garota, interrompida - kaysen, susanna

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

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    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico epropriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que oconhecimento e a educao devem ser acessveis e livres a toda e qualquerpessoa. Voc pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou emqualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • CARO LEITOR,Queremos saber sua opinio sobre nossos livros. Aps a leitura, curta-nos nofacebook/editoragentebr, siga-nos no Twitter@EditoraGente e visite-nos no sitewww.editoragente.com.br.Cadastre-se e contribua com sugestes, crticas ou elogios.Boa leitura!

  • GerenteEditorialMariana

    RolierEditoraMarliaChaves

    Editora deProduoEditorial

    Rosngelade Araujo

    PinheiroBarbosa

    Controlede

    nica um selo da EditoraGente.

  • ProduoFbio

    EstevesTraduo

    MrciaSerra

    Preparaode TextoBooks &

    IdeasProjetoGrfico

    NeideSiqueira

    EditoraoJoin Bureau

    Ttulo original: Girl,interruptedCopyright 1993 by SusannaKaysenTodos os direitos desta edioso reservados Editora Gente.Rua Pedro Soares de Almeida,114So Paulo, SP CEP 05029-030Telefone: (11) 3670-2500Site:http://www.editoragente.com.brE-mail:[email protected]

  • RevisoMalvina

    TomzCapa

    Retina 78Produodo e-book SchfferEditorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Kaysen, Susanna Garota, interrompida / Susanna Kay sen ; traduo de MrciaSerra. So Paulo : Editora Gente, 2013.

    Ttulo original: Girl, interrupted. ISBN 978-85-67028-02-6

    1. Kaysen, Susanna, 1948 Sade mental 2. Memriasautobiogrficas Literatura norte-americana 3. Pacientes dehospitais psiquitricos Estados Unidos Biografia I. Ttulo.

  • 13-04882

    ndices para catlogo sistemtico:1. Memrias autobiogrficas : Literatura norte-americana 813

  • Para Ingrid e Sanford.

  • Sumrio

    AgradecimentosEm busca de uma topografia do universo paraleloO txiEtiologiaFogoLiberdadeO segredo da vidaPolticaSe voc morasse aqui, j estaria em casaMeu suicdioTopografia elementarTopografia aplicadaPreldio para um sorveteSorveteRondaObjetos afiadosOutra LisaA ronda dos namoradosEm quem voc acredita, nele ou em mim?Velocidade viscosidadeTela de seguranaGuardisMil novecentos e sessenta e oitoOssos expostosSade bucalCalais est gravada no meu coraoA sombra da realidadeEstigmatografiaAvanos recentes no campo da sade bucalTopografia do futuroMente crebroTranstorno de personalidade limtrofeMeu diagnsticoMais adiante, na estrada, voc me acompanharGarota, interrompida

  • Agradecimentos

    MEUS AGRADECIMENTOS a Jill Ker Conway, Maxine Kumin e Susan Ware,pelo incentivo desde o incio; a Gerald Berlin, pela assessoria jurdica; e a JulieGrau, pelo entusiasmo e pela dedicao com que cuidou tanto do livro quanto daautora.

    Quero manifestar minha gratido especial a Robin Becker, Robin Desser,Michael Downing, Lyda Kuth e Jonathan Matson pela perspiccia, pelo senso dehumor e pela inabalvel amizade.

  • Em busca deuma topografia

    do universoparalelo

  • AS PESSOAS ME PERGUNTAM: como voc foi parar l? O que querem saber,na verdade, se existe alguma possibilidade de tambm acabarem l. No seiresponder verdadeira pergunta. S posso dizer: fcil.

    E mesmo fcil escorregar para dentro de um universo paralelo. So tantos!O mundo dos insanos, o dos criminosos, o dos aleijados, o dos moribundos etalvez o dos mortos tambm. Mundos que convivem com este mas no lhepertencem, embora a ele se assemelhem.

    Georgina, minha companheira de quarto, chegou de repente e por inteiro,quando cursava o antepenltimo ano no Vassar College. Estava no cinema, vendoum filme, quando uma grande onda negra a engoliu. Por alguns minutos, omundo se obliterou totalmente. Ela compreendeu que tinha enlouquecido. Olhouao redor, no cinema, para ver se aquilo estava acontecendo com todos, mas asoutras pessoas continuavam absortas vendo o filme. Saiu correndo, pois aescurido do cinema, somada escurido que inundava sua cabea, era demais.

    E depois? perguntei. Muita escurido ela respondeu.Contudo, a maioria das pessoas chega aqui aos poucos, abrindo de furo em

    furo a membrana que separa o aqui do l fora, at aparecer uma brecha. Equem resiste a uma brecha?

