gaspar, o dedo diferente

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Ana Luísa Amaral Ilustrações de Abigail Ascenso Gaspar, o dedo diferente

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leitua infantil

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Page 1: Gaspar, o Dedo Diferente

Ana Luísa Amaral

Ilustrações de Abigail Ascenso

Gaspar,

o dedo diferente

Page 2: Gaspar, o Dedo Diferente

Era uma vez um dedo

indicador chamado Gaspar,

que vivia numa certa mão

chamada Josefina. O

Gaspar tinha dois irmãos e

duas irmãs: a Lili , a mais

gordinha; a Mariana, a do

meio; o Miguel, que se

chamava assim para rimar

com anel; e o Jorginho, o

mais pequenino.

Page 3: Gaspar, o Dedo Diferente

Por sua vez, a Josefina, Lili, Gaspar, Mariana,

Miguel e Jorginho viviam todos num corpo

que se chamava Rita. Em frente, noutra mão,

viviam cinco primos, e, quando a Rita pegava

numa bola grande, ou cruzava as mãos, ou

batia palmas de contente, havia grandes

reuniões de família.

Page 4: Gaspar, o Dedo Diferente

O Gaspar considerava-se um dedo feliz. Como o

corpo a que pertencia era ainda pequeno, o

trabalho do Gaspar era muito importante. A Rita

passava o dia a dizer: “Olha, um cão” (e usava o

Gaspar para apontar o cão), “Olha, olha a Lua” (e

lá ia o Gaspar), “Olha, mamã, olha uma nuvem

tão grande” (e o Gaspar lá estava, mais perto da

nuvem que os outros irmãos).

Page 5: Gaspar, o Dedo Diferente

Mas um dia aconteceu que a Rita, ao ir pela rua a

saltar junto da mãe, escorregou.

O passeio estava cheio de pedrinhas brilhantes e

o Gaspar tinha estado muito entretido a vê-las,

comentando com os irmãos como elas eram

bonitas, de maneira que, quando o corpo perdeu

o equilíbrio, o Gaspar foi completamente tomado

de surpresa.

Page 6: Gaspar, o Dedo Diferente

E daí a pouco foi a confusão: a Rita a chorar, a

Josefina toda torcida no chão e, debaixo da

Josefina, mais torcido que os irmãos e irmãs, o

Gaspar. Com sangue. E cheio de dores.

Page 7: Gaspar, o Dedo Diferente

Um golpe grande, a cabeça da unha levantada, e

dezenas de pedras pequeninas enterradas na carne.

Como o choro não passava, a mãe pegou na Rita ao

colo, levou-a para casa, meteu-a no carro, e aí foram

elas para o hospital mais perto.

Page 8: Gaspar, o Dedo Diferente

Que triste estava o Gaspar!

Por outro lado, mesmo no meio da dor, era a sua primeira

vez num hospital e tudo lhe despertava curiosidade – o

branco das roupas, o cheiro, o chão todo feito de quadrados

de mármore.

Depois, foi a médica a olhar a mão da Rita e a comentar:

“Podias ter-te magoado mais, se não tivesses posto a mão à

frente.” E o Gaspar sentiu-se assim quase como um herói.

Mas as dores eram maiores do que o orgulho.

Page 9: Gaspar, o Dedo Diferente

Quando ouviu a médica dizer:

“Vamos lá ver a unha”, o

Gaspar ficou branco. Quando

ela acrescentou: “O saibro tem

que ser limpo”, o Gaspar (que

não sabia o que era saibro, mas

perceber a ideia) sentiu-se

enjoado e tonto. Mas quando a

médica disse: “Pois é, Rita, a

ferida é funda, tens de levar

aqui dois pontinhos”… aí, o

Gaspar desmaiou e já não a

ouviu acrescentar “mas não

vais sentir nada”.

Page 10: Gaspar, o Dedo Diferente

Acordou para uma picadela fininha, que pouco lhe

doeu, mas que trazia consigo um cheiro forte que o

fez adormecer outra vez. (O Gaspar não sabia. Mas

tinha sido anestesiado.)

Sonhou então que estava numa terra de luvas às

bolinhas e aos quadrados. O Sol era uma luva com

muitos dedos, todos amarelos e brilhantes, e as

árvores, em vez de folhas, eram luvas de neve. Um

sonho tão bonito que, quando acordou, teve vontade

de chorar. É que acordar para uma dor daquelas não

era nada agradável. E depois sentia-se tão quente…

E pouco conseguia ver!

Page 11: Gaspar, o Dedo Diferente

Ouviu o Jorginho espantado, exclamar:

– Estás tão bonito! Que linda roupa!

E a Lili fez-lhe uma festa na cabeça e só

disse:

– Aaah!

Os outros olhavam-no com assombro. O

Gaspar não percebia.

– É que estás todo vestido de branco –

disse-lhe a Mariana. – Chapéu e tudo.

Pareces um daqueles senhores que

vimos há pouco, agora aqui…neste sítio.

(Ela queria dizer os médicos e as

médicas, as enfermeiras e os

enfermeiros do hospital, mas eles eram

ainda dedos pequeninos e essas

palavras não existiam no seu

vocabulário.)

Page 12: Gaspar, o Dedo Diferente

O Gaspar continuava a não entender. Foi só quando

chegou a casa e a Rita passou em frente da montra

grande da loja que ficava por baixo, a montra para onde

ela costumava fazer caretas sempre que saía de manhã,

que o Gaspar se viu reflectido e finalmente percebeu.

Page 13: Gaspar, o Dedo Diferente

Estava todo enrolado num tecido fininho e

muito branco. Em casa, a mãe explicou à

Rita que o tecido se chamava gaze. Mas para

o Gaspar, gaze, mercurocromo, ou China era

tudo a mesma coisa.

Page 14: Gaspar, o Dedo Diferente

O que importava mais, para o

Gaspar, não era a gaze, embora

estar vestido de uma coisa com

um nome assim já desse um

certo respeito. Não que fosse a

primeira vez que o Gaspar se

vestia: ele conhecia luvas, a

Josefina usava-as quando

estava frio. Mas uma roupa

assim, tão bonita, tão

diferente…

Até a dor lhe doeu menos.

Page 15: Gaspar, o Dedo Diferente

E nessa noite, em vez do sonho das luvas, o Gaspar sonhou com muitos dedos a

brincar, todos vestidos às cores com aquela coisa a que eles chamavam… como era?...

Ah… gaze. Mas, no seu sonho, o Gaspar era o único de branco.

Page 16: Gaspar, o Dedo Diferente

O melhor de tudo, se é que pudesse haver

ainda melhor, foi que, durante uma semana

inteirinha, a gaze era mudada, de maneira que

todos os dias o Gaspar andava muito

limpinho. Claro que, quando chegava a noite,

a gaze já tinha uma ou outra mancha, um

bocadinho de chocolate, um pingo de sumo…

Mas logo de manhã era o luxo: uma roupa

toda nova!

Page 17: Gaspar, o Dedo Diferente

No fim da semana, o Gaspar, os irmãos, as

irmãs, a Josefina, a Rita e a mãe foram

outra vez ao hospital. E a roupa do Gaspar

foi tirada. As coisas boas demoram pouco

tempo a criar hábitos, de forma que o

Gaspar, quando ficou assim, sem roupa

nenhuma, pensou sentir um arrepio.

- Brrr, que frio! Disse ele aos outros. Mas

era exagero, era para prolongar aquela

sensação de ter tido roupa nova, branca,

de ter sido diferente uma semana inteira.

Page 18: Gaspar, o Dedo Diferente

Depois, o Gaspar viu aproximar-se, na mão da médica, uma espécie de tesoura. E

sentiu outra vez aquele desfalecimento, aquela coisa de ficar agoniado e tonto.

Quase começou a chorar, mas depois lembrou-se de quando tinha tido a roupa nova,

e de ser um quase herói, e da semana inteira com a gaze, e de como os irmãos e

irmãs e a Josefina ficariam orgulhosos dele…

Lembrou-se, sobretudo, de como tinha sido diferente. E esperou.

Page 19: Gaspar, o Dedo Diferente

As duas linhas com nós nas pontas foram tiradas, um bocadinho de um líquido

vermelho caiu em cima do Gaspar, a médica disse a rir à Rita:

-Vês, não custou nada.

A mãe deu-lhe um beijinho, e pronto. O Gaspar já não tinha dores. Só muita comichão.

E, quando se olhou, viu na barriga dois pontinhos pretos.

Page 20: Gaspar, o Dedo Diferente

E teve uma esperança: será que eram para ficar? As suas

marcas de quase herói, de quando tinha salvo a Rita de aleijar

uma parte que os outros diziam ser mais importante que ele

próprio, ou os seus irmãos, ou as suas irmãs, ou a Josefina…

Essa parte era a cabeça da Rita.

Page 21: Gaspar, o Dedo Diferente

E foi então que o Gaspar, de repente, percebeu, embora só tivesse seis anos,

que afinal, no mundo, não era só ele e a sua mão que contavam, mas que viviam

num corpo e faziam parte dele, como uma janela não serve para nada se for só

janela: precisa de ter casa, de ser casa, mesmo sendo também janela. E os seus

dois pontinhos pretos eram o sinal de que a Rita tinha chorado antes, de que a

cabeça da Rita tinha sentido por dentro uma coisa que se chamava dor.

Page 22: Gaspar, o Dedo Diferente

E que agora, na comichão que ele

sentia, a cabeça da Rita sentia alegria.

Por isso a Rita ria tanto quando a

médica lhe deu um rebuçado; por isso

a Rita saltitava tão contente, já fora do

hospital, agarrada à mão da mãe.

Page 23: Gaspar, o Dedo Diferente

Nessa noite, o Gaspar, em vez de

sonhar com luvas às bolinhas e aos

quadrados, ou com dedos coloridos,

sonhou com meninas e meninos, todos

numa roda. E na roda estava a Rita, e

ao lado da Rita outra menina. Um dos

dedos da mão da menina tinha também

pontinhos pretos (três! notou o

Gaspar), com certeza por ela ter caído

também. E os pontinhos pretos da

barriga do Gaspar tocaram nos pontos

do outro dedo.

Page 24: Gaspar, o Dedo Diferente

– Olá - disse o dedo.

E depois, naturalmente, com ar de quem

encontra um irmão ou irmã, perguntou ao

Gaspar:

– Como é que isso te aconteceu? – referindo-

se, naturalmente, às duas marcas pretas.

Todos os dedos das meninas e dos meninos

olharam para eles.

O Gaspar, apesar de saber que se devia

sentir igual aos outros, não conseguiu evitar

sentir-se diferente, e teve vontade de gritar:

“Olhem os meus dois pontinhos negros!”,

com muito orgulho e muita alegria.

Page 25: Gaspar, o Dedo Diferente

E depois pensou que o que lhe tinha acontecido a ele podia ter

acontecido também à Lili, ao Miguel, à Mariana ou ao Jorginho, ou até

à cabeça da Rita ou à dos outros meninos; que os pontinhos que o

faziam agora tão diferente podiam ser também dos outros ou fazer

parte deles. Ali mesmo, dentro do seu sonho, o Gaspar voltou-se para

o outro dedo. E em voz alta, já sem orgulho, nem medo da troça dos

outros, afinal diferentes mas iguais, o Gaspar

começou a contar a sua história.