu custo elevado, porém o custo--benefí cio para rastreamento é discutí vel. O enema opaco também pode ser uti lizado para rastreamento, porém é me-nos sensível que a colonos copia, especialmente para lesões menores que 1cm. Outros métodos, como a colonoscopia virtual e as pesquisas genéti cas e de antí genos carcinogê-nicos nas fezes, têm sido estudados, com resultados ainda inconclusivos.

O rastreamento do CCR deve ser realizado de acordo com a inserção dos indivíduos em grupos de risco (Tabela 4). No Brasil, divide-se a população que deve ser submeti da ao rastreamento de acordo com o risco, que pode ser nor-mal ou baixo, médio e alto risco. Além disso, em indivíduos de alto risco, varia também a idade em que se deve iniciar o rastreamento (por exemplo, em pacientes com HNPCC, a colonoscopia a cada 2 anos na idade de 20 anos e anu-

almente após os 40 anos e, para pacientes com doença in-fl amatória intesti nal, anual com biópsias de vigilância, com início em 8 anos após o início da pancolite ou 15 anos após o início da colite distal).

Tabela 4 - Estrati fi cação de risco e estratégias de rastreamento

Estrati fi cação de risco

Característi cas Rastreamento

Baixo ou normalIndivíduos ≥50 anos sem outros fatores de riscos.

Pesquisa de sangue oculto nas fezes e exame proctológico anuais, encaminhando à colonoscopia os casos positi vos, ou colonos-copia a cada 5 ou 10 anos.

Médio

História pessoal ou em parente de 1º grau de CCR ou história pessoal de adenoma.

Exame colonoscópico a cada 3 anos ou menos 5 anos do parente mais jovem com câncer.

Alto

Síndromes genéti cas relacionadas ao CCR, DII na forma de coli-te e enterite actí nica colorretal.

Colonoscopia anual.

6. Diagnósti coOs sintomas relacionados ao CCR dependem de uma série

de fatores, sendo os mais importantes a localização (Figura 2), a invasividade e o tamanho do tumor. O adenocarcinoma do cólon e reto cresce lentamente e permanece assintomáti -co por um longo período. Pode causar anemia, massa palpá-vel, obstrução intesti nal e dor local. A anemia está presente em metade dos pacientes com câncer de cólon.

Figura 2 - Frequência da incidência dos tumores colorretais

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Tumores de ceco e cólon proximal tendem a formar grandes massas e se apresentar com anemia (Figura 3). Portanto, idosos com sintomas de fadiga e alterações cardiorrespiratórias associadas a descoramento e/ou melena devem alertar para esse tipo de tumor, especial-mente se apresentam massa abdominal palpável no exa-me físico.

Figura 3 - Tumor de cólon ascendente: (A) e (B) tomografi a compu-tadorizada; (C) colonoscopia e (D) peça cirúrgica

Os tumores de descendente e sigmoide tendem a evo-luir com alterações do hábito intesti nal (obstrução intesti -nal), podendo alternar períodos de consti pação e diarreia. Isso ocorre porque o diâmetro da alça intesti nal é menor e as fezes que ali chegam são mais sólidas. Podem ocorrer enterorragia e mucorreia associadas.

Os tumores do reto também podem evoluir com sin-tomas obstruti vos e sangramento do ti po hematoquezia ou enterorragia. Nessa localidade, os tumores podem de-sencadear a sensação de evacuação incompleta constante (puxo/tenesmo) e dor retal.

O diagnósti co pode ser fornecido depois de exames de rastreamento, ou na investi gação clínica de sintomas sugesti vos de CCR. O toque retal e a retossigmoidoscopia ainda fazem o diagnósti co da maioria dos CCRs, portanto não podem ser descartados em detrimento de exames mais caros e complexos. O diagnósti co de certeza e a pesquisa de lesões sincrônicas, entretanto, fazem que quase sempre sejam necessários outros exames complementares para a confi rmação diagnósti ca.

A - Colonoscopia

Permite o diagnósti co de tumores com maior sensibili-dade do que exames radiológicos, além de propiciar a re-alização de biópsias e excisão de lesões pré-cancerígenas, como os adenomas. Também é capaz de diagnosti car lesões sincrônicas em 8% dos casos.

O exame é feito sob sedação, com preparo de cólon in-testi nal, e tem baixo risco de complicações (0,5% de perfu-ração), além de 90 a 95%. Apesar de mais caro, o custo-be-nefí cio é válido principalmente em pacientes sintomáti cos, pois permite a remoção de eventuais pólipos adenomato-sos antes da sua evolução para CCR.

B - Enema opaco

Alternati va para a colonoscopia, pode não detectar le-sões pequenas. No entanto, em pacientes que se recusam a fazer colonoscopia ou em locais onde a colonoscopia não é disponível, o enema opaco é recomendado apresentando boa sensibilidade para o CCR e adenomas grandes. Além disso, pode permiti r a avaliação do cólon proximal a lesões intransponíveis à colonoscopia. O exame feito com duplo contraste (bário + ar) detecta lesões com maior acurácia (Figura 4).

Figura 4 - Aspecto de “maçã mordida”: tumor colorretal em enema opaco

C - Exames laboratoriais

Geralmente, os exames laboratoriais não fornecem achados específi cos, exceto em fases avançadas da doença (anemia). A dosagem de CEA (antí geno carcinoembrionário) não é uti lizada para diagnósti co ou rastreamento de CCR. É importante no acompanhamento do portador de CCR e uti -lizado, em geral, como marcador de recidiva nos pacientes em acompanhamento pós-operatório. Sua elevação sugere recidiva. A dosagem de CEA é úti l para o prognósti co da do-ença e como uma base para comparação com os níveis de pós-operatório. Um nível elevado do soro pré-operatório é um indicador de mau prognósti co: quanto maior o nível sérico, mais provável que o câncer seja extenso, e deverá repeti r-se no pós-operatório.

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7. EstadiamentoO objeti vo do estadiamento é identi fi car não somente

a extensão locorregional da lesão primária, mas também a existência de lesões metastáti cas. O CCR cresce localmente de forma circunferencial, principalmente no reto. Além dis-so, evolui no senti do craniocaudal e dissemina-se pelas vias linfáti cas, vascular e transcelômica. Assim, o estadiamento de CCR deve considerar esses aspectos.

No período pré-operatório, a investi gação do compro-meti mento locorregional de estruturas vizinhas, linfonodal e de metástases intra-abdominais deve ser feita por inter-médio de exames de imagem seccional (USG ou CT), assim como a presença de metástases pulmonares (2º maior síti o de metástases, após o fí gado) deve ser investi gada com ra-diografi as de tórax ou, a critério clínico, com TC. A colonos-copia seve para excluir lesões sincrônicas. O USG endorretal deve ser aplicado para avaliação da extensão dos tumores retos, quando disponível, pois sua acurácia é superior à da TC pélvica.

No intraoperatório, deve ser realizada a investi gação cuidadosa de toda a cavidade abdominal, podendo ser uti li-zada a ultrassonografi a intraoperatória, principalmente nos casos de metástases hepáti cas passíveis de ressecção, pois é o exame mais sensível para a sua detecção. A dissemina-ção linfonodal do CCR é o principal fator prognósti co deter-minado e tem papel de destaque nas diversas classifi cações para estadiamento do CCR.

Inicialmente, Dukes propôs o estadiamento do CCR com base na invasão tumoral. Posteriormente, essa classifi cação foi complementada por Astler & Coller (Tabela 5). Apesar de atualmente se dar preferência ao estadiamento TNM (Tabela 6), essas classifi cações devem ser conhecidas pelo seu valor histórico e por ainda serem bastante uti lizadas.

Tabela 5 - Classifi cação de Dukes e Astler-Coller

Dukes Astler-Coller

A - Tumor con-fi nado à parede colônica

A - Tumor limitado à mucosa/submucosa

B - Tumor acome-tendo tecido peri-colônico

B1 - Tumor acometendo muscular própria sem linfonodos comprometi dosB2 - Tumor acometendo a serosa sem linfonodos comprometi dos

C - Acometi mento linfonodal

C1 - Tumor acometendo muscular própria com linfonodos comprometi dosC2 - Tumor acometendo serosa com linfo-nodos comprometi dos

D - Metástase a distância

Tabela 6 - Estadiamento do CCR pela UICC 2002

Tx Não avaliado

T0 Sem tumor primário

Tis Tu in situ: intraepitelial ou invasão da lâmina própria

T1 Invade a submucosa

T2 Invade a muscular própria

T3Invade além da muscular própria, alcançando a subserosa ou os tecidos pericólicos não peritonizados

T4 Invade diretamente outros órgãos ou estruturas e/ou perfura o peritônio visceral

Nx Não avaliado

N0 Ausência de metástases em linfonodos regionais

N1 Metástases em 1 a 3 linfonodos regionais

N2 Metástases em 4 ou mais linfonodos regionais

Mx Não avaliado

M0 Sem metástase

M1 Com metástase

AJCC/UICC

T N M DukesAstler-Coller

0 Tis N0 M0

I T1, 2 N0 M0 A A

II A T3 N0 M0 A B1

II B T4 N0 M0 B B2

III A T1, 2 N1 M0 B C1

III B T 3, 4 N1 M0 C C2

III C Qualquer T N2 M C C1, C2

IV Qualquer TQualquer

NM1 C D

Observação: a classifi cação e o estadiamento TNM - UICC 2010 encontram-se no anexo, ao fi nal do livro.

8. Tratamento

A - Pólipos adenomatosos que contêm carcino-ma associado

A polipectomia ou ressecção local destes tumores será suficiente se o tumor for confinado à mucosa e lo-calizado na cabeça do pólipo (pólipo pediculado). Essa ressecção pode ser, inclusive, realizada por endoscopia. No entanto, caso as células malignas invadam o pedículo do pólipo, a polipectomia simples só será aceita se o tu-mor for bem diferenciado, não houver invasão vascular ou linfática e houver margem de ao menos 2mm. Nos pó-lipos sésseis, essas características são difíceis de serem demonstradas. A presença de quaisquer dos seguintes fatores deve alertar a consideração da cirurgia radical, como elas indicam um maior risco de câncer residual e/ou metástases nodais:

-Histologia pouco diferenciada;

- Invasão linfáti ca;

-Câncer na margem de ressecção ou caule;

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- Invasão na muscular própria da parede intesti nal (le-são T2);

-Carcinoma invasivo provenientes de um séssil (fi xa) pólipo;

-Carcinoma invasivo com polipectomia incompleto.

Figura 5 - Representação do tratamento de carcinoma em pólipos. Em A, a base não é comprometi da pela neoplasia, e a polipecto-mia é considerada curati va; em B, a necessidade de margem pode difi cultar o tratamento

B - Tumores de cólon

Figura 6 - Tratamento dos tumores de cólon: (A) colectomia direi-ta, com ligadura da cólica direita e, eventualmente, do ramo di-reito da cólica média e (B) colectomia esquerda, com ligadura da mesentérica inferior

Levando em conta as vias de disseminação dos tumores colônicos, recomenda-se a cirurgia com princípios oncoló-gicos. Consiste na ressecção do segmento colônico acome-ti do, com margens de ressecção de pelo menos 5cm e liga-duras vasculares junto aos seus troncos de origem, propor-cionando uma linfadenectomia adequada. A invasão local do CCR para diafragma, intesti no delgado, bexiga, ovários, útero, baço e fí gado não é indicati va de irressecabilidade,

ou seja, pode-se prati car a ressecção radical do CCR com a reti rada em monobloco de estrutura extracolônica acome-ti da. A taxa de deiscências de anastomoses colorretais gira em torno de 5%.

Nos tumores do cólon direito, é indicada a colectomia direita (Figura 6A). Mesmo em casos de abdome agudo obs-truti vo derivado de tumor de cólon direito, pode-se realizar a ressecção do tumor com anastomose primária. Reservam-se as ileostomias aos pacientes em más condições clínicas ou aos casos com perfuração e peritonite.

Nos tumores de cólon transverso, podem-se realizar a co-lectomia direita ou esquerda ampliadas, a colectomia trans-versa, ou mesmo a colectomia total, a depender dos achados intraoperatórios. Para os tumores de descendente, a colecto-mia esquerda é a ressecção-padrão (Figura 6B), assim como a retossigmoidectomia para os tumores do sigmoide.

Os pacientes com PAF, RCUI, HNPCC ou tumores sincrô-nicos são mais bem tratados por colectomia total, porque têm grandes chances de desenvolvimento de novos tumo-res no cólon remanescente. Tumores irressecáveis podem ser submeti dos a tratamento paliati vo com ostomias ou com derivações internas, mais raramente.

C - Tumores de reto

Os tumores de reto seguem o mesmo raciocínio que os tumores de cólon, porém existem algumas observações a serem feitas. Para os tumores do reto médio e distal (extra-peritoneal), a margem distal de segurança é de 2cm devido ao crescimento preferencialmente circunferencial neste lo-cal, sendo realizada anastomose colorretal. A operação de Hartmann deve ser reservada às emergências.

Os tumores do reto baixo podem ser tratados por meio de ressecções anteriores com anastomose coloanal ou por intermédio da amputação abdominoperineal do reto. A ex-cisão total do mesorreto (gordura perirretal limitada pelas fáscias de Denovellier e Waldeyer) consti tui tempo obriga-tório, qualquer que seja a abordagem (Figura 7). As anas-tomoses extraperitoneais (no reto distal) têm risco maior de complicações e podem ser drenadas (dreno senti nela). As anastomoses mais distais (reto baixo e coloanais) podem demandar o uso de colostomia ou ileostomia em alça de proteção, as quais não evitam deiscências de anastomose, mas diminuem a sua morbidade.

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Figura 7 - Produto de amputação abdominoperineal de reto com excisão total do mesorreto: (A) peça cirúrgica e (B) destaque do tu-mor. Esse caso foi submeti do à radioterapia e quimioterapia neo-adjuvantes, com redução do tamanho inicial do tumor

No senti do de evitar a amputação do reto com colosto-mia defi niti va e de “diminuir” o estadiamento dos tumores de reto distal, preconiza-se a radioterapia acompanhada ou não de quimioterapia neoadjuvante, trazendo benefí cios aos pacientes com estadios II e III. Em cerca de 30% dos casos, há regressão total da lesão; em 1/3, há regressão parcial, com indicação de preservação esfi ncteriana; e, nos restantes, não há benefí cio.

D - Quimioterapia adjuvante

A ressecção cirúrgica com quimioterapia adjuvante é o tratamento de escolha para CCR estadio III. Classicamente, os pacientes devem receber tratamento adjuvante com quimioterapia à base de 5-fl uorouracil. Atualmente, a asso-ciação a oxaliplati na (FolFox = oxaliplati na + 5-FU + folinato de cálcio) ou irinotecano (FolFire = 5-FU + irinotecano + fo-linato de cálcio) tem mostrado melhores resultados, prin-cipalmente nos casos de doença metastáti ca. O bevacizu-mabe (Avasti n®) tem sido indicado com bons resultados em pacientes selecionados. Pacientes no estadio II ainda não têm comprovado benefí cio no tratamento quimioterápico adjuvante, mas há indícios de benefí cio na sobrevida livre de doença.

E - Doença metastáti ca

O achado de metástase hepáti ca não contraindica a res-secção radical do CCR. Ela está presente em 10 a 25% dos casos, e sua ressecção determina incremento na sobrevida dos pacientes, no entanto só deve ser realizada na presença de lesão hepáti ca totalmente ressecável sem evidências de tumor extra-hepáti co.

Fatores de melhor prognósti co para ressecções de me-tástases hepáti cas de CCR incluem a presença de até 3 nó-dulos não maiores que 3cm, localização unilobular, níveis de CEA baixos. Em centros de excelência, a sobrevida pós--ressecção hepáti ca de CCR metastáti co ultrapassa 25% em 5 anos. O momento para a ressecção de metástases hepá-

ti cas de CCR é controverso, podendo ser feita no mesmo ato da ressecção colônica ou meses após, depois de ciclo de tratamento quimioterápico.

Metástases pulmonares localizadas podem ser resseca-das, desde que o paciente tenha reserva respiratória ade-quada em prova de função pulmonar e que o tumor inicial possa ser controlado, determinando incremento na sobre-vida.

Achados pré ou intraoperatórios de carcinomatose ou metástases hepáti cas e pulmonares disseminadas contrain-dicam ressecção a assintomáti cos. Alguns serviços realizam citorredução com peritoniectomia associada à quimiotera-pia intraperitoneal hipertérmica em casos selecionados de carcinomatose peritoneal, sendo uma conduta ainda não consensual.

Metástases no SNC são incomuns e só devem ser inves-ti gadas mediante a presença de sintomas. Todos os pacien-tes com doença metastáti ca em algum momento de seu tra-tamento devem receber terapia quimioterápica, desde que tenham condições clínicas para tal, com intuito curati vo ou paliati vo.

9. SeguimentoÉ fundamental para a detecção precoce de recidiva local

ou metástase a distância. O exame proctológico associado à dosagem de CEA, exames de imagem (raio x de tórax e USG de abdome) e colonoscopia devem ser feitos roti nei-ramente em pacientes operados (Tabela 7), sendo que as recidivas locais ocorrem preferencialmente nos primeiros 2 anos de evolução, e lesões metacrônicas (em outras locali-dades do cólon), em até 5% dos casos. Uma vez que o cólon é livre de qualquer lesão síncrona, uma colonoscopia por vigilância pós-operatória é recomendada em um ano para avaliar qualquer lesão metacrônica. Se o exame em 1 ano é normal, o exame subsequente deve ser em 3 anos. Se este exame também for normal, a colonoscopia pode ser am-pliada a cada 5 anos.

A evolução progressiva do CEA deve alertar o médico a procurar doença recidivada ou metastáti ca. A tomografi a com emissão de pósitrons (PET-SCAN) pode ser úti l para de-tectar lesões não visíveis nos exames roti neiros (Figura 8).

Tabela 7 - Seguimento de pacientes com CCR estadios II, III e IV. Em pacientes estadio I, não é necessário o seguimento com raio x de tórax e exame de imagem abdominal, salvo em casos sintomáti cos

1º e 2º ano3º ao 5º

ano>5

anos10

anos

Meses 3 6 9 12 6 12 12 12

Anamnese + EF X X X X X X X X

CEA X X X X X

Raio x de tórax X X X X X

USG/TC de ab-dome

X X X X X

Colonoscopia X X X X

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Figura 8 - Paciente com recidiva de tumor de reto operado diag-nosti cada pelo PET-CT: (A) no fí gado e (B) na pelve

10. Prognósti coApesar de ser curável nas fases iniciais, no Brasil, 80%

dos casos são diagnosti cados em fases avançadas, com me-nor chance de cura. O prognósti co está diretamente relacio-nado com o estadio do tumor, com destaque para a disse-minação linfonodal. A sobrevida em 5 anos, segundo dados do INCA, é de 60 a 70% nos estadios I e II, 40% no estadio III e prati camente zero no estadio IV.

Alguns fatores clínicos e histológicos têm impacto nega-ti vo no prognósti co, como tumores indiferenciados, muci-nosos ou com células “em anel de sinete”. Outros fatores de mau prognósti co são CEA alto ao diagnósti co, comprometi -mento linfonodal (pior se 4 ou mais), metástases, perfura-ção e obstrução, pacientes jovens, invasão linfáti ca, venosa e perineural; e penetração na parede do órgão.

11. ResumoQuadro-resumo

- O CCR é o exemplo mais conhecido da sequência adenoma--adenocarcinoma, o que justi fi ca o rastreamento em pacientes de risco;

- O tratamento curati vo envolve a cirurgia com princípios onco-lógicos. Dependendo do estadiamento, é possível realizar qui-mioterapia e radioterapia neoadjuvante e/ou adjuvante;

- O prognósti co é diretamente relacionado com o estadiamento ao diagnósti co.

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Cirrose hepáti ca

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

trição, ginecomasti a, ascite, hipertensão portal, tendência à hemorragia, encefalopati a hepáti ca, síndrome hepatorre-nal, icterícia etc.

Estudos de autópsias apontam que a cirrose hepáti ca está presente em 3,5 a 5% dos indivíduos. Dentre pacientes alcoólatras, 15% desenvolvem cirrose, a qual é a 8ª causa de morte nos Estados Unidos.

2. Quadro clínicoA cirrose hepáti ca pode apresentar de sintomas inespe-

cífi cos, como fadiga crônica, a quadros emergenciais, como as hemorragias digesti vas. Tudo depende da eti ologia, da presença de complicações e da gravidade da doença.

Alterações nas provas de função hepáti ca ou citopenias em exames de roti na feitos em assintomáti cos podem ser as manifestações iniciais da cirrose. Os sintomas relaciona-dos à perda da função hepatocitária incluem perda de peso, cansaço, défi cits neurológicos de concentração e memória, alterações do ciclo menstrual e da libido. Ginecomasti a, icterícia, ascite, esplenomegalia, telangiectasias e eritema palmar são sinais que devem ser pesquisados, como asterix e hálito cetônico.

As manifestações clínicas de suas complicações, como hipertensão portal com hemorragia digesti va; retenção de líquidos com edema, ascite ou insufi ciência renal; ou a en-cefalopati a hepáti ca em suas formas mais graves; também podem abrir o quadro clínico.

O diagnósti co e a classifi cação da cirrose hepáti ca de-vem basear-se em aspectos clínicos, eti ológicos e funcio-nais; além do padrão histológico, determinado por exame anatomopatológico de fragmento de biópsia hepáti ca. Assim, nos casos avançados, em que as complicações da cirrose já se impõem, paralelamente ao seu tratamento, deve-se pesquisar a eti ologia da cirrose e classifi cá-la mor-fologicamente.

3. Classifi caçãoDentre as várias classifi cações propostas para a cirrose

hepáti ca, destacam-se a morfológica, a eti ológica e a fun-cional.

Pontos essenciais -Principais causas; -Ascite; -Encefalopati a hepáti ca; -Síndrome hepatorrenal; -Tratamento.

1. IntroduçãoA cirrose hepáti ca é o estágio terminal de todas as do-

enças hepatocelulares. O termo origina-se do grego kippos, que signifi ca algo como “amarelo cor de palha”. Cirrose hepáti ca é, na realidade, o diagnósti co histológico de uma condição de agressão crônica ao fí gado. De fato, esse acha-do histológico acontece com as mais diversas eti ologias, apesar de sua apresentação clínica variar de acordo com o grau de existência de 3 condições – disfunção hepatocelu-lar, shunt portossistêmico e hipertensão portal. Na verda-de, o que ocorre, independentemente da eti ologia, é uma agressão crônica ao hepatócito, com necrose e tentati va de regeneração, formando-se nódulos de hepatócitos rodea-dos por fi brose, sem que se consiga manter a unidade fun-cional do fí gado, o lóbulo hepáti co (Figura 1).

Figura 1 - Microestrutura do fí gado, com fi brose e destruição da estrutura lobular

Todas as funções do órgão são diminuídas, com isso ad-vêm complicações como perda de massa proteica, desnu-

CAPÍTULO

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A - Classifi cação morfológica

Morfologicamente, a cirrose pode ser classifi cada como micronodular, macronodular, mista ou septal incompleta. Alguns autores acreditam que, a parti r da classifi cação mor-fológica, também é possível chegar à eti ologia da cirrose, que pode ser desconhecida em até 30% dos pacientes.

A cirrose micronodular, outrora denominada cirrose de Laennec, é aquela com nódulos de regeneração pequenos, variando de 0,1 a 0,3cm de diâmetro. Ocorre, classicamen-te, na fase inicial da cirrose alcoólica e, posteriormente, transforma-se em macronodular.

Já a cirrose macronodular contém nódulos de regenera-ção maiores, de até 0,5cm (Figura 2). Foi chamada de pós--necróti ca, irregular e pós-colapso. Na cirrose mista, talvez a forma mais comum, há áreas com micronódulos e áreas com macronódulos. Na cirrose septal incompleta, os nódu-los são maiores, ati ngindo até 1cm de diâmetro, e a fi brose portal é proeminente.

Figura 2 - Fígado com cirrose macronodular

B - Classifi cação eti ológica

A cirrose hepáti ca deve ser classifi cada de acordo com a sua eti ologia, pois isso pode infl uenciar o prognósti co do paciente. A Tabela 1 mostra as principais causas de cirrose hepáti ca.

Tabela 1 - Eti ologias da cirrose hepáti ca

Eti ologia Exemplos

Infecciosas HBV, HCV, sífi lis congênita.

TóxicasÁlcool, toxinas (afl atoxina), medicamentos (meti ldopa, metotrexato, outras).

MetabólicasDoença de Wilson, hemocromatose, defi ciên-cia de alfa-1-anti tripsina, ti rosinemia, galacto-semia, outros.

BiliaresCirrose biliar primária, obstruções biliares crônicas.

Congesti vasICC, insufi ciência tricúspide, pericardite cons-triti va, síndrome de Budd-Chiari, outros.

Autoimune Hepati te autoimune.

Criptogenéti ca -

a) Hepati tes virais

Estas formam a principal causa de cirrose hepáti ca em nosso meio. O vírus da hepati te C é a principal eti ologia, ge-ralmente relacionado à contaminação por material de uso intravenoso ou sangue infectado. O VHA não é relacionado à cirrose, e o VHB, apesar de apresentar resolução espon-tânea na maioria dos casos, pode levar a cronicidade e cir-rose. Quando associado a portador de VHB, o vírus delta também pode levar à cirrose hepáti ca.

b) Eti lismo

Em geral, após 10 anos de consumo, o álcool pode levar à cirrose hepáti ca. As mulheres são mais suscetí veis que os homens, e há um importante fator de susceti bilidade gené-ti ca individual envolvido. Os principais fatores de risco para o desenvolvimento de cirrose alcoólica, em ordem decres-cente de importância, são quanti dade de etanol ingerida, tempo de ingestão, conti nuidade, dano hepáti co “inicial”, sexo feminino, fator genéti co e desnutrição.

c) Obstrução biliar

Além da atresia congênita das vias biliares extra-hepáti -cas, a principal causa de cirrose em crianças, as estenoses adquiridas também podem levar à cirrose hepáti ca, como a colangite esclerosante primária, a cirrose biliar primária e a estenose cicatricial das vias biliares.

d) Distúrbios metabólicos congênitos

Hemocromatose, doença de Wilson, defi ciência de al-fa-1-anti tripsina, fi brose císti ca do pâncreas, galactosemia, ti rosinemia hereditária, intolerância hereditária à frutose etc.

e) Outras

Congestão passiva (síndrome de Budd-Chiari, pericar-dite constriti va etc.), hepati te crônica autoimune, drogas (metotrexato, alfa-meti ldopa, isoniazida etc.), esteato-he-pati te não alcoólica (NASH) etc. Quando não é possível de-terminar a eti ologia da cirrose, considera-se cirrose idiopá-ti ca ou criptogênica. Pode variar de 10% até 1/3 dos casos, dependendo do estudo.

C - Classifi cação funcional

Com base em critérios clínicos e laboratoriais, visa de-terminar a gravidade de cada caso. Os ti pos mais uti lizados são a classifi cação de Child-Pugh e o MELD.

4. Complicações A cirrose hepáti ca leva a inúmeras complicações sistê-

micas, como ascite e peritonite espontânea, hipertensão portal, encefalopati a hepáti ca, síndrome hepatorrenal e hepatocarcinoma.

- Ascite

Ascite é o acúmulo anormal de líquido seroso na cavi-dade peritoneal, de composição semelhante à do plasma

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ou diluído (Figura 3). O termo tem origem no grego askites, que signifi ca saco ou bolsa. Apesar de ser geralmente as-sociada à doença hepáti ca crônica, pode ter várias causas. Representa a principal complicação de pacientes cirróti cos ocorrendo em 30% dos pacientes, e, uma vez presente, es-tatí sti cas sugerem sobrevida de 50% em 1 ano.

Figura 3 - Ascite volumosa

5. Classifi caçãoA ascite, antes classifi cada como transudato ou exsuda-

to, atualmente é referida como decorrente ou não de hiper-tensão portal. O parâmetro uti lizado para a sua classifi ca-ção é o gradiente de albumina do líquido ascíti co (GLA), ob-ti do pela subtração do valor da albumina do líquido ascíti co do valor da albumina plasmáti ca. Quando esse gradiente é maior que 1,1g/dL, há 97% de chances de a eti ologia da as-cite ser a hipertensão portal.

A Tabela 2 mostra causas de ascite de acordo com o gra-diente sero-ascíti co.

Tabela 2 - Causas de ascite, de acordo com o gradiente sero-ascíti co

Gradiente >1,1g/dL

Hipertensão portal

- Cirrose;

- ICC;

- Pericardite constriti va;

- Insufi ciência tricúspide;

- Metástase hepáti ca múlti pla;

- Síndrome de Budd-Chiari;

- Congestão hepáti ca;

- Esquistossomose.

Gradiente <1,1g/dL

Peritônio normal

- Síndrome nefróti ca;

- Desnutrição;

- Ascite quilosa;

- Ascite pancreáti ca.

Peritônio alterado

- Tuberculose;

- Carcinomatose peritoneal;

- Vasculites;

- Serosites.

6. Eti opatogeniaAs principais causas de hipertensão portal em nosso

meio, em ordem decrescente de incidência, são a cirrose hepáti ca (quase 80% dos casos), a carcinomatose perito-neal, a insufi ciência cardíaca e a tuberculose peritoneal. Basicamente, têm-se as doenças relacionadas à hiperten-são portal, ao peritônio, à retenção de líquidos ou ao extra-vasamento de líquidos no peritônio. Podem-se separar as principais causas de ascite, de acordo com sua classifi cação, em relacionadas ou não à hipertensão portal (Tabela 3).

Tabela 3 - Principais causas de ascite

Relacionadas à HP

- Doença hepáti ca: cirrose hepáti ca, hepati -tes graves, metástases hepáti cas maciças;

- Cardiopati as: insufi ciência cardíaca conges-ti va, pericardite constriti va;

- Síndrome de Budd-Chiari e doença veno--oclusiva;

- Mixedema.

Não relacionadas à HP

- Carcinomatose peritoneal;

- Infl amação do peritônio: tuberculose, mico-ses, serosites infl amatórias etc.;

- Diminuição da pressão oncóti ca: síndrome nefróti ca, desnutrição;

- Extravasamento de líquido para o peritônio: ascites quilosa, pancreáti ca, biliar.

Metade dos pacientes cirróti cos desenvolve ascite em 10 anos, e seu aparecimento compreende um sinal de mau prognósti co, com mortalidade de, aproximadamente, 50% em 2 anos. A má perfusão dos hepatócitos decorrente da hipertensão portal leva ao aumento na absorção de sódio e água, o que eleva o fl uxo portal e, consequentemente, a pressão portal, sem melhorar a perfusão dos hepatócitos.

O ciclo conti nua indefi nidamente e leva ao extrava-samento de fl uido dos vasos da circulação portal, facilitados pela queda da pressão oncóti ca do plasma por hipoalbu-minemia, com edema, e, quando a drenagem linfáti ca não pode mais ser aumentada, forma-se a ascite (Figura 4).

Figura 4 - Fisiopatologia ascite no doente cirróti co

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7. Diagnósti co

A principal manifestação clínica da ascite é o aumento do volume abdominal. No seu diagnósti co diferencial, de-vem-se incluir os clássicos 5 “Fs” e 1 “T”: feto, fl atos, fe-zes, fat, fl uidos e tumor. O empachamento pós-prandial por compressão gástrica pode estar presente, assim como disp-neia, que pode ser agravada por derrame pleural associado, mais comum à direita.

Clinicamente, podem-se perceber, à percussão, os sinais de macicez móvel e o círculo de Skoda, além do sinal do Piparote. A macicez nos fl ancos só pode ser evidenciada quando há mais de 1.500mL de líquido ascíti co, enquanto a ultrassonografi a é capaz de detectar o acúmulo de líquido peritoneal a parti r de 100mL.

As medidas diárias do peso e da circunferência abdo-minal podem ser úteis no diagnósti co e na avaliação da resposta ao tratamento da ascite. Já as hérnias umbilicais podem ser causadas ou agravadas por esse acúmulo, e seu tratamento não deve ser realizado, exceto nos casos de per-furação da pele, pelo risco de infecção.

A paracentese abdominal, de suma importância no diagnósti co da ascite, deve ser realizada roti neiramente de forma diagnósti ca em todos os casos novos e naqueles com descompensação. São feitas a reti rada de 30mL de líquido ascíti co para análise dos níveis de proteínas totais e albumi-na, além de citologia para contagem diferencial e total de células e pesquisa de células neoplásicas. Quando houver suspeita de infecção bacteriana, a inoculação do líquido as-cíti co em meios de cultura na beira do leito aumentará as taxas de positi vidade do exame para cerca de 90%. A pes-quisa do bacilo de Koch no mesmo líquido apresenta baixa sensibilidade.

A dosagem da ADA (adenosina deaminase), enzima produzida pelos leucócitos, é úti l nos casos de suspeita de tuberculose peritoneal. Embora estudos internacionais relatem resultados confl itantes, um estudo brasileiro de-monstrou que, ao ser usado um valor de corte de 31U/L para a dosagem de ADA no líquido peritoneal, a sensibili-dade alcança 100%, com uma especifi cidade de 92%. A di-ferença entre esses estudos deve-se provavelmente à baixa incidência de tuberculose nos países onde os estudos foram conduzidos. A medida do PPD é de pouco valor, uma vez que apresenta sensibilidade muito baixa, com até 70% de resultados falsos negati vos.

A citologia oncóti ca tem sensibilidade de 58 a 75% para a detecção de ascites malignas e deve ser realizada quando há suspeita de carcinomatose peritoneal.

Outros exames devem ser solicitados de acordo com a suspeita clínica de cada caso, evitando aumento dos custos, como pH em casos de infecção ou ascite pancreáti ca, creati -nina na ascite urinária, amilase na pancreáti ca, dosagem de

DHL em casos de ascite secundária a infecção e triglicérides no caso de ascite quilosa.

Os exames de sangue com proteínas totais e frações, função hepáti ca, renal e bioquímica devem ser colhidos no mesmo dia, tanto para avaliação do paciente quanto para sua comparação com os valores obti dos no líquido ascíti co e cálculos de seus gradientes.

A ultrassonografi a (USG) e a Tomografi a Computado-rizada (TC) são reservadas aos casos de dúvida diagnós-ti ca ou para investi gação da doença de base (Figura 5). A laparoscopia é indicada na suspeita de neoplasia maligna e tuberculose, com exames de punção negati vos, pois é o exame de maior acurácia para o diagnósti co de doenças peritoneais.

Figura 5 - USG abdominal revelando ascite

8. Tratamento da asciteO tratamento da ascite depende de sua eti ologia, não

tendo boa resposta o tratamento preconizado para cirróti -cos e para carcinomatose peritoneal. Os pacientes com der-rames cavitários devem ter o tratamento cirúrgico dirigido à víscera acometi da, e os indivíduos com doenças sistêmicas, como a tuberculose e o ICC, devem receber tratamento clí-nico para a doença de base.

O tratamento adequado da ascite não aumenta a so-brevida do paciente cirróti co, mas melhora a sua qualidade de vida (Figura 6). Devido à retenção de sódio e água que acontece em casos como esse, o aspecto fundamental do tratamento é o balanço negati vo de sódio. A dieta deve ser hipossódica, e a quanti dade de líquidos ingeridos, normal. Deve-se notar que, apesar de hiponatrêmicos, os pacien-tes com ascite têm quanti dade total de sódio elevada, e só deve ser feita a restrição de água livre se o nível sérico de sódio está <120mEq/L. O repouso deve ser reservado àque-les com ascite refratária.

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Figura 6 - Tratamento da ascite no cirróti co

O uso de diuréti cos deve ser moderado e está proscrito aos pacientes com comprometi mento da função renal. O objeti vo é uma perda de 0,5 a 1L/dia. Os diuréti cos pou-padores do potássio, antagonistas da aldosterona, são a escolha inicial, já que a reabsorção de sódio e água no tú-bulo distal causada pela maior ati vidade da aldosterona é um dos principais eventos na retenção de água e sódio no paciente cirróti co. A dose inicial costuma ser de 100mg de espironolactona pela manhã e pode ser aumentada para até 400mg ao dia. A espironolactona pode ser aumentada em até 400mg, a cada 3 a 5 dias de acordo com a resposta diuréti ca e a dosagem do potássio. De acordo com a reco-mendação, quando usada a combinação de diuréti cos de alça e a espironolactona, devem-se usá-los à proporção de 40mg de furosemida combinados com 100mg de espiro-nolactona, com dose máxima de 160mg da 1ª e 400mg da 2ª. Dez a 20% dos pacientes desenvolvem ascite refratária, com ausência de resposta a diuréti cos ou complicações do uso de diuréti co, como insufi ciência renal e hipercalemia. Então, devem-se considerar tratamentos alternati vos como a paracentese de alívio.

Há autores que recomendam a excreção urinária de só-dio para determinar a efi cácia da terapia diuréti ca (e para monitorar o cumprimento com restrição de sódio). Se a excreção urinária de sódio é mais de 30mEq/dia, a espi-ronolactona só pode ser uti lizada para o tratamento. No entanto, se está entre 10 e 30mEq/dia, uma combinação de espironolactona e furosemida é normalmente exigida. E se a mesma excreção é inferior a 10mEq/dia, é geralmen-te exigida a paracentese de grande volume, além da espiro-nolactona e da furosemida.

A paracentese aliviadora só é indicada, portanto, aos ca-sos refratários ao uso de diuréti cos e às restrições respirató-rias agudas. Menos de 5% dos pacientes não respondem à restrição dietéti ca de sódio combinada ao uso de diuréti cos. Durante as paracenteses, deve-se realizar a infusão conco-mitante de albumina para prevenir a depleção volêmica e melhorar o fl uxo renal. Paracenteses volumosas repeti das podem levar à depleção proteica dos pacientes, já previa-mente desnutridos. Nos indivíduos em quem são reti rados menos de 5L de líquido ascíti co, estudos não demonstraram prejuízo com a não reposição de albumina, mas, naqueles com reti rada maior que 5L, devem-se repor 8g de albumina para cada litro de ascite reti rado (importante: 8g para cada litro reti rado e não para cada litro acima de 5L reti rado).

A descompressão portal com TIPS é uma alternati va aos casos que não respondem ao tratamento clínico, tendo uma resposta sati sfatória acima de 80% das vezes. Funciona como uma ponte para o transplante hepáti co e trata ou-tras graves complicações da cirrose hepáti ca, como a hiper-tensão portal. É contraindicada aos casos de encefalopati a hepáti ca, pois esse procedimento aumenta o risco para tal complicação.

O tratamento cirúrgico para a ascite, com as derivações peritoneovenosas, como a de LeVeen, popularizadas na dé-cada de 1970, está caindo em desuso pelos altos índices de complicações, como infecção e obstrução dos cateteres em longo prazo. Devem ser uti lizados apenas entre os pacien-tes não candidatos ao transplante hepáti co.

A - Peritonite bacteriana espontânea

Esta é uma condição clínica na qual o líquido ascíti co previamente existente é infectado por bactérias do próprio organismo, sem perfuração de víscera ou contaminação di-reta. A condição imprescindível para a sua instalação é a presença de ascite.

Acredita-se que a Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) ocorra secundariamente à translocação de bactérias intesti nais, num líquido ascíti co com pouco conteúdo pro-teico e baixo poder bactericida e de opsonização. A diminui-ção da função reti culoendotelial encontrada nos cirróti cos e a possibilidade de episódios de bacteremia também pare-cem estar envolvidas no processo patogênico. Os pacientes de alto risco são aqueles com gradiente de proteína do lí-quido ascíti co/proteína plasmáti ca <1g/dL ou com níveis de proteína total no líquido ascíti co.

Clinicamente, deve-se suspeitar da PBE em todo doen-te ascíti co com dor abdominal e febre. De modo geral, seu diagnósti co é feito pela paracentese, pois o quadro clínico é variável. Classicamente, descreve-se como um quadro de dor abdominal insidiosa e progressiva, difusa, mal caracte-rizada, em um indivíduo com ascite. Mas pode ser assin-tomáti ca, oligossintomáti ca ou marcada por um quadro de confusão mental (por encefalopati a hepáti ca ou mesmo uremia). Sua pesquisa deve ser feita em todos os casos de piora clínica de pacientes cirróti cos e caracteriza-se por cul-

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tura monomicrobiana e contagem de polimorfonucleares (PMN) >250 células/mL, ou ausência de patógeno isolado com contagem de PMN >500 células/mL.

Os patógenos mais comuns são E. coli, pneumococo e Klebsiella. Há algumas situações clínicas em que os critérios não se encaixam no diagnósti co de PBE, porém há altera-ções na cultura ou na contagem de células brancas, caracte-rizando, assim, alguns diagnósti cos diferenciais (Tabela 4). É importante ressaltar que esses achados podem representar o início de um quadro infeccioso ou um exame falso nega-ti vo, por isso deve ser insti tuída a terapia anti microbiana.

Tabela 4 - Diagnósti cos diferenciais da ascite de acordo com a con-tagem de células e a presença de bactérias no líquido

Classifi cação das ascites com base na paracentese

ClasseLíquido

RecomendaçõesPMN

Cultura do líquido

Ascite estéril≤250 célu-las/mm3 Negativa

Tratar conforme descrito abaixo

Ascite neutro-fílica

≥250 célu-las/mm3 Negativa Tratar como PBE

Bacteriascite≤250 célu-las/mm3

Positiva para 1 germe

Repetir paracen-tese

Peritonite bacteriana espontânea

≥250 célu-las/mm3

Positiva para 1 germe

Tratar conforme descrito abaixo

Peritonite bacteriana secundária

≥250 célu-las/mm3

Positi va para >1 germe

Avaliação cirúrgica

Outro diagnósti co diferencial é com a peritonite secun-dária, na qual há outra causa para a infecção do líquido as-cíti co, como processos intraperitoneais (apendicite, diver-ti culite) ou contaminação externa (ex.: hérnias umbilicais perfuradas), sendo a cultura polimi crobiana, o gradiente proteico LA/soro >1, DHL LA >soro e glicose LA <50mg/dL.

O tratamento da PBE é efetuado por meio de cefalos-porina de 3ª geração, sendo a cefotaxima, na dose de 2 a 4g/dia, a 1ª escolha. O controle é feito pela paracentese em 48h, para averiguação da resposta à terapia, que pode ser suspensa após 5 dias, em caso de queda dos neutrófi los abaixo de 250 células/mL. Trata-se de uma situação grave, com alta mortalidade e recidiva em torno de 70% em 1 ano. Todos os pacientes devem ser encaminhados a um serviço de transplante hepáti co. As melhores evidências atuais su-gerem o início de uma cefalosporina de 3ª geração (a droga testada foi a cefotaxima) associada a albumina humana, IV, 1,5g/kg no 1º dia de tratamento e 1g/kg no 3º dia para pro-mover diminuição de mortalidade.

A sua profi laxia (Tabela 5) está indicada após o 1º episó-dio e aos casos de risco, como hepatopatas descompensa-dos, com Hemorragia Digesti va Alta (HDA) e mesmo antes

do 1º episódio em pacientes com dosagem de proteínas to-tais no LA <1mg/dL. A droga de escolha para a profi laxia é o norfl oxacino, 400mg/dia. Aos pacientes sem possibilidade para a administração de anti bióti cos por via oral, como os com HDA, deve ser prescrito ciprofl oxacino, 500mg, 1x/dia.

Tabela 5 - Indicações de profi laxia de PBE

- Passado de PBE;

- Proteínas totais do líquido ascíti co <1mg/dL;

- Descompensação hepáti ca (uso transitório) com HDA, encefa-lopati a ou síndrome hepatorrenal.

B - Encefalopati a hepáti ca

Ocorre em pacientes com insufi ciência hepáti ca ou shunt portossistêmico e manifesta-se clinicamente por meio de alterações neuropsíquicas como défi cits de me-mória e atenção, deterioração neuropsíquica, alteração da personalidade, alterações no nível de consciência, variando da sonolência ao coma, e alterações motoras. Cerca de 97% dos pacientes são cirróti cos. O adejo (asterix ou fl apping) e o hálito hepáti co (50% dos casos) são as 2 manifestações clínicas mais específi cas da síndrome.

A eti opatogenia ainda é discuti da, mas se sabe que o fí gado normal protege o organismo de metabólitos e de to-xinas bacterianas intesti nais que caem na circulação portal. Nos cirróti cos, essas substâncias caem na circulação devido à defi ciência em sua depuração e à presença de anastomo-ses portossistêmicas espontâneas, levando às alterações neurológicas citadas. Há várias teorias para a patogênese dos sintomas, como o acúmulo de amônia, a presença de falsos neurotransmissores, o sinergismo de neurotoxinas e alterações no próprio metabolismo cerebral. Clinicamente, é classifi cada em 4 estágios:

1 - Discretas alterações do sono e da atenção.2 - Sonolência, alterações de memória e asterix.3 - Confusão mental, delírio, inconti nência, asterix e re-

fl exos anormais. 4 - Coma hepáti co.

Os fatores desencadeadores mais comuns são depleção volêmica (uso de diuréti cos e desidratação), HDA, infec-ções, uso de benzodiazepínicos, consti pação e todas as for-mas de descompensação de um paciente cirróti co. Deve-se ter todo o cuidado com a manutenção da via aérea pérvia, já que, pelo rebaixamento do nível de consciência, se pode ter insufi ciência respiratória e mesmo broncoaspiração de alimentos, material de refl uxo ou corpos estranhos (próte-ses dentárias).

Nesses casos, deve-se ter extremo cuidado com a die-ta, pois o jejum prolongado piora a encefalopati a (cetose) e predispõe a translocação bacteriana.

O tratamento, inicialmente, baseia-se na reti rada do fa-tor desencadeante. A dieta deve ser hipoproteica nos episó-dios agudos. A reintrodução de proteínas deve ser gradual, dando-se preferência às proteínas vegetais e aminoácidos de cadeia ramifi cada.

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Na encefalopati a, indica-se a lactulona, um dissacarídeo sintéti co não absorvível que será metabolizado pela fl ora intesti nal e acabará acidifi cando esse meio, levando a con-versão da amônia em íon amônio que não é absorvido. Essa acidifi cação modifi ca a fl ora, diminuindo aqueles agentes que sinteti zam amônia. Além disso, a lactulona age como catárti co, levando à correção da consti pação e aumentando o trânsito intesti nal (eliminando mais amônia). Como laxan-te, a meta é ati ngir de 2 a 3 evacuações pastosas, o ideal para evitar a desidratação e garanti r a eliminação das toxi-nas. Por via oral ou sonda nasogástrica, a dose inicial é de 20 a 30mL, 4 a 6x/dia ou até mesmo a cada hora, até ati ngir essa meta de evacuações. Se necessário, pode ser feito em enema, na dose de 300mL+ SF a 0,9% (700mL), 4 a 6x/dia.

Alguns autores preconizam a uti lização de L-Orniti na-L-Aspartato (LOLA), cujo mecanismo principal é a maior de-puração hepáti ca ou muscular de amônia. As vias de admi-nistração são oral, sonda nasoenteral (sachets) ou intrave-nosa (ampola). Quando à posologia: na apresentação oral, 3 a 6g/dia, e de até 20g/dia na apresentação intravenosa, não excedendo a velocidade de infusão de 5g/h.

Os objeti vos dos medicamentos dirigidos aos intesti nos são reduzir o substrato amoniogênico intesti nal, inibindo a produção de amônia e/ou reduzindo sua absorção e au-mentando sua eliminação. O sulfato de neomicina e poste-riormente outros anti bióti cos orais pouco absorvíveis pas-saram a ser uti lizados na práti ca clínica, com a intenção de esterilizar os cólons, impedindo a formação de amônia e/ou produtos nitrogenados, tendo sido o tratamento padrão da encefalopati a hepáti ca por décadas. Cápsulas com sulfato de neomicina (500mg) podem ser encontradas em farmá-cias de manipulação. A dose indicada é de 4 a 6g/dia, ou seja, 1g VO a cada 4 ou 6 horas, durante o episódio de ence-falopati a. Assim que o paciente melhora, a dose deve ser di-minuída gradati vamente, 2g a cada 2 dias até sua completa reti rada. Recentemente, o uso do anti bióti co rifaximina, as-sociado a remissão melhorada, reduziu a internação para a encefalopati a hepáti ca. A medicação foi usada na dose de 550mg, 2x/dia, e 90% dos pacientes faziam uso concomi-tante de lactulose.

O uso de anti bióti cos está indicado para a prevenção de PBE, de acordo com os protocolos da CCIH do serviço. O uso de benzodiazepínicos é proscrito a esses pacientes.

Apesar de ser geralmente reversível, a sobrevida em 1 ano é de apenas 40% após o 1º episódio de encefalopa-ti a. Assim, todos os pacientes com encefalopati a hepáti ca devem ser encaminhados a um serviço de transplante de fí gado.

C - Síndrome hepatorrenal

A síndrome hepatorrenal é uma situação clínica em que ocorrem insufi ciência renal e alterações da circulação ar-terial com vasoconstrição renal em pacientes com cirrose

avançada. Denota grave disfunção orgânica, indicando mau prognósti co, com mortalidade em poucas semanas para a maioria. Poucos respondem à terapia implementada, e a prevenção com monitorização constante da função renal em cirróti cos é a principal medida efeti va.

Essa condição decorre de uma alteração funcional renal em que nenhuma alteração morfológica é encontrada, sen-do totalmente reversível após o transplante hepáti co. Pode ocorrer depois de episódios de depleção volêmica, ou com o uso de medicações que causem vasoconstrição arterial renal, mas, na maioria das vezes, não há fator eti ológico defi nido. Como nos casos de cirrose avançada, há grande vasodilatação esplâncnica e vasoconstrição dos principais leitos arteriais, incluindo as artérias renais. Com o avanço da doença, há piora progressiva do fl uxo renal. Num círcu-lo vicioso, mecanismos intrínsecos do próprio rim acabam acentuando a vasoconstrição renal, explicando a rápida de-terioração clínica dos pacientes.

Labora torialmente, mostra progressiva perda de função renal (com padrão pré-renal, Na urinário <10mEq/L e fração de excreção de Na <1%) e distúrbios metabólicos (hipona-tremia, hipercalemia acidose metabólica). Não é possível a identi fi cação de causas pré ou pós-renais de insufi ciência renal aguda. Apresentando, caracteristi camente, a biópsia renal pouco esclarecedora, já que, provavelmente, a causa é um acúmulo de vasoconstritores intrarrenais que impede a resposta do rim ao estí mulo hídrico.

Do ponto de vista evoluti vo, essa condição é classifi cada em 2 ti pos. O ti po I pode evoluir de modo agudo em dias a semanas, e no ti po II o quadro é mais arrastado, em sema-nas a meses.

O ti po I apresenta-se com insufi ciência renal que pro-gride em dias a semanas, marcado por um clearance de creati nina reduzido (habitualmente menor que 20mL/min e creati nina sérica ≥2,5mg/dL) com diminuição do volume urinário.

O ti po II apresenta-se com insufi ciência renal que pro-gride em semanas a meses, da mesma forma marcado por um clearance de creati nina reduzido (habitualmente menor que 40mL/min e creati nina sérica ≥1,5mg/dL) com diminui-ção do volume urinário. Apresenta melhor prognósti co.

Para o diagnósti co de síndrome hepatorrenal, impõem--se alguns critérios diagnósti cos. Os critérios maiores são obrigatórios, pois defi nem a situação clínica de um indiví-duo com insufi ciência hepáti ca que evolui com insufi ciência renal sem causa pré-renal, pós-renal ou mesmo parenqui-matosa (que não a hemodinâmica renal). Os critérios me-nores geralmente estão presentes, pois são confi rmatórios da integridade glomerular e tubulointersti cial renal e con-sequências da ati vação neuroendócrina. Esses critérios são corroborados pelo fato de que o rim de um indivíduo com SHR evolui com melhora funcional quando transplantado em outro com fí gado normal.

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Tabela 6 - Critérios maiores para diagnósti co da síndrome hepa-torrenal

1 - Insufi ciência hepáti ca aguda ou crônica (marcada por hiper-tensão portal).

2 - Creati nina sérica >1,5mg/dL e clearance de creati nina <40mL/min.

3 - Ausência de melhora sustentada na função renal após prova de volume.

4 - Proteinúria <0,5g/dia.

5 - Ultrassonografi a renal normal.

6 - Ausência de infecção, hemorragia digesti va, desidratação, uso de drogas nefrotóxicas (atual ou até 2 semanas antes).

Tabela 7 - Critérios menores para diagnósti co da síndrome hepa-torrenal

1 - Volume urinário <500mL/dia.

2 - Na urinário <10mEq/L.

3 - Osmolalidade urinária >osmolalidade sérica.

4 - Urina I com <50 hemácias/campo.

5 - Na sérico <130mEq/L.

O tratamento mais efeti vo é o transplante de fí gado, pois é o único que corrige defi niti vamente as alterações hemodi-nâmicas que causam a síndrome hepatorrenal. Entretanto, as medidas clínicas uti lizadas com maior sucesso antes do transplante são correção da hipovolemia, infusão de albu-mina e uso de análogos da somatostati na vasoconstritores esplâncnicos, como a terlipressina.

D - Síndrome hepatopulmonar

A queixa de dispneia não é tão rara em pacientes com cirrose hepáti ca, seja por restrição secundária à ascite, seja por intercorrências infecciosas (comuns, e graves). Mas há uma condição marcada pela queixa de plati pneia, ou orto-deoxia, que é a piora da dispneia com a ortostase, progres-siva e contí nua, que está relacionada, na realidade, à pro-gressão da cirrose hepáti ca: a síndrome hepatopulmonar.

É uma condição de hipoxemia em um paciente com cir-rose hepáti ca, causada por distúrbio V/Q, provavelmente, pelo acúmulo de vasodilatadores na circulação pulmonar (decorrente na abertura de shunts portossistêmicos).

O distúrbio V/Q pode variar desde apenas 1 atelectasia passiva por ascite e piorada pela vasodilatação que diminui o espaço dos sacos alveolares (V/Q <1), até shunts arterio-venosos (V/Q = 0).

Essa condição marca gravidade, mas geralmente as cau-sas de óbito são não pulmonares, como sepse ou hemor-ragia digesti va. Essa hipoxemia, não necessariamente, se corrige com o transplante de fí gado.

E - Outras complicações

Inúmeras outras complicações ocorrem nos pacientes cirróti cos, como:

-Alterações hematológicas (pancitopenia e diátese he-morrágica);

-Susceti bilidade à infecção; -Aumento da biodisponibilidade de drogas; -Hipertensão pulmonar; -Hidrotórax; -Prurido intratável.

9. Tratamento O tratamento dos pacientes cirróti cos baseia-se, ini-

cialmente, na correção do fator eti ológico, quando possí-vel, como abstenção de álcool, tratamento adequado das hepati tes virais e suspensão de drogas hepatotóxicas. Eles devem ter suas sorologias para hepati tes virais verifi cadas, caso não tenham sido expostos devem ser vacinados, em especial contra hepati tes A e B (pelo maior risco de hepati te grave) e anti pneumocócica.

Os bem compensados clinicamente devem ser monito-rizados frequentemente quanto a possíveis complicações, como o hepatocarcinoma (USG e alfa-fetoproteína), a cada 6 meses, hipertensão portal (EDA e USG Doppler) e disfun-ção renal. Também devem evitar todo ti po de agressão hepáti ca, abstendo-se de bebidas alcoólicas e de drogas e substâncias sabidamente hepatotóxicas. A dieta deve ser hipercalórica, hipoproteica e rica em vitaminas, como o áci-do fólico.

Os pacientes com complicações da cirrose devem seguir tratamento específi co discuti do em cada tópico, lembran-do-se que os indivíduos com cirrose avançada ou complica-ções prévias como HDA, PBE e síndrome hepatorrenal têm, como único tratamento defi niti vo, o transplante hepáti co.

10. ResumoQuadro-resumo

- A cirrose é uma alteração crônica, progressiva e irreversível;

- Entre as complicações mais graves, estão a PBE, a encefalopati a hepáti ca e a síndrome hepatorrenal. A presença de qualquer uma dessas condições indica a necessidade de encaminhar para a lista de transplante hepáti co.

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Síndrome da hipertensão portal

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Pontos essenciais -Fisiopatologia da hipertensão portal; -Tipos de cirurgias; -Condutas no cirróti co e no esquistossomóti co.

1. IntroduçãoO sistema venoso portal recebe o sangue proveniente

da maior parte das vísceras abdominais e deságua no fí ga-

CAPÍTULO

1010do, onde se encerra nos sinusoides hepáti cos. É responsá-vel por 75% do fl uxo hepáti co, enquanto os 25% restantes são supridos pela artéria hepáti ca. A veia porta tem calibre de 0,8cm e é formada pela junção das veias mesentérica superior e esplênica, que recebe o sangue proveniente da veia mesentérica inferior (Figura 1). Todo o sistema veno-so portal é desprovido de válvulas, fator importante para a compreensão de que toda a pressão no sistema porta é prati camente igual, tendo como uma das consequências a presença de circulação colateral.

Figura 1 - Sistema porta

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Os principais componentes levados pelo fl uxo portal são nutrientes e outras substâncias hepatotrófi cas, vitais para a boa manutenção da função hepáti ca, além de toxinas e produtos bacterianos intesti nais que serão metabolizados pelo fí gado antes de ati ngirem a circulação sistêmica.

A pressão normal no sistema portal varia de 10 a 15cm de água. Considera-se Hipertensão Portal (HP) quando há elevação acima desse nível ou quando a pressão oclu-ída da veia hepáti ca é maior que 4mmHg. Também pode ser defi nida como a presença de um gradiente pressórico entre a pressão portal e a pressão venosa central maior que 5mmHg. As varizes de esôfago começam a formar-se quando esse gradiente é maior que 8 a 10mmHg, e o ris-co de sangramento é iminente se o gradiente é maior que 12mmHg.

A HP clinicamente signifi cati va só é caracterizada por aumento no gradiente de pressão portal de ao menos 10mmHg, na presença de varizes de esôfago ou ascite.

2. Eti ologiaEnquanto, nos países desenvolvidos, a cirrose hepáti ca

é a principal causa de HP, no Brasil, essa doença é causa-da, principalmente, pela esquistossomose mansônica em sua forma hepatoesplênica. Devido à preservação das de-mais funções hepáti cas na esquistossomose, seu enfoque de tratamento é diferente do uti lizado nos casos de cirrose hepáti ca.

As causas de HP podem ser divididas em pré-hepáti cas, intra-hepáti cas e pós-hepáti cas, ou, mais modernamente, em pré-sinusoidais, sinusoidais e pós-sinusoidais (Tabela 1). Quanto mais proximal o ponto de obstrução, mais preser-vada está a função hepáti ca; quanto mais distal, maior é a ascite. A HP também pode ser decorrente do aumento do

fl uxo sanguíneo, como nos casos de fí stulas arteriovenosas e nas grandes esplenectomias.

Tabela 1 - Principais causas de hipertensão portal

Causa de HP Exemplo

Pré-hepáti ca- Trombose de veia porta, trombose da veia

esplênica.

Intra-hepáti ca

Pré-sinusoidal

Sinusoidal

Pós-sinusoidal

- Esquistossomose;

- Cirrose hepáti ca;

- Síndrome de Budd-Chiari.

Pós-hepáti ca - Insufi ciência cardíaca congesti va.

3. FisiopatologiaNos casos de hepatopati a crônica, como na esquistosso-

mose e na cirrose, além do obstáculo mecânico ocasionado pela fi brose, há hiperfl uxo portal e vasoconstrição refl exa, acentuando a HP. Há circulação hiperdinâmica com vasodi-latação periférica e esplâncnica, além de queda da pressão arterial média basal. Esses fenômenos parecem ser media-dos pela liberação de substâncias vasodilatadoras, como o óxido nítrico. Acredita-se que essa parte reversível seja responsável por até 30% da HP. A esplenomegalia, predo-minante na esquistossomose, pode ser responsável por até 1/3 do fl uxo portal, contribuindo relevantemente para a gê-nese de HP.

Inicialmente, há um desvio do fl uxo excedente para o sistema ázigo por meio da veia gástrica esquerda e dos va-sos breves. Com a conti nuação do processo e a elevação do gradiente pressórico portossistêmico acima de 10mmHg, começam a formar-se nessas veias, respecti vamente, as va-rizes esofágicas e do fundo gástrico (Figura 2).

Figura 2 - Alguns dos mecanismos envolvidos na fi siopatologia da hipertensão portal

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4. Quadro clínicoAs manifestações clínicas da HP resultam de mecanis-

mos que podem agir de forma isolada ou mutuamente: a formação de circulação colateral portossistêmica, espleno-megalia congesti va, encefalopati a ou ascite. Como ence-falopati a hepáti ca e ascite estão discuti das em capítulo à parte, será dado maior enfoque à circulação colateral e à esplenomegalia congesti va.

A formação de vasos colaterais é a principal caracterís-ti ca da HP. Conforme citado, a ausência de válvulas do sis-tema faz que a pressão seja transmiti da em todo o sistema. Há recanalização dos vasos umbilicais, varizes retais nos plexos hemorroidários, varizes de esôfago e de estômago, além de derivações retroperitoniais espontâneas. Na região periumbilical, pode-se identi fi car a caput medusae, e o fl u-xo sanguíneo se faz a parti r do umbigo para o restante da parede do abdome.

Quanto à gastroenteropati a hipertensiva, a HP pode acompanhar-se de alterações na microcirculação, em qual-quer parte do trato gastrintesti nal. No estômago, podem ser observados vasos dilatados, edema e espessamento muscularis mucosae, comunicações arteriovenosa na sub-mucosa, mas sem signifi cati vo infi ltrado infl amatório. Essas alterações compõem o que se denomina gastropati a hiper-tensiva. A manifestação mais importante é o sangramento digesti vo.

O sangramento retal por varizes também pode ser en-contrado, entretanto a hemorragia digesti va secundária à ruptura de varizes esofágicas e gástricas ou à gastropa-ti a congesti va, exteriorizada por hematêmese, melena ou anemia, é a apresentação clínica principal e mais temida. Somente 1/3 dos pacientes com varizes gastresofágicas apresenta sangramento por elas, mas, após o 1º episódio, a recor rência se dá em torno de 70% das vezes. Nos cirróti -cos, a hemorragia digesti va alta é secundária à ruptura de varizes em 50% dos casos, seguida da úlcera gástrica (30%) e de úlceras duodenais (9%). Dessa maneira, deve-se solici-tar a endoscopia digesti va alta para confi rmação da origem do sangramento em todos os pacientes, mesmo nos hepa-topatas.