    No universo paralelo, ficam revogadas as leis da Fsica.Nem sempre o que sobe desce; um corpo em repouso no tende a permanecer

    assim e nada garante que a toda ao corresponder uma reao igual econtrria. O prprio tempo outro. Pode correr em crculos, refluir, saltar ao lude hoje para ontem. At a disposio das molculas fluida. Uma mesa talvezseja um relgio; um rosto pode ser uma flor.

    Esses fatos, porm, voc s descobre mais tarde. Outro aspecto curioso douniverso paralelo que, embora ele seja invisvel pelo lado de c, depois queentramos fica fcil enxergar o mundo do qual viemos. s vezes, o mundo do qualviemos nos parece vasto e ameaador, trmulo e instvel como uma imensagelatina; outras vezes, uma miniatura fascinante, girando, reluzente, em suarbita. De uma maneira ou de outra, no h como descart-lo.

  • De todas as janelas de Alcatraz d para ver So Francisco.

  • O txi

  • VOC EST COM UMA ESPINHA disse o mdico. Eu vinha torcendo paraningum perceber. Voc a espremeu ele prosseguiu.

    Naquela manh, quando acordei (e tinha acordado cedo para no perder aconsulta), a espinha atingira um estgio de expectante maturidade, pedindo paraser espremida. Era seu anseio de liberdade. Libert-la de sua pequena cpsulabranca, espremendo at jorrar sangue, provocou em mim um sentimento derealizao. Eu havia feito tudo o que podia ser feito por aquela espinha.

    Voc andou se espremendo disse o mdico. Concordei com a cabea.Uma vez que ele ia insistir naquilo at que eu concordasse, ento concordei.

    Voc tem namorado? ele perguntou.Concordei com a cabea de novo. Problemas com ele? No era uma pergunta, na verdade, pois ele mesmo

    j balanava a cabea afirmativamente. Voc andou se espremendo repetiu. De repente, saiu de trs da mesa e avanou em minha direo. Era umhomem gordo e tenso, moreno, de barriga compacta.

    Voc precisa descansar proclamou.De fato, eu precisava descansar, sobretudo por ter levantado to cedo para ir

    ao mdico, que ficava em um subrbio elegante. Tive de mudar de trem duasvezes e depois teria de voltar pelo mesmo caminho para chegar ao trabalho. Sde pensar nisso eu j me sentia cansada.

    No concorda comigo? Ele continuava ali de p, na minha frente. Noacha que precisa descansar?

    Acho respondi.Ele foi at a sala contgua. Pude ouvir que falava ao telefone.Volta e meia penso naqueles minutos seguintes meus ltimos dez minutos.

    Por um instante, senti vontade de me levantar e sair porta afora, caminhar osvrios quarteires at a estao para esperar o trem que me levaria de volta aomeu namorado complicado, ao meu emprego na loja de utenslios para cozinha,mas estava cansada demais.

    Ele voltou sala, diligente, despachado e muito cheio de si. Consegui um leito para voc disse. Voc vai descansar. S algumas

  • semanas, certo?Seu tom de voz era conciliador e suplicante o que me deixou assustada. Na sexta-feira eu vou respondi.Estvamos na tera; talvez at sexta eu no quisesse mais ir. Ele avultou

    minha frente, com sua barriga. No. Voc vai agora.Aquilo me pareceu um pouco insensato. Tenho um compromisso para o almoo argumentei. Esquea ele disse. Voc no vai a esse almoo. Vai para o hospital.Seu ar era de vitria.Aquele subrbio, antes das oito da manh, era muito tranquilo. E nenhum de

    ns tinha algo mais a dizer. Ouvi o barulho do txi estacionando na entrada decarros do consultrio do mdico.

    Ele me pegou pelo cotovelo, que apertou entre os dedos grandes e grossos, eme conduziu para fora. Sem largar do meu brao, abriu a porta traseira do txi eme empurrou para dentro. Sua enorme cabea pairou um instante ao meu lado,no banco traseiro. Ento ele bateu a porta.

    O motorista abaixou o vidro at a metade. Para onde?Sem palet na manh fria e com as pernas grossas bem plantadas na entrada

    de carros, o mdico ergueu o brao e apontou para mim. Leve-a para o McLean disse. E no permita que ela desa no meio do

    caminho.Deixei a cabea cair sobre o encosto e fechei os olhos. Sentia alvio por estar

    em um txi e no ter de esperar o trem.

  • Etiologia

  • ESTA PESSOA (escolher uma opo):1. Est fazendo uma viagem perigosa, com a qual poderemos aprender

    muito, se ela voltar.2. Est possuda (escolher uma opo):

    1. pelos deuses.2. por Deus (isto , por um profeta).3. por espritos malignos, demnios ou diabos.4. pelo diabo.

