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5/25/2018 GarotoBook-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/garoto-book 1/125  CELSO TENÓRIO DELNERI O VIOLÃO DE GAROTO A escrita e o estilo violonístico de Annibal Augusto Sardinha São Paulo 2009

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  • CELSO TENRIO DELNERI

    O VIOLO DE GAROTO

    A escrita e o estilo violonstico de

    Annibal Augusto Sardinha

    So Paulo 2009

  • CELSO TENRIO DELNERI

    O VIOLO DE GAROTO

    A escrita e o estilo violonstico de

    Annibal Augusto Sardinha

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Artes, rea de Concentrao

    Processos de Criao Musical, Linha de

    Pesquisa Tcnicas Composicionais e Questes

    Interpretativas, da Escola de Comunicaes e

    Artes da Universidade de So Paulo, como

    exigncia parcial para obteno do Ttulo de

    Mestre em Artes, sob a orientao do Prof. Dr.

    Edelton Gloeden.

    So Paulo

    2009

  • BANCA EXAMINADORA:

    Presidente:

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Edelton Gloeden (Orientador)

    1 Examinador:

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr. Gilmar Roberto Jardim

    2 Examinador:

    ____________________________________________________________

    Prof. Dr.

  • Dedico este trabalho com respeito e

    considerao aos principais responsveis

    pela preservao e recuperao do nome e

    da obra de Annibal Augusto Sardinha,

    Garoto.

    Aos professores e violonistas

    Ronoel Simes,

    Geraldo Ribeiro

    e

    Paulo Bellinati

  • Agradecimentos

    Aos amigos violonistas que influenciaram nosso caminho musical, em

    especial meus professores de violo Marco Antonio Guimares e Isaas Svio,

    nos primeiros momentos de deciso pela msica, e na retomada da estrada

    violonstica, Cristina Azuma, Paulo Bellinati e Edelton Gloeden

    Aos meus familiares, amigos, msicos e professores de uma lista

    infindvel de nomes inesquecveis e fundamentais em nossa vida.

    Aos meus alunos que me ensinaram que a vida pode ser sempre nova e

    renovada.

    Canoa do rio escuro,

    Na madrugada de estrelas,

    Corre gua, terra e vento,

    Um dia a gente vai se encontrar

    Thiago de Mello (Barreirinha, AM, 1926)

  • Resumo:

    Annibal Augusto Sardinha, Garoto (1915 - 1955) foi um msico

    formado na tradio das rodas de choro, dos pequenos conjuntos de msicos

    do rdio e gravadoras, nas dcadas de 1930 a 1950. Uma anlise de sua obra

    para violo solo, em especial os choros, denota um compositor avanado para

    o seu tempo e que indicou novos caminhos para o violo brasileiro e para a

    msica popular urbana.

    Abstract:

    Annibal Augusto Sardinha, Garoto (1915 1955) made his music

    carreer in the small groups of choro working for radio stations and studios,

    beyond 1930s to 1950s. His guitar solo works, mainly the choros, give us the

    mark of a forefront composer of his time indicates new paths for the brazilian

    guitar and the popular music.

  • SUMRIO

    INTRODUO ----------------------------------------------------------------- 1

    1. GAROTO ----------------------------------------------------------------- 8

    1.2 _ A potica de Garoto ------------------------------------- 11

    1.2 - Garoto e o violo brasileiro ------------------------------------- 12

    1.3 - Mtodos Prticos ------------------------------------- 22

    1.4 - Problemtica Editorial ------------------------------------- 26

    2. OS CHOROS -------------------------------------------------------------- 30

    2.1 - A Intuio ------------------------------------- 32

    2.2 - O Choro Moderno ------------------------------------ 39

    2.2.1 - A Caminho dos Estados Unidos ----------------------- 40

    2.2.2 Carioquinha ----------------------- 50

    2.2.3 Choro Triste N2 ----------------------- 57

    2.3 Choros Enigmticos ------------------------------------ 63

    2.3.1 Enigma ------------------------------------ 64

    2.3.2 Nosso Choro ------------------------------------ 71

    2.3.3 Sinal dos Tempos ------------------------------------ 76

    2.4 Os Choros Tpicos ------------------------------------ 83

    2.4.1 Tristezas de um Violo ------------------------------------ 84

    2.4.2 Jorge do Fusa ------------------------------------ 87

    2.4.3 Gracioso ------------------------------------ 90

  • 3. SAMBA ------------------------------------------------------------- 93

    4. GAROTO E RADAMS ----------------------------------------------------- 94

    4.1 Toccata em Ritmo de Samba N1 ---------------------------------- 94

    4.2 Estudo X ------------------------------------ 95

    5. PRELDIO ------------------------------------------------------------ 98

    6. VALSAS E CANES ------------------------------------------------------- 102

    CONCLUSO ------------------------------------------------------- 106

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ----------------------------------- 108

    ANEXOS (entrevistas)

  • 1

    INTRODUO

    Inicialmente, gostaramos de ressaltar que o presente trabalho teve origem e foi se

    delineando a partir de nossa experincia concreta com a msica para violo solo de Annibal

    Augusto Sardinha, Garoto (So Paulo,1915- Rio de Janeiro,1955). O violo tem sido o

    instrumento que tem centralizado nossa dedicao profissional, como intrprete,

    compositor e professor. Antes mesmo de uma formao acadmica em composio e

    regncia, o estudo do violo constituiu uma base slida em nossa formao musical, atravs

    da prtica da msica popular, aulas de teoria e solfejo e de um estudo sistemtico da msica

    clssica para violo, sob a orientao e aulas particulares com o professor Isaas Svio

    (Montevidu, 1900 - So Paulo, 1977), no decorrer da dcada de 60. Aps um perodo, no

    qual nossa atividade profissional esteve tambm concentrada na formao e direo de

    coros e no ensino de matrias tericas, o violo tem sido resgatado e foi ocupando um

    espao fundamental em nossa carreira. Um estudo contnuo e regular do instrumento foram

    necessrios, com a finalidade de atualizao do repertrio e reviso tcnica. Esse estudo

    exigiu uma aproximao do estudo da msica dos compositores do perodo clssico

    europeu (Carcassi, Sor, Giuliani), o aprendizado atravs da escola tcnica de Francisco

    Trrega e seus seguidores e a experincia do repertrio erudito dos compositores

    representantes das tendncias mais importantes do violo do sculo XX.

    O violo brasileiro define suas bases atravs de um repertrio de composies

    originais de grande fundamento tcnico e esttico. Desde o princpio do sculo XX,

    violonistas e compositores vm contribuindo de forma decisiva para a criao de uma

    escola que surge da prtica da msica popular urbana e de bases slidas da msica

    clssica. A msica para violo solo de Annibal Augusto Sardinha sempre esteve entre as

    peas de nosso trabalho e estudo. O interesse pelo violo brasileiro intensifica-se, atravs

    do conhecimento do repertrio dos compositores contemporneos do gnero,

    principalmente a obra de Paulo Bellinati (1950) e Marco Pereira (1950). Participar de rodas

    de choro e conjuntos de diversas formaes tambm esteve presente, em vrios momentos,

    desse reencontro com o violo.

    Atualmente, e aps vrios anos, procuramos manter as peas de Garoto, em nosso

    repertrio de recitais, resgatando e interpretando sua obra integral para violo solo. Como

  • 2

    uma espcie de homenagem, resultante da convivncia com essa msica, surge a pea de

    nossa autoria com o ttulo Moleque Sapeca (DELNERI, 1995), publicada na revista

    especializada Violo Intercmbio, procurando exprimir um samba esperto, gil e

    malandro. A influncia de Garoto evidente em pequenos detalhes da escrita e no estilo do

    samba carioca (PEREIRA, 2006). O projeto e a realizao desta dissertao de mestrado,

    que ora apresentamos, resulta de uma natural da aproximao com a msica de Annibal

    Augusto Sardinha, Garoto.

  • 3

    No presente trabalho, vamos levantar elementos que possam definir uma linguagem

    musical que se estabelece, a partir de uma anlise de aspectos originais e procedimentos

    recorrentes, no conjunto das peas para violo solo de Garoto. Essa abordagem depender

    de diversas ferramentas de anlise e estruturao musical, as quais so necessrias para

    fundamentar nossos argumentos e justificar nossos pontos de vista e consequentes

    concluses.

  • 4

    A obra para violo solo de Garoto esteve sempre reconhecida como um conjunto de

    muita importncia para a msica instrumental brasileira. Trata-se de um repertrio de

    profunda complexidade que, utilizando elementos tcnicos do violo clssico, vem colocar

    a msica popular brasileira, tais como o choro e a valsa, o samba, a cano e o preldio,

    numa posio de vanguarda em relao ao seu tempo.

    Graas ao esforo e a dedicao de Geraldo Ribeiro (1939), foram publicadas

    partituras da msica de Garoto com o ttulo lbum para Violo dos Grandes Sucessos de

    Anbal Augusto Sardinha (Garoto) (1979), alm do disco em LP Garoto por Geraldo

    Ribeiro, de 1980. Em 1991, Paulo Bellinati, aps mais de 10 anos de recolhimento de

    manuscritos, audio e transcries de gravaes (de diversas fontes), edita e grava uma

    importante coleo de toda a obra para violo solo de Garoto. A publicao das partituras

    The Guitar Works of Garoto ser sempre a base e a fonte principal para a realizao da

    presente dissertao. (BELLINATI, 1991, vol.1 e 2)

    Uma abordagem terica e esttica obra para violo solo de Annibal Augusto

    Sardinha, o Garoto, com o objetivo de desenvolver uma dissertao de mestrado,

    resultado de uma constante leitura e interpretao ao violo, atravs de aulas e de recitais

    realizados pelo autor, desde sua publicao em 1991. A convivncia com tal obra com a

    simples inteno de aprender esse repertrio, a partir da edio em partituras de Paulo

    Bellinati, pouco a pouco foi se mostrando como um material de interesse musical singular.

    O presente trabalho deve ressaltar a importncia da msica de Garoto, atravs da

    anlise dos procedimentos composicionais adotados pelo compositor, com enfoque

    predominante nos choros para violo solo. Essa obra ultrapassa a existncia do seu tempo.

    Descrita, por msicos e parceiros de Garoto, como criador de uma obra moderna, no

    sentido de que utiliza elementos inovadores, no gnero da msica popular brasileira urbana,

    Mais do que um conceito esttico, empregamos o termo moderno no sentido de que esse

    repertrio apresenta caractersticas marcantes e que estaro presentes no universo do ento

    chamado violo brasileiro.

    Os procedimentos composicionais e os recursos tcnicos que envolvem a msica de

    Garoto para violo colocam-nos diante de uma obra que define um estilo musical, uma

    sonoridade e um modo de execuo que so encontrados, de maneira bem integrada e

    fluente, na produo popular e erudita do violo. Garoto, como profissional da msica,

  • 5

    esteve sempre imerso no ambiente musical da chamada Era do Rdio, na qual a

    transmisso radiofnica dependia de uma atitude artstica de muita agilidade e exigia um

    talento bem desenvolvido para a improvisao. O Rdio era uma verdadeira escola do

    improviso no somente para a msica, mas em todas as reas afins.

    ... o rdio abandona no plano musical a sua tentativa de difundir a

    msica erudita, transformando-se no grande veculo de difuso da

    msica popular gravada em disco e, a partir da dcada de 1930, a

    msica popular apresentada ao vivo nos estdios e auditrios. Com o

    advento de grandes programas de palco, dirigidos a uma platia

    presente, na dcada de 1940 (os chamados programas de auditrio,

    iniciados em agosto de 1938 por Almirante (Henrique Freis

    Domingues, 1908-1980). com o seu Caixa de Perguntas, que levaram a

    suprimir os vidros que isolavam o pblico dos artistas), surgiram as

    grandes orquestras de rdio, dirigidas por maestros arranjadores. Essas

    orquestras passaram a divulgar um tipo de vestimenta musical popular

    mais sofisticada, ento restrita ao pblico do teatro musicado dos

    grandes centros. No perodo ureo do rdio, entre os anos 1940 e 1950,

    apenas a Rdio Nacional, do Rio de Janeiro, mantinha em seu quadro de

    funcionrios quase uma centena de msicos e nada menos de 16 regentes

    arranjadores, entre os quais Andr e Radams Gnattali, Lrio Panicali,

    Ercole Vareto, Chiquinho (Francisco Duarte), Romeu Ghipsman Patan,

    Leo Peracchi, Alberto Lazzoli, Romeu Fossati, Zimbres, Severino Filho e

    Moacir Santos. Na rea dirigida s grandes camadas brasileiras de

    menor exigncia cultural, o rdio contribuiu, desde o incio da dcada de

    1930, para o aparecimento e proliferao de um tipo de grupamentos

    musicais denominados conjuntos regionais (depois chamados

    simplesmente regionais). Esses conjuntos nada mais representavam

    do que velhos grupos de choro, acrescidos da percusso exigida a partir

    da popularizao da moderna msica de Carnaval (marcha samba e

    batucada) e dos muitos gneros derivados do samba (samba-choro,

    samba-cano, samba de breque etc.) (in, Enciclopdia da msica

    brasileira: erudita, folclrica e popular, 1998, p.660)

  • 6

    A formao musical de Garoto estende-se desde a prtica musical do rdio a das

    gravadoras de sua poca at sua procura por um estudo aprofundado do violo erudito, dito

    violo por msica, isto , a msica escrita em partitura. Portanto, o limite de sua msica

    alcana dimenses estticas que esto alm das necessidades pragmticas da profisso.

    Pelas composies de Garoto, percebemos uma expresso artstica que justifica o interesse

    de uma obra que ultrapassa o seu tempo. A sua escrita musical, em partituras manuscritas

    demonstra um conhecimento tcnico da orquestrao ao violo. A esse material somam-

    se os registros em gravaes do prprio autor; podemos perceber um msico compositor e

    intrprete de slida formao musical e maduro domnio tcnico.

    A partir dos anos 1930, apresentam-se as caractersticas de um ambiente musical

    bem definido, nos grandes centros da msica popular urbana: Rio de Janeiro e So Paulo.

    Poderamos detalhar e ressaltar aspectos que de muito ultrapassaria as dimenses do

    presente trabalho. Uma histria do rdio no Brasil poderia se transformar, facilmente, em

    uma imensa coleo. Gostaramos de definir uma terminologia, que at hoje pode ser

    aplicada na referncia a um gnero musical que ganhou fora desde a chamada era do

    rdio e se desenvolveu at os dias atuais: a msica popular urbana. Esse gnero vem

    utilizar elementos sonoros resultantes de uma prtica musical e a atividade profissional do

    msico, nos grandes centros, no s no Brasil. Firmaram-se, nesse ambiente, os gneros da

    msica instrumental e vocal, que se desenvolveram a partir dessa convivncia musical onde

    o improviso e a espontaneidade seriam os atributos necessrios formao dos msicos

    inseridos nesse cenrio. Uma potica prpria resultaria dessa efervescncia de gneros

    musicais. A msica erudita e a msica popular urbana tiveram a oportunidade de

    aproximao e de influenciarem-se mutuamente. Nesse universo, surge um msico dos

    mais requisitados como instrumentista do violo, cavaquinho, bandolim, violo tenor e

    outros dessa imensa famlia dos instrumentos do regional de choro: Annibal Augusto

    Sardinha, o Garoto.

    Em sua obra para violo solo, encontramos elementos de uma potica musical

    integrada ao universo da msica popular urbana. Partiremos, portanto, de uma leitura dessa

    msica, atravs de um exame comparativo dos aspectos musicais que levantaremos a partir

    das partituras editadas e manuscritos publicados.

  • 7

    Garoto, apesar de representar uma classe de msicos de performance de alto nvel, parece ter se deparado com dificuldades em organizar seu trabalho como compositor. No

    ambiente em que viveu, tambm deixou um incontvel nmero de choros, valsas, polcas,

    maxixes e todo o tipo de msica inserida na prtica cotidiana dos conjuntos regionais. A

    escrita dessa msica, muitas vezes, chega a nossas mos atravs de coletneas no autorais,

    editadas com critrios discutveis quanto autenticidade, ou mesmo sem critrios precisos

    do registro das melodias. A maioria desses livros apresenta uma notao da harmonia por

    cifras, nas qual se perdem detalhes importantes, percebidos apenas pelas gravaes

    existentes. De qualquer forma, um ponto parece surgir como matria para futuras

    indagaes: a relao dos msicos e o mercado editorial no Brasil.

    No so raros os depoimentos de msicos intrpretes, pesquisadores e crticos da

    msica popular brasileira, que apontam Annibal Augusto Sardinha como quem abriu os

    caminhos para a Bossa Nova. Este tema ser abordado com respeito, considerando que

    existem correspondncias evidentes entre a msica de Garoto e as tendncias musicais que

    o sucedem, ainda na dcada de 50. Porm, consideramos que essa tarefa exigiria uma

    pesquisa de grande flego e de dimenses que ultrapassariam, de longe, os limites do

    presente trabalho. Com A Escrita e o Estilo Violonstico de Garoto, vamos percorrer os

    caminhos internos de sua msica. Abordaremos apenas os aspectos musicais, observados a

    partir das peas escritas em partituras recuperadas. Com prtica da interpretao ao violo

    dessa msica manipulamos todos os detalhes que podem passar pelos dedos do violonista,

    sugerindo uma anlise comparativa dos recursos composicionais que podem definir uma

    linguagem e um estilo do violo brasileiro.

    Com essa forma de aproximao com a msica de Garoto, atravs da execuo viva,

    acreditamos apontar para um entendimento do fenmeno musical, a partir de uma audio

    partir da execuo, traduzida para nosso ouvido interno pelo canal da manipulao e

    convivncia concreta com as msicas e suas relaes de semelhanas, que podem definir os

    elementos de um estilo, ou contrastes caractersticos da busca pelo novo, de uma escrita

    violonstica adaptada a um gnero, mas com traos de uma linguagem que deu origem ao

    moderno violo brasileiro.

  • 8

    1. GAROTO

    Garoto foi um artista inquieto e instigante. Um artista devotado ao violo

    acompanhador, soube fazer seu ofcio com uma conscincia artstica de alto nvel. Os

    registros fonogrficos e as imagens de filmes mostram uma personalidade alegre e

    extrovertida. A respeito da amizade de Garoto e Radams Gnattali, Ronoel Simes cita o

    fato de que o violo que o Garoto tocava era um Di Giorgio que Gnattali tinha lhe

    emprestado. O professor Ronoel, fala mais sobre Garoto:

    O Garoto dava poucas aulas, mas foi professor de Carlos Lyra,

    influenciando a Bossa Nova com os acordes e seqncias

    harmnicas que se consagraram como um estilo novo de pensar a

    msica. Essa influncia foi verdadeira e definitiva. Acredito que

    Garoto foi precursor da Bossa Nova, desde 1939. (SIMES,

    2007, entrevista)

    A participao do violonista Annibal Augusto Sardinha na viagem artstica de

    Carmen Miranda foi condicionada ao destaque de seu nome nos programas, cartazes e toda

    a mdia da poca. Os shows eram anunciados como Carmen Miranda, Bando da Lua e

    Garoto. ...Garoto vai, e se constitui num sucesso parte. (ANTONIO; PEREIRA, 1982,

    p.33). Aliado ao fato de que Garoto teve dificuldades em obter visto para futuras viagens

    aos Estados Unidos, o acordo de colocar seu nome em destaque esteve em discusso e foi,

    num segundo momento, negado nos contratos com a cantora, o que veio a ser motivo de

    uma recusa definitiva do msico, em seguir esse caminho.Pode-se considerar que Garoto

    havia alcanado um reconhecimento artstico pelo seu trabalho musical. Essa posio no

    mais permitiria a concesso de permanecer apenas como msico acompanhante, sem

    nenhum destaque. Essa conscincia profissional e autoestima podem definir um carter

    ntegro que se espelha no trabalho de compositor que mantm forte trao de originalidade.

    Podemos considerar que a intensidade de trabalho como msico muito requisitado afastava

    Garoto de se dedicar ao violo e a composio, de forma concentrada. As gravaes que

    chegaram at ns, mostram um msico que executava com virtuosidade bandolim, violo-

    tenor e toda a famlia dos violes brasileiros.

  • 9

    A partir de 1944, ano que Garoto passou a trabalhar na orquestra da Rdio Nacional,

    sob direo do Maestro Radams Gnattali (1906-1988), notamos uma direo profissional

    cada vez mais dedicada ao violo, consagrada pela estria do Concertino N2, de Gnattali,

    arranjador de grande originalidade, participando de formaes consagradas como a do

    Trio Surdina, com Faf Lemos (Rafael Lemos Jnior) e Chiquinho do Acordeon (Romeu

    Seibel). (ANTONIO, e PEREIRA, 1982). A recuperao pstuma de gravaes como no

    LP Garoto revive Ary (ODEON, 1957), mostram um violonista raro que demonstra um

    domnio maduro do instrumento. O chamado violo brasileiro comea um longo caminho

    de afirmao artstica e musical. Garoto passa a determinar o que podemos chamar de um

    novo violonismo1.

    Garoto foi um msico profissional. Esse termo, usado de forma corriqueira,

    pretende diferenciar os msicos diletantes, amadores, dos que atuam como profissionais da

    msica. Esse critrio no deveria subentender uma escala de valor artstico do msico, o

    que tornaria subjetiva e, muitas vezes, preconceituosa, essa classificao.

    A obra de Garoto, conhecida por edies de partituras ou registros fonogrficos de

    vrias fontes, denota uma vida de um msico profissional na escala mais alta do valor e do

    reconhecimento artstico de seu trabalho. Devemos apontar que o mistrio que envolve a

    cronologia das composies de Annibal Augusto Sardinha est relacionado sua intensa

    atividade como multi-instrumentista, sempre requisitado para realizar funes imediatas,

    nas rdios e gravadoras. Sua discografia demonstra uma atividade contnua e intensa, que

    espelha um msico de grande competncia, como solista, acompanhador e arranjador. Os choros assumem um especial papel na obra de Garoto: a inveno e o futuro. O

    esprito de liberdade do ciclo de preldios e a tradio invocada nas valsas parecem

    avanar em ousadia e singularidade. Obras de carter forte, utilizam-se de uma dialtica

    musical dos compositores comprometidos com o novo. Sinal dos Tempos, com certeza, nos

    aponta o futuro, no aquele que se impe historicamente a seguir, e sim, experimentao

    sonora e o gesto ousado sem perder o vinculo com as tradies do estilo. O samba e as

    canes (Lametos do Morro, Duas Contas e Gente Humilde) so propostas de um estilo

    comprometido com as tradies urbanas da msica, na cidade do Rio de Janeiro. Msico

    1 Termo utilizado para definir relaes entre as intenes da composio e a tcnica instrumental exigida do intrprete.

  • 10

    das rdios, como acompanhador, arranjador e improvisador, Garoto parece transitar, com

    facilidade, entre o erudito e o popular, esse popular urbano, imposto pela vida musical de

    consumo das grandes cidades. A ligao profissional e de amizade com Radams Gnattali,

    sem dvida, despertou um estado de influncia mtua, consagrada na pea Toccata em

    Ritmo de Samba, de Gnattali, dedicada ao amigo Garoto (SIMES, 2007, entrevista). O

    Concertino N2, para Violo e Orquestra, tambm de R. Gnattali, foi estreado, com Garoto

    ao violo, sob a regncia do ento jovem maestro Eleazar de Carvalho, frente a Orquestra

    Sinfnica Brasileira, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1953. (ZALKOWITSCH,

    1990)

    Uma carreira de compositor e intrprete interrompida por sua morte prematura,

    um pouco antes de completar 40 anos, em 1955. A amplitude artstica de Garoto poderia ter

    ultrapassado os limites que ainda se impunham ao seu redor. Ainda em 1953 comps, com

    Chiquinho do Acordeom, So Paulo Quatrocento (com letra de Avar), para as

    comemoraes do IV Centenrio de So Paulo, que vendeu 700 mil discos. Foi ainda

    naquele ano que gravou seu primeiro disco como violonista, pela Odeon, com Abismo de

    rosas (Canhoto) e Tristezas de um violo (de sua autoria). Alm de Attilio Bernardini, seu

    professor de violo, teve aulas de Harmonia com Joo Spe, autor do reconhecido Tratado

    de Harmonia (SPE, 1942). Com Radams Gnattali, alm da amizade ntima e mtua,

    estudou matrias da chamada estruturao musical, ou seja, elaborao meldica,

    contraponto, harmonia e formas musicais.

  • 11

    1.2 A potica de Garoto

    Podemos perceber procedimentos diferenciados nos gneros abordados na obra para

    violo solo de Garoto. A cano, o choro, a valsa e o preldio, cada um deles, apresentam

    caractersticas estticas diferenciadas, que deixam expressar diferentes recursos de

    composio. A forma, a expanso harmnica, a melodia e o ritmo, a orquestrao

    violonstica e o tempo so tratados de diferentes maneiras em cada gnero. O compositor,

    Garoto, manifesta um comportamento e uma personalidade artstica em cada gnero. No

    sentido de definir uma potica de cada gnero, procuramos uma associao filosfica para

    descrever a valsa, o preldio e o choro.

    A valsa nos remete a um tempo passado, no exatamente uma lembrana, mas

    memria, conceito desenvolvido nos trabalhos de Henri Brgson (1859 - 1941) sobre a

    psicologia do gesto e discurso.

    No preldio, agora relacionado ao carter descritivo, encontramos uma aproximao

    psicolgica com o devaneio, conceito central do trabalho filosfico de Gaston Bachelard

    (1884 1962).

    O choro, na obra de Garoto, caracterizado pela impetuosidade e ousadia potica,

    sem contudo se afastar da tradio desse gnero, notamos uma obra de forte intuio,

    conceito largamente explorado no trabalho filosfico do professor Dr. Franklin Leopoldo e

    Silva (FFLCH-USP).

  • 12

    1.2 Garoto e o Violo Brasileiro

    Garoto teve sua vida profissional sempre ligada ao ambiente da Era de Ouro do

    rdio, no Brasil. Msico muito requisitado, executava diversos instrumentos e foi solista de

    conjuntos como o Bando da Lua, acompanhando Carmem Miranda em suas viagens aos

    Estados Unidos, de 1939 a 1941. Na dcada de 40, integrou a Orquestra da Rdio Nacional,

    no Rio de Janeiro, sob a direo do Maestro Radams Gnattali (1906 1988) e participou

    de gravaes acompanhando diversos cantores, alm de realizar programas, tocando violo

    ao vivo nas rdios do Rio de Janeiro e So Paulo. Formou, j nos anos 50, o famoso Trio

    Surdina. As composies para violo solo de Garoto esto situadas no espao de tempo

    entre 1938 e 1955, ano de sua morte.

    Em 1933, foi aluno regular de Attilio Bernardini (1888-1975). O professor

    Bernardini nasceu em Tiet, comeando seus estudos musicais aos 11 anos tocando

    bandolim, passando para o violo aos 15 anos. Aos 18 comeou a estudar violino com o

    professor Camilio Sangiovanni. Estudou tambm contrabaixo ,vindo a ser contrabaixista da

    Orquestra Municipal de So Paulo. Porm, nunca deixou o estudo do violo, compondo

    inmeras peas para esse instrumento, j que considerava como o mais expressivo dos

    instrumentos.

    (...) os grupos de choro realizavam as suas rodas. Era uma

    oportunidade de trocar informaes, aprender e ensinar

    democraticamente. Foi atravs destas rodas que grandes msicos

    se formaram e se profissionalizaram. Um dos bons lugares de

    referncia para os chores foi a casa de Attlio Bernardini. (in,

    website www.violaomandriao.mus.br, acessado em 17/09/2008)

    O amigo mais prximo de Garoto, na poca do rdio, foi Jos Alves da Silva (1908-

    1979), o Aymor, que seguir Garoto, sendo seu parceiro musical. A composio mais

    conhecida desse encontro o choro Quinze de Julho, gravado em 1937, na qual percebe-se

    uma melodia sinuosa, virtuosstica, e um acompanhamento tpico do choro com uma

    harmonia modulante e inesperada, incomum para o gnero, na poca. Esse duo deixou sua

    marca pela qualidade artstica de alto nvel, garantindo uma presena constante no meio

  • 13

    musical das gravadoras e das rdios de So Paulo. A msica consegue se impor como uma

    profisso. Uma carreira tem seu incio e vemos, a seguir, uma trajetria que se expande

    rapidamente, de forma contnua. A formao musical de Garoto desenvolve-se a ponto de

    dominar a tcnica do violo clssico e a escrita da msica em partitura. Esse estudo, de

    carter formal, o leva a estudar harmonia no Conservatrio Dramtico e Musical de So

    Paulo, com o professor Joo Spe, em 1938. O estilo popular e a tcnica clssica estaro

    presentes nas composies, nas invenes, que exige, da mesma maneira, um apurado

    domnio do violo para a execuo da msica do Garoto. A valsa lenta Doce Lembrana

    uma das partituras que ainda utiliza uma escrita que deixa evidente a influncia do

    professor Bernardini. O preldio Inspirao, composio de 1947, dedicada ao amigo e

    professor Attilio Bernardini.

    (BELLINATI, 1991, fac-simile anexo, vol.1)

    O manuscrito acima pertence a um momento importante das composies de

    Garoto. Considerando o perodo das composies para violo solo de Garoto entre os anos

    de 1940 e 1955, Inspirao uma pea na qual a data (1947) aparece na pgina de rosto da

    partitura. Vemos uma escrita coerente com a linguagem da msica para violo. Poderamos

    ponderar uma discusso sobre vrios elementos tericos dessa escrita, como frmula de

  • 14

    compasso mais adequada e a direo de hastes das figuras para definir o plano polifnico.

    No entanto, notamos que apenas poderamos revisar uma partitura que apresenta as

    intenes do compositor, de forma clara e detalhada para a leitura musical.

    O professor Bernardini ensinava a tocar por msica o

    repertrio clssico. Escreveu mtodos prprios e era muito

    exigente na forma de pulsar o violo (sonoridade do toque da

    mo direita), alm de ensinar o solfejo falado da diviso

    musical, apesar de saber cantar as melodias escritas. Penso

    hoje que o solfejo cantado teria sido mais importante.

    (SIMES, entrevista)

    A prtica das rodas de choro em So Paulo, na dcada de 30 e 40, criava a

    oportunidade de uma formao musical atravs de uma transmisso oral, onde as

    informaes seriam aprendidas pelo contato direto com os msicos de maior experincia.

    Muitas vezes, podemos nos referir uma escola do choro sem que isso signifique um

    aprendizado formal da arte da msica ou da tcnica instrumental.

    Uma das referncias dos msicos interessados em um aperfeioamento mais

    aprofundado era a casa de Attilio Bernardini que, como j citado, (1.1, p.10) manteve

    intensa atividade profissional como professor de violo. Garoto participou desse ambiente

    instigante, do encontro da prtica musical intuitiva e do aprendizado do violo clssico.

    Reproduzimos, abaixo, uma das lies de Lies Preparatrias. Observamos que a

    proposta do Exerccio N15 integra o aprendizado do desenvolvimento tcnico com um

    discurso musical com sentido esttico. (BERNARDINI, 1942, p.12) A msica e a tcnica

    estiveram sempre integradas no universo dos chores. O mtodo de Bernardini, organizado

    para iniciantes do violo, desenvolvem exerccios de tcnica pura (p.ex.: cordas soltas,

    arpejos, escalas, ligados) que so seguidos de aplicao prtica, em lies escritas na forma

    de pequenas peas.

  • 15

    A base da formao musical de Garoto fundamentou-se nessa escola. As

    possibilidades do estudo da msica, em So Paulo, eram propcias ao encontro da msica

    popular e erudita. A existncia do Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo,

    fundado em 1906, e as rodas de choro, criavam um ambiente onde era exigido do msico

    um preparo tcnico de bom nvel. Nomes como Aymor, Edgar de Mello, Ivo de Arajo,

    Oscar Guerra, Alfredo Scupinari e Ronoel Simes, todos importantes na histria do

    chamado violo brasileiro, transitavam nesse espao musical efervescente e instigante.

    No final da dcada de 1930, Garoto segue para o Rio de Janeiro onde o

    reconhecimento artstico fica evidente pela presena constante nas mais importantes

    emissoras de rdio, nas orquestras e nos chamados regionais, pequenos conjuntos de

    formao pequena, com o objetivo de tocar, quase de improviso, o repertrio que se

    impunha nesse ambiente.

  • 16

    No incio da dcada de 40, como vimos, vem um convite para liderar o Bando da

    Lua, conjunto responsvel por acompanhar Carmen Miranda em suas excurses e

    filmagens pelos Estados Unidos da Amrica. Vemos, portanto, uma personalidade inquieta

    a procura de um desenvolvimento musical que estaria cada vez mais focada no violo

    solo. A atividade de Garoto como intrprete vai-se pondo em equilbrio com o compositor,

    cada vez mais ousado. Sua obra para violo solo apresenta caractersticas que nos coloca

    diante de uma linguagem musical inovadora para o seu tempo e que se projeta como sendo

    influncia constante para as geraes de violonistas e compositores, at os dias atuais.

    Na esttica da msica erudita do sculo XX, surge o termo nacionalista que

    pretende definir a linguagem de compositores que se utilizam materiais sonoros ou mesmo

    temas meldicos ou ritmos de origem folclrica, do popular tradicional de comunidades e

    ligadas quase sempre a festas de carter coletivo. A figura de Mrio de Andrade, em seus

    escritos e fundamentos didticos da msica brasileira, procurou definir parmetros estticos

    que, com grande sabedoria, aproxima o conceito de modernismo e nacionalismo. Todo

    esse empenho de um homem preocupado profundamente com a arte brasileira, no somente

    a msica, tem servido de modelo ou tem se adaptado leitura esttica da obra de muitos

    compositores como Heitor Villa-Lobos que, por outro lado, estavam envolvidos na

    produo experimental da Semana da Arte Moderna de 1922. Esse universo artstico,

    muito discutido por Mrio de Andrade, esteve sempre apontado para a produo clssica,

    erudita. A msica erudita deveria se deixar impregnar do folclore no sentido de expressar

    uma identidade nacional. A contradio, de carter etimolgico, entre popular e culto fica

    estabelecida nas relaes entre a criao musical e a posio esttica do compositor, o que

    leva a uma produo sem fim de textos que abordam esse instigante argumento. A msica

    de concerto comea a se diferenciar de toda a produo musical que est fora dos teatros e

    das platias da msica clssica. A utilizao de elementos sonoros da msica popular

    considerada, muitas vezes, uma contaminao estranha msica erudita. A parte de

    correntes estticas doutrinadoras, o ambiente musical no Brasil at meados da dcada de 50

    permitia um trnsito muito gil de msicos que atuavam como professores das orquestras

    sinfnicas clssicas e das orquestras de rdio.

  • 17

    Annibal Augusto Sardinha, o Garoto, introvertido, tmido. Sua

    musicalidade precoce o tornou um dos maiores mestres do violo.

    Um grande nmero de violonistas o admirava e seguia seus

    passos. Sua carreira foi curta, mas de uma intensidade fora do

    comum. Tive a oportunidade de trabalhar com ele quando fez parte

    do Bando da Lua, substituindo Ivo Astolfi em New York, onde

    permaneceu um ano, fazendo shows, gravando discos e chegou a

    participar do filme Down Argentine Way acompanhando Carmen

    Miranda. (OLIVEIRA, contracapa, 1995)

    Numa poca em que a msica popular urbana, a prtica dos regionais de choro e a

    msica do rdio em geral priorizavam a melodia, notamos que Garoto deixa-se

    influenciar pelo jazz, cujo contato mais prximo aconteceu durante suas viagens aos

    Estados Unidos da Amrica. Atravs de sua msica, percebemos uma utilizao de acordes

    dissonantes, harmonia expandida, cadncias com dominantes estendidas e substitutas. O

    improviso e a experimentao devem ter imprimido, no msico atento e inquieto, um

    conceito sonoro que ir se estampar em sua msica, nas composies, onde a liberdade e a

    tradio podem se encontrar. O conceito de choro moderno fica, ento, adotado para

    definir um estilo onde o campo harmnico alargado e imprevisvel. Um relato desse

    momento de intensa atividade, de uma viagem musicalmente intensa, descrita com muita

    paixo na monografia biogrfica Garoto Sinal dos Tempos:

    Garoto se destacava naturalmente do conjunto. Ele no

    acompanha simplesmente Carmen Miranda. A ele se destinam as

    introdues e solos das msicas que ele interpreta ao som do

    violo tenor, com verdadeiro entusiasmo. Suas enormes

    habilidades so domnio do instrumento aliado sua maneira

    pessoal na interpretao das marchas e sambas que compunham

    os shows de Carmen, bastavam para projetlo. Duke Ellington e

    Atr Tatum so no,es que figuravam dessa platia. Terminado o

    show, Garoto se exibia tocando o que queria, para uma platia

    agora vida de conhecer as bossas novas (grifo nosso) desse

    garoto. (ANTONIO; PEREIRA, 1982, p.33).

  • 18

    A prtica do improviso e o conhecimento terico e tcnico da msica clssica

    puderam determinar os recursos composicionais utilizados por Garoto, tais como, a

    construo de melodias e temas, explorao do territrio harmnico, formao dos acordes,

    a busca por timbres e tessituras e a forma e estrutura no discurso musical de cada

    composio. Ao longo das peas do repertrio da obra de Garoto, podem-se perceber

    procedimentos recorrentes e caractersticos, que define um estilo e uma linguagem original

    e particular.

    Na msica para violo solo do Garoto, encontram-se alguns manuscritos autorais,

    em partitura de caligrafia muito segura, seguindo uma escrita para violo que se

    desenvolveu desde o perodo clssico europeu, que deixa documentado o grau de

    complexidade da estrutura da composio, onde uma notao musical polifnica exigida

    para registrar todas as intenes do compositor. Os recursos tericos, agora utilizados por

    Annibal Augusto Sardinha, tm fundamento no seu estudo do violo clssico e das matrias

    de estruturao musical. Como ferramenta de anlise, mais adequado ao estilo da msica de

    Garoto, vamos recorrer ao mtodo prtico de interpretao da harmonia da msica popular,

    com cifras de acordes, classificao por graus, relao acorde-escala, cadncias, funes

    harmnicas que podem ser aplicados na leitura estrutural da msica de Annibal Augusto

    Sardinha. (GUEST, 2006)

    A aproximao, sem fronteiras, da tcnica clssica com a prtica da msica popular,

    parece ficar evidente, quando, ao lado deste mtodo prtico de aprendizado intuitivo da

    msica, encontramos um compositor que deixa sua msica em partituras clssicas, eruditas,

    tanto na forma de escrita, quanto na tcnica exigida na execuo dessa msica. Ainda no

    ambiente musical da Era do Rdio, Garoto vem trabalhar com Radams Gnattali. (...) o

    interesse pelo violo erudito intensifica. (ANTONIO; PEREIRA, 1982, P.69)

    O Moleque do Banjo (apelido de quando, ainda criana, tocava banjo numa

    orquestra de jazz) cresce e vai amadurecendo sua busca pela msica. O Garoto nunca

    abandona as razes criadas na sua vida musical e, ao mesmo tempo, esteve sempre atento ao

    novo, tornado-o uma figura instigante para todos que com eles puderam conviver. No se

  • 19

    contentou em ficar numa atitude fundamentalista, conservadora at hoje em dia, dos

    regionais de choro. A definio pelo violo deveria seguir a vida profissional que tem como

    marco inicial com a gravao de Bichinho de Queijo e Driblando, dois maxixes, em duo de

    banjo e violo, com Serelepe. A gravadora era a Parlophon, que tinha Francisco Mignone

    como diretor artstico. Desse momento at meados de 1940, onde tem seu encontro com

    Radams Gnattali, na orquestra da Rdio Nacional, no Rio de janeiro, o violo vai

    assumindo uma posio de destaque na vida musical do Garoto. Sua msica adquire, cada

    vez mais, caractersticas diferenciadas da produo do violo brasileiro.

    Um ponto, que permanece ainda obscuro, o fato da msica do Garoto no ter sido

    editada em partitura, no seu tempo. sabido que, outros autores da msica para violo solo,

    tinham a msica editada em partitura por vrias editoras. Esse trabalho (muitas vezes

    profissional) era realizado por violonistas que transcreviam, a partir de gravaes ou

    execues ao vivo, com a finalidade de registro grfico e autoral das peas. Podemos citar

    alguns casos bem conhecidos como Canhoto (Amrico Jacomino), Joo Pernambuco (Joo

    Teixaira Guimares), Armandinho (Armando Neves) e mesmo Dilermando Reis, os quais

    tinham seus parceiros de escrita em partitura de sua msica. A reviso e os critrios da

    escrita dessas partituras apresentam, muitas vezes, diferenas significativas em comparao

    com a obra executada em gravao. Na maioria das vezes, ao manipular esse material,

    somos impelidos a cotejar vrias fontes de partituras e udio. O Garoto no foi exceo.

    Sua msica sempre esteve presente no repertrio dos violonistas, mas no esteve imune s

    edies facilitadas, ou mesmo, transmitida oralmente, de ouvido, o que poderia sofrer

    transformaes significativas do projeto original.

    A msica de Garoto tambm tem passado pelo processo de arranjos e

    harmonizaes ou mesmo transcries livres, com carter interpretativo, que muitas vezes

    encontram-se alterados alguns elementos de sua msica, como melodia e seqncias de

    acordes. Devemos considerar que a iniciativa de editar essa msica, mesmo com as

    alteraes de um arranjo ou rearmonizao, tornou possvel que a msica de Annibal

    Augusto Sardinha estivesse sempre disponvel.

  • 20

    A dificuldade, j encontrada por outros pesquisadores, em organizar um material

    autntico da msica de Garoto, coloca em questo o fato de um msico de slida formao

    musical deixasse de lado a profissionalizao editorial de suas partituras. Essa

    dificuldade ou aparente desinteresse poderia ser matria de extensa pesquisa sobre o

    mercado editorial da msica no Brasil. A recente edio de Garoto, revisada e recuperada

    por Paulo Bellinati, apenas foi acolhida com interesse por uma editora dos Estados Unidos

    da Amrica, que mantm uma coleo denominada The Great Guitarists of Brazil (GSP of

    San Francisco, CA), tendo sido inicialmente recusada por editores brasileiros.

    (BELLINATI, 2009, entrevista)

    A referncia das revises e transcries de Paulo Bellinati da msica do Garoto,

    justifica-se pela sua insistente preocupao de encontrar documentos (partituras ou

    gravaes) que estivessem o mais prximo da obra original, muitos deles autnticos. Essa

    obra de reviso demonstra um cuidadoso trabalho de escrita musical, acrescido de

    informaes sobre cada pea, nas notas finais de cada volume. The Guitar Works of

    Garoto, em dois volumes, ser nossa principal referncia e o material bsico para as

    consideraes, questes a serem levantadas, discusso esttica e concluso da presente

    dissertao. Este trabalho dever ser nosso ponto de partida para uma anlise terica ou

    esttica da msica de Garoto para violo solo, principal objetivo da presente dissertao.

    As parcerias e amizades conquistadas no Brasil, antes e depois da histrica viagem,

    como a convivncia e o trabalho constante com todos os msicos que trabalhavam nas

    emissoras de rdio, no Rio de Janeiro e So Paulo, foram pautados por um profundo

    conhecimento e uma conscincia fundamentada na prtica dos regionais e o domnio

    tcnico de vrios instrumentos. A preferncia pelo violo vai aos poucos ficando mais clara

    e se justifica em sua busca pela composio no idioma deste instrumento e sua carreira de

    intrprete solista do violo.

    Percorrendo o total das composies para violo solo de Annibal Augusto Sardinha,

    percebe-se uma conduta dos elementos da composio, com intenes bem definidas, que

    situa sua msica num lugar mpar. Esta coleo de peas mostra-nos um compositor

    original que, alm de pertencer a um gnero comum ao violo brasileiro, criou um estilo e

    uma linguagem musical particular da msica brasileira.

  • 21

    Nosso Choro revela-se com a marca da modernidade da msica para violo solo

    de Garoto que, ao lado de uma harmonia modulante e cromtica, matem uma fluncia na

    construo das frases e do esquema formal do choro. O manuscrito original foi preservado

    e editado em fac-simile no 2 volume da coletnea Paulo Bellinati. No exemplo abaixo,

    notamos que a escolha de Bellinati por uma armadura de clave (4 bemis) indica uma

    tonalidade de Fa menor. No manuscrito Garoto indica acidentes ocorrentes no decorrer de

    toda a partitura. Essa escrita, em partitura, demonstra um conhecimento aprofundado da

    notao musical. Um estilo violonstico caracterizado por uma tcnica de composio que

    se baseia no violo acompanhamento, onde o ritmo e os acordes acabam por predominar

    em relao linha meldica. Esse o trao mais marcante de um violonismo peculiar da

    msica de Garoto: acordes realizados a 4 ou 5 vozes que exigem do intrprete um domnio

    avanado da flexibilidade da mo esquerda e da leveza do toque da mo direita, sem

    afetar o carter do choro, da valsa, da cano e a delicadeza das peas meditativas, os

    preldios.

  • 22

    1.3 Mtodos Prticos

    Garoto, na sua inquietude de msico em busca do novo, sempre soube mesclar com naturalidade o conhecimento musical culto, erudito, com a prtica espontnea da msica

    popular. A edio do cadernos de msica Tupan, Bandeirantes e Cacique (SARDINHA,

    Irmos Vitale, So Paulo) de 1943, apresenta uma proposta do aprendizado musical atravs

    da linguagem corrente entre os msicos populares, principalmente dos regionais de choro.

    O prefcio desse mtodo mostra o lado simples e puro da personalidade do compositor de

    Gente Humilde:

    Antes de entrar nas explicaes dos estudos prticos deste mtodo, desejo fazer uma rpida apresentao do VIOLO-TENOR. (...)foi

    lanado por mim no Brasil em 1933. Com este maravilhoso instrumento

    tomei parte de programas radiofnicos, teatrais etc., alcanando sempre

    grande sucesso e, da ento, comeou este instrumento a aparecer em

    todos os Estados do Brasil tornando-se um instrumento indispensvel em

    um bom conjunto. muito fcil constatar, ouvindo as gravaes de disco

    por mim feitas no Rio de Janeiro, que os acompanhamentos possuem

    algo diferente que deve ser atribudo ao VIOLO-TENOR. Este

    instrumento de origem americana, onde conhecido pelo nome de

    TRIOLIN. No Brasil batizei-o de VIOLO-TENOR. de grande

    utilidade nos acompanhamentos de conjunto regional, jazz e solos. Feita

    esta breve apresentao do VIOLO-TENOR, espero que todos os que se

    interessarem e adquirirem este mtodo prtico aproveitem bem as lies

    que o mesmo contm, visto estarem feitas em rigorosa regra musical.

    Este trabalho tambm extensivo para o Bandolim do qual somente direi

    que um belssimo instrumento para solos e acompanhamentos. Serve

    igualmente para o Banjo, sendo bastante estudar o mesmo nas posies e

    afinao do VIOLO-TENOR. O autor: GAROTO

    Abaixo, transcrevemos no pentagrama musical os mtodos editados em diagramas

    que indicam a posio dos dedos no brao do violo-tenor, cavaquinho e violo,

    conveniente ao aprendizado prtico de cada um dos instrumentos.

  • 23

    Mtodo Prtico para Violo-Tenor e Banjo

    As lies deste mtodo prtico so baseadas nas progresses bsicas das

    tonalidades maiores (para Violo Tenor e Banjo), na ordem das tonalidades do Ciclo das

    Quintas. Acima, esto transcritas a seqncia de acordes, em Sol Maior: 1 do tom - I

    (Tnica), 2 do tom - V7 (7 de Dominante), Preparao 3 maior - V7(IV) (7 de Dominante da Subdominante) e 3 maior - IV (Subdominante); Preparao 3 menor -

    V7(IIm) (7 de Dominante da Subdom. Relativa), 3 menor - IIm (Subdominante relativa), 2 de Lab - V.T. - V(subV7) (Dominante do Dominante Substituto) e 1 do Tom - I (Tnica). Os nomes dos acordes, em tipo itlico, formam um sistema de funes dos

    acordes e so, at hoje, adotados e difundidos entre os msicos dos conjuntos regionais de

    choro. O mesmo esquema de progresses tambm construdo nas tonalidades relativas

    menores, em Mi menor: 1 do tom - Im (Tnica menor), 2 do tom - V7 (7 de Dominante),

    Prep. 3 - V7(IVm) (7 de Dominante do Subdominante menor), 3 - IVm (Subdominante menor); 3 - IVm6 (Subdominante com 6), 2 de Si VV (Dominante do Dominante), Si maior V (Dominante) e 2 de Fa - subV7(V) (7 de Dominante Substituto do Dominante). Um diagrama com a digitao (numerao dos dedos da mo

    esquerda), na escala do instrumento, est desenhado abaixo dos nomes das posies.

  • 24

    Podemos considerar este sistema como fundamental para se tocar os acompanhamentos dos

    regionais de choro. Considerando que todos os desenhos passam por todas as tonalidades,

    o mtodo Bandeirantes possibilita o estudo prtico da harmonia do choro e se aplica

    maior parte do repertrio deste gnero. Com essa despretensiosa simplicidade, percebe-se

    um msico maduro com conhecimento profundo da teoria e da arte da msica. A

    organizao das progresses e a montagem dos acordes segue os mesmos princpios nos

    cadernos Tupan (para Cavaquinho) e Cacique (para Violo), dos quais transcrevemos os

    exemplos abaixo:

    Mtodo Prtico para Cavaquinho

    As harmonias apresentadas, nos mtodos acima citados, configuram um sistema de

    acordes e tcnica de encadeamento de muito fundamento. O repertrio das peas para

    violo solo de Garoto vamos perceber que o conceito de campo harmnico muito

    ampliado. Os recursos da substituio harmnica, resolues deceptivas e harmonias

    estendidas sero amplamente utilizados nessas composies. A categoria muitas vezes

    conotada de choro moderno, dessa msica, alcanada pelo rompimento das fronteiras

    da msica clssica e da msica popular, resultando num estilo novo e linguagem

    diferenciada.

  • 25

    Mtodo Prtico para Violo

  • 26

    1.3 A Problemtica Editorial

    Annibal Augusto Sardinha deixou alguns manuscritos de suas composies. Na

    escrita em partitura completa para violo solo, Garoto demonstra conhecimento profundo

    das normas de notao para violo. Suas msicas sempre estiveram no repertrio de muitos

    msicos, desde sua poca. O Choro Triste N 2, tambm denominado Tristezas de um

    Violo (Fermata do Brasil, So Paulo, 1952), foi editado com harmonizao e arranjo de

    Paulo Barreiros (1909 - 2004). Esse msico teve sua vida profissional como violonista e

    compositor, ao lado dos grandes nomes que despontavam no mundo violonstico da Era do

    Radio, como o prprio Garoto, ngelo Apolnio, o Poly, o professor Aymor e Laurindo

    de Almeida. (Ex.1)

    Ex.1

  • 27

    A msica popular urbana, para vozes e instrumentos, tem sido editada num padro

    resumido: melodia e cifras. A garantia de autenticidade e correta notao dessa msica,

    muitas vezes, so fontes que apresentam inmeros erros de escrita. Mais recentemente,

    novas edies tiveram o cuidado em preservar a composio autoral. A prtica das rodas de

    choro, grupos de msicos que mantm viva essa tradio at nossos dias, guardam esse

    segredo da arte e da tradio, fontes primordiais para o entendimento da linguagem de

    uma msica complexa que poderia ter um cuidado editorial, para alm dos objetivos do

    lucro.

    A coletnea Quinze Choros De Garoto, editada e impressa pela Fermata do Brasil,

    em 1951 (sem nenhuma referncia do revisor responsvel), apresenta uma escrita passvel

    de inmeras correes. Das melodias, escritas na tessitura da flauta, e as harmonias

    (acordes cifrados) esto elaboradas sem nenhum critrio terico musical coerente. O choro

    Tristezas de um Violo aparece nos Quinze Choros... como um modelo de uma

    partitura, onde no so observados detalhes de uma escrita musical que preservasse um

    vnculo coerente da notao meldica e harmnica com a prtica desse gnero (Ex.2).

    Ex.2

  • 28

    A recuperao dessa msica haveria ainda de esperar por msicos interessados em

    preservar a msica de Garoto, atravs transcries criteriosas, a partir de registros

    fonogrficos autnticos ou manuscritos originais do autor.

    Acreditamos que um trabalho necessrio, de edies cuidadosas e bem impressas,

    pode servir, de forma eficiente e duradoura, para transmitir a sabedoria da escola prtica

    do choro, criando um material que respeitasse sua natureza e importncia histrica. Ainda,

    quando citamos as peas para violo solo de Garoto, estamos diante de uma msica

    engenhosamente orquestrada na dimenso tcnica do instrumento.

    A transcrio de Paulo Bellinati mostra a preocupao de preservar o estilo

    violonstico de Garoto. O trecho abaixo (Ex.3) mostra um desenho da partitura de uma

    msica que fora concebida de forma detalhada para o violo.

    Ex.3

  • 29

    Nesse choro, uma linha meldica marcante reconhecida. Na msica popular,

    comum que certos temas sejam utilizados como standards, como melodias consagradas e

    disponveis para serem adaptadas e arranjadas. O tema meldico de Tristezas de um Violo

    transformou-se numa pea muito executada, motivo de inmeras verses. Uma edio da

    melodia com cifras no estaria fora da dimenso esttica da msica. Procuramos pensar

    essa possibilidade conservando a estrutura harmnica original. Esse modelo proposto

    pretende conservar os elementos essenciais da composio, permitido sem traies, que

    novos arranjos ou adaptaes desse tema mantenham a identidade da composio, um

    choro tpico, caracterizado por uma melodia acompanhada.2 (Ex.4)

    Ex.4

    2 Melodia de perfil horizontal, acompanhada de acordes que realizam a harmonia vertical e rtmica.

  • 30

    2. OS CHOROS

    Os choros para violo solo de Garoto formam uma coleo de 9 peas. Sintetizam

    elementos da msica que definem uma unidade, presente em toda a obra do compositor.

    Esses choros exprimem uma ideia musical que est alm de um estilo. O gnero

    estabelecido pela prtica dessa msica tinha alcanado um padro, uma textura de

    identidade sonora estabelecida. A evoluo dos ritmos, do maxixe, do tango brasileiro,

    sedimentou uma forma de execuo e os princpios de um discurso musical de carter bem

    definido. A virtuosidade meldica seria outra marca de um estilo que exigia uma tcnica

    refinada dos instrumentos solistas.

    Garoto encontrou no violo solo o veculo para compor uma msica que, apesar de

    imersa num estilo cristalizado, ganhou uma nova sonoridade, um timbre, independente de

    uma gramtica harmnica condicionada pela prtica dos chores.

    O estilo do choro e sua maneira de tocar e interpretar ao violo, pelas mos de

    Garoto, conquista uma nova expresso, na qual a intuio deve se alargar. Uma nova

    tcnica instrumental seria exigida em funo de uma nova escrita do choro.

    A teoria da forma do choro, as relaes motvicas, a construo meldica e a

    estrutura harmnica do acompanhamento, fazem eco com a esttica do estilo clssico, da

    msica do classissismo europeu do final do sculo XVIII. No estamos sugerindo, de

    nenhuma maneira, que haja uma aproximao esttica dos dois estilos e que eles possam se

    entrelaar. Esse deslocamento da msica do seu lugar no tempo pode desfigurar a

    linguagem, criando significados estticos confusos e de mau gosto. As formas de

    interpretao obedecem sempre o conhecimento da uma dico, um domnio esttico e

    uma prtica histrica de execuo. As releituras podem trazer a msica do passado para um

    presente que depende de um largo conhecimento histrico da execuo. O choro nobre

    pela tradio que se mantem forte por mais de cem anos de histria.

  • 31

    Estaremos sempre nos referindo a um gnero de msica que se constituiu dentro do

    ambiente da msica popular urbana, ligada ao universo de uma industria fonogrfica que

    estava, por sua vez, ligada ao desenvolvimento do rdio no Rio de Janeiro e So Paulo,

    meio do qual Garoto pertenceu como profissional de intensa atividade.

    Esse ser o foco primordial desse trabalho, da presente dissertao. Trataremos de

    um compositor e de sua msica dentro de limites bem estabelecidos. As fronteiras das

    chamadas msica erudita e popular podem ser matria de especulao profunda e

    infindvel. Os choros de Annibal Augusto Sardinha, mesmo que modernos, mantm a

    identidade com um gnero do qual Garoto colaborou para uma evoluo sem rupturas com

    suas razes; com a tradio do choro tradicional.

  • 32

    2.1 - A Intuio de Garoto

    ... essa criao em continuidade com a intuio interior afirma-se mais

    precisamente na arte, na medida em que o artista cria realmente a partir

    do mundo que intui interiormente. No artista, a reflexo imanente

    atividade criadora. A arte do pintor a arte de ver, a arte do msico a

    arte de ouvir: neles o que nos outros passivo transforma-se

    imediatamente em atividade. (SILVA,1994, Cap.III, p.283)

    A prtica musical de acompanhador3 a manifestao da tcnica e da arte do

    acompanhamento, a qual se manifesta na realizao da harmonia por cifras, smbolos

    convencionais que representam os acordes. As edies dos cadernos de msica Tupan,

    Bandeirantes e Cacique (VITALE, 1943) procuram fundamentar os princpios da

    montagem dos acordes, cadncias e sequncias harmnicas. O mtodo Cacique, para

    violo, organizado segundo um painel acordes cifrados em uma nomenclatura muito

    difundida nos regionais de choro at os dias atuais (1, 2, prep. 3, 3, 3 menor,

    passagem etc.). Os acordes so apresentados em diagramas das posies dos dedos na

    escala do instrumento. Uma das caractersticas desse mtodo de distribuir os acordes com

    5 ou mais notas, procurando utilizar ao mximo o mbito das 6 cordas do violo. Esse

    procedimento ocorre como resultado da prtica do msico dedicado arte do

    acompanhamento que a partir das necessidades tcnicas e expressivas do arranjo, pode

    escolher a textura e densidade das vozes do acorde que seja mais adequada ao resultado

    sonoro da msica.

    Nas rodas de choro, os violes (de 6 e 7 cordas), o cavaquinho e o pandeiro (ou

    percusso rtmica) formam a seo de acompanhamento, de base, e assumem a funo de

    executar as harmonias e o balano rtmico do choro que, alm da pulsao dos acordes,

    muitas vezes criam linhas meldicas em contracanto com a melodia principal,

    enriquecendo a essa trama com elementos polifnicos, como vozes secundrias. Essa

    textura resulta em uma sonoridade tpica, de muita vivacidade e entusiasmo, que deixa

    margem ao improviso e a demonstraes de habilidades sofisticadas por parte dos

    instrumentistas. As partituras dos choros tradicionais trazem uma escrita que resume de

  • 33

    forma eficiente os parmetros da composio para regional de choro, onde a linha meldica

    sugere uma regularidade na notao das figuras e, as cifras, combinadas aos diagramas dos

    acordes, devem indicar os acordes bsicos do acompanhamento. Esse modelo editorial

    amplamente utilizado para a notao e divulgao do repertrio da msica popular urbana

    do mundo todo. O choro apenas mais um gnero desse universo. A interpretao da

    melodia deve torna-se livre da diviso geomtrica das semicolcheias, procurando tocar as

    notas com um estilo prprio da cano. O acompanhamento, por sua vez, assume a funo

    do balano rtmico, decorrente da alternncia dos baixos e acordes, a base harmnica do

    choro, como se fora um baixo contnuo da msica barroca. Essa comparao estabelece

    apenas uma relao grfica e funcional de dois estilos que devem conservar as

    caractersticas de territrios sonoros distantes e, cada qual, com suas razes histricas e

    culturais particulares. Os segredos da arte do acompanhamento no choro pertencem

    prtica das rodas de choro, na qual os msicos se libertam da escrita e a improvisao

    assume um papel predominante.

    O choro Quinze de Julho, msica de Garoto em parceria com Aymor (Jos Alves

    da Silva), composio gravada em 1937 (ANTONIO, e PEREIRA, 1982), pode ser modelo

    da escrita musical corrente nas edies do choro tradicional, isto , melodia com cifras dos

    acordes do acompanhamento. Escrevemos uma transcrio realizada a partir da gravao de

    Poly (ngelo Apolnio), executada com violo-tenor e violo. (LP Msicos

    Maravilhosos , 1972)

    Geraldo Ribeiro, msico, compositor e violonista de grande importncia na

    recuperao da msica de Garoto, em 1979, transcreveu as partituras de peas inditas de

    Annibal Augusto Sardinha, inclusive o choro Quinze de Julho com arranjo para violo solo.

    Apesar de notarmos certos descuidos dos revisores, o que faz com que as partituras tenham

    que ainda passar por correes, notamos que Geraldo Ribeiro, compositor e intrprete, cria

    uma pea baseada na melodia original com traos de uma escrita que resulta num arranjo

    com estilo prprio, com uma proposta interpretativa.. Devemos sempre ressaltar

    positivamente o empenho e o trabalho de diversos msicos em resgatar a obra de Garoto.

    A presente dissertao pretende levar em conta o esforo de msicos, violonistas,

    historiadores e crticos que se dedicaram, de diversas formas, ao trabalho de sempre

    3 Instrumentista que acompanha principalmente cantores, nas rdios e gravaes.

  • 34

    lembrar a obra e a vida de Annibal Augusto Sardinha. Esses autores, revisores e intrpretes,

    sero oportunamente citados. As obras, as quais tivemos acesso, so peas imprescindveis

    para este trabalho e tornaram possveis nossos argumentos e consideraes sobre a obra de

    Garoto. Abaixo, na proposta de escrita do choro Quinze de Julho, procuramos seguir um

    padro editorial dos livros e coletneas do choro tradicional: melodia com cifras dos

    acordes da harmonia. Essa partitura pode servir para uma leitura e interpretao com

    improvisos, caracterstica comum aos encontros musicais das rodas de choro. (Ex.1)

  • 35

    Poderamos elaborar uma escrita musical do violo acompanhamento (Ex.2). Essa

    tarefa pretende apenas tornar visvel uma sonoridade que depende do conhecimento do

    estilo do choro e da prtica do msico destinado a essa funo. O chamado violo

    acompanhamento encerra muitos segredos de uma arte especializada e que sua escola

    se faz nas reunies dos msicos que mantm viva a tradio do choro, por mais de um

    sculo. Notamos que a ocorrncia sistemtica de progresses de acordes por marcha

    harmnica modulante, acordes encadeados por cromatismo. Essa sensao de indeciso da

    tonalidade tornar-se- um dos signos caractersticos do estilo, na msica de Garoto.

    Ex.2

  • 36

    Baseados ainda na partitura transcrita do LP de Poly, vamos criar um exerccio e

    procurar seguir os mesmos princpios que Garoto, ao violo, poderia ter utilizado na escrita

    desse choro, seguindo os procedimentos que podemos intuir de seu estilo instrumental nas

    peas escritas ou apenas executadas por ele mesmo, ao violo. Vamos acrescentar um

    baixo, baseado nos acordes determinados pelas cifras e diagramas da notao tradicional.

    Consideramos a necessidade de transportar a tonalidade original de Re Maior, prevista para

    Violo-Tenor, na qual a extenso e tessituras ficariam mais adequadas aos recursos do

    violo. A tonalidade de La Maior parece preencher nossas intenes.

    .

    Ex.3

    Nossa preocupao em manter a identidade da linha meldica deixa a ocorrncia

    de oitavas paralelas entre as vozes do baixo e a nota inferior dos acordes. Isso leva a uma

    sonoridade pobre e montona. Vamos considerar que acordes quebrados, em arpejos,

  • 37

    manifestam uma funo harmnica predominante. No projeto de arranjo dessa msica,

    pode-se utilizar um recurso que no parece prejudicar ou transformar de forma inadequada

    a inteno musical da composio. Como ser fundamental manter o perfil da linha

    sugerida pelas notas agudas dos acordes e a manuteno das inverses da harmonia em

    relao aos baixos, tomaremos a liberdade de alterar as notas internas dos acordes,

    completando a harmonia sem prejudicar o efeito da pea. A abordagem tcnica da

    execuo torna-se mais fluente e a construo de cada acorde agora completada, criando

    uma harmonia a 4 partes, observadas as regras de encadeamento e conduo polifnica das

    vozes.

    Ex.4

    O desenho resultante assemelha-se muito aos das peas originais para violo solo. O

    motivo meldico dos acordes quebrados em arpejo, com perfil caracterstico do balano

    rtmico do choro serve de exemplo do procedimento adotado por Garoto nas composies

  • 38

    originais para violo. A diviso pontuada do baixo aqui utilizada como procedimento

    recorrente nas composies de Garoto. Nesse jogo de transcrever para violo essa melodia,

    original para violo-tenor e acompanhamento, onde sua expresso e funcionalidade

    instrumental so mais adequadas, no tem a fora das composies originais para violo

    solo. Estas apresentam um carter inovador. So frutos da intuio do compositor em

    busca de uma nova expresso, sem deixar de lado a naturalidade de um msico fundado na

    prtica do acompanhamento; uma arte que ultrapassa a dimenso utilitria e profissional

    e se eleva ao nvel da criao de obras improvisadas a partir de acordes cifrados que, aos

    moldes da realizao do baixo numerado do contnuo barroco, considera-se uma

    especialidade na arte; trabalho para especialistas no acompanhamento.

  • 39

    2.2 O Choro Moderno O Garoto tocava um violo diferente, moderno. (SIMES,

    entrevista)

    A Caminho dos Estados Unidos, Choro Triste N2 e Carioquinha fazem parte desta

    classificao de choro moderno. Esta sistemtica de organizar uma obra em categorias, no

    caso dos choros de Garoto, ser considerada apenas como sugesto que se justifica por

    semelhanas de estilo e procedimentos composicionais. Garoto esbarrou num limite. Na

    limitao do registro de toda a sua obra. Garoto no a gravou toda. Restam obras inditas,

    restou indito o seu violo. (ANTONIO; PEREIRA, 1982, p.71).

    Garoto no sinalizou alguma inteno de inventar uma msica ou de estabelecer

    uma ruptura com a tradio. A conscincia e o domnio de sua arte esto aparentes em suas

    composies. Esse espao de devaneio e inveno era propcio criao de uma obra que

    se expande para territrios novos. Garoto fez msica popular e se manteve nos limites do

    seu tempo e lugar.

    A escolha de tonalidades escuras, com Fa# menor, que manifesta uma melancolia,

    contrastante com o carter claro dos choros. Andamentos quase lentos so justificados

    pela densidade harmnica, pela sucesso de acordes dissonantes que se encadeiam

    cromaticamente.

    Garoto era um improvisador. No apenas um improvisador sobre temas conhecidos,

    mas um inventor espontneo de msica. Os choros seriam a ponte para uma inveno livre,

    de imaginao vagante. Quando os andamentos se tornam ainda mais lentos, sua msica

    fica prxima da concepo moderna dos preldios. Em nosso exame detalhado dos choros,

    vamos tambm perceber a manifestao da cano, frases meldicas lineares e

    independentes, e da nostagia das valsas, evocando um tempo passado. Lamentos do Morro

    aponta os caminhos para a percusso orquestral no violo solo. A ponte para o futuro estava

    construda. Vamos fazer a travessia!

    Os choros modernos sempre estavam debaixo dos dedos de Garoto. Msicos

    como Luiz Bonf e Baden Powell, deixaram-se influenciar desse estilo reflexivo do choro.

    Um novo caminho estaria aberto, sem compromisso com uma vanguarda rida e estagnada.

    A moderna msica popular brasileira estaria livre de amarras estticas paralizadoras.

  • 40

    2.2.1 A Caminho dos Estados Unidos

    O subttulo de choro moderno indicativo de um estilo, das caractersticas de

    toda a coleo de choros de Garoto, para violo solo. As harmonias cromticas ou

    cromatismo sintetizam um recurso que, como j mencionamos, Garoto mantm a marca

    de sua msica. Os procedimentos da gramtica da harmonia, paradigmas de um sistema

    que definem uma linguagem comum, na msica de Garoto, podem caracterizar os signos de

    um estilo prprio; um timbre, uma sonoridade resultante de uma escolha incomum de

    tonalidades, sequncias e cadncias deceptivas, alm de exigir do intrprete uma

    abordagem tcnica na qual o virtuosismo est escondido, fazem das peas para violo

    solo de Garoto um conjunto que define uma linguagem, no universo da msica popular

    urbana.

    A partitura de A Caminho dos Estados Unidos, transcrita diretamente do manuscrito

    autoral preservado por Milton Nunes (BELLINATI, 1991, vol.1, anexo), estampa as

    caractersticas do denominado Choro Moderno e representa o perodo embrionrio de

    Garoto como compositor para violo solo, mas demonstra um domnio tcnico do msico

    maduro que faz sua obra permanecer como um conjunto de peas atemporais e eternas. A

    ordem cronolgica de suas msicas, muitas vezes, de difcil determinao; algumas datas

    apontam o ano do registro fonogrfico que podem no coincidir com o momento da

    composio. Podemos afirmar que essas peas ocupam o perodo do final da dcada de 30

    at os derradeiros anos de sua vida, na dcada de 50, no qual o violo veio a ocupar uma

    posio cada vez mais intensa e profunda, na vida artstica de Annibal Augusto Sardinha.

    (BELLINATI, 2009, entrevista).

    A utilizao de harmonias cromticas, nos choros de Garoto, no ocorre apenas

    com a funo estender a tonalidade ou criar ambiguidade. A expresso do movimento

    meldico por semitons sucessivos, nas passagens de ligao entre acordes, passa a ser um

    recurso da composio. Servindo-se dos conceitos de substituio e interpolao da

    harmonia, Garoto cria progresses harmnicas que surgem como informaes

    inesperadas, no apenas com a funo de ampliao ou para evitar a redundncia. Esses

    elementos gramaticais e paradigmticos, da teoria da harmonia dos acordes, elevam-se em

    parmetros que definem a expresso da arte e a personalidade do compositor.

  • 41

  • 42

  • 43

    Nos choros para violo solo, Garoto utiliza-se do amlgama harmonia e baixo,

    Poderamos pensar uma escrita maneira do choro tradicional: a melodia ondula por

    todas as notas, mesmo tratando-se de acordes quebrados, em arpejos. (Ex.5)

    Ex.5

    A seguir, extramos" apenas a linha meldica gerada pela ponta superior dos

    acordes do choro A Caminho dos Estados Unidos, como uma tcnica de orquestrao onde

    a melodia segue apenas as notas mais agudas dos acordes. (Ex.6)

    Ex.6

    Podemos afirmar que os recursos da arte do acompanhamento, na qual Garoto se

    destacou na sua carreira profissional, iro influenciar de maneira profunda a escrita e a

    sonoridade de suas peas, em especial, os choros. A mecnica da mo esquerda, que tem a

    funo de tocar acordes completos, de 4 ou 5 notas, torna-se pesada e, ao mesmo tempo,

    exige do instrumentista uma expresso de leveza, deixando fluir o choro sem dificuldade.

    Devemos imaginar que no existe espao para linhas meldicas expressivas. Garoto no

    tem outra possibilidade seno ousar; no procura por melodias de contornos horizontais e

    sinuosos. Suas composies assumem uma posio de originalidade de estilo e,

    notadamente os choros, apresentam uma escrita que pe em evidncia a estrutura

    harmnica e, portanto, seguem cadncias e sequncias inusitadas e utilizando tonalidades

    incomuns ao violo. As harmonias realizadas (montagem dos acordes), a inveno de uma

    linha de baixo e a composio de frases e perodos bem construdos denotam um domnio

    da forma e da expresso que resultam da intuio de um msico consciente de sua arte. A

  • 44

    transcrio do manuscrito de Garoto demonstra a originalidade de um estilo que deixar

    marcas futuras no chamado violo popular brasileiro.

    Os signos do choro tradicional, dos choros tpicos, que remontam a Ernesto Nazaret,

    Joo Pernambuco, H. Villa-Lobos e tantos outros, esto aqui estampados; as baixarias,

    linhas de baixo utilizadas para introdues ou pontes, ligando sees ou criando frmulas

    para modulaes. O baixo pontuado, que balana com os elementos da harmonia, criando o

    ritmo do choro. (Ex.7)

    Ex.7 (comp.1 e 2)

    Os arpejos, os jogos rtmicos e polifnicos em 3 planos (baixo, acorde e melodia) e

    as sincopas que tm funo de antecipar acentos, participando de uma percusso, apenas

    sugerida (como um pandeiro subjacente). (Ex.8)

    Ex.8 (comp. 8 e 9)

    Progresses em bloco, ligando cromaticamente e preenchendo o espao entre dois

    acordes da mesma espcie (no caso, diminutos ou 7diminutas). (Ex.9)

    Ex.9 (comp.10)

  • 45

    Algumas solues de encadeamento de acordes adquirem, na msica de Garoto,

    uma identidade; como traos caligrficos da escrita mo, com caneta ou lpis, ou gestos

    do pincel de um pintor. O exemplo (comp.11) a seguir mostra o encadeamento IIm7(b5) -

    V7, com a inverso do acorde G#m7(b5)/D fazendo a linha de baixo executar um

    movimento cromtico descendente (Re natural Do sustenido). O efeito assemelha-se ao

    de uma appoggiatura, um retardo (dissonncia-consonncia) sobre o acorde de C#7.

    (Ex.10)

    Ex.10 (comp.11)

    Na progresso IVm - IIIdim7 IIIM, apontamos uma correo no segundo tempo do

    compasso 16, onde a nota Re# (Re natural, no manuscrito) forma o acorde diminuto

    auxiliar que resolve a dissonncia sobre o acorde de A/C#, com movimento cromtico

    ascendente do baixo. (Ex.11)

    Ex.11 (comp.16 e 17)

    A parte B, anunciada pela baixaria que modula para o tom relativo maior (La Maior).

    Mais uma vez, encontra-se o recurso do acompanhamento em primeiro plano, deixando a

    melodia entregue apenas s notas superiores dos acordes. (Ex.12)

  • 46

    Ex.12 (comp.20 a 24)

    A Caminho dos Estados Unidos tem um subttulo autoral de choro moderno. O

    violo brasileiro, como hoje se conhece por sua maneira de tocar e pela sonoridade

    caracterstica, tem tambm o seu lado seresteiro, brejeiro, mais ligado a uma tradio oral.

    Essa msica, tocada na prtica, foi escrita apenas com a inteno editorial de registro de

    direitos autorais, resguardados pelas editoras musicais. O mais clebre compositor e

    intrprete desse gnero violo-seresta foi Dilermando Reis (1916-1977). Comenta o

    professor Ronoel Simes, citando Dilermando: O Garoto, com esse choro moderno, um

    negcio muito srio. (SIMES, entrevista, 2007)

    O exemplo abaixo, ainda de A Caminho dos Estados Unidos, mostra o 4 segmento

    da parte A (2 perodo), onde apontamos, mais uma vez, os compassos 16 e 17 (Ex.5), com

    modelo de cromatismo (que justifica o Re# no acorde diminuto de passagem) seguido de

    uma sequncia de acordes de 7 de dominante (V7), na 3 inverso (7 no baixo) que

    prepara como dominante substituto (subV) a cadncia perfeita (V7-I), para a tonalidade de

    Fa# menor (tnica do modo menor).

    Ex.13

  • 47

    Paralelo ao exemplo acima, extrado do fragmento que encerra a parte B, vemos o

    princpio do cromatismo ser agora ampliado, atravs da preparao diminuta e acordes de

    7 de dominante (2 inverso) em progresso, alcanando a cadncia perfeita que define a

    tonalidade de La Maior (tnica relativa de Fa# menor).

    Ex.14

    Garoto utiliza um recurso que se torna recorrente em toda a sua obra, notadamente

    nos choros: o tratamento meldico (dissonncia acrescentada ao acorde) do acorde

    diminuto. O efeito, como j foi observado acima, de uma appoggiatura, resoluo

    descendente da dissonncia sobre o mesmo acorde: a 7 diminuta ou apenas diminuto (na

    linguagem usual da msica popular). Procuramos escrever alguns modelos transpostos

    (baixo em DO) como padro do uso do acorde diminuto alterado, considerando que sua

    escrita pode apresentar enarmonias4 que no mudam a funo harmnica do acorde (sibb -

    la natural). A notao do acorde diminuto, muitas vezes, deve seguir esse critrio, evitando

    uma escrita gramatical rigorosa que torna a leitura musical difcil. Nas partituras de

    msica popular encontramos esta soluo que indica uma forma prtica de notao que

    4 Notas escritas com alteraes (# ou b) que podem ser substitudas por outra nota, que representa a mesma altura.

  • 48

    no pode ser invalidada por interpretao terica baseada nas teorias da harmonia clssica.

    Seguem, portanto, os exemplos da conduo meldica do acorde diminuto. (Ex.16a,16b e

    16c)

    (Ex.16a)

    (Ex.16b)

    (Ex.16c) Transposio enarmnica do acorde diminuto.

    O smbolo das cifras, muitas vezes, depende de interpretaes equivalentes, que

    demonstram uma viso do acorde segundo a sua inverso ou distribuio de vozes

    (montagem). Em A Caminho dos Estados Unidos, vamos apontar tres ocorrncias dos

    modelos da conduo meldica do acorde diminuto. (Ex.17, comp.3, 16 e 22, 2 tempo)

  • 49

    Ex.17

    (comp.3)

    (comp.16)

    (comp.22)

  • 50

    2.2.2 Carioquinha

    a intuio, por implicar uma relao interna com a totalidade,

    algo que ultrapassa o homem, se bem que se d a partir dele.

    SILVA (1994, Cap.III, p.288)

    O choro Carioquinha considerado um tributo ao compositor Boror (Alberto de

    Castro Simes da Silva, 1898-1986) autor de canes de sucesso na dcada de 30. A

    melodia de Da Cor do Pecado, composio de 1939, utilizada por Garoto como

    citao5da msica de Boror.

    Ex.1

    A cano de Boror segue um padro estrutural tpico da cano estrfica; tema em

    forma de sentena A(a-a) B(a-cadncia) em 4 estrofes (segmentos). O 1 segmento est

    transcrito no exemplo acima. A harmonizao construda a partir de sequncias e

    progresses estandardizadas, segundo procedimentos gramaticais da harmonia tonal.

    Notamos um perfil meldico descendente por intervalos em graus conjuntos. Um motivo de

    diviso rtmica fica estabelecido no 1 compasso e repetido, como uma rima, decorrente

    da estrofe potica da cano: Esse corpo moreno/cheiroso e gostoso/que voc tem...

    5 Referncia musical ou desenho que se reconhece outra composio, j existente.

  • 51

    Abaixo, vamos estabelecer algumas relaes com o choro Carioquinha. Apesar das

    semelhanas evidentes entre as duas peas, Garoto elabora um discurso que define o

    carter prprio do choro moderno; o esquema harmnico e a melodia formam uma

    estrutura entrelaada e interdependente. Essa msica define uma escrita prpria de Annibal

    Augusto Sardinha, que prope um violonismo ancorado na tcnica do acompanhamento,

    criando uma msica em um estilo inovador para o seu tempo.

    O tema de Carioquinha (Ex.2), lembrando a cano de Boror pelo contorno

    meldico muito semelhante, tratado de maneira muito diversa. Tem incio uma

    progresso modulante que, mais uma vez, segue uma linha de baixo cromtica. A

    tonalidade principal fica definida apenas pela cadncia final da frase. Notamos que esse

    procedimento recorrente na msica de Garoto. Seu estilo pode ser reconhecido. A

    influncia de diversos gneros da msica popular da poca coloca sua msica em sintonia

    com todas as tendncias do momento. Porm, sua intuio permite a criao de uma msica

    que ser reconhecida, por geraes futuras, como precursora de novas tendncias da msica

    popular e do violo brasileiro.

    Ex.2

    O esquema harmnico, extrado a partir da partitura transcrita por Paulo Bellinati,

    (BELLINATI, 1991, vol.1, p.38) est escrito abaixo, na forma de uma realizao dos

    acordes cifrados. A partir da msica original de Garoto, escrevemos uma proposta de

    escrita do acompanhamento, rtmico e harmnico, com a finalidade de extrair apenas a

    estrutura dos acordes e as relaes das sequncias e cadncias da harmonia. (Ex.3)

  • 52

    Ex.3

    Notamos certos pontos que definem a linguagem musical de Garoto:

    o a melodia aparece como uma espcie de ornamentao das notas da voz superior dos acordes da harmonia;

    o a 1 frase tem incio em suspenso que demanda uma progresso da harmonia para retornar ao tom principal;

    o uma sequncia cromtica dos acordes criando vozes internas e linha de baixo construda por semitons sucessivos (ascendentes e descendentes);

    o a 2 frase tem a funo de variao transposta tema, sendo concluda na dominante do II (campo harmnico de emprstimo modal (GUEST, 2006, p.11 );

    o progresso por marcha harmnica modulante, no sentido de criar um caminho de retorno pelo ciclo das quintas ao tom principal;

    o tcnica de palhetada6, comum aos violes do jazz, executada com a unha do polegar da mo direita.

    6 Toque das cordas com um plectro preso pelo polegar e indicador da mo direita.

  • 53

    O esquema formal dos compassos 1 - 2 repetido nos compassos 5 - 6 e 9 - 10. A

    variante est sempre no 2 segmento das frases (compassos 3 4, 7 8 e 11 -12) e, nos 4

    compassos finais (13 a 16), Garoto inventa um elemento novo e de funo conclusiva. A

    forma da cano estrfica, da cano popular, ganha um sentido potico novo. Esse

    tributo a Boror aponta para novos caminhos da sintaxe do discurso da msica popular.

    Ex.4

    A progresso A9/C#- Am7- D7(b9)#11- C#7(b9) (Comp.8) uma substituio7 da

    cadncia perfeita: 2 de Fa# - subV7 (V) (7 de Dominante Substituto do Dominante) - 2 do tom - V7 (7 de Dominante) - 1 do tom - I (Tnica), na Tonalidade secundria de

    F#Maior. A repetio do 1 frase (comp.9 a 12) transforma o acorde de tnica em 7 de

    dominante. (FARIA, 1999, p.27).

    7 Progresso de acordes que substitui uma progresso harmnica bsica.

  • 54

    Ex.5

    A passagem cromtica descendente, em sucesso paralela de acordes m7, equilibra

    o esquema de frases em quadratura8 e encerra na cadncia II-V7/I, concluindo a parte A,

    do choro.

    Carioquinha foi concebido no plano AA-BB-A-Coda, utilizando uma forma usual

    na tradio do choro instrumental. A segunda parte da forma ternria, de modo geral,

    assume um carter de ampliao tonal: mudana de armadura de clave (campo harmnico),

    utilizando os mecanismos da modulao. No entanto, Garoto cria um procedimento

    surpreendente na construo da seo B: a tonalidade de Mi menor (Fa# na clave)

    alcanada apenas no seu compasso final (comp.32). O motivo meldico do compasso 17

    aparece como uma variao do motivo inicial, associado com uma harmonia de acordes

    quase enarmnicos ao acompanhamento do tema, seguindo a mesma linha de baixo.

    Como se diz, na fala coloquial dos msicos, a harmonia entorta.

    Ex.6

    Mostramos, a seguir, a continuao de nosso plano de realizar a harmonia. No

    seria demais ressaltar que a arte do acompanhamento torna-se uma tcnica de

    composio. A partir do compasso 21, Garoto abandona a melodia e um desenho rtmico

    8 Frases estrficas de quatro compassos.

  • 55

    colocado em primeiro plano e a msica segue uma progresso cromtica em direo ao

    ponto culminante (comp. 24).

    Ex.7

    No compasso 24, encontramos o efeito de acorde fantasma (re-sol-si), resultante

    do abandono da mo esquerda do violonista para executar uma brusca mudana de posio.

    O ataque desse acorde deve ser surdo, percussivo, j que no tem funo harmnica.

    Na seo b de B, temos a recorrncia do motivo inicial. A harmonia, mais uma vez

    cromtica, aponta para uma intrincada sequncia cadencial, no compasso 31.

    Ex.8

  • 56

    A Coda (comp.33) utiliza o procedimento de extenso da parte A, atravs de uma

    marcha harmnica deceptiva (sucesso IIm-V7, sem resoluo). O cromatismo originado

    na passagem de Gm7 para o acorde de F#m7 (II grau de Mi) resulta numa aproximao

    ao tom de Mi Maior. A cadncia SubV/I pontua o final desse choro moderno.

    Ex.9

  • 57

    2.2.3 - Choro Triste N2

    ... a intuio pode simpatizar com o absoluto: assim como este

    no fabrica produtos, mas os cria a partir da interioridade relativa

    de cada um, assim tambm a intuio comunica-se com o interior

    das realidades intudas. Assim se compreende que a intuio seja

    reflexo. (SILVA, 1994, p.288)

    O motivo da anacruse do Choro Triste N2 reporta, de imediato, ao baixo inicial de

    A Caminho dos Estados Unidos. O desenho do primeiro compasso apresenta o mesmo

    perfil, nos dois choros. A diferena est na formao dos acordes; a sequncia cromtica de

    acordes diminutos em A Caminho... agora substituda por acordes de 7 de dominante.

    A cronologia da obra de Garoto exigiria uma pesquisa que no est na dimenso e nos

    objetivos do presente trabalho. Sabe-se que h uma distncia no tempo das duas

    composies. Garoto era um improvisador. Com o violo em punho, poderia tocar num

    gesto contnuo de idias. Suas composies para violo solo evocam momentos de

    inspirao desvinculados de uma produo exigida por uma agenda profissional. Pelo

    carter de sntese formal e a densidade de informao de sua msica, somos levados a um

    conjunto inseparvel de peas que poderiam ser definidas como Sinal dos Tempos, desse

    tempo de intuio do futuro. (ANTONIO; PEREIRA, 1982)

    Elaboramos uma anlise de Choro Triste N2. Um esquema harmnico (acordes

    classificados em cifras e numerados em graus) revela as relaes tonais e resumem a

    estrutura da harmonia da pea (GUEST, 2006, p.42). A forma tripartite (A-BB-A) segue

    um padro rigoroso de perodos de 16 compassos. A construo das frases, co