A esplenomegalia é encontrada em 80% dos pacientes com HP. Geralmente é indolor, exceto nos quadros de infar-to esplênico e de trombose de veia porta. Não foi observa-da correlação entre o tamanho do baço e o grau de HP. A esplenomegalia pode ser responsável por manifestações de desconforto abdominal, dor no quadrante superior esquer-do do abdome, além de aumentar o risco de rompimento do órgão após trauma.

A hipertensão sinusoidal esplênica pode ser responsá-vel por trombocitopenia, leucopenia, anemia hemolíti ca ou pancitopenia. Nos esquistossomóti cos, a esplenomegalia é maior, possivelmente devido ao mecanismo imunológi-co associado. As diversas citopenias também podem ser secundárias a um hiperesplenismo, e a plaquetopenia é a característi ca mais marcante dessa condição.

5. Diagnósti coA avaliação dos casos de HP envolve o diagnósti co da

causa, da presença de varizes gastresofágicas e da presen-ça de shunts e o estudo detalhado da circulação portal nos casos que necessitam de intervenção, por meio de ultras-sonografi a com Doppler e/ou arteriografi a. A pesquisa de complicações sistêmicas, como a hipertensão pulmonar, também é realizada roti neiramente, de forma indireta, por intermédio de ecocardiograma.

Em nosso meio, é primordial a diferenciação entre a hi-pertensão de eti ologia esquistossomóti ca e a cirróti ca, pois o tratamento é essencialmente diferente.

6. Tratamento

A - Hipertensão portal no paciente esquistosso-móti co

A principal diferença entre o paciente cirróti co e o es-quistossomóti co é que o últi mo tem função hepatocelular preservada, sem apresentar as complicações de ascite, en-cefalopati a e peritonite bacteriana espontânea, nem coagu-lopati a importante. Assim, a principal ameaça à sua vida é a hemorragia digesti va por HP. Dessa forma, o tratamento cirúrgico é indicado a todos os esquistossomóti cos após o 1º episódio de sangramento. Basicamente, há 2 ti pos de ci-rurgia: as derivações e as desconexões.

As derivações ou shunts são aquelas em que o fl uxo portal é desviado para a circulação sistêmica, com o intui-to de reduzir a HP. Há as derivações não seleti vas, como a portocava e a mesentérico-cava, não uti lizadas nos pacien-tes esquistossomóti cos devido ao grande desvio do fl uxo portal, com hipotrofi a hepáti ca posterior e encefalopati a. Atualmente, alguns autores preconizam a operação de Warren, que é a derivação seleti va esquerda com anasto-mose esplenorrenal distal (Figura 3). Apresenta índice mais baixo de ressangramento, mas acarreta algum grau de en-cefalopati a hepáti ca, é contraindicada aos casos de hiper-tensão pulmonar, e deve haver total erradicação do parasita previamente à sua realização. Essa modalidade terapêuti ca se destaca pelos seus menores índices de encefalopati a e pela preservação de maior fl uxo portal em relação às anas-tomoses que promovem passagem direta do sangue portal à circulação sistêmica, como a portocava, a esplenorrenal clássica pós-esplenectomia e a mesentérico-cava.

As desconexões ázigo-portais são operações em que se tentam separar as comunicações entre o sistema portal e o sistema cava, diminuindo a chance de hemorragia, sem redu-zir o aporte hepáti co de fatores portais hepatotrófi cos. Nelas, geralmente se associa a esplenectomia com o objeti vo de di-minuir o fl uxo e a pressão portal, assim como os sintomas de-correntes do hiperesplenismo. As Desconexões Ázigo-Portais com Esplenectomia (DAPE) são as mais realizadas em nosso meio, apesar de algumas variações técnicas.

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Figura 3 - Anastomose esplenorrenal distal (operação de Warren): (A) visão esquemáti ca e (B) aspecto intraoperatório

B - Hipertensão portal no paciente cirróti co

Entre pacientes cirróti cos com HP, o objeti vo do trata-mento é evitar a hemorragia digesti va, de alta morbimorta-lidade, responsável por 1/3 dos casos de óbito nesse grupo. Aos indivíduos com varizes de esôfago, indica-se a profi laxia primária com beta-bloqueadores que diminuem o estado hiperdinâmico, o fl uxo portal e o diâmetro das varizes eso-fágicas, reduzindo, objeti vamente, o sangramento por vari-zes de esôfago.

Os cirróti cos devem ser submeti dos a rastreamento vi-sando à presença de varizes esofágicas, a cada 2 a 3 anos, se não há varizes no 1º exame, e a cada 1 a 2 anos, se são de pequeno calibre, porque, sem red spots, teriam chance menor que 10% de sangramento em um período de 2 anos.

A ligadura endoscópica só é indicada aos pacientes que

nunca sangraram, se há indícios endoscópicos de alto risco

de ruptura como red spots e varizes de grosso calibre, ou

aos pacientes que não toleram o uso de beta-bloqueadores. Na profi laxia primária, ou seja, aos pacientes com cirrose

hepáti ca e varizes esofágicas que nunca sangraram, indica-

-se, àqueles que possuem varizes (pequeno, médio ou gran-

de calibre, descritos como F1, F2 e F3 na classifi cação de

Beppu), o uso de beta-bloqueadores não seleti vos (propra-

nolol ou nadolol) ou ligadura elásti ca das varizes. Nunca es-

cleroterapia, pois nesse caso específi co mostrou aumentar

a mortalidade. Em pacientes intolerantes ou contraindica-

ção a beta-bloqueadores não seleti vos, a ligadura endoscó-

pica também deve ser uti lizada. Aos indivíduos sem varizes,

indica-se apenas endoscopia a cada 1 a 2 anos.Os pacientes que já apresentaram hemorragia digesti va

alta devem ser encaminhados a um serviço de transplante hepáti co, pois esse é o único tratamento efeti vo, e a morta-lidade é elevada nos ressangramentos.

Tabela 2 - Abordagem inicial do paciente com hemorragia diges-ti va alta varicosa

Tópico I

Recomendações:1 - O manejo do paciente com HDAV deve ser conduzido prefe-rencialmente em unidade de terapia intensiva.2 - A ressuscitação volêmica deve ser criteriosa, mantendo hipo-volemia relati va, almejando níveis de PAS entre 90 a 100mmHg e frequência cardíaca menor que 100bpm.3 - A proteção de via aérea é mandatória em pacientes com dimi-nuição do nível de consciência e hematêmese maciça e naqueles que necessitam uso de balão de Sengstaken-Blakemore. 4 - O uso do balão de Sengstaken-Blakemore deve ser restrito aos casos de hemorragia maciça com instabilidade hemodinâ-mica não responsiva a volume, sendo considerado como ponte para tratamento defi niti vo em no máximo 24 horas.

Tópico II: Indicações e contraindicações do uso de sangue e hemoderivados

Recomendações:1 - Deve-se ter como alvo valores de hemoglobina entre 7 a 9 g/dL em pacientes com Hemorragia Digesti va Alta Varicosa (HDAV) a depender da presença de comorbidades, sangramento ati vo, idade e estado hemodinâmico.

Tópico III: Tratamento farmacológico na urgência. Quais as evidências de efi cácia?

Recomendações:1 - Deve-se iniciar o emprego de vasoconstrictores esplâncnicos o mais precocemente possível em pacientes sob suspeita de he-morragia varicosa, antes mesmo da realização de exame endos-cópico.2 - Podem-se empregar terlipressina, somatostati na ou octreoti -de, devendo-se levar em consideração na escolha desses agentes seu perfi l de efi cácia, tolerabilidade, custo e segurança. Devido ao seu impacto na sobrevida de pacientes com sangramento varicoso, a terlipressina deve ser considerada como agente de escolha, mas seu uso deve ser desaconselhado em pacientes com insufi ciência coronariana, insufi ciência vascular periférica e hipertensão arterial não controlada. Não se deve mais empregar vasopressina associada a nitratos como tratamento farmacológi-co para sangramento varicoso.3 - O uso dessas drogas deve ser estendido por 2 a 5 dias. O seu emprego por 5 dias pode reduzir a frequência de recidiva hemorrágica.

Tópico IV: Tratamento endoscópico na urgência

Recomendações:1 - Deve-se realizar endoscopia digesti va alta idealmente dentro das primeiras 12h de sangramento em todo paciente com HDAV.2 - A proteção de via aérea é recomendada na presença de san-gramento maciço, encefalopati a hepáti ca graus III e IV e insufi ci-ência respiratória.3 - A hemostasia endoscópica com LEVE deve ser realizada em todo paciente com sangramento varicoso, optando-se pela es-cleroterapia apenas nos casos de indisponibilidade ou impossi-bilidade técnica de realização de LEVE.4 - O tratamento combinado farmacológico e endoscópico é superior a cada uma das modalidades terapêuti cas, devendo o tratamento farmacológico preceder o endoscópico.

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Tópico V: Prevenção e manejo das complicações: infecções, encefalopati a hepáti ca e insufi ciência renal

Recomendações:1 - O emprego de anti bioti coprofi laxia deve ser mandatório vi-sando reduzir a frequência de infecções, recorrência de sangra-mento varicoso e mortalidade.2 - Podem-se empregar quinolonas orais (norfl oxacino 400mg 2x/dia) ou cefalosporina de 3ª geração (ceft riaxona 1g/dia IV), sendo recomendado período de tratamento de 7 dias. Pacientes com cirrose avançada e/ou instabilidade hemodinâmica devem ser tratados preferencialmente com ceft riaxona intravenosa. 3 - Com base nas evidências clínicas disponíveis, não se pode recomendar nenhuma medida profi láti ca visando a prevenção de encefalopati a hepáti ca em paciente com HDAV.

Qual a melhor estratégia terapêuti ca para profi laxia secundária?

Recomendações: 1 - A combinação de LEVE com BBNS tem se mostrado a melhor ati tude terapêuti ca para profi laxia secundária de sangramento varicoso em cirróti cos.2 - O uso de BBNS deve ser ajustado à dose máxima tolerada, considerada como a dose imediatamente abaixo daquela capaz de desencadear efeitos colaterais no paciente.3 - Os BBNS devem ser uti lizados de forma contí nua e ininter-rupta, uma vez que a suspensão da droga pode induzir aumento rebote da pressão portal com surgimento de hemorragia.4 - A LEVE é ati tude de 1ª linha na profi laxia secundária do san-gramento digesti vo. A associação de LEVE com escleroterapia não se mostrou mais efi caz do que LEVE isolada.5 - Na falência de profi laxia secundária com terapêuti ca combi-nada, após uso das drogas vasoati vas associadas a tratamento endoscópico, as terapias de resgate mais aceitas são o tampona-mento transitório com balão esofágico, a colocação de TIPS e o tratamento cirúrgico da hipertensão portal na indisponibilidade de TIPS.

O tratamento cirúrgico deve ser evitado antes do trans-plante hepáti co, e, nos casos de hemorragia incontrolável ou ressangramentos, deve-se preferir a derivação portos-sistêmica por radiologia intervencionista por meio do TIPS (Trans-hepati c Intrajugular Portossistemic Shunt) às deriva-ções cirúrgicas portocava ou mesentérico-cava por ter me-nor morbidade e não interferir no procedimento cirúrgico posterior de transplante (Figura 4).

Figura 4 - TIPS

As derivações portossistêmicas são, claramente, o meio mais efi caz de prevenir a hemorragia recidivante em pa-cientes com HP. Entretanto, o desvio do sangue do sistema porta acarreta consequências adversas, como encefalopati a e aceleração da insufi ciência hepáti ca.

Os shunts não seleti vos desviam totalmente o fl uxo e descomprimem de maneira efi caz o sistema porta, contudo as taxas de encefalopati a hepáti ca são altas, e tais procedi-mentos só devem ser realizados em casos de emergência. Já os shunts seleti vos têm, como exemplo clássico, a deriva-ção esplenorrenal distal (cirurgia de Warren) e tendem a se agravar mais que aliviar a ascite, contraindicando tal proce-dimento àqueles com ascite refratária. São úteis a algumas pessoas com cirrose hepáti ca.

Tabela 3 - Diferenças no tratamento da hipertensão portal: cirrose versus esquistossomose

Paciente cirróti coPaciente esquistosso-

móti co

Possibilidade de transplante hepá-ti co.

Ausência de falência hepáti ca.

Tratamento clínico com beta-bloque-adores e tratamento endoscópico.

Tratamento cirúrgico – DAPE ou shunts sele-ti vos.

Presença de outras complicações da hepatopati a.

Manutenção da função hepáti ca.

7. ResumoQuadro-resumo

- Uma das complicações mais graves da HP é a hemorragia di-gesti va alta por varizes de esôfago. Essa condição indica a ne-cessidade de encaminhar o paciente para a lista de transplante hepáti co;

- O tratamento é diferente para esquistossomóti cos (derivações ou desconexões) e cirróti cos (transplante hepáti co).

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Icterícia obstruti va

José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Pontos essenciais -Quadro clínico; -Perfi l bioquímico da icterícia obstruti va; -Avaliação por exames de imagem.

1. IntroduçãoA icterícia consiste na aparência amarelada da pele,

mucosas e secreções orgânicas decorrentes da hiperbilirru-binemia. Para que haja essa síndrome, são necessários va-lores de bilirrubina sérica superiores a 2mg/dL. O acúmulo de bilirrubina leva à síndrome clínica facilmente percebida no exame fí sico, porém, às vezes, de difí cil avaliação eti oló-gica. Neste capítulo, será discuti da a investi gação clínica do paciente ictérico, com ênfase nos casos de conduta poten-cialmente cirúrgica.

2. Metabolismo da bilirrubina

Figura 1 - Metabolismo da bilirrubina

A bilirrubina é originária da degradação do heme após a hemólise realizada nas células do retí culo endotelial (baço, medula óssea e fí gado). Oitenta por cento do radical heme são derivados da hemoglobina, e o restante, de outras he-meproteínas. A hemoglobina decompõe-se em globina e heme. O ferro proveniente do heme é reaproveitado, e a

CAPÍTULO

1111protoporfi rina é transportada em biliverdina e posterior-mente em bilirrubina não conjugada. Tal bilirrubina pro-duzida é lipossolúvel e não se dissolve no plasma, sendo transportada ligada à albumina.

Na circulação, é captada pelo fí gado, onde é conjuga-da ao ácido glucurônico pela ação da glucuroniltransfera-se, tornando-se hidrossolúvel e atóxica. A bilirrubina assim esterifi cada é excretada nos canalículos biliares e vai até o intesti no, onde parte dela é metabolizada e excretada nas fezes como estercobilinogênio e parte reabsorvida e elimi-nada pelos rins, pigmentando a urina.

Assim, há 2 ti pos de bilirrubina no plasma: o diglucuro-nato de bilirrubina, chamado bilirrubina direta, hidrossolú-vel, e a bilirrubina ligada às proteínas, chamada bilirrubina indireta, lipossolúvel. É importante lembrar que a bilirrubi-na direta pode ser excretada tanto na bile quanto na urina e é atóxica, enquanto a bilirrubina indireta não pode ser excretada em nenhuma das 2 formas e é tóxica, podendo levar ao kernicterus. Assim, pode-se compreender que, quando há apenas hiperbilirrubinemia indireta, não há co-lúria ou hipocolia fecal. Já nos casos de hiperbilirrubinemia direta, encontram-se as 2 manifestações.

O nível de bilirrubina superior a 20mg/dL é raro em pa-cientes com hepati te viral aguda, com pouca frequência em pacientes com cirrose, e também raro em pacientes com icterícia obstruti va devido a uma pedra de ducto ou câncer de pâncreas. Os maiores níveis de bilirrubina são vistos em cirrose com acompanhamento de oligúria com insufi ciência hepáti ca (síndrome hepatorrenal). A razão é que, se hou-ver obstrução extra-hepáti ca, a concentração de bilirrubina subirá para cerca de 15mg/dL, mas o mecanismo compen-satório é renal e o excesso de bilirrubina será excretado, re-sultando em bilirrubinúria. Na insufi ciência hepáti ca oligúri-ca, esse mecanismo é perdido, o que explica maiores níveis séricos de bilirrubina vistos na doença hepáti ca avançada, com cirrose e síndrome hepatorrenal.

3. Causas de icteríciaConhecendo as bases do metabolismo da bilirrubina,

podem-se identi fi car as principais causas de icterícia, com-preendendo a sua eti opatogenia. O acúmulo de bilirrubina

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pode ocorrer secundariamente ao aumento de sua produ-ção; à defi ciência na captação, na conjugação ou na excre-ção hepáti cas; ou à obstrução do fl uxo de bile, seja nos ca-nalículos, seja nas vias biliares principais, podendo aconte-cer mais de 1 mecanismo no mesmo paciente. As principais causas são as defi ciências metabólicas, transitórias ou per-manentes, as doenças hepatocelulares e hepatocanalicula-res e a obstrução extra-hepáti ca ao fl uxo de bile (Tabela 1).

Um clínico pode fazer um diagnósti co fi rme de cirrose a parti r de 2 achados fí sicos e 2 achados laboratoriais. Esses 4

recursos, a presença de asterix e ascite, juntamente com albumina diminuída (<2,8g/dL) e aumento do tempo de protrombina, indica claramente cirrose. Mais do que 15 an-giomas da aranha indicam doença signifi cati va do fí ga-do e hipertensão portal provável. A tríade de ginecomasti a, contratura de Dupuytren e alargamento da paróti da é uma indicação clara de que o álcool é a causa mais provável da doença hepáti ca. Esplenomegalia, ascite e proeminentes veias colaterais abdominais indicam hipertensão portal e alta probabilidade de varizes de esôfago e/ou gástricas.

Tabela 1 - Principais causas de hiperbilirrubinemia

Adquirida Congênita

Hiperbilirrubinemia indireta

Produção aumentada

- Anemia hemolíti ca autoimune; - Esferocitose;

- Grandes transfusões de sangue; - Defi ciência da glicose-6-fosfato-desidro-

genase;

- Hematomas maciços e embolia pulmonar;

- Hemoglobinopati as;

- Anemia ferropriva; - Talassemia;

- Anemia perniciosa;- Porfi ria eritropoéti ca.

- Envenenamento pelo chumbo.

Depuração diminuída

- Agentes iodados de contraste; - Síndrome de Gilbert;

- Uso de rifampicina;

- Crigler-Najjar.- Hepati te crônica persistente;

- Doença de Wilson;

- Fibrose porta não cirróti ca.

Hiperbilirrubinemia direta

Doença hepáti ca Obstrução dos ductos biliares

- Lesão hepatocelular aguda: hepati te viral e por drogas, isque-mia, desordem metabólica (doença de Wilson e síndrome de Reye);

- Coledocolití ase.

- Doença de ductos biliares:· Infl amação/infecção: colangite esclero-

sante primária, estenose pós-operatória;· Neoplasia.

- Compressão da via biliar:· Neoplasias: carcinoma do pâncreas, linfa-

denopati a metastáti ca no hilo hepáti co;· Pancreati te.

- Lesão hepatocelular crônica: hepati te viral, hepatotoxinas, hepati te autoimune;

- Doença infi ltrati va difusa: neoplasias primárias ou secundá-rias;

- Infl amação dos ductos biliares e/ou espaço porta: cirrose biliar primária;

- Miscelânea: NPP, estrógeno, esteroides anabolizantes, colesta-se de pós-operatório.

A - Aumento da bilirrubina indireta

Os casos de elevação na produção de bilirrubina ocor-rem por hemólise acentuada e decorrem, principalmente, das anemias hemolíti cas (talassemia, anemia falciforme). Nos casos em que não há disfunção hepatocelular ou defi -ciência metabólica específi ca, o fí gado é capaz de metabo-lizar até 4 vezes a quanti dade de bilirrubina resultante de hemólise, e os níveis de bilirrubina não se elevam signifi ca-ti vamente.

Quando ocorre incapacidade metabólica específi ca da bilirrubina no fí gado, pode ser secundária à baixa captação

de bilirrubina pelo fí gado, como com o uso de certas drogas e na síndrome de Gilbert, ou decorrente de falha na con-jugação hepáti ca de bilirrubina, seja transitória, como na icterícia do recém-nascido e na icterícia causada pelo alei-tamento materno, seja permanente, como nas síndromes de Crigler-Najjar e de Lucey-Driscoll.

Nas icterícias por dano hepatocelular, como nas hepa-ti tes e na cirrose hepáti ca, há vários fatores concorrendo para a hiperbilirrubinemia, como hemólise aumentada, dis-função metabólica do hepatócito e defi ciência na excreção canalicular. Nesses casos, ocorre hiperbilirrubinemia mista, com elevação tanto da fração direta quanto da indireta.

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B - Aumento da bilirrubina direta

Alguns pacientes podem apresentar função canalicu-lar alterada e colestase intra-hepática. Em algumas sín-dromes genéticas, como na síndrome do Rotor e na de Dubin-Johnson, há hiperbilirrubinemia direta por defici-ência no transporte da bilirrubina já conjugada por meio da membrana canalicular. Além disso, a colestase pode ser decorrente da ação hormonal estrogênica, como na colestase da gravidez ou na decorrente do uso de contra-ceptivos orais.

Já as colestases por obstrução ao fl uxo biliar, as de prin-cipal interesse para o cirurgião, podem ser causadas por tu-mores periampulares, coledocolití ase, obstrução extrínseca e estenose do próprio colédoco, levando ao clássico quadro de hiperbilirrubinemia direta característi co das icterícias obstruti vas.

A identi fi cação desses casos, ou a sua exclusão, são fun-ções do cirurgião, e o conhecimento da propedêuti ca cor-reta a ser uti lizada será discuti do posteriormente. Icterícias com níveis elevados de bilirrubina sérica (maiores que 20mg/dL) sugerem doença maligna como causa.

C - Laboratório na icterícia obstruti va

Classicamente nas icterícias obstruti vas há aumento da enzima y-GT e fosfatase alcalina. Sabemos que a elevação de ambas fala a favor de obstrução canalicular, pois a ele-vação isolada de uma ou outra pode ter signifi cado clínico diferente.

5-nucleoti dase: a dosagem desta enzima é usada no diagnósti co diferencial de doenças hepatobiliares. Encontra-se elevada (4 a 6 vezes) na obstrução biliar, co-lestase intra-hepáti ca e cirrose biliar. Aumentos discretos ou níveis normais são encontrados nas doenças parenqui-matosas hepáti cas. Níveis elevados podem ser observa-dos durante o uso de anti convulsivantes. Relação GGT/5-nucleoti dase menor que 1,9 tem sensibilidade de 40% e especifi cidade de 100% para o diagnósti co de colestase intra-hepáti ca.

4. Aspectos clínicos

A apresentação clínica de um paciente com icterícia obs-truti va compreende a síndrome colestáti ca de icterícia, co-lúria, acolia fecal e prurido. A icterícia ocorre pelo acúmulo de bilir rubina direta na pele e mucosas (Figura 2); a colúria, pela excreção urinária de bilirrubina direta; a hipo ou acolia fecal, pela ausência ou diminuição da secreção de bile no duodeno; e o prurido, de eti ologia controversa, possivel-mente pelo acúmulo de sais biliares na pele.

Figura 2 - Aspecto da pele e mucosa de paciente com icterícia

Na avaliação do paciente com suspeita de icterícia obs-truti va, devem-se procurar fatores de risco para outras cau-sas de icterícia, como alcoolismo e hemo transfusão, além das principais causas de icterícia obstruti va, como a cole-docolití ase e os tumores. Alterações metabólicas também não podem ser esquecidas, levando em conta o padrão de aparecimento.

5. Diagnósti coA avaliação laboratorial deve incluir todo o perfi l de fun-

ção hepáti ca, sendo notado o clássico padrão colestáti co. A fosfatase alcalina é um marcador mais sensível de obs-trução biliar, podendo elevar-se, inicialmente, em pacientes com obstrução biliar parcial.

A chave para o diagnósti co de icterícia obstruti va e sua eti ologia é a realização de exames de imagem. Apesar de a avaliação mudar conside ravel mente de acordo com a dispo-nibilidade local dos exames, um raciocínio lógico deve ser seguido para evitar gastos desnecessários e erro diagnósti co.

A - Ultrassonografi a

O 1º exame a ser solicitado na suspeita de icterícia obs-truti va é a ultrassonografi a (USG) de abdome. Com ela, é possível a identi fi cação de dilatação das vias biliares, sem-pre presente nos casos de icterícia obstruti va de tratamen-to cirúrgico. A dilatação dos canais biliares extra-hepáti cos >10mm ou intra-hepáti cos >4mm sugere obstrução biliar (Figura 3).

O USG abdominal pode identi fi car o ponto de obstrução e, às vezes, sua causa. É o exame de maior sensibilidade para o diagnósti co de colelití ase, principal causa de icterícia obstruti va. É acessível em todo o país, de baixo custo, não usa radiação ionizante e pode ser repeti do quantas vezes forem necessárias. É sensível para o diagnósti co de ascite e pode identi fi car sinais de hepatopati a crônica.

Apresenta, como desvantagens, ser operador-depen-dente, não conseguir avaliar bem pacientes obesos ou com

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meteorismo, além de não poder avaliar bem as estruturas retroperitoniais.

Figura 3 - Ultrassonografi a demonstrando dilatação das vias bilia-res intra e extra-hepáti cas em caso de icterícia obstruti va

B - Tomografi a computadorizada

Cada vez mais disponível em todos os centros, a tomo-grafi a é um óti mo exame para a avaliação global do abdo-me. Não sofre interferência de fatores como meteorismo e obesidade e é menos dependente de quem a avalia. Identi fi ca corretamente os órgãos parenqui matosos como o fí gado, o baço e o pâncreas, assim como a presença de dilatação das vias biliares.

É menos sensível que a ultrassonografi a para a detecção de colelití ase, porém é mais efi caz na identi fi cação do local e da causa da obstrução biliar extra-hepáti ca. Além disso, é úti l no estadiamento de neoplasias e na suspeita de lesões extrínse-cas. Apresenta, como desvantagens, a alta carga de radiação, uti lização de contraste nefrotóxico, impos sibilidade de recons-trução das vias biliares, além do custo mais alto que a USG.

C - Ressonância nuclear magnéti ca

A Ressonância Nuclear Magnéti ca (RNM) traz a grande vantagem da reconstrução das vias biliares, a colangiorres-sonância, sem cate terização das vias biliares, que poderia levar à colangite (Figura 4). Mostra imagem semelhante à da tomografi a com relação aos demais órgãos abdominais e não usa radiação ionizante.

É bem menos disponível que a tomografi a e o ultrassom e tem custo mais elevado. O tempo mais demorado para

sua realização e a estrutura fechada do aparelho podem causar, em alguns pacientes, a sensação de claustrofobia.

Figura 4 - Colangiorressonância demonstrando grande dilatação das vias biliares

D - Ecoendoscopia ou ultrassonografi a endoscó-pica

A ultrassonografi a por meio de um trans dutor na pon-ta de um duodenoscópio possibilita a identi fi cação de uma pequena lesão na parede duo denal e região periampular, passível até de punção para cito logia. Trabalhos apontaram esse exame como o mais sen sível para o diagnósti co dife-rencial de lesões periam pulares.

Como desvantagem, oferece pouca visão do restante do abdome, é realizado em poucos centros, sendo altamente dependente do operador e tendo custo elevado.

E - Endoscopia digesti va alta

Os métodos endoscópicos, como a colan giopan-creatografi a endoscópica retrógrada (CPRE), vêm perdendo espaço no campo diagnósti co, passando cada vez mais ao campo terapêuti co. A grande desvantagem com relação à ressonância é a necessidade de cateterização retrógrada com contaminação da bile e aumento na incidência de co-langite; além da possibilidade de sangramento papilar, pan-creati te aguda e perfuração duodenal quando é realizada a papilotomia endos cópica. Assim, como método diagnós-ti co, é reservado aos locais onde não há RNM e aos casos sus peitos de tumor de papila duodenal, em que a duode-noscopia com biópsia é o exame padrão-ouro.

F - Outros métodos de imagem

A radiografi a simples tem pouco valor, exceto para o diag-nósti co diferencial. O colecistograma oral tem, hoje, apenas valor histórico. De indicação mais terapêuti ca que diagnós-ti ca, tem-se a colangiografi a transparieto-hepáti ca, que ofe-rece visão das vias biliares intra e extra-hepáti cas, principal-mente nos casos de obstrução em que a CPRE não consegue imagem proximal. Uma das condições para o sucesso desse procedimento é a dilatação intra-hepáti ca das vias biliares.

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Lití ase biliar e suas complicações

José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Pontos essenciais -Manifestações clínicas da colelití ase; -Discussão acerca de colelití ase assintomáti ca; -Manifestações clínicas da lití ase biliar; -Colecisti te aguda; -Coledocolití ase; -Colangite.

1. Anatomia das vias biliaresColelití ase signifi ca a presença de cálculos na vesícula

biliar (Figura 1) e é uma afecção muito comum e de inci-dência crescente, ati ngindo cerca de 20% da população. As manifestações clínicas dependem, dentre outros fatores, da localização e do tamanho do cálculo e da anatomia do paciente. O conhecimento da anatomia (Figura 2) e da fi sio-logia básica das vias biliares é a chave para a compreensão dessas manifestações.

CAPÍTULO

1212

Figura 1 - (A) Ultrassonografi a com múlti plas imagens hiperecoi-cas com sombra acústi ca posterior, no interior da vesícula biliar; e (B) colangiografi a intraoperatória demonstrando ducto císti co originário de ducto hepáti co direito acessório

Figura 2 - Anatomia das vias biliares

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Após ser secretada pelos hepatócitos, a bile passa para as vias biliares, antes de chegar ao duodeno. Os vários ductos microscópicos se juntam até formarem, em últi ma instância, o ducto hepáti co comum. Este se junta ao ducto císti co, formando o ducto colédoco. A vesícula biliar é uma estrutura sacular e tem a função de armazenar e concentrar a bile, liberando-a no duodeno após as refeições, em res-posta a vários estí mulos, dos quais se destaca a ação hor-monal esti mulatória da colecistocinina.

O trajeto da bile da vesícula ao duodeno é feito atra-vés do fi no ducto císti co, com suas válvulas de Heister, pelo ducto colédoco, e pela papila duodenal ou papila de Water. Muitas vezes, o ducto pancreáti co principal, ou ducto de Wirsung, desemboca no colédoco, formando o chamado canal comum. É importante saber que essa anatomia, dita normal, é passível de múlti plas variações. Desse modo, pode ocorrer implantação da vesícula biliar de forma séssil, com ducto císti co implantado no ducto hepáti co direito e à esquerda do colédoco e em qualquer outra porção das vias biliares extra-hepáti cas (Figura 1B).

Em 1891, Calot descreveu a existência de uma área trian-gular no hilo hepáti co, que apresenta como limite superior a face inferior do fí gado, medialmente, o ducto hepáti co co-mum ou colédoco e, inferiormente, o ducto císti co. Esse é o triângulo de Calot, que deve ser dissecado minuciosamente, durante a colecistectomia, por via aberta ou laparoscópica, para a localização e a ligadura da artéria císti ca (Figura 3).

Figura 3 - Visão laparoscópica com esquemati zação dos limites do trígono de Calot

Quanto à irrigação, a artéria císti ca origina-se, em 85% das vezes, da artéria hepáti ca direita. Alguns ramos dire-tamente intra-hepáti cos também podem irrigar a vesícu-la biliar. A drenagem venosa é feita de maneira inversa. Pequena porcentagem (menos de 10%) drena para o hilo vesicular, enquanto grande parte da vesícula drena, direta-mente, para o leito hepáti co.

2. Eti ologia e ti pos de cálculosOs cálculos biliares formam-se quando há desequilíbrio

entre os solventes e os solutos da bile, que são formados

predominantemente por água, e têm como principais so-lutos envolvidos na gênese de cálculos, o colesterol e os pigmentos biliares. O solvente é representado pelos sais biliares e pela leciti na. Compõem a bile:

-Pigmentos; -Água; -Sais inorgânicos; -Sais biliares → emulsifi cação lipídica.

Outros fatores que concorrem para a formação de cál-culos são a baixa ati vidade motora da vesícula, responsável pela estase de bile, e a presença de bactérias que descon-jugam os sais biliares. A presença de desbalanço entre tais secreções predispõe à formação de cálculos, esquemati ca-mente descrito através do triângulo de Admirand-Small.

Figura 4 - Triângulo de Admirand-Small

Dentre as principais situações associadas à colelití ase, podem-se destacar:

-Sexo feminino, relacionado à ati vidade hormonal tan-to estrogênica quanto progestágena, que levam a hi-pomoti lidade vesicular e a alterações na saturação de colesterol; -Aumento da ati vidade hemolíti ca, com hipersaturação de pigmentos biliares; -Diminuição do pool de sais biliares, devido a ressec-ções intesti nais; -Aumento da concentração biliar de colesterol, como acontece na obesidade, e perda acentuada de peso; -Doenças sistêmicas com interações multi fatoriais, como no diabetes mellitus.

Os cálculos, classicamente, podem ser classifi cados como pigmentares (marrons ou negros) ou de colesterol (amarelos), dependendo de sua composição (Figura 5). Os ti pos de cálculos biliares dependem da população estuda-da, sendo, em nosso meio, a maior parte de colesterol. Apesar disso, sabe-se que, na população em geral, o ti po de cálculo mais comum é o de origem mista. Os cálculos de colesterol puro com aspecto perolado são raros. Entre

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os pacientes com doença hemolíti ca ou cirrose, os cálcu-los pigmentares negros são os mais comuns, e entre os indivíduos com infecção crônica da via biliar, são mais fre-quentes os cálculos pigmentares de bilirrubinato de cál-cio ou ferrosos marrons. Um importante precipitado biliar na patogênese da colelití ase é a lama biliar, termo que se refere a uma mistura de cristais de colesterol, grânulos de bilirrubinato de cálcio e uma matriz de gel mucinoso. Provavelmente, a lama serve de nicho para o crescimento dos cálculos vesiculares.

Figura 5 - Cálculos biliares: (A) de colesterol e (B) pigmentares

3. Diagnósti coO exame com maior especifi cidade e sensibilidade para

a identi fi cação de cálculos na vesícula biliar é a ultrassono-grafi a (USG), que tem uma especifi cidade e sensibilidade de 98% para a identi fi cação de colecistolití ase. A imagem ca-racterísti ca é a de presença de sombra acústi ca posterior. A vantagem desse exame é o fato de ser inócuo, sem radiação ionizante e sem uso de contraste, e de poder ser repeti do quantas vezes for necessário. A desvantagem principal é que cálculos muito pequenos, menores que 2mm, chama-dos de microcálculos, podem não ser identi fi cados.

Nesses casos, a USG endoscópica pode ser usada para a investi gação de microcálculos e até de cristais biliares, que

podem ocasionar quadros clínicos de dor no hipocôndrio direito. A pesquisa de microcristais na bile, através do as-pirado duodenal, ou da própria via biliar, também pode ser realizada. O colecistograma oral prati camente não é mais uti lizado para diagnosti car a colelití ase, tendo apenas valor histórico.

A colangiorressonância magnéti ca é o exame atual-mente mais apropriado para o diagnósti co de coledoco-lití ase, enquanto a colangiopancreatografi a endoscópica retrógrada (CPRE), apesar de ter melhor defi nição, deve ser reservada mais à terapêuti ca que ao diagnósti co nos casos de coledo colití ase. A Tomografi a Computadorizada (TC) oferece uma melhor visão global do abdome, mas identi fi ca, aproximadamente, apenas 50% dos cálculos bi-liares (Figura 6).

Figura 6 - Tomografi a de abdome mostrando cálculos biliares

4. Colelití ase assintomáti caA prevalência de cálculos biliares na população ociden-

tal é bastante elevada, no entanto não se observa índice tão elevado de pacientes com sintomas relacionados a esse quadro. Esti ma-se que 65% daqueles com colelití ase assin-tomáti ca permanecerão dessa maneira por um período de 20 anos, enquanto, anualmente, 2% deles passarão a apre-sentar sintomas associados à presença dos cálculos.

A conduta nesses casos é amplamente variável e de-pende da idade, das condições clínicas do paciente, de suas expectati vas pessoais e da fi losofi a do cirurgião. Algumas variáveis, relacionadas aos achados ultrassonográfi cos, po-dem guiar a conduta do médico entre a colecistectomia ou a conduta expectante.

Alguns serviços indicam a colecistectomia mesmo em assintomáti cos, desde que as condições clínicas sejam apropriadas. Outros serviços indicam o tratamento cirúr-gico somente a pacientes sintomáti cos ou assintomáti cos que sejam diabéti cos ou imunossuprimidos, devido à alta

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mortalidade provocada por colecisti te aguda nesses casos. Indicam o procedimento cirúrgico, também, para aqueles com cálculos maiores que 2,5cm ou menores que 0,5cm, pelo risco de colecisti te aguda no 1º e de pancreati te aguda no últi mo.

O tratamento farmacológico para os cálculos biliares, reservado para pacientes com alto risco cirúrgico, baseia-se na supersaturação da bile em sais biliares, e, geralmente, é uti lizado o ácido desoxidocólico por via oral. Esse tratamen-to só tem efeito entre os indivíduos com cálculos de coles-terol puro radiotransparentes, que não sejam mistos e que não tenham bilirrubinato de cálcio. Nos cálculos pequenos, esse tratamento alcança um melhor resultado. A vesícula biliar também tem de ser funcionante, o que é verifi cado com a colecistograma oral.

A presença de colelití ase assintomáti ca não demanda qualquer ti po de tratamento clínico. Quando ocorrem sin-tomas relacionados à complicação da colelití ase, como dor, esta deverá ser tratada com anti espasmódicos, e o pacien-te, encaminhado para programação cirúrgica.

5. Lití ase biliar sintomáti ca

A - Cólica biliar

A cólica biliar classicamente corresponde a um quadro de dor abdominal que ocorre entre 30min e 2h após uma refeição lauta (geralmente rica em gorduras), que desa-parece espontaneamente antes de 6h subsequentes à re-feição. A dor é profunda, contí nua no hipocôndrio direito (HCD), normalmente associada a vômitos biliosos. Pode ha-ver irradiação para o epigástrio ou para a região dorsal. Se o quadro clínico permanece 6h depois de seu início e não melhora com anti espasmódicos, pode-se pensar em cole-cisti te aguda.

Deve-se salientar que sintomas dispépti cos inespecífi -cos, como meteorismo, pirose e epigastralgia não têm re-lação com colelití ase, por essa razão não são levados em conta para a classifi cação dos pacientes como sintomáti cos. Nesses casos, é melhor solicitar estudo endoscópico, para a exclusão ou o tratamento pré-operatório de outras doen-ças, como a gastrite e a úlcera pépti ca.

O exame de USG na vigência da cólica demonstra a pre-sença de um cálculo impactado no infundíbulo, o qual não se move às mudanças de decúbito, sem alterações na pare-de do órgão. O tratamento é feito com anti espasmódicos e analgésicos, para o alívio da dor, e deve ser indicada a cole-cistectomia eleti vamente. Cerca de 70% dos pacientes que apresentaram um episódio de cólica biliar apresentarão um novo quadro ou semelhante em 1 ano.

B - Síndrome de Mirizzi

A síndrome de Mirizzi consiste na obstrução da via biliar por um cálculo impactado no ducto císti co. Pela descrição original, ocorre quando há compressão mecânica do ducto

hepáti co comum pelos cálculos impactados no ducto císti co, paralelo àquele, levando a um quadro de icterícia contí nua ou intermitente e episódios de colangite. Existem algumas classifi cações na literatura; a mais uti lizada é a proposta por Csendes, que divide em 4 estágios que vão da simples com-pressão extrínseca à fí stula colecistobiliar (Figura 7).

Figura 7 - Classifi cação da síndrome de Mirizzi

Não há dados específi cos para o diagnósti co. A USG pode levantar a suspeita, mas na maioria das vezes o diag-nósti co é intraoperatório. A CPRE pode ser uti lizada como método diagnósti co e terapêuti co, mas a cirurgia é conside-rada padrão-ouro para tratamento defi niti vo. A conduta de-pende da apresentação da doença e pode variar da colecis-tectomia simples à derivação biliodigesti va intra-hepáti ca.

C - Íleo biliar

O chamado íleo biliar consiste na obstrução intesti nal por cálculo biliar impactado na válvula ileocecal. A passa-gem desse cálculo é consequência de uma fí stula entre a vesícula biliar e o intesti no, sendo a colecistoduodenal a mais comum. Apesar de raro, o íleo biliar é a principal causa de abdome agudo obstruti vo em idosos sem hérnia e sem cirurgia prévia. O diagnósti co radiológico clássico é descrito como tríade de Rigler, que compreende distensão à custa de delgado, aerobilia e presença de imagem calcifi cada no quadrante inferior direito do abdome (Figura 8).

Figura 8 - Radiografi a simples de abdome com distensão de del-gado e aerobilia

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O tratamento é cirúrgico, e realiza-se a enterotomia em íleo distal acima do nível da impactação para reti rada do cálculo. O trajeto fi stuloso não deve ser abordado no mes-mo tempo cirúrgico, e a colecistectomia deve ser realizada num 2º procedimento.

D - Pancreati te aguda

A principal causa de pancreati te aguda em nosso meio é a colelití ase. Há passagem de cálculo pela papila duodenal, causando edema e infl amação do pâncreas.

E - Vesícula “em porcelana”, pólipos e câncer de vesícula

Sabe-se que a incidência de neoplasia maligna aumenta em pacientes idosos com colecistopati a crônica calculosa (incidência 7 vezes maior que na população geral). Todos os pacientes com pólipos maiores que 2cm correm risco de desenvolver adenocarcinoma, assim como aqueles com pólipo de crescimento rápido. Indivíduos com calcifi cação da parede da vesícula, a chamada vesícula “em porcelana”, têm incidência de câncer de vesícula de até 20% (Figura 9).

Figura 9 - Radiografi a simples de abdome mostrando vesícula “em porcelana”

O tratamento deve ser cirúrgico, por meio de colecis-te ctomia. A cirurgia pode ser feita por videolaparoscopia, e a peça deve ser enviada para anatomopatológico. Em se confi rmando o diagnósti co de câncer, o doente deve ser reabordado para realização de ampliação das margens ci-rúrgicas (hepatectomia central) e linfadenectomia do hilo hepáti co.

6. Colecisti te agudaA colecisti te aguda é a infl amação da parede da vesí-

cula biliar. Geralmente associada à colelití ase (de 90 a 95% dos casos), tem, como evento inicial, a obstrução da saída da vesícula biliar, com quadro clínico de cólica biliar persis-tente que não é resolvida com anti espasmódicos. Com a permanência da obstrução e da secreção de muco, há dis-tensão progressiva do órgão e edema de sua parede, que

comprime a microcirculação, causando desde isquemia até necrose. Nas fases mais avançadas, sem tratamento, pode haver perfuração da vesícula e peritonite generalizada. Os agentes eti ológicos mais comuns são Gram negati vos como E. coli e Klebsiella.

A colecisti te aguda aliti ásica pode acontecer em 3 a 5% das vezes, principalmente em doentes críti cos em terapia intensiva, diabéti cos e aqueles que fi zeram uso de nutrição parenteral recentemente.

O quadro clínico tí pico é de dor no HCD por mais de 6h, ou cólica biliar que não se resolveu. Podem ocorrer vômitos e febre. Nos casos avançados ou complicados com perfura-ção, encontram-se sinais de sepse. A icterícia não é comum e acontece nos casos de síndrome de Mirizzi, coledocolití a-se ou perfuração, além de hepati te transinfecciosa. No exa-me fí sico, o achado característi co é o sinal de Murphy, em que há dor e parada da inspiração durante a compressão do HCD, podendo ou não estar acompanhado de sensibilidade e peritonismo nesta região.

O diagnósti co é confi rmado pela USG (85% de sensibi-lidade e 95% de especifi cidade) que, além da presença de cálculo impactado no infundíbulo, demonstra distensão do órgão, edema de parede, coleções perivesiculares e de-laminação da parede da vesícula (sinal mais específi co). Encontra-se, também, o chamado sinal de Murphy ultras-sonográfi co, quando ocorrem dor e parada da inspiração com a colocação do transdutor ultrassonográfi co sobre a vesícula biliar, visualizada diretamente (Figura 10). Embora seja roti neiramente inviável, vale citar que o melhor exame para a detecção de colecisti te aguda é a cinti lografi a com radionucleídeo, com sensibilidade e especifi cidade de 95%.

Figura 10 - Ultrassonografi a com achados de colecisti te aguda liti -ásica: notar a imagem hiperecogênica impactada no infundíbulo, o edema e a delaminação da parede vesicular

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O tratamento da colecisti te aguda calculosa é eminen-temente cirúrgico, com colecistectomia, de preferência por videolaparoscopia com colangiografi a intraoperatória. Recentemente, encontrou-se taxa de 2,2% em mortalida-de intra-hospitalar; até 38% de taxa de readmissão em 2 anos entre pacientes que receberam alta sem colecistec-tomia. A colecistectomia tardia, após o controle da infec-ção, apesar de ainda ser prati cada por alguns cirurgiões, pode predispor o paciente a algumas complicações como necrose da vesícula, perfuração (de 10 a 20%), peritonite generalizada e abscessos hepáti cos. Geralmente, o uso de anti bióti cos deve cobrir bactérias Gram negati vas e ana-eróbias. A Tabela 1 resume o tratamento da colecisti te aguda.

Tabela 1 - Tratamento da colecisti te aguda

Anti bióti cos recomendados na maioria dos casos

Observação sem anti bióti cos é uma opção para pacientes com colecisti te aguda leve (mas ainda considerando anti bióti -cos para profi laxia para a cirurgia).

Colecistectomia precoce é geralmente o tratamento de escolha

Colecistectomia laparoscópica precoce é geralmente o trata-mento de escolha para colecisti te aguda leve.Colecistectomia dentro de alguns dias de admissão de colecisti te aguda tem resultados cirúrgicos similares, mas tempo reduzido de permanência hospitalar em comparação com a colecistecto-mia tardia (>6 semanas).

Colecistectomia laparoscópica tem menos complicações e

recuperação mais rápida do que a colecistectomia aber-

ta para colecisti te aguda

Se a infl amação grave ou disfunção orgânica.

Colecistectomia tardia: poderão ser necessárias interven-ções para reduzir a infl amação. Podem incluir terapia anti micro-biana, drenagem percutânea da vesícula biliar, colecistostomia. Aspiração da vesícula biliar pode ser tão efi caz quanto, mas mais segura do que colecistostomia percutânea em pacientes não cri-ti camente doentes com colecisti te aguda, que são de alto ris-co cirúrgico candidatos.

Um tipo específico e grave de colecistite aguda é a colecistite enfisematosa, uma forma rara, que corres-ponde a apenas 1% dos casos em que ocorrem necrose com gangrena e gás no interior da vesícula. Manifesta-se como colecistite aguda grave, levando o paciente, rapidamente, ao quadro de sepse. A mortalidade é alta e pode chegar a 20%. Cerca de 40% dos pacientes são diabéticos, e há maior ocorrência em pessoas do sexo masculino, a uma proporção de 70% dos casos. O méto-do diagnóstico preferencial é a radiografia simples, com a identificação de gás na vesícula, além do USG ou TC de abdome (Figura 11). O patógeno mais comumente ob-servado é o Clostridium perfringens, encontrado em 50% dos casos.

Figura 11 - Tomografi a de paciente com sepse abdominal, mos-trando sinais de colecisti te aguda enfi sematosa: notar o líquido peri-hepáti co e o gás no interior da vesícula

A colecisti te aguda aliti ásica muitas vezes tem apre-sentação fulminante e, com frequência, evolui para gan-grena, empiema e perfuração. Devido à ausência de cál-culos e à distensão fi siológica da vesícula no jejum, há grande difi culdade no seu diagnósti co ultrassonográfi co. Fisiopatologicamente, as alterações microscópicas são as mesmas, com quadro de edema de parede e de isquemia. Assim, uma opção, principalmente nos casos com quadro clínico duvidoso, é a cinti lografi a biliar com tecnécio, que diagnosti ca todos os casos em que a vesícula biliar não con-segue reter o radiofármaco, devido à obstrução do ducto císti co. Deve ser tratada por colecistectomia imediata.

7. Coledocolití aseA presença de cálculos na via biliar principal é conhecida

como coledocolití ase. Seu quadro clínico caracteriza-se por náuseas, vômitos e dor do ti po biliar, até icterícia obstruti va e colangite. Pode ser classifi cada como primária, quando os cálculos se formam na própria via biliar principal, ou secun-dária (forma mais comum), quando se formam na vesícula biliar e migram.

Quando há formação de cálculos na própria via biliar principal, há fatores predisponentes como corpos estra-nhos, estenoses ou cistos nas vias biliares, levando a mau esvaziamento ou a infecções crônicas, causando, assim, proliferação de bactérias, desconjugação dos pigmentos bi-liares e litogênese. Nesses casos, os cálculos tendem a ser marrons ou negros. Já os cálculos secundários acontecem em pacientes com outros fatores de risco, como a presen-ça de microcálculos (menores que 5mm) e de ducto císti co curto ou vesícula séssil. Os cálculos são da mesma composi-ção dos cálculos vesiculares.

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Se o paciente já é colecistectomizado, os cálculos são classifi cados como reti dos, contanto que a cirurgia tenha sido realizada em até 2 anos, ou recidivantes, quando sur-gem após 2 anos da cirurgia. Dor no HCD, náuseas e vômi-tos, quadro clínico similar ao da cólica biliar tí pica, podem ser indicati vos de coledocolití ase em pacientes previamen-te colecistectomizados. O passado de pancreati te aguda eleva a prevalência de coledocolití ase para 20% nos sub-meti dos à colecistectomia, sendo uma manifestação clínica comum associada à doença. Sua abordagem diagnósti ca e terapêuti ca varia entre os serviços médicos, dependendo de sua estrutura fí sica, da experiência pessoal e da fi losofi a de cada cirurgião.

Muitos assintomáti cos têm a coledo colití ase descoberta unicamente na colangiografi a intraoperatória, realizada du-rante colecistectomias por colelití ase, que permite a identi -fi cação de 8 a 10% dos casos (Figuras 12B e C). A sobrepo-sição de sintomas com os da lití ase vesicular e a migração intraoperatória podem explicar, parcialmente, esses núme-ros. Outros com colelití ase, mesmo sem sintomas, já têm suspeita pré-operatória de coledocolití ase, por apresen-tarem alterações nas dosagens de enzimas canaliculares, como a fosfatase alcalina e a gama-glutamil-transferase. Suspeita-se, ainda, dos pacientes com história pregressa de pancreati te aguda biliar, ocasião em que se presume que tenha havido a passagem de um cálculo pelo colédoco.

Figura 12 - Coledocolití ase: (A) tomografi a mostrando imagem calcifi cada na projeção do colédoco; (B) e (C) colangiografi a intra-operatória com coledocolití ase: notar as falhas de enchimento no interior da via biliar principal

Figura 13 - Coledocolití ase

A icterícia obstruti va, em geral com nível sérico de bilir-rubinas abaixo de 10mg/dL, com colúria, hipocolia fecal e prurido cutâneo consti tui um achado frequente, associado ou não a outros sintomas biliares, que podem advir de cóli-ca biliar ou colecisti te aguda sobrepostas. A coledocolití ase é a principal causa de colangite em nosso meio, levando a afastar e prevenir sempre essa séria complicação.

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A avaliação completa da função hepáti ca e exames de sangue roti neiros fazem parte da avaliação inicial do pa-ciente com suspeita de coledocolití ase. Entretanto, a confi r-mação diagnósti ca só pode ser obti da com exames de ima-gem. O exame de imagem mais sensível para o diagnósti co da coledocolití ase é o USG. Além de ser úti l na triagem dos pacientes ictéricos, é o melhor exame para o diagnósti co de colelití ase, associada a 95% dos casos de coledo colití ase. Pode identi fi car dilatação das vias biliares ou outras situa-ções clínicas associadas, mas só pode fechar o diagnósti co em, no máximo, 50% dos casos.

A TC é mais úti l no diagnósti co diferencial de outras doenças abdominais, principalmente as pancreáti cas, mas consegue identi fi car a coledocolití ase em alguns casos, quando é visto um cálculo radiopaco no interior do colédo-co, na fase sem contraste (Figura 12A). A ressonância nucle-ar magnéti ca, com a reconstrução das vias biliares através da colangiorressonância, é um exame com pouca morbida-de, sem risco de infecção ascendente das vias biliares, que proporciona o diagnósti co de coledocolití ase na maioria dos casos.

A CPRE é um exame altamente específi co para o diag-nósti co da coledocolití ase, mas, devido aos altos índices de morbidade (10%) e mortalidade (até 1%), atualmente é mais reservada à terapêuti ca que ao diagnósti co. A eco-endoscopia, ou USG endoscópica, é um óti mo exame para o diagnósti co diferencial da icterícia obstruti va e, quando disponível, uma boa opção para o diagnósti co da lití ase da via biliar principal.

A conduta nos casos de coledocolití ase pode variar bas-tante entre os serviços. A dúvida ou a confi rmação diagnós-ti ca e a indicação ou não de colecistectomia são os fatores que devem ser considerados paralelamente à estrutura lo-cal, treinamento, experiência e fi losofi a do cirur gião (Figura 14). Basicamente, a reti rada dos cálculos do colédoco pode ser realizada de forma endoscópica ou cirúrgica.

Figura 14 - Um dos algoritmos de conduta possíveis para coledo-colití ase (CPRE, CPER ou - colangiopancreatografi a endoscópica retrógrada; EVB - Exploração cirúrgica das Vias Biliares; DBD - de-rivação biliodigesti va)

Na papilotomia endoscópica, realizam-se cateteri zação do colédoco, colangiografi a retrógrada para confi rmação diagnósti ca, abertura da papila e varredura das vias biliares com reti rada dos cálculos. Suas complicações principais são a pancreati te, o sangramento, a perfuração duodenal e a colangite e ocorrem em 5 a 8% dos casos, e a mortalidade é de 0,2 a 0,5%.

O tratamento cirúrgico clássico consiste na abertura do colédoco após colangiografi a intraoperatória, reti rada dos cálculos e colocação de um dreno em “T” (dreno de Kehr) para a drenagem biliar e prevenção de fí stulas e estenoses biliares (Figura 15). No intraoperatório, após manobra de Kocher e ampla exposição do colédoco e ligamento hepa-toduodenal, é feita uma coledocotomia, e explora-se todo o colédoco com material apropriado, reti rando-se todos os cálculos.

Realiza-se colangiografi a complementar para certi fi car--se de que todos os cálculos foram reti rados; por fi m, co-loca-se o dreno de Kehr por meio da coledocotomia. Após novo controle radiológico, o dreno é reti rado em algumas semanas. Em alguns casos, pode ser necessário papilotomia aberta ou anastomoses biliodigesti vas.

Nos casos de coledocolití ase com colecistopati a calculo-sa em que a lití ase da via biliar principal foi descoberta no intraoperatório, pode ser realizada a exploração cirúrgica das vias biliares ou a solicitação de papilotomia endoscó-pica pós-operatória. Na maioria dos casos de colecistecto-mia convencional, opta-se pela exploração cirúrgica e, nos casos laparos cópicos, pela endoscópica. Os cirurgiões com treinamento específi co e instrumentação adequada podem realizar a exploração cirúrgica por via laparoscópica. A con-versão da cirurgia laparoscópica para a exploração cirúrgica convencional das vias biliares é realizada quando a explora-ção laparoscópica ou endoscópica não é possível.

Figura 15 - (A) Dreno de Kehr e (B) aspecto do dreno na via biliar principal em colangiografi a

Já nos casos de suspeita clínica de coledocolití ase, após confi rmação, o tratamento é cirúrgico. A colecistectomia é necessária, pois a vesícula é a fonte dos cálculos e deve ser reti rada. Assim, pode-se realizar a papilotomia endoscópica

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com reti rada dos cálculos previamente à operação, geral-mente realizando-se a colecistectomia videolaparoscópica. Se os cálculos não podem ser tratados por endoscopia, é realizada operação com colangiografi a, e a conduta se as-semelha à dos casos de coledocolití ase diagnosti cados no intraoperatório.

Os pacientes com coledocolití ase, já submeti dos à co-lecistectomia, são mais bem tratados por papilotomia en-doscópica, sendo a exploração cirúrgica reservada quando há insucesso. Em caso de algum fator predisponente à cole-docolití ase primária passível de tratamento, também deve haver correção para evitar recidiva.

8. Colangite

A colangite aguda é a infecção das vias biliares. A co-langite bacteriana aguda é comumente associada à coledo-colití ase. Nestes casos, a colonização crônica das bactérias pode chegar a 50%. Os pacientes com tumores periampu-lares ou mesmo do colédoco proximal habitualmente pos-suem a bile estéril, de modo que não costuma ocorrer co-langite inicialmente, unicamente icterícia obstruti va.

A simples presença de bactérias não causa colangite, sendo obrigatório o componente de aumento da pres-são intraductal. Os micro-organismos mais comumente encontrados são Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae, Enterococcus e Bacteroides fragilis. O Ascaris lumbricoides, através de suas migrações erráti cas, pode ati ngir as vias biliares e causar colangites ou formação de coledocolití a-se primária, entretanto esse quadro é cada vez mais raro. Outros pacientes em risco para colangite aguda são indiví-duos com cirrose hepáti ca, pois o mecanismo de depuração de bactérias pelas células de Kupff er está prejudicado.

O quadro clínico da colangite baseia-se na tríade de Charcot, que compreende febre, icterícia e dor em HCD, pre-sentes em 50 a 70% dos portadores desta afecção. Quando o doente passa a apresentar sinais de confusão mental e hipotensão (instabilidade hemodinâmica), dá-se o nome de pêntade de Reynolds. Esse quadro denota colangite grave (tóxica ou supurati va) e se associa a piores prognósti cos.

A febre e os calafrios associados à colangite são o resul-tado de bacteremia sistêmica, causada pelo refl uxo colan-giovenoso e colangiolinfáti co, daí a necessidade de aumen-to da pressão intraductal para estabelecer a colangite. Além do diagnósti co clínico, devem-se considerar alterações la-boratoriais característi cas de colestase e sepse. A USG de abdome serve para identi fi car fatores obstruti vos nas vias biliares e de colelití ase.

A gravidade do caso dependerá do comprometi mento sistêmico e da resposta inicial ao tratamento clínico. Casos leves são aqueles que apresentam mínima repercussão e boa resposta às medidas clínicas. Doentes que não apre-sentam resposta sati sfatória à conduta clínica, mas também não apresentam disfunções orgânicas, são considerados ca-

sos moderados. A presença de sepse e de disfunções orgâ-nicas caracteriza o quadro grave.

A descompressão da via biliar é imprescindível para a re-solução da colangite aguda. Os procedimentos percutâneos ou endoscópicos como a CPRE, ainda que temporários, são os métodos de eleição na fase aguda (Figura 16).

Figura 16 - Tratamento da colangite aguda por CPRE: (A) reti rada de cálculos da via biliar principal com saída de bile purulenta e (B) saída de bile purulenta após cateterização da via biliar principal

Na indisponibilidade desses métodos, a descompressão deverá ser feita por meio de intervenção cirúrgica, e a con-duta varia com a eti ologia do quadro e o estado geral do paciente. Pacientes em estados mais graves necessitarão de procedimentos mais rápidos, como colocação de dreno de Kehr na via biliar principal ou, caso o ducto císti co esteja permeável, colecistostomias. Obstruções malignas em está-gios avançados podem necessitar de derivações biliodiges-ti vas. Após as medidas iniciais e o controle das comorbida-des, o paciente necessitará de tratamento defi niti vo para obter a remoção da causa da obstrução das vias biliares e a drenagem defi niti va (Figura 17).

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Figura 17 - Conduta na colangite aguda

9. ResumoQuadro-resumo

- A lití ase biliar pode desencadear uma série de complicações, cujo grau de gravidade depende do tempo de evolução da do-ença e das condições de base do paciente;

- Colecisti te aguda, síndrome de Mirizzi, íleo biliar e colangite aguda são situações que necessitam de tratamento cirúrgico. Na pancreati te aguda biliar, o tratamento é inicialmente clínico, mas a colecistectomia deve ser realizada, preferencialmente, na mesma internação.

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Pancreati te aguda

José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Pontos essenciais -Causas de pancreati te aguda; -Fatores prognósti cos; - Indicações de tratamento cirúrgico.

1. IntroduçãoA pancreati te é a infl amação do pâncreas, a qual pode

ocorrer de forma aguda ou crônica. Na 1ª, não há alterações estruturais do órgão, que estão presentes na forma crônica.

Conceitualmente, pancreati te aguda é a infl amação aguda do parênquima pancreáti co que pode ser associada a problemas congênitos, hereditários e adquiridos, ou por agentes de natureza traumáti ca, infectoparasitária e quími-ca, e embora comporte diversos mecanismos eti opatogê-nicos, o evento fi nal é a ati vação das enzimas pancreáti cas no interior das células acinares. Uma vez removidas a cau-sa e as complicações, há recuperação clínica, morfológica e funcional, o que caracteriza a diferença fundamental da pancreati te crônica.

Quanto à gravidade, pode ser leve ou grave (anti ga-mente, edematosa ou necro-hemorrágica), de acordo com os parâmetros que serão descritos posteriormente. Além do comprometi mento das funções digesti va e endócrina do próprio órgão, há síndrome infl amatória sistêmica que pode interferir seriamente nas outras funções orgânicas necessárias à homeostase. Na maioria das vezes, é autoli-mitada, e, após a recuperação do quadro agudo, não fi cam sequelas funcionais como diabetes mellitus ou insufi ciência pancreáti ca exócrina.

A incidência de pancreati te aguda aumenta com a ida-de. O início na 1ª década sugere uma causa hereditária (por exemplo, hiperlipidemia ou pancreati te crônica hereditá-ria), infecção (por exemplo, caxumba) ou trauma.

2. Eti ologiaVárias causas podem ser associadas à pancreati te agu-

da, sendo desencadeada pelos mais diversos mecanismos (Tabela 1). A mais comum é a colelití ase, seguida do alco-

CAPÍTULO

1313olismo e da hipertrigliceridemia. Doenças metabólicas, uso de drogas, venenos, alterações estruturais do pâncreas, tumores, parasitas, dentre outros, também podem causar pancreati te aguda.

Tabela 1 - Principais causas de pancreati te aguda

- Colelití ase;

- Alcoolismo crônico;

- Drogas;

- Infecções;

- Trauma abdominal;

- Cirurgia;

- CPRE;

- Hipertrigliceridemia;

- Tumores periampulares;

- Papilites;

- Doenças duodenais;

- Toxinas;

- Pâncreas divisum;

- Vasculites;

- Fibrose císti ca;

- Idiopáti ca.

Dentre as medicações associadas à pancreati te, podem--se citar inibidores da enzima conversora de angiotensina (N = 209), valproato de sódio, bloqueadores H2, sulindaco, aza-ti oprina, genfi brozila, lovastati na, pentamidina e didanosina.

A colelití ase, presença de cálculos biliares, é a causa mais comum de pancreati te aguda em nosso meio. A passagem de cálculos biliares pela papila causa edema e infl amação do pâncreas, o que desencadeia um processo infl amatório intrínseco ao pâncreas que permanece mesmo após o tér-mino do fator causal, na maioria das vezes sem coledoco-lití ase associada. A presença de microlití ase (defi nida com cálculos biliares menores que 3mm), barro biliar ou cristais da bile também pode dar início ao processo, sendo neces-sários exames mais detalhados que o ultrassom abdominal, como a ecoendoscopia ou a pesquisa de microcristais na bile, para a sua identi fi cação.

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A ingestão de álcool pode levar à pancreati te aguda ou à agudização de pancreati te crônica. O uso de drogas como isoniazida, metronidazol, S-aminossalicilato, estrógeno, azati oprina, pentamidina, tetraciclina, trimetoprim + sul-fametoxazol e ácido valproico, dentre outras, pode causar pancreati te aguda por mecanismos diversos.

A hipertrigliceridemia, com valores séricos de trigliceríde-os acima de 1.000mcg/mL, também pode levar à pancreati te aguda. Trata-se, geralmente, de uma síndrome familiar que responde ao tratamento clínico com medicações com o intuito de evitar outras crises. Outras doenças genéti cas que podem levar à pancreati te são a fi brose císti ca do pâncreas e a porfi ria.

Variações anatômicas do órgão, como o pâncreas anular e o pâncreas divisum, levam à pancreati te por alterações na drenagem de bile. Tumores periampulares e do pâncreas, benignos ou malignos, podem manifestar-se ou até abrir o quadro por pancreati te aguda, e devem ser incluídos no diagnósti co diferencial, principalmente nos pacientes sem outros fatores de risco e nos idosos.

3. Quadro clínico e diagnósti co As náuseas e os vômitos são frequentes e precoces, po-

dem ser de natureza refl exa ou por compressão duodenal pelo pâncreas edemaciado. Às vezes, ocorre parada de eli-minação de gases e fezes e, ocasionalmente, dispneia inco-ercíveis e hiperamilasemia.

É importante ressaltar que a dor com essas característi cas está presente em apenas metade dos casos. A dor geralmente tem localização epigástrica, se irradia para o fl anco e dorso, e é altamente indicati va dessa enfermidade. Ao contrário da cólica biliar, que pode durar de 6 a 8 horas, a dor da pancreati te pode durar dias. Seu início é rápido, mas não tão brusco como a que com uma víscera perfurada, ati ngindo a intensidade máxima, em muitos casos dentro de 10 a 20 minutos.

A dor é constante, pode ser intensa e precipitada por ingestão excessiva de álcool ou alimentos. A melhora pode ser obti da com decúbito lateral e a fl exão das coxas sobre o abdômen, além da aspiração gástrica e jejum.

Pode haver dor abdominal à palpação com sinais de peritonismo. Os casos mais graves vêm acompanhados de sinais de choque e de insufi ciência orgânica, como desidra-tação, taquicardia, hipotensão e taquidispneia. Podem ser encontrados sinais de hemorragia retroperitoneal (Figura 1), como os de Grey-Turner (equimoses nos fl ancos), de Cullen (equimose periumbilical) e de Frey (equimose no li-gamento inguinal).

Figura 1 - (A) Sinal de Grey-Turner, equimose nos fl ancos, e (B) si-nal de Cullen, equimose periumbilical

Na dosagem sérica dos níveis de amilase, o exame mais importante para o diagnósti co de pancreati te aguda, é con-siderado alterado quando está 3 vezes acima do valor de referência pelo método. Apesar da importância primordial para o diagnósti co, não tem relação com o prognósti co. Os casos de pancreati te biliar apresentam elevação dos níveis de amilase com maior frequência que aqueles de pancreati -te alcoólica. Quando a eti ologia é a hipertrigliceridemia, os níveis séricos podem ser normais. Os pacientes com insufi -ciência renal podem ter a depuração urinária diminuída em até 5 vezes, o que pode causar tanto confusão diagnósti ca quanto retardo na realimentação.

Uma variedade de mecanismos pode explicar hiperami-lasemia na doença não pancreáti ca:

-A doença pode ocorrer em outros órgãos (por exem-plo, das glândulas salivares e trompas de Falópio) que produzem amilase; -A absorção intesti nal no infarto transmural e a absor-ção transperitoneal com uma víscera perfurada e pe-ritonite provavelmente explicam a hiperamilasemia nestas condições; -Diminuição da depuração renal da amilase em pacien-tes com insufi ciência renal; -O aumento da amilase sérica na colecisti te se deve, provavelmente, a subclínica ou pancreati te coexisten-te não diagnosti cada; -Elevações crônicas de amilase (sem amilasúria) ocor-rem em macroamilasemia, uma condição na qual a amilase sérica normal é ligada a uma proteína do soro anormal para formar um complexo macroamilase.

A lipase sérica é tão sensível quanto a amilase, mas possui maior especifi cidade e permanece elevada por mais tempo. As outras enzimas não têm maior sensibilidade e especifi cidade em relação à amilase e lipase, portanto não são uti lizadas na práti ca clínica.

Um aumento da alanina aminotransferase (ALT) é suges-ti vo de pancreati te biliar. Uma meta-análise mostrou que a especifi cidade de uma concentração de ALT sérica acima de 150UI/L para a pancreati te do cálculo biliar foi de 96%, e a sensibilidade foi de apenas 48%. Assim, um valor superior a 150UI/L sugere pancreati te biliar, mas um valor menor não exclui o diagnósti co.

Na radiografi a simples de abdome, os achados são vari-áveis; os mais comuns são a alça senti nela e a dilatação do

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cólon transverso. Sua importância maior está na exclusão de outras causas de dor abdominal com hiperamilasemia, como a úlcera pépti ca perfurada.

A principal indicação da ultrassonografi a (USG) é a con-fi rmação eti ológica de cálculos biliares, principal causa de pancreati te aguda. Ela também pode identi fi car complica-ções como coleções peripancreáti cas e abscessos intraca-vitários.

A Tomografi a Computadorizada (TC) de abdome não tem valor para diagnósti co na fase aguda. Os pacientes com característi cas clínicas e laboratoriais de pancreati te aguda que não melhoram com o tratamento conservador inicial ou que são suspeitos de terem complicações ou ou-tros diagnósti cos devem ser submeti dos a TC de abdome. O exame deve ser solicitado preferencialmente após 48 a 72 horas, em todos os pacientes com pancreati te aguda grave, para identi fi cação de áreas mal perfundidas sugesti vas de necrose e confi rmação da suspeita de pancreati te necro-sante (Figura 2A). Também é capaz de diagnosti car compli-cações como coleções e pseudocistos (Figura 2B).

Figura 2 - Avaliação tomográfi ca de pancreati te aguda grave: (A) presença de 2 áreas de necrose em cabeça e cauda pancreáti ca, 13 dias após o início do quadro, e (B) presença de pseudocistos em colo e cauda de pâncreas, 10 dias após o início do quadro

A colangiopancreatografi a retrógrada endoscópica (CPRE) deve ser reservada aos casos graves em que não há melhora clínica e exista icterícia manti da ou colangite asso-ciada. O momento mais apropriado para realizar o exame é controverso na literatura, principalmente pelos riscos de piora da pancreati te e de contaminação retrógrada do teci-do pancreáti co estéril.

4. ComplicaçõesNa fase aguda, podem ocorrer coleções e abscessos

peripancreáti cos e, mais cronicamente, pseudocistos pan-creáti cos, hemorragias retroperitoniais e a mais temida de todas as complicações, a infecção do tecido pancreáti co necrosado, com mortalidade de 90%. Na fase intermediá-ria, há manifestações locais, tais como infecções da necrose pancreáti ca e retroperitonial, abscesso, pseudocistos, além de complicações gastrintesti nais, biliar e de órgãos sólidos. Na fase precoce, observam-se manifestações cardiovascu-lares, pulmonares, renais e metabólicas.

5. Fatores de prognósti coAtualmente, sabe-se que o substrato para a pancreati te

grave é a necrose pancreáti ca que pode evoluir com compli-cações hemorrágicas, anti gamente chamadas pancreati te necrosante ou necro-hemorrágica. Múlti plos critérios prog-nósti cos já foram propostos para a avaliação de gravidade e avaliação prognósti ca da pancreati te aguda. Dentre eles, os mais uti lizados na práti ca clínica são os critérios de Ranson, avaliados na admissão e após 48 horas do início dos sinto-mas. A presença de 3 ou mais parâmetros consti tui um forte indicati vo de pancreati te aguda grave (Tabelas 2 e 3).

Tabela 2 - Critérios de Ranson

Na admissão Nas 48 horas iniciais

Idade >55 anos Queda Ht >10%

Leucócitos >16.000 Aumento ureia >5mg/100mL

Glicose >200mg/100mL Cálcio <8mg/100mL

DHL >350IU/L PaO2 <60mmHg

AST >250U/100mL Défi cit-base >4mEq/L

- Sequestro líquido >6L

Tabela 3 - Mortalidade segundo os critérios de Ranson

<2 pontos 0%

3 a 4 pontos 15%

5 a 6 pontos 50%

>7 pontos Quase 100%

Atualmente, o APACHE II (Acute Physiology And Chronic Health Evaluati on) é a classifi cação mais uti lizada em traba-lhos cientí fi cos e unidades de terapia intensiva. Considera-se pancreati te grave índice ≥8. A escala APACHE II tem vantagens na medida em que podem ser realizadas na ad-

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missão, pode ser reavaliada a qualquer momento durante a internação do paciente e é aplicável a toda doença médica. Ele incorpora 11 variáveis fi siológicas, para além da idade do paciente, a insufi ciência de órgãos, o estado neurológico (conforme determinado pela escala de coma de Glasgow) e o estado pós-operatório. É um indicador bastante fi ável da gravidade da doença e um preditor robusto de complica-ções, no entanto, difí cil de usar clinicamente.

Outros índices propostos são os critérios de Glasgow (Imrie), a dosagem de proteína C reati va, interleucina 6, fosfolipase A2, peptí dio tripsinogênio-ati vado urinário, ri-bonuclease pancreáti ca e elastase (presente nas células po-limorfonucleares sanguíneas).

A avaliação de gravidade da pancreati te aguda pela TC de abdome segue o trabalho clássico de Balthazar, que ava-lia o aspecto do parênquima pancreáti co, presença de co-leções e porcentagem de necrose, conferindo uma pontua-ção a cada item (Tabelas 4 e 5). A parti r dessa pontuação, é possível prever a possibilidade de morbidade e mortalidade desses pacientes. Por exemplo, aqueles entre 0 e 1 ponto têm 0% de morbidade e mortalidade, e aqueles entre 7 e 10 pontos apresentam 17% de mortalidade e 92% de mor-bidade.

Tabela 4 - Critérios tomográfi cos de Balthazar

Elemento avaliado

Achado Pontos

Grau da pancrea-ti te aguda

A - Pâncreas normal 0

B - Edema pancreáti co 1

C - Borramento da gordura peripan-creáti ca

2

D - Flegmão/coleção única 3

E - 2 ou mais coleções 4

Necrose pancre-áti ca

Ausente 0

Necrose de 1/3 do pâncreas 2

Necrose de 50% do pâncreas 4

Necrose >50% do pâncreas 6

Tabela 5 - Índice segundo os critérios de Balthazar

Pontos (índice de gravidade) Complicações Mortalidade

0 a 1 0 0

2 a 3 8% 3%

4 a 6 35% 6%

7 a 10 92% 17%

6. TratamentoOs itens obrigatórios no tratamento da pancreati te agu-

da leve são jejum, hidratação e analgesia intravenosa. Os analgésicos de escolha são a dipirona associada à hioscina e/ou meperidina, sendo evitada a morfi na por aumentar a pressão do esfí ncter de Oddi (músculo circular na junção do colédoco com o duodeno). A sondagem nasogástrica não é necessária roti neiramente e deve ser realizada so-

mente em casos de vômitos excessivos ou íleo prolonga-do. O uso de inibidores de bomba protônica é roti neiro na maioria dos serviços. Uma vez que é evidente que um pa-ciente não será capaz de tolerar a alimentação por via oral (uma determinação que normalmente pode ser feita dentro de 48 a 72 horas), a nutrição enteral (ao invés de to-tal parenteral) deve ser considerada e mantém a integrida-de da barreira intesti nal, evitando assim a translocação bac-teriana. Além disso, é menos custosa e está associada a me-nos complicações do que a nutrição parenteral.

Todos os pacientes considerados graves devem ser tra-tados em unidade de terapia intensiva. A hidratação deve ser agressiva, entre 250 e 500mL de solução cristaloide por hora, com balanço hídrico diário e controle eletrolíti co e ácido-básico. A saturação de oxigênio deve ser manti da em 95% ou superior, com oxigênio suplementar administrado por cânula nasal e necessário para manter a oxigenação do pâncreas e prevenir necrose pancreáti ca. Uma saturação de oxigênio abaixo de 90% pode exigir a entrega de oxigênio por uma máscara facial. Casos leves não necessitam de an-ti bióti co profi láti co, entretanto quadros graves e com mani-festações sistêmicas exigem anti bioti coterapia com metro-nidazol e ciprofl oxacino (boa penetração no tecido pancre-áti co) ou imipeném, embora a sua uti lização profi láti ca não seja consensual. Aproximadamente 1/3 dos pacientes com necrose pancreáti ca desenvolve necrose infectada, por isso geralmente indicados anti bióti cos empíricos. Portanto, se houver pancreati te necrosante (envolvendo mais de cerca de 30% do pâncreas), pode-se iniciar a terapia anti microbia-na com imipeném/meropeném e conti nuar por pelo menos 1 semana. Na suspeita de infecção, realizar TC guiada, pun-ção aspirati va com cultura e Gram de amostra e basear o tratamento em resultados de aspirado por agulha fi na.

Todos os pacientes com jejum prolongado devem ser submeti dos à terapia nutricional, com NPP ou com nutrição enteral, com a sonda posicionada após a 2ª porção duode-nal. Apesar de não haver diferença do ponto de vista nutri-cional, é preferível uti lizar a via enteral por apresentar me-nor número de complicações e possibilitar menos tempo de internação hospitalar. O ponto de corte mais recomendado é oferecer suporte nutricional a parti r de 7 dias de jejum.

Quando a eti ologia for lití ase biliar, a colecistectomia deverá ser realizada na mesma internação, após melhora da dor e normalização da amilase. Entre os pacientes com pancreati te aguda biliar que vão de alta do hospital sem uma colecistectomia, 30 a 50% desenvolvem a pancreati te. Casos em que já há o diagnósti co de lití ase na via biliar prin-cipal têm indicação de CPRE prévia. Entretanto, a indicação de CPRE sistemáti ca a todos os pacientes, antes da colecis-tectomia, não tem respaldo na literatura.

O tratamento cirúrgico para desbridamento da necro-se deve ser postergado ao máximo e ati nge maior suces-so quando realizado após o 14º dia da doença. Em geral, a intervenção cirúrgica está indicada para os pacientes que apresentam necrose pancreáti ca infectada, confi rmada

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com punção e cultura do tecido pancreáti co, ou pela visua-lização de gás na tomografi a, e complicações peripancreáti -cas (abscesso, perfuração ou obstrução de vísceras, hemor-ragia, pseudocistos, dentre outras), e para tratar a doença biliar, como condição associada. A cirurgia precoce pode trazer problemas como maior sangramento, maior reti rada de tecido sadio e maior possibilidade de fí stula pancreáti ca no pós-operatório. Recentemente têm sido uti lizadas abor-dagens percutâneas para necrosectomia por serem menos invasivas e terem, aparentemente, melhor prognósti co.

Outras indicações cirúrgicas são a incerteza diagnósti ca e a piora clínica, apesar do tratamento de suporte, sendo esta últi ma a indicação mais controversa. Frequentemente, os doentes necessitarão de novas laparotomias para limpe-za da cavidade. Mesmo em serviços especializados, o prog-nósti co desses doentes é bastante limitado, e a mortalidade em operados chega a 65%.

7. ResumoQuadro-resumo

- As principais causas de pancreati te aguda são colelití ase, eti lis-mo e hipertrigliceridemia;

- O quadro clássico é de dor abdominal ti po faixa em andar superior, vômitos e hiperamilasemia;

- O tratamento dos quadros leves requer jejum, hidratação e analgesia intravenosa. Quadros graves devem ser conduzidos em unidade de terapia intensiva. A indicação cirúrgica é de exceção e fi ca reservada aos casos de necrose pancreáti ca infectada.

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Tumores pancreáti cos e neuroendócrinos

Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Fábio Freire José

Pontos essenciais -Adenocarcinoma de pâncreas; -Tumores da papila duodenal; -Lesões císti cas; -Tumores neuroendócrinos.

1. IntroduçãoApesar da enorme gama de células presentes no pân-

creas, o principal tumor pancreáti co é o adenocarcinoma de pâncreas, e o ti po histológico mais comum é o adeno-carcinoma ductal. O câncer de pâncreas é um dos mais le-tais do aparelho digesti vo, com taxas anuais de incidência e mortalidade muito próximas. Alguns consideram virtuais as reais chances de cura e paliati vos todos os seus trata-mentos.

Neoplasias neuroendócrinas, como os apudomas e vi-pomas (tumores de ilhotas pancreáti cas), insulinomas e gastrinomas também ocorrem nesse órgão, mas sua apre-sentação clínica pode variar devido à possível produção anormal dos hormônios relacionados a cada subti po his-tológico. Outros tumores malignos, como os linfomas e as metástases de outros síti os, também podem ser encontra-dos no pâncreas, mas com menor frequência.

As lesões císti cas do pâncreas têm diagnósti co cres-cente em razão da melhor qualidade técnica dos exames de imagem. Neoplasias benignas, como os cistoadenomas serosos (potencial de malignização), ou os cistoadenomas mucinosos (mais comuns dentre as neoplasias císti cas do pâncreas), e malignas, como os cistoadenocarcinomas, são cada vez mais encontradas. Além disso, há as lesões císti cas mais comuns, não neoplásicas, que são os pseudocistos de-correntes de pancreati te prévia.

2. Adenocarcinoma de pâncreas

A - Epidemiologia

A localização mais comum dos tumores pancreáti cos é a cabeça do pâncreas, onde aparecem cerca de 70% das le-

CAPÍTULO

1414sões. O corpo e a cauda vêm em seguida (de 10 a 15% dos casos), com a peculiaridade de não se manifestarem com ic-terícia na fase inicial, tornando o seu diagnósti co, na maior parte das vezes, tardio, e seu prognósti co, sombrio. Os 20% restantes correspondem a tumores difusos no pâncreas.

Figura 1 - Tumor em região de cabeça de pâncreas

O fator eti ológico mais conhecido para o câncer de pân-creas é o tabagismo. Em 30% dos casos, a incidência cresce com a idade do paciente, ati ngindo, em sua maioria, pesso-as idosas. Os homens são mais ati ngidos que as mulheres, e pacientes com pancreati te crônica e diabetes mellitus pare-cem ter maior risco. Certos hábitos alimentares, como a in-gestão de gordura animal, foram envolvidos em sua eti opa-togenia, ao contrário de outros, como a ingestão de álcool e de café. Os negros e os judeus também acarretam maior risco. Existem, ainda, 6 síndromes genéti cas que aumentam o risco de câncer pancreáti co:

-Câncer colorretal não poliposo hereditário (HNPCC); -Câncer de mama familiar associado à mutação do gene BRCA2; -Síndrome de Peutz-Jeghers; -Síndrome ataxia-telangiectasias;

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-Síndrome do melanoma do ti po nevo múlti plo atí pico familiar; -Pancreati te hereditária.

B - Diagnósti co

Como nos demais tumores periampulares, a manifesta-ção clínica mais comum é a icterícia obstruti va, que vem acompanhada de colúria, acolia fecal e prurido. A perda de peso também é frequente, causada, principalmente, pela anorexia secundária à secreção e pelo tumor de substâncias anorexígenas como o TNF-alfa (caquexina).

A dor epigástrica é bastante comum e citada em alguns trabalhos como o sintoma mais frequente. Apesar de alta-mente inespecífi co, pode ser a causa de consultas médicas nas fases precoces da doença. Nas mais tardias, a dor as-sume a característi ca de padrão pancreáti co em faixa, com irradiação para as costas. A vesícula palpável e indolor, em um paciente ictérico, é o clássico sinal de Courvoisier-Terrier, característi co das neoplasias da cabeça do pâncreas (Figura 2).

Figura 2 - Grande dilatação da vesícula biliar em paciente com ne-oplasia periampular

Diabetes mellitus de início recente, insufi ciência pan-creáti ca exócrina e pancreati te aguda também podem ser a apresentação de um tumor pancreáti co. As náuseas são inespecífi cas, e os vômitos podem ocorrer nas fases poste-riores por obstrução duodenal. É rara a apresentação inicial com colangite aguda, geralmente associada à manipulação endoscópica.

Os exames de sangue mostram o padrão de colestase com hiperbilirrubinemia direta, grande elevação de enzi-mas canaliculares e discreta elevação de enzimas hepatoce-lulares. O tempo de protrombina geralmente está alargado pela má absorção de vitamina K, mas há boa resposta à te-rapia com a vitamina por via parenteral. Anemia e sinais de desnutrição podem estar presentes.

Na práti ca clínica, o marcador tumoral relacionado ao câncer de pâncreas é o CA 19-9. Apesar de poder estar ele-

vado em todos os casos de icterícia obstruti va, valores mui-to elevados, acima de 300mcg/dL, são bastante específi cos. Sua uti lização é limitada a tais casos e ao acompanhamento pós-operatório.

Pela localização retroperitoneal do pâncreas, por sua inacessibilidade aos exames endoscópicos simples, por sua difí cil caracterização à ultrassonografi a (USG) abdominal, dentre outras causas, o diagnósti co do câncer pancreáti co baseia-se em exames de imagem nos pacientes com sus-peita clínica, geralmente a Tomografi a Computadorizada (TC – Figura 3).

Figura 3 - Tomografi a de abdome: (A) e (B) dilatação da vesícula e do colédoco a montante de tumor na cabeça do pâncreas e (C) tumor pancreáti co com dilatação do ducto de Wirsung

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O USG abdominal é uti lizado como triagem nos casos de icterícia obstruti va, mostrando dilatação das vias bilia-res, mas raramente identi fi ca o tumor. A TC tem as vanta-gens de maior disponibilidade, melhor caracterização de lesões calcifi cadas (úteis no diagnósti co diferencial), visão global do abdome e custo relati vamente baixo (Figura 3). A Ressonância Nuclear Magnéti ca (RNM) é mais cara e me-nos disponível que a tomografi a, mas traz a possibilidade de reconstrução da imagem das vias biliares (colangiorresso-nância), importante nos casos de dúvida diagnósti ca. A USG endoscópica é muito efi caz para o diagnósti co diferencial das lesões periampu lares e pode proporcionar a punção diagnósti ca, mas é pouco acessível e tem visão limitada do restante do abdome.

A colangiopancreatografi a endoscópica retrógrada (CPER) foi, até a década de 1980, um dos exames de es-colha; hoje, é reservada à terapêuti ca, quando se deseja realizar drenagem biliar pré-operatória ou paliati va, ou à visualização da papila duodenal por duodenoscopia.

Figura 4 - Algoritmo proposto para o diagnósti co de câncer de pâncreas

A confi rmação por biópsia é necessária apenas em casos de tumores localmente avançados ou metastáti cos para iní-cio de quimioterapia. Quando disponível, a ecoendoscopia é o método de eleição.

C - Estadiamento

Após o diagnósti co do tumor pancreáti co, devem-se avaliar o abdome e o fí gado, à procura de metástases, roti -neiramente feita com TC. Pela alta incidência de metástases peritoneais e carcinomatose, muitos realizam a videolapa-roscopia diagnósti ca antes da conduta terapêuti ca, princi-palmente aos pacientes com ascite. A avaliação de invasão de estruturas vasculares, como os vasos mesentéricos, pode ser realizada por meio dos exames de imagem do abdome já citados. Radiografi as simples do tórax em 2 incidências fi nalizam o estadiamento pré-operatório.

O estadiamento conti nua durante o ato operatório, com minuciosas inspeções e palpações do abdome para pesqui-

sa de metástases linfonodais, peritoneais e hepáti cas, além da avaliação da invasão de estruturas nobres. O estadia-mento termina com o exame anatomopatológico da peça cirúrgica.

No momento do diagnósti co, a maioria dos pacientes já tem metástases em linfonodos peripancreáti cos. As me-tástases a distância ocorrem para fí gado (80% dos casos), peritônio (60%), pulmões e pleura (de 50 a 70%) e glândulas suprarrenais (25%).

O estadiamento segue a padronização da UICC (Ta-bela 1).

Tabela 1 - Estadiamento do câncer pancreáti co

Classifi cação TNM – UICC 2002Tx Não avaliadoT0 Sem tumor primárioTis CA in situ T1 Limitado ao pâncreas, com até 2cm T2 Limitado ao pâncreas, com mais de 2cm

T3Além do pâncreas, sem envolvimento do plexo celíaco ou artéria mesentérica superior

T4Envolvimento do plexo celíaco ou artéria mesentérica superior

Nx Não avaliadoN0 Ausência de linfonodos comprometi dosN1 Metástase linfonodalMx Não avaliadoM0 Ausência de metástaseM1 Metástase a distância

Estadio T N M0 is 0 0I 1 ou 2 0 0II 3 0 0III Qualquer 1IV Qualquer Qualquer 1

Observação: a classifi cação e o estadiamento TNM - UICC 2010 encontram-se no anexo, ao fi nal do livro.

D - Tratamento

A ressecção cirúrgica, o único tratamento que oferece a possibilidade de cura para o adenocarcinoma de pâncreas, deve ser realizada em todos os pacientes com condições clínicas para a cirurgia, desde que não haja metástases, de acordo com a avaliação de ressecabilidade feita pelo ci-rurgião. Os critérios de irressecabilidade variam de serviço para serviço, tornando as taxas de ressecção variáveis de 6 a 50% dos casos em países diferentes, em torno de 18% no Brasil.

O procedimento cirúrgico padrão para a ressecção de todos os ti pos de tumores periampulares é a gastroduode-nopancreatectomia cefálica ou operação de Whipple. Nela, ocorre a ressecção da parte distal do estômago, de todo o duodeno, da cabeça do pâncreas e da porção distal das vias biliares em monobloco. Todas essas estruturas são reti radas

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devido à sua vascularização comum. Atualmente, muitos serviços preferem a duodenopancreatectomia cefálica, em que há preservação do piloro, não sendo realizada a ressec-ção do estômago (Figura 5). A principal causa de mortalida-de pós-operatória é a fí stula da anastomose pancreatoje-junal. A linfadenectomia ampliada não é realizada roti nei-ramente, pois não altera a sobrevida. No pós-operatório, a quimioterapia com gencitabina ou 5-fl uorouracil pode ser indicada, associada ou não à radioterapia. A quimioterapia também prolonga em 6 a 12 meses a sobrevida do câncer de pâncreas inoperável.

Figura 5 - Produto de duodenopancreatectomia

Os pacientes em boa condição clínica, mas com tumo-res considerados irressecáveis por invasão local de estrutu-ras ou com tumores metastáti cos, podem ser submeti dos à paliação cirúrgica por meio de derivação biliodigesti va, acompanhada ou não de derivação gastroen térica para a prevenção ou o tratamento de obstrução duodenal. Nos ca-sos clinicamente graves, em que não há condições clínicas para o procedimento cirúrgico, deve-se realizar a paliação da icterícia preferencialmente por drenagem biliar endos-cópica com prótese ou por drenagem percutânea (Figura 6).

Figura 6 - Algoritmo preferencial para conduta cirúrgica no câncer de pâncreas

E - Prognósti co

Prati camente todos os pacientes com câncer de pân-creas morrem em decorrência da doença; 80% no 1º ano, exceto poucos casos incipientes tratados precocemente. Os pacientes submeti dos à ressecção paliati va (linfonodos comprometi dos) devem sobreviver de 1 a 2 anos, enquan-to, dos tratados com fi m curati vo, apenas 15% estão vivos após 5 anos. Aqueles em que não foi realizada a ressecção da lesão sobrevivem de 6 a 8 meses, e os indivíduos com carcinomatose peritoneal têm sobrevida de 1 a 3 meses. Todo o tratamento médico deve ser baseado nesse concei-to, e as decisões, ponderadas caso a caso.

3. Tumores da papila duodenalCom maior incidência em portadores de síndromes

polipoides, os tumores de papila têm incidência menor e melhor prognósti co que os de pâncreas, pois os sintomas são mais precoces. Os pacientes com tumores da papila duodenal apresentam uma característi ca clínica marcante: a icterícia fl utuante. Devido à necrose do tumor, pode haver manifestações de hemorragia digesti va alta, como anemia e melena, sucedidas por resolução transitória da icterícia.

O melhor exame para o seu diagnósti co é a endoscopia digesti va alta com visão lateral, duodenoscopia e biópsia da lesão. O tratamento cirúrgico é semelhante ao aplicado nos pacientes com tumores de pâncreas, sendo a sobrevi-da muito superior, ati ngindo 50% em 5 anos dos indivíduos que ti veram seus tumores ressecados.

Figura 7 - Tumor de papila duodenal

4. Lesões císti casDevem ser diferenciados pseudocistos, cistos simples

e neoplasias císti cas. Os pseudocistos são as lesões mais comuns, resultados de processos infl amatórios, e caracte-

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rizam-se por não apresentarem epitélio. O tratamento fi ca reservado àqueles com mais de 6cm de diâmetro ou que persistem por mais de 6 semanas. Podem ser derivados ex-terna ou internamente, por cirurgia ou por endoscopia.

Cistos simples podem ser verdadeiros ou de retenção. Normalmente, são achados de exames e podem evoluir com esvaziamento espontâneo. Indica-se cirurgia na dúvida diagnósti ca. As neoplasias císti cas normalmente associam--se a aumento do CEA.

A - Cistoadenomas

Os cistoadenomas são neoplasias do pâncreas exócrino, normalmente benignas, e consti tuem menos de 10% das lesões císti cas pancreáti cas acometendo, na maioria das vezes, mulheres de meia-idade ou mais velhas. As neopla-sias císti cas são lesões que não se comunicam com o ducto pancreáti co principal e apresentam revesti mento epitelial característi co. Além disso, são mais comuns no corpo e na cauda do pâncreas (Figura 8).

Figura 8 - Aspecto intraoperatório de lesão císti ca pancreáti ca

Nem sempre é fácil diferenciar as neoplasias císti cas be-nignas das malignas apenas com dados clínicos e radiológi-cos. O quadro clínico é discreto, com sintomas que podem incluir dor abdominal, obstrução gastrintesti nal ou, menos comumente, icterícia obstruti va. Os 2 tumores mais co-muns desta classe são os serosos e os mucinosos.

Os tumores serosos são quase sempre benignos, cons-ti tuídos, histologicamente, por cistos de pequeno diâmetro “em favo de mel”, revesti dos de epitélio cuboide baixo rico em glicogênio. Normalmente, não expressam antí genos car-cinoembriogênicos. À macroscopia, apresentam-se como cistos contendo líquido aquoso límpido ou amarronzado.

Os tumores mucinosos formam um grupo mais hete-rogêneo, com potencial variável de degeneração maligna. Histologicamente, contêm epitélio colunar alto e podem apresentar coloração positi va para antí geno carcinoem-briogênico. Pode haver 3 ti pos, o cistoadenoma mucinoso, tumor intermediário e cistoadenocarcinoma.

O tratamento é sempre cirúrgico por meio da ressecção completa, pois o diagnósti co defi niti vo é anatomopatológi-co e pelo potencial de malignização. Nos tumores benignos, a cirurgia é curati va, enquanto no cistoadenocarcinoma mucinoso a sobrevida em 5 anos é de 50% (bem superior que o adenocarcinoma ductal).

B - Neoplasias intraductais papilomucinosas

Estas neoplasias ocorrem com igual frequência em am-bos os sexos, entre 60 e 70 anos, e localizam-se, mais co-mumente, na cabeça e no processo uncinado. São lesões que se originam no ducto pancreáti co principal ou nos seus ramos principais, e formam vilosidades que crescem em di-reção à luz do ducto, levando a dilatação intraductal císti ca.

Algumas vezes, durante uma endoscopia, observa-se gotejamento de mucina da ampola de Vater. As células mostram graus variáveis de ati pia celular e podem conter áreas de carcinoma invasivo. As semelhanças entre essas cé-lulas e as do cistoadenoma sugerem uma possível sequência adenoma-carcinoma. A maioria dos pacientes apresenta prognósti co favorável após a ressecção, exceto se há carci-noma no anatomopatológico.

Um ti po específi co de tumor, a neoplasia císti ca papilar (tumor de Frantz), é comum em mulheres jovens e, apesar de localmente invasivo, apresenta bom prognósti co quando tratado de maneira agressiva com cirurgia.

5. Tumores neuroendócrinosOs tumores neuroendócrinos são tumores raros, nor-

malmente malignos, que se caracterizam pela secreção de substâncias funcionalmente ati vas como os hormônios pan-creáti cos (Tabela 2). Os síti os mais comuns de metástases são fí gado, pulmão, linfonodos e ossos. A cirurgia represen-ta a possibilidade curati va na maioria dos casos.

Tabela 2 - Espectro de malignidade dos tumores das células das ilhotas

Tipo Malignidade (%)

Insulinoma 5 a 10

Gastrinoma 70

Vipoma 50 a 60

Glucagonoma 70

A - Insulinoma

O insulinoma, o tumor funcional mais comum do pân-creas, produz insulina em excesso e é originado, princi-palmente, das células beta-pancreáti cas das ilhotas de Langerhans. É raro em adolescentes, acometendo, princi-palmente, adultos entre 40 e 50 anos.

O quadro clínico clássico consiste na chamada tríade de Whipple: sintomas de hipoglicemia, nível baixo de glicemia (menor que 50mg/dL) e alívio dos sintomas após consumo de glicose. Nem sempre o diagnósti co é fácil, pois o quadro

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clínico consequente à liberação de catecolaminas pode di-recionar o diagnósti co para transtornos neurológicos e psi-quiátricos, não sendo raro o atraso diagnósti co.

O diagnósti co é realizado com a dosagem de insulina sérica >5uU/mL durante a hipoglicemia sintomáti ca. Outro meio diagnósti co laboratorial é a relação entre insulina séri-ca (em uU/mL) e glicemia (em mg/dL); valores superiores a 0,4 são considerados diagnósti co. Importante lembrar que os níveis de peptí dio C estão elevados em jejum mostrando que há aumento de produção endógena de insulina.

Geralmente, são tumores pequenos (<1,5cm), únicos (10% são múlti plos) e benignos (90 a 95%), de difí cil loca-lização. Os poucos tumores múlti plos normalmente estão associados às Neoplasias Endócrinas Múlti plas ti po 1 (NEM-1 ou síndrome de Wermer), caracterizadas por hiperparati -reoidismo, tumor pancreáti co e tumor hipofi sário. A locali-zação pré-operatória desses tumores não é fácil, pois só 50 a 60% deles aparecem em exames de imagem como tomo-grafi a e ressonância nuclear magnéti ca. A USG endoscópi-ca ou intraoperatória é considerada o melhor exame para localizar o tumor.

O tratamento é cirúrgico, e, raramente, é necessária uma ressecção pancreáti ca extensa “às cegas” (sem a lo-calização do tumor), em virtude da USG intraoperatória. Pacientes que levam mais de 6 meses sem sintomas de hi-poglicemia após o procedimento são considerados curados.

B - Gastrinoma (síndrome de Zollinger-Ellison)

O gastrinoma é o 2º tumor mais comum de células das ilhotas e o mais comumente sintomáti co tumor endócrino maligno do pâncreas. É importante lembrar que ele, apesar de ser frequentemente localizado no pâncreas, pode estar presente em outros locais. É esporádico em 75% dos pa-cientes e associado a uma síndrome NEM-1 em 25% dos casos.

Os sintomas são consequência da hipersecreção de gas-trina, e a dor abdominal devido à úlcera pépti ca é o sinto-ma mais comum. A diarreia é o 2º sintoma mais comum e tem como causas a hipersecreção gástrica, que inati va as enzimas pancreáti cas pela diminuição do pH, e a hipermoti -lidade intesti nal esti mulada pela gastrina. Outros sintomas comuns são má digestão, esofagite e duodenojejunite.

A suspeita clínica deve surgir na presença de sintomas como úlceras pépti cas recorrentes sobretudo se H. pylori negati va, úlcera recorrente após tratamento cirúrgico para doença ulcerosa pépti ca, hipercalcemia, proeminentes do-bras gástricas a endoscopia, úlcera refratária ao tratamento clínico padrão e diarreia persistente.

O diagnósti co é feito pela dosagem sérica de gastrina, que tem como valor normal de 20 a 150pg/mL. Para o diag-nósti co, é obrigatória a hipergastrinemia na presença de hipersecreção ácida. Portanto, deve ser excluída a presen-ça de acloridria por meio do pH do suco gástrico, que deve ser <2 para conti nuar a investi gação (pH >2,5 prati camente exclui a doença). Níveis de gastrina superiores a 1.000pg/

mL prati camente fazem o diagnósti co, enquanto níveis in-termediários (150 a 1.000pg/mL) associados a quadro clíni-co compatí vel também induzem a ele. Em caso de dúvida, deve ser realizado o teste de provocação pela secreti na, em que há rápida elevação de gastrina como resposta.

É importante ressaltar algumas condições em que há hi-pergastrinemia na ausência de gastrinoma, como a anemia perniciosa, gastrite atrófi ca, câncer gástrico, hiperplasia de células G antrais.

A localização pré-operatória é difí cil, sendo importante o conhecimento de que 90% desses tumores estão localiza-dos dentro do chamado triângulo do gastrinoma, que tem como limites a junção dos ductos císti co e hepáti co comum superiormente, a junção da 2ª com a 3ª porção duodenal inferiormente e a junção do colo e corpo do pâncreas me-dialmente (Figura 9).

Figura 9 - Noventa por cento dos gastrinomas estão dentro do gastrinoma triangular (contorno); muitos deles são extrapancreá-ti cos, dentro dos nódulos linfáti cos ou na mucosa duodenal

Métodos de imagem convencionais como USG, TC e RNM nem sempre são bem-sucedidos para a localização do tumor. A USG endoscópica pode ser úti l, mas o método atual mais promissor é a cinti lografi a de receptor de soma-tostati na, que envolve o escaneamento com radionuclídeos após a injeção de octreoti de radiomarcado (90% dos gastri-nomas têm receptores para somatostati na). Não há crité-rios confi áveis para a malignidade, portanto o que a deter-mina é a presença ou não de metástases.

O tratamento é cirúrgico. O controle farmacológico efi -caz da secreção ácida realizado atualmente tornou desne-cessária a gastrectomia total (anti go tratamento “padrão”). A cirurgia consiste na reti rada do tumor e das metástases após cuidadosa inspeção e palpação de toda a cavidade peritoneal. Embora a alta taxa de malignidade seja alta, as chances de cura são grandes, portanto os esforços para a cura cirúrgica são plenamente justi fi cados. No duodeno, 70% dos tumores estão na 1ª porção, 20% na 2ª e 10% na 3ª. A reti rada de tais tumores, independente de sua locali-zação, é feita por enucleação das lesões.

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C - Glucagonoma

O glucagonoma é um tumor de células alfa das ilhotas, mais comum em homens e na cauda do pâncreas. Provoca erupção cutânea característi ca, queilite angular, diabetes mellitus, anemia, perda de peso e níveis aumentados de glucagon. A lesão dermatológica característi ca é o eritema migrante necrolíti co (Figura 1), principalmente em face e períneo.

Feito o diagnósti co, o tratamento é cirúrgico, consisti n-do na remoção do tumor primário e metastáti co. Deve ser realizada heparina profi láti ca, visto que mais de 30% dos pacientes têm complicações trombóti cas após a cirurgia. Mesmo com a abordagem cirúrgica agressiva, o prognósti -co não é bom, com índice de cura em torno de apenas 30%.

D - Vipomas (síndrome de Verner-Morrison)

Os vipomas são tumores endócrinos que secretam VIP (peptí dio intesti nal vasoati vo) e causam uma síndrome de diarreia aquosa, hipocalemia, hipovolemia e acidose. A trí-ade diagnósti ca inclui diarreia secretória, níveis altos de VIP circulante e um tumor pancreáti co. A maioria desses tumo-res é grande e facilmente identi fi cada por tomografi a ou ressonância magnéti ca.

Logo após o diagnósti co, deve ser introduzido o trata-mento com octreoti de para controlar a perda de líquido. Ao diagnósti co, 50% dos pacientes apresentam metástases. O tratamento é cirúrgico e consiste, normalmente, em pan-createctomia distal, além de ressecção das metástases.

E - Somatostati noma

O somatostati noma é o ti po mais raro e se manifesta com diarreia, esteatorreia, diabetes mellitus e colelití ase. A localização duodenal tem melhor prognósti co que a pan-creáti ca, e o tratamento, sempre que possível, é cirúrgico.

6. ResumoQuadro-resumo

- O adenocarcinoma de pâncreas é um dos tumores mais agres-sivos do sistema digesti vo, e a cirurgia com intuito curati vo ra-ramente é possível;

- As lesões císti cas na maioria das vezes são achados de exame, mas podem evoluir com malignização;

- Tumores neuroendócrinos exigem alto índice de suspeição. O tratamento na maioria das vezes é cirúrgico, exceto em casos com metástases a distância.

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ANEXO

Periodicamente, a American Joint Comitt ee on Cancer (AJCC) e a Union for Internati onal Cancer Control (UICC) publicam o estadiamento das neoplasias seguindo o critério TNM. A cada nova edição, são revisadas as estatí sti cas publicadas em todo o mundo, e as mudanças são realizadas com o intuito de promover uma linguagem universal para estudar e comparar resultados em câncer em qualquer país do mundo.

A 7ª e mais recente edição foi lançada em 2010. Este anexo traz o novo estadiamento TNM das neoplasias mais comuns e que mais comumente são cobradas em concursos. Entretanto, algumas insti tuições ainda seguem a 6ª edição do estadia-mento, que pode ser consultada nos diversos capítulos do material didáti co. Sugerimos aos alunos checarem, na bibliografi a ofi cial de cada concurso, qual foi a edição adotada na elaboração das questões.

Câncer gástrico

Classifi cação TNM - UICC 2010

Tx Não avaliado

T0 Ausência de tumor primário

Tis CA in situ (restrito à mucosa, sem invasão da lâmina própria)

T1 Lâmina própria, muscular da mucosa ou submucosa

T1a Lâmina própria ou muscular da mucosa

T1b Submucosa

T2 Muscular própria

T3 Tecido conecti vo subseroso, sem invasão de vísceras peritoneais ou estruturas subjacentes

T4 Invade a serosa (tecido peritoneal) ou estruturas adjacentes

T4a Tumor invade serosa

T4b Tumor invade estruturas subjacentes

Nx Não avaliado

N0 Ausência de metástases

N1 De 1 a 2 linfonodos comprometi dos

N2 De 3 a 6 linfonodos comprometi dos

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ANEXO

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Classifi cação TNM - UICC 2010

N3 Mais de 7 linfonodos comprometi dos

N3a De 7 a 15 linfonodos

N3b Mais que 16 linfonodos

Mx Não avaliado

M0 Ausência de metástase

M1 Metástase a distância

Estadiamento TNM - UICC 2010

Estadio T N M

0 is 0 0

IA 1 0 0

IB1 1 0

2 0 0

II

1 2 0

2 1 0

3 0 0

IIIA

2 2 0

3 1 0

4 0 0

IIIB 3 2 0

IV

4 1, 2 e 3 0

1, 2 e 3 3 0

Qualquer Qualquer 1

Câncer colorretalClassifi cação TNM - UICC 2010

Tx Não avaliado

T0 Ausência de tumor primário

Tis CA in situ (restrito à mucosa)

T1 Invade submucosa

T2 Muscular própria

T3 Serosa e tecidos pericólicos

T4 Estruturas adjacentes

T4a Invade peritônio do órgão

T4b Invade órgãos adjacentes

Nx Não avaliado

N0 Ausência de metástase

N1 De 1 a 3 linfonodos comprometi dos

N1a 1 linfonodo

N1b De 2 a 3 linfonodos

N2 4 ou mais linfonodos comprometi dos

N2a De 4 a 6 linfonodos

N2b Mais de 7 linfonodos

Mx Não avaliado

M0 Ausência de metástase

M1 Metástase a distância

M1a Metástase confi rmada em 1 órgão

M1b Metástase em mais de 1 órgão ou peritoneal

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Estadiamento TNM - UICC 2010 e correlação dos diferentes métodos de estadiamento

AJCC/UICC T N M Dukes Astler-Coller

0 Tis N0 M0 - -

I T1, 2 N0 M0 A A

IIA T3 N0 M0 A B1

IIB T4 N0 M0 B B2

IIIA T1, 2 N1 M0 B C1

IIIB T 3, 4 N1 M0 C C2

IIIC Qualquer T N2 M0 C C1, C2

IV Qualquer T Qualquer N M1 C D

Tumores pancreáti cos e neuroendócrinos

Classifi cação TNM - UICC 2010

Tx Não avaliado

T0 Ausência de tumor primário

Tis CA in situ

T1 Limitado ao pâncreas, com até 2cm

Classifi cação TNM - UICC 2010

T2 Limitado ao pâncreas, com mais de 2cm

T3 Além do pâncreas, sem envolvimento do plexo celíaco ou da artéria mesentérica superior

T4 Envolvimento do plexo celíaco ou artéria mesentérica superior (irressecável)

Nx Não avaliado

N0 Ausência de linfonodos comprometi dos

N1 Metástase linfonodal

Mx Não avaliado

M0 Ausência de metástase

M1 Metástase a distância

Estadiamento TNM - UICC 2010Estadio T N M

0 is 0 0

IA 1 0 0

IB 2 0 0

IIA 3 0 0

IIB 1, 2, 3 1 0

III 4 Qualquer 0

IV Qualquer Qualquer 1

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Anestesia

José Américo Bacchi Hora / José Eduardo de Assis Silva / Eduardo Bertolli

B - Anamnese e história clínica

Todo paciente deve ser entrevistado antes da realização da cirurgia. As informações podem ser obti das por preen-chimento de questi onários com perguntas específi cas ou entrevista conduzida pelo anestesiologista. À anamnese, é importante obter o máximo de informações orientadas objeti vamente pela patologia cirúrgica, considerando, tam-bém, doenças concomitantes e suas implicações na aneste-sia planejada, a saber:

-Estado geral atual; -Ati tude mental diante da doença; -Ati vidade fí sica e tolerância ao exercício; -Antecedentes relati vos às comorbidades, tentando alcançar o maior número de doenças preexistentes (neurológicas, cardiovasculares, pulmonares, renais, endócrinas, gastroenterais, hematológicas, imunoló-gicas); -Antecedentes de alergias (medicamentosas e, parti cu-larmente, ao látex); -Uso de medicamentos (anti -hipertensivos, anti arrít-micos, anti convulsivantes, digitálicos, AAS, hipogli-cemiantes, anti coagulantes e outros) e fi toterápicos (ginkgo biloba, alho, ginseng etc.), devido às suas pos-síveis interações; -Uso de drogas lícitas e ilícitas (tabagismo, álcool, ma-conha, cocaína etc.); -Antecedentes de febre não infecciosa ou desconhe-cida, relacionadas a miopati as como hipertermia ma-ligna; -Antecedentes cirúrgicos e/ou obstétricos: difi culdade para intubação, parada cardíaca, difi culdade ou com-plicações durante a execução de bloqueio regional (pa-restesias, cefaleia pós-punção); -Antecedente de quimioterapia ou radioterapia (po-dem causar ICC, hipoti reoidismo); -Uso de sangue e derivados, e consenti mento para eventual hemotransfusão; -Para mulheres em idade férti l, data da últi ma mens-truação;

Pontos essenciais -Avaliação pré-anestésica; -Manejo das vias aéreas; -Farmacologia e toxicidade dos anestésicos locais; -Raquianestesia e anestesia peridural; -Farmacologia dos anestésicos venosos; -Recuperação pós-anestésica e complicações em anes-tesia; -Hipertermia maligna.

1. Avaliação pré-anestésicaA avaliação pré-anestésica, por defi nição, consiste na

obtenção de múlti plas informações do paciente durante um processo que inclui a anamnese em visita (ao leito) ou em consulta (em consultório), a revisão do prontuário médico, o exame fí sico e a complementação com exames laboratoriais.

A consulta pré-anestésica traz vantagens ao setor públi-co, às operadoras de saúde, aos médicos e aos pacientes:

-Menor número de diária hospitalar; -Menos exames pré-operatórios; -Menos suspensões de anestesias/cirurgias; -Menor custo hospitalar; -Remuneração médica pela consulta; -Menor taxa de ocupação em UTI; -Melhor documentação sobre o histórico médico do paciente.

A - Objeti vos

-Reduzir a morbimortalidade do paciente cirúrgico (principal objeti vo); -Obter informações sobre as condições fí sica e psíquica do paciente; -Planejar o ato anestésico (monitorização, abordagem de via aérea, acesso venoso); -Fazer ajuste ou manutenção de medicamentos; -Orientar e diminuir a ansiedade dos pacientes e familiares; -Orientar jejum adequado.

CAPÍTULO

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-Antecedentes anestésicos relevantes, como náuseas, vômitos e tolerância à dor, além de experiências trau-máti cas, como despertar no intraoperatório.

Mesmo em emergências, o anestesiologista tem a obri-gação de conhecer o paciente e de registrar suas informa-ções no prontuário médico. Caso ele não esteja consciente, um familiar mais próximo deve ser questi onado para a ob-tenção de um mínimo de informações. O exame fí sico deve ser sempre realizado. Portanto, apenas em caso de risco de morte iminente ou de o paciente achar-se inconsciente e sem um acompanhante é que, eventualmente, se realiza anestesia sem avaliação pré-anestésica. Em casos como es-ses, a revisão de prontuário pode ajudar com informações relevantes.

A revisão de prontuário é um recurso de valor tanto em casos eleti vos como de urgência. Dele constam dados como peso, altura, sinais vitais, moti vo da internação, resu-mo da doença atual e histórico cirúrgico e anestésico, com informações sobre difi culdades para intubação, realização de bloqueios regionais, intercorrências anestésicas etc. É especialmente válido quando o paciente tem difi culdade para se comunicar (grave estado geral, défi cit auditi vo ou de fonação, senilidade, retardo mental etc.) ou em casos de urgência/emergência.

Entre os dados a serem obti dos na história clínica, são importantes: a investi gação de antecedentes de alergias e a suspeita de hipertermia maligna.

a) Alergias

Em geral, o paciente sabe informar se já apresentou um quadro grave ou importante de alergia. A incidência de re-ação ao látex tem aumentado em todo o mundo e deve ser investi gada durante a avaliação pré-anestésica. Vários casos de parada cardíaca súbita ou de causa ignorada foram con-cluídos, em investi gação posterior, como alergia aos deriva-dos do látex. São fatores de risco para o desenvolvimento de reação anafi láti ca ao látex:

-História de exposições múlti plas a seus derivados; -Atopia e/ou alergias a determinados alimentos (kiwi, banana, abacate, maracujá e frutas secas); -Pacientes submeti dos a múlti plas cirurgias e/ou son-dagens vesicais; -Crianças com defeitos de fechamento do tubo neural (em especial, meningomielocele); -Profi ssionais de saúde e usuários de látex (cabeleirei-ros, profi ssionais de limpeza).

Dos grupos de risco, as crianças com meningomielocele têm a maior incidência de reação aos derivados do látex, variando entre 13 e 73% quando são atópicas e quando fo-ram submeti das a múlti plas cirurgias.

Pacientes com histórico de alergia ao látex (qualquer ti po de borracha) devem ser avaliados pelo alergista ou imunologista para a confi rmação ou não da sensibilidade. Se positi va, as equipes médicas e de enfermagem devem

ser alertadas, e o paciente deve usar material latex-free du-rante toda a internação, uma vez que a reação pode ocorrer a qualquer momento em que haja contato com o derivado do produto.

b) Miopati as

Devem ser investi gadas, mesmo em pacientes suposta-mente hígidos e seus familiares. História de miopati as ou quadros de febre grave inexplicada (não infecciosa), duran-te ou fora do ato anestésico, levam à suspeita de hiperter-mia maligna, e o paciente e/ou seus familiares devem ser encaminhados a centros apropriados de investi gação.

C - Aspectos relevantes ao exame fí sico

- Exame fí sico geral

É importante realizar a inspeção do paciente sobre seu aspecto clínico geral com atenção à presença de febre, ic-terícia, cianose de extremidades ou mucosa, hidratação cutâneo-mucosa, descoramento mucoso e avaliação de si-nais vitais.

A pressão arterial deve ser aferida em ambos os braços ou, no mínimo, 2 vezes no mesmo braço, com alteração de posição (sentado ou deitado e de pé). A hipertensão arterial sistêmica é a doença associada mais frequente entre pacien-tes cirúrgicos e a principal causa de cancelamento ou adia-mento de cirurgias. É importante sua detecção em tempo hábil para tratamento ou compensação, além da defi nição sobre quais são os realmente hipertensos e quais são os hi-pertensos no momento da consulta, pela ansiedade ou por outros fatores (manguito inadequado, sem calibração ideal).

É importante realizar a ausculta cardíaca, atentando para possíveis alterações de ritmo e fonese das bulhas car-díacas e presença de sopros, assim como a ausculta pulmo-nar, especialmente em bases, verifi cando a presença de ru-ídos adventí cios (estertores, roncos e sibilos). Também são importantes a observação de estase jugular, ausculta caro-tí dea, avaliação da perfusão de extremidades e presença de edema.

A avaliação das vias aéreas superiores deve ser minucio-sa, observando a presença de alterações de denti ção, pró-teses, anormalidades bucais, cavidade oral, mento e pesco-ço. A via aérea nasal também deve ser avaliada, bem como a mobilidade cervical (possibilidade de assumir a posição olfatória – óti ma para intubação) e temporomandibular. Vá-rios testes foram propostos para a predição de difi culdade na intubação orotraqueal, mas nenhum deles é efi caz em 100% das vezes.

O teste de Mallampati é realizado com o paciente senta-do, o pescoço em posição neutra (perpendicular ao chão), a boca em abertura total, e a língua em protrusão máxima e sem fonação. O observador deve estar sentado, com os olhos à mesma altura da linha dos olhos do paciente. A ca-vidade oral é classifi cada em 4 classes (Figura 1), e há cor-relação entre a maior classe e a difi culdade de exposição da fenda glóti ca durante a laringoscopia.

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Figura 1 - Variações anatômicas da cavidade oral distribuídas em classes (I a IV)

-Classe I: palato mole, pilares, úvula e tonsilas palati nas anterior e posterior visíveis; -Classe II: palato mole, pilares e úvula visíveis; -Classe III: palato mole e base da úvula visíveis; -Classe IV: palato mole parcialmente visível.

As classes III e IV são sugesti vas de intubação difí cil. Em gestantes, foi observado um aumento do número de casos de Mallampatti IV, sem correlação com aumento da difi cul-dade de intubação.

Na distância esterno-mento, com o paciente sentado, pescoço em extensão máxima, boca fechada, mede-se a distância entre o bordo superior do esterno (manúbrio) e o mento. Distância ≤12,5cm é considerada sugesti va de in-tubação difí cil.

D - Exames laboratoriais

A tendência atual é solicitar e realizar exames segun-do dados positi vos da história clínica e do exame fí sico, de acordo com a necessidade de cirurgiões ou clínicos. Deter-minados exames podem sofrer alterações, ainda que sem modifi cações clínicas perceptí veis. Conforme a inclusão do paciente em uma população de alto risco para alguma condição específi ca (câncer, por exemplo), mesmo que sem dados clínicos presentes, é necessária a investi gação de al-guma alteração laboratorial associada.

Em pacientes de estado fí sico ASA I e II, os exames po-dem valer até 1 ano, desde que não sofram alterações fre-quentes pela patologia a ser tratada (como mulher jovem com miomatose uterina e importante sangramento ou gli-cemia em paciente diabéti co).

E - Consultas especializadas

Pacientes com doenças associadas, compensadas ou não, mas que apresentem disfunção importante do órgão acometi do, devem ser encaminhados a um especialista com os objeti vos de avaliação do estado da doença e grau de comprometi mento funcional, além de tratamento da do-ença, visando à cura ou terapêuti ca até o melhor resultado possível.

F - Medicamentos em uso

A orientação é para a manutenção de drogas de uso contí nuo no período pré-operatório. Suas doses e horários

devem ser conhecidos pelo anestesiologista. Deve-se ter atenção especial às possíveis interações medicamentosas e a cuidados especiais com anti coagulantes, hipoglicemian-tes, fi toterápicos e anti -hipertensivos.

a) Anti -hipertensivos

A hipertensão arterial é comumente associada a com-plicações perioperatórias. Hipertensos podem apresen-tar hipertrofi a ventricular esquerda, doença coronariana, insufi ciência renal e doença cerebrovascular. Pacientes com hipertensão arterial grave (PAS >180mmHg e PAD >110mmHg) devem ter níveis tensionais corrigidos antes do procedimento cirúrgico.

De maneira geral, todos os anti -hipertensivos podem ser manti dos. Os beta-bloqueadores têm comprovada pro-teção cardiovascular, e sua reti rada está associada à taqui-cardia e crise hipertensiva. Os diuréti cos merecem atenção pelo risco de depleção volêmica e eletrolíti ca. Os Inibidores da Enzima Conversora de Angiotensina (IECA) estão asso-ciados à hipotensão arterial signifi cati va, hipovolemia e maior perda sanguínea no intraoperatório, por isso alguns autores recomendam sua reti rada no dia da cirurgia.

b) Hipoglicemiantes e insulinas

É consensual a suspensão dos hipoglicemiantes de lon-ga duração no período pré-operatório. Dependendo do porte cirúrgico, durante o jejum, o paciente pode receber hidratação venosa com glicose e eletrólitos (sódio e potás-sio) e realizar controle glicêmico a parti r da glicemia capilar, usando insulina regular subcutânea. A metf ormina piora a acidose lácti ca e deve ser suspensa 48h antes dos procedi-mentos cirúrgicos. Quanto aos pacientes submeti dos a con-traste iodado, deve ser reintroduzida após 48h, e deve ser realizada avaliação renal.

Para cirurgias de pequeno porte, usuários de insulina de lenta ou intermediária duração, compensados e atendidos em regime ambulatorial, devem passar a usar insulina regu-lar 24h antes do procedimento e ser monitorizados quanto à glicemia em domicílio e à chegada ao hospital. Já indiví-duos internados podem fazer uso de insulina lenta ou inter-mediária, uma vez que podem receber infusão de glicose durante o jejum pré-operatório e ser monitorizados quan-to à glicemia a cada 2h durante a cirurgia e pós-operatório imediato.

c) Anti depressivos

Usados no tratamento de várias patologias (depressão, síndrome do pânico, dor crônica), os anti depressivos estão entre as drogas mais prescritas do mundo e disponíveis em grande número de fármacos com diferentes mecanismos de ação (esti mulantes da liberação de dopamina, inibidores da captação da serotonina). Com isso, mudam condutas clássi-cas anteriores, como a suspensão de inibidores de monoa-mino-oxidase (IMAO) 3 semanas antes do procedimento ou cuidados especiais com interações medicamentosas com os anti depressivos tricíclicos. A orientação é pela manutenção,

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com o cuidado de conhecer a medicação e as suas possíveis interações, evitando, se possível, drogas simpatomiméti cas, halotano, meperidina e tramadol.

d) Fitoterápicos

Apesar de o efeito combinatório dos fi toterápicos com outras drogas não ser inteiramente esclarecido, acredita-se que éfedra, ginseng, ginkgo biloba, ginger, avelós e vitami-na E aumentem o sangramento intraoperatório, especial-mente em pacientes em uso de anti coagulantes. A erva-de--são-joão pode prolongar os efeitos da anestesia geral. É possível que o alho possa interagir com anti depressivos e vasopressores, aumentando a frequência cardíaca e a pres-são arterial. Muitos pacientes fazem uso de fi toterápicos e suplementos vitamínicos, e não o informam aos seus médi-cos. A orientação é para que sejam suspensos, pelo menos, 15 dias antes da cirurgia.

e) Anti coagulantes

Receptores de medicações que alteram a coagulação san-guínea devem ter coagulograma recente, mesmo que elas não alterem a coagulação isoladamente. É importante avaliar o risco-benefí cio do uso de anti coagulantes em relação ao procedimento cirúrgico e à técnica anestésica a ser adotada.

Medicações que interferem em outros componentes da hemostasia podem potencializar riscos sem alterar o INR (AAS, AINEs, ti clopidina, clopidogrel, heparina não fraciona-da e heparina de baixo peso molecular), mas estudos com grande número de pacientes sugerem que o AAS (ácido aceti lsalicílico) e os AINEs (Anti -Infl amatórios Não Esteroi-dais) não são fatores maiores de risco para a formação de hematoma após bloqueio espinhal.

Usuários de varfarina (por exemplo, prótese cardíaca metálica, trombose venosa profunda) devem ter o anti coa-gulante suspenso 5 dias antes do procedimento e substi tuí-do por heparina de baixo peso molecular, em caso de profi -laxia imprescindível. Devem-se aguardar 12h após a últi ma dose de heparina de baixo peso molecular para a realização de bloqueio regional, e essa heparina pode ser reintroduzi-da 4h após a realização do bloqueio.

O controle clínico deve ser feito com o INR, aceitável para cirurgia quando abaixo de 1,5 (considerado seguro para blo-queio regional). Em casos de urgência, os pacientes podem receber plasma fresco, infusão de complexo protrombínico ou fator VII ati vado, e a anestesia geral deve ser a 1ª opção.

f) Outras drogas

Drogas uti lizadas no controle de arritmias, asma, doen-ças da ti reoide, gastrite e refl uxo gastroesofágico devem ser conti nuadas no período pré-operatório.

G - Avaliação do risco cirúrgico

Na maioria dos casos, o risco anestésico é difí cil de ser avaliado de forma isolada. As complicações periope ratórias e as mortes são habitualmente causadas por uma combina-ção de fatores, incluindo o estado fí sico, as doenças associa-

das, a complexidade da operação e, até mesmo, a habilida-de e o nível de conhecimento do anestesiologista.

2. Manejo das vias aéreasSegundo a Sociedade Americana de Anestesiologia

(ASA), o manejo inadequado da via aérea é a causa mais frequente de complicações em anestesia e responsável por 30% dos óbitos de causa exclusivamente anestésica.

Venti lação difí cil, falha em reconhecer intubação esofá-gica e difi culdade, ou mesmo impossibilidade de intubação, são responsáveis pela maioria das complicações. Sabe-se que a maioria dos óbitos ou danos cerebrais por problemas de venti lação é perfeitamente evitável. Sabendo-se que a anestesia geral e alguns procedimentos cirúrgicos reque-rem intubação orotraqueal (IOT), deve-se realizar uma ade-quada avaliação das vias aéreas.

A - Difi culdades no processo de intubação traqueal

A via aérea difí cil é uma situação em que um anestesis-ta em treinamento tem difi culdade na venti lação manual com máscara, na intubação traqueal ou em ambas. O diag-nósti co de uma potencial difi culdade de intubação deve ser feita antes de um anestésico ser administrado. Quando esse problema não é antecipado, vários fatores contribuem para piorar a situação: estresse do operador, falta de equi-pamento necessário, respostas improvisadas para situações difí ceis, pedir ajuda muito tarde e fazer múlti plas tentati vas de intubação, o que, geralmente, torna a venti lação e/ou a intubação ainda mais difí ceis.

Uma anamnese cuidadosa e um exame fí sico completo identi fi cam possíveis situações de difi culdade de intubação, permiti ndo um melhor preparo, que pode impedir o fracas-so da venti lação e consequentes parada cardíaca e morte. Tal avaliação varia conforme a situação: programada (cirur-gia eleti va) ou não programada (intubação de urgência em pronto-socorro ou UTI).

A venti lação sob máscara difí cil é defi nida como a inca-pacidade em manter a saturação arterial de oxigênio acima de 90% em um paciente que apresentava tal condição antes da tentati va de intubação, mesmo usando oxigênio a 100% e venti lação com bolsa/válvula/máscara.

A laringoscopia difí cil caracteriza-se pela impossibilidade de observar uma parte das cordas vocais. A intubação endo-traqueal difí cil é defi nida quando são necessárias mais de 3 tentati vas ou mais do que 10 minutos para a introdução do tubo traqueal, usando-se laringoscopia convencional.

A tolerância à venti lação inadequada e à hipóxia resultan-te depende da idade, do peso e do estado fí sico do paciente. O tempo é restrito e representa um aspecto fundamental para a sobrevida. A seguir, é possível observar como o pa-ciente dessatura em apneia após uso de bloqueador neuro-muscular de curta duração (succinilcolina) antes mesmo de seu efeito ser reverti do (7 a 10 minutos). A hipoxemia é acen-tuada em obesos, crianças e adultos com patologias prévias.

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Figura 2 - Curvas de dessaturação durante a apneia

As principais consequências associadas ao manejo ina-dequado das vias aéreas são óbito, lesão cerebral, parada cardíaca, traqueostomia desnecessária e trauma na via aé-rea ou nos dentes.

a) Condições associadas ao comprometi mento das vias aéreas

-Doenças congênitas: Pierre Robin, Marfan, higroma císti co, fi ssura palati na; -Trauma: fratura ou instabilidade da coluna cervical, queimaduras; -Afecções endócrinas: obesidade, diabetes, acromegalia; -Processos infl amatórios: espondilite anquilosante, ar-trite reumatoide; -Câncer: tumores em via aérea alta e/ou baixa, radio-terapia prévia; - Infecção: epigloti te, bronquite, abscessos, pneumonia; -Corpo estranho; -Testes como Mallampati , determinação da distância ti -reomentual, abertura da boca (espaço interincisivo) e mobilidade do pescoço podem ser usados para deter-minar difi culdade de intubação. No entanto, não existe teste com 100% de sensibilidade e 100% de especifi ci-dade, e parece improvável que algum teste como esse seja desenvolvido futuramente.

b) Sinais sugesti vos de intubação difí cil

-Distância ti reomentual <6cm; -Abertura bucal ≤3cm; -Mobilidade atlanto-occipital reduzida; -Classifi cação de Mallampati ≥II; -Complacência reduzida do espaço submandibular;

- Incisivos centrais superiores longos; -Retrognati smo passivo; -Pescoço curto; -Pescoço largo; -Limitação da protrusão mandibular; -Palato ogival.

c) Sinais sugesti vos de venti lação difí cil - IMC ≥30kg/m2; -Presença de barba; -Classifi cação de Mallampati ≥III; - Idade >57 anos; -Protrusão mandibular reduzida; -Distância ti reomentual <6cm; -História de ronco.

Tabela 1 - Escore de intubação (Airway Diffi culty Score – ADS)

Parâmetro x pontuação

1 2 3

Distância ti reomentual

>6cm 5 a 6cm <5cm

Índice de Mallampati

Classe I Classe II Classe III ou IV

Abertura bucal 4cm 2 a 3cm 1cm

Mobilidade do pescoço

Normal Reduzida Sem fl exão

Incisivos superiores Ausentes Normais Proeminentes

Se escore ≥8, provável venti lação ou intubação difí ceis.

B - Avaliação clínica para facilitar a intubação traqueal

A avaliação clínica permite conhecer as reservas respira-tórias e circulatórias do paciente, pois a laringoscopia e a in-

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tubação são acompanhadas de alterações nesses sistemas. No sistema nervoso, as manobras de intubação podem elevar a hipertensão intracraniana preexistente ou agravar uma lesão raquimedular.

É importante saber se já houve difi culdade de intuba-ção. Presença de dispneia, disfagia, trauma ou cirurgia an-terior na região do pescoço, tumores ou abscessos nas vias aéreas superiores, comprometi mento da mobilidade do pescoço, desvios da laringe, disfonia, trauma de laringe ou edema, instabilidade de coluna cervical (ou suspeita de le-são cervical) são sinais sugesti vos de difi culdade. Hipoplasia de mandíbula, retrognati smo e micrognati smo estão asso-ciados à difi culdade de laringoscopia e intubação.

A avaliação do jejum é muito importante, pois a lesão pulmonar por aspiração de suco gástrico (síndrome de Mendelson) é uma das complicações mais graves associa-das à intubação. As gestantes têm maior risco de aspiração de conteúdo gástrico. Ao fi nal da gravidez, o esvaziamento gástrico e o tônus do esfí ncter inferior do esôfago estão di-minuídos, e aumenta a pressão intragástrica. Se necessária venti lação com máscara, deve ser feita pressão na carti la-gem cricoide (manobra de Sellick) até que o tubo traqueal esteja corretamente posicionado e o cuff (balão), insufl ado.

No exame fí sico, alguns dados também podem auxiliar. A anatomia da face, as dimensões das narinas, a permeabi-lidade das fossas nasais, a abertura da boca, a mobilidade da mandíbula, as dimensões da cavidade oral e da língua, a denti ção e as próteses dentárias e a mobilidade cervical são aspectos igualmente relevantes nessas circunstâncias.

C - Manejo: posicionamento, venti lação sob máscara facial e intubação traqueal

A intubação oral é a técnica mais frequentemente usa-da para a manipulação da via aérea (Tabela 2). Em procedi-mentos eleti vos clássicos, é realizada após a indução anes-tésica com opioide, hipnóti co e bloqueador neuromuscular. Em Pediatria, é possível a execução da IOT usando apenas indução inalatória, mas opioides, hipnóti cos e bloqueado-res neuromusculares também podem ser uti lizados. Em ur-gências/emergências, em situações com risco de aspiração pulmonar ou via aérea difí cil prevista, pode ser indicada a intubação traqueal com o paciente acordado.

Tabela 2 - Intubação orotraqueal

Vantagens

- Controle da via aérea pelo tempo necessário;

- Diminuição do espaço morto anatômico;

- Facilidade à aspiração de secreções brônquicas;

- Impedimento da passagem de ar para o estômago e intesti no.

Indicações

- Oxigenação ou ventilação inadequada;

- Perda dos mecanismos protetores da laringe;

- Traumati smos sobre as vias aéreas;

- Métodos diagnósti cos (tomografi a, ressonância magnéti ca, endoscopias etc.);

Indicações

- Indicações específi cas, como procedimentos cirúrgicos sob anestesia geral, também podem requerer intubação traqueal;

- Posição diferente da supina;

- Procedimentos cirúrgicos prolongados;

- Neurocirurgia, cirurgias oft álmicas ou de cabeça e pescoço.

Pode-se uti lizar a intubação nasotraqueal quando a rota oral está indisponível ou é impossível (Tabela 3). Ela pode ser realizada com o paciente acordado, com sedação e consciente (às cegas, sob visão direta com laringoscópio ou com fi brobroncoscópio) ou já anestesiado (sob laringos-copia direta). A introdução do tubo via narina direita está relacionada a menor ocorrência de trauma de corneto.

Tabela 3 - Intubação nasotraqueal

Vantagens

- Mais bem tolerada por pacientes em intubações prolongadas;

- Cuidados de enfermagem mais facilitados;

- Ausência de riscos de o paciente morder o tubo;

- Menor necessidade de manipulação cervical.

Indicações

- Cirurgia endoral ou oromandibular;

- Incapacidade de abrir a boca (trauma, tumores, espondilite anquilosante);

- Intubação prolongada.

Contraindicações

- Fratura da base do crânio (em especial, de etmoide);

- Fratura de nariz;

- Epistaxe e coagulopati a;

- Desvio acentuado do septo nasal;

- Polipose nasal (contraindicação relati va).

D - Manejo: intubação com o paciente conscien-te/acordado

É indicada nas situações a seguir, tanto para intubação oral como nasotraqueal:

- Intubação difí cil já prevista/avaliada; -Difi culdade na venti lação sob máscara facial no perío-do pré-intubação, por doenças ou característi cas ana-tômicas; -Necessidade de manutenção da consciência para ava-liação neurológica; -Risco de aspiração de conteúdo gástrico (síndrome de Mendelson).

Sempre que possível, havendo habilidade do anestesio-logista e equipamento disponível, deve-se uti lizar o bronco-fi broscópio. Além disso, é muito importante que o paciente seja esclarecido quanto à indicação da técnica e sua exe-cução, para que ele se mantenha calmo e possa colaborar.

Quando há risco de regurgitação de conteúdo gástri-co, deve-se usar apenas anestesia tópica nasal, evitando

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anestesia da laringe ou traqueia, devido à perda de seus refl exos protetores. Na ausência desse risco, é possível usar, também, o bloqueio do nervo laríngeo superior e a injeção transtraqueal de anestésico local, obtendo-se, assim, uma intubação traqueal indolor e sem tosse.

E - Dispositi vos supraglóti cos

a) Máscara laríngea

A Máscara Laríngea (ML) é um dispositi vo supraglóti co desenvolvido para o manejo das vias aéreas, podendo ser considerado funcionalmente intermediário entre a máscara facial e o tubo endotraqueal (Figura 3). Dispensa o uso de laringoscópio ou instrumentos especiais para sua inserção, além de ser considerada uma boa opção para o manejo da via aérea difí cil nos algoritmos publicados pela Associação Americana de Anestesiologia e o Conselho Europeu de Res-suscitação (Figura 4).

Figura 3 - Máscaras laríngeas e tubo endotraqueal acoplados

Inicialmente concebida apenas para o manejo da via aérea em anestesias convencionais, foi rapidamente con-sagrada como equipamento indispensável nos casos de via aérea difí cil. Tem a desvantagem de não proteger a traqueia contra regurgitação de conteúdo gástrico.

A ML está disponível em vários tamanhos, possibilitan-do o uso desde em lactentes até em adultos. Corretamente posicionada, sua face convexa posterior estará em contato com a parede da faringe e a face anterior sobreposta à la-ringe, de forma a permiti r a venti lação. Sua ponta aloja-se sobre o esfí ncter esofágico superior.

Tabela 4 - Máscara laríngea

Indicações

- Para intubação traqueal em casos: venti lável, mas não intubável;

- Situação de emergência: não intubo, não venti lo;

- Via aérea defi niti va para prosseguir um caso não emergencial: paciente anestesiado, que não pode ser intubado, mas é facilmente venti lável com máscara facial;

- Como conduta para intubação traqueal com fi bra ópti ca no paciente acordado.

Contraindicações

- Paciente sem jejum;

- Hérnia hiatal;

- Obesidade extrema;

- Gravidez;

- Politrauma (estômago cheio, instabilidade cervical);

- Baixa complacência pulmonar;

- Patologias faríngeas (tumores, obstrução, abscessos);

- Limitação para extensão ou abertura bucal (espondilite anquilosante, artrite);

- Neuropati as com retardo de esvaziamento gástrico;

- Profi ssional sem treinamento.

As restrições para o uso da ML relacionadas ao maior risco de regurgitação e baixa complacência pulmonar são clássicas para os casos de roti na. Porém, nas situações de emergência, as vantagens da ML como dispositi vo superam as contraindicações.

As MLs são confeccionadas em silicone especial e isen-tas de látex (Figura 3) e possuem diversos formatos funcio-nais, possibilitando a inserção de tubo traqueal ou de bron-cofi broscópio pelo seu lúmen.

Figura 4 - Via aérea difí cil com uso da ML

b) Tubo esofagotraqueal de dupla via

O tubo esofagotraqueal de dupla via (Combitube®) é uma sonda descartável dotada de 2 balonetes (um orofa-ríngeo e outro esofágico) e de dupla luz, uma convencional (tubo nº 2 – a via mais clara e mais curta) e outra multi -fenestrada (tubo nº 1 – via azul mais longa) no segmento correspondente à orofaringe, sendo ocluída distalmente (Figura 5).

Trata-se de uma opção, em alguns casos, em que não se consegue fazer a intubação da traqueia por métodos con-

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vencionais, reanimação cardiopulmonar ou acesso às vias aéreas em ambiente extra-hospitalar (Figura 6). É introdu-zido às cegas e permite venti lação adequada independen-temente de seu posicionamento fi nal – esofágico (94 a 99% dos casos) ou traqueal. É disponível em 2 tamanhos; 37F para paciente de 1,40 a 1,80m de altura, e 41F para pacien-tes com mais de 1,80m de altura.

Tabela 5 - Tubo esofagotraqueal de dupla via

Vantagens

- Técnica de fácil aprendizagem;

- Venti lação sati sfatória em posição esofágica ou traqueal;

- Efeti vo em via aérea difí cil, casos de sangramento ou vômitos que impeçam a visualização das pregas vocais;

- Não requer laringoscopia (mas o laringoscópio pode ser usado para facilitar a inserção) e exige mínima movimentação cervical;

- Balão esofágico previne aspiração e permite drenagem de conteúdo gástrico e vômitos.

Desvantagens

- Não disponível em tamanho pediátrico;

- Possibilidade de complicações graves (laceração esofágica, mediasti nite);

- Necessita de altas pressões nos balonetes;

- Não permite acesso à via aérea (aspiração, fi broscopia), exceto em modelos especiais.

Contraindicações

- Paciente com altura inferior a 1,40m;

- Paciente consciente com refl exo nauseoso presente;

- Paciente com doença esofágica ou ingestão de soda cáusti ca.

Figura 5 - (A) Tubo esofagotraqueal de dupla via (Combitube®) e (B) tubo esofagotraqueal colocado

F - Vias cirúrgicas para acesso às vias aéreas

A cricoti reoidostomia e a traqueostomia são acessos cirúrgicos para via aérea. Enquanto esta compreende um procedimento eleti vo para uma via aérea de longa per-manência, aquela é, em geral, uti lizada como acesso de urgência e por curto período de tempo. O acesso cirúr-gico de emergência é visto como a últi ma abordagem do paciente que não pode ser intubado. Atualmente, ambos os acessos podem ser realizados por meio da técnica per-cutânea.

Figura 6 - Via aérea difí cil, incluindo técnicas invasivas e Combitube®

3. Farmacologia dos anestésicos locaisOs anestésicos locais são substâncias capazes de blo-

quear, de forma totalmente reversível, a geração e a pro-pagação do potencial de ação em tecidos eletricamente excitáveis. Agem em qualquer parte do sistema nervoso e em todo ti po de fi bra, além de serem capazes de produzir bloqueio tanto sensiti vo quanto motor.

4. Anestesia subaracnóideaA 1ª anestesia subaracnóidea foi realizada por Auguste

Bier e seu assistente em 1898, com injeção de cocaína e subsequente cefaleia no período pós-anestésico. Embora não haja indicação absoluta para a técnica, o fato de produ-zir profunda analgesia sensorial com relaxamento muscular requer pequena dose e volume de fármaco, e simplicidade de realização mantém a raquianestesia presente no arsenal técnico da Anestesiologia há mais de 1 século.

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A - Anatomia

A coluna é formada por 33 vértebras unidas por 5 liga-mentos superpostos:

1 - Ligamento supraespinhoso.2 - Ligamento interespinhoso.3 - Ligamento amarelo.4 - Ligamento longitudinal anterior.5 - Ligamento longitudinal posterior.

Recobrindo a medula, há 3 meninges: dura-máter (mais externa e resistente), aracnoide-máter (delicada e avascu-lar) e pia-máter (fi na e vascularizada, que recobre a superfí -cie da medula, aderindo a ela). Tais ligamentos e meninges delimitam os espaços raquidianos: espaço peridural (en-tre os componentes ligamentares e a dura-máter), espaço subdural (existe virtualmente, entre a superfí cie interna da dura-máter e a aracnoide) e espaço subaracnóideo (entre a pia-máter e a aracnoide, contém o líquido cerebrospinal).

A parti r do 3º mês de gestação, a coluna vertebral au-menta em extensão mais do que a medula, e, ao nascimen-to, esta se posiciona no nível de L3. Quando o indivíduo é adulto, apresenta-se, na maioria das vezes, em L1. Abaixo de L2, o espaço subaracnóideo contém as raízes nervosas em forma de cauda equina e o fi lamento terminal, per-miti ndo a punção lombar sem risco para a medula. Desta últi ma, saem 31 pares de raízes espinhais. A área cutânea inervada por um nervo, e seu correspondente segmento medular chama-se dermátomo.

O líquido cerebrospinal tem volume entre 90 e 150mL, secretado conti nuamente (20mL/h) em sua maior parte pelo plexo coroide dos ventrículos encefálicos (3º, 4º e late-rais). É incolor, claro, cristalino e não coagulável, ligeiramen-te alcalino e proveniente do plasma.

O anestésico tende a bloquear, inicialmente, as fi bras autonômicas, posteriormente as fi bras condutoras de calor, dor, propriocepção, pressão, tato e, por últi mo, bloqueio motor.

Tabela 6 - Classifi cação das fi bras nervosas

FibraDiâmetro

(μm)Mielina

Velocidade de

conduçãoFunção

A alfa 6 a 22 + 30 a 120Motor e

propriocepção

A gama 3 a 6 + 15 a 35 Tônus muscular

A delta 1 a 4 + 5 a 25Dor, toque,

temperatura

B <3 + 3 a 15 Função autonômica

C 0,3 a 1,3 - 0,7 a 1,3 Dor, temperatura

B - Farmacologia

Os anestésicos locais disponíveis no Brasil são, principal-mente, a lidocaína, com duração intermediária, e a bupiva-caína, com longa duração, e podem ser isobáricas, hipobári-cas ou, adicionando-se glicose, hiperbáricas.

Podem-se também uti lizar outros agentes adjuvantes, como opioides, clonidina etc. Os opioides mais uti lizados são o fentanila, o sufentanila e a morfi na, que possuem ação analgésica, melhorando a qualidade do bloqueio. A analgesia resulta da ati vação dos receptores opioides es-pecífi cos (MI, delta ou kappa) situados, principalmente, na substância cinzenta do corno posterior da medula. Causam, entretanto, efeitos colaterais, que variam desde prurido até depressão respiratória tardia.

Os opioides hidrofí licos, como a morfi na, ocasionam óti -ma analgesia, mas sua penetração na medula é lenta (início de ação de 60 a 90 minutos) e sua permanência no LCE é prolongada (até 24h), com risco de depressão respiratória tardia.

Os opioides lipofí licos mais usados na via subaracnóidea são o sufentanila e o fentanila. Apresentam rápido início de ação (3 a 5 minutos), duração variável (3 a 9h), pouco risco de depressão respiratória imediata e quase nenhum risco de depressão respiratória tardia.

Os efeitos colaterais dos opioides empregados por via subaracnóidea ou epidural são os mesmos em qualidade; porém, pela via subaracnóidea, a intensidade dos efeitos é maior. Os principais efeitos observados dos opioides são prurido (pode ser tratado com a difenidramina), depressão respiratória (pode ser tratada com a naloxona), sonolência, náuseas e vômitos; e retenção urinária.

C - Técnica

As 2 agulhas mais uti lizadas, atualmente, são as de Quincke e Whitacre (ponta de lápis), objeti vando, sempre, minimizar a incidência de complicações, como a cefaleia pós-raquianestesia.

Figura 7 - Técnica de punção da coluna

Figura 8 - Delimitação anatômica do local de punção

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O bloqueio pode ser realizado com o paciente sentado, em decúbito lateral ou ventral, em condições de anti ssepsia rigorosa. É prati cado, usualmente, nos espaços L2-L3, L3-L4 ou L4-L5, principalmente por via mediana, a fi m de evitar o plexo venoso peridural. Assim, há progressão pela pele, tecido celular subcutâneo, ligamento supra e interespinho-so, ligamento amarelo, penetração no espaço peridural e na dura-máter. O correto posicionamento é confi rmado pelo refl uxo de LCE. Há, também, a via de acesso paramediana, que atravessa a musculatura paravertebral e ati nge o liga-mento amarelo na linha mediana.

Nas gestantes, o aumento da lordose lombar reduz o espaço intervertebral, podendo difi cultar a execução da anestesia espinhal. O aumento do quadril eleva a porção lombossacra da coluna quando a parturiente é colocada em decúbito lateral, facilitando a dispersão cefálica do anesté-sico local e elevando o nível do bloqueio.

Tabela 7 - Anestesia subaracnóidea

Vantagens

- Facilidade de execução;

- Bloqueio motor;

- Relaxamento abdominal mais intenso que o do bloqueio peridural;

- Latência curta;

- Bloqueio da resposta ao estresse cirúrgico;

- Diminuição da perda sanguínea intraoperatória;

- Diminuição da incidência de eventos tromboembólicos no pós-operatório;

- Redução na morbimortalidade de pacientes cirúrgicos de alto risco;

- Analgesia pós-operatória;

- Terapia da dor aguda cirúrgica ou não.

Contraindicações

- Absoluta: recusa do paciente;

- Hipovolemia;

- Hipertensão intracraniana;

- Coagulopati as ou trombocitopenia;

- Sepse e infecção no local da punção.

A anestesia subaracnóidea pode ser, então, uti lizada amplamente em cirurgias pediátricas, ambulatoriais, obsté-tricas, cardíacas etc.

D - Complicações

Secundárias à própria técnica: -Hipotensão, bradicardia, bloqueios atrioventriculares, parada cardíaca; -Prurido, náuseas, vômitos; -Retenção urinária; -Depressão respiratória.

A hipotensão é de rápida instalação e acontece pela diminuição da resistência vascular sistêmica e da pressão

venosa central ocasionada pelo bloqueio simpáti co. Há va-sodilatação abaixo do bloqueio e redistribuição do volume sanguíneo central para extremidades inferiores e leito es-plênico. A bradicardia pode ocorrer por alteração no ba-lanço autonômico cardíaco, com predomínio do sistema parassimpáti co, principalmente pelo bloqueio das fi bras cardioaceleradoras. E o tratamento baseia-se em hidrata-ção e administração de agentes vasoati vos.

Provocadas por causa conhecida: -Acidente mecânico por trauma direto (lesões osteoli-gamentares nervosas); -Acidente pelo extravasamento de líquido cerebrospi-nal (cefaleia, fí stula liquórica cutânea, herniações etc.); -Acidente pelo uso do cateter; -Complicações infecciosas (meningite assépti ca, abs-cesso peridural e espinhal).

- Cefaleia pós-punção

A cefaleia pós-raquianestesia resulta da perda de líqui-do cerebrospinal por meio do orifí cio da dura-máter criado após sua punção. Como consequência, há tração dos folhe-tos meníngeos e das estruturas vasculares, ocasionando fenômenos dolorosos. É mais frequente em mulheres e jo-vens, com maior incidência em pacientes obstétricas. A fre-quência é variável e depende de 2 fatores fi siopatológicos: idade do paciente e característi cas da agulha.

A cefaleia tem intensidade alta, de caráter postural, bi-frontal e occipital, podendo irradiar para pescoço e ombros, iniciando-se nos primeiros dias de punção. Pode estar asso-ciada a náuseas, verti gens, distúrbios auditi vos, fotofobia, visão borrada e depressão do humor. É autolimitada, po-rém, às vezes, incapacitante, requerendo tratamento com tampão sanguíneo peridural (blood patch) quando o trata-mento clínico (repouso, hidratação e sintomáti cos) não se mostra efi caz.

Outras neurológicas: -Síndrome da cauda equina; -Sintomas neurológicos transitórios (parestesias, cefa-leia pós-punção); -Hematomas compressivos espinais.

5. Anestesia periduralO espaço peridural situa-se entre a dura-máter e o canal

vertebral e é preenchido por tecido adiposo e plexo veno-so. Nesse espaço, há pressão subatmosférica variável com a respiração e infl uenciada pela pressão intra-abdominal e torácica, e pela pressão liquórica, o que facilita sua identi -fi cação.

Vários anestésicos locais podem ser usados, a depender da duração de ação, efi cácia e latência, adequando-se à ci-rurgia. Substâncias adjuvantes, como epinefrina e opioides, também são úteis para prolongar a duração do bloqueio e melhorar sua qualidade. Com a lidocaína, o bloqueio se es-

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tabelece rapidamente, durando 90 a 120 minutos. Com a bupivacaína, a latência é maior, porém a duração também é mais longa (de 3 a 5 horas).

O bloqueio peridural, ao contrário do subaracnóideo, é segmentar, espraiando-se tanto caudal quanto cefalica-mente. O 1º sinal de bloqueio é a sensação de calor na área bloqueada com perda da discriminação térmica. A seguir, perda da sensação de picada (dolorosa), posteriormente, perda do tato com progressiva perda da força, até a anes-tesia completa com bloqueio motor e insensibilidade gene-ralizada. O bloqueio espalha-se de forma centrífuga, o blo-queio simpáti co alcança níveis mais altos que o sensiti vo, e este, mais alto que o bloqueio motor.

É necessário um preparo clínico adequado para a reali-zação do bloqueio. A presença de coagulopati as ou o uso de medicação anti coagulante podem, por exemplo, represen-tar uma contraindicação absoluta ou relati va para o proce-dimento, além de deformidades da coluna, que difi cultam sua realização. Como na anestesia subaracnóidea, a recusa do paciente apresenta-se como contraindicação absoluta para o procedimento anestésico, bem como infecção no lo-cal da punção, hipovolemia e choque circulatório.

A anestesia peridural pode ser realizada em, prati ca-mente, toda a coluna vertebral, embora o local mais co-mum seja a coluna lombar pela facilidade de punção. Além disso, uti liza-se, também, cateter para infusão contí nua do anestésico, que possibilita injeção durante a cirurgia, pro-longando o bloqueio, além da realização de analgesia pós--operatória.

A - Critérios de execução

a) Indicações da anestesia peridural

-Anestesia para procedimentos cirúrgicos dos membros inferiores, pelve e abdome; -Analgesia pós-operatória com ou sem opioide em téc-nica contí nua; -Tratamento da dor radicular aguda ou crônica; -Analgesia prolongada para tratamento de dor pós--operatória ou crônica, por meio do PCA (Pati ent-Con-trolled Analgesia).

b) Contraindicações

-Absoluta: recusa do paciente. -Relati vas:

• Coagulopati as ou uso de anti coagulantes; • Hipotensão, hipovolemia ou sepse; • Infecção no local da punção; • Deformidade da coluna vertebral.

c) Critérios para execução de anestesia peridural em pacientes em uso de anti coagulantes

-Anti coagulantes orais (varfarina): suspender a me-dicação, medir o INR e realizar bloqueio quando INR abaixo de 1,4;

-Aspirina e AINEs: parece não haver riscos para sangra-mentos ou hematoma espinhal, quando usados isola-damente. O risco parece aumentar quando associados à heparina, cumarínicos ou trombolíti cos; -Fibrinolíti cos: têm alto risco de hematoma e sangra-mento, especialmente se associados à heparina. Re-comendam-se 10 dias entre o uso de fi brinolíti cos e a punção peridural. Paciente com cateter peridural que necessite de trombolíti co deve ser avaliado neurologi-camente, a cada 2h; -Heparina de baixo peso molecular: se possível, o blo-queio subaracnóideo é a melhor alternati va. O blo-queio peridural deve ser realizado 12h após a últi ma dose (quando profi láti ca) e após 24h (quando dose plena). O cateter peridural deve ser reti rado 12h após a últi ma dose.

B - Peridural torácica

A Anestesia Peridural Torácica (APT) apresenta várias aplicações clínicas em diversas especialidades médicas, como cirurgias na parede torácica e no tratamento das dores aguda e crônica. Passou a ter uso extensivo por um grande número de anestesiologistas, principalmente nas cirurgias plásti cas.

Quanto aos aspectos anatômicos favoráveis à sua uti -lização com segurança, pode ser relacionada ao conheci-mento prévio dos processos espinhosos de T1 a T12 com uma inclinação extrema e acentuada entre T5 e T8, obri-gando o correto posicionamento da agulha e obedecendo a esses conceitos.

O espaço peridural torácico apresenta uma profundi-dade entre 2,5 e 5mm de profundidade, sendo maior no segmento torácico inferior. A membrana da dura-máter é consti tuída de fi bras colágenas e elásti cas, ati ngindo uma espessura na região torácica de 1mm, o que propicia maior resistência, difi cultando uma perfuração acidental.

Muitos estudos têm contribuído para o conhecimento das alterações fi siológicas e farmacológicas dessa técnica, principalmente as alterações cardiopulmonares, com seus múlti plos mecanismos de ações. Os efeitos cardiovascula-res observados com a APT são complexos e variáveis, de-pendendo de muitos fatores, como a extensão do bloqueio simpáti co, o equilíbrio do sistema nervoso autônomo, a ação local e sistêmica dos anestésicos locais, a adição de adrenalina no anestésico, dentre outros.

Os principais efeitos benéfi cos no sistema cardiovascu-lar são, principalmente, a queda da excitabilidade cardio-vascular, diminuindo a frequência cardíaca, reduzindo o consumo de oxigênio pelo miocárdio, melhores resultados na isquemia miocárdica refratária ao tratamento conven-cional e, principalmente, em se tratando de cirurgias plás-ti cas, menor sangramento, mantendo níveis hipotensivos seguros para a sua realização.

Em cirurgias abdominais altas e torácicas, a disfunção diafragmáti ca é um fator determinante das complicações

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respiratórias no pós-operatório e pode ser atenuada pelo bloqueio peridural.

As vantagens da APT para cirurgias plásti cas são função pulmonar preservada, manutenção dos refl exos de vias aé-reas, anestesia segmentar e menor incidência de trombo-embolismos, sangramento, náuseas e vômitos, anafi laxias e retenções urinárias. Pode ser realizada com segurança no bloco operatório adequado para todas as situações de emergência, com uma avaliação pré-anestésica bem deta-lhada, uti lização de fármacos em concentrações reduzidas e menos cardiotóxicas, monitorização mandatória (ECG, PANI, FC, oxímetro e capnografi a nasal).

A uti lização da técnica com cateter apresenta uma série de vantagens, principalmente a redução da dose do anesté-sico e a segurança quanto ao tempo cirúrgico e à qualidade do procedimento. Atualmente, uti lizam-se, após a dose-tes-te, a passagem do cateter e a injeção do anestésico local, lento e correlacionado com a clínica.

C - Anestesia peridural contí nua

Antes de iniciar a técnica contí nua, deve-se verifi car se o cateter passa facilmente pela agulha. O bisel desta deve ser direcionado na posição cefálica, embora isso não garan-ta que o cateter tomará tal direção. O instrumento pode encontrar resistência para ultrapassar a curvatura da ponta da agulha, mas a pressão constante consegue vencer o obs-táculo. Se o cateter não progride além da ponta da agulha, é possível que esta não esteja completamente introduzida no espaço peridural e alguma estrutura esteja impedindo a sua progressão. Nesse caso, a introdução cuidadosa da agulha 1 a 2mm, movendo-a a 180°, pode ser úti l. Essa é uma manobra que aumenta o risco de punção acidental da dura-máter.

Se o cateter avança uma pequena distância além da pon-ta da agulha, não progredindo, é necessário que esta seja re-posicionada. Deve-se, então, reti rá-la com o cateter em seu interior, pois somente a reti rada do cateter que já ultrapas-sou a ponta da agulha pode quebrá-lo. O instrumento deve ser introduzido 3 a 5cm, para evitar a punção das veias pe-ridurais e das meninges e a saída pelos forames interverte-brais, enrolando-se ao redor das raízes dos nervos.

Após a fi xação do cateter, é obrigatória a dose-teste an-tes da administração de drogas.

D - Dose-teste peridural

Seu objeti vo é identi fi car se a agulha ou o cateter foram introduzidos no espaço subaracnóideo ou em veias do espa-ço peridural. A aspiração da agulha ou do cateter para identi -fi car a presença de sangue ou de líquido cerebrospinal pode ser úti l para prevenir injeções inadverti das de anestésico lo-cal, mas a incidência de teste falso negati vo é alta.

A dose-teste mais uti lizada é a de 3mL de anestésico lo-cal (lidocaína) contendo 5μg/mL de adrenalina (1:200.000). Ela deve ser sufi ciente para que, introduzida no espaço su-baracnóideo, determine anestesia e, introduzida em um

vaso sanguíneo, ocasione aumento médio da frequência cardíaca em 30bpm entre 20 e 40 segundos após a injeção. Em pacientes que uti lizam beta-bloqueador, não se observa aumento nos bati mentos cardíacos, podendo, inclusive, ha-ver diminuição. Entre esses indivíduos, o aumento da pres-são arterial sistólica ≥20mmHg indica injeção intravascular. O paciente deve estar sempre monitorizado.

a) Fatores que infl uenciam a extensão do bloqueio pe-ridural

-Volume e concentração da solução anestésica; - Idade e altura: a dose reduz com a idade. A altura é indiferente, salvo extremos de idade; -Velocidade de injeção: aumenta a difusão e o descon-forto; -Nível da punção: em nível cervicotorácico, devido ao menor volume do espaço, pequenos volumes (8 a 10mL) produzem bloqueio semelhante ao obti do com 15mL em nível lombar.

b) Complicações

- Relacionadas ao anestésico

São consequência de injeção inadverti da ou absorção de doses elevadas do anestésico e alergia. Os primeiros si-nais de intoxicação são gosto metálico, zumbido, tontura, seguindo para dislalia, tremores, convulsão clônica gene-ralizada, insufi ciência respiratória, colapso circulatório e parada cardiorrespiratória. Iniciam-se rapidamente assis-tência respiratória, anti convulsivante venoso e intubação traqueal. A alergia, muito rara com os anestésicos do grupo amida, caracteriza-se por prurido, eritema, broncoespas-mo, edema de Quincke e hipotensão arterial, tratando-se com anti -histamínicos, corti coides e epinefrina.

- Relacionadas à técnica

• Raquianestesia total: perfuração da dura-máter não detectada e injeção subaracnóidea de dose elevada do anestésico local;

• Cefaleia pós-punção da dura-máter: perfuração da dura-máter com agulha de grande calibre, ocasio-nando cefaleia intensa;

• Bloqueio simpáti co e hipotensão arterial: vasople-gia venosa, queda do retorno venoso, do enchimen-to cardíaco e, consequentemente, do débito cardía-co e da pressão arterial. Tratamento com cristaloide e vasopressor;

• Náusea e vômito: consequência de hipotensão ar-terial ou hipoxemia;

• Depressão respiratória; • Infecção: muito rara, porém grave, podendo apre-

sentar sinais de compressão medular; • Sangramento e hematoma peridural: geralmen-

te, o sangramento peridural não causa problema, desde que não se injete anestésico local. Em hepa-rinizados ou com distúrbio de coagulação, há risco

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elevado de hematoma com compressão medular aguda, que deve ser tratado cirurgicamente.

Figura 9 - Anatomia do canal medular

Tabela 8 - Raquianestesia x anestesia peridural

Variável analisada Raquianestesia Anestesia peridural

Início de ação Rápido Mais lento

Altura do bloqueio Imprevisível Previsível

Limite inferior Sati sfatório (S5) Variável

Densidade do bloqueio

Profunda Variável

Duração do bloqueio

Agente dependenteAgente e técnica dependente

Absorção sistêmica

Desprezível Importante

Hipotensão Rápida/comum Lenta/gradual

CefaleiaVariável/imprevisível

Não, ou em punção acidental

Analgesia pós-operatória

Alto risco e sem viabilidade

Ideal por infusão via cateter

6. Farmacologia dos anestésicos venososOs objeti vos básicos da anestesia são obtenção de in-

consciência, analgesia, bloqueio de refl exos e relaxamento muscular, o que é obti do com o uso de medicamentos com fi nalidades bem específi cas, cuja ação conjunta resulta em sinergismos e interações (Tabela 9). Os hipnóti cos promo-vem a inconsciência e a manutenção do sono (propofol, mi-dazolam, diazepam, etomidato, ti opental etc.). Os opioides são analgésicos e, em altas doses, sedati vos (meperidina, morfi na, fentanila, sufentanila, alfentanila, remifentanila). Os relaxantes musculares conferem imobilidade e parali-sam a musculatura, facilitando a intubação traqueal, a ven-ti lação mecânica e o ato cirúrgico; os mais uti lizados são o atracúrio, cisatracúrio, pancurônio, rocurônio, succinilcoli-na etc.

Tabela 9 - Principais agentes anestésicos venosos

Classe medicamentosa

Medicações mais uti lizadas

Hipnóti cosPropofol, benzodiazepínicos, etomidato, ti opental.

OpioidesMorfi na, meperidina, fentanila e derivados, cetamina.

Bloqueadores neuromuscu-lares

Despolarizantes: succinilcolina.

Adespolarizantes: atracúrio, pancurônio, cisatracúrio.

A - Hipnóti cos

a) Propofol

Trata-se de um hipnóti co com rápido início de ação com paraefeitos mínimos, além de potencial ati vidade anti e-méti ca, sem ação analgésica. Além disso, diminui a pré e a pós-carga cardíacas por ação direta na musculatura lisa vascular e por diminuição do tônus simpáti co. Seu uso deve ser cuidadoso em se tratando de pacientes hipovolêmicos. A hipotensão é mais intensa em idosos. É o mais potente depressor do miocárdio dentre os hipnóti cos.

Durante a indução com esse hipnóti co, objeti vando di-minuir dor à injeção, podem ser uti lizadas veias de grosso calibre ou, ainda, pode ser associada lidocaína à solução. No entanto, podem-se ter, como para-efeito, apneia, hi-potensão arterial e, muito raramente, trombofl ebites nas veias puncionadas para a sua injeção.

Clinicamente, pode ser uti lizado tanto para indução e manutenção da anestesia como para sedação em cirur-gia e em UTI. Em adultos, a dose de indução anestésica compreende 1 a 2,5mg/kg. Já em crianças a parti r de 8 anos, uti lizam-se cerca de 2,5mg/kg. Abaixo dessa idade, normalmente se uti lizam doses maiores. Entretanto, não é recomendado o uso em crianças com idade menor que 3 anos.

b) Midazolam

Compreende um benzodiazepínico de ação curta, com propriedades ansiolíti cas, sedati vas, amnésicas, anti convul-sivante e miorrelaxante, e ao qual o anel imidazólico con-fere alta hidrossolubilidade, facilitando as misturas intrave-nosas (com Ringer lactato ou soro fi siológico) e diminuindo a incidência de trombofl ebites, ao contrário do diazepam.

Ainda em comparação com o diazepam, tem início de ação mais lento, duração de ação mais curta, maior efei-to amnésico e 3 a 4 vezes a potência sedati va. Sem ação analgésica, suas vias de administração são intravenosa, in-tramuscular, nasal e oral.

É muito usado para sedação de pacientes sob venti la-ção mecânica em ambiente de terapia intensiva. Por seus efeitos amnésicos e ansiolíti cos, é o fármaco mais prescrito como medicação pré-anestésica. Proporciona tranquilida-de, diminuição das manifestações sistêmicas ao estresse (taquicardia, hipertensão, consumo de oxigênio pelo mio-

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cárdio), redução da incidência de náuseas e vômitos pós--operatórios e maior sati sfação global com o procedimento.

Seus efeitos são antagonizados pelo fl umazenil, usado em doses intermitentes de 0,2mg até uma dose total de 1mg. Pacientes em uso crônico de benzodiazepínicos po-dem apresentar quadro de agitação psicomotora em res-posta à administração desse medicamento.

Os efeitos depressores do midazolam no sistema cardio-vascular e SNC são potencializados por álcool, narcóti cos e anestésicos voláteis. A hipotensão e a depressão respira-tória podem ocorrer rapidamente quando o midazolam é administrado em conjunto com opiáceos. No sistema car-diovascular, promove redução da pressão arterial média sistêmica e da frequência cardíaca de forma discreta, e não apresenta ati vidade arritmogênica. A depressão respirató-ria é maior entre pacientes geriátricos, com DPOC ou enfer-midades graves (estado fí sico ASA III a V).

c) Diazepam

Um dos benzodiazepínicos mais usados no mundo, com efeitos relacionados à sua ação quase exclusiva no SNC. Os mais marcantes são a sedação, a hipnose, o rela-xamento muscular, a amnésia e a comprovada ati vidade anti convulsivante. A ansiólise e o relaxamento muscular acontecem via aumento da disponibilidade do neurotrans-missor inibitório glicina.

De todos os benzodiazepínicos, possui uma das mais al-tas solubilidades lipídicas, o que lhe permite atravessar ra-pidamente a barreira hematoencefálica e distribuir-se aos tecidos gordurosos periféricos, apresentando uma meia--vida superior a 24 horas.

Os produtos do metabolismo do diazepam são excreta-dos, na maior parte, por meio dos rins. A meia-vida de eli-minação diminui com a elevação da idade e a presença de obesidade. Também tem sua ação reverti da pelo fl umazenil.

Suas vias de administração são intravenosa, bucal (oral e sublingual), intramuscular e, em preparações especiais, retal. A via sublingual evita o metabolismo hepáti co de 1ª passagem, e a intramuscular caracteriza-se por absorção ir-regular, lenta e dolorosa. A intravenosa também é dolorosa, em virtude da baixa hidrossolubilidade da droga.

d) Etomidato

Trata-se de um hipnóti co não barbitúrico que não pos-sui ati vidade analgésica e age potencializando o efeito ini-bitório do ácido gama-aminobutí rico. Apresenta início e du-ração de ação muito rápidos, com metabolização hepáti ca.

Reduz o metabolismo cerebral, o fl uxo sanguíneo cere-bral e a pressão intracraniana. Em razão dos seus efeitos mínimos sobre a pressão sanguínea sistêmica, é mais bem--sucedido que o propofol e o ti opental na manutenção da pressão de perfusão cerebral. Podem ocorrer movimentos mioclônicos em cerca de 1/3 dos pacientes na indução e são devidos à desinibição da supressão subcorti cal da ati vidade extrapiramidal, podendo ser reduzidos com a pré-medica-ção com benzodiazepínicos ou opioides.

Em doses terapêuti cas, apresenta efeitos mínimos so-bre o metabolismo miocárdico, débito cardíaco e circulação pulmonar ou periférica. A resistência vascular coronariana diminui sem alterar a pressão de perfusão coronariana e não sensibiliza o miocárdio às catecolaminas. É o hipnóti co de escolha nas induções em que se deseja a estabilidade cardiovascular (ex.: pacientes com doença coronariana).

Não causa liberação de histamina nem aumento da re-sistência das vias aéreas e pode ser usado em asmáti cos. Causa, em infusões prolongadas, supressão da adrenocorti -cal, fato já relacionado à morte em alguns estudos, além de náuseas e vômitos no pós-operatório.

e) Tiopental

Este é um ti obarbitúrico de ação ultracurta. Deprime o SNC e leva à hipnose, mas não à analgesia. É usado para proteção cerebral, pois diminui o fl uxo sanguíneo cerebral, o ritmo metabólico cerebral e a pressão intracraniana.

Trata-se de um indutor ainda usado na práti ca clínica, embora, na sua recuperação, sejam relatados tontura, se-dação, cefaleia, náuseas e vômitos. Também pode causar li-beração de histamina e broncoespasmo e é contraindicado a pacientes asmáti cos e portadores de porfi ria.

B - Opioides

O termo opioide refere-se a toda substância exógena, natural ou sintéti ca, que se liga, especifi camente, a quais-quer das subpopulações de receptores opioides, produzin-do, assim, algum ti po de efeito agonista. De maneira simpli-fi cada, os opioides podem ser classifi cados em:

-Opioides naturais: alcaloides derivados do ópio; -Opioides fenantrênicos: morfi na e codeína; -Opioides semissintéti cos: meti lmorfi na e heroína; -Opioides sintéti cos: possuem núcleo fenantrênico da morfi na, porém manufaturados por processos de síntese química. Incluem os derivados da metadona, derivados da fenilpiridina (meperidina, fentanila e con-gêneres). Os mais usados em anestesia são morfi na, fentanila, alfentanila, sufentanila e remifentanila.

A morfi na, muito usada em bloqueios regionais, intensi-fi cando a analgesia pós-operatória, libera histamina e pode provocar prurido após administração oral, sistêmica, peri-dural e intratecal. Também provoca náuseas, vômitos, cons-ti pação intesti nal e retenção urinária.

Quanto ao fentanila, devido às suas característi cas far-macocinéti cas, grandes doses (10 a 15ng/mL de concentra-ção plasmáti ca) são acompanhadas de recuperação pro-longada, estando somente indicadas a procedimentos com previsibilidade de recuperação também prolongada. De modo semelhante aos demais opioides, o fentanila pode causar bradicardia (antagonizada pela atropina), rigidez muscular (reverti da pelos bloqueadores neuromusculares), depressão respiratória (antagonizada pela naloxona), náu-seas e vômitos atribuídos à esti mulação da zona de gati lho

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quimiorreceptora, localizada na área postrema no assoalho do 4º ventrículo, próximo ao centro respiratório, diminui-ção da moti lidade gastrintesti nal e retardo do esvaziamento gástrico.

Já o sufentanila é muito potente (5 a 10 vezes a potên-cia do fentanila). As principais vantagens sobre os demais opioides são o maior efeito sedati vo e a maior capacida-de em reduzir os estí mulos neuro-humorais causados pelo estresse. Essa ação sedati va é bastante desejável, pela possibilidade de o paciente fi car consciente durante o ato anestésico-cirúrgico.

O alfentanila é um opioide 5 a 10 vezes menos potente que o fentanila, porém com rápido início de ação e curta duração de efeito. Por causa dessas característi cas, é muito uti lizado na técnica de anestesia balanceada. Está associa-do a maior grau de hipotensão e bradicardia que o produzi-do por fentanila e alfentanila.

O remifentanila é o mais recente opioide a ser emprega-do em clínica deriva da fenilpiperidina. A principal caracte-rísti ca desse fármaco é ser um éster rapidamente metaboli-zado por esterases, não específi cas, sanguíneas e teciduais. O efeito das esterases sobre o remifentanila causa menor variabilidade nos parâmetros farmacocinéti cos entre pa-cientes, e tais parâmetros são pouco alterados pela idade, obesidade ou insufi ciências hepáti ca e renal. Do mesmo modo que os outros opioides, seus efeitos são reverti dos pela naloxona. A principal característi ca que o diferencia dos demais opioides é a duração de efeito extremamente curta como resultante da sua rápida metabolização (de 7 a 10 minutos). Na circulação, é rapidamente hidrolisado pe-las colinesterases, não específi cas, do plasma e dos tecidos, produzindo vários metabólitos inati vos.

Devido aos efeitos extremamente curtos do remifenta-nila, as doses são mais bem administradas por infusão con-tí nua. A desvantagem potencial desse opioide está também relacionada à sua curta duração de ação. Com a recupera-ção rápida, o paciente pode ter dor no pós-anestésico, e o anestesiologista deve ter um esquema de analgesia plane-jado. Outro inconveniente é a possibilidade da interrupção acidental da infusão de remifentanila, durante a anestesia.

Em suma, o remifentanila tem propriedades farmacoci-néti cas únicas, como rápido tempo de ação (pequena latên-cia, similar ao alfentanila = 1 a 2 minutos) e rápida recu-peração, independente da duração da sua administração. Com essa últi ma propriedade, torna-se um fármaco de fácil manejo, tanto em anestesias de curta duração, mas que re-queiram intensa analgesia, quanto para períodos prolonga-dos sem que o anestesiologista se preocupe com uma recu-peração prolongada.

Por fi m, a cetamina (Ketalar®), derivada da fenilciclidi-na, leva à analgesia dissociati va agindo nos receptores N--meti l-aspartato, subgrupo dos receptores opioides, e pro-duz inconsciência e analgesia dose-dependente. Os efeitos hemodinâmicos (dependentes da integridade da resposta simpáti ca) são aumento da pressão arterial, frequência car-

díaca, débito cardíaco e da pressão pulmonar. Também há aumento da pressão intraocular e intragástrica. Alucinações são comuns após administração rápida ou de altas doses.

C - Bloqueadores neuromusculares

São compostos de amônio quaternário com estrutura similar à da aceti lcolina, o que lhes permite ocupar os re-ceptores de aceti lcolina da junção neuromuscular. Os des-polarizantes ati vam os receptores de maneira semelhante à aceti lcolina, enquanto os adespolarizantes evitam a ati va-ção do receptor pela aceti lcolina.

Os bloqueadores neuromusculares podem ter suas ações potencializadas por anestésicos inalatórios, anti bió-ti cos, hipotermia, opioides e insufi ciência renal. Pacientes com doenças neuromusculares (como miastenia gravis) respondem de maneira anormal aos bloqueadores neuro-musculares. Nesses casos, o uso deve ser cuidadoso e, em algumas situações, evitado. Tais bloqueadores são divididos em 2 grupos:

a) Despolarizantes

Promovem bloqueio não competi ti vo, pois mimeti zam a ação da aceti lcolina. Atuando no receptor da aceti lcolina, abrem os canais iônicos, gerando um potencial de ação do músculo e, com isso, uma contração muscular. São repre-sentados pela succinilcolina e pelo decametônio. São carac-terísti cas da succinilcolina:

-Apresenta rápido início de ação IV (de 30 a 60s) e IM (de 2 a 3 minutos); -Tem curta duração (de 4 a 6 minutos); -Pode desencadear crise de hipertermia maligna; -Provoca fasciculações e dores musculares; -Aumenta as pressões arterial, intracraniana, intraocu-lar e intragástrica; -É usada na práti ca clínica para intubações em sequên-cia rápida.

b) Adespolarizantes

Promovem bloqueio competi ti vo por fármacos que se ligam, por ação principal, aos receptores de aceti lcolina, impedindo a abertura do canal iônico e o surgimento do potencial de placa terminal. São divididos em:

-Curta duração: mivacúrio; -Duração intermediária: atracúrio; cisatracúrio; ro-curônio; -Duração longa: pancurônio; alcurônio; pipecurônio; doxacúrio.

O mivacúrio e o cisatracúrio são importantes liberado-res de histamina e podem causar broncoespasmo, princi-palmente se injetados rapidamente. O cisatracúrio, um dos isômeros que compõem o atracúrio, é 3 vezes mais potente e libera muito menos histamina. O atracúrio e o cisatracú-rio são degradados por eliminação de Hoff man (degradação química espontânea que ocorre em pH e temperatura fi sio-lógica) e não possuem metabólitos ati vos.

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Dentre os bloqueadores adespolarizantes, o rocurônio é o que tem início de ação mais rápido (1 minuto, na dose de 1,2mg/kg), sendo uma boa opção para intubação em sequência rápida. Apresenta as excreções hepáti ca e renal.

7. Recuperação pós-anestésicaTodos os pacientes submeti dos à anestesia geral ou

regional devem ser encaminhados à sala de Recuperação Pós-Anestésica (RPA) por um período mínimo de 1h. Após anestesia geral ou locorregional, o paciente pode evoluir com rebaixamento do nível de consciência, instabilidade hemodinâmica (bradicardia/assistolia), insufi ciência respi-ratória (hipoxemia/hipercarbia), náuseas, vômitos e outras ocorrências relacionadas a alterações fi siológicas do pró-prio ato cirúrgico, ao nível do bloqueio regional realizado e ao efeito residual dos fármacos uti lizados.

O paciente deve ser transportado para a sala de RPA sob a supervisão do anestesiologista. Durante o transpor-te, devem-se ter os mesmos cuidados tomados durante a cirurgia, avaliando os sinais vitais, evitando perda de calor e administrando oxigênio, se necessário.

A - Roti na do paciente ao ser admiti do na sala de RPA

-Administração de oxigênio, se necessário, ou Venti la-ção Mecânica Assisti da (VMA) (previamente comuni-cada pelo anestesiologista);

-Monitorização: nível de consciência, ECG, oximetria de pulso, pressão arterial, temperatura, analgesia, diure-se (espontânea ou por sonda vesical); capnografi a (se venti lação assisti da, intubação traqueal ou traqueosto-mia); pressão arterial invasiva ou pressão venosa cen-tral, em caso de indicação;

-Preenchimento dos dados com identi fi cação, cirurgia e anestesia realizadas, acessos venosos, pontuação da 1ª avaliação e anotação de recomendações especiais, se houver (anti bióti cos, alergias, coleta de exames etc.).

B - Critérios de alta do paciente sob o ponto de vista anestésico

O paciente pode receber alta da sala de RPA caso obte-nha os seguintes critérios:

-Capacidade de manter adequada venti lação alveolar e desobstruir as vias aéreas;

-Manter-se acordado, alerta e bem orientado;

-Capacidade de manter perfusão tecidual adequada sem suporte farmacológico e não requerer monitori-zação contí nua cardiovascular;

-Presença de diurese.

Os critérios de alta da sala de RPA para os pacientes sub-meti dos à anestesia espinhal têm sido muito empíricos e baseiam-se na regressão do nível sensiti vo até T10 e no re-torno da função motora às extremidades inferiores. Alguns autores acreditam que tais critérios aumentam o tempo de permanência na sala de recuperação e que a alta deveria fundamentar-se na estabilidade hemodinâmica, podendo o paciente receber alta antes mesmo do retorno da função motora ou sensiti va.

Os critérios de alta da sala de RPA podem ser avaliados por escalas numéricas; a de Aldrete e Kroulik é a mais usada em nosso meio.

Tabela 10 - Escala de Aldrete e Kroulik

Item Nota

Ati vidade

Move 4 membros 2

Move 2 membros 1

Move 0 membros 0

Respiração

Profunda 2

Tosse limitada 1

Dispneia/apneia 0

Consciência

Completamente acordado 2

Desperta ao ser chamado 1

Não responde ao chamado 0

Circulação (PA)

±20%, nível pré-anestésico 2

±20 a 49%, nível pré-anestésico 1

±50%, nível pré-anestésico 0

SpO2

Mantém SpO2 >92% em ar ambiente 2

Mantém SpO2 >90% com O2 1

Mantém SpO2 <90% com O2 0

Os pacientes devem somar mais de 8 pontos antes de receberem alta da sala de RPA, e é importante que não apresentem 0 (zero) em parâmetros como ati vidade, respi-ração e circulação. A depender do quadro clínico, o nível de consciência e a saturação de oxigênio podem ser mínimos antes do procedimento cirúrgico (demência senil, paralisia cerebral, DPOC grave), e pode haver alta considerando cui-dados especiais ou encaminhamento para unidade de cui-dados intensivos ou semi-intensivos.

C - Complicações

a) Hipotermia

A hipotermia determina alterações fi siopatológicas importantes, e sua presença durante os procedimentos anestésico-cirúrgicos deve ser evitada e reconhecida pron-tamente pelo médico anestesista. A monitorização deve ser realizada roti neiramente, com uso de termômetro eletrôni-co que permita avaliação contí nua. A nasofaringe, o esôfago distal e o reto são os locais de preferência para colocação do sensor. A temperatura da membrana ti mpânica é a que refl ete mais precisamente a temperatura cerebral.

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Tabela 11 - Mecanismos de perda de calor

Mecanismo de perda de calor Característi ca

Irradiação Perda por emissão de raios infravermelhos.

Evaporação Perda transepitelial, da árvore respiratória e das cavidades abertas.

Condução Perda proporcional à diferença de temperatura de superfí cies.

Convecção Passagem de calor da pele para o ar.

Os extremos etários são mais suscetí veis à hipotermia no transoperatório: os pediátricos, devido à grande super-fí cie corporal em relação ao peso; e os idosos, pelo baixo índice de ati vidade metabólica. Entre recém-nascidos, ocor-re termogênese sem calafrios, por meio da degradação de gordura marrom, com intensa ati vidade metabólica e gran-de consumo de energia, e devem ter temperatura monitori-zada em cirurgias com mais de 30 minutos.

Apesar de alguns benefí cios, a gravidade das alterações é proporcional ao grau de hipotermia existente (Figura 10). No sistema cardiovascular, podem ocorrer diminuição do débito cardíaco, aumento do consumo de O2 em até 400%, aumento da resistência vascular, bradicardias, arritmias e isquemia miocárdica.

No sistema respiratório observam-se hipóxia, aumen-to do espaço morto, diminuição da venti lação (apneia do recém-nascido) e desvio da curva de dissociação da oxi-he-moglobina desviada para a esquerda. Nas alterações neuro-lógicas, têm-se alteração do nível de consciência, diminui-ção do fl uxo sanguíneo cerebral e poten cialização da ação de drogas (bloqueadores neuromusculares, anestésicos locais). Em relação às alterações metabólicas, ocorre hiper-glicemia causada pela diminuição da liberação de insulina, provocada por diminuição do fl uxo sanguíneo pancreáti co e aumento das catecolaminas circulantes.

Diversas medidas podem ser empregadas para evitar a hipotermia durante e após a cirurgia:

- Prevenção passiva:

• Sala operatória aquecida (>22°C para adultos e >26°C para crianças);

• Diminuir a exposição; • Cobrir a área exposta.

- Prevenção ati va:

• Cobertor térmico antes da indução de 30 a 60min.

- Tratamento passivo:

• Evitar perda por condução/convecção/evaporação/irradiação;

• Controlar a temperatura da sala operatória;

• Evitar líquidos frios;

• Usar fi ltros e umidifi cadores para pacientes intubados.

- Tratamento ati vo:

• Manter conduta de aquecimento passivo e uti lizar:

• Sistemas de aquecimento de ar forçado (preferen-cialmente, no tórax);

• Sistemas de aquecimento com circulação de água;

• Sistemas de aquecimento de líquidos intravenosos (hemocomponentes e cristaloides >2L).

Tabela 12 - Benefí cios e riscos da hipotermia

Benefí cios

- Diminuição do metabolismo (5 a 8%/1°C);

- Proteção contra hipóxia cerebral e da medula espinal;

- Proteção contra hipóxia cerebral;

- Retardo no desencadeamento e diminuição das consequências da hipertermia maligna.

Riscos

- ↑ na incidência de eventos cardiovasculares;

- ↑ no consumo de oxigênio pelos tremores;

- ↑ de catecolaminas circulantes;

- ↑ da pressão arterial e frequência cardíaca;

- ↑ de transfusões de hemocomponentes;

- ↑ na incidência de infecção do síti o cirúrgico;

- ↑ no tempo de hospitalização;

- ↑ de custos hospitalares;

- ↑ de tempo de despertar;

- ↑ da ação de agentes inalatórios e venosos;

- ↑ no tempo de duração dos bloqueadores neuromusculares – obrigatório monitorizar a função neuromuscular em hipotermia;

- ↑ de desconforto térmico do paciente;

- Alteração na coagulação;

- Alteração da glicemia.

b) Complicações cardiovasculares

-Hipotensão arterial: as causas mais comuns são hipo-volemia, vasodilatação, diminuição do débito cardíaco, embolia pulmonar, pneumotórax e tamponamento cardíaco. No caso da hipovolemia, as causas mais fre-quentes são hemorragia, redução do volume plasmá-ti co (queimaduras, fí stulas) ou redução da água livre; devem ser tomadas medidas mecânicas para melhorar o retorno venoso, seguidas de infusão rápida de cris-taloides; -Disritmias cardíacas: podem representar uma doença preexistente ou surgir em consequência de isquemia miocárdica pós-operatória; as taquiarritmias, que al-teram circulação coronariana, e as bradiarritmias com bati mentos ectópicos são as mais comuns; o tratamen-to inclui a remoção da causa e terapia medicamentosa (beta-bloqueadores, verapamil, digoxina etc.); -Hipertensão arterial: tem, como causas mais comuns, dor e ansiedade, além de hipercapnia, hipoxemia e dis-tensão da bexiga. As causas de alteração da pressão ar-terial (hipo/hipertensão) correspondem a 70% do total das complicações cardiovasculares;

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- Isquemia miocárdica: pode ser causada por hipotensão intraoperatória, hiper-hidratação e dor durante a fase perioperatória, com aumento da ati vidade simpáti ca. O segmento ST e a morfologia da onda T revelam isque-mia antes que a hipotensão ocorra, apesar de a onda T não ser, por si só, fator indicati vo de isquemia, visto que frequentemente aparece no pós-operatório. O tra-tamento consiste em administração de O2, tratamento da dor e correção dos fatores desencadeadores como hipóxia, taquicardia, hipertensão ou hipotensão, sendo os agentes beta-bloqueadores muitos uti lizados.

c) Complicações renais

-Oligúria: quando o débito urinário é menor que 0,5mL/kg/h; na sala de recuperação, geralmente é pré-renal, ou seja, devido à hipovolemia, hipotensão ou diminui-ção do débito cardíaco. No caso de oligúria pós-renal, as causas podem ser obstrução do cateter, transecção do ureter, perfuração da bexiga e compressão da veia renal por pressão abdominal alta; -Poliúria: ocorre, muitas vezes, quando a hidratação é um pouco maior do que o normal. Entretanto, quan-do permanece com débito de 4 a 5mL/kg/h por muito tempo, suspeita-se de desregulação da fi ltração glo-merular, cujas causas mais comuns são hiperglicemia, diuréti cos uti lizados e diabetes insipidus.

d) Alterações neurológicas

Podem ocorrer demora na recuperação da consciência após cirurgias prolongadas, principalmente em obesos, e bloqueio neuromuscular intenso, muitas vezes confundido com depressão do SNC. Monitores do relaxamento muscu-lar são úteis nessa diferenciação. Pacientes com quanti dade menor de colinesterase plasmáti ca podem apresentar dura-ção prolongada do bloqueio com succinilcolina, obrigando a manutenção da venti lação até que haja retorno à respi-ração normal. Já com os bloqueadores neuromusculares adespolarizantes, pode-se fazer uso de substâncias anti co-linesterásicas e anti colinérgicas ou permiti r que o bloqueio ceda espontaneamente.

O uso de opioides pode provocar demora na recupera-ção da consciência, diagnosti cado por sonolência, miose e padrão respiratório (frequência baixa e volume corrente alto), optando-se por manter o suporte venti latório.

e) Outras complicações

-Hipoglicemia: pode levar a um retardo na recuperação da consciência; -Náuseas e vômitos: manifestações muito frequentes e com diversos fatores envolvidos, como predisposição individual, fatores psicossomáti cos, dor pós-operató-ria, fármacos uti lizados, distensão gástrica e depen-dendo, também, do ti po e do local da cirurgia. Diver-sas drogas têm sido uti lizadas, como o ondansetrona, o droperidol, a dexametasona e a metoclopramida, inclusive no tratamento preventi vo;

-Cetoacidose diabéti ca: situação oposta, em que há de-fi ciência relati va ou absoluta de insulina. Clinicamente, há diurese osmóti ca, que provoca hipovolemia com hemoconcentração. Há, também, hipotensão e baixa perfusão periférica. Por causa da elevação da osmola-ridade, há desidratação intracerebral com sua disfun-ção. O tratamento consiste na reposição da volemia, lentamente (para não provocar edema cerebral), e da insulina para deter a cetogênese. Deve-se também monitorizar o potássio, já que, com a entrada de glico-se para o intracelular, há tendência à hipopotassemia; -Disfunção hepáti ca: responsável pela recuperação tardia da consciência, pode estar com função alterada pelos anestésicos inalatórios ou pela hipotensão; -Alterações eletrolíti cas: relacionam-se com a demo-ra da volta da consciência no pós-operatório. Podem ocorrer hiponatremia, hipocalcemia e hipermagnese-mia. A hiponatremia pode acontecer por alteração do hormônio anti diuréti co ou absorção de água durante ressecção transuretral de próstata, tratando-se com reposição lenta com soro fi siológico e furosemida. A hipocalcemia pode ser causada por hipoparati reoi-dismo após uma ti reoidectomia, por hiperventi lação, administração excessiva de bicarbonato de sódio e administração rápida de sangue citratado. Essas con-dições são tratadas com cloreto de cálcio ou gluconato de cálcio. A hipermagnesemia é comum em pacientes com pré-eclâmpsia tratadas com sulfato de magnésio. Acima de certos níveis de magnésio, há depressão da resposta neuromuscular; trata-se com suspensão do sulfato de magnésio, mantendo venti lação e cálcio in-travenoso.

8. Hipertermia malignaA Hipertermia Maligna (HM) é uma doença hiperme-

tabólica e farmacogenéti ca do músculo esqueléti co, mar-cada pela alteração do metabolismo intracelular do cálcio em resposta aos anestésicos voláteis (halotano, enfl urano, isofl urano, sevofl urano e desfl urano) e succinilcolina, asso-ciados ou não. Ocorre na 2ª ou na 3ª indução anestésica em 1/3 dos casos, mas todos são sensíveis ao teste de con-tratura muscular induzido. Na genéti ca, foram identi fi cadas 4 locações cromossomais de risco (receptor de ryanodine 19q13 e outros síti os – 17,7 e 3). O gene receptor ryanodine produz uma proteína que determina o fl uxo de cálcio nos canais do retí culo sarcoplasmáti co do músculo esqueléti co.

A incidência é variável, a depender da forma clínica (1:3.000 a 1:250.000), e a população pediátrica é a mais acometi da, haja vista o frequente uso de agentes inalató-rios nessa população. Aumento do ETCO2 e da FC, os primei-ros sinais clínicos e arritmias, decorrentes de acidose respi-ratória e metabólica, ocorrem em cerca de 73% dos casos. A febre é resultado, e não causa do estado hipermetabólico da musculatura esqueléti ca, podendo não aparecer ou ma-

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nifestar-se tardiamente. O aumento da concentração livre de cálcio mioplasmáti co leva à rigidez do músculo masseter e de outros músculos, ati vando a glicogenólise e o metabo-lismo celular. O resultado é a produção exacerbada de calor e ácido lácti co e, ainda, o desenvolvimento de rabdomióli-se. A CPK (creati no-fosfoquinase) é uma enzima presente no sarcoplasma do músculo esqueléti co, e o tempo de seu aumento é bem descrito (de 8 a 10h a 12 a 24h).

O teste de contração muscular ao halotano e à cafeína é o padrão adotado internacionalmente para diagnósti co de HM. A parti r dessa análise, é possível discriminar indivíduos suscetí veis e normais.

Na fase aguda, a base do tratamento consiste na inter-rupção da inalação de anestésicos, hiperventi lação com oxi-gênio 100% e dantroleno sódico 2,5mg/kg repeti do até o controle das manifestações. O dantroleno inibe a liberação de cálcio do retí culo sarcoplasmáti co durante o acoplamen-to excitação-contração.

Tabela 13 - Abordagem da hipertermia maligna

Medidas iniciais

1 - Suspensão de todos os agentes precipitadores (anestésicos voláteis).

2 - Hiperventi lação com O2 puro. Não há necessidade de troca de circuito ou sistema de absorção de CO2.

3 - Suspensão da cirurgia, se possível.

4 - Administração de dantroleno sódico IV 2,5mg/kg e medidas laboratoriais de CPK.

5 - Medição da temperatura corporal.

6 - Cobertura e aquecimento do paciente, evitando a va so cons -trição.

Medidas intermediárias

1 - Controle das arritmias persistentes com beta-bloqueadores.

2 - Controle da hipercalemia e acidose metabólica (bicarbonato de sódio e/ou solução com insulina).

3 - Resfriamento ati vo: lavagem gástrica, vesical, retal e cavidades eventualmente abertas.

4 - Manutenção de diurese acima de 2mL/kg/h com hidratação ou diuréti cos (manitol/furosemida).

Cuidados tardios

1 - Exames laboratoriais para detecção de coagulação intravascular disseminada.

2 - Amostras de urina para detectar a mioglobina e sua esti mati va.

3 - Avaliação de débito urinário para suspeita de insufi ciência renal.

4 - Promoção da diurese forçada com fl uidos intrave nosos/manitol.

5 - Repeti ção dos valores de CPK em 24 horas.

9. ResumoQuadro-resumo

- Todo paciente deve ser avaliado no pré-operatório para estrati fi cação do risco cirúrgico e eventuais compensações clínicas;

- Entre as orientações pré-operatórias estão o manejo de medicações habituais, preparos especiais e reservas para a cirurgia;

- A via aérea é essencial para qualquer procedimento anestésico. A técnica mais usada de via aérea defi niti va é a intubação orotraqueal;

- A máscara laríngea e o tubo esofagotraqueal são opções nos casos de via aérea difí cil;

- Cricoti reoidostomia e traqueostomia são vias aéreas defi niti vas cirúrgicas, com indicações precisas;

- Os bloqueios regionais, raquianestesia e anestesia peridural, são boas opções em determinados procedimentos; mas exigem domínio da técnica e conhecimento das complicações;

- As principais classes de anestésicos venosos são os hipnóti cos, opioides e bloqueadores neuromusculares;

- Deve-se investi gar o histórico pessoal e familiar de HM em todo paciente.

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Complicações pós-operatórias

José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Complicações sistêmicas

Respiratórias

Insufi ciência respiratória aguda, atelectasias, aspiração, pneumonia, tromboembolismo pulmonar, embolia gordurosa, edema pulmonar, síndrome do desconforto respiratório agudo.

CardíacasArritmias, infarto do miocárdio, insufi ciência cardíaca.

UrináriasInfecção do trato urinário, inconti nência ou retenção.

Sistema nervoso central

Acidente vascular cerebral, delirium.

Trato gastrintesti nal

Distúrbios de moti lidade, pancreati te aguda, insufi ciência hepáti ca, colecisti te, colite.

Outras Rabdomiólise, disfunção sexual.

Os custos fi nanceiros das complicações cirúrgicas são incalculáveis, e sua presença não implica apenas a despesa hospitalar, mas também custos indiretos, como restrições na capacidade de trabalho, ruptura do equilíbrio familiar normal e estresse não esperado para empregadores e para a sociedade em geral (aposentadoria por invalidez ou auxí-lio-doença). Além disso, há os custos fí sico e psicológico das sequelas e do processo de reabilitação.

A prevenção das complicações começa no pré-operató-rio com a avaliação detalhada do histórico do paciente e de seus fatores de risco cirúrgico. Possibilitar melhora clínica no pré-operatório é uma estratégia que traz bons resulta-dos na prevenção de complicações futuras. Por exemplo, o abandono do tabagismo por 6 semanas antes da cirurgia diminui a incidência de complicações pulmonares no pós--operatório de 5 a 10%. A perda de peso diminui a pres-são intra-abdominal, o risco de complicações da ferida e de problemas respiratórios no período de recuperação opera-tória. O cirurgião deve orientar seu paciente em todas as questões envolvidas no pós-operatório, e há a necessidade de cooperação dos familiares no auxílio ao indivíduo nessa fase de convalescença.

Logo na manhã posterior à cirurgia, ele deve ser enco-rajado a sentar-se, tossir, fazer movimentos inspiratórios profundos e caminhar, se possível. A posição ortostáti ca

Pontos essenciais

-Febre;

-Complicações respiratórias;

-Complicações das feridas operatórias;

-Deiscências de anastomoses;

- Infecções urinárias;

-Complicações cardíacas;

-Complicações peritoneais;

-Complicações gastrintesti nais;

-Complicações do SNC;

-Rabdomiólise;

-Disfunção sexual.

1. IntroduçãoAs complicações pós-operatórias podem ser resultado

da doença primária do paciente e de fatores não relacio-nados com a doença de base ou decorrentes do ato opera-tório (Tabela 1). Um cirurgião pode realizar uma operação tecnicamente perfeita e, ainda assim, haver uma compli-cação. Os sinais clínicos de anormalidade orgânica po-dem estar modifi cados no período de convalescença, e o diagnósti co precoce pode ser de difí cil interpretação nes-se período. Logo, avaliações frequentes devem ser feitas na suspeita de alguma anormalidade em curso, e exames complementares, solicitados para auxiliar na investi gação diagnósti ca.

Tabela 1 - Principais complicações pós-operatórias

Complicações cirúrgicas

Ferida operatória

Hematoma, seroma, deiscência, infecção de ferida operatória.

Anastomoses Deiscência e fí stula.

IntracavitáriasSangramentos (hemoperitônio, hemotórax, hematomas cervicais), síndrome comparti mental abdominal.

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permite a expansão dos segmentos basais pulmonares, e a deambulação aumenta a circulação das extremidades in-feriores e diminui o risco de tromboembolismo venoso. Em severamente doentes, a contí nua monitorização da pressão arterial e do débito cardíaco é capaz de identi fi car e promo-ver a correção de anormalidades iniciais antes de evoluírem para situações clínico-cirúrgicas críti cas.

2. FebreA febre pós-operatória é produzida em resposta tanto

a processos infecciosos quanto a não infecciosos. A preva-lência da febre nesse período acomete até 40% dos casos. Mínimas elevações de temperatura corporal no pós-opera-tório de 1°C acima do normal ou durante mais de 2 dias devem ser consideradas signifi cati vas, devendo-se realizar estudos diagnósti cos para determinar a eti ologia.

Tabela 2 - Principais causas de febre no pós-operatório

24hAtelectasia pulmonar.

Tosse, dispneia, alteração da ausculta pulmonar.

48h Flebite.Dor, eritema e endurecimento no trajeto venoso superfi cial.

72hInfecção urinária.

Disúria, hematúria ou alteração do aspecto da urina em pacientes sondados.

Até o 5º dia

Infecção de ferida operatória.

Dor, hiperemia e saída de secreção purulenta pela ferida operatória.

Após o 7º dia

Coleção intracavitária, fí stula.

Taquicardia, distensão abdominal, íleo prolongado, exteriorização de conteúdo entérico ou purulento.

As eti ologias de febre no pós-operatório costumam se-guir uma sequência de aparecimento (Tabela 2). A febre nas primeiras 12 horas, geralmente produzida por alterações metabólicas ou endócrinas (crise ti reoidiana, insufi ciência adrenocorti cal), hipotensão prolongada com perfusão te-cidual periférica inadequada ou reação transfusional, pode resolver-se espontaneamente. Nas primeiras 24 a 48 horas, a causa mais comum de febre são as atelectasias pulmo-nares. Flebites são a causa mais comum até o 3º dia, e in-fecções do trato urinário, até o 5º dia. Infecções de ferida costumam manifestar-se na 1ª semana. Febres após o 7º dia pós-operatório devem alertar para a presença de cole-ções intracavitárias.

3. Complicações respiratóriasSão as mais comuns nos procedimentos cirúrgicos e a

2ª causa mais comum de morte no pós-operatório de pa-cientes com mais de 60 anos. Os submeti dos a cirurgias torácicas e do abdome superior são parti cularmente can-didatos a esses eventos. A incidência é baixa após cirurgias pélvicas e ainda menor em operações das extremidades corporais. Riscos aumentados também são identi fi cados

em submeti dos a cirurgias de urgência, portadores de do-enças crônicas preexistentes e idosos, pela baixa reserva orgânica, aumento do volume residual pulmonar e espaço morto.

A - Insufi ciência respiratória aguda

É defi nida como qualquer comprometi mento na libera-ção, transporte ou uso de oxigênio, ou eliminação de CO2, e que não é restrito à doença pulmonar. Processos patoló-gicos que difi cultam o transporte de oxigênio como baixo débito cardíaco (por exemplo, choque cardiogênico) ou di-minuem o uso celular efeti vo de oxigênio (sepse) são causas potenciais de insufi ciência respiratória aguda (Figura 1).

Figura 1 - Edema pulmonar por insufi ciência cardíaca

B - Atelectasia

A atelectasia é a mais comum das complicações pul-monares pós-operatórias e afeta 25% dos submeti dos a cirurgias abdominais. É mais frequente em idosos, obesos e aqueles que fumam ou tenham sintomas de doença pul-monar prévia, nas primeiras 48 horas após a cirurgia; e é responsável por mais de 90% dos episódios febris durante esse período de convalescença. Na maioria das vezes, é au-tolimitada, porém áreas pulmonares atelectásicas por mais de 72 horas podem promover a formação de pneumonia.

Costuma manifestar-se por febre, taquipneia e taqui-cardia, além de tosse produti va e com rolhas associadas à diminuição de murmúrios pulmonares. O raio x simples de tórax confi rma o diagnósti co (Figura 2). A atelectasia pós--operatória pode ser prevenida com exercícios respirató-rios, deambulação precoce, uso do espirômetro e encora-jando a tosse. Em casos extremos, a broncoscopia pode ser uti lizada para toillete brônquica adequada.

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Figura 2 - Atelectasia pulmonar: (A) no lobo inferior esquerdo (pró-ximo à silhueta cardíaca) e (B) no lobo superior direito

C - Aspiração pulmonar

A aspiração de conteúdos da boca e do estômago é mais comum em pacientes sedados ou com outras causas de re-baixamento do nível de consciência. A inserção de sondas nasogástrica e endotraqueal e a depressão do sistema ner-voso central por drogas interferem nos mecanismos de pro-teção do organismo e predispõem à aspiração. Outros fa-tores, como refl uxo gastroesofágico, alimento no estômago ou posição do paciente aumentam esses riscos (Figura 3).

Figura 3 - Pneumonite aspirati va

Cerca de 2/3 dos casos de aspiração acontecem após cirurgias torácicas e abdominais, e, desses pacientes, me-tade desenvolve pneumonia. A taxa de mortalidade para aspiração maciça pulmonar e subsequente pneumonia gira em torno de 50%. O grau de lesão pulmonar produzida pela aspiração do fl uido gástrico (síndrome de Mendelson) é de-terminado pelo volume do aspirado, seu pH, e a frequência do evento. Se o aspirado apresenta um pH de 2,5 ou menos, causa imediata pneumonite química, a qual resulta em ede-ma local e infl amação, situações que favorecem a infecção secundária.

A aspiração de material sólido resulta em obstrução aérea. Obstrução de segmentos distais do pulmão é inicial-

mente bem tolerada, mas pode evoluir para a formação de abscesso pulmonar. Os segmentos basais são mais afeta-dos, apesar de os quadros de aspiração maciça serem mais comuns no lobo superior direito. Clinicamente, taquipneia e hipóxia estão presentes por horas. A manifestação de cia-nose, síncope e apneia é menos frequente. Nas aspirações maciças, a hipovolemia pode estar presente pela perda de fl uidos para o pulmão, a qual determinará a evolução para choque e hipotensão.

É possível evitar a aspiração com medidas preventi vas, como jejum adequado na véspera da cirurgia, posiciona-mento adequado do doente na mesa cirúrgica e no leito, além de cuidados durante a intubação endotraqueal. O tratamento da aspiração envolve a manutenção de uma via aérea livre e previne novos riscos de aspiração e de lesão pulmonar. A aspiração através do tubo endotraqueal esti -mula a tosse e facilita a eliminação do conteúdo dos brôn-quios. A broncoscopia pode ser empregada para a reti rada de corpo estranho alojado na via aérea. A expansão volêmi-ca intravenosa reverte a hipotensão que pode ocorrer nos quadros maciços. E anti bióti cos devem ser empregados nas situações de aspiração de grande volume ou na presença de repercussão clínica desfavorável.

D - Pneumonia pós-operatória

A pneumonia é a complicação pulmonar que mais co-mumente pode determinar a morte do paciente cirúrgico. Ela é diretamente responsável pela morte ou um fator con-tribuinte em mais da metade dos casos de infecção pulmo-nar. Pacientes com peritonite bacteriana no pós-operatório, longos períodos em venti lação mecânica para suporte de vida, atelectasias, aspirações e secreções aumentadas nas vias aéreas são importantes fatores de risco para o desen-volvimento de pneumonias. Mais da metade das infecções é causada por bacilos Gram negati vos.

As defesas do hospedeiro incluem o refl exo da tosse, o sistema mucociliar e a ati vidade das células dos macrófa-gos. Após a cirurgia, o mecanismo de tosse está enfraqueci-do, não sendo efi ciente para a limpeza da árvore brônquica. O sistema mucociliar apresenta-se danifi cado pela intuba-ção endotraqueal, e a habilidade dos macrófagos alveolares está comprometi da por inúmeros fatores que podem estar presentes, como oxigenação, edema pulmonar, aspiração, corti coterapia etc. Para completar, a perda dos movimen-tos ciliares predispõe a colonização bacteriana e a posterior infecção.

As manifestações clínicas da pneumonia pós-operatória são febre, taquipneia e aumento das secreções, e o exame fí sico confi rma a consolidação pulmonar (macicez, bronco-fonia aumentada, pectorilóquia). Um raio x do tórax mos-tra a imagem de consolidação do parênquima (Figura 4). A mortalidade geral da pneumonia pós-operatória gira em torno de 20 a 40%. As taxas são maiores se a pneumonia se desenvolve nos submeti dos à cirurgia de urgência.

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Figura 4 - Pneumonia no lobo médio do pulmão direito: (A) obser-var a área de condensação (setas) com presença de broncogramas aéreos na incidência anteroposterior e (B) incidência de perfi l

A manutenção da via aérea limpa de secreções já é uma forma de prevenção da pneumonia hospitalar. Exer-cícios respiratórios, respiração profunda e tosse frequente contribuem para evitar atelectasia, que é um precursor da pneumonia. O uso profi láti co de anti bióti cos não diminui a incidência de colonização Gram negati va da orofaringe, e o tempo de intubação está diretamente relacionado à ocor-rência das pneumonias associadas à venti lação.

E - Tromboembolismo pulmonar

Qualquer procedimento cirúrgico aumenta o risco de Trombose Venosa Profunda (TVP) e embolia pulmonar. É fundamental recordar a tríade de Virchow, que explica a fi -siopatologia de base desses eventos: lesão endotelial, esta-se venosa e hipercoagulabilidade. Sabidamente, a cirurgia causa lesão endotelial e estase venosa.

O sistema venoso ileofemoral representa o local de onde se origina a maioria dos êmbolos pulmonares mais signifi cati vos. A gravidade clínica destes é uma função do tamanho do coágulo que se solta do sistema venoso perifé-rico e viaja para a vasculatura pulmonar. Quando a embolia pulmonar é de maior grau, o paciente apresenta sintomas rapidamente progressivos de dispneia, dor torácica (pleurí-ti ca, apreensão) e tosse. A embolia maciça está associada à hemopti se e síncope, mas é bem menos comum. Os si-nais fí sicos mais habituais são taquipneia e taquicardia. Em cerca de 1/3 dos casos, observam-se achados consistentes de trombose venosa dos membros inferiores. Entretanto, geralmente os sinais e sintomas associados à embolia pul-monar não são específi cos e podem sugerir uma gama de problemas clínicos, incluindo infarto do miocárdio, pneu-motórax, pneumonia e atelectasia.

Quando um paciente se apresenta com dor torácica e dispneia, deve-se realizar uma bateria de exames não es-pecífi cos, incluindo gasometria arterial, eletrocardiograma e raio x do tórax. Esses testes afastarão a possibilidade de outras causas para os sintomas. Qualquer indivíduo com ga-sometria arterial que apresenta PaO2 inferior a 70cmH2O é suspeito para o tromboembolismo.

Alterações eletrocardiográfi cas associadas à embolia pulmonar não são diagnósti cas e incluem as inversões de onda T e alterações inespecífi cas do segmento ST. Nas em-bolias pulmonares mais graves, o ECG pode estar associado a um padrão S1Q3T3, bloqueio do ramo direito ou desvio do eixo à direita. Os achados radiológicos tendem a ser inespecífi cos, mas, algumas vezes, pode ser observado um defeito em forma de cunha na base da pleura, conhecido como corcova de Hampton, fruto do colabamento alveolar que se segue à interrupção do fl uxo pelas artérias pulmo-nares. Ocasionalmente, quando êmbolos muito grandes obstruem ramos da artéria pulmonar principal, pode haver interrupção abrupta dos ramos vasculares pulmonares no lado afetado, formando uma imagem de vazio, em cunha, conhecida como oligoemia focal de Westermark (Figura 5).

Figura 5 - Embolia pulmonar com interrupção da artéria pulmonar esquerda (sinal de Westermark)

Para a elucidação diagnósti ca, durante anos usou-se a an-giografi a como padrão-ouro. Entretanto, tal exame é invasivo, com morbidade signifi cati va associada. Por isso, foi desenvol-vida a cinti lografi a de venti lação/perfusão. Durante o exame, a fase venti latória era obti da inalando-se um marcador (xe-nônio). Na fase de perfusão, eram uti lizadas injeções marca-das de albumina-tecnécio. As imagens eram lidas como alta, intermediária e baixa probabilidades. Os pacientes com alta probabilidade eram tratados com anti coagulação sistêmica. Entretanto, os grupos de baixa probabilidade e intermediá-rios geralmente necessitavam de angiografi a pulmonar. Com o avanço tecnológico da tomografi a, que passou a dispor de sistemas com multi detectores e possibilitou a qualidade da angiotomografi a, reduzindo o distanciamento entre os cortes e o tempo de aquisição das imagens, passou-se a obter ima-gens precisas sem abordagem invasiva. É uma técnica nova com rapidez diagnósti ca, baixa morbidade, sensibilidade de 86% e especifi cidade de 92%.

Raramente, um paciente desenvolve embolia pulmonar maciça, caracterizada por choque, hipóxia grave e, algumas

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vezes, cianose. O tratamento imediato inclui a adminis-tração de líquidos intravenosos e agentes inotrópicos, e a manutenção de um ritmo cardíaco favorável. Os indivídu-os com embolia pulmonar necessitam de máscara facial de pressão para auxiliá-los na oferta basal de oxigênio, e, nos casos graves, pode ser necessária a intubação orotraqueal.

Após o diagnósti co, a terapia trombolíti ca deve ser con-siderada aos casos em que não haja histórico recente de lesão intracraniana ou grande procedimento abdominal nos últi mos 10 dias. Agentes como a estreptoquinase, uroqui-nase e ati vador do plasminogênio tecidual recombinado podem ser considerados. Ainda mais raramente, a embo-lectomia pulmonar pode ser considerada uma tentati va extremada de salvar a vida do doente. Para aqueles em te-rapia de anti coagulação e que sofrem grande hemorragia, a instalação de um fi ltro na veia cava deve ser considerada para prevenir a migração de outros êmbolos para os pul-mões.

F - Embolia gordurosa

O embolismo gorduroso pode ser originário de causas externas, como transfusão, nutrição parenteral ou trans-plante de medula óssea. A síndrome do embolismo gordu-roso consiste em sintomas neurológicos, insufi ciência respi-ratória e petéquias nas axilas, no tórax e nos membros su-periores proximais. Originalmente, esse quadro foi descrito nas víti mas de trauma e fratura múlti pla de ossos longos, e acredita-se que essa síndrome seja resultado de embolia da medula óssea. Há autores que questi onam tal quadro pulmonar pós-trauma.

Caracteristi camente, o embolismo gorduroso inicia-se de 12 a 72 horas após o trauma, mas pode apresentar-se semanas mais tarde. O diagnósti co é clínico, e o achado de êmbolos gordurosos no escarro e urina é comum após trau-ma, mas não específi co. Geralmente, são observadas que-da do hematócrito, trombocitopenia e outras alterações na coagulação.

Outros sintomas aparecem, e o tratamento de suporte deve ser empregado para promover a venti lação adequa-da e a monitorização da insufi ciência respiratória para a melhora do quadro psiconeurológico. A insufi ciência res-piratória é mais bem controlada com venti lação mecânica assisti da com pressão fi nal positi va expiratória e diuréti cos. O prognósti co está relacionado com o grau de comprome-ti mento.

G - Edema pulmonar

Esta é uma condição associada ao acúmulo de líquidos nos alvéolos, o que determina redução da troca gasosa, de-sencadeando hipoxemia. O paciente pode incrementar o esforço respiratório, por meio do aumento da frequência respiratória e do uso elevado de musculatura acessória.

O edema é causado pelo aumento da pré ou da pós-car-ga, com elevação da pressão hidrostáti ca no pulmão (insu-fi ciência cardíaca congesti va, infarto agudo do miocárdio),

permeabilidade anormal dos capilares pulmonares (cho-que, sepse, transfusões maciças, bypass cardiopulmonar, “pulmões rígidos”, lesão craniana, queimaduras e inalação de agentes químicos industriais e drogas ilícitas), ou hiper-volemia devido à ressuscitação agressivamente excessiva. Lesões pulmonares também determinam o extravasamento dos fl uidos para dentro dos alvéolos, desencadeando res-posta infl amatória excessiva e formação de maior derrame alveolar. No pós-operatório, as causas mais relacionadas são as iatrogênicas (excesso de fl uidos intravenosos), dis-função miocárdica primária e hipertensão arterial não con-trolada. A infecção generalizada é outro fator de risco para aqueles com baixa reserva cardiopulmonar.

O edema agudo de pulmão com hipertensão acontece como o resultado de um aumento agudo da resistência vas-cular periférica e uma redução da complacência ventricular. A disfunção diastólica aguda é a responsável pela congestão pulmonar que ocorre aos indivíduos com o quadro agudo pulmonar associado à hipertensão. O paciente apresenta--se agudamente dispneico e ortopneico. Taquicardia, ciano-se, ansiedade e sibilos audíveis são facilmente detectáveis ao exame clínico. Estertores crepitantes associados ao de-cúbito são audíveis em todos os campos pulmonares. O tra-tamento é imediato e depende da origem do edema agudo do pulmão, mas, em geral, tem como objeti vo uma redução combinada da pré e da pós-carga. Para tanto, são uti lizadas drogas como nitritos, diuréti cos de alça (furosemida), nitro-prussiato de sódio e morfi na.

H - Síndrome do desconforto respiratório agudo

A Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA) desenvolve-se após trauma ou sepse. Fatores de ati vação da coagulação e agentes infl amatórios são liberados na presença de lesões teciduais extensas ou em tecidos cor-porais infectados, condições que podem surgir no paciente cirúrgico. Tais fatores determinam resposta infl amatória lo-cal e generalizada intensa devido à disseminação dos seus elementos pela microcirculação e circulação geral. Esses elementos bioquímicos lesam a parede do endotélio, e o plasma extravasa dentro do interstí cio; no caso do pulmão, dentro do alvéolo. O edema pulmonar resultante impede a venti lação e a oxigenação. A pressão arterial de oxigênio declina, e a concentração de dióxido de carbono aumenta.

Os elementos responsáveis pela resposta infl amatória em cadeia são inúmeros: proteases, bradicininas, fatores do complemento, prostaglandinas, tromboxanas, leucotrie-nos, enzimas lisossomais e outros mediadores associados a agregados de plaquetas e leucócitos, ou, até mesmo, pro-dutos do endotélio lesado em associação à ação das pla-quetas in loco. Todas essas reações bioquímicas teciduais atraem mais plaquetas e leucócitos, fechando-se um ciclo vicioso que perpetua a ação deletéria em graus cada vez maiores. Após a ressuscitação de um paciente com lesão corporal grave ou quadro de infecção visceral ou cavitária, pode surgir a hipoxemia em 24 horas.

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Afastadas as outras causas de hipoxemia (falência me-cânica muscular, atelectasias, aspiração, embolia e trauma pulmonares), a suspeita incide sobre o desenvolvimento da SDRA. Os pulmões desenvolvem uma resposta infl amatória inespecífi ca; monócitos e neutrófi los invadem o interstí cio. O edema aparece dentro de poucas horas, líquidos alveo-lares surgem dentro das 24 horas iniciais, e a cicatrização local se desenvolverá em 1 semana (Figura 6). Se o processo não é debelado, os pulmões tornam-se maciços e ingurgita-dos, sendo difí cil a venti lação, processo chamado de hepa-ti zação pulmonar. Quando o processo cicatricial entra em ação, a fi brose começa a se desenvolver em 2 semanas. Se tratado prontamente, desde o início da resposta infl amató-ria, há a total regressão das alterações teciduais, impedindo a formação da cicatrização tecidual.

Figura 6 - SDRA: a difi culdade em enxergar os campos pleuropul-monares se dá pelo edema e pelo líquido no interior dos alvéolos

Um consenso recente identi fi cou a lesão pulmonar trau-máti ca e a SDRA como 2 níveis diferentes de insufi ciência respiratória secundários ao trauma. Em contraste com o edema pulmonar, que está associado ao aumento da pres-são encunhada e das pressões do lado direito do coração, a lesão traumáti ca do pulmão e a SDRA estão associadas a uma hipo-oxigenação causada por uma resposta infl amató-ria patológica, que leva ao acúmulo de líquido nos alvéolos, bem como ao espessamento no espaço entre os capilares e os alvéolos.

I - Derrame pleural

Figura 7 - Derrame pleural: (A) aspecto radiológico de derrame pleural volumoso à esquerda e (B) aspecto tomográfi co de derra-me laminar à direita

Pequenos Derrames Pleurais (DP) são comuns em cirur-gias de andar superior do abdome e na maioria das vezes são reabsorvidos. Na ausência de insufi ciência cardíaca ou lesão pulmonar, o aparecimento de DP em grande quanti -dade ou no pós-operatório tardio deve alertar para a possi-bilidade de abscessos intracavitários ou até mesmo pancre-ati te (DP à esquerda).

O tratamento consiste em tratar a condição de base que levou à formação do derrame e na toracocentese alivia-dora. Uma amostra do material aspirado deve ser enviada para avaliação bioquímica e bacterioscopia.

J - Pneumotórax

As principais causas de pneumotórax no pós-operatório são barotrauma (especialmente nos doentes em venti lação mecânica sob pressão) e punção iatrogênica durante acesso venoso central.

Outras causas mais raras são lesões traqueobrônquicas (cirurgias torácicas e de esôfago), após traqueostomia, le-sões de diafragma que passam despercebidas e manipula-ção do hiato diafragmáti co.

Quando não há DP associado, o tratamento pode ser feito com drenagem pelo sistema de válvula de Heimlich com dreno ti po pig tail. Na impossibilidade de excluir na DP ou quando há chance de contaminação do espaço pleural, realiza-se a drenagem pleural com dreno em selo d’água.

4. Complicações da ferida operatória

A - Hematoma

O hematoma da ferida operatória, uma coleção de san-gue dentro da ferida fechada, é uma das complicações mais comuns, causada, principalmente, por hemostasia local não adequada. Pacientes usuários de aspirina ou baixas doses de heparina apresentam risco relati vo aumentado para de-senvolver essas complicações. O risco é mais alto naqueles que recebem doses sistêmicas de anti coagulação ou nos portadores de coagulopati a. Tosse persistente ou crises de hipertensão no pós-operatório podem contribuir para a for-mação de hematomas na ferida.

Os hematomas determinam a elevação com coloração da ferida, afastamento de suas bordas, desconforto e se-creção local. O sangue pode ser expelido espontaneamen-te da ferida, sendo necessária a reintervenção quando o sangramento surge precocemente. Hematomas cervicais, após ti reoidectomia ou cirurgias da caróti da, são perigosos porque podem expandir rapidamente e comprimir as vias aéreas. Os pequenos hematomas podem ser reabsorvidos, mas aumentam o risco de infecção da ferida operatória. O tratamento consiste em evacuação dos coágulos sobre con-dições estéreis, ligadura dos vasos e fechamento primário da ferida (Figura 8A).

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Figura 8 - (A) Paciente no pós-operatório de dermolipectomia ab-dominal, realizando evacuação de hematoma e (B) seroma por ori-fí cio prévio de dreno. Na 1ª Figura, há predomínio do hematoma. O material mais fl uido observado na 2ª Figura é predominante-mente seroma

B - Seroma

O seroma resulta do acúmulo da gordura e linfa liquefei-tas e frequentemente acompanha operações que envolvem a elevação de retalhos, grandes descolamentos e transec-ção de inúmeros canais linfáti cos. Sua presença faz aumen-tar o risco de infecção da ferida operatória. Aqueles locali-zados abaixo da pele podem ser evacuados por aspiração com agulha em condições estéreis ou, eventualmente, até serem conduzidos com observação seriada.

Nas cirurgias oncológicas em que há a necessidade de linfadenectomia regional, o seroma é frequente, e o uso de dreno a vácuo é mandatório no pós-operatório. Mesmo após a reti rada do dreno, existe o risco de seroma. Se ocor-rer o vazamento contí nuo de fl uidos na ferida, será necessá-ria a ligadura dos vasos linfáti cos para o controle local (em ambiente estéril do centro cirúrgico sob anestesia geral).

C - Deiscência de ferida operatória

A deiscência pode ser total ou parcial de qualquer ca-mada da ferida. A ruptura de todas as camadas da parede abdominal e a extrusão de vísceras abdominais é chamada evisceração. Vários fatores causais, sistêmicos ou locais, es-tão envolvidos.

a) Fatores sistêmicos

A deiscência é rara em pacientes com faixa etária abai-xo de 30 anos, mas pode afetar 5% dos pacientes acima de 60 anos submeti dos à laparotomia. É mais comum em pes-soas com algum ti po de imunodepressão, como diabetes mellitus, uso de corti costeroides, químio e/ou radioterapia e sepse. Outras condições que podem estar associadas a deiscências são uremia, DPOC, icterícia, tabagismo, hipoal-buminemia, obesidade mórbida ou desnutrição severa. O controle pré-operatório dessas condições é imprescindível para melhores resultados cirúrgicos.

b) Fatores de risco locais

Os 3 fatores de risco mais importantes são técnica ci-rúrgica inadequada, aumento da pressão intra-abdominal e defi ciência na cicatrização. A deiscência comumente re-sulta de uma combinação desses fatores e não apenas de um deles.

As principais causas de aumento da pressão intra-abdo-minal são: obesidade, distensão de alças por íleo paralíti co (ou por obstrução intesti nal), ascite ou tosse, e síndrome comparti mental abdominal. A infecção cirúrgica é um fator associado a mais da metade das feridas deiscentes e, para o seu desenvolvimento, necessita de, pelo menos, 1 entre 3 fatores: número adequado de bactérias patogênicas, me-canismos de defesa inadequados do hospedeiro e um am-biente tecidual capaz de manter a propagação conti nuada das bactérias. É importante considerar tais fatores de risco para minimizar a sua prevalência, permiti r o diagnósti co precoce e promover intervenção efeti va.

c) Diagnósti co e tratamento

Embora a deiscência seja possível em qualquer período do pós-operatório, é mais comum entre o 5º e o 8º dias. A deiscência de ferida pode ser a 1ª manifestação de abs-cesso intra-abdominal. O sinal mais precoce de deiscência da aponeurose é a descarga de secreção serossanguínea da ferida.

Os pacientes com ascite são de risco para a perda de fl uidos pela ferida operatória. O não tratamento do vaza-mento de fl uidos na parede abdominal faz aumentar o ris-co de infecção da ferida e/ou da parede abdominal e, por disseminação retrógrada, ocorrer a contaminação da cavi-dade e peritonite. Uma medida preventi va compreende o fechamento de uma das camadas com sutura contí nua e das demais, de modo que não haja espaços entre os planos da parede abdominal.

A evisceração é uma condição grave com alta morbi-mortalidade, e o paciente deve ser prontamente atendido, com cobertura das alças com compressas úmidas e mor-nas, iniciando-se cobertura anti bióti ca imediata seguida de transferência para o centro cirúrgico e, sob anestesia geral, realização de inventário de toda a cavidade abdominal, la-vagem exausti va com fl uidos aquecidos, desbridamento de tecidos desvitalizados e preparação de nova sutura com fi os inabsorvíveis e de espessura maior. A taxa de mortalidade da evisceração gira em torno de 10% e é mais frequente quando existem fatores de risco como câncer ou sepse as-sociados, os quais contribuem para a infecção local. A recor-rência da evisceração após reparação cirúrgica é rara, em-bora as hérnias incisionais reapareçam em 20% dos casos.

A deiscência de ferida sem evisceração é mais bem con-trolada com o fechamento dessa ferida. Se há rompimento parcial (eventração), o indivíduo está estável e possui baixo risco anestésico-cirúrgico, o tratamento pode ser adiado, e a hérnia incisional é tratada de forma eleti va. Se o paciente é de alto risco operatório, não se indica reparação, e a hér-nia incisional deve ser observada e cuidada de forma a ser aceita pelo paciente. No pós-operatório dos casos de repa-ração cirúrgica, todos os cuidados devem ser tomados a fi m de evitar a recidiva da deiscência. Enfaixamento abdominal e adiamento da reti rada dos pontos de pele são as medidas empregadas. Se há infecção da ferida, deve ser realizada coleta da secreção para cultura e anti biograma, o tratamen-

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to empírico com anti bióti cos é logo iniciado, e, quando os resultados das culturas estão disponíveis, procede-se à ade-quação da anti bioti coterapia.

As feridas operatórias torácicas são menos propensas às deiscências, exceto as feridas de esterno. Quando uma feri-da de toracotomia se rompe, há a saída de fl uidos pleurais, ar e movimento paradoxal da caixa torácica. As deiscências do esterno, muito associadas à infecção óssea, produzem um tórax instável e requerem tratamento urgente. Se a in-fecção não esti ver disseminada e o esterno apresentar os-teomielite mínima, o paciente poderá ser encaminhado ao centro cirúrgico para reparo.

D - Infecção de ferida

Febre que aparece após o 4º dia de pós-operatório é co-mumente causada por infecção de ferida, devido a germes entéricos ou a estafi lococos. A localização da ferida opera-tória é importante por ser mais ou menos suscetí vel à infec-ção local. As feridas da cabeça e do pescoço raramente se infectam devido ao seu excelente suprimento sanguíneo e à rápida cicatrização.

Os fatores de risco para infecção da ferida operatória são semelhantes aos envolvidos nas deiscências de suturas. Os cuidados de assepsia e anti ssepsia do paciente e equipe cirúrgica também estão diretamente relacionados às com-plicações infecciosas.

A manifestação clínico-cirúrgica da infecção de ferida é, na maioria das vezes, assinalada por elevações diárias da temperatura (padrão apiculado) semelhantes às de um abs-cesso. O paciente pode apresentar taquicardia, calafrios, mal-estar e leucocitose. A inspeção cuidadosa da ferida re-vela sensibilidade acentuada e celulite peri-incisional. Nas infecções estafi locócicas, há vermelhidão mais evidente, edema, temperatura cutânea elevada, e, frequentemente, podem ser palpadas áreas de fl utuação. Caso o paciente es-teja recebendo anti bioti coterapia por outro moti vo, pode existi r infecção dentro da ferida sem muitas das caracterís-ti cas de infl amação aguda. A coloração pelo Gram e culturas do material encontrado dentro da ferida levarão à identi fi -cação do micro-organismo específi co responsável.

O 1º passo para o tratamento das infecções de feridas é a drenagem adequada, as quais requerem ampla abertu-ra. Após essa drenagem, são usadas soluções anti ssépti cas e a lavagem com soluções salinas, evitando o crescimento bacteriano na ferida e promovendo a formação do tecido de granulação em área limpa. Anti bióti cos sistêmicos são uti lizados quando há evidências de piora progressiva local e sintomas clínicos gerais (febre, adinamia, bacteremia, toxemia). A cultura das secreções auxilia na escolha mais correta dos anti bióti cos, mas, em geral, uti lizam-se as me-dicações de forma empírica. Deve-se tomar cuidado com os diabéti cos que podem apresentar evolução rápida da infecção e toxemia grave. Feridas perineais nestes últi mos merecem a vigilância constante de sua evolução, pelo risco de evoluírem para síndrome de Fournier.

5. Deiscências anastomóti casA deiscência de uma anastomose entre 2 órgãos ocos é

uma das complicações mais sérias que um cirurgião pode encontrar. O extravasamento de líquidos carregados de bactérias leva à formação de abscessos locais, fí stulas, rup-tura da anastomose, deiscência da parede abdominal, sep-se e até morte.

Para evitar uma deiscência anastomóti ca, devem ser ob-servados alguns itens. O órgão a ser tratado deve ter supri-mento sanguíneo adequado até a borda da anastomose, e a sutura deve ser livre de tensão e com técnica adequada. A largura dos lúmens dos órgãos a serem conectados deve ser igual e obti da por meio de uma variedade de técnicas.

Certas anastomoses são parti cularmente difí ceis sob o ponto de vista técnico, logo mais propensas a uma deiscên-cia anastomóti ca. Uma pancreatojejunostomia, após um procedimento de Whipple, apresenta índice de deiscência de 15 a 20%. Como o lúmen do intesti no delgado é manipu-lado para acomodar o tamanho do pâncreas, pode ser feita uma anastomose não muito segura. Similarmente, como o esôfago não possui serosa, as esofagoenterostomias apre-sentam risco aumentado e devem ser feitas com muito cuidado. Anastomoses colorretais baixas são tecnicamente difí ceis, assim, deve-se considerar a confecção de ostomia de proteção.

O 1º sinal da deiscência anastomóti ca é a taquicardia. Habitualmente há febre, dor abdominal, mal-estar, íleo pa-ralíti co, recusa alimentar ou vômitos pós-prandiais e uma incapacidade geral de se recuperar. Exames de imagens po-dem ser empregados na tentati va inicial de fechar o diag-nósti co suspeito. O diagnósti co deve ser considerado na presença de grandes coleções de líquido, níveis hidroaére-os em uma cavidade com abscesso, grande quanti dade de líquido livre na cavidade peritoneal ou grande quanti dade de ar livre (pneumoperitônio).

O tratamento dependerá de cada caso. Nas situações em que a deiscência é pequena, com uma fí stula contro-lada, pode ser uti lizado o tratamento conservador até que cesse a drenagem do líquido. Se o paciente não está sépti co, deve-se mantê-lo em jejum e insti tuir nutrição parenteral. Se a deiscência anastomóti ca ocorreu nos cólons, deve ser realizada uma colostomia e criada uma fí stula mucosa em uma zona anterior à ostomia. Nas fí stulas biliares, coloca-se um dreno local para dirigi-la. Se ocorrer grande perda de material, estará indicada cirurgia para reconstrução e dre-nagem.

6. Complicações urológicas

A - Infecção pós-operatória do trato urinário

Os pacientes portadores de obstrução urinária e que apresentam dilatação do sistema pielocalicial devem ser submeti dos à passagem de cateter uretral para alívio do

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regime de hipertensão (cateter duplo J). Estes apresentam risco de infecção urinária, e, se confi rmada a sua presença, o cateter deve ser reti rado. Contaminação preexistente do trato urinário, retenção urinária e instrumentação local são os outros fatores contribuintes para o desenvolvimento do quadro infeccioso.

Os germes mais comuns envolvidos são as bactérias en-téricas Gram negati vas. O local de infecção é, geralmente, a bexiga (cisti te). Não raro, a infecção ascende para o trato urinário superior (pielite e pielonefrite). Em qualquer indi-víduo com febre pós-operatória que se submeteu à cirur-gia geniturinária ou na qual se introduziu cateter uretral, deve-se suspeitar de infecção do trato urinário. Bacteriúria está presente em, aproximadamente, 5% dos submeti dos à cateterização vesical de curta duração (<48 horas). Os sintomas da infecção urinária incluem disúria, calafrios, au-mento da frequência da micção e dor que se localiza sobre a área de infecção. Uma amostra de urina pode detectar bactérias e leucócitos.

B - Retenção e inconti nência

Pode ocorrer retenção transitória após bloqueios regio-nais como raquianestesia, que regridem conforme termina o efeito da anestesia. Caso o paciente venha a desenvol-ver bexigoma palpável e desconforto nesse período, a son-dagem vesical de alívio costuma ser resoluti va. Também podem ocorrer retenções mais prolongadas em cirurgias ginecológicas cuja manipulação pélvica altera a inervação vesical. Os pacientes, muitas vezes, necessitarão de técni-cas como cateterismo intermitente e fi sioterapia pélvica. É importante, porém, excluir causas mecânicas de obstrução do fl uxo urinário antes de confi rmar um diagnósti co de re-tenção urinária de origem neurogênica.

A inconti nência acontece principalmente em cirurgias urológicas e pélvicas, seja por alteração da inervação, seja por intervenções locais como a confecção neouretral pós--prostatectomia. O tratamento pode incluir desde medica-ções, fi sioterapia e até novas cirurgias.

7. Complicações cardíacasPodem ser autolimitadas e de controle adequado, con-

tudo sua incidência diminui caso sejam adotadas medidas terapêuti cas prévias. Dessa forma, o cirurgião, tendo co-nhecimento de que seu paciente é portador de doença car-díaca, deve solicitar exames complementares, como eletro-cardiograma e ecocardiograma bidimensional com Doppler de fl uxo, para uma avaliação global da função ventricular.

A anestesia geral deprime o miocárdio. Alguns anesté-sicos predispõem às arritmias por sensibilizar o miocárdio às catecolaminas. A monitorização cardíaca e as medidas de pressão arterial detectam as arritmias e a hipotensão precocemente. Entre aqueles de alto risco cardiológico, a anestesia geral pode ser mais segura do que o bloqueio me-dular, mesmo para procedimentos abaixo do umbigo, por

não induzirem à vasodilatação comumente encontrada nos bloqueios.

A duração e a urgência da cirurgia, assim como a perda de controle do sangramento com hipotensão, têm sido di-retamente correlacionadas a sérias complicações cardíacas. Entre os portadores de marca-passo, a corrente do eletro-cautério pode interferir na função do aparelho eletroesti -mulador. Complicações cirúrgicas não cardiológicas podem afetar o desempenho cardíaco, determinando aumento na demanda em pacientes com reserva diminuída. Septi cemia, má perfusão e hipoxemia são fatores de risco para compli-cações cardiológicas. Excessos de fl uidos podem produzir falência ventricular esquerda. E os pacientes com doença coronariana, arritmias ou insufi ciência cardíaca devem ser monitorizados na unidade de terapia intensiva.

A - Arritmias cardíacas

Podem ser perigosas quando causam redução do débito cardíaco e da pressão sanguínea arterial, ou interferem na perfusão de órgãos vitais. A maioria das arritmias aparece durante a cirurgia ou dentro dos primeiros 3 dias de pós--operatório. Elas são especialmente comuns nos procedi-mentos intratorácicos.

Todos os fatores defl agradores para arritmias cardíacas poderão estar presentes durante o procedimento anesté-sico-cirúrgico. É um risco a todos os pacientes e depende dos cuidados pré-operatórios, da resposta neuroendócrina durante o trauma cirúrgico, das condições clínico-cirúrgicas encontradas antes, durante e após o ato operatório, além da técnica cirúrgica empregada.

A incidência global de arritmias intraoperatórias é de 20%, e a maioria é autolimitada. A incidência é maior entre os portadores de arritmias e os pacientes que apresentam doenças cardíacas (35%). Somente 1/3 das arritmias ocorre durante a indução anestésica. Esse ti po pode ser causado por gases anestésicos, como o halotano ou o ciclopropano, ou por drogas simpati comiméti cas. A toxicidade digitálica e a hipercapnia são outras causas que devem ser lembradas.

Nas arritmias, no período pós-operatório, deve-se ava-liar se as causas são decorrentes de hipopotassemia, hipo-xemia, alcalose, toxicidade digitálica ou estresse durante cirurgias de emergências. Ocasionalmente, arritmias no pós-operatório podem ser a manifestação de isquemia do miocárdio. A maioria das arritmias é assintomáti ca, mas pode haver sintomas como dor torácica, palpitações ou dispneia.

B - Infarto do miocárdio pós-operatório

Aproximadamente, 0,4% de todos os submeti dos à ci-rurgia desenvolvem Infarto Agudo do Miocárdio (IAM). A in-cidência aumenta para 5 a 12% nos submeti dos a cirurgias vasculares (por exemplo, enxerto aórti co, endarterectomia de caróti das). Outros fatores de risco importantes incluem a presença de insufi ciência cardíaca no pré-operatório, is-quemia identi fi cada na cinti lografi a cardíaca (dipiridamol-

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-tálio) ou teste ergométrico, idade maior de 70 anos. Em portadores de angina, deve ser considerada a revasculari-zação miocárdica antes do procedimento cirúrgico eleti vo em outro órgão.

O IAM pode ser precipitado por fatores como hipoten-são ou hipóxia. As manifestações clínicas são dores torá-cicas, hipotensão e arritmias cardíacas. Cerca de 1/3 dos episódios de IAM, entretanto, é assintomáti co. A ausência de sintomas deve-se a efeitos residuais da anestesia e à ad-ministração de analgésicos no pós-operatório; além disso, deve-se lembrar que os diabéti cos têm maior incidência de infartos silenciosos. O diagnósti co é obti do com 2 de 3 pa-râmetros alterados: eletrocardiograma, enzimas cardíacas e/ou dor tí pica. O exame eletrocardiográfi co demonstrará as alterações nas ondas de despolarização, com sinais de isquemia miocárdica (“corrente de lesão”). E ainda, eleva-ção dos níveis de creati naquinase (CPK) – especialmente a fração MB – e níveis elevados da isoenzima da troponina.

A taxa de mortalidade do IAM no pós-operatório é mui-to alta entre os grupos de alto risco (67%). O prognósti co é melhor se esse é o 1º episódio de IAM, e pior se já existi u IAM prévio. A prevenção dessa complicação inclui adiamen-to da cirurgia por 3 meses ou, se possível, 6 meses após o evento isquêmico; tratamento da insufi ciência cardíaca congesti va e controle da hipertensão arterial. A insufi ci-ência cardíaca congesti va deve ser tratada com digitálicos, diuréti cos e vasodilatadores, se necessário.

Os pacientes que desenvolveram IAM no pós-operatório devem ser monitorizados em unidade de terapia intensiva com adequado suporte de oxigênio e hidratação com fl ui-dos e eletrólitos adequados. Anti coagulação, embora não seja possível após a cirurgia realizada, previne o desenvol-vimento de trombose mural e embolismo arterial após o IAM.

C - Falência cardíaca

A falência ventricular esquerda e o edema pulmonar acometem 4% dos pacientes acima dos 40 anos submeti dos a procedimentos cirúrgicos com anestesia geral. Excesso de fl uidos intravenosos naqueles com limitação da reserva miocárdica é a maior causa. O IAM pós-operatório e as ar-ritmias cardíacas produzem maior pressão intraventricular e aumento do débito cardíaco. As manifestações clínicas são dispneia progressiva, hipoxemia com tensão normal de gás carbônico e congestão difusa dos pulmões no raio x.

O tratamento da falência ventricular esquerda depende do estado hemodinâmico. Aqueles em choque circulatório requerem cuidados de UTI, passagem de um cateter na ar-téria pulmonar (Swan-Ganz) e redução da pré e da pós-car-ga. A redução desta é obti da por diuréti cos (e nitroglicerina, se necessário); a da pré-carga, pela administração de nitro-prussiato de sódio. Os pacientes que não estão em choque circulatório, entretanto, podem uti lizar digitálicos. A rápida digitalização (por exemplo, doses fracionadas de um total de 1 a 1,5mg em 24 horas, com monitorização dos níveis de

potássio), a restrição hídrica e o estí mulo diuréti co podem ser sufi cientes nesses casos. A insufi ciência respiratória im-plica suporte venti latório invasivo (intubação endotraqueal) e venti lação mecânica assisti da controlada.

8. Complicações intracavitárias

A - Hemoperitônio

O sangramento é a maior causa de choque circulatório nas primeiras 24 horas de uma cirurgia abdominal. O hemo-peritônio pós-operatório – uma condição aguda e de rápida evolução – é geralmente resultado de problemas técnicos de hemostasia, mas coagulopati as podem estar envolvidas. Nesses casos, o sangramento tende a ser generalizado, ocor-rendo na ferida operatória, punções venosas, vias aéreas etc.

O hemoperitônio, geralmente, torna-se aparente dentro de 24 horas após a cirurgia. Sua manifestação é semelhan-te à hipovolemia: taquicardia, queda de pressão arterial, queda do débito urinário e vasoconstrição periférica. Se o sangramento persiste, podem surgir febre e dor abdominal mais intensa. Mudanças no hematócrito não são geralmen-te evidentes nas 4 a 6 horas iniciais do quadro hemorrágico intra-abdominal, tendo valor diagnósti co limitado.

A manifestação clínica pode ser súbita, e o diagnósti co, superesti mado. O diagnósti co diferencial de choque circu-latório pós-operatório também inclui tromboembolismo pulmonar, arritmias cardíacas, pneumotórax, IAM e reações alérgicas severas. Expansão volêmica deve ser administra-da tão logo seja possível, enquanto se inicia a investi gação diagnósti ca. Se a hipotensão ou outros sinais de hipovole-mia persisti rem, deve ser realizada reoperação. Durante a cirurgia, sangramentos são controlados, coágulos reti rados, e a cavidade peritoneal, lavada com solução salina.

Cirurgias pancreáti cas podem determinar corrosão da parede dos vasos por suco pancreáti co que extravasa. Ne-las, o hemoperitônio maciço e catastrófi co pode acontecer já com alguns dias de pós-operatório, geralmente por san-gramento da artéria esplênica.

B - Síndrome comparti mental abdominal

Defi ne-se hipertensão intra-abdominal a elevação per-sistente ou intermitente da Pressão Intra-Abdominal (PIA) acima de 12mmHg (normal: 5 a 7mmHg). Síndrome Com-parti mental Abdominal (SCA) é defi nida pela elevação per-sistente da PIA acima de 20mmHg, associada à falência or-gânica não presente previamente.

São fatores predisponentes para o aumento da PIA: choque hemorrágico, infusões maciças de cristaloide, po-litransfusão e grandes sangramentos intra-abdominais. Pa-cientes que apresentam esses fatores de risco, associados a repercussões sistêmicas, devem ser investi gados quanto à possibilidade de síndrome comparti mental abdominal. Apesar de indireto, o método diagnósti co mais empregado é a aferição da pressão intravesical (Figura 9).

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Figura 9 - Aparelhagem para medição da pressão intra-abdominal

A graduação e o tratamento dependerão desse valor (Figura 10). Valores entre 12 e 20mmHg permitem uma reavaliação volêmica e oti mização hemodinâmica. Valores entre 21 e 25mmHg associados à repercussão sistêmica grave, ou pressão acima de 25mmHg, são indicações de laparostomia descompressiva.

Figura 10 - Diagnósti co e tratamento da SCA

9. Complicações gastrintesti nais

A - Distúrbios da moti lidade

O peristalti smo gastrintesti nal retorna em 24 horas após procedimentos que não invadam a cavidade abdominal, na maioria dos casos. Em geral, a cirurgia videolaparoscópica determina menor grau de íleo adinâmico do que a cirurgia aberta.

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Após a laparotomia, o peristalti smo gástrico retorna em 48 horas. A ati vidade colônica retorna após 48 horas, iniciando no ceco e, progressivamente, em direção caudal. A moti li-dade do delgado é pouco afetada, exceto para os casos de ressecção segmentar deste, anastomoses e casos de obs-trução intesti nal.

Vários fatores pioram o íleo pós-operatório ou prolon-gam o seu curso. Estes incluem medicações – especialmen-te opioides –, níveis anormais de eletrólitos, condições infl amatórias como pancreati te ou peritonite e dor. A pre-sença de íleo adinâmico determina distensão abdominal e ausência de sons intesti nais. O retorno fi siológico do peris-talti smo se manifesta com cólicas abdominais, eliminação de fl atos e retorno do apeti te. Não há uma terapia específi -ca para o íleo adinâmico, a não ser a descompressão gástri-ca por SNG e hidratação venosa.

A obstrução intesti nal pós-operatória resulta da falência da função intesti nal determinada pelo íleo adinâmico per-sistente ou obstrução mecânica. Esta é a manifestação mais tardia e menos comum no período pós-operatório imediato e resulta de aderências ou da formação de hérnias internas. A maioria dos pacientes apresenta um período de melhora com funções fi siológicas normais antes de manifestar a obs-trução mecânica. Aproximadamente, metade dos casos de obstrução no pós-operatório precoce decorre de cirurgias colorretais.

B - Pancreati te pós-operatória

Representa 10% de todos os casos de pancreati te agu-da e acontece em 1 a 3% dos pacientes submeti dos à ma-nipulação peripancreáti ca e nas cirurgias das vias biliares (Figura 11). A pancreati te também é possível em cirurgias com circulação extracorpórea, cirurgias da paróti da e trans-plante renal, e sua forma necrosante é mais habitual no pós-operatório. Infecção nos tecidos pancreáti cos e outras complicações locais desenvolvem-se com frequência 3 a 4 vezes maior do que nas pancreati tes alcoólica e biliar. A ra-zão da maior gravidade é desconhecida e gira em torno de 30 a 40%.

Figura 11 - Pancreati te aguda com solução de conti nuidade ao ní-vel do corpo pancreáti co (seta) (legenda: P = Pâncreas; B = Baço)

A causa, na maioria das vezes, relaciona-se a trauma mecânico no pâncreas ou no seu suprimento sanguíneo. A prevenção desse evento inclui a exploração manual crite-riosa do órgão, evitando-se a manipulação forçada com di-latação do ducto biliar através do esfí ncter duodenal, o que pode induzir a edema e obstrução do ducto pancreáti co. A taxa de 2% de incidência nos casos pós-transplantados renais está, provavelmente, relacionada a fatores de risco como uso de corti costeroide ou azati oprina, hiperparati -reoidismo secundário ou infecções virais. Alterações agudas do cálcio sérico são responsáveis pela pancreati te, seguida da cirurgia das parati reoides. A hiperamilasemia desenvol-ve-se na metade dos casos submeti dos à cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea, mas a manifestação clínica de pancreati te está presente em apenas 5% dos casos. O diagnósti co de pancreati te pós-operatória pode ser difí cil, e a monitorização do órgão pode ser obti da realizando-se tomografi a computadorizada sequencial.

C - Disfunção hepáti ca pós-operatória

A disfunção hepáti ca oscila de leve icterícia à insufi ci-ência hepáti ca fulminante e pode surgir em 1% dos casos submeti dos à cirurgia sob anestesia geral. A insufi ciência hepatocelular é a principal causa de icterícia pós-operató-ria, como consequência da necrose de células hepáti cas, infl amação ou grande ressecção de tecido do fí gado. Dro-gas, hipotensão, hipóxia e sepse estão entre as causas de icterícia por lesão parenquimatosa. Embora a hepati te pós--transfusional seja geralmente observada em um período tardio, tal complicação pode acontecer até a 3ª semana de pós-operatório.

Todos os pacientes com icterícia no pós-operatório devem ser investi gados para avaliar se há necessidade de abordagem cirúrgica. A colestase pós-hepáti ca aumenta o risco de colangite aguda e o desenvolvimento de sepse, portanto acarreta decréscimo na função hepáti ca. Exames de função hepáti ca não são determinantes para a causa da icterícia e não refl etem a gravidade desta. A função renal deve ser monitorizada porque a hiperbilirrubinemia pode causar o desenvolvimento de insufi ciência renal.

D - Colecisti te pós-operatória

A colecisti te aguda pós-operatória pode surgir em qual-quer ti po de cirurgia, mas é mais comum em procedimen-tos no trato gastrintesti nal. Desenvolve-se logo após esfi nc-terotomia endoscópica em 3 a 5% dos casos. A colecisti te aguda química ocorre em submeti dos à quimioembolização intra-hepáti ca com mitomicina e fl oxuridina, e alguns au-tores indicam a colecistectomia eleti va antes da aplicação dessas drogas. Colecisti tes fulminantes de eti ologia isquê-mica podem acontecer após embolização da artéria hepá-ti ca por tumores malignos do fí gado ou malformação arte-riovenosa envolvendo a artéria hepáti ca. Alguns pacientes com próteses metálicas autoexpansíveis para permear neo-plasias obstruti vas das vias biliares desenvolvem colecisti te

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aguda de eti ologia ainda indefi nida; acredita-se em 2 pro-váveis hipóteses: infecciosa, pela possibilidade de ascensão das bactérias duodenais, e isquêmica, por compressão da artéria císti ca provocada pela prótese.

A colecisti te aguda pós-operatória difere em vários as-pectos das formas de colecisti te aguda. A forma acalculosa é a mais comum (de 70 a 80%), é mais frequente em ho-mens (75%), progride mais rapidamente para necrose e não responde a tratamento conservador. As causas são bem co-nhecidas somente nas colecisti tes química e isquêmica. Os fatores de risco são a estase biliar (com formação de barro biliar), infecção biliar e isquemia.

E - Colite infecciosa por Clostridium diffi cile

A diarreia causada pelo agente microbiano Clostridium diffi cile é uma causa comum de infecção nosocomial em pa-cientes cirúrgicos. A manifestação clínica é muito variável e se apresenta de formas assintomáti cas de colonização a, raramente, colite severa tóxica. O risco principal é o uso de anti bióti co perioperatório. O diagnósti co é estabelecido por meio da identi fi cação da toxina citopáti ca nas fezes, da cul-tura do organismo nas amostras de fezes ou swab retal ou, ainda, da retossigmoidoscopia que revela as pseudomem-branas (Figura 12). A prevenção é a lavagem frequente das mãos, além da precaução ao lidar com secreções entéricas e minimização do uso de anti bióti cos. Quando instalada a infecção intesti nal por Clostridium diffi cile, seu tratamento é insti tuído com o uso de metronidazol ou, para infecções com patógeno resistente, vancomicina oral.

Figura 12 - Diferentes aspectos colonoscópicos de colite pseudo-membranosa (Clostridium diffi cile)

F - Úlcera de estresse

Os principais fatores de risco para úlceras no pós-ope-ratório são insufi ciência respiratória, coagulopati a, infecção grave, uremia e hemorragia digesti va. A profi laxia com inibi-dor de bomba protônica deve ser realizada nesses casos. Há serviços que, na ausência desses fatores, realizam profi laxia com inibidores dos receptores H2.

Nos politraumati zados, as úlceras por estresse recebem o nome de úlceras de Cushing. Nos grandes queimados, esse quadro chama-se úlcera de Curling.

G - Abscessos hepáti cos

São raros os abscessos piogênicos no pós-operatório. O quadro clínico é de febre alta, dor no hipocôndrio direito e, ocasionalmente, icterícia. As causas mais comuns são as co-

leções diafragmáti cas na manipulação do andar superior do abdome. Doença neoplásica intra-hepáti ca também pode necrosar e evoluir para um abscesso. Em cerca de 20% dos casos, a eti ologia não será determinada.

O tratamento minimamente invasivo com drenagem percutânea guiada por exame de imagem é uti lizado sem-pre que possível. Múlti plos abscessos, ou na impossibili-dade do método, são indicações para tratamento cirúrgico (Figura 13).

Figura 13 - Aspecto tomográfi co de grandes abscessos hepáti cos

10. Complicações do sistema nervoso centralO Acidente Vascular Cerebral (AVC) é a maior complica-

ção neurológica que pode acometer os idosos. Ocorre mais na população com severa aterosclerose e que se mantém hipotensa durante ou após a cirurgia (decorrentes da infec-ção grave no pós-operatório, baixo débito cardíaco, hipoter-mia prolongada etc.) e é suspeita em todo quadro de défi cit neurológico focal com duração superior a 24 horas.

Os possíveis fatores eti ológicos da isquemia central são as reações adrenérgicas: taquicardia, hipertensão, hipoten-são e hipóxia. Os fatores associados ao paciente são qua-dro de acidente cerebrovascular prévio, aterosclerose com obstrução carotí dea parcial, hipertensão arterial, diabetes mellitus ou DPOC. A prevenção baseia-se na manutenção da estabilidade cardiovascular, na inibição de grandes va-riações da pressão arterial e no adequado controle da dor pós-operatória.

A ansiedade e o medo são reações normais entre os ci-rúrgicos. O grau em que essas emoções são expressas de-pende de variáveis psicológicas e culturais. Depressão sub-clínica ou história de dor crônica podem levar os pacientes a superesti mar os sintomas de dor no pós-operatório, com insônia e ansiedade extrema, além de alteração de com-portamento. A fronteira entre as manifestações normais de estresse e a psicose pós-operatória é difí cil de ser estabe-lecida.

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O delirium é outra condição que acontece, principal-mente, entre idosos. Trata-se de um estado de disfunção cogniti va com fl utuação do nível de orientação temporoes-pacial, perda de memória e conversação incoerente. Essa condição deve ser diferenciada da demência, em que há uma global perda cogniti va sem qualquer efeito sobre a consciência. Algum grau de delirium ocorre entre 5 e 60% dos pacientes senis após uma cirurgia. É mais prevalente nas cirurgias ortopédicas por fraturas de quadril.

As principais condições que favorecem o quadro de deli-rium são infecções ati vas e distúrbios hidroeletrolíti cos. Ou-tras condições são abandono familiar, cirurgias prolongadas, hipóxia, perdas sanguíneas excessivas no intraoperatório, de-fi ciência visual e auditi va, demência senil preexistente, doen-ças malignas, drogas psicoati vas, excesso de medicamentos uti lizados para as doenças crônicas associadas, suspensão abrupta de drogas de uti lização prolongada, retenção uriná-ria aguda e falência renal.

O delirium ocorre, em geral, no 2º dia de pós-operatório e está associado à internação prolongada e morbidade, mas é reverti do na maioria dos casos. Somente 1% tem piora progressiva das funções cogniti vas. Se há a necessidade de sedação, aplicam-se doses baixas de haloperidol que não têm efeitos cardiovasculares maiores em relação a outros agentes sedati vos.

11. RabdomiólisePode ser fruto de compressão muscular ou reati va a

agentes anestésicos e é mais comum em obesos mórbidos submeti dos a cirurgias de longa duração. A elevação da CPK, que se deposita nos glomérulos, pode causar insufi ci-ência renal, com oligúria, coloração acastanhada e grumos. A proteção renal envolve a diurese forçada com hiper-hidra-tação, alcalinização da urina com infusão de bicarbonato e estí mulo diuréti co com furosemida e manitol.

Se a causa da rabdomiólise for a síndrome comparti -mental nos membros inferiores, deve-se proceder com fas-ciotomias descompressivas o mais precocemente possível, para cessação da isquemia muscular. Ciclistas e marato-nistas apresentam maior risco para essas complicações na musculatura das pernas hipertrofi adas.

12. Disfunção sexualÉ observada após certos procedimentos cirúrgicos,

como prostatectomia, cirurgia cardíaca e reconstrução aór-ti ca. Em cirurgias pélvicas, pelo risco de lesão dos ramos sacrais do plexo, é importante apresentar essa possibilida-de ao paciente antes de qualquer procedimento de risco. Outros procedimentos, como retossigmoidectomias, po-dem ocasionar ejaculação retrógrada pela lesão do plexo hipogástrico.

13. ResumoQuadro-resumo

- As causas de febre no pós-operatório costumam seguir uma sequência de aparecimento;

- A causa mais comum nas primeiras 48 horas é atelectasia pulmonar;

- As complicações pulmonares são as mais comuns. Pacientes submeti dos a cirurgias torácicas ou abdominais altas devem iniciar precocemente fi sioterapia respiratória;

- Pacientes com antecedente pessoal de cardiopati a devem ser cuidadosamente monitorizados;

- O infarto agudo do miocárdio pode ser “silencioso” em doentes diabéti cos;

- Sinais de choque hipovolêmico no pós-operatório de cirurgias abdominais devem sugerir a presença de hemoperitônio;

- Complicações como hematomas e seromas de ferida operatória; ou deiscências anastomóti cas estão relacionados a fatores sistêmicos do paciente, mas também a técnica cirúrgica inadequada;

- Pacientes submeti dos à raquianestesia têm maior risco de desenvolver retenção urinária no pós-operatório. Cirurgias pélvicas podem evoluir com disfunções urológica e sexual pela manipulação dos plexos nervosos.

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CAPÍTULO

33Abdome agudo

José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais -Sinais clínicos clássicos do abdome agudo; -Diagnósti co diferencial dos diversos ti pos de abdome agudo:

• Perfurati vo; • Infl amatório; • Obstruti vo; • Hemorrágico; • Isquêmico.

1. IntroduçãoDefi ne-se abdome agudo como uma síndrome dolorosa

aguda de intensidade variável, que leva o doente a procurar o serviço de urgência e requer tratamento imediato clínico ou operatório. Não tratado, evolui para piora dos sintomas e progressiva deterioração do estado geral.

As característi cas semiológicas, observadas no exame clínico por meio da anamnese e do exame fí sico, são os principais fatores que conduzirão o médico ao diagnósti co e à possível conduta. As condições clínicas que simulam um abdome agudo devem ser afastadas para uma correta abor-dagem terapêuti ca.

2. Avaliação

A - Anamnese e exame fí sico

Muitas das afecções agudas do abdome apresentam característi cas peculiares que podem ser sugeridas no mo-mento da anamnese e do exame fí sico. Para tanto, dados relevantes, como início dos sinais e sintomas, característi -

cas semiológicas da dor, febre, náuseas, vômitos, distensão abdominal, ruídos hidroaéreos intesti nais, hematêmese e/ou melena, entre outros, são de vital importância.

A dor é o principal sintoma na síndrome do abdome agudo. A investi gação das característi cas da dor pode mui-tas vezes orientar a eti ologia do quadro (Tabela 1). É possí-vel classifi car a dor em 3 ti pos: visceral, somáti ca e referida.

A dor visceral normalmente é mal-localizada, ao longo da linha média, causada por distensão ou esti ramento dos órgãos e costuma ser a 1ª manifestação das afecções intra--abdominais. A dor somáti ca é mediada por receptores li-gados a nervos somáti cos existentes no peritônio parietal e na raiz do mesentério, sendo responsável por sinais pro-pedêuti cos como a contratura involuntária e o “abdome em tábua”. Por fi m, a dor referida leva à percepção da sensação dolorosa no ponto de inserção da origem do órgão no seg-mento medular do corno posterior da medula. Como esta via faz sinapse na medula espinhal com alguns dos neurô-nios que recebem fi bras de dor da pele, esse ti po de dor pode ser senti da como se fosse superfi cial (Figura 1).

Tabela 1 - Característi cas da dor nos diversos ti pos de abdome agudo

Abdome agudo

Tipo de dorIntervalo entre o início da dor e

a admissão no serviço de emergência

Infl amatórioInsidiosa, progressiva

Geralmente longo

Obstruti vo Cólica Variável

Perfurati voSúbita, difusão precoce

Geralmente curto

Hemorrá-gico

Súbita, difusa Curto

VascularSúbita, pro-gressiva

Curto

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Figura 1 - Principais localizações de dor referida de acordo com a eti ologia do abdome agudo

A febre é uma manifestação comum, geralmente discreta, nas fases iniciais de afecções infl amatórias e infecciosas, tor-nando-se elevada em fases mais avançadas. Em pacientes imu-nodeprimidos, idosos e com doenças crônicas como o diabetes mellitus, a febre pode estar ausente, assim como outros sinais de alerta. Por vezes, o abdome agudo se apresenta como in-fecção grave acompanhada de manifestações sistêmicas como calafrios e toxemia, evoluindo, inclusive, para choque sépti co, o que é mais frequente nos casos de peritonites graves.

O exame fí sico é imprescindível para o diagnósti co. O pa-ciente deve ser examinado em decúbito dorsal, com o abdo-me totalmente descoberto. As regiões do abdome, os movi-mentos, os aumentos de volume e as alterações na epiderme devem ser observados. A presença de cicatrizes abdominais tem importância e pode sugerir a eti ologia da obstrução as-sociada a aderências. A percussão auxilia nos casos de perfu-ração e suboclusão. A palpação é considerada a parte mais importante, pois é por meio dela que o médico poderá senti r a presença de peritonite localizada (apendicite e colecisti te) ou difusa (úlcera perfurada) que se traduz pela contrati lida-de da musculatura de forma involuntária.

B - Exames complementares

Devem-se solicitar exames laboratoriais como hemogra-ma, amilase, lipase, bilirrubinas, transaminases e enzimas canaliculares, além de eletrólitos e gasometria. A urina I au-xilia em diagnósti cos diferenciais.

Entre os exames de imagem, a roti na para o abdome agudo deve constar de uma radiografi a do abdome em incidência anteroposterior em pé e em decúbito, e da ra-diografi a do tórax anteroposterior com visualização das cúpulas diafragmáti cas. O decúbito lateral esquerdo com raios transversais (posição de Laurel) pode ser uti lizado na suspeita de perfuração de víscera oca. A ultrassonografi a (USG) abdominal e a Tomografi a Computadorizada (TC) po-dem ser solicitadas de acordo com a suspeita diagnósti ca.

Alguns exames podem ser diagnósti cos e terapêuti cos. É o caso da videolaparoscopia, da endoscopia digesti va alta e da colonoscopia, cada qual com indicações e contraindi-cações.

3. Classifi caçãoDidati camente, é possível classifi car o abdome agudo

em 5 categorias: -Perfurati vo; - Infl amatório; -Obstruti vo; -Hemorrágico; - Isquêmico.

A - Abdome agudo perfurati vo

O abdome agudo perfurati vo resulta da peritonite se-cundária a uma perfuração de víscera oca com extravasa-mento de material na cavidade abdominal. Em perfurações gástricas, as eti ologias mais comuns são as úlceras pépti cas, de modo que é comum o relato de uso de Anti -Infl amató-rios Não Esteroides (AINEs) nesses pacientes. Perfurações de delgado são raras e devem alertar para a ingestão de corpo estranho. As perfurações colônicas normalmente es-tão associadas a patologias de base como divertí culos ou tumores. Doenças infecciosas como citomegalovírus e tu-berculose podem ser causas de perfuração intesti nal em doentes imunodeprimidos.

Independente da eti ologia, o quadro clínico costuma ser semelhante. O paciente relata uma dor súbita e intensa, de início bem determinado. Os antecedentes listados podem ser pesquisados para diagnósti co eti ológico. Ao exame fí si-co, o dado principal é o chamado abdome “em tábua”, com contratura generalizada. Outro dado propedêuti co impor-tante é o sinal de Joubert, que consiste no som ti mpânico a percussão do hipocôndrio direito pela interposição gasosa.

Exames laboratoriais podem ser solicitados para avalia-ção global do doente, mas não alteram a hipótese diagnós-ti ca. O diagnósti co pode ser confi rmado com a visualização de pneumoperitônio ao raio x ou tomografi a de abdome (Figura 2). Normalmente, grandes pneumoperitônios asso-ciam-se a perfurações colônicas.

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Figura 2 - Pneumoperitônio: (A) raio x de tórax com cúpulas e (B) tomografi a computadorizada

O tratamento é eminentemente cirúrgico por meio de laparotomia exploradora. A conduta intraoperatória depen-derá da eti ologia do quadro. Após a correção da perfuração, o paciente deverá ser orientado quanto ao tratamento da condição de base. Úlceras pépti cas devem ser tratadas com inibidores de bomba protônica e suspensão do AINE logo no pós-operatório imediato, e pacientes com neoplasias devem iniciar o tratamento específi co assim que se recupe-rarem da cirurgia.

B - Abdome agudo infl amatório

O termo abdome agudo infl amatório compreende os casos de peritonite secundária a uma afecção infecciosa ou infl amatória na cavidade abdominal. As causas mais comuns de abdome agudo infl amatório são a apendicite aguda, colecisti te aguda, pancreati te aguda e diverti culite aguda. Apendicite aguda, como é a causa mais comum, será discuti da em um capítulo a parte.

a) Colecisti te aguda

Representa a 3ª causa de internação nos serviços de emergência e está associada a cálculos em mais de 95% dos casos. Resulta da obstrução do ducto císti co por cálculo impactado no infundíbulo, tornando a vesícula infl amada e distendida. A colecisti te aguda aliti ásica pode ocorrer em 3 a 5% das vezes, principalmente em doentes críti cos que es-tão em terapia intensiva, diabéti cos e aqueles que recebem nutrição parenteral.

O quadro clínico se caracteriza por dor persistente no hipocôndrio direito (HCD), associada a náuseas e vômitos. Febre não é comum na fase inicial da doença. Outros epi-sódios, no passado, com resolução espontânea ou a parti r do uso de anti espasmódicos são comuns. Ao exame fí sico, nota-se defesa à palpação em HCD. A pesquisa do sinal de Murphy consiste em comprimir o HCD e solicitar ao pacien-te uma inspiração profunda. Na vigência de colecisti te, a

irritação peritoneal fará que o paciente cesse a respiração.A avaliação laboratorial deve contar com bilirrubinas e

enzimas canaliculares para avaliação de cálculos na via bi-liar. O USG abdominal é o método de eleição para diagnósti -co, revelando espessamento da parede da vesícula, líquido e/ou ar perivesicular, além de indicar a presença e a locali-zação de cálculos.

O tratamento da colecisti te aguda é cirúrgico, mas o mo-mento de indicação operatória pode variar. De maneira ge-ral, preconiza-se a indicação precoce, e a operação só não é realizada de imediato quando a doença se apresenta na forma não complicada em doente de alto risco operatório. A colecistectomia videolaparoscópica (CVL) é considerada padrão-ouro, e anti bioti coterapia é de curta duração, exce-to quando há infecção associada.

b) Pancreati te aguda

É um processo infl amatório do pâncreas, geralmente de natureza química, provocada por enzimas produzidas por ele próprio, e que tem como resultado fi nal uma autodi-gestão da glândula. A eti ologia mais comum é a lití ase biliar (70%), seguida de eti lismo e hipertrigliceridemia. Algumas casuísti cas relatam de 5 a 10% dos casos de pancreati te aguda idiopáti cas.

A dor abdominal é o elemento mais importante no qua-dro clínico, normalmente associada a vômitos. A apresenta-ção da dor, em faixa, no abdome superior e no dorso está presente em cerca de 50% dos doentes. Sinais de toxemia como febre e alterações circulatórias denotam quadros avançados. Alguns sinais propedêuti cos como as manchas equimóti cas periumbilical (sinal de Cullen) ou no fl anco es-querdo (sinal de Grey-Turner) são secundários à hemorra-gia peritoneal ou retroperitoneal.

Os principais exames para confi rmação diagnósti ca são as dosagens de amilase e lipase sérica. Essas medidas são qualitati vas, não quanti tati vas, de modo que não se rela-cionam à gravidade do quadro. A avaliação da gravidade é feita por dados clínicos e laboratoriais. Os parâmetros de Ranson (Tabela 2) são avaliados na admissão e após 48 ho-ras. A presença de 3 ou mais parâmetros indica pancreati te aguda grave.

Tabela 2 - Critérios de Ranson na avaliação de gravidade da pan-creati te aguda

Admissão Após 48h

Idade >55 anos Queda Ht >10%

Leuco. >16.000 Aumento BUN >5

Glicemia >200 Ca sérico <8

DHL >350 PO2 arterial <60

TGO >250 Sequestro líquido >6.000mL

O USG abdominal pode confi rmar a eti ologia biliar. A indicação de TC de abdome reserva-se aos quadros com-plicados para avaliação de complicações como presença de coleções e necrose. Preconiza-se a realização de TC após 72

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horas do início dos sintomas, aos pacientes com elementos sugesti vos de gravidade.

Formas leves podem ser tratadas com jejum, hidratação vigorosa e controle da dor. Se a eti ologia é biliar, realiza-se a CVL na mesma internação, após a resolução do quadro de pancreati te (normalização da amilase e melhora da dor ab-dominal) para evitar novos episódios. Quadros graves, por sua vez, exigem internação do doente em terapia intensiva. Além das medidas iniciais, devem-se avaliar a necessidade de sonda nasogástrica e a correção hidroeletrolíti ca. Anti -bióti cos são indicados nas complicações infecciosas, geral-mente quando se observa ar em retroperitônio pela TC.

A indicação de cirurgia consti tui uma conduta de exce-ção. As necrosectomias devem ser realizadas em necroses extensas que não responderam a medidas clínicas. Fre-quentemente, esses doentes necessitarão de relaparoto-mias para limpeza da cavidade.

c) Diverti culite aguda

A diverti culite aguda é causada pela perfuração de um divertí culo, resultado da ação erosiva de um fecalito ou do aumento excessivo da pressão intraluminal, levando ao quadro de peritonite. A classifi cação proposta por Hinchey em 1977 (Figura 3) leva em conta a localização dos absces-sos e a extensão do processo infeccioso.

Figura 3 - Classifi cação de Hinchey

O quadro clínico da diverti culite aguda não complicada já foi descrito como “apendicite do lado esquerdo”. O pa-ciente apresenta dor na fossa ilíaca esquerda e febre persis-tentes. Ao exame fí sico, há defesa e peritonite no quadrante inferior esquerdo. Podem ocorrer fí stulas, sendo a retovesi-cal a mais comum. Nesses casos, observam-se pneumatúria e infecção urinária que não responde ao tratamento clínico.

O exame considerado padrão-ouro para avaliar a doen-ça é a TC de abdome e pelve, que confi rma a presença do processo infeccioso e afasta outras hipóteses diagnósti cas. A colonoscopia e o enema opaco são contraindicados na fase aguda, pelo risco de desbloqueio de uma possível per-furação e contaminação da cavidade. O tratamento deve ser orientado conforme a apresentação da doença pela classifi cação de Hinchey (Tabela 3).

Tabela 3 - Tratamento da diverti culite aguda baseado na classifi -cação de Hinchey

Hinchey I

Internação hospitalar para jejum, hidratação, an-ti espasmódicos, anti bióti cos (cobertura de Gram negati vos e anaeróbicos) e observação por 48 a 72 horas.

Hinchey II

A falha no tratamento clínico de um abscesso pequeno ou a presença de uma grande coleção pélvica demandam drenagem, que pode ser feita preferencialmente através de radiologia interven-cionista ou com abordagem cirúrgica.

Hinchey IIIRessecção cirúrgica e, dependendo do caso, anas-tomose primária. Pode ser realizada ressecção vi-deolaparoscópica.

Hinchey IV Cirurgia de Hartmann por laparotomia.

Deve-se ressaltar que casos tratados clinicamente ou apenas com drenagem do abscesso deverão ser operados de forma eleti va. Outros critérios de indicação cirúrgica são 2 ou mais crises bem documentadas em pacientes com mais de 50 anos ou um quadro agudo em paciente com menos de 50 anos, presença de complicações (fí stulas, estenose segmentar, perfuração e hemorragia), pacientes imunode-primidos e impossibilidade de excluir câncer.

C - Abdome agudo obstruti vo

Qualquer afecção que difi culte ou impossibilite o trânsi-to intesti nal pode ser defi nida como obstrução intesti nal, a qual consti tui a 2ª afecção abdominal aguda não traumáti ca mais frequente; a obstrução de delgado é mais comum que a de intesti no grosso. Pode ocorrer em qualquer faixa etá-ria, e a letalidade varia de 7 a 30%, dependendo da precoci-dade do diagnósti co e da insti tuição terapêuti ca.

A classifi cação dos casos de obstrução pode ser ado-tada tanto para o diagnósti co diferencial quanto para a conduta terapêuti ca. Didati camente, as obstruções podem ser divididas em altas (acima da válvula ileocecal) e baixas; funcional (decorrente de causas sistêmicas como fatores metabólicos ou infecciosos) e mecânica (decorrente de cau-sas extrínsecas ou intrínsecas ao cólon) ou simples e com sofrimento vascular.

a) Eti ologia

Historicamente, com o maior acesso ao atendimento médico, as hérnias foram suplantadas pelas aderências ou bridas como as causas mais comuns de obstrução intesti -nal de tratamento cirúrgico. Outras causas de obstruções mecânicas comuns são as neoplasias, volvos e intussuscep-ções, corpos estranhos, íleo biliar, doença infl amatória in-testi nal, estenoses isquêmicas, divertí culo de Meckel, bolo de áscaris e hematomas intramurais (Tabela 4).

Tabela 4 - Causas mecânicas mais prevalentes de obstrução intesti nal

- Bridas ou aderências pós-operatórias;

- Hérnias de parede abdominal ou internas;

- Tumores;

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- Volvos;

- Intussuscepção;

- Divertí culo de Meckel;

- Corpos estranhos intra ou extraluminares;

- Estenoses benignas.

Dividindo por faixas etárias, as principais causas de obs-trução em crianças são hérnias estranguladas, divertí culo de Meckel e intussuscepção. Em adultos jovens, predominam as hérnias e as bridas. Nos idosos, as causas mais comuns são aderências, íleo biliar, hérnias e tumores. Observa-se que as hérnias estão presentes em todas as faixas etárias, de modo que a procura pelas primeiras é tempo obrigatório da avaliação de doentes com obstrução intesti nal.

Genericamente, uti liza-se o termo íleo adinâmico para caracterizar a interrupção funcional dos movimentos pe-ristálti cos e, consequentemente, do trânsito intesti nal. As principais causas de íleo adinâmico são as doenças primá-rias do peritônio, as doenças de órgãos intraperitoneais e as molésti as extra-abdominais ou sistêmicas. Diversas si-tuações clínicas, como quadros infecciosos, desequilíbrio hidroeletrolíti co e todos os demais quadros sistêmicos expressivos, podem ocasionar a obstrução funcional de in-testi no. O uso de drogas lícitas ou ilícitas também deve ser lembrado como causa prevalente de íleo paralíti co.

b) Fisiopatologia

Na obstrução mecânica simples, sem sofrimento de alça, há distensão do intesti no proximal com acúmulo de líquido e gás a montante do ponto de obstrução. Posteriormente, há hiperproliferação bacteriana com produção acentuada de gás e piora da distensão gasosa. A presença de distensão abdominal depende do nível da obstrução e não da fase da doença ou do risco de estrangulamento.

A translocação bacteriana sempre ocorre, contribuindo para os sinais sistêmicos de resposta infl amatória. À medida que a dilatação progride, há extravasamento de líquido para o 3º espaço, tanto pelo acúmulo intraluminal quanto para a cavidade peritoneal. Os vômitos também contribuem para a desidratação e a hipovolemia que acompanham o quadro. Na obstrução alta, ocorre alcalose metabólica hipocalêmica e hipoclorêmica, e na obstrução baixa, é mais comum haver acidose metabólica.

O sofrimento de alça ou estrangulamento acontece quando há comprometi mento da vascularização de um seguimento intesti nal secundariamente à obstrução. As hérnias, os volvos e as intussuscepções intesti nais são as formas de obstrução mais propensas ao estrangulamento. A drenagem venosa é comprometi da mais facilmente que a irrigação arterial quando o mesentério é envolvido. O seg-mento gangrenado sangra para o lúmen e para a cavidade peritoneal, e pode ocorrer perfuração com peritonite. Os produtos da degradação da parede intesti nal, da prolifera-ção bacteriana e da coagulação sanguínea podem ter aces-so à circulação, gerando toxemia e sepse.

c) Diagnósti co

O quadro clínico é de dor abdominal, geralmente do ti po cólica, associada à distensão, vômitos e história de pa-rada de eliminação de fl atos e fezes. A dor é mais intensa nas obstruções de intesti no médio e distal, e pode ser con-siderada um desconforto abdominal pelos pacientes com obstrução alta. O predomínio de distensão ou de vômitos dependerá da altura da obstrução. Quanto mais baixa a obstrução, mais evidente a distensão e menor a frequência dos vômitos. Os vômitos são, nas obstruções altas, alimen-tares e biliosos. Podem tornar-se fecaloides na obstrução baixa, mas mantêm relação com a gravidade do quadro nos pacientes com obstrução alta.

Ao exame fí sico, a distensão pode ser facilmente perce-bida à inspeção estáti ca. Em pacientes magros, é possível visualizar os movimentos peristálti cos (peristalti smo visí-vel de Kussmaul). Os ruídos hidroaéreos de ti mbre metá-lico indicam obstáculo mecânico ao trânsito intesti nal, mas podem se tornar, progressivamente, menos intensos ou abolidos nas fases tardias da obstrução. Nas obstruções de intesti no delgado, normalmente o paciente elimina os con-teúdos retal e colônico, apresentando toque retal normal.

Os sinais de choque hipovolêmico ou sépti co são encon-trados nas fases tardias e, na ausência de distensão abdo-minal, indicam o aparecimento de uma complicação secun-dária a obstruções do intesti no proximal. Sinais clínicos de peritonite como dor contí nua, febre e taquicardia podem sugerir sofrimento de alça.

Os exames laboratoriais são inespecífi cos e permitem uma avaliação global do paciente. Pode haver leucocitose, e a dosagem bioquímica e de eletrólitos, evidenciar distúr-bios do equilíbrio ácido-básico. As radiografi as simples de abdome e tórax podem trazer informações úteis quanto ao ti po, grau de evolução, presença de complicações e até eti o-logia da obstrução intesti nal. A presença de gás no intesti no delgado com níveis hidroaéreos e dilatação de alças sugere obstrução intesti nal. O sinal de “empilhamento de moedas” é característi co das obstruções do delgado. A avaliação de presença ou de gás no cólon e reto está relacionada às obs-truções parciais ou totais de intesti no delgado (Figura 4).

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Figura 4 - Aspecto radiológico na obstrução intesti nal: (A) disten-são à custa de delgado com sinal de “empilhamento de moedas”; (B) níveis hidroaéreos e (C) distensão do cólon com ausência de ar em ampola retal

Pneumatose intesti nal (gás na parede do intesti no), pneumoperitônio e presença de gás nos ramos portais le-vam ao diagnósti co de complicações graves. A aerobilia com presença de imagem hipo trans parente no Quadrante Inferior Direito (QID) sugere íleo biliar. Nos casos de íleo pa-ralíti co, o gás se distribui uniformemente pelo estômago, intesti no delgado, cólon e reto.

Os estudos contrastados, como o enema opaco e o trân-sito intesti nal, podem ser úteis na identi fi cação do ponto de obstrução e na diferenciação dos casos de íleo paralíti co e obstrução mecânica. A uti lização de contraste baritado deve ser evitada quando há sangramento ou outra suspeita de perfuração intesti nal.

A USG de abdome não é um bom método devido à inter-posição gasosa. A TC fornece as informações da radiografi a simples, acrescidas de maior especifi cidade para o diagnós-ti co de tumores, compressões extrínsecas, fí stulas intesti -nais e doenças infl amatórias. A capacidade do paciente de ingerir contraste está diretamente relacionada à qualidade da informação obti da.

d) Tratamento

Os quadros de obstrução parcial devem ser tratados inicialmente de maneira conservadora, por meio de des-compressão nasogástrica e reposição hidroeletrolíti ca, com índices de até 90% de sucesso desde que haja passagem de gases e fezes e não sobrevenham sinais e sintomas de estrangulamento.

A indicação de cirurgia pode ser feita em caso de estag-nação do quadro após alguns dias. Alguns cirurgiões esti -pulam 48 horas como limite para a indicação cirúrgica, mas isso não é consensual. A indicação deve basear-se mais em critérios clínicos e na provável eti ologia do quadro obstru-ti vo do que em datas-limite específi cas. Com exceção dos casos de choque hiperdinâmico grave que não respondem ao tratamento clínico, a operação deve ser realizada após a reposição volêmica e eletrolíti ca, quando as funções vitais dos pacientes estão recuperadas.

Pacientes com obstrução parcial pós-operatória, por bri-das, enterite actí nica e carcinomatose intesti nal são aqueles para quem o tratamento cirúrgico trará menos benefí cios, o que adia a indicação de laparotomia o máximo possível. Já nos quadros de obstrução total, a operação deve ser re-tardada apenas o tempo necessário para o preparo clínico inicial, já que não há como excluir sofrimento de alça. To-dos os pacientes com sinais e sintomas de estrangulamento devem ser submeti dos a operações de emergência, pois a mortalidade é bastante elevada nesse subgrupo. O cirur-gião não deve esperar o desenvolvimento de sinais de piora com o tratamento clínico para indicar a laparotomia.

A anti bioti coterapia deve ser sempre associada ao tra-tamento clínico para tratar de forma preempti va à trans-locação bacteriana. É importante, independentemente da opção terapêuti ca, garanti r suplemento nutricional. Dessa maneira, pacientes candidatos a jejum prolongado devem iniciar dieta parenteral precocemente.

A chamada pseudo-obstrução intesti nal, ou síndrome de Ogilvie, pode ser tratada com uso de neosti gmina. A co-lonoscopia descompressiva também apresenta resultados sati sfatórios quando realizada por endoscopistas experien-tes. Entretanto, é importante a certeza diagnósti ca antes de submeter o paciente a quaisquer dessas medidas. A princi-pal complicação desse quadro é a distensão de ceco, que pode evoluir com rotura em distensões maiores de 10cm ao raio x.

O acesso cirúrgico preferencial é a laparotomia media-na, por meio da qual é possível o tratamento da maioria das afecções cirúrgicas abdominais responsáveis pelo qua-dro clínico. Alguns autores advogam a laparoscopia para o tratamento das aderências pós-operatórias, já que a me-nor agressão ao peritônio é benéfi ca nesses casos; porém, o procedimento só deve ser realizado por cirurgião bem treinado no método e que tenha plena consciência das di-fi culdades encontradas na realização do pneumoperitônio e exploração da cavidade tomada pelas alças distendidas. Nos casos de hérnias da região inguinal, exceto quando há estrangulamento níti do, pode-se realizar a inguinotomia com avaliação da viabilidade de alças e necessidade de la-parotomia mediana no intraoperatório.

e) Prognósti co

Quando não há estrangulamento de alças, a mortalida-de é baixa, geralmente se restringindo aos pacientes mais idosos, não ultrapassando 2% dos casos. Já nos casos de perfuração, peritonite e necrose de alça, os índices de mor-talidade são diretamente ligados ao tempo entre o início do quadro e a operação, chegando a 25% quando a evolução for superior a 36 horas. A eti ologia de pior prognósti co é a obstrução vascular, com mortalidade acima de 50%.

Casos raros de pseudo-obstrução intesti nal crônica pri-mária têm prognósti co muito pior que os quadros agudos, pois acontecem em pacientes severamente desnutridos, que demoram a ter o diagnósti co defi niti vo estabeleci-do e que, geralmente, passam por diversas laparotomias

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“brancas” antes do diagnósti co defi niti vo. Sabe-se que, para esses pacientes, a única terapêuti ca defi niti va é o transplante de intesti no que, por seus resultados pífi os, passou a ser multi visceral. Uti liza-se terapia nutricional parenteral, além de anti bioti coterapia para redução da superpopulação bacteriana e controle da translocação. Câmara hiperbárica parece ser úti l. Também é necessária biópsia de espessura total da parede intesti nal que deverá ser avaliada pela microscopia eletrônica de varredura para observação do plexo mioentérico, a fi m de fi nalizar o es-forço diagnósti co.

D - Abdome agudo hemorrágico

Apresenta quadro clínico de choque hemorrágico. Ta-quicardia é sinal precoce, seguida de queda da pressão ar-terial, palidez, sudorese fria e agitação. É possível quanti -fi car a perda volêmica através de sinais clínicos (Tabela 5).

Tabela 5 - Classifi cação do choque hemorrágico

Classe I Classe II Classe III Classe IV

Perda sanguí-nea (mL)

Até 750750 a 1.500

1.500 a 2.000

>2.000

Perda sanguí-nea (% volume sanguíneo)

Até 15% 15 a 30%30 a 40%

>40%

Frequência de pulso (bpm)

<100 >100 >120 >140

Pressão arterial Normal NormalDiminu-

ídaDiminuída

Pressão de pulso

Normal ou au-

mentadaDiminuída

Diminu-ída

Diminuída

Frequência respiratória (irpm)

14 a 20 20 a 30 30 a 40 >35

Diurese (mL/h) >30 20 a 30 5 a 15Desprezí-

vel

Estado mentalLevemen-te ansioso

Modera-damente ansioso

Ansioso e con-fuso

Confuso e letárgico

Reposição volêmica

Cristaloi-de

CristaloideCrista-loide e sangue

Cristaloide e sangue

As principais causas de abdome agudo hemorrágico são gravidez ectópica rota e rotura de aneurisma de aorta abdominal. Suspeita-se de gravidez ectópica nas mulheres em idade férti l com atraso menstrual e quadro clínico su-gesti vo. O tratamento é cirúrgico e pode variar desde ane-xectomia unilateral até histerectomia total, dependendo da origem do sangramento.

A suspeita de rotura de aneurisma de aorta abdominal deve acontecer em pacientes com massas pulsáteis abdo-minais ou que já saibam serem portadores de aneurismas. O tratamento pode ser por via endovascular, desde que es-

teja rapidamente disponível. Entre as opções cirúrgicas, é possível a colocação de próteses ou derivações vasculares, dependendo da altura do aneurisma.

E - Abdome agudo vascular

O abdome agudo vascular representa uma das formas mais graves entre as urgências abdominais não traumáti cas. A insufi ciência vascular intesti nal pode ser dividida em agu-da (infarto intesti nal) ou crônica (angina abdominal).

O quadro clínico é variável e depende do grau de oclusão. Na fase inicial, os sintomas são inespecífi cos, com predomí-nio de dor abdominal ti po cólica. Antecedentes como arrit-mia cardíaca ou insufi ciência vascular periférica devem ser investi gados. A angina abdominal, comum nos quadros de isquemia crônica, consiste em episódios de dor abdominal, normalmente desencadeados no período pós-prandial que melhoram espontaneamente, mas, progressivamente, au-mentam de frequência e intensidade. Outro achado bastante sugesti vo de isquemia intesti nal é a presença de fezes mucos-sanguinolentas ao toque retal (“geleia de framboesa”).

Uma das característi cas dos quadros de abdome agudo vascular é a dissociação entre a queixa do doente e o exame fí sico. O paciente relata dor de forte intensidade, mas o exame fí sico não mostra sinais de peritonite. Isso acontece quando já existe necrose intesti nal instalada e denota prognósti co ruim.

Entre os exames complementares, a acidose metabólica persistente é um parâmetro importante no diagnósti co de in-farto intesti nal. Os exames de imagem são pouco elucidati vos, e a laparoscopia pode ser uma alternati va tanto para diagnós-ti co quanto para se evitar uma laparotomia desnecessária.

Caso a condição clínica do paciente permita, o estudo angiográfi co pode ser indicado para descartar uma embolia de Artéria Mesentérica Superior (AMS). A arteriografi a sele-ti va permite diferenciar a isquemia oclusiva da não oclusiva, identi fi cando o local e a natureza da obstrução.

São 4 as causas mais frequentes de abdome agudo vascular (Tabela 6), sendo a embolia de AMS a principal causa.

Tabela 6 - Principais causas de abdome agudo vascular

Origem Característi ca Tratamento

Embolia de AMS

Principal causa, normalmente com isquemia de delgado.

Embolecto-mia

Trombose arterial mesen-térica

Diretamente relacionado à aterosclerose aórti ca.

Revasculari-zação

Trombose venosa mesen-térica

Investi gar a presença de ele-mentos da tríade de Virchow.

Anti coagu-lação com heparina

Isquemia me-sentérica não oclusiva

Normalmente associado a quadros de hipofl uxo (hipovo-lemia, sepse etc.).

Papaverina intra-arterial

A fase inicial do tratamento consiste na compensação clínica do paciente. Não é infrequente o cirurgião indicar a

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cirurgia e, durante a laparotomia exploradora, deparar com necrose extensa sem nenhuma possibilidade terapêuti ca.

Diversas formas são propostas para avaliação da viabi-lidade intesti nal como Doppler, termometria e fl uorescei-noscopia, entretanto a avaliação da coloração da alça e da presença ou não de peristalse podem ser sufi cientes na maioria das situações.

O tratamento deve ser orientado de acordo com a eti o-logia, o que nem sempre é possível. Além disso, mesmo a embolectomia ou as revascularizações não apresentam re-sultados sati sfatórios. Em se optando pela ressecção intesti -nal, deve-se avaliar o intesti no remanescente. Pacientes que conseguem se recuperar da cirurgia, mas que acabam de-senvolvendo a síndrome do intesti no curto são candidatos à nutrição parenteral defi niti va, além de sofrerem quadros de diarreia e disabsorção. Logo, observa-se que o resultado fi nal é diretamente proporcional à precocidade do diagnósti co e ao início de medidas gerais e específi cas de suporte.

4. Resumo Quadro-resumo

- A anamnese e o exame fí sico podem orientar quanto à eti ologia do abdome agudo;

- O abdome agudo perfurati vo é sempre cirúrgico;

- No abdome agudo infl amatório, diversos dados clínicos podem sugerir o diagnósti co. A pancreati te aguda e a diverti culite aguda são de tratamento inicialmente clínico;

- O abdome agudo obstruti vo pode ocorrer em todas as faixas etárias e as hérnias são eti ologias comuns a todas elas. O tratamento inicial é clínico. A cirurgia deve ser indicada aos casos que não respondem às medidas clínicas e nas obstruções mecânicas;

- O abdome agudo hemorrágico comporta-se clinicamente como choque hipovolêmico;

- Os resultados no abdome agudo vascular dependem de um diagnósti co precoce.

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Hemorragia digesti va alta

José Américo Bacchi Hora / Marcelo Simas de Lima / Eduardo Bertolli

Pontos essenciais -Defi nições; -Quadro clínico; -Condutas gerais na hemorragia digesti va; -Hemorragia digesti va alta varicosa e não varicosa.

1. Defi niçãoDefi ne-se Hemorragia Digesti va Alta (HDA) como qual-

quer sangramento do trato gastrintesti nal que se origine até o ângulo de Treitz (transição duodenojejunal). A HDA é uma condição clínica que inspira cuidados médicos in-tensivos, com uma taxa de mortalidade de 10%. Cerca de metade dos pacientes tem mais de 60 anos, e a mortali-dade está relacionada com a presença de comorbidades prévias.

A HDA é 3 vezes mais frequente que a baixa, com preva-lência esti mada de 170 casos para 100.000 habitantes/ano nos Estados Unidos. Do ponto de vista eti ológico, é possível dividir em eti ologia varicosa (pela presença de varizes de esôfago e fundo gástrico) e não varicosa.

2. Quadro clínicoA suspeita médica de sangramento digesti vo está corre-

ta apenas em 40% dos casos. É fundamental pesquisar si-nais de doença hepáti ca crônica (ascite, icterícia, telangiec-tasias, eritema palmar, ginecomasti a, desnutrição, circula-ção colateral na parede abdominal e edema) que sugiram hemorragia varicosa complicando quadro de hipertensão portal.

Inquirir sobre história de dispepsia ou uso de Anti -In-fl amatórios Não Esteroides (AINEs) — sugesti va de úlcera

pépti ca ati va — ajuda na investi gação eti ológica. Deve-se lembrar que hemorragia por úlcera medicamentosa aguda, em geral, não é antecedida por dor. Interrogar por trans-fusões prévias, reações transfusionais anteriores e uso de anti coagulantes/anti agregantes plaquetários ajudará na condução do quadro agudo.

A apresentação clínica mais comum é a hematêmese (vômito com sangue vermelho vivo ou “em borra de café”) e/ou melena (fezes enegrecidas, de odor forte e caracterís-ti co). O toque retal deve ser empregado, e a ausência de melena ou enterorragia não exclui a hipótese de sangra-mento digesti vo. A melena pode manifestar-se com perda sanguínea de 50 a 100mL, enquanto a enterorragia normal-mente signifi ca um sangramento digesti vo alto maior que 1.000mL de sangue, o que acontece em até 10% dos casos. Após um episódio de HDA, a melena pode persisti r por até 5 dias, sem que isso signifi que novo sangramento; trata-se somente da eliminação do sangue residual ao longo do tra-to digestório.

As HDAs podem ser classifi cadas em agudas e crônicas. As apresentações agudas têm sintomas e sinais de início recente, o que leva a uma procura médica precoce. As he-morragias classifi cadas como crônicas são, em sua maioria, assintomáti cas, e a perda crônica de sangue oculto se ma-nifesta com anemia persistente, geralmente hipocrômica e microcíti ca com níveis de ferro sérico abaixo do normal. As causas de hemorragia crônica são variadas.

Em casos de sangramento em grande quanti dade, o pa-ciente apresentará sinais de instabilidade hemodinâmica como taquicardia, hipotensão e palidez. Medidas terapêu-ti cas urgentes devem ser aplicadas visando interromper o sangramento e manter, ou recuperar, a estabilidade hemo-dinâmica do paciente.

CAPÍTULO

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3. Conduta

A - Estabilização inicial

A conduta inicial independe da causa do sangramento e visa a monitorização e estabilização respiratória e hemodi-nâmica, correção das coagulopati as e retorno ao equilíbrio homeostáti co. Todos os pacientes devem ter acesso venoso para reposição volêmica, idealmente 2 acessos periféricos, de grosso calibre, e coleta de exames de sangue no momento da punção (Hb/Ht, TP, TTPA, plaquetas e ti pagem sanguínea).

Os exames de sangue não se alteram no mesmo ritmo do sangramento nos casos de hemorragia aguda. O nível do hematócrito não é um bom indicador da severidade do san-gramento, pois leva de 24 a 72 horas para ocorrer o equi-líbrio com o fl uido extravascular. Tipagem sanguínea para reserva e preparo de concentrados de hemácias e plasma deve ser realizada em todos os casos. O coagulograma e a contagem de plaquetas devem ser feitos roti neiramente, pois alterações da coagulação podem agravar os casos. O tempo de sangramento, que avalia a função plaquetária de-terminando a capacidade de formação do coágulo primário, também é importante.

A passagem de sonda nasogástrica (SNG) não pode ser considerada método diagnósti co, pois pode não haver re-fl uxo de resíduos hemáti cos em até 18% dos pacientes com sangramento ati vo. A saída de sangue vivo pela sonda naso-gástrica está associada a sangramento em grande quanti da-de. A lavagem gástrica com solução fria é controversa: me-lhora as condições de trabalho do endoscopista, mas pode aumentar o risco de aspiração pulmonar e não serve para interromper o sangramento. Ao mesmo tempo em que so-fre com o desconforto da passagem da sonda, o paciente se benefi cia com a interrupção dos vômitos. A aspiração peri-ódica da sonda nasogástrica, manti da sempre aberta, ajuda na pesquisa de possíveis ressangramentos.

B - Reposição sanguínea

A defi nição da quanti dade de fl uidos e hemoderivados a serem repostos é determinada após a avaliação dos sinais vitais e dos testes laboratoriais. Deve-se manter o hemató-crito entre 25 e 30%. Na ausência de sangramento ati vo, o hematócrito aumenta em 3%, e a hemoglobina, 1g/dL para cada unidade de concentrado de hemácias transfundido. Crianças com menos de 15kg devem receber 10mL/kg de peso de concentrado de hemácias.

Nos sangramentos ati vos, a transfusão de plaquetas deve ser empregada se os valores são menores que 50.000/mL ou quando é considerada a suspeita de disfunção pla-quetária pelo uso de aspirina (apesar dos valores normais na contagem das plaquetas), uti lizando-se uma unidade para cada 10kg de peso ou uma aférese de plaquetas (7 unidades). A transfusão de plasma fresco congelado para pacientes com coagulopati as é capaz de trazer os valores de RNI para, aproximadamente, 1,5, portanto níveis menores

que esse não se benefi ciam do plasma; quando necessário, uti lizam-se 10 a 20mL/kg de peso. Nas hemorragias maci-ças, deve-se administrar uma bolsa de plasma fresco para cada 5 unidades de concentrados de hemácias transfundi-das. A reposição de cálcio é feita seguindo os resultados dos exames.

C - Terapia medicamentosa

Deve incluir sempre inibidores da secreção cloridropép-ti ca, evitando-se administrar anti ácidos ou sucralfato, que geralmente aderem à parede gástrica e impedem a visua-lização e a conduta endoscópica. O ideal é administração de inibidores de bomba protônica ou, na indisponibilidade destes, inibidores dos receptores H2.

A infusão de drogas vasoati vas (somatostati na, octreo-ti de ou terlipressina) deve ser iniciada de imediato quando há suspeita de eti ologia varicosa. Elas têm ação vasocons-tritora na circulação esplâncnica, inibem a secreção ácida e são capazes de aumentar o sucesso da hemostasia endos-cópica inicial e de reduzir os índices de ressangramento, mas ainda não foram capazes de reduzir a mortalidade dos cirróti cos.

A terlipressina, atualmente, é a preferida, pois pode ser administrada em bolus, sem a necessidade de bomba de in-fusão contí nua, o que facilita muito o manejo clínico, além de causar menor número de reações adversas, como isque-mia miocárdica. A dose é de 2mg IV, de 4/4h, nas primeiras 24h, seguida de 1mg IV, de 4/4h na sequência. O octreo-ti de é um análogo sintéti co da somatostati na, ministrado também por via intravenosa, na dose de 100mcg em bolus, seguida de infusão contí nua de 50mcg por hora. A dose da somatostati na é de 250mcg em bolus, seguida de infusão contí nua de 250 a 500mcg por hora. O tempo de manuten-ção dessas drogas varia de 2 a 5 dias.

Alguns autores defendem a uti lização dessas drogas na admissão de pacientes com hemorragia digesti va, indepen-dente da eti ologia, pois existem trabalhos que relatam im-pacto de seu uso também na hemorragia não varicosa. Po-rém, não existem, até o momento, evidências de literatura sufi cientemente fortes para estabelecer essa conduta como roti na, e a maioria dos serviços no Brasil só administra a droga vasoati va quando há suspeita de hemorragia varico-sa, até mesmo por questões de custo. A tendência parece ser a escolha dessa opção para casos selecionados, como pacientes com sangramento incontrolável aguardando a endoscopia, pacientes com sangramento incontrolável, apesar da endoscopia, e que aguardam cirurgia, ou, ainda, pacientes sem condições de serem submeti dos à cirurgia.

D - Endoscopia digesti va alta

Todos os pacientes com sangramento digesti vo devem ser submeti dos à Endoscopia Digesti va Alta (EDA), após es-tabilização hemodinâmica, preferencialmente dentro de 12 horas da admissão. Em casos em que não se consegue a estabilização e se suspeita de hemorragia persistente, são

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necessárias ati tudes urgentes, com antecipação da endos-copia ainda nas primeiras 6 horas.

A EDA tem as funções de identi fi car a causa do sangra-mento e o risco de ressangramento e realizar ação terapêu-ti ca hemostáti ca. Depois da EDA e da terapia inicial padrão, é possível adotar uma conduta específi ca para cada ti po de HDA.

4. Hemorragia varicosaA hemorragia varicosa responde por 20 a 30% dos casos

de HDA e é consequência da hipertensão portal. Quando o gradiente de pressão entre a veia porta e as veias supra-he-páti cas é maior que 6mmHg, o sangue portal fl ui através de circulação colateral, e existe o risco de hemorragia. Cerca de 60% dos pacientes com hepatopati a crônica desenvol-vem varizes de esôfago (Figura 1).

Cerca de 35% dos pacientes com hipertensão portal e varizes sangrarão, e a maioria se dá pela ruptura de varizes esofágicas. O sangramento das varizes gástricas e duode-nais é um evento menos frequente. Em torno de 40% dos sangramentos por varizes cessam espontaneamente, mas a mortalidade chega a 50% entre esses pacientes. A fun-ção hepatocelular, medida pela classifi cação de Child-Pugh, o calibre das varizes e a presença de marcas vermelhas, os chamados red spots descritos pela endoscopia, são os maiores determinantes do risco de sangramento.

Figura 1 - Aspecto endoscópico de varizes do esôfago: (A) fi no cali-bre, (B) médio calibre e (C) grosso calibre e tortuosas

Deve-se suspeitar de hemorragia varicosa em pacientes sabidamente hepatopatas ou com esti gmas de doença he-páti ca crônica identi fi cados ao exame fí sico de admissão. Nos demais, o diagnósti co de hipertensão portal só é feito

durante o exame endoscópico. Neste grupo de pacientes, além das complicações da volumosa hemorragia, também é importante preocupar-se com a descompensação da hepa-topati a, com piora aguda da função hepáti ca e suas conse-quências, como a encefalopati a hepáti ca, a peritonite bac-teriana espontânea e a síndrome hepatorrenal.

Os cirróti cos têm uma alteração da circulação esplânc-nica, sendo necessário maior volume de cristaloides para a estabilização hemodinâmica. Além disso, pode ocorrer au-mento do fl uxo e da pressão portal pela reposição volêmica, que leva a agravamento da hemorragia e formação de asci-te, em vez de estabilizar a pressão arterial. Por esse moti vo, uti lizam-se drogas vasoati vas que tendem a reverter essas alterações hemodinâmicas. Uti lizam-se também, propor-cionalmente, mais derivados do sangue, sempre visando a pressão arterial média de 70mmHg e evitando pressões sistólicas superiores a 100mmHg. Também já está demons-trado que a manutenção ideal do hematócrito está entre 25 e 30%, e que hemotransfusões para valores maiores que esses ocasionam maior taxa de ressangramento. Pacientes ictéricos devem receber também reposição de vitamina K, de preferência, 10mg de vitamina K3, que pode ser admi-nistrada por via intravenosa, durante 3 dias consecuti vos.

As complicações da hepatopati a decorrentes da hemor-ragia varicosa devem ser prevenidas. A lavagem intesti nal está indicada a pacientes com rebaixamento do nível de consciência ou antecedente de encefalopati a hepáti ca. A lactulose, que tem efeito catárti co e acidifi ca o cólon redu-zindo a absorção de compostos nitrogenados, está sempre indicada e deve ser ministrada por via oral ou sonda, em doses variáveis que permitam 2 a 3 evacuações. A neomici-na, administrada na dose de 1g, VO, de 6/6h, diminui a fl ora bacteriana intesti nal, reduzindo a produção de substâncias nitrogenadas. Restrições proteicas só estão indicadas para pacientes com encefalopati a hepáti ca instalada, e o aporte diário não pode ser inferior a 40g/dia, através de aminoáci-dos de cadeia ramifi cada.

As infecções bacterianas são documentadas em 35 a 66% dos pacientes com HDA varicosa, e a sua ocorrência é um importante fator prognósti co. Além da peritonite bac-teriana espontânea, as infecções de vias urinárias e vias aé-reas também são prevalentes. Assim, a anti bioti coterapia é recomendável para todos os pacientes hospitalizados por HDA varicosa. As quinolonas são os mais uti lizados, com ci-profl oxacino intravenoso ou norfl oxacino oral.

Pacientes com sangramento persistente mesmo duran-te as medidas iniciais são candidatos à passagem do Balão de Sengstaken-Blakemore (BSB – Figura 2), o qual deve ser colocado em doentes com via aérea protegida. Inicialmen-te, o balão gástrico é preenchido com 200 a 300mL de água desti lada ou solução fi siológica e então é tracionado para se posicionar no fundo gástrico. Em seguida, o balão esofágico é insufl ado até ati ngir a pressão de 30mmHg. Pelo alto risco de complicações, como necrose e perfuração esofagianas e broncoaspiração, deverá ser manti do somente até a es-

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tabilização da pressão arterial e a reposição dos fatores de coagulação. O ideal é manter o balão locado por 24 horas e reti rá-lo sob visão endoscópica.

Figura 2 - Balão de Sengstaken-Blakemore

Uma vez estabilizada a parte respiratória e hemodinâ-mica, está indicada a EDA para a confi rmação diagnósti ca e a tomada de conduta. É importante ressaltar que mes-mo em doentes sabidamente hepatopatas pode ocorrer HDA de origem não varicosa em até 30% dos casos. Ape-sar dos múlti plos métodos endoscópicos disponíveis para tratamento, não há preferência específi ca por um deles. A ligadura elásti ca, a escleroterapia e a obliteração com cia-noacrilato têm bons resultados nos hepatopatas (Figura 3). Nas varizes de fundo gástrico e nos pacientes Child-Pugh C, prefere-se a obliteração com cianoacrilato.

Até 10% dos pacientes não terão sucesso no controle do sangramento ou poderão apresentar ressangramento nas pri-meiras 24 horas depois da 1ª endoscopia. Nesses casos, uma 2ª tentati va de hemostasia endoscópica deverá ser feita, obri-gatoriamente com método de hemostasia diferente do 1º. Persisti ndo o sangramento, está indicada a colocação do BSB.

Há relatos de índices de ressangramento das varizes de

até 40% nas 6 semanas após o 1º evento, sendo a maioria ainda na 1ª semana. Por isso, após o 1º sangramento, está indicada a profi laxia secundária com beta-bloqueador e por meio de endoscopias seriadas. Realiza-se a erradicação das varizes, geralmente iniciando pela ligadura elásti ca e fi nali-zando com sessões de escleroterapia que induzirão a fi brose na submucosa, junto à transição esofagogástrica, retardando o aparecimento de recanalização ou neovascularização local. Para a escleroterapia, podem-se uti lizar diferentes substân-cias: oleato de monoetanolamina, glicose a 50%, polidocanol e álcool a 70%, em diferentes associações e dosagens.

Figura 3 - Tratamento endoscópico das varizes de esôfago: (A) e (B) escleroterapia; (C) e (D) ligadura elásti ca

Nos casos de insucesso da terapia endoscópica ou de pa-cientes com transfusão maciça, deve-se cogitar a cirurgia de urgência. As derivações seleti vas (porto-cava, mesentérico--cava e esplenorrenal distal) ou a desconexão ázigo-portal com esplenectomia são cirurgias de grande porte e estão as-sociadas a prognósti cos ruins. Procedimentos de menor por-te como a ligadura transgástrica das varizes ou a transecção esofágica com grampeador circular também apresentam re-sultados controversos, principalmente às custas da gravidade desses pacientes quando necessitam de cirurgia.

Todo paciente com um quadro de HDA por varizes de esôfago passa a ter indicação de transplante hepáti co. Ob-viamente, devido à demora para realizar esse procedimento, algumas medidas devem ser adotadas para controlar as vari-zes e as outras situações consequentes à hipertensão portal. Uma delas é a realização de esclerose endoscópica periódica das varizes em ambulatório para evitar novos sangramentos.

Uma medida que pode ser uti lizada como ponte en-quanto o doente aguarda o transplante hepáti co é o TIPS (Transjugular Intra-hepati c Portal Shunt). Consiste na colo-cação, por radiologia intervencionista, de um shunt intra-

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-hepáti co entre o sistema porto-cava (Figura 4). Apesar de apresentar resultados superiores às cirurgias para tra-tamento da hipertensão portal, ainda não é disponível na maioria dos serviços.

Figura 4 - Esquema do TIPS

Situações de hipertensão portal não associada à hepato-pati a crônica, como acontece na forma hepatoesplênica da esquistossomose mansônica, estão associadas à menor mor-talidade e a menor incidência de complicações. Um episódio de sangramento nesses pacientes já indica procedimento cirúrgico, de preferência eleti vo e já com níveis de hemoglo-bina normalizados. Pacientes sem condições clínicas para a cirurgia são controlados com o manejo endoscópico.

Figura 5 - Gastropati a congesti va na hipertensão portal

Outra condição especial é o sangramento secundário à gastropati a hipertensiva portal, em que a mucosa fún-dica adquire aspecto “em mosaico”, ressaltando as áreas

gástricas, e ocorre ectasia dos vasos da submucosa sem infl amação da mucosa, o que explica o emprego do termo gastropati a em vez de gastrite (Figura 6). Pode ocorrer san-gramento, raramente agudo, que só será controlado com beta-bloqueadores ou derivações portossistêmicas, sendo inefi caz a medicação anti ssecretória. Essa situação é lem-brada aqui por haver associação a varizes, apesar de o foco da hemorragia ser outro.

Figura 6 - Algoritmo sugerido pela Federação Brasileira de Gastro-enterologia (Projeto Diretrizes, 2002) para a hemorragia digesti va varicosa

5. Hemorragia não varicosaA HDA não varicosa tem várias eti ologias possíveis; as

úlceras pépti cas gastroduodenais são as causas mais co-muns. Outros eventos que podem cursar com HDA são a síndrome de Mallory-Weiss, neoplasias gástricas, esofagi-tes, angiodisplasias, lesão de Dieulafoy, pólipos, hemobilia, hemosuccus pancreati cus e fí stula aortoduodenal.

A história natural mostra que 80% desses sangramentos cessam espontaneamente, 14% ressangram nas primeiras 24 a 72h após interrupção inicial e 6% sangram de forma contí nua. A magnitude do sangramento está mais relacio-nada à idade, às comorbidades e ao uso de anti coagulantes do que à eti ologia da hemorragia. Úlceras profundas, com mais de 2cm de diâmetro, podem ressangrar. A localização é outro fator importante, sendo as úlceras de parede poste-roinferior (artéria gastroduodenal) e de pequena curvatura (artéria gástrica esquerda) as com maior possibilidade de ressangramento. Isso explica, também, o baixo impacto do grande avanço dos métodos de diagnósti co e hemostasia sobre a mortalidade, que persiste em 6 a 8% dos casos.

A pontuação de Rockall (Tabelas 1 e 2) estrati fi ca o risco de ressangramento e mortalidade, a parti r de dados clíni-cos, atribuindo valores de 0 a 11 pontos. A estrati fi cação do

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risco do paciente determina as condutas, como tempo de monitorização em terapia intensiva, momento de realimen-tação e de alta hospitalar; por tudo isso, tem sido cada vez mais valorizada.

Tabela 1 - Escore de Rockall para hemorragia digesti va não varico-sa (modifi cado de Giordano & Nappi, 2007)

Variável Pontuação

Idade (anos)

<60 0

60 a 79 1

>80 2

Estado hemodi-nâmico

Sem choque (PAS >100mmHg; FC <100bpm)

0

Taquicardia (PAS >100mmHg; FC >100bpm)

1

Hipotensão (PAS <100mmHg) 2

Doenças associa-das

Sem doenças associadas 0

Cardiopati a, isquemia, ICC, DPOC, outras

2

IRC, CH, neoplasia 3

Diagnós-ti co

Mallory-Weiss. Sem lesões. Sem sinais de hemorragia

0

Todos os outros diagnósti cos 1

Neoplasia gastrintesti nal 2

Sinais de hemor-ragia recente

Sem esti gmas. Hemati na 0

Sangue no trato gastrintesti nal, san-gramento ati vo vasovisível, coágulo aderido

2

Tabela 2 - Estratificação do risco de ressangramento e morte segundo escore de Rockall (modificado de Giordano & Nappi, 2007)

Risco Pontuação Ressangramento Mortalidade

Risco baixo <2 pontos 4,3% 0,1%

Risco intermedi-ário

3 a 4 pontos 14% 4,6%

Risco alto 5 a 11 pontos 37% 22%

A doença ulcerosa pépti ca é responsável por mais da metade dos casos de HDA não varicosa, com uma taxa de mortalidade de 6 a 8%. A eti ologia mais comum nesses ca-sos é o uso de AINEs ou ácido aceti lsalicílico (AAS). A ulce-ração acaba ati ngindo a parede lateral de um vaso, o que impede a retração do coto e prolonga o sangramento.

Nesses doentes, a prioridade também é a estabilização respiratória e hemodinâmica. A endoscopia tem papel diag-nósti co e terapêuti co. É possível classifi car as úlceras pelo aspecto endoscópico segundo a classifi cação de Forrest, que tem importância por estar relacionada ao risco de res-sangramento (Tabela 3 e Figura 7).

Tabela 3 - Classifi cação de Forrest

Classifi cação Achado endoscópicoRisco de novo sangramento

IA Sangramento em jato >50%

IB Sangramento “em babação” 20 a 30%

IIA Coto vascular visível 30 a 50%

IIB Coágulo vermelho 5 a 10%

IIC Coágulo branco <5%

IIILesão cicatrizada, sem sinais de sangramento recente

<2%

Figura 7 - Aspecto endoscópico de úlceras pépti cas segundo a clas-sifi cação de Forrest

O tratamento endoscópico reduz o ressangramento, a necessidade de cirurgia e a mortalidade. A precocidade do exame está relacionada à diminuição dos custos como me-nor tempo de internação e menor uti lização de hemoderi-vados. Os métodos endoscópicos de hemostasia são:

- Injeção: adrenalina, álcool, etanolamina, polidocanol, trombina, cola de fi brina, cianoacrilato e glicose a 50%; -Térmico: eletrocoagulação monopolar, bipolar ou mul-ti polar (Bicap), heater probe, plasma de argônio e laser; -Mecânico: hemoclipe e ligadura elásti ca.

A aplicação de inibidores de bombas de prótons tem im-pacto sobre o ressangramento. Alguns autores defendem a infusão contí nua desse medicamento em pacientes subme-ti dos a procedimentos hemostáti cos. Não há indicação para repeti r a endoscopia de forma roti neira. Uma nova endos-copia deve ser feita quando se suspeita de ressangramen-to ou quando o 1º exame foi incompleto ou limitado pelas condições do momento, como nos casos em que uma gran-de quanti dade de sangue na cavidade impede a avaliação de todo o órgão. A pesquisa de H. pylori deve ser feita no mesmo momento da hemostasia, e a sua erradicação após a 1ª semana diminui o ressangramento tardio. Toda úlcera deve ser biopsiada, principalmente em pacientes idosos. Outras causas mais raras de HDA podem ser:

-Erosão de Mallory-Weiss: laceração da junção esôfago gástrica que ocorre depois de episódios de vômitos. Deve-se pesquisar a causa dos vômitos, pois muitas

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C IRURG IA GERAL

vezes se encontra outra doença de base, desde pan-creati te aguda até gravidez; -Anomalias vasculares: podem estar presentes em qualquer porção do trato digestório e determinam sangramentos agudos ou crônicos. São responsáveis por 7% dos casos de hemorragias do trato superior. As anomalias vasculares fazem parte das mais varia-das condições sistêmicas, mas também podem ser um achado isolado. A incidência de telangiectasias isola-das aumenta entre os portadores de insufi ciência re-nal crônica. As doenças sistêmicas que determinam a presença dessas anomalias são: a telangiectasia he-morrágica hereditária (síndrome de Rendu-Osler-We-ber), a síndrome de CREST (uma variante da esclerose sistêmica caracterizada por calcinose, fenômeno de Raynaud, distúrbios da moti lidade esofágica, esclero-dacti lia e telangiectasias), entre outras. O diagnósti co é difí cil porque a presença dessas lesões não exclui a existência de outras possíveis causas de sangramento digesti vo. Algumas vezes, são necessárias novas en-doscopias para detectar o síti o do sangramento; -Lesão de Dieulafoy: é uma causa pouco comum, po-rém grave, de hemorragia. Ocorre sangramento de uma artéria submucosa, anormalmente grande, loca-lizada na parte proximal do estômago. Também é uma anomalia vascular; -Neoplasia maligna gástrica: representa 1% das he-morragias digesti vas (Figura 8). Os ti pos ulcerados são os mais propensos ao sangramento. Na maior série na-cional sobre os sintomas das neoplasias gástricas pre-coces, a HDA foi a apresentação clínica mais comum;

Figura 8 - Aspecto endoscópico de diversos tumores gástricos: ob-servar, em (B) e (C), o aspecto ulcerado e com esti gmas de sangra-mento recente

-Gastrite erosiva: por ser uma lesão superfi cial da mu-cosa, é incomum sangramento digesti vo grave (me-nos de 5% dos casos); determina, mais comumente, perdas crônicas de sangue. As causas mais comuns são o uso de anti -infl amatórios não esteroides, álcool ou estresse severo secundário à cirurgia ou doença grave. Em caso de sangramento signifi cati vo, o me-lhor tratamento é realizado com a associação de IBP e arteriografi a, para injeção de vasopressina intra--arterial; -Esofagite erosiva: determinada por refl uxo gastro-esofágico crônico, raramente causa sangra mentos graves (Figura 9), predominando as perdas crônicas e lentas. Quadros agudos geralmente estão associados a hérnias paraesofágicas encarceradas, nas quais as úlceras surgem por isquemia do segmento herniado;

Figura 9 - Esofagite erosiva; observar em (B) os resíduos após he-matêmese

-Hemobilia: sangramento nas vias biliares, geralmente em consequência de traumati smo hepáti co, neoplasia maligna do fí gado, do pâncreas ou das vias biliares. Ma-nifesta-se por icterícia, hemorragia digesti va e dor biliar (tríade de Sandbloom) e pode decorrer da manipulação das referidas áreas por meios endoscópicos (biópsia; drenagem percutânea de bile, de cistos ou de abscessos pancreáti cos) ou cirúrgicos (colecistectomias ou ressec-ções hepáti cas). Se o sangramento, em vez de acontecer nas vias biliares, ocorrer nas vias pancreáti cas, dá-se o nome de hemosuccus pancreati cus, geralmente causa-do por pseudoaneurisma de artéria esplênica; -Outras causas: fí stula aortoentérica que complica 2% dos casos de enxerto da artéria aorta abdominal ou pode ser a manifestação inicial de um aneurisma não tratado. Geralmente, a lesão se localiza entre o enxerto ou o aneurisma e a 3ª porção do duodeno. Manifesta--se com melena e/ou hematêmese intensa ou perdas crônicas de sangue no trato digestório. O diagnósti co pode ser feito por endoscopia ou tomografi a computa-dorizada. A cirurgia é sempre indicada, devido ao risco de sangramento fatal.

Os pacientes referenciados para a cirurgia de urgência geralmente são os mais graves, que já passaram por todas as

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HEMORRAG IA D IGEST IVA ALTA

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outras etapas sem que se obti vesse o controle da hemorra-gia. As indicações mais comuns de cirurgia são falha na 2ª in-tervenção endoscópica, persistência da hemorragia com ins-tabilidade hemodinâmica, necessidade de hemotransfusão maior ou igual à volemia calculada para o paciente (dentro das 24h iniciais após a admissão), pacientes com mais de 60 anos portadores de comorbidades graves e que chegam com instabilidade hemodinâmica, úlceras de difí cil acesso com o endoscópio, úlceras com vaso calibroso, como as localizadas na parede posterior do duodeno ou na pequena curvatura do corpo proximal e úlceras profundas e calosas.

6. ResumoQuadro-resumo

- O objeti vo inicial do tratamento da HDA é a estabilização res-piratória e hemodinâmica do paciente, independentemente da eti ologia do sangramento;

- Não se deve realizar a endoscopia em pacientes instáveis;

- Na HDA varicosa, é necessário tratar as complicações da hepa-topati a como encefalopati a hepáti ca, coagulopati a e peritonite bacteriana espontânea;

- O balão de Sengstaken-Blakemore pode ser uti lizado em pa-cientes varicosos que persistem com sangramento;

- Todo paciente com HDA por varizes de esôfago tem indicação de transplante hepáti co;

- O TIPS pode ser uti lizado como medida provisória até a realiza-ção do transplante;

- A eti ologia mais comum de HDA não varicosa é a úlcera pépti ca pelo uso de AINEs;

- Todo paciente idoso com achado de úlcera à endoscopia tem indicação formal de biópsia pelo risco de neoplasia;

- A endoscopia serve como método diagnósti co e terapêuti co, no entanto casos com risco de ressangramento devem ter indica-ção precoce de cirurgia.

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Princípios de cirurgia oncológica

Eduardo Bertolli

A - Biópsia

A biópsia consiste na reti rada de tecido para diagnósti co anatomopatológico. Pode ser incisional, quando reti ra um fragmento da lesão, ou excisional, quando reti ra toda a le-são. A biópsia por punção com agulha grossa (ti po Tru-cut® ou core-biopsy, Figuras 1A, 1B e 1C) permite a avaliação histológica, enquanto a punção com agulha fi na permite a avaliação citológica e tem indicações precisas (exemplo: ti -reoide, linfonodos; Figura 1D).

Figura 1 - Esquemati zação da biópsia com agulha ti po Tru-cut® (esquerda) e esquemati zação da biópsia com agulha fi na (direita)

Deve-se planejar a biópsia de modo a não comprome-ter o tratamento defi niti vo. Assim, as biópsias de membros devem ser feitas sempre no senti do longitudinal, seguindo o maior eixo do membro. Já as biópsias em tronco e dorso devem acompanhar as linhas de força da pele. Biópsias mal planejadas podem comprometer o restante do tratamen-to e, em alguns tumores, são consideradas fatores de pior prognósti co.

Em alguns ti pos de tumores, é comum a biópsia de con-gelação. O material reti rado durante a cirurgia é imediata-mente avaliado pelo patologista que pode determinar com-prometi mento de margens, linfonodos etc.

B - Cirurgia A disseminação dos tumores pode ocorrer por conti gui-

dade, via linfáti ca e hematogênica. Esses mecanismos justi -fi cam a reti rada em bloco e a necessidade da linfadenecto-mia nas cirurgias com intuito curati vo.

A reti rada da área de drenagem linfáti ca faz parte da cirurgia de diversos ti pos de tumores. Em alguns casos, pode ser feita com intuito de amostragem (exemplo: linfa-denectomia ilíaco-obturatória na prostatectomia radical),

Pontos essenciais -Noções básicas de cirurgia oncológica; -Parti cularidades no manejo dos sarcomas de partes moles.

1. IntroduçãoCâncer signifi ca o crescimento anormal de células em

qualquer tecido corporal do hospedeiro. Essas células anor-mais se proliferam localmente, invadem e atravessam as barreiras ti ssulares normais, reproduzindo-se indefi nida-mente. As massas de células neoplásicas disseminam-se pelo organismo, levando à morte se não forem erradicadas.

Durante muito tempo, a cirurgia era considerada o úni-co método curati vo no tratamento do câncer. Atualmente, com os avanços da farmacologia e os estudos da biologia tumoral, foi possível compreender a evolução dos tumores e o uso terapêuti co de drogas anti neoplásicas. A radiação ionizante de alta energia também se mostrou úti l na terapia do câncer. Uti lizam-se ondas eletromagnéti cas de raio x e raios-gama ou partí culas subatômicas, como as partí culas betas, elétrons e nêutrons. Dessa maneira, cirurgia e radio-terapia consti tuem medidas de tratamento locorregional, enquanto a quimioterapia pode ser uti lizada em esquema de adjuvância ou neoadjuvância; ou ainda como tratamen-to sistêmico, nos casos em que há metástases.

Devido às parti cularidades oncológicas, serão aborda-dos neste capítulo os sarcomas de partes moles.

2. Tratamento do tumor primárioTabela 1 - Princípios propostos por Halsted

- Determinação do diagnósti co histopatológico por meio de bi-ópsias;

- Assepsia oncológica;

- Remoção em bloco do(s) órgão(s) acometi do(s) pela doença maligna com margens cirúrgicas livres, macro e microscópi-cas, associadas à reti rada da área de drenagem linfáti ca lo-corregional;

- Reparação, reconstrução e restauração das funções dos órgãos. Essa etapa depende da extensão da ressecção e do local anatô-mico, podendo ser uma simples sutura até as grandes recons-truções ósseas e de partes moles com retalhos pediculados, retalhos microcirúrgicos e próteses.

CAPÍTULO

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para completar estadiamento (exemplo: linfadenectomia regional no câncer colorretal) ou até com valor terapêuti co (exemplo: linfadenectomia em cadeia acometi da por mela-noma maligno ou câncer de mama).

A radioterapia e a cirurgia proporcionam melhor contro-le locorregional em alguns tumores e podem ser emprega-das antes e depois do procedimento. Atualmente, é pos-sível empregar a radioterapia intraoperatória, que consiste em aplicar, no próprio leito cirúrgico, a radiação ionizante, após a reti rada do tumor primário (Figura 2), como em al-guns casos de sarcomas ou em câncer de mama. A radiação local proporciona um campo local ideal com menor dose ionizante. Poucos centros médicos no Brasil dispõem desse recurso nos dias de hoje.

Figura 2 - Radioterapia intraoperatória após amputação abdomi-noperineal de reto por neoplasia avançada de canal anal, realiza-da no Hospital A. C. Camargo, São Paulo/SP – Brasil

O uso de quimioterapia intraperitoneal hipertérmica é indicado em alguns casos específi cos, como pseudomixoma peritoneal, câncer gástrico localmente avançado e dissemi-nação peritoneal de câncer colorretal e ovário. Também são poucos os centros médicos que realizam esse procedimen-to (Figura 3).

Figura 3 - Citorredução com quimioterapia intraperitoneal hiper-térmica, realizada no Hospital A. C. Camargo, São Paulo/SP – Bra-sil: (A) disseminação peritoneal; (B) tumor mucinoso de apêndice cecal; (C) cavidade abdominal com cânulas de perfusão e termô-metros e (D) sistema de perfusão intraperitoneal hipertérmico

A cirurgia pode ser empregada para tratamentos pa-liati vos, oferecendo maior qualidade de vida ao paciente com tumores avançados ou em casos de recorrência tu-moral, e para alívio de sintomas obstruti vos, controle de hemorragia e anemia, fi xação de fraturas patológicas, en-tre outros. Em algumas condições, a cirurgia mesmo palia-ti va pode trazer aumento da sobrevida (exemplo: câncer gástrico).

A radioterapia proporciona um controle local com taxas semelhantes às da cirurgia em alguns ti pos de tumores. Essa modalidade é uti lizada nos casos em que o risco de complicações cirúrgicas é grande (exemplo: câncer de prós-tata), nos locais onde se desejam manter as funções orgâni-

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cas preservadas (exemplo: câncer de laringe) ou em locais de difí cil reconstrução pós-operatória (exemplo: tumores de cabeça e pescoço). Nesses casos, os pacientes devem realizar seguimento rigoroso e, em caso de recorrência, a cirurgia de resgate pode ser empregada.

3. Sarcomas de partes moles

A - Defi nição

Os Sarcomas de Partes Moles (SPM) correspondem histogenicamente a neoplasias malignas com origem na

célula mesenquimal primiti va, que reproduzem os com-ponentes de partes moles, exceto os tumores ósseos e as neoplasias de origem hematolinfopoéti ca (Tabela 2). Incluem-se, nesse conceito, músculos, tendões, tecidos fi brosos, gordura, vasos sanguíneos, nervos e tecidos ao redor das arti culações (tecido sinovial). São mais comuns nas extremidades do corpo e em volta de órgãos. Qua-renta e três por cento ocorrem nas extremidades, 34% ao redor de órgãos (exemplo: retroperitônio), 10% no tron-co e 13% em outros locais. Podem ocorrer em adultos e crianças, com diferenças epidemiológicas e de abordagem (Tabelas 2 e 3).

Tabela 2 - Exemplos de sarcomas em adultos

Tecido de origem Tipo de câncer Localização habitual no corpo

Tecido fi broso

- Fibrossarcoma; - Braços, pernas e tronco;

- Histi ocitoma maligno; - Pernas;

- Dermatofi brossarcoma. - Tronco.

Gordura - Lipossarcoma. - Braços, pernas e tronco.

MúsculosEstriado - Rabdomiossarcoma; - Braços e pernas;

Liso - Leiomiossarcomas. - Útero e trato digesti vo.

Vasos sanguíneos- Hemangiossarcoma; - Braços, pernas e tronco;

- Sarcoma de Kaposi. - Pernas, tronco.

Vasos linfáti cos - Linfangiossarcoma. - Braços.

Tecidos sinoviais (envolvendo as cavidades arti culares, bainhas dos tendões) - Sarcoma sinovial. - Pernas.

Nervos periféricos - Neurofi brossarcoma. - Braços, pernas e tronco.

Carti lagem e tecidos ósseos- Condrossarcoma; - Pernas;

- Osteossarcoma. - Pernas e tronco.

Outros ti pos- Hemangiopericitoma;

- Miofibrossarcoma.

Tabela 3 - Exemplos de sarcomas na infância

Tecido de origem Tipo de câncer Localização habitual no corpo Idade

Músculos estriado/liso

- Rabdomiossarcoma embrionário; - Cabeça, pescoço e geniturinário; Lactente a 4 anos

- Alveolar; - Braços, pernas, cabeça e pescoço; Lactente a 19 anos

- Leiomiossarcoma. - Tronco. 15 a 19 anos

Tecido fi broso

- Fibrossarcoma; - Braços e pernas;

15 a 19 anos- Histi ocitoma fi broso maligno; - Pernas;

- Dermatofi brossarcoma. - Tronco.

Gordura - Lipossarcoma. - Braços e pernas. 15 a 19 anos

Vasos sanguíneos - Hemangiopericitoma infanti l. - Braços, pernas, tronco, cabeça e pescoço. Lactente a 4 anos

Tecido sinovial - Sarcoma sinovial. - Pernas, braços e tronco. 15 a 19 anos

Nervos periféricos

- Tumores da bainha nervosa periférica (também chamados de neurofi brossarcomas, schwannomas, sarcomas neurogênicos).

- Braços, pernas e tronco. 15 a 19 anos

Carti lagem e tecidos ósseos

- Condrossarcoma mixoide;- Osteossarcoma. - Pernas. 10 a 14 anos

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B - Fatores de risco

A origem de muitos SPMs não é conhecida. Entretanto, exposição à radiação ionizante e certos produtos químicos podem ser os fatores de risco mais conhecidos para a maio-ria dos tumores.

A radiação externa é o fator de risco mais bem estabele-cido para os SPMs. Pacientes que foram tratados com radio-terapia para cânceres de reti na, mama, cabeça e pescoço, testí culos ou sistema linfáti co têm maior probabilidade de desenvolverem o SPM. Outro fator de risco é a exposição a certos produtos químicos, incluindo substâncias como arsênico, herbicidas e conservantes de madeira à base de clorofenóis.

Outras doenças associadas podem aumentar o risco para SPM. Muitos estudos demonstraram que têm alto risco, para o desenvolvimento dos SPM, os portadores de síndrome de Li-Fraumeni (associada a alterações do gene supressor tumoral - p53); doença de von Recklinghausen, também chamada de neurofibromatose tipo 1 (associa-da a alterações no gene NF-1); leiomiomatose hereditá-ria; a síndrome do câncer de células renais (alterações

do gene FH) e retinoblastoma hereditário (alterações no gene RB1).

C - Quadro clínico

A apresentação clínica é, geralmente, o surgimento de um nódulo ou massa, mas raramente são dolorosos ou causado-res de outros sintomas. São dados que sugerem malignidade nos SPMs o tamanho maior que 5cm, o crescimento rápido e a consistência da lesão. A história de traumas prévios não tem nenhuma relação com o aparecimento da lesão.

A biópsia deve ser bem planejada, tomando-se todos os cuidados previamente citados. O procedimento deve ser realizado sem que haja a contaminação do trajeto e/ou da pele, pois isso difi cultaria o tratamento cirúrgico e a progra-mação de reconstrução (retalhos).

Para a investi gação e o estadiamento, uti lizam-se méto-dos de imagem como a Tomografi a Computadorizada (TC) e a ressonância magnéti ca, em especial a últi ma por ser bastante adequada à visualização de partes moles (Figura 4). Como o principal síti o de metástases dos sarcomas são os pulmões, é indispensável a TC de tórax no estadiamento dos pacientes.

Figura 4 - Imagens de RNM de sarcoma de membro inferior

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O sistema RNM é o mais comumente usado no estadia-mento dos SPMs e considera o tamanho do tumor, se su-perfi cial ou profundo, a situação dos linfonodos regionais e a presença ou ausência de metástases. O grau histológico de malignidade também pode ser classifi cado como: G1 – bem diferenciado; G2 – moderadamente diferenciado; G3 – pouco diferenciado; G4 – indiferenciado.

D - Tratamento

O planejamento terapêuti co de pacientes com SPM deve ser multi disciplinar. O ideal, sempre que possível, é a ressecção com margens tridimensionais de pelo menos 2cm (Figura 5). Entretanto, em sarcomas retroperitone-ais, esse ti po de ressecção é inviável na maioria das vezes, sendo necessárias ressecções marginais. Para os pacientes cujos tumores não são passíveis de ressecção com margem adequada, o grau histológico é o fator determinante da con-duta a ser adotada. Alguns grandes tumores de baixo grau respondem razoavelmente bem à radioterapia e à quimio-terapia pré-operatórias, a ponto de permiti r cirurgia com preservação do membro.

Figura 5 - Lipossarcoma de baixo grau no braço esquerdo: (A) deli-mitação da área a ser ressecada; (B) status pós-ressecção; (C) peça ressecada e (D) reconstrução com retalho lateral do braço

4. Resumo Quadro-resumo

- O tratamento das neoplasias pode ser feito por meio de medi-das de controle locorregional (cirurgia e radioterapia) ou sistê-mico (quimioterapia);

- São princípios básicos de cirurgia oncológica a biópsia adequa-da, a remoção em bloco dos tecidos comprometi dos com a lin-fadenectomia regional e a reconstrução;

- É possível associar cirurgia com radioterapia intraoperatória ou quimioterapia intraoperatória, em casos especiais;

- O manejo dos sarcomas pode ser complexo e exige equipe mul-ti disciplinar;

- A biópsia deve ser cuidadosamente planejada para não com-prometer o resultado fi nal.

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-Crianças pequenas; -Mulheres grávidas; - Idosos; -Pacientes com lesões medulares; -Usuários de sondas vesicais; -Diabéti cos; - Imunossuprimidos.

2. ConceitosDiversos termos relacionados às ITUs, usados de forma

muitas vezes indevida, devem ser conhecidos para melhor caracterização das infecções.

A - Bacteriúria

É anormal a presença de bactéria na urina em qualquer quanti dade. Muitas vezes, é difí cil diferenciar bacteriúria decorrente de infecção ou de contaminação. Assim, em 1956, foi introduzido, por Kass et al., o termo de bacteriúria signifi cati va, ou seja, mais de 100.000 colônias/mL. Estudos recentes consideram infecção em pacientes mulheres sinto-máti cas com contagem de 103 bactérias/mL, pacientes ho-mens com contagem de 104 bactérias/mL e pacientes com uso de cateteres urinários com contagem de 102 bactérias/mL. Aproximadamente, 5% dos adultos jovens terão bacte-riúria 1 vez, e a incidência aumenta com a idade na taxa de 1 a 2% por década. Desenvolve-se muito mais em mulheres com história de infecções urinárias frequentes, e, se não existe história de infecção sintomáti ca, há a tendência de, em poucos dias, desaparecer espontaneamente. Contudo, 52% das mulheres em que desaparece a bacteriúria sofre-rão recorrência da bacteriúria assintomáti ca, algumas vezes sintomáti ca, pelo menos 1 vez, nos próximos 2 anos.

1. Defi niçãoA Infecção do Trato Urinário (ITU) é defi nida como uma

resposta infl amatória dos tecidos de qualquer parte do trato urinário à invasão bacteriana ou, mais raramente, a outros agentes infecciosos, como fungos e vírus. A presença de patógenos na urina implica infecção, pois se espera que esta seja estéril.

Essas infecções podem ser sintomáti cas ou assintomáti -cas e, em alguns casos, evoluir com sepse e até morte, caso não sejam tratadas.

A bacteriúria assintomáti ca é um termo muito uti lizado e signifi ca isolamento de bactérias na urina, em contagens signifi cati vas, porém sem sintomas locais ou sistêmicos. Conforme o Guidelines 2011 da European Associati on of Urology (EAU), a bacteriúria assintomáti ca é defi nida por 2 uroculturas positi vas, colhidas com um intervalo superior a 24 horas e contendo 105 uropatógenos/mL da mesma cepa bacteriana (geralmente apenas a espécie pode ser detectada).

A ITU é considerada a infecção bacteriana mais comum, porém sua real incidência não é totalmente conhecida. Nos Estados Unidos, esti ma-se que, anualmente, cause cerca de 7.000.000 de consultas ambulatoriais, 1.000.000 de con-sultas de emergência e 100.000 hospitalizações, e que a sua incidência entre mulheres seja o dobro daquela entre homens. Dentre as infecções nosocomiais, a ITU é a 1ª em incidência, embora a mortalidade das pneumonias nosoco-miais seja maior. Entre os homens, as ITUs são incomuns até os 50 anos. Após essa idade, pode ocorrer hipertrofi a prostáti ca, causando obstrução ao fl uxo urinário, com au-mento da incidência de ITU.

Além disso, algumas populações são especialmente sus-cetí veis à ITU, incluindo:

CAPÍTULO

11Infecção do trato urinário

Roberto Gomes Junqueira

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UROLOG IA

Tabela 1 - Defi nição de ITU – contagem de colônia com piúria

Tipo de infecçãoDefi nição(cc*/mL) ≥

- Cisti te aguda não complicada em mulher: · Causada por GNB**;· Causada por Staphylococcus ou GNB + piúria.

103

102

- Pielonefrite aguda não complicada: · Causada por GNB**; · Causada por Staphylococcus.

104

103

- ITU complicada;- ITU em homens;

104

105

- Bacteriúria assintomáti ca – crescimento puro · + piúria; · + 2 espécimes + piúria.

104

105

* cc: contagem de colônias.** GNB: bactérias Gram negati vas.

B - Bacteriúria assintomáti ca

Como norma geral, segundo as diretrizes da Sociedade Brasileira de Urologia, pacientes idosos e com disfunções neurogênicas não devem ser tratados com anti bióti cos, pois existe o risco desnecessário de seleção de bactérias mais resistentes, da interação alérgica às drogas, além dos custos dos tratamentos. Essa regra não deve ser seguida em algumas situações, quando há sintomas, nos casos de obstrução do trato urinário quando há a necessidade de procedimentos invasivos, e em doenças com potencial de interferir na resposta orgânica, como no diabetes.

Tabela 2 - Bacteriúria signifi cati va em adultos

- ≥103 uropatógenos/mL no jato médio da urina em cisti te aguda não complicada em mulheres;

- ≥104 uropatógenos/mL no jato médio em pielonefrite aguda não complicada em mulheres;

- ≥105 uropatógenos/mL no jato médio da urina em mulheres, ou ≥104 uropatógenos/mL no jato médio da urina em homens (ou em urina colhida diretamente por cateterismo em mulheres) com ITU complicada;

- Na amostra colhida por punção suprapúbica, qualquer conta-gem de bactérias é relevante.

- Infecção urinária recorrente por reinfecção

Trata-se de infecção das vias urinárias causada por novos micro-organismos em intervalos variáveis após a erradicação de uma infecção prévia. É provável que 80% de todas as infecções recorrentes do trato urinário sejam reinfecções, cujas causas ainda não estão completamente esclarecidas. Porém, técnicas modernas de imagem têm demonstrado estruturas celulares bacterianas chamadas fí mbrias ou pilis, que são apêndices proteicos fi lamento-sos e longos, que se aderem às células uroteliais como causa de reinfecção.

C - Infecção urinária recorrente por recidiva

Trata-se de infecção das vias urinárias causada pelo mesmo micro-organismo durante ou após a conclusão do tratamento.

D - Piúria

A presença de leucócitos na urina, conhecida como piúria, não é uma indicação absoluta de infecção urinária inespecífi ca. É importante salientar que é muito comum a interpretação equivocada de piúria como infecção urinária inespecífi ca. Não se deve esquecer que a presença de bac-térias é importante para tal diagnósti co. Podem causar piú-ria tuberculose urinária, cálculos renais e uretrites.

E - Infecção urinária não complicada

Caracteriza-se por não apresentar alterações anatômi-cas ou doenças associadas, sistêmicas ou locais (diabetes, cálculos). As ITUs não complicadas apresentam-se como cisti te e pielonefrite e comumente deixam poucas sequelas.

Tabela 3 - Categorias de ITU

- ITU aguda (baixa) em mulheres não complicadas;

- Pielonefrite aguda não complicada;

- ITU complicada e ITU em homens;

- Bacteriúria assintomáti ca;

- ITU recorrente (profi laxia com anti bióti co).

F - Infecção urinária complicada

É uma infecção em um indivíduo com o trato genituriná-rio anormal, funcional ou de forma estrutural.

3. Eti ologia e fi siopatologiaAs ITUs desenvolvem-se mais frequentemente em mu-

lheres, quando uropatógenos da fl ora fecal colonizam o introito vaginal. Ao discuti r ITU, devem ser considerados fatores relacionados ao micro-organismo e a fatores do hospedeiro.

Entre os fatores do micro-organismo, estão a virulência e a resistência a anti microbianos. As infecções urinárias são causadas, principalmente, por germes Gram negati vos, sen-do cerca de 85% pela bactéria Escherichia coli, cujos fatores de virulência já foram amplamente estudados. Considera-se vir de fonte intesti nal, sendo o seu reservatório a co-lonização colônica. Infecções nosocomiais são causadas, principalmente, por Pseudo monas aeruginosa e Serrati a marcescens, que requerem tratamentos diferenciados. Cerca de 10% das infecções urinárias sintomáti cas do trato urinário inferior, em mulheres sexualmente ati vas, são cau-sadas pelo Staphylococcus saprophyti cus. Outros agentes importantes são Enterococcus spp. e outros bacilos Gram negati vos, como Klebsiella, Proteus e Enterobacter, que têm outros mecanismos de adesão epitelial. Os Proteus mira-

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bilis são importantes por produzirem uréase, uma enzima que decompõe a ureia, tornando a urina alcalina, o que fa-vorece a precipitação de fosfatos e a formação de cálculos de fosfato amoníaco-magnesiano (estruvita).

Alguns fatores são importantes para o aparecimento de ITU. Dentre os relacionados ao hospedeiro, estão idade, fa-tores comportamentais, Diabetes Mellitus (DM), lesão espi-nhal, cateterização vesical e gravidez.

A - Idade

Na população geriátrica, a apresentação clínica da ITU é frequentemente atí pica. Há uma alta prevalência de bac-teriúria assintomáti ca, por isso uma urocultura positi va não necessariamente requer tratamento. A maioria dos estudos envolveu pacientes idosos insti tucionalizados e pode não refl eti r o que ocorre com aqueles que vivem independen-temente na comunidade. O risco de ITU associa-se à difi -culdade de controle urinário (inconti nência em mulheres e prostati smo em homens). O uso de cateteres urinários e as alterações anatômicas ou funcionais do trato urinário tam-bém são fatores de risco. A ITU aumenta a prevalência de inconti nência urinária em mulheres mais idosas e aumenta signifi cati vamente o risco de morte. A bacteriúria assinto-máti ca é comum e geralmente benigna, afetando até 50% das mulheres e 30% dos homens em insti tuições, e a sua frequência aumenta com a idade e com comorbidades. Entre idosos, a E. coli representa menos de 50% dos agentes de ITU. Infecções polimicrobianas são frequentes.

B - Fatores comportamentais

Os fatores comportamentais associados à ITU são ati vi-dade sexual (mulheres mais sexualmente ati vas têm maior incidência de ITU) e uso de espermicidas (que aumenta a colonização por E. coli). Não há aumento de risco de ITU as-sociado aos hábitos de micção ou higiene ínti ma. Há, ainda, diferenças anatômicas que predispõem a ITU, como uma menor distância entre a uretra e o ânus.

C - Diabetes mellitus

Bacteriúria assintomáti ca e ITU sintomáti ca são mais fre-quentes em diabéti cos que em não diabéti cos. Bacteriúria assintomáti ca é um fator de risco para pielonefrite e subse-quente queda da função renal em mulheres com DM ti po 1. A presença de DM leva a um maior risco de complicações, incluindo apresentações raras de ITU, como cisti te e pielo-nefrite enfi sematosa, abscesso, necrose papilar e pielone-frite xantogranulomatosa.

Vários fatores em DM têm sido propostos como de risco: controle glicêmico ruim, duração da doença, microangio-pati a diabéti ca, disfunção leucocitária secundária à hiper-glicemia e vaginite de repeti ção. Além disso, parece haver uma maior prevalência de alterações anatômicas e funcio-nais do trato urinário entre pacientes com DM. Embora o agente eti ológico mais comum seja E. coli, Klebsiella spp.

e Acinetobacter spp., Streptococcus do grupo B e Candida spp. são causas de ITU em pacientes com DM.

D - Lesão espinhal ou cateterização vesical

Em pacientes com lesão espinhal ou em uso de catete-res, a ITU é muito frequente e está relacionada a mortali-dade e morbidade importantes. Fatores que aumentam a susceti bilidade são hiperdistensão da bexiga, difi culdade de micção e lití ase urinária.

E - Gravidez

Cerca de 4 a 10% das grávidas têm bacteriúria assinto-máti ca, e 1 a 4% desenvolvem cisti te aguda. A pielonefrite aguda afeta 1 a 2% das grávidas no fi nal do 2º e início do 3º trimestre. As implicações de ITU durante a gravidez são aumento do risco de pielonefrite, parto prematuro e morta-lidade fetal. Se não tratada, uma bacteriúria assintomáti ca pode evoluir para pielonefrite. É possível que, em grávidas, se manifeste apenas com sintomas de trato urinário baixo.

4. Classifi cação

Podem-se classifi car as ITUs, de acordo com sua locali-zação anatômica, em alta e baixa (Tabela 4), em sintomáti ca ou assintomáti ca, complicada ou não complicada, recorren-te ou esporádica. Essa classifi cação é importante tanto para a terapêuti ca a ser uti lizada quanto para o tempo de trata-mento, que pode variar.

Tabela 4 - Classifi cação da ITU de acordo com sua localização ana-tômica

ITU baixa ITU alta

Cisti te - Pielonefrite aguda.

Uretrite - Pielonefrite crônica.

Orquite - Pielonefrite xantogranulomatosa.

Epididimite - Pielonefrite enfi sematosa.

Prostati te- Abscesso perinefréti co e paranefréti co;

- Abscesso renal.

A ITU é não complicada quando envolve o trato urinário normal e complicada quando o trato apresenta alterações estruturais ou funcionais, incluindo instrumentação com cateter vesical.

5. Outros fatores envolvidos e vias de aquisição da infecção

A - Fatores envolvidos

Vários fatores estão envolvidos no desenvolvimento das infecções urinárias, como virulência da bactéria e mecanis-mos de defesa do hospedeiro. Um dos mais importantes mecanismos de defesa do hospedeiro é uma sequência de

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fatores hidrodinâmicos por meio de diluição, lavagem e eli-minação das bactérias, através da diurese e da adequada micção. Quanto à virulência bacteriana, as fí mbrias (ou pi-lis) parecem ser um dos fatores de maior importância nas infecções urinárias.

Tabela 5 - Fatores envolvidos no desenvolvimento das infecções urinárias

Mecanismos de defesa

- pH e osmolaridade;

- Diurese;

- Camada de mucopolissacarídeos;

- Junção ureterovesical;

- Defesa imunológica;

- Secreções prostáti cas.

Virulência bacteriana

- Cepas nefritogênicas;

- Elementos de aderência (fí mbrias ti pos 1 e P);

- Lipopolissacarídeos anti peristálti cos;

- Lipopolissacarídeos anti fagocitários;

- Produção de hemolisinas (maior citotoxicidade).

B - Vias de aquisição

Os mecanismos de entrada das bactérias no trato uri-nário não são sempre estabelecidos com certeza. Há 4 vias principais: ascendente, hematogênica, linfáti ca e extensão direta de outro órgão.

a) Via ascendente

A via ascendente é a mais frequente e mais importante de infecção do trato geniturinário a parti r da uretra. Vários mecanismos são necessários para haver a infecção vesical: colonização por bactérias da fl ora intesti nal devido a fatores mecânicos, defecação, higiene pessoal e sudorese. Como a uretra feminina é mais curta e há tendência de colonização do períneo e do vestí bulo vaginal por bactérias da fl ora in-testi nal, as meninas e as mulheres são mais suscetí veis a in-fecções por via ascendente. Essa colonização dependerá da competi ção com a fl ora local e do pH vaginal, que é muito infl uenciado pelo nível de estrogênio.

b) Via hematogênica

A disseminação hematogênica do trato geniturinário é rara e acontece em situações específi cas, como tuberculo-se, abscessos renais e perinefréti cos.

c) Via linfáti ca

A disseminação via linfáti ca do trato geniturinário é prová-vel, porém rara. Há especulação e poucas provas de que a con-taminação por bactérias da próstata e da bexiga via linfáti ca aconteça por meio dos capilares periureterais e periuterinos.

d) Extensão direta

Algumas doenças podem causar infecção urinária por extensão direta: abscessos intraperitoneais, causados por

doenças intesti nais infl amatórias (diverti culite), abscessos perivesicais e fí stulas do trato geniturinário.

6. Achados clínicosA urina normal é estéril. Assim, a presença de micro-or-

ganismos na urina é considerada uma ITU. As ITUs baseadas no síti o de infecção classifi cam-se em:

-Cisti te: envolvendo a bexiga; -Pielonefrite: quando envolvem o rim.

A - Bacteriúria assintomáti ca

Como já discuti do, trata-se de um diagnósti co microbio-lógico. Afeta cerca de 10% das grávidas e é mais comum entre pessoas com DM, idosos e mulheres. A ati vidade sexual infl uencia a sua presença. Também afeta, com alta frequência, idosos insti tucionalizados (até 55% das mulhe-res e 31% dos homens). Geralmente, não deve ser tratada, exceto em grupos específi cos (grávidas, diabéti cos e idosos e com disfunção neurogênica com sintomas ou que serão submeti dos a procedimentos invasivos).

B - Cisti te

É a forma mais comum de infecção urinária, mais fre-quente em mulheres sexualmente ati vas. Mais de 50% das mulheres terão ao menos 1 ITU durante a vida. Foi demons-trado que elas levam até 5 dias com sintomas como disúria e polaciúria para procurarem ajuda médica; quando esses sintomas se iniciam de 24 a 36 horas após a relação sexual, elas difi cilmente os correlacionam com o ato. Em idosas, sin-tomas são menos frequentes. Disúria (dor ou difi culdade à micção) é causada por cisti te, porém pode ser um sintoma de uretrite (causada por Chlamydia trachomati s, Neisseria go-norrhoeae ou vírus Herpes simplex) ou vaginite (por Candida spp. ou Trichomonas vaginalis). Normalmente, é associada a polaciúria, sensação de urgência urinária e dor suprapúbica.

Piúria acontece na cisti te e na uretrite, mas é rara na va-ginite. Hematúria ocorre em 25% dos pacientes com cisti te, mas é rara nas 2 outras afecções. Costuma ocorrer no fi nal do jato urinário e se resolve com o tratamento da infecção. Os sintomas da cisti te são geralmente agudos e múlti plos, e na uretrite são graduais e leves. Pacientes com corrimento vaginal têm maior chance de terem uretrite ou vaginite.

Alguns fatores que sugerem cisti te são história de cisti te prévia, ati vidade sexual recente e uso recente de espermi-cida, urgência miccional e polaciúria. A Tabela 6 descreve os principais fatores associados a essa infecção.

Tabela 6 - Principais fatores associados à ITU recorrente

Intercurso sexual versus frequência (>4/mês) e novo parceiro no últi mo ano

- Uso de diafragma e espermicida;

- 1ª ITU <15 anos;

- História de ITU recorrente;

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Intercurso sexual versus frequência (>4/mês) e novo parceiro no últi mo ano

- Tratamento com anti bióti co recente;

- Fatores anatômicos – pequena distância entre ânus e uretra;

- Grupo ABO não secretório (somente em pós-menopausa);

- Nível baixo de estrogênio;

- Inconti nência urinária;

- Cistocele;

- Resíduo pós-miccional;

- Função defeituosa do gene CXCRI.

Dispareunia (dor genital no ato sexual), corrimento va-ginal, odor alterado, disúria sem polaciúria e sem urgência urinária sugerem vaginite. O exame fí sico pouco revela na cisti te, mas é necessário um exame ginecológico para ava-liar pacientes com corrimento vaginal. O exame de urina (urina ti po 1 ou sedimento urinário) pode ser uti lizado para confi rmar piúria ou presença de bactérias.

A urocultura geralmente não é necessária nos casos de cisti te, mas deve ser realizada com anti biograma na suspei-ta de pielonefrite.

-Anatomia patológica: na cisti te, aparece uma resposta infl amatória do urotélio que se manifesta na fase ini-cial por hiperemia da mucosa vesical, edema e infi ltra-do infl amatório, principalmente por neutrófi los. Com a evolução, ocorre a substi tuição da mucosa por uma superfí cie glandular, hemor rágica, friável e ulcerada, em geral preservando-se a muscular.

C - Pielonefrite

Febre, em geral, acima de 38°C, taquicardia, sinal de Giordano, dor costovertebral, náuseas e vômitos são suges-ti vos de pielonefrite. A grande maioria dos pacientes apre-senta sintomas de ITU baixa, como disúria e polaciúria, mas esses achados podem ser negati vos.

A pielonefrite pode, ainda, ser pouco sintomáti ca, princi-palmente em certos grupos, como gestantes. Assim, conside-ra-se difí cil o diagnósti co clínico de pielonefrite. Na suspeita, devem ser realizados exame de urina (urina ti po 1 ou sedi-mento urinário) e urocultura com anti biograma.

Pacientes com sonda vesical podem apresentar coloni-zação e ITU; quando é usada sonda de demora, a incidên-cia de bacteriúria é de 5% ao dia. Deve-se preferir o uso de sonda de alívio intermitente, que se associa a risco menor de infecção. Os cateteres vesicais são um fator de risco im-portante para infecção nosocomial, principalmente em uni-dades de terapia intensiva. Nesses casos, deve-se lembrar que a microbiologia é diferente das infecções adquiridas na comunidade, ocorrendo com frequência infecções por Pseudomonas, Morganella morganii, entre outros agentes associados a infecções nosocomiais. Nesses pacientes, mui-tas vezes a única manifestação é de quadro febril sem mani-festações localizatórias.

As infecções por Candida também são associadas a cate-ter vesical. A reti rada do cateter resolve a infecção em 40% dos casos, embora a troca da sonda vesical apresente o mes-mo efeito em menos de 20% dos pacientes. Muitas vezes, é difí cil diferenciar quadros de infecções urinárias de coloniza-ção em pacientes em uso de cateter vesical, considerando que a piúria tem correlação bem menor com a presença de ITU nesses casos, em comparação com não sondados.

-Anatomia patológica: na pielonefrite, o rim aparece geralmente aumentado de volume devido ao edema na superfí cie capsular. Observam-se pequenos absces-sos amarelados, elevados, circundados por uma bor-da hemorrágica e que aparecem, principalmente, no córtex renal. A pelve renal apresenta-se com a mucosa congesti onada, espessada e recoberta com exsudato.

Devem ser comentados alguns ti pos específi cos de pie-lonefrite:

a) Pielonefrite xantogranulomatosa

A pielonefrite xantogranulomatosa representa uma for-ma rara e severa de infecção bacteriana renal crônica de patogenia não clara. Pode ser observada em qualquer ida-de, porém é mais frequente na 5ª e na 6ª décadas de vida. Mulheres são 3 vezes mais afetadas do que homens.

A patogenia não é clara. Infecção crônica, obstrução e doença calculosa estão associadas à pielonefrite xantogra-nulomatosa, mas não são encontradas em todos os casos. As bactérias mais comuns encontradas na cultura de urina são o Proteus mirabilis e a E. coli.

A maioria dos pacientes apresenta história de cálculos renais, nefropati a obstruti va, DM ou cirurgia urológica. Os sintomas incluem dor em fl anco, febre, anorexia, emagre-cimento, hematúria, mal-estar e sinais de irritação, como urgência, disúria e polaciúria. Ao exame fí sico, geralmente ocorrem dor à palpação em fl anco e até massa palpável.

A arteriografi a era comumente usada para o diagnósti -co, mostrando, em geral, massas relati vamente avasculares. A tomografi a é parti cularmente úti l no diagnósti co de pielo-nefrite xantogranulomatosa, demonstrando ausência ou di-minuição de excreção de contraste, calcifi cações, hidrone-frose, lesões em parênquima e aumento de volume renal.

-Anatomia patológica: rim geralmente aumentado de volume, com dilatação pielocalicial causada por cálculo e/ou pus. Nódulos amarelo-laranja, áreas de necrose tecidual e supuração. Microscopia com neu trófi los, lin-fócitos, plasmócitos e resíduos necróti cos. Os grandes macrófagos com citoplasma espumoso contendo gran-de material lipídico são as mais característi cas células gigantes encontradas à microscopia da pielo nefrite xantogranulomatosa. Muitas vezes, é difí cil diferenciar a pielonefrite xanto gra nulomatosa de outras causas de massas renais, principalmente carcinoma renal. O diagnósti co defi niti vo geralmente é feito pelo anato-mopatológico. Os pacientes frequentemente necessi-tam de nefrectomia, principalmente pela difi culdade de diferenciar do carcinoma renal no pré-operatório.

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b) Pielonefrite enfi sematosa

A pielonefrite enfi sematosa é uma complicação rara da pielonefrite aguda, principalmente em diabéti cos insulino--dependentes não controlados (90%), com presença de gás nos túbulos coletores. É mais frequente em mulheres. A obstrução do trato urinário está presente em 20 a 40% de todos os pacientes; quando ocorre em não diabéti cos, ge-ralmente há a obstrução do rim. Acredita-se que o gás pro-duzido no parênquima renal seja atribuído à fermentação da glicose pela bactéria. Em não diabéti cos, não são bem esclarecidas as causas da formação gasosa. O agente mais frequentemente causador é a Escherichia coli, responsável em cerca de 65 a 70%. Klebsiella, Aerobacter e Proteus são menos comuns.

Os pacientes apresentam quadro semelhante ao das pielonefrites habituais, com febre, dor lombar e sinais ir-ritati vos urinários baixos, porém não evoluindo bem com o início do tratamento habitual. O diagnósti co da pielonefrite enfi sematosa é feito por métodos de imagem que demons-tram gás tanto no parênquima renal quanto no retroperitô-nio. A tomografi a computadorizada é o melhor exame para identi fi car gás no rim e no espaço retroperitoneal. Esses pacientes apresentam mortalidade alta. O controle do dia-betes e da infecção deve ser iniciado de maneira imediata. Habitualmente, a nefrectomia é necessária, e, quando ela não é realizada, raros pacientes conservam a função renal do rim afetado.

7. Exames complementaresEm pacientes do sexo feminino com ITU não complicada,

defi nida pela presença de sintomas como polaciúria, disú-ria, dor suprapúbica e urgência urinária, sem alteração es-trutural de trato urinário, o diagnósti co se baseia na história clínica. Exames complementares não são indicados (urina ti po 1 e urocultura). Quanto a todos os outros pacientes, é necessária a confi rmação diagnósti ca, com exames labora-toriais. ITU em homens é considerada infecção complicada, pois frequentemente se associa a anormalidades estrutu-rais de trato urinário. Teste com fi tas reagentes quimica-mente impregnadas são de grande uti lidade, e o resultado positi vo geralmente é sufi ciente. Se um deles demonstra leucócitos e esterase ou nitrito (Gram negati vos), pode-se iniciar o tratamento, pois se trata de infecção urinária. Caso a esterase ou o nitrito sejam negati vos e haja leucocitúria, indica-se um exame do sedimento urinário com ou sem bacterioscopia (coloração de Gram), que poderá demons-trar presença de bactérias.

A presença de piúria é prati camente universal, seja em pacientes com ITU baixa, seja com pielonefrite, e a ausência dela sugere fortemente diagnósti co alternati vo não infec-cioso. O melhor método para determiná-la é a análise do jato médio da urina por hemocímetro com contagem maior que 10 leucócitos/mL. Pode, ainda, estar presente em cerca de 30 a 35% dos pacientes com bacteriúria assintomáti ca.

Independente desse achado, esses pacientes conti nuam sem indicação de tratamento, exceto em subgrupos espe-cífi cos. A detecção de nitritos na urina, procedimento diag-nósti co usado desde 1920, representa evidência de cresci-mento bacteriano, com boa sensibilidade e especifi cidade diagnósti ca para pacientes com grandes contagens de bac-térias em urocultura, mas com acurácia inadequada.

O exame defi niti vo para o diagnósti co de ITU é a urocul-tura, que deve ser colhida antes da introdução de anti bióti -cos. Considera-se que o melhor espécime para a urocultura seja a urina de jato médio após higiene ínti ma. Realiza-se cultura quanti tati va, e se considera positi va uma contagem ≥105 Unidades Formadoras de Colônias por mL (UFC/mL). Em mulheres com sintomas fortemente sugesti vos, podem--se considerar contagens menores, a parti r de 102UFC/mL.

Hemograma com leuco citose e desvio para a esquerda, com aumento da velocidade de hemossedimentação, pode ocorrer em pacientes com pielonefrite.

Deve-se suspeitar da presença de complicações como o abscesso perinefréti co em todos os pacientes em que a febre não ceda após 5 dias de anti bioti coterapia prolonga-da, e exames de imagem devem ser realizados nessa situa-ção. Os seguintes achados nesses exames são sugesti vos da complicação:

-Ultrassonografi a demonstrando cavidade espessada com parede cheia de fl uido; -Achados na tomografi a são dependentes da evolução. Em estágios iniciais, aparecem lesões ti po massa e hi-podensas, que evoluem com liquefação. Tipicamente, encontra-se rim hiperdenso, com contraste circundan-do uma cavidade de abscesso.

8. Diagnósti co diferencialO diagnósti co diferencial de ITU inclui as vaginites e as

uretrites, conforme já discuti do. A cisti te intersti cial é outro diagnósti co diferencial que deve ser lembrado, principal-mente em idosos.

A pielonefrite aguda, por sua vez, deve ser diferenciada da pielonefrite crônica, que é uma causa comum de doença tubulointersti cial por infecções recorrentes, como as que acontecem em pacientes com obstrução renal por cálculos ou refl uxo vesicoureteral.

9. Tratamento

A - Bacteriúria assintomáti ca

A bacteriúria assintomáti ca não deve ser tratada, exceto nas seguintes situações:

-Gravidez; -Pré-operatório de cirurgia urológica; -Pré-operatório de colocação de próteses; -Portadores de transplantes de órgãos sólidos; -Granulocitopenia.

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Há grande discussão na literatura sobre o tratamento dessas situações em diabéti cos, pois a presença de bac-teriúria assintomáti ca poderia ter evolução desfavorável e piorar o controle metabólico. Estudos nessa população não demonstraram benefí cio no tratamento.

B - Cisti te na mulher

A mulheres com sintomas sugesti vos não se indicam exames de urina ou de urocultura, desde que sejam excluí-das as seguintes condições:

-Febre; -Sintomas presentes por mais de 7 dias; -Sintomas sugesti vos de vaginite; -Dor abdominal, náuseas ou vômitos; -Hematúria franca em maiores de 50 anos; - Imunossupressão; -DM; -Gravidez; -Alterações urológicas ou doença renal crônica; -Cálculos renais recentes ou atuais; - Internação hospitalar nas últi mas 2 semanas; -Tratamento de ITU nas últi mas 2 semanas; - ITU sintomáti ca recorrente.

A terapia com dose única de anti bióti co foi analisada em diversos estudos e, em algumas meta-análises, sempre apresentou resultado inferior ao tratamento-padrão com 3 dias de anti bioti coterapia, com taxas inaceitáveis de recor-rência. Portanto, não pode ser recomendada como trata-mento. Há consenso na literatura de que o tratamento por 3 dias seja tão efi caz quanto o tratamento por 5 a 7 dias.

Deve-se iniciar tratamento empírico oral por 3 dias com: -Norfl oxacino (400mg), 12/12 horas; -Ácido nalidíxico (500mg), 6/6 horas; -Nitrofurantoína (100mg), 6/6 horas; -Cefadroxila (250mg), 12/12 horas; -Cefalexina (250mg), 6/6 horas.

A amoxicilina não é considerada uma opção apropriada para esses pacientes. A escolha inicial do anti bióti co depen-de da resistência esperada ao SMX = sulfametoxazol, TMP = trimetoprim estabelecido para a região. Se menor que 10 a 20%, tal medicação pode ser uti lizada como agente de es-colha. As fl uoroquinolonas são uma óti ma opção com resis-tência à sua ação em apenas 5% dos casos.

A efi cácia dos regimes com 3 dias de anti bioti coterapia é superior a 90%. Em caso de resolução dos sintomas, não é necessário o seguimento clínico ou laboratorial. Caso não haja a melhora dos sintomas, devem ser realizados exame de urina (urina I ou sedimento urinário) e urocultura com anti biograma, orientando o tratamento com base nos seus resultados. É importante lembrar-se, ainda, dos diagnósti -cos diferenciais de cisti te (vaginite e uretrite).

C - Cisti te na mulher grávida

Devem ser colhidos exames de urina (urina ti po 1 ou se-dimento urinário) e urocultura, e deve ser iniciado o trata-mento empírico com cefadroxila, cefalexina ou amoxicilina. O tratamento deve durar 7 dias e ser alterado se necessário, com base no resultado da cultura e no anti biograma. Não se devem usar quinolonas (contraindicadas). Estudos têm demonstrado diminuição da recorrência de infecção em gestante com uso de suco de cranberry.

D - Cisti te no homem

Na maioria dos casos, a cisti te no homem associa-se à hiperplasia prostáti ca. Devem ser realizados exame de uri-na (urina ti po 1 ou sedimento urinário) e urocultura, além do exame clínico da próstata. O tratamento deve durar 7 dias.

E - Cisti te em pacientes com diabetes, imunos-supressão, internação hospitalar recente ou história de cálculos renais

Devem ser realizados exames de urina (urina ti po 1 ou sedimento urinário) e urocultura antes do tratamento em-pírico. A duração do tratamento, em geral, é de 3 dias, e, ao seu fi nal, deve ser realizada a urocultura. Caso não haja a resolução dos sintomas ou haja história de alterações renais ou urológicas, como rins policísti cos ou alterações anatômi-cas, deve ser feita uma investi gação mais ampla. Na presen-ça de sinais sistêmicos como febre, dor abdominal, náuseas ou vômitos, deve-se suspeitar de pielonefrite, tratada por 10 a 14 dias (eventualmente, 28 dias).

F - Cisti te no idoso

Deve-se evitar tratar casos sem sintomas. Em mulheres idosas, sem comorbidades e com ausência de achados de pielonefrite, a medicação de escolha é a ciprofl oxacina por 3 dias (250mg, 12/12 horas). Em homens ou mulheres com comorbidades, pela difi culdade do diagnósti co de pielone-frite em tal população, costumam ser realizados tratamen-tos mais longos: 7 a 10 dias para mulheres, e 14 a 28 dias (quando se considera prostati te) para homens.

G - Pielonefrite aguda não complicada

Recomendam-se exame de urina (urina ti po 1 ou se-dimento urinário) e urocultura com anti biograma. O tra-tamento inicial deve ser empírico oral ou parenteral, com internação hospitalar, de acordo com o estado geral dos pa-cientes, considerando que cerca de 12% deles apresentam bacteremia. As opções são:

-Ciprofl oxacina: 400mg IV, ou 500mg VO, 12/12 horas; -Ceft riaxona: 1 a 2g IM/IV, 1x/dia; -Aminoglicosídeo: IM ou IV em dose única diária ami-cacina, 15mg/kg, ou gentamicina, 5mg/kg.

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A duração total do tratamento será de 10 a 14 dias, sen-do possível a passagem da via parenteral para a oral, con-forme haja melhora do quadro geral, e alta hospitalar. Se não houver uma melhora importante do quadro clínico em 24 a 48 horas de tratamento, deve-se considerar avaliação com imagem para verifi car se há complicações ou absces-sos, principalmente na presença de febre persistente por mais de 5 dias após o início da anti bioti coterapia.

H - Infecções em pacientes com sonda vesical

Os cateteres devem ser trocados, e, caso a bacteriúria persista 48 horas após a reti rada do cateter, indica-se o tratamento. Porém, pacientes criti camente doentes, com diagnósti co presunti vo de ITU, devem receber tratamento anti bióti co imediato. A terapia anti bióti ca deve ter duração de 10 a 14 dias, e a escolha do anti bióti co depende dos re-sultados de culturas.

Em pacientes em que a coloração de Gram não apre-sente cocos Gram positi vos (eti ologia provável de infecção por enterococos ou estafi lococos coagulase negati vos), o agente de escolha é cefalosporina de 3ª geração, como cef-triaxona, 2g/dia, ou fl uoroquinolonas, como ciprofl oxacino, 400mg IV, 12/12 horas.

Na suspeita de infecção por Pseudomonas, indica-se ceft azidima, 2g, 8/8 horas, e pode-se considerar o uso de aminoglicosídeos.

Em infecções por enterococos, anti bióti cos como ampi-cilina, vancomicina e eventualmente aminoglicosídeos são os agentes de escolha. Em se tratando de pacientes com es-tafi lococos coagulase-negati vos, o uso é, preferencialmen-te, de vancomicina, 1g, 12/12 horas.

I - Infecções por Candida

O objeti vo do tratamento é erradicar sinais e sintomas que se associam a infecção urinária parenquimatosa. Esse tratamento pode diminuir o risco de infecção ascendente ou disseminada.

Pacientes sem sintomas clínicos, sem piúria e urocultura com mais de 10.000UFC/mL, não devem ser tratados, exce-to neutropênicos, transplantados e em pré-operatório de cirurgia urológica. Nesse caso, se o paciente esti ver usando sonda vesical, esta deverá ser trocada e a urocultura repe-ti da em 48 horas; se novamente apresentar urocultura com mais de 10.000UFC/mL, deverá ser indicado tratamento.

Entre pacientes com piúria, mas sem sintomas clínicos, devem ser tratados os de risco. Os demais não têm indi-cação de tratamento, embora este possa ser discuti do em indivíduos com leucocitúria muito importante.

Pacientes com candidúria sintomáti ca devem ter sonda vesical trocada e o tratamento iniciado. São possíveis as se-guintes opções:

-Fluconazol: 200mg ao dia, por 7 a 14 dias; -Anfotericina B: 0,3mg/kg/dia, em dose única (alguns autores recomendam curso de até 7 dias).

A irrigação vesical com anfotericina B, na maioria dos ca-sos, melhora transitoriamente a candidúria, mas não deve ser indicada roti neiramente.

10. Profi laxiaEm pacientes com infecções urinárias de repeti ção, defi -

nidas por 3 ou mais episódios ao ano, deve ser considerada profi laxia.

O uso de anti bióti cos para tal propósito tem demonstra-do uma redução da reinfecção em aproximadamente 95% (cerca de 2 episódios por paciente por ano para 0,1 a 0,2 episódio), exceto em áreas onde a resistência bacteriana é alta. Uma variedade de anti bióti cos pode ser usada na me-tade da dosagem ou 1/4 à noite, antes de dormir. O agen-te a ser uti lizado deve ter uma boa concentração urinária, ser efeti vo contra bactérias localizadas no introito vaginal e nas fezes e não causar resistência bacteriana. O tempo de uti lização varia de 2 a 6 meses. As drogas mais usadas são nitrofurantoína, sulfame toxazol-trimetoprim, norfl oxacino, cefalexina (Tabela 7). Em mulheres em que o aparecimento de ITU tem forte correlação com ati vidade sexual, pode-se considerar a realização de profi laxia após o coito.

Tabela 7 - Anti bióti cos e dosagem para profi laxia

Anti bióti co Dose

Nitrofurantoína macrocristal 100mg/dia

Nitrofurantoína 50mg/dia

SMX = Sulfametoxazol + TMP = Trimetoprim

400mg + 80mg/dia

Trimetoprim 100mg/dia

Cefalexina 125 ou 250mg/dia

Norfl oxacino 200mg/dia

Ciprofl oxacino 125mg/dia

O estrogênio tópico é altamente efeti vo em pacientes na menopausa que habitualmente apresentam ITU e cisti -tes de repeti ção. Sua atuação se dá na restauração do tro-fi smo vaginal, no restabelecimento da colonização por lac-tobacilos e na eliminação dos uropatógenos. Há estudos em andamento para a prevenção de ITU com uso de biologia molecular, lactobacilos e mesmo sucos ou extratos de cran-berry, mas os resultados ainda não são defi niti vos.

11. Resumo Quadro-resumo

Conclusões com base na Sociedade Brasileira de Urologia

- Bacteriúria assintomáti ca não deve ser tratada com anti bióti -cos, salvo situação urológica, como obstrução do trato urinário ou portadores de doenças que interfi ram na resposta orgânica (exemplo: diabetes) (D) (A);

- Infecção urinária sintomáti ca deve ser tratada com anti bióti cos baseados nos testes de sensibilidade, tolerabilidade, concentra-ção local, interação medicamentosa, função renal e custos (D);

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I N F E CÇÃO DO T RATO U R I N Á R I O

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Conclusões com base na Sociedade Brasileira de Urologia

- As cisti tes bacterianas, em mulheres, podem ser tratadas por curto período – 3 dias; nos homens, a duração do tratamento deverá ser de 7 a 10 dias (D) (A);

- As fl uoroquinolonas, associações de sulfametoxazol-trimeto-prim, aminoglicosídeos e cefalosporinas de 3ª geração consti -tuem os anti bióti cos mais empregados (D);

- As pielonefrites devem ser tratadas por períodos de 2 a 4 se-manas (D);

- O tratamento com estrógeno vaginal em mulheres menopau-sadas é um meio efi caz de prevenir recorrência das infecções (D) (A);

- A hidratação e o estí mulo às micções frequentes contribuem para o tratamento e a prevenção das ITUs;

- Anti bioti coterapia em baixas doses por longo período (3 a 6 meses) pode ser efi caz na profi laxia de ITUs recorrentes (B);

- Infecções sintomáti cas recorrentes ou febris devem ser explo-radas com métodos propedêuti cos por imagem (D);

- A resolução ou o controle das causas orgânicas consti tuem a principal medida para evitar recorrência das ITUs.

A - Estudos experimentais ou observacionais de melhor consis-tência.B - Estudos experimentais ou observacionais de menor consis-tência.C - Relato de casos (estudos não controlados).D - Opinião desprovida de avaliação críti ca, baseada em consen-sos, estudos fi siológicos ou modelos animais.

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Tabela 1 - Composição e frequência dos cálculos urinários

Tipos de cálculo Frequência (%)

Cálculo de cálcio 80

Oxalato (mono e di-hidratado) 35

Fosfato 10

Oxalato e fosfato 35

Outros cristais 20

Estruvita 10

Ácido úrico 8

Cisti na 1

Outros ti pos 1

Triantereno -

Xanti na -

Matriz -

Tabela 2 - Fatores eti ológicos de alguns cálculos

Tipos de cálculo Fatores eti ológicos

Oxalato de cálcio

Supersaturação urinária de cálcio por:a) Perda renal.b) Absorção intesti nal.c) Reabsorção óssea, hiperoxalúria.

Fosfato de cálcio pH urinário alcalino, hipercalciúria.

Carbonato de cálcio Hipercalciúria

Ácido úrico Hiperuricosúria

Cisti na Cisti núria

Estruvita (fosfato amônio de magnésio)

Urina alcalina produzida por bactérias desdobradoras de ureia

MatrizUrina alcalina produzida por bactérias desdobradoras de ureia

1. EpidemiologiaA lití ase urinária é uma das doenças mais frequentes do

trato urinário (de 1 a 5% da população adulta dos países industrializados), com recorrência de 50% em 5 anos e maior incidência entre a 3ª e a 5ª décadas. Ocorre à proporção de 3 homens para cada mulher acometi da.

2. Eti ologia e fi siopatologiaOs sais de cálcio estão presentes na maioria dos casos

(80%), e o oxalato de cálcio (Figura 1), que representa o composto mais comumente encontrado (até 70% dos casos), apresenta 2 ti pos de cristais (monoidratado e o di-hidratado), que diferem na sua morfologia e em propriedades. O fosfato de cálcio (apati ta) tem diferentes composições, a mais comum a hidroxiapati ta [Ca10(PO4)6(OH)2]. Na Tabela 1, observam-se a composição e a frequência dos cálculos.

Figura 1 - Cálculo de oxalato de cálcio bilateral: radiografi a simples e UIV (urografi a excretora)

CAPÍTULO

22 Marcelo José Sett e

Lití ase urinária

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O desenvolvimento de lití ase no trato urinário é complexo e multi fatorial. Os fatores epidemiológicos mais conhecidos são climáti co (clima seco), ocupacional, dietéti co e hereditário.

A - Fisiologia e litogênese

Com a alimentação normal, ingere-se 1g de cálcio por dia, e 25% deste são absorvidos ati vamente pelo intesti no (duodeno e jejuno proximal) com o auxílio da vitamina D. Em contraparti da, 10g de cálcio são fi ltrados no rim, dos quais 98% são reabsorvidos pelos túbulos renais. Esse equilíbrio é manti do pela regulação do cálcio sérico controlado pelo paratormônio por meio da mobilização do cálcio ósseo.

O mecanismo de formação do cálculo implica um estado de supersaturação de solutos associado a certas condições que levam à precipitação de cristais sobre uma base de característi cas bioquímicas semelhantes (nucleação homogênea) ou uma base de característi cas bioquímicas diferentes e/ou sobre outros cristais (nucleação heterogênea ou epitaxial). Como exemplos de nucleação heterogênea, têm-se moléculas de oxalato de cálcio se depositando sobre fragmentos de células epiteliais descamadas ou cálculos de oxalato de cálcio que, frequentemente, contêm moléculas de ácido úrico. A adição de novas moléculas do mesmo soluto denomina-se crescimento do cristal; quando ocorre a adesão de 2 ou mais núcleos em crescimento, chama-se agregação do cristal.

A cristalização do soluto não costuma acontecer em condições normais, pois o organismo possui substâncias que inibem esse mecanismo, denominados inibidores da cristalização. Estes atuam ligando-se aos solutos ou aumentando o solvente (diluindo o soluto). Para ocorrer a litogênese, os inibidores de cristalização urinária geralmente estão com níveis abaixo do necessário. A água é um grande inibidor da formação do cálculo, pois, quando ingerida em grande quanti dade, aumenta o solvente. O citrato liga-se ao cálcio (citrato de cálcio), e o magnésio, ao oxalato (oxalato de magnésio). Também são inibidores da cristalização as proteínas de Tamm-Horsfall, nefrocalcina e uroponti na.

Matriz é uma mucoproteína não cristalina geralmente associada ao cálculo renal. Em pacientes não formadores de cálculo renal, essa substância atua como inibidor da cristalização, mas em formadores de cálculo serve como base para a deposição dos cristais. Cálculo de matriz puro é visto somente em associação à infecção por Proteus mirabilis.

Disfunção tubular renal pode ser um importante fator na formação do cálculo. O crescimento do cristal inicia-se no túbulo coletor distal, e, gradualmente, ocorre a extrusão para o sistema coletor, tornando-se um cálculo urinário livre.

Existem substâncias exógenas que, ao serem ingeridas, podem formar cálculo urinário. O indinavir é um inibidor de protease uti lizado no tratamento da síndrome da imunodefi ciência adquirida (AIDS) que produz cálculos moles e gelati nosos. Esses cálculos são radiotransparentes, portanto não visíveis em raio x convencional ou tomografi a

computadorizada. O triantereno também pode produzir cálculos radio transparentes.

a) Diagnósti co

A avaliação metabólica demonstra a eti ologia da lití ase em 90% dos pacientes. A passagem de um único cálculo pela via urinária sugere a avaliação com dosagem sérica de cálcio, fósforo e ácido úrico, além da dosagem urinária de 24h da creati nina, cálcio, fósforo, ácido úrico e oxalato. Pacientes com alguma anormalidade nesses exames devem ser avaliados com mais detalhes.

b) Avaliação metabólica

-Avaliação inicial: em pacientes com dieta normal, são dosados, na urina de 24h, creati nina, cálcio, fósforo, ácido úrico, oxalato e citrato. Associados ao pH e ao volume urinário total, dosagem sérica de cálcio, creati nina, fósforo e ácido úrico também são pesquisados;

Tabela 3 - Dosagem dos componentes bioquímicos do cálculo urinário

Componente bioquímico

Homens (mg) Mulheres (mg)

Cálcio <300 <250

Ácido úrico <800 <750

Oxalato <50 <50

Citrato 450 a 600 650 a 800

-Restrição dietéti ca: os pacientes são submeti dos a uma dieta pobre em cálcio (400mg) e sódio (100mEq) por 1 semana. Após esse período, faz-se uma nova coleta dos mesmos exames; -Sobrecarga de cálcio: após a ingestão de água somente no período da noite, o paciente vai ao laboratório às 7h da manhã. Após desprezar a urina da noite, é coletada a das 7 às 9h. O paciente recebe 1g de gluconato de cálcio oral às 9h, e é coletada a urina das 9 às 13h.

B - Alterações bioquímicas nos formadores de cálculos renais

a) Hipercalciúria

A hipercalciúria pode ser causada por reabsorção óssea (mais comumente, hiperparati reoidismo), aumento da absorção do trato intesti nal ou lesão de fi ltração renal. Observam-se 3 ti pos de hipercalciúria (Tabela 4).

Tabela 4 - Tipos de hipercalciúria

Cálcio Cálcio urinário Cálcio urinário

Tipo Sérico Restrição cálcio Sobrecarga cálcio

Reabsorti va Aumentado Aumentado Aumentado

Absorti va Normal Normal Aumentado

Renal Normal Aumentado Aumentado

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I. Hipercalciúria reabsorti va: a hipercalciúria está presente, independente de restrição dietéti ca.

-Eti ologia: o hiperparati reoidismo primário acomete menos de 5% dos pacientes com lití ase de cálcio. O excesso de hormônio da parati reoide (PTH) resulta na reabsorção excessiva de massa óssea e no esti mulo da síntese de vitamina D, que aumenta a absorção de cálcio intesti nal. Os efeitos fi nais são a elevação da reabsorção renal de cálcio (hipercalcemia) e o aumento da excreção de fosfato, resultando em hipercalciúria.Metade dos pacientes portadores de hiperparati -reoidismo primário desenvolve lití ase. Outras causas de hipercalciúria reabsorti va são tumores ósseos metastáti cos, mieloma múlti plo, doença de Cushing e imobilização prolongada. -Tratamento: tratar a doença primária (hiperpara-ti reoidismo primário – parati reoidectomia).

II. Hipercalciúria absorti va: é a causa única mais comum de hipercalciúria (encontrada em >50% dos pacientes com lití ase).

-Eti ologia: é dividida em 3 ti pos: • Tipo I: aumento da permeabilidade mucosa

intesti nal ao cálcio; • Tipo II: permeabilidade normal, porém aumento da

dieta de cálcio; • Tipo III: perda de fosfato pelo rim levando a elevada

produção de vitamina D que aumenta a absorção intesti nal de cálcio.

A hipercalcemia resultante aumenta a fi ltração renal de cálcio e diminui a reabsorção tubular, suprimindo o PTH. O excesso da perda de cálcio é compensado com o aumento da absorção de cálcio intesti nal para manter a calcemia.

-Tratamento: essa é a modalidade de hipercalciúria em que a dieta deve ser restrita em cálcio e sódio (400mg de cálcio/dia e 100mEq de sódio/dia).

• 3 a 4L de água/dia; • Fosfato de celulose sódico: resina de troca iônica

que atua no trato intesti nal, trocando sódio por cálcio e inibindo a absorção de cálcio;

• Ortofosfatos: aumentam a excreção urinária de cálcio e a excreção de pirofosfato e citrato.

III. Hipercalciúria renal: representa em torno de 10% das hipercalciúrias.

-Eti ologia: elevação da reabsorção tubular de cálcio urinário, causando hiperparati reoidismo secundário. Níveis séricos do cálcio permanecem normais porque a produção de PTH causa aumento da produção de vitamina D ati va (calcitriol), elevando a absorção de cálcio intesti nal e óssea; -Tratamento: diuréti cos ti azídicos (50mg, 2x/dia). Atuam diminuindo a perda urinária de cálcio e o volume extracelular. A suple mentação de potássio é necessária eventualmente.

Quanto aos casos que não respondem aos ti azídicos, podem-se tentar ortofosfatos e a restrição de cálcio.

b) Hiperuricosúria

Cálculos puros de ácido úrico (Figura 2) são encontrados em cerca de 10% dos cálculos. A solubilidade desse ácido é muito dependente do pH do meio (torna-se insolúvel com pH <5,8).

-Eti ologia: aproximadamente 25% dos pacientes com cálculo de ácido úrico são portadores de gota, além de doenças malignas e doenças mieloproliferati vas. Entretanto, muitos portadores de cálculo de ácido úrico não apresentam hiperuricemia nem hiperuri-cosúria. O desenvolvimento do cálculo depende da acidez urinária, do baixo volume urinário e da excreção de ácido úrico. Hiperuricosúria é encontrada em 20% dos pacientes com cálculo de cálcio (alguns autores acreditam que o ácido úrico sirva de base para a formação desse cálculo); -Tratamento: hidratação com ingestão de 3L de água/dia.

• Alcalinização da urina com 650mg de bicarbonato de sódio oral, 6x/dia. O pH deve manter-se acima de 6,5;

• Redução da carga de ácido úrico ingerido na dieta (reduzir dieta proteica para 90g/dia) e uso de alopurinol (200 a 600mg/dia), quando necessário.

Figura 2 - Cálculo radiotransparente piélico em pielografi a descendente (imagem negati va na seta): presença de cateter ureteral e ponta de agulha de punção renal em cálice médio

c) Hiperoxalúria

O ácido oxálico é um produto fi nal do metabolismo, sendo muito insolúvel. Menos de 10% do oxalato são absorvidos pelo trato gastrintesti nal, pois a maioria deriva do metabolismo.

-Hiperoxalúria primária: doença autossômica recessiva rara, que apresenta níveis elevados de oxalato urinário. O tratamento com piridoxina, 100 a 400mg/dia, reduz a excreção de oxalato, além de promover adequadas hidratação e redução do oxalato da dieta; -Hiperoxalúria entérica: paciente com doença intesti nal causando má absorção (doença infl amatória intesti nal

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ou síndrome do intesti no curto) com aumento de ácidos graxos e sais biliares e consequente saponifi -cação do oxalato que se liga ao cálcio e ao magnésio, aumentando sua disponibilidade. O tratamento inclui baixa ingestão de oxalato e gordura, hidratação e suplementação de cálcio, e a colesti ramina pode auxiliar na má absorção; -Hiperoxalúria exógena: acontece quando são ingeridas, em grandes quanti dades, substâncias que apresentam oxalato no seu produto fi nal (por exemplo, eti lenoglicol, ácido ascórbico e metoxifl urano).

A falta da bactéria Oxalobacter formigenes no intesti no leva a uma maior absorção de oxalato por esta ser responsável pela degradação da substância em questão, consequentemente aumenta a chance de formação de cálculos de oxalato de cálcio.

d) Hipocitratúria

A hipocitratúria tem sido encontrada em 50% dos casos de cálculos de cálcio. O citrato inibe a precipitação de cristais de cálcio na urina, pois o composto de citrato de cálcio impede a formação do oxalato de cálcio, o qual é um possível formador de lití ase.

e) Acidose tubular renal

A acidose tubular renal é causada por acidose metabólica hipocalêmica por defeito de secreção do íon hidrogênio do túbulo renal. A lití ase ocorre na acidose tubular renal ti po I, em que existe uma defi ciência no túbulo distal em manter um gradiente adequado de íon hidrogênio. Está associada à hipocitratúria e à urina supersaturada com fosfato e cálcio. O resultado do excesso de ácido no sangue cronicamente é a absorção de cálcio e fosfato dos ossos que acabam sendo excretados na urina (hipercal ciúria e hiperfosfatúria). A hipocitratúria decorrente da acidemia e da hipocalemia leva a uma defi ciência de crescimento e raquiti smo, a presença de cálcio no parênquima renal leva à nefrocalcinose, e podem-se formar cálculos de fosfato ou oxalato de cálcio e mistos.

O tratamento consiste na alcalinização da urina com bicarbonato de sódio ou citrato de potássio.

f) Cisti núria

A cisti na em abundância na urina forma cálculos, pois esse elemento é pouco solúvel no pH urinário. Trata-se de uma doença autossômica recessiva, caracterizada pelo defeito do transporte transepitelial no intesti no e no rim, que se manifesta com diminuição de absorção de cisti na. O pico de incidência está entre a 2ª e a 3ª décadas. O nível de cisti na acima de 250mg/dia é considerado cisti núria.

O tratamento consiste na restrição dietéti ca de cisti na presente em vários alimentos (carne, aves). Devem-se adicionar hidratação e alcalinização com bicarbonato de sódio ou citrato de potássio. A alcalinização da urina para pH >7 aumenta a solubilidade da cisti na para 400mg/L de urina. Quando a hidratação e a alcalinização falham, a

D-penicilamina e a alfamercaptopropionilglicina são usadas para se ligarem à cisti na.

g) Cálculos de estruvita

Os cálculos de estruvita (Figura 3) são compostos de fosfato amônio de magnésio e carbonato de apati ta, e seu crescimento se dá no interior do sistema coletor renal (cálculo coraliforme). Algumas condições permitem que organismos produtores da enzima uréase transformem a ureia em amônia (NH3) e dióxido de carbono (CO2). A amônia é uma base que alcaliniza a urina e se liga ao hidrogênio, formando o amônio (NH4). Em pH alcalino (acima de 7), o amônio combina-se ao fosfato e ao magnésio, formando o cálculo de estruvita (MgNH4PO4). O CO2 pode combinar-se ao cálcio urinário e formar o carbonato de cálcio (CaCO3).

Proteus sp. é o germe mais encontrado (75% dos casos). Também produzem uréase Klebsiella sp., Pseudomonas sp., Providencia sp., Staphylococcus e, mais recentemente, Ureaplasma urealyti cum. Mulheres são 2 vezes mais afetadas que homens. Aproximadamente 10% dos portadores de lesão medular produzem cálculo de estruvita. Outras populações de risco são portadores de conduto ileal ou cateter vesical suprapúbico de longa data.

-Diagnósti co: pacientes com pH urinário elevado (acima de 7) causado por infecção urinária. A radiografi a simples de abdome geralmente demonstra o cálculo, mas pode ser pouco radiopaco. A urografi a excretora ou a tomografi a computadorizada auxiliam na avaliação, e a cinti lografi a nuclear demonstra função e perfusão renal; -Tratamento: reti rada total do cálculo e da erradicação da infecção.

Figura 3 - Cálculo de estruvita em raio x simples de abdome

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• Prevenção: quando a infecção não pode ser erradicada, os inibidores da uréase com ácido acetoidro xâmico podem ser administrados para diminuir o pH urinário e os níveis de amônio.

Tabela 5 - Resumo das principais condições, causas e tratamentos da lití ase recorrente

Condição Causa Tratamento

Hipercalciúria reabsorti va

Hiperparati reoidis-mo primário

Parati reoidectomia

Hipercalciúria absorti va

Absorção de cálcioRestrição dietéti ca, cálcio e ingestão de líquidos

Hipercalciúria renal

Reabsorção renal tubular de cálcio

Diuréti co ti azídico

Hiperuricosú-ria

Acidez urinária (gota 25%)

Bicarbonato de sódio e ingestão de líquidos

Hiperoxalúria primária

Doença autossômi-ca recessiva

Piridoxina

Hiperoxalúria entérica

Má absorção intes-ti nal

↓ Oxalato e gordura e ingestão de líquidos e suplementação de Ca++

Hiperoxalúria exógena

Ingestão de oxalato Restrição de dieta

HipocitratúriaDieta restrita em citrato

Ingestão de citrato

Acidose tubu-lar renal

Acidose tubular renal

Alcalinização de urina

Cisti núriaDoença autossômi-ca recessiva

Restrição de ingesta cisti -na, hidratação e alcaliniza-ção da urina

Cálculo de estruvita

Infecção e estase urinária

Reti rada do cálculo e tra-tamento da infecção

3. Apresentação clínica e tratamento

A - Lití ase do trato urinário superior

O cálculo renal é geralmente assintomáti co até o momento em que se move, causando obstrução do trato urinário. A obstrução urinária pode causar dor, náusea, vômito, infecção urinária e septi cemia; crônica, pode ser assintomáti ca. Deve-se suspeitar de cálculo urinário quando o paciente apresenta de forma repenti na dor em cólica na região lombar ou abdominal. Essa dor pode irradiar-se para a região inguinal e a genitália e, eventualmente, levar a irritação vesical (polaciúria, urgência miccional), dependendo do local da obstrução. Em 25% dos casos, há história familiar de lití ase urinária. Hematúria (micro ou macroscópica) está presente em 85% dos casos.

a) Diagnósti co

A avaliação inicial deveria incluir hemograma, creati nina sérica, urinálise, urocultura e radiografi a simples de abdome. O raio x simples de abdome permite diagnósti co em até 90% dos casos, porém sua falha está relacionada

a baixo grau de opacidade (por exemplo, cálculo de ácido úrico), sobreposição de gases intesti nais, estruturas ósseas, calcifi cações (por exemplo, fl ebólitos) e cálculos menores de 2mm.

A ultrassonografi a do trato urinário é um método bastante uti lizado (Figura 4), pois demonstra a presença de cálculo, inclusive radiotransparente, e mostra possíveis dilatações ocasionadas por ele. No entanto, pode ser difí cil identi fi car cálculos pequenos.

Figura 4 - Dilatação piélica e cálculo em ureter distal (seta) próximo à bexiga, com dilatação a montante

A urografi a excretora (Figura 5) é um método adequado para identi fi car possíveis repercussões anatômicas e funcionais. Seu uso é mais restrito por apresentar efeitos colaterais ao contraste iodado (incluindo alergia em graus variados e nefrotoxicidade) em 5 a 8% dos casos, bem como reação cruzada com alguns hipoglicemiantes orais. Apresenta uma sensibilidade de 96% em cálculos ureterais, porém diminui quando a radiografi a simples não demonstra lití ase.

Figura 5 - Cálculo renal em cálice superior e inferior: raio x simples e UIV

A tomografi a computadorizada (Figura 6) é o método com maiores sensibilidade (97%) e especifi cidade (96%) e permite o diagnósti co diferencial de cálculos, coágulos e tumores. Muitas vezes, é possível dispensar o uso de contraste.

Figura 6 - (A) Os mesmos cálculos da Figura 5 à tomografi a computadorizada e (B) posterior reconstrução em 3D

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A ressonância magnéti ca urográfi ca é um método de imagem que tem sido sugerido por alguns autores como promissor, porém, atualmente, não faz parte da roti na médica.

b) Tratamento

O tratamento depende do tamanho, da localização, do grau de obstrução do cálculo e do quadro clínico do paciente.

B - Cálculo ureteral

a) Analgesia na cólica renal

O alívio da dor é o foco mais importante na cólica nefréti ca. As drogas mais uti lizadas, na práti ca médica, são os anti -infl amatórios não esteroides.

Quando a dor é mais intensa, deve-se lançar mão de drogas injetáveis, como opioides. O uso de anti eméti co é importante, pois tanto a inervação do rim quanto a do estômago seguem para o plexo celíaco, causando náuseas e vômitos que são comuns na cólica renal.

Drogas como esteroides e alfa-bloqueador ti po 1 auxiliam na eliminação do cálculo mais precocemente. Atualmente, são denominadas terapia expulsiva medicamentosa de cálculo ureteral. Pacientes com cálculos menores de 5mm e mínima dilatação do trato urinário devem ser tratados com analgésicos e hidratação. Cerca de 90% dos cálculos menores de 4mm passarão espontaneamente pelo ureter, enquanto somente 20% passarão em caso de tamanho maior que 6mm. Os locais com maior difi culdade para a passagem são a junção ureteropiélica, o cruzamento dos vasos ilíacos e a junção ureterovesical.

A realização de método de imagem (como radiografi a ou ultrassonografi a) semanalmente é úti l para a monitorização da eliminação do cálculo. O tempo permiti do para a saída do cálculo é de 4 a 6 semanas; após esse período, deve ser sugerido outro método terapêuti co.

b) Intervenção imediata

Indica-se uma intervenção quando há um alto grau de obstrução do trato urinário com risco de perda de função renal em longo prazo, cálculo ureteral em rim único funcionante, elevação da creati nina, insufi ciência renal preexistente, infecção urinária por uropati a obstruti va e dor intratável com medicação. A uti lização de um cateter ureteral temporário (duplo J) é adequada. Quando não se obtém sucesso ou a infecção é muito grave, a indicação mais precisa é a nefrostomia percutânea.

c) Ureterolitotripsia

A ureterolitotripsia é a modalidade de tratamento em que se introduz um aparelho endoscópico de fi no calibre (7 a 10Fr) pela uretra do paciente, chegando ao interior do ureter. Sob visão direta do cálculo, pode-se fragmentá-lo com litotriptor intracorpóreo (laser, eletro-hidráulico ou pneumáti co) e reti rar os fragmentos com pinça ou cesta de Dormia (basquet).

O ureterorrenoscópio pode ser semirrígido ou fl exível; costuma-se dar preferência pelo aparelho semirrígido em cálculos do ureter inferior. Nos cálculos de ureter médio e proximal, a preferência é o ureterorrenoscópio fl exível.

Cálculo ureteral obstruti vo com repercussão sistêmica, dor refratária ao tratamento, falha da LECO, fragmentos múlti plos obstruindo o ureter (“rua de cálculos”). As principais complicações são perfuração, sangramento, avulsão e fí stula urinária.

Após a reti rada do cálculo ureteral, é importante avaliar a condição do ureter, pois, se houver processo infl amatório intenso ou lesão da parede, é adequada a colocação de cateter duplo J e mantê-lo por período mínimo de 1 semana para a cicatrização do ureter.

Figura 7 - Ureterolitotripsia

d) Litotripsia extracorpórea por ondas de choque

A litotripsia extracorpórea por ondas de choque (LECO) é um tratamento em que se uti liza o litotriptor extracorpóreo, em que o paciente se deita e localiza o cálculo por ecografi a ou radioscopia. O aparelho dispara ondas de choque (podem ser eletro-hidráulicas, eletromagnéti cas e piezelétricas) em direção ao cálculo, causando, assim, a sua fragmentação. Após o procedimento, o cálculo fragmentado deve ser eliminado espontaneamente. No ureter, com até 1cm, os cálculos respondem bem ao tratamento. Esse procedimento é contraindicado na suspeita de infecção e pode desenvolver sepse urinária.

e) Ureterolitotripsia laparoscópica

Uti lizada em pacientes com cálculos ureterais acima de 2cm ou naqueles em que os outros métodos foram contraindicados. O uso de duplo J após a reti rada do cálculo é adequado.

f) Ureterolitomia aberta

Para casos eventuais em que não se disponibilizam os métodos anteriores. Apresenta boa efi cácia, porém com morbidade maior que a ureterolitotripsia endoscópica ou laparoscópica.

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C - Cálculo renal

-Conservador: cálculos renais menores de 6mm apresentam grandes chances de serem eliminados espontaneamente; -LECO: cálculos renais com até 2cm de diâmetro podem ser submeti dos a estas modalidades de tratamento, com bons resultados. A LECO está indicada a cálculos renais menores de 2cm; acima de 1,5cm, sugere-se o uso de cateter ureteral temporário. Está indicada, também, a cálculos ureterais de até 1cm com bons resultados. As complicações são hematoma perirrenal, hematúria, cólica renal (migração de fragmentos), sepse (se o paciente esti ver infectado) e raramente pancreati te. Estudos têm sugerido complicações como hipertensão e diabetes mellitus em longo prazo. Portanto, a uti lização indiscriminada de LECO em portadores de lití ase recorrente não é uma práti ca adequada. As principais contraindicações são gravidez, diátese hemorrágica e infecção urinária; -Nefrolitotripsia percutânea: a nefrolitotripsia percutânea é um procedimento cirúrgico em que se realiza inicialmente uma pielografi a ascendente com cateter ureteral colocado previamente, punção percutânea por via lombar com agulha do cálice desejado (auxiliado por radioscopia), introduz-se um fi o-guia pela luz da agulha e posteriormente dilata-se o trajeto até a passagem do nefroscópio. Sob visão direta, ocorrem a fragmentação e a reti rada do cálculo. É um método indicado a cálculos renais maiores de 2cm, coraliformes, em divertí culos renais, refratários à LECO, obstruti vos e volumosos no ureter proximal (Figura 8).

Figura 8 - Cálculo coraliforme extraído do rim e UIV demonstrando cálculo coraliforme no rim esquerdo; passos da nefrolitotripsia percutânea

-Complicações mais comuns: sangramento (que podem levar à necessidade de embolização seleti va), lesão e extravasamento do sistema coletor (podendo levar a fí stulas renocutâneas no pós-operatório), lesão de órgãos adjacentes como cólon, pleura, pulmão, baço, fí gado, duodeno. As complicações clínicas mais comuns são sepse, hipotermia, trombose; -Cirurgia aberta: com o avanço das técnicas endourológicas, a cirurgia convencional (aberta) está restrita aos locais sem o método já descrito. Cirurgias como pielolitotomia e nefrolitotomia anatrófi ca são menos uti lizadas, tendo como complicações dor, enfraquecimento da parede abdominal na incisão, hérnia incisional, maior tempo de recuperação. E todas as complicações clínicas já descritas; -Cirurgia laparoscópica: a pielolitotomia laparoscópica está sendo uti lizada em casos eventuais de cálculos maiores de 2cm na pelve com experiência positi va, porém limitada até o momento.

Figura 9 - Algoritmo semiológico e terapêuti co relacionado ao tamanho do cálculo renal. HDA: anamnese clínica, US: ultrassom, TC: tomografi a computadorizada, UIV: urografi a excretora, raio x simples: radiografi a simples de abdome, LECO: litotripsia extracorpórea por ondas de choque, UR: ureterolitotripsia, NP: nefrolitotripsia percutânea, CA: cirurgia aberta

- Situações especiais

-Gestação: colocação de cateter duplo J em casos que necessitem de alguma intervenção é o mais adotado. A LECO é contraindicada;

-“Rua de cálculos”: situação em que vários cálculos ou fragmentos obstruem o ureter; nessa situação, pode-se tratar conservadoramente por até 6 semanas (a maioria é eliminada espontaneamente). A LECO poderá ser resoluti va se não houver infecção associada ou sintomas severos. Caso contrário, a ureterolitotripsia ou a passagem de duplo J estão indicadas;

-Cálculos urinários na infância: em geral, podem ser tratados da mesma forma que em adultos (LECO ou ureterolitotripsia, quando necessário).

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-Cálculo coraliforme: o tratamento depende da total da eliminação do cálculo e da erradicação da infecção.

• Nefrolitotripsia percutânea: 85% dos pacientes estão livres de cálculo em 3 meses. É o tratamento de escolha;

• Cirurgia aberta ou laparoscópica: quando a função renal é pequena, a nefrectomia está indicada. A nefrectomia parcial pode ser realizada quando uma porção do rim está sem função;

• LECO: como tratamento único, apresenta uma taxa de 40 a 60% livre de cálculo. Tem um melhor resultado quando associada a outro tratamento (técnica de sanduíche), em que se realiza uma nefrolitotripsia percutânea seguida por uma LECO, e por uma nova nefrolitotripsia percutânea ou quemólise em cálculo residual;

• Quemólise: método pouco efeti vo em cálculo de cálcio, porém possui uma boa efi cácia em cálculos de ácido úrico, eventualmente em casos de estruvita, carbonato de apati ta e cisti na.

D - Lití ase do trato urinário inferior

- Cálculos vesicais

Os cálculos vesicais são mais encontrados em pacientes do sexo masculino, em geral portadores de qualquer disfunção infravesical que mantenha resíduo urinário após a micção (por exemplo, bexiga neurogênica, hiperplasia prostáti ca benigna, câncer de próstata e estenose de uretra). Também podem ser moti vo de lití ase a presença de corpo estranho vesical (cateteres vesicais, sutura inabsorvível, objetos inseridos na bexiga) e, eventualmente, cálculos renais e ureterais que migraram para a bexiga.

a) Apresentação clínica: dor em hipogástrio ou genitália, disúria, hematúria e infecção de repeti ção.

b) Diagnósti co: radiografi a simples de abdome, ultrassom de bexiga e cistoscopia.

c) Tratamento: normalmente, a investi gação demonstra a causa da lití ase (por exemplo, hiperplasia prostáti ca e estenose de uretra), devendo ser tratada concomitantemente para evitar recidiva. O tratamento específi co da lití ase vesical pode ser feito via endoscópica. A cirurgia aberta (cistolitotomia) é uma opção quando a lití ase é muito volumosa ou em situações menos comuns (ampliação vesical na bexiga neurogênica, hiperplasia prostáti ca volumosa, entre outros).

4. ResumoQuadro-resumo

- Epidemiologia: tem recorrência de 50% em 5 anos e maior incidência entre a 3ª e a 5ª décadas de vida, a uma proporção de 3 homens para cada mulher acometi da.

- Eti ologia e fi siopatologia: · Composição dos cálculos: cálcio 80% (oxalato 35%, fosfato

10%, oxalato + fosfato 35%), estruvita 10%, ácido úrico 8%, cisti na 1%, outros 1%.

- Litogênese: supersaturação de solutos (cristais) e/ou diminuição de solventes (exemplos: água, citrato, magnésio).

- Alterações bioquímicas:· Hipercalciúria mais comum das anormalidades (absorti va,

reabsorti va e renal);· Absorti va: defeito na absorção intesti nal;· Reabsorti va: hiperparati reoidismo primário;· Renal: defeito na reabsorção tubular renal;· Hiperuricosúria; acidez urinária (25% possuem gota);· Hiperoxalúria; má absorção intesti nal é a mais comum;· Hipocitratúria; presente em 50% dos cálculos de cálcio;· Acidose tubular renal; acidose metabólica hipocalêmica por

defeito de secreção do íon hidrogênio do túbulo renal ti po I;· Cisti núria: doença autossômica recessiva;· Cálculos de estruvita (fosfato amônio de magnésio), cálculo

de infecção uréase + Proteus, é o germe mais comum.

- Apresentação clínica e tratamento:· Cálculo do trato urinário superior: cólica renoureteral (raio x

simples, US eventualmente UIV. TAC é o método com maior acurácia). * Tratamento: cálculos >4mm, eliminação espontânea em

90% dos casos. Demais, conforme tamanho e localização.· Cálculo do trato urinário inferior: o cálculo vesical é o mais

comum e está relacionado a estase urinária geralmente por obstrução infravesical (HPB, estenose de uretra, câncer de próstata), bexiga neurogênica ou corpo estranho vesical (fi o inabsorvível, sonda de demora).

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à raça, parece haver maior acometi mento de pacientes ne-gros. Os negros norte-americanos apresentam maior índice de mortalidade (2 vezes maior do que o da população bran-ca). Entretanto, a incidência entre os negros africanos é me-nor do que a dos negros norte-americanos. De modo geral, os negros são os mais acometi dos, seguidos dos brancos e, por fi m, amarelos.

Alguns autores defendem que o consumo de dieta rica em gorduras e pobre em fi bras esteja relacionado a maior incidência de câncer de próstata. Estudos multi cêntricos com o objeti vo de avaliar a efeti vidade de drogas quimio-protetoras, como selênio e vitamina D, estão sendo desen-volvidos, porém ainda não há consenso na sua uti lização. Não há dúvida quanto à correlação entre câncer de prós-tata e hormônios, visto que, virtualmente, todo câncer de próstata apresenta algum grau de dependência andróge-na. A observação da ausência desse câncer em populações de eunucos corrobora ainda mais tal relação.

Tabela 1 - Epidemiologia e fatores de risco do câncer de próstata

Epidemiologia Fatores de risco

Prevalência Tumor de órgão sólido mais prevalente

Mortalidade 2º tumor mais letal no Brasil

História familiar2,2 vezes maior com 1 familiar, 4,9 vezes com 2 familiares, 10,9 vezes com 3 familia-res de 1º grau

Raça Negros >brancos >amarelos

3. História natural e quadro clínicoA história natural do câncer de próstata é bem variada;

há uma variação entre o câncer latente, clinicamente silen-te, que raras vezes resulta em qualquer morbidade e com frequência é diagnosti cado apenas em exames de autópsia,

1. IntroduçãoO adenocarcinoma de próstata é uma das mais impor-

tantes doenças da medicina atual em razão da alta preva-lência e do intenso impacto econômico. A incidência cres-cente do câncer de próstata decorre do envelhecimento da população. Mais do que qualquer outro ti po de câncer, esse é considerado o câncer da 3ª idade, uma vez que cerca de 3/4 dos casos no mundo acontecem a parti r dos 65 anos e raramente há ocorrência em pacientes com idade inferior a 45 anos.

A propagação da dosagem do antí geno prostáti co espe-cífi co (PSA) em programas de rastreamento, além do aper-feiçoamento da ultrassonografi a e a biópsia de próstata por via transretal, contribuíram muito para o aumento da inci-dência, principalmente de casos na fase inicial, quando a cura é possível.

2. Epidemiologia e fatores de riscoO câncer de próstata é a neoplasia de órgão sólido mais

prevalente em homens. No Brasil, a taxa de mortalidade bruta vem apresentando um ritmo acentuado de cresci-mento, com elevação percentual relati va de 139% nos últi -mos 20 anos. Sem considerar os tumores de pele não me-lanoma, o câncer de próstata é o mais frequente em todas as regiões do Brasil. Conforme dados fornecidos pelo INCA (Insti tuto Nacional do Câncer), é o 2º em taxas de morta-lidade no Brasil, superado apenas pelo câncer de pulmão.

Homens com antecedentes familiares de câncer da próstata têm maior chance de desenvolverem a doença. Os riscos aumentam 2,2 vezes quando um parente de 1º grau (pai ou irmão) é acometi do pelo problema, 4,9 vezes quan-do 2 parentes de 1º grau são portadores do tumor, e 10,9 vezes quando 3 parentes de 1º grau têm a doença. Quanto

CAPÍTULO

33 Ernesto Reggio

Câncer de próstata

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e o câncer clínico, que pode progredir para condições gra-ves e até óbito caso não seja tratado de forma conveniente. Assim, a história natural do câncer de próstata é ainda pou-co compreendida, sendo a prevalência de doença histológi-ca, comumente latente, superior à de doença clinicamente detectável. Estudos de autópsias em homens ao redor de 50 anos, sem história de câncer de próstata, mostraram 30% de incidência de doença oculta, enquanto, aos 80 anos, a mesma incidência se eleva para 70%.

Nas fases iniciais, quando o tumor ainda está na forma localizada e, portanto, curável, o câncer de próstata rara-mente é sintomáti co. O diagnósti co geralmente é feito com base em alterações do PSA ou toque retal. Com a evolução da doença, sintomas decorrentes do crescimento local do tumor começam a surgir, como diminuição do jato, esforço miccional, hematúria e hemospermia. Dor óssea, compres-são medular por lesão vertebral e fraturas patológicas são comuns na fase avançada da doença, decorrentes de me-tástases.

O exame clínico da próstata realizado pelo toque retal é o mais importante instrumento de avaliação clínica do câncer de próstata; sua sensibilidade para o diagnósti co desse câncer é de 67 a 69%, e a especifi cidade, de 89 a 97%. Porém, o toque retal é frequentemente normal em portadores de tumores localizados na porção central ou anterior da próstata, que ocorrem em cerca de 20% dos casos. Em doenças localmente avançadas, o toque retal tem elevado índice de suspeição, com achados de nódu-los endurecidos com limites imprecisos. Acometi mento de órgãos vizinhos, parti cularmente o reto e a bexiga, pro-vocando obstrução e sangramento, são comuns na fase avançada da doença.

Tabela 2 - Quadro clínico mais comum do câncer de próstata

Tumor locali-zado

Geralmente assintomáti co; 70 a 80% apre-sentam nódulo prostáti co ao toque.

Tumor localmen-te avançado

Sintomas obstruti vos, hematúria, hemosper-mia; próstata heterogênea, múlti plos nódu-los, limites imprecisos.

Tumor avançadoSintomas decorrentes das metástases, dor óssea, compressão vertebral.

4. Diagnósti coO advento do PSA revolucionou o diagnósti co do câncer

de próstata, visto que tumores na forma localizada são as-sintomáti cos, e, muitas vezes, já há alteração na dosagem do PSA mesmo na fase inicial. As campanhas de prevenção e de conscienti zação contra o câncer de próstata esti mula-ram a população masculina a procurar auxílio médico para exames de rastreamento. Com base na epidemiologia e nos fatores de risco, atualmente considera-se que todo homem com idade superior a 40 anos, mesmo assintomáti co, deve fazer avaliação prostáti ca anual. A avaliação para o rastrea-mento é feita pelo exame clínico, com ênfase ao toque retal e à dosagem do PSA.

O PSA, uma glicoproteína produzida na próstata e secre-tada em altas concentrações no fl uido seminal, é um marca-dor específi co de alterações do parênquima prostáti co, po-dendo estar alterado em diversas doenças que acometem a próstata. Assim, não é um marcador exclusivo do câncer de próstata. Quando há alteração na concentração sérica do PSA, o paciente deve ser avaliado quanto a outras doen-ças prostáti cas que acometem a glândula, como hipertrofi a prostáti ca benigna e prostati tes. Além de doenças, mani-pulações prostáti cas, como biópsia, massagem prostáti ca, ultrassonografia transretal e uretrocistoscopia também elevam o PSA. Logo, apesar de este ser considerado nor-mal quando inferior a 4ng/mL, a interpretação do resul-tado deve ser feita para cada paciente.

Por outro lado, a concentração do PSA também se eleva com a idade e o aumento do tamanho da próstata. Em ca-sos de lesão benigna, a molécula de PSA está menos ligada a proteínas no soro. Assim, métodos auxiliares na interpre-tação da dosagem do PSA podem ser úteis na diferenciação entre doença benigna e câncer. Há uma correlação entre volume prostáti co e produção do PSA, e, logo, espera-se que em grandes adenomas haja uma elevação do PSA. O quociente entre o PSA sérico e o peso ou volume da prósta-ta medido pela ultrassonografi a é denominado densidade do PSA, e esse recurso é uti lizado quando o paciente apre-senta hipertrofi a prostáti ca associada à elevação do PSA. A densidade deste é considerada normal quando inferior a 20%. O PSA pode também elevar-se com o envelhecimento; é normal um aumento de até 0,75ng/mL/ano. Tal conceito é denominado velocidade do PSA. O PSA pode também ser estrati fi cado por idade, conforme a Tabela 3.

Tabela 3 - PSA sérico estrati fi cado por idade

Faixa etária (anos)

Limite superior(ng/mL)

40 a 49 2,5

50 a 59 3,5

60 a 69 4,5

70 a 79 6,5

Atualmente, entretanto, o método alternati vo de do-sagem do PSA mais uti lizado é a relação PSA livre/total. Foi observado que, em pacientes portadores de câncer de próstata, a fração livre do PSA é inferior à da população nor-mal em decorrência do aumento da forma complexa do PSA ligado a proteínas plasmáti cas. Considera-se sugesti va de câncer de próstata a relação PSA livre/total inferior a 25%.

Tabela 4 - Outras formas de interpretação do PSA

Defi nição Valor normal

Densidade do PSA

PSA/volume da próstata pelo UGS <20%

Velocidade do PSA Elevação anual <0,75ng/mL/

ano

PSA livre/total Forma livre/conjugada a proteínas >25%

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Os pacientes com toque retal suspeito, principalmen-te pela presença de nódulos endurecidos, e/ou alteração na dosagem do PSA que sugere a presença de câncer, de-vem prosseguir a investi gação com biópsia prostáti ca. Atualmente, a biópsia é realizada, na grande maioria dos centros, por via transretal e guiada por ultrassonografi a (Figura 1). Tal procedimento permite avaliar o tamanho da próstata, a presença de nódulos com ecogenicidade altera-da e que sugerem presença de câncer, assim como a obten-ção de múlti plos fragmentos prostáti cos para avaliação his-tológica. Porém, os achados da ultrassonografi a de próstata não são patognomônicos de câncer e apenas auxiliam na avaliação global do paciente. A acurácia desse exame para detecção de câncer, quando avaliados apenas os achados radiológicos, é de 50 a 60%. Em casos localmente avança-dos, a ultrassonografi a transretal já pode demonstrar sinais de lesão extraprostáti ca, como nódulos grandes com exten-são além dos limites da cápsula.

Figura 1 - Indicações e técnica de biópsia de próstata: (A) toque retal (DRE – Digital Rectal Examinati on); (B) produção do PSA na próstata e sua passagem ao sangue; (C) introdução do tubo (transdutor do aparelho de ultrassonografi a) pelo ânus e reti rada de fragmentos

A fosfatase ácida prostáti ca foi o 1º marcador bioquími-co uti lizado em câncer de próstata, porém a introdução do PSA na práti ca clínica coti diana diminuiu a uti lização desse marcador, uma vez que a fosfatase ácida se eleva geralmen-te em doença metastáti ca, principalmente metástase óssea.

5. Histologia e graduaçãoO ti po histológico mais comum em câncer de próstata

é o adenocarcinoma, que corresponde a mais de 95% das neoplasias. Tumor de células escamosas e/ou tumor de cé-lulas transicionais são raros.

Um achado frequente em biópsias prostáti cas, não de-fi nido como câncer, é a neoplasia intraepitelial prostáti ca (PIN), que consiste em uma glândula com estrutura de aspec-to benigno, porém com ati pias citológicas de característi cas

malignas. A PIN é graduada em alto e baixo grau, esta últi ma sem importância clínica e não uti lizada roti neiramente, mes-mo em laudos de biópsias. A PIN de alto grau, entretanto, é considerada lesão pré-maligna, e orienta-se uma nova bióp-sia em um período de 6 a 12 meses. A positi vidade para o adenocarcinoma, nessa 2ª biópsia, varia de 20 a 35%.

Figura 2 - Graus do adenocarcinoma com base no sistema de Gleason

O adenocarcinoma de próstata é graduado pelo sistema de Gleason, que estabelece 5 padrões de morfologia glandu-lar, graduados de 1 a 5, sendo 1 correspondente à arquite-tura prostáti ca mais próxima do normal e 5 correspondente à mais indiferenciada (Figura 2). A soma dos 2 padrões mais frequentes é chamada de escore de Gleason, que varia, por-tanto, de 2 a 10. Há uma estreita correlação entre o escore de Gleason e o comportamento biológico do tumor, com uma níti da redução de sobrevida em escores superiores a 6. De acordo com o sistema de Gleason, escores de 2 a 4 repre-sentam tumores bem diferenciados, 5 a 7, moderadamente diferenciados, e 8 a 10, tumores indiferenciados.

6. EstadiamentoComo em toda neoplasia, o tratamento do câncer de

próstata depende do estadiamento. A avaliação local visa di-ferenciar o câncer localizado, que não invade a cápsula pros-táti ca, do tumor localmente avançado, que pode ati ngir vesí-culas seminais, colo vesical e até mesmo o reto. Tal disti nção pode ser difí cil quando o acometi mento extraprostáti co é pe-queno. O exame digital da próstata mostrando a presença de múlti plos nódulos endurecidos ou a perda dos limites anatô-micos é bastante sugesti vo de doença localmente avançada.

A avaliação radiológica da próstata, em muitas ocasiões, é inefi caz no diagnósti co de acometi mento extracapsular. Os achados ultrassonográfi cos mais sugesti vos de câncer de próstata são lesões nodulares hipoecogênicas com bordas ir-regulares (60%), porém as lesões podem ser isoecoicas ou, até mesmo, hiperecoicas. A sensibilidade e a especifi cidade da ul-trassonografi a são baixas.

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A ressonância nuclear magnéti ca com bobina endorretal é o exame radiológico que proporciona imagens melhores das lesões extrapros táti cas e de acometi mento dos feixes vasculonervosos que contêm o nervo eretor. Mesmo assim, a ressonância nuclear magnéti ca negati va para doença ex-traprostáti ca não exclui totalmente essa possibilidade.

O PSA não faz parte, mas auxilia no estadiamento clíni-co, uma vez que a grande maioria dos pacientes com do-sagens superiores a 50ng/mL raramente apresenta tumo-res localizados, enquanto indivíduos com PSA menor que 10ng/mL têm baixa probabilidade de metástases.

Todos esses exames são uti lizados no estadiamento clí-nico local da neoplasia, como indicado a seguir (Figura 3).

-T1: tumor localizado – respeita os limites da cápsula. Geralmente, é produto de ressecção transuretral de próstata. Não tem nódulo palpável.

• T1a e b: achados incidentais em cirurgia de roti na para HBP;

• T1c: biópsia efetuada por elevação do PSA. -T2: tumor localizado com nódulo palpável; -T3: tumor localmente avançado, invade vesículas se-minais ou estruturas extracapsulares; -T4: invasão de órgãos vizinhos, como reto e bexiga.

Figura 3 - Estadiamento local do câncer de próstata

Os linfonodos acometi dos inicialmente por metástases são os do grupo obturador da cadeia ilíaca externa. Em ge-ral, quanto maior e menos diferenciado o tumor, maior o risco de metástase linfáti ca. A avaliação linfonodal varia de N0 (ausência de comprometi mento) a N3 (múlti plas me-tástases de linfonodos de grande volume). A disseminação hematogênica acontece, em especial, para ossos, pulmão, fí gado e rins; os últi mos, mais tardiamente.

Pelo alto risco de metástase linfáti ca em pacientes com PSA acima de 30ng/mL, recomenda-se avaliação por tomo-

grafi a computadorizada, método com sensibilidade variável, de 30 a 70%, e especifi cidade ao redor de 70%, além de ser capaz de identi fi car linfonodos quando maiores que 2cm. Não se recomenda a tomografi a computa dorizada a pacien-tes com tumores de baixo grau e dosagens baixas de PSA.

Na suspeita de acometi mento linfonodal devido à elevação do PSA ou tumor de alto grau, muitos autores defendem a linfadene ctomia obturatória como estadia-mento. Alguns a defendem no mesmo tempo cirúrgico da prosta tectomia radical e análise por congelação ou como procedimento cirúrgico isolado. Tumores localmen-te avançados apresentam 35 a 46% de acometi mento linfonodal. A avaliação do acometi mento ósseo pelo tu-mor de próstata é feita pela cinti lografi a óssea (Figura 4), recomendada, sobretudo, a pacientes com PSA acima de 10ng/mL. Metástases ósseas ocorrem em 80% dos pacien-tes com doença avançada; 80%, lesões osteoblásti cas, 5%, osteolíti cas, e o restante, mistas; a cinti lografi a óssea é mais sensível do que a radiografi a simples do esqueleto (Figura 5) e detecta a metástase óssea, em média, 6 meses antes da alteração radiográfi ca.

Tabela 5 - Exames uti lizados no estadiamento do câncer de próstata

Exame Indicação

Tomografi a computa-dorizada

PSA >30ng/mL, pesquisa de metástase linfonodal acima de 2cm

Ressonância nuclear magnéti ca

Avaliação do acometi mento prostáti co, feixes vasculonervosos

Cinti lografi a óssea PSA >10ng/mL

Linfadenectomia obturatória PSA >20ng/mL, tumores de alto grau

Figura 4 - Cinti lografi a óssea demonstrando metástases difusas

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Figura 5 - Metástase em porção proximal do úmero

7. Tratamento Poucas doenças têm formas de tratamento tão varia-

das e eficientes, o que obriga o médico a decidir por uma conduta particularizada. Para definir a melhor conduta, é necessário avaliar a extensão da doença, a agressividade da neoplasia, a expectativa de vida, a presença de co-morbidades e a opção do paciente perante as vantagens e as possíveis complicações de cada tratamento. A seguir, serão discuti das as principais modalidades de tratamento e, posteriormente, a indicação conforme o estadiamento.

A - Observação vigilante ou conduta expectante

O câncer de próstata é altamente prevalente em idosos. Porém, frequentemente, o tumor apresenta comportamen-to biológico pouco agressivo, latente. Assim, pacientes mais velhos, principalmente com idade superior a 75 anos, não se benefi ciam com o tratamento radical, pois é mais comum morrerem de outras causas, mesmo na ausência de trata-mento para o câncer de próstata. Pacientes com outras co-morbidades graves, em que se confi rma expectati va de vida inferior a 10 anos, também podem apresentar essa mesma evolução. Para tais grupos, idosos e/ou com comorbidades graves, quando portadores de tumores com característi cas pouco agressivas, ou seja, escore de Gleason baixo e dosa-gem de PSA pouco elevada, é proposta a observação com avaliação periódica do PSA e toque retal.

B - Prostatectomia radical

O tratamento cirúrgico do câncer da próstata pela re-moção total da glândula foi proposto há muitos anos, po-rém ganhou impulso somente após os estudos de Walsh e Reiner, nos anos 1980 (Figuras de 6 a 9). A próstata é remo-

vida em bloco, junto com as vesículas seminais (Figura 10); o colo vesical é então reconstruído e anastomosado ao coto de uretra membranosa. A próstata pode ser acessada por via perineal, retropúbica, videolaparoscópica e mais recen-temente robóti ca. A via perineal é uti lizada em pacientes com anatomia pélvica favorável e PSA inferior a 10ng/mL, pois esse acesso não permite a dissecção dos linfonodos pélvicos, e a linfadenectomia pode ser omiti da nesse grupo. A via retropúbica é a mais frequentemente uti lizada, com a vantagem de permiti r a dissecção dos feixes vasculonervo-sos envolvidos no mecanismo da ereção. A prostatectomia radical robóti ca já é uma realidade em diversos centros na Europa, Estados Unidos e mais recentemente no Brasil, re-duzindo período de internação e taxas de transfusão, po-rém os benefí cios quanto à disfunção eréti l e à inconti nên-cia urinária ainda estão sendo avaliados.

Figura 6 - Anatomia cirúrgica da próstata

Figura 7 - Secção do complexo venoso dorsal e uretra

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Figura 8 - Preservação dos nervos eretores e tratamento do colo vesical após reti rada da peça

Figura 9 - Anastomose uretrovesical

Figura 10 - Produto de prostatovesiculectomia radical

A hemorragia, historicamente, tem sido a complicação intraoperatória mais comum e incômoda, porém os refi na-mentos técnicos permiti ram a redução substancial da perda sanguínea. Lesão retal é uma complicação rara, ao redor de 0,5%. A mortalidade perioperatória das grandes séries é de 0,5%. Trombose venosa profunda e tromboembolismo pul-monar são mais frequentes, pois há aumento da prevalência em pacientes oncológicos e submeti dos a cirurgias pélvicas.

A inconti nência urinária persiste como a mais temerosa complicação da prostatectomia radical. A dissecção cuida-dosa do ápice prostáti co e a preservação dos feixes vascu-lonervosos e da musculatura esfi ncteriana permiti ram a diminuição das taxas de inconti nência. Dados provenientes de grandes centros norte-americanos referem taxas de in-conti nência ao redor de 10%; na maioria dos homens, as perdas ocorrem aos grandes esforços.

Disfunção eréti l é a complicação mais frequente após prostatectomia radical e está relacionada à idade, estadio da neoplasia e preservação ou excisão dos feixes vascu-lonervosos. Diminuição da função eréti l, parcial ou total, acontece em até 70% dos pacientes, porém os refi namen-tos técnicos propostos por diversos cirurgiões demonstram reduções desses índices.

O candidato ideal para prostatectomia radical é o paciente com doença localizada, com característi cas biológicas agressi-vas, expectati va de vida de 10 a 20 anos e livre de graves co-morbidades. Optando-se por conduta conservadora, 50 a 75% de tumores com essas característi cas progredirão em 10 anos de acompanhamento, e, na ausência de tratamento, 13 a 20% desses pacientes evoluirão para óbito decorrente do câncer de próstata. Em doenças confi nadas à próstata, a prostatectomia radical oferece a maior chance de sobrevida livre de doença em longo prazo (85% em 15 anos). O PSA é também uti lizado no seguimento da prostatectomia radical, e valores inferiores a 0,2ng/mL são considerados como livre de doença.

C - Radioterapia

A radioterapia tem sido uti lizada no tratamento do cân-cer de próstata por décadas, pois está demonstrado que a doença é responsiva à radiação ionizante. Nos últi mos anos, a evolução nos métodos de imagem por tomografi a compu-tadorizada, reconstruções tridimensionais e o melhor en-tendimento da biologia molecular desse câncer permiti ram uma grande evolução no tratamento radioterápico, sendo introduzidos novos métodos, como a radioterapia confor-macional e a radioterapia de intensidade modulada, que permitem maior dose de radiação e melhores resultados.

Os resultados oncológicos são sati sfatórios e semelhan-tes aos da prostatectomia radical, porém, em geral, ligeira-mente inferiores. A comparação de resultados dos métodos é bastante difí cil, uma vez que, frequentemente, a radio-terapia é indicada a pacientes idosos e com tumores mais avançados. Grandes séries de radioterapia conformacional apresentam taxas de sobrevida livre de doença em 5 anos em torno de 75%. A braquiterapia também tem sido uti li-

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zada em indivíduos com adenocarcinoma de próstata com glândulas de tamanho normal e sem antecedentes de ma-nipulação cirúrgica (Figura 11).

O seguimento pós-radioterapia não é tão simples quan-to após a prostatectomia radical, uma vez que a próstata permanece in loco, infl uindo na dosagem do PSA durante o tratamento.

As principais complicações da radioterapia prostáti ca são: -Lesões actí nicas dos órgãos circunjacentes à próstata, como o reto e a bexiga; -Sintomas urinários cujas taxas estão ao redor de 5%; -Disfunção eréti l, cujas taxas, após 1 ano de procedimen-to, estão em torno de 50%, porém a resposta ao silde-nafi la é bastante sati sfatória (aproximadamente, 85%).

Figura 11 - Braquiterapia por agulha

D - Crioterapia

A aplicação de temperaturas extremamente baixas para o tratamento de câncer é bastante anti ga. Foi empregada para o tratamento de câncer de próstata inicialmente nos anos 1960; porém, apenas com a evolução dos métodos de imagem para o controle do processo de congelamento e dos equipamentos de congelação é que a técnica foi rein-troduzida no fi nal dos anos 1980. Atualmente, é uti lizada para pacientes com tumores localizados, localmente avan-çados e em recidivas após radioterapia, em que os resulta-dos e as complicações são bastante sati sfatórios.

Figura 12 - Modelo esquemáti co e punções perineais para criote-rapia

E - Hormonoterapia

Na década de 1940, Huggins e Hodges estudaram os efeitos da estrogenoterapia sobre o câncer de próstata, o que lhes rendeu o prêmio Nobel em 1946. Desde então, o bloqueio androgênico tem sido uti lizado no tratamento do câncer de próstata, principalmente nas formas metastáti cas da doença.

Os andrógenos são produzidos, principalmente, pelas células de Leydig, localizadas nos testí culos, e em menor quanti dade no córtex adrenal. A produção desses hormô-nios é esti mulada pelos hormônios hipofi sários LH, FSH e ACTH. O tratamento hormonal visa à interrupção direta da produção ou à redução do estí mulo hipofi sário para dimi-nuir a produção de andrógenos.

Os mecanismos uti lizados para o bloqueio são: -Castração cirúrgica pela orquiectomia bilateral; -Agonistas parciais dos hormônios hipofi sários (LHRH); -Esteroides anti androgênicos (glutamida, cipro terona); -Estrogenoterapia.

O bloqueio androgênico promove a apoptose das célu-las cancerosas, com redução da massa tumoral, regressão das metástases e diminuição dos níveis de PSA. Contudo, pela presença de células cancerosas hormônio-resistentes, essa forma de tratamento não é curati va, mas promove me-lhora dos sintomas urinários obstruti vos e redução da dor óssea e, até mesmo, da compressão medular por metásta-ses vertebrais na fase inicial do tratamento.

Os principais efeitos colaterais do bloqueio androgênico são anemia, osteoporose, diminuição da libido, disfunção eréti l e ondas de calor.

F - Quimioterapia

Recentemente, demonstraram-se benefí cios da quimio-terapia em portadores de câncer de próstata hormônio-

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-resistente, uti lizando docetaxel associado a estramusti na ou prednisona. Houve aumento da sobrevida dos pacientes quando comparados aos esquemas anti gos. Entretanto, o melhor momento para a uti lização da droga ainda não foi defi nido, e estudos maiores, multi cêntricos, ainda são ne-cessários para defi nirem a efi ciência do tratamento.

8. Prognósti coComo já comentado, o prognósti co do câncer de prós-

tata está inti mamente relacionado às característi cas do tu-mor, o que atualmente se avaliam por fatores como escore de Gleason, estadiamento etc., assim como condições clíni-cas e díade. Neoplasias de baixa agressividade em muitos idosos ou portadores de graves comorbidades geralmen-te não trazem prejuízo à sobrevida ou qualidade de vida. Contudo, neoplasias indiferenciadas ou metastáti cas apre-sentam evoluções extremamente desfavoráveis. A seguir, a descrição de tratamentos e evolução mais frequentes das situações mais comuns dos indivíduos com adenocarcino-ma de próstata.

Tabela 6 - Evolução por tratamento e característi cas da neoplasia

Característi cas/estadiamento Tratamento Evolução

Tumores locali-zados, Gleason <7

- Prostatectomia radical, radiote-rapia, observação vigilante em casos selecionados.

- >10 anos.

Tumores locali-zados, Gleason ≥7

- Prostatectomia radical, radioterapia em pacientes mais idosos.

- Recidiva mais co-mum, sendo neces-sário tratamento adicional.

Tumores localmente avançados

- Radioterapia com-binada com hormo-noterapia; prosta-tectomia radical em casos selecionados (melhor controle local da doença).

- Doença metastáti ca após alguns anos do tratamento inicial.

Tumores metastáti cos

- Hormonoterapia;- Quimioterapia na

falha hormonal;- Cuidados paliati vos.

- Prognósti co reserva-do, raramente supe-rior a 5 anos.

9. Tratamento

Sintomas ou exame preventivo

Diagnóstico confirmado por elevação de PSA ou alteração no toque retal

Câncer pequeno e restrito à

próstata

Câncer volumoso ainda restrito à

próstata

Invasão dos tecidos peri-prostáticos

Metástase óssea ou linfonodal prostáticos

Observação vigilante,

radioterapia ou cirurgia

Cirurgia se boas condições

clínicas/jovem

Avaliar tratamento adjuvante com radioterapia ou hormônio

Hormonoterapia e tratamento dos

sintomas/obstrução

10. ResumoQuadro-resumo

Diagnósti co

- Doença localizada – elevação do PSA, toque retal suspeito;

- Doença localmente avançada – sintomas urinários, hematúria;

- Doença metastáti ca – dor óssea, obstrução urinária.

Tipo histológico

- Adenocarcinoma.

Estadiamento

- Depende do PSA e achados no toque retal – tomografi a, resso-nância, cinti lografi a.

Tratamento – depende do estadio e das condições clínicas do paciente

- Doença localizada – prostatectomia radical ou radioterapia;

- Doença localmente avançada – radioterapia, associada à hor-monoterapia;

- Doença metastáti ca – hormonoterapia.