    3. uma bruxa.4. Est enfeitiada (variante do item 2).5. m e precisa ser isolada e punida.6. Est doente e precisa ser isolada e tratada por meio (escolher uma

    opo):1. de purgantes e sanguessugas.2. da remoo do tero, caso possua um.3. de choques eltricos no crebro.4. de lenis molhados com gua fria, amarrados com

    firmeza em volta do corpo.5. de Amplctil ou Stelazine.

    7. Est doente e precisa passar os prximos sete anos falando sobre isso.8. uma vtima da intolerncia social decorrente de comportamentos

    que se afastam da norma.9. Est s em um mundo insano.

    10. Est empreendendo uma perigosa viagem da qual talvez jamaisvolte.

  • Fogo

  • UMA DE NS ATEOU FOGO EM SI MESMA, com gasolina. Na poca, ela notinha idade suficiente para dirigir. Minha dvida era de que maneira ela teriaconseguido a gasolina. Teria caminhado at o posto de gasolina do bairro e ditoque o carro do pai tinha ficado sem combustvel? Eu no conseguia olhar para elasem pensar nisso.

    Creio que a gasolina tinha se acumulado em suas clavculas, formando poasjunto aos ombros, pois as cicatrizes piores eram as que exibia no pescoo e nasfaces. Formavam cordes grossos, alternadamente cor-de-rosa e brancos, emlistras que subiam pelo pescoo. Eram to duras e largas que ela no conseguiavirar a cabea, tendo de girar todo o tronco para enxergar quem estava ao lado.

    As cicatrizes no tm personalidade. No so como a pele da gente: nomostram a idade ou alguma doena, a palidez ou o bronzeado. No tm poros,pelos ou rugas. So uma espcie de fronha, que protege e esconde o que houverpor baixo. Por isso as criamos. Porque temos algo a esconder.

    Chamava-se Polly. Um nome que na certa lhe parecera ridculo nos dias oumeses em que planejara atear fogo nela mesma, mas que se adequava comperfeio sua vida de sobrevivente sob a fronha. Nunca estava triste. Era gentile confortava os tristes. Nunca se queixava e sempre tinha tempo para ouvir asqueixas dos outros. No havia defeitos dentro daquele invlucro rosa e branco,justo e impermevel. O que quer que a tivesse motivado, murmurando-lheMorra! ao p do ouvido outrora perfeito e hoje desfigurado, ela havia imolado.

    Por que fizera aquilo? Ningum sabia. Ningum se atrevia a perguntar. Afinal,que coragem! Quem teria coragem de se queimar daquele jeito? Vinte aspirinas,um pequeno talho acompanhando as veias do brao, at mesmo quem sabe? meia hora de horror no alto de um telhado: todos passamos por algo assim. E poroutras coisas um pouco mais perigosas, como enfiar um revlver na boca.Entretanto, ao enfi-lo na boca e sentir seu gosto frio e oleoso, dedo pousado nogatilho, descobrimos que h um mundo inteiro entre esse momento e o momentoto planejado: o momento de puxar o gatilho. E esse mundo que nos derrota.Guardamos o revlver de volta na gaveta. Temos de descobrir outra maneira.

    Como teria sido para ela aquele momento, o momento de riscar o fsforo?

  • Ser que ela j havia experimentado telhados, revlveres e aspirinas? Ou aquiloteria sido s uma inspirao?

    Uma vez tive uma inspirao dessas. Acordei pela manh sabendo quenaquele dia tinha de engolir cinquenta aspirinas. Era minha tarefa, minhaincumbncia para aquele dia. Enfileirei-as sobre a mesa, engoli uma por uma efui contando. Isso, porm, no igual ao que ela fez. Eu poderia ter parado nadcima, na trigsima. Como poderia ter feito o que de fato fiz, ou seja, ter idopara a rua e desmaiado. Cinquenta aspirinas so um bocado de aspirinas, mas irpara a rua e desmaiar a mesma coisa que guardar o revlver de volta nagaveta.

    Ela riscou o fsforo.Onde? Na garagem de sua casa, para no atear fogo em outras coisas? No

    meio de um descampado? Na quadra da escola? Em uma piscina vazia?Algum a encontrou, mas isso demorou um pouco. Quem beijaria uma pessoa

    como aquela, uma pessoa sem pele?A ideia lhe ocorrera antes dos 18 anos. Ela estava conosco fazia um ano.

    Enquanto as outras esbravejavam e gritavam, contorciam-se e choravam, Pollyolhava e sorria. Sentava-se ao lado das que estavam assustadas, e sua presena asacalmava. Seu sorriso no tinha maldade, era cheio de compreenso. A vida eraum inferno, ela sabia. Contudo, seu sorriso deixava entrever que ela tinhaqueimado tudo isso dentro dela. Seu sorriso tinha uma ponta de superioridade: nsno teramos tido aquela coragem de nos queimar por dentro; e isso ela tambmcompreendia. Cada pessoa uma pessoa. Cada um faz o que possvel fazer.

    Certa manh, havia algum chorando, mas as manhs eram mesmobarulhentas: brigas por causa da hora de acordar, queixas sobre pesadelos. Pollyera uma presena to discreta, to quieta, que no percebemos sua ausncia nocaf da manh. Depois do caf, continuamos ouvindo o choro.

    Quem est chorando?Ningum sabia.Na hora do almoo, ainda se ouvia o choro. a Polly disse Lisa, que sabia tudo. Por qu?Mas isso nem Lisa sabia. noitinha o choro se transformou em gritos. O entardecer uma hora

    perigosa. Primeiro ela gritava Aaaaah! e Iiiiiih!. Depois, comeou a gritarpalavras.

    Meu rosto! Meu rosto! Meu rosto!Dava para ouvir outras vozes tentando silenci-la, murmurando palavras

    reconfortantes; mas ela continuou a gritar aquelas duas palavras noite adentro. Bem, faz tempo que eu esperava uma coisa assim disse Lisa.Depois, acho, todas percebemos quanto havamos sido tolas.

  • Algum dia poderamos sair, mas ela estava aprisionada naquele corpo parasempre.

  • Liberdade

  • LISA TINHA FUGIDO DE NOVO. Ficamos tristes, pois ela nos dava nimo. Eraengraada. Lisa! Ainda hoje, no consigo pensar nela sem sorrir.

    O pior que sempre a pegavam e a traziam de volta, toda suja, com o olharensandecido de quem enxergou a liberdade. Ela amaldioava seus captores, enem mesmo as veteranas mais irredutveis conseguiam conter o riso diante dosxingamentos que inventava.

    Boceta de bacalhau!Ou ento, outro dos seus favoritos: Seu morcego esquizofrnico!Geralmente encontravam-na antes do fim do dia. A p e sem dinheiro, ela no

    conseguia ir muito longe. Dessa vez, porm, parecia ter dado sorte. No terceirodia, ouvi algum na sala das enfermeiras anunciar pelo telefone um aviso deintensificao de busca.

    Reconhecer Lisa na certa no seria difcil. Ela raramente comia e nuncadormia, de forma que era magra e amarelada, como costumam ser as pessoasque no comem, e tinha bolsas enormes sob os olhos. Prendia os cabelos grossos,escuros e opacos com uma fivela prateada. Seus dedos eram os mais longos quej vi.

    Daquela vez, quando a trouxeram de volta, estavam quase to furiosos quantoela. Dois homens fortes a seguravam pelos braos e um terceiro a segurava peloscabelos, puxando-os, enquanto Lisa arregalava os olhos. Todo mundo se calou,inclusive ela. Enquanto olhvamos, ela foi levada para o fim do corredor.

    Vamos muitas coisas.Vamos Cynthia voltar em prantos do eletrochoque, uma vez por semana.

    Vamos Polly tremendo de frio, enrolada em lenis umedecidos com guagelada. Entretanto, uma das piores coisas que vimos foi Lisa saindo da solitria,dois dias depois.

    Em primeiro lugar, suas unhas estavam aparadas at o sabugo. Ela tinha unhasmuito bonitas, das quais sempre cuidava , pintava, lixava, dava forma.Alegaram que suas unhas eram objetos cortantes.

    Alm disso, haviam confiscado seu cinto. Lisa sempre usava um cinto barato,

  • de miangas, desses que os ndios das reservas costumam fabricar. Era um cintoverde, com tringulos vermelhos, e pertencera a seu irmo Jonas, o nicomembro da famlia que ainda mantinha contato com ela. A me e o pai no avisitavam porque ela era uma sociopata pelo menos, era o que Lisa dizia.Confiscaram o cinto para que no se enforcasse com ele.

    No compreendiam que Lisa jamais se enforcaria.Lisa saiu da solitria e recebeu o cinto de volta. Suas unhas voltaram a crescer,

    mas ela no voltou. Ficava sentada, assistindo televiso com aquelasconsideradas mais irrecuperveis.

    Lisa nunca fora muito de assistir televiso. Para as que assistiam, mostravadesprezo. tudo uma bosta!, berrava, enfiando a cabea pela porta da sala deTV. Vocs j parecem robs. Desse jeito vo piorar. s vezes, desligava a TVou se plantava diante da tela, desafiando algum a lig-la de novo. A plateia,porm, era quase toda formada por catatnicas e depressivas que no estavam afim de se mexer. Passados cinco minutos, ou seja, mais ou menos o tempo queela conseguia ficar parada, ela saa para fazer outra coisa; e, quando aencarregada da ronda se aproximava, voltava a ligar o aparelho.

    Como Lisa no dormia havia dois anos, as enfermeiras desistiram de mand-lapara a cama. Em vez disso, havia uma cadeira s sua no corredor, como a daequipe da noite, onde ficava sentada, fazendo as unhas. Sabia preparar umchocolate maravilhoso e, s trs da madrugada, preparava um para a equipe danoite e para quem mais estivesse de p. noite ela costumava ficar mais calma.

    Certa vez eu lhe perguntei: Lisa, como que noite voc no fica andando de um lado para o outro,

    nem grita? Tambm preciso descansar ela respondeu. S porque no durmo, no

    quer dizer que eu no descanse.Lisa sempre sabia o que lhe fazia falta. Preciso tirar frias deste lugar dizia s vezes, e ento fugia. Toda vez que

    voltava, ns lhe perguntvamos como estava o mundo l fora. um mundo ruim dizia. Geralmente, ela ficava bem contente por estar

    de volta. L fora no tem ningum para cuidar da gente.Agora, no dizia uma palavra. Ficava o tempo todo na sala de televiso.

    Assistia aos programas religiosos, olhava at as barras coloridas que apareciamna TV antes de o canal entrar no ar, passava horas vendo programas deentrevistas da alta madrugada e noticirios matutinos. No corredor, sua cadeirapermanecia desocupada. Ningum mais ganhava chocolate.

    Vocs esto dando algum remdio para a Lisa? perguntei encarregadada ronda.

    Voc sabe que no podemos comentar a medicao com as pacientes.Perguntei enfermeira-chefe, que eu conhecia do tempo em que ela ainda

  • no estava no cargo, mas ela reagiu como se sempre tivesse sido a enfermeira-chefe.

    No podemos falar sobre a medicao... e voc sabe disso. Para que perguntar? disse Georgina. Ela est completamente dopada.

    bvio que esto dando algum remdio para ela.Cy nthia achava que no. Ela ainda est andando direito observou. Eu no disse Polly. De fato, no estava. Caminhava com os braos

    projetados diante dela, as mos vermelhas e brancas penduradas nos punhos, osps se arrastando no cho. Os lenis gelados no funcionavam; ela continuavagritando a noite inteira at lhe darem algo.

    Demora um pouco eu disse. Voc andava direito quando elescomearam.

    Agora no ando disse Polly , olhando para as prprias mos.Perguntei a Lisa se eles a estavam medicando, mas ela no quis olhar para

    mim.E assim transcorreram uns dois meses, com Lisa e as catatnicas na sala de

    televiso, Polly andando como um cadver motorizado, Cy nthia chorando depoisdos eletrochoques (No estou triste, ela me explicou, mas no consigoprender o choro), eu e Georgina em nossa sute dupla. ramos consideradas asmais saudveis.

    Com a chegada da primavera, Lisa comeou a passar um pouco mais detempo fora da sala de televiso. No banheiro, mais precisamente o que nodeixava de ser uma mudana.

    O que ela fica fazendo no banheiro? perguntei encarregada da ronda,uma funcionria nova.

    E eu l tenho obrigao de ficar abrindo a porta dos banheiros?Fiz o que com frequncia fazamos com gente nova. Qualquer hora dessas algum se enforca l dentro! Onde que voc pensa

    que est, afinal de contas? Em um colgio interno?Depois, encarei-a bem de perto, quase encostando meu rosto no dela. Elas no

    gostavam disso, de contato fsico com a gente.Reparei que Lisa entrava cada vez em um banheiro diferente. Havia quatro

    banheiros, e ela percorria todos diariamente. Seu aspecto no era nada bom. Seucinto estava frouxo e ela parecia mais amarela do que o normal.

    Vai ver que ela est com disenteria comentei com Georgina, masGeorgina achava que ela estava era dopada.

    Certa manh de maio, enquanto tomvamos o caf, ouvimos a porta bater.Lisa entrou na cozinha.

    A televiso fica para depois disse.Serviu-se de uma xcara grande de caf, como costumava fazer antes todas as

  • manhs, e sentou-se mesa. Sorriu para ns, que sorrimos para ela. Esperem s para ver... disse.Ouviu-se um corre-corre de passos e vozes que diziam coisas como Mas que

    droga! ou Como que pode?. Ento a enfermeira-chefe entrou na cozinha. Foi voc quem fez isso! disse ela olhando para Lisa.Fomos ver o que era.Lisa tinha embrulhado todos os mveis alguns deles ocupados pelas

    catatnicas , bem como a TV e o sistema de sprinklers do teto, com papelhiginico metros e mais metros de papel higinico esvoaando, pendurados,embolados e enrolados em tudo e por toda parte. Foi maravilhoso.

    No estava dopada falei para Georgina. Estava era conspirando.O vero foi agradvel. Lisa contou um monte de histrias sobre as coisas que

    havia feito nos seus trs dias de liberdade.

  • O segredo davida

  • UM DIA, RECEBI UMA VISITA. Eu estava na sala de TV, vendo Lisa assistir televiso, quando uma enfermeira veio me avisar.

    Tem uma visita para voc ela disse. Um homem.No era meu namorado problemtico, que por sinal no era mais meu

    namorado. Uma pessoa internada l pode ter namorado? Alm do mais, ele nosuportava entrar ali. Sua me tambm esteve internada em um hospcio, comofiquei sabendo depois; e ele no suportava lembrar disso.

    No era meu pai, que andava ocupado.No era meu professor de Ingls do ginsio, que havia sido despedido e se

    mudara para a Carolina do Norte.Fui ver quem era.Ele estava de p junto janela da sala de visitas, olhando para fora: alto como

    uma girafa, ombros cados, acadmicos, pulsos aparecendo pelas mangas dopalet, cabelos claros espetados como uma aurola em torno da cabea. Ao meouvir chegar, virou-se.

    Era Jim Watson. Fiquei contente em v-lo ali, pois, nos anos 1950, eledescobrira o segredo da vida, e talvez agora me contasse qual era.

    Jim! exclamei.Ele se aproximou, levitando. Quando conversava com algum, levitava,

    hesitava e se anulava; e eu tinha simpatizado com ele exatamente por isso. Voc est tima! ele disse. E voc esperava o qu? perguntei.Ele sacudiu a cabea. O que eles fazem com vocs, aqui? falou, em um sussurro. Nada respondi. No fazem nada. Isso aqui horrvel disse ele.A sala de visitas era uma parte especialmente horrvel do nosso pavilho. Era

    imensa, entulhada com gigantescas poltronas forradas com vinil, que peidavamquando algum se sentava.

    No to ruim assim afirmei. Contudo, eu estava acostumada; ele no.Ele levitou de novo at a janela e olhou para fora. Aps uma pausa, chamou-

  • me com um gesto do brao comprido. Olhe disse, apontando para alguma coisa. O qu? Aquilo ali apontava para um carro, um carro esporte vermelho, um

    Mustang, talvez. meu disse.Como ele ganhara o Prmio Nobel, provavelmente comprara o carro com o

    dinheiro. Bonito observei. Muito bonito. Podamos ir embora sussurrou. H? Voc e eu podamos ir embora. De carro, voc quer dizer? Eu estava perplexa. Seria esse o segredo da

    vida? O segredo da vida seria fugir? Eles iriam atrs de mim falei. Ele corre muito! disse. Eu poderia tir-la daqui.De repente, tive por ele um sentimento de proteo. Obrigada respondi. Obrigada por oferecer. muita gentileza sua. Voc no quer ir embora? Ele inclinou-se para mim. Podamos ir para

    a Inglaterra. Para a Inglaterra? O que a Inglaterra tinha a ver com o que quer que

    fosse? No posso ir para a Inglaterra respondi. Voc poderia trabalhar como governanta.Durante cerca de dez segundos fiquei imaginando aquela outra vida que

    comeava comigo entrando no carro vermelho de Jim Watson e ns doisdisparando a toda do hospital para o aeroporto. A parte de ser governanta no meparecia clara. Alis, nada me parecia claro. As cadeiras de vinil, as telas desegurana, a campainha na porta da sala das enfermeiras: essas coisas, sim,eram claras.

    Agora estou aqui, Jim falei. E acho que aqui que tenho de ficar. Tudo bem.No parecia aborrecido. Deu uma olhada na sala uma ltima vez e sacudiu a

    cabea.Fiquei ali, junto janela. Minutos depois, vi-o entrar no carro vermelho e ir

    embora, o escapamento soltando pequenas baforadas. Em seguida, voltei para asala de televiso.

    Oi, Lisa falei. Era bom encontr-la ainda ali. Humm disse ela.Eu e ela nos acomodamos para ver um pouco mais de TV.

  • Poltica

  • EM NOSSO MUNDO PARALELO aconteciam coisas que ainda no tinhamocorrido no mundo de onde havamos sado. Quando por fim elas aconteciam lfora, era como se j soubssemos, pois alguma verso daquilo j se desenrolaradiante de ns. ramos como uma plateia provinciana, uma New Haven emoposio Nova York do mundo real: um lugar onde a histria podia fazer a pr-estreia do seu prximo espetculo.

    Por exemplo: a histria de Brad, o namorado de Georgina, e do acar.Haviam se conhecido no refeitrio. Brad era moreno e bonito, de um jeito

    insosso e tipicamente americano. O que o tornava irresistvel era a sua raiva.Tinha raiva de quase tudo, e sua fria chegava a fulgurar. Georgina explicou queo problema dele era com o pai.

    O pai dele espio, e Brad tem raiva porque nunca vai conseguir ser toduro quanto ele.

    Eu estava mais interessada no pai do que no problema de Brad. Espio nosso? perguntei. claro respondeu Georgina, e no quis dizer mais.Brad e Georgina ficavam sentados no cho do nosso quarto, cochichando.

    Esperavam que eu os deixasse a ss e era isso que eu geralmente fazia. Um dia,porm, resolvi ficar e xeretar sobre o pai dele.

    Brad adorava falar no pai. Ele mora em Miami, para poder viajar para Cuba. Ele invadiu Cuba. Matou

    dzias de pessoas com as prprias mos. E sabe quem matou o presidente. Foi ele quem matou o presidente? perguntei. Acho que no disse Brad.O sobrenome de Brad era Barker.Devo admitir que no acreditei em uma s palavra do que ele disse. Afinal de

    contas, tratava-se de um louco de 16 anos, to violento que s dois atendentesfortes conseguiam segur-lo. s vezes passava uma semana trancafiado nopavilho sem que Georgina pudesse v-lo. Depois se acalmava e retomava suasvisitas ao cho do nosso quarto.

    O pai de Brad tinha dois amigos que causavam uma impresso

  • particularmente forte no filho: Liddy e Hunt. Esses caras so capazes de qualquer coisa! afirmava Brad. Dizia isso com

    frequncia, como se aquilo o preocupasse.Georgina no gostava que eu o incomodasse fazendo perguntas sobre o pai;

    quando eu me sentava no cho, ao lado deles, ela no tomava conhecimento demim, mas eu no resistia.

    O que, por exemplo? perguntei a ele. Que tipo de coisa eles so capazesde fazer?

    Isso eu no posso revelar respondeu Brad.Pouco depois disso, ele entrou em uma fase violenta que durou vrias

    semanas.Georgina no sabia o que fazer sem as visitas de Brad. Como eu me sentia em

    parte responsvel pela ausncia dele, sugeri vrias distraes. Vamos redecorar o quarto sugeri. Vamos jogar palavras cruzadas no

    tabuleiro. Ou ento: Vamos cozinhar alguma coisa.A ideia de cozinhar a motivou. Vamos preparar caramelos ela disse.Para mim, era uma surpresa que apenas duas pessoas em uma cozinha

    conseguissem fazer caramelos. Sempre pensei que fossem um artigo produzidoem massa, como os automveis, que exigiam uma maquinaria complicada.

    Segundo Georgina, porm, s precisaramos de uma frigideira e acar. Assim que ficar no ponto, fazemos bolinhas e as despejamos sobre papel-

    manteiga ela explicou.As enfermeiras acharam graa em nos ver cozinhando. Est se preparando para quando voc e Brad se casarem? perguntou uma

    delas. No acho que Brad seja do tipo que queira casar disse Georgina.At mesmo quem nunca fez caramelos sabe como o acar precisa estar

    quente para ficar no ponto. Pois estava quente assim quando a frigideiraescorregou e eu entornei metade da calda na mo de Georgina, que segurava opapel-manteiga esticado.

    Comecei a gritar, mas Georgina no deu um pio. As enfermeiras vieramcorrendo com gelo, unguentos e curativos, enquanto eu no parava de gritar eGeorgina no fazia nada; ficou ali parada, com a mo caramelada estendida sua frente.

    No me lembro se foi E. Howard Hunt ou G. Gordon Liddy quem, durante osinterrogatrios do caso Watergate, disse que toda noite colocava a mo sobre achama de uma vela at arder, para se certificar de que aguentaria ser torturado.

    De qualquer maneira, ns j sabamos de tudo: da Baa dos Porcos, da pelequeimada, dos matadores capazes de fazer qualquer coisa com as prprias mos.Assistimos pr-estreia Brad, Georgina e eu , bem como a plateia de

  • enfermeiras cujos relatrios diziam mais ou menos o seguinte: A paciente noesboou nenhuma reao aps o acidente; O paciente continua a fantasiar queo pai um agente da CIA com amigos perigosos.

  • Se voc morasseaqui, j estaria

    em casa

  • DAISY ERA UM EVENTO SAZONAL. Todo ano, ela chegava antes do feriadode Ao de Graas e ficava at depois do Natal. Houve um ou outro ano em quetambm veio no seu aniversrio, em maio.

    Sempre conseguia um quarto s para ela. Algum quer dividir um quarto? perguntou a enfermeira-chefe certa

    manh de novembro, durante nossa reunio semanal.Foi um momento de tenso. Georgina e eu, que j dividamos um quarto, nos

    deliciamos com a confuso. Eu! Eu! disse uma, levantando a mo. Era a namorada de um marciano

    e, alm disso, tinha um pnis pequenininho, que adorava exibir. Ningum nuncaquis dividir o quarto com ela.

    Eu dividiria, se algum quisesse, mas claro que ningum vai querer, nemeu vou obrigar ningum a isso. Essa era Cy nthia, que voltara a falar depois deseis meses em estado de choque.

    Eu divido com voc, Cynthia acudiu Polly .No entanto, isso no resolvia o problema, pois Polly j ocupava um quarto

    duplo. Sua companheira era uma anorxica nova chamada Janet, que precisavaser alimentada fora toda vez que seu peso descia abaixo de 34 quilos.

    Eu vi quando ela se pesou, ontem: 35 quilos e meio disse Lisa em voz alta,inclinando-se para mim. Vo ter de entub-la no fim de semana.

    Trinta e cinco e meio o meu peso ideal disse Janet. Contudo, dissera omesmo de 38 e 37 quilos e, consequentemente, ningum queria dividir o quartocom ela.

    No final, juntaram duas catatnicas, e o quarto de Daisy ficou pronto para suachegada em 15 de novembro.

    Daisy tinha duas paixes: laxantes e frango. Toda manh, ia para a sala dasenfermeiras e batucava o balco com os dedos plidos e manchados de nicotina,pedindo impacientemente um laxante.

    Quero o meu Colace sibilava. Quero o meu Ex-Lax.Se houvesse algum ao seu lado, Daisy dava uma cotovelada nas costelas ou

    pisava no p. Detestava que se aproximassem dela.

  • Duas vezes por semana, o pai, cujo rosto lembrava uma batata, trazia umfrango inteiro, que a me assara e embrulhara em papel-alumnio. Daisycolocava o frango no colo e o afagava por cima da embalagem, correndo osolhos pela sala, louca para que o pai partisse e a deixasse dar cabo do bicho. Opai, porm, queria ficar o mximo possvel, pois era apaixonado pela filha.

    Ele no consegue acreditar que foi ele quem a gerou explicou Lisa. Quer trepar com ela para se certificar de que ela existe.

    Mas ela fede protestou Polly . De fato, Daisy cheirava a galinha e merda. Ela nem sempre fedeu disse Lisa.Para mim, Lisa tinha razo. Eu j percebera que Daisy era sexy. Apesar de

    feder, amarrar a cara, sibilar e desferir cotoveladas, tinha uma centelha que nosfaltava. Costumava usar shorts e camisetas cavadas para exibir as pernas e osbraos alvos e rijos; de manh, quando ia buscar seu laxante, saa rebolando pelocorredor, descrevendo semicrculos com o traseiro.

    Quem a seguia pelo corredor era a namorada do marciano, que tambmestava apaixonada por ela.

    Voc no quer ver o meu pnis?Ao que Daisy respondia, em um sibilo: Estou cagando pro seu pnis.Ningum jamais tinha entrado no quarto de Daisy. Lisa decidiu entrar. Tinha

    um plano. Estou com priso de ventre, cara! passou trs dias dizendo. Nossa!No quarto dia, conseguiu um pouco de Ex-Lax com a enfermeira-chefe. No funcionou informou na manh seguinte. No tem nada mais forte? Que tal leo de rcino? perguntou a enfermeira-chefe, que estava

    sobrecarregada de trabalho. Isto aqui um ninho de vboras fascistas disse Lisa. Me d uma dose

    dupla de Ex-Lax.Agora que tinha seis Ex-Lax, estava pronta para negociar. Parou diante da

    porta de Daisy . Ei, Daisy ! chamou. Ei, Daisy ! E chutou a porta. Vai se foder disse ela. Ei, Daisy .Daisy sibilou.Lisa encostou-se na porta. Tenho um negcio aqui que voc vai querer disse. Que merda! disse ela, abrindo a porta.L do fim do corredor, Georgina e eu espivamos. Quando Daisy abriu a

    porta, espichamos o pescoo, mas, como o quarto estava escuro, noconseguimos enxergar nada. Quando a porta se fechou atrs de Lisa, um cheiroestranho, adocicado, vazou fugazmente para o corredor.

    Lisa demorou muito para sair. Desistindo de esperar, fomos para o refeitrio

  • almoar.Durante o noticirio da noite, Lisa fez seu relatrio. Postada diante da TV,

    falou to alto que abafou a voz de Walter Cronkite. O quarto da Daisy est abarrotado de frangos disse. l que ela come

    os frangos. Ela me mostrou o seu mtodo especial. Tira toda a carne, porquegosta de guardar a carcaa inteira. At mesmo as asas. Ela retira toda a carnedas asas. Depois coloca a carcaa no cho, junto da anterior. J tem umas nove.Diz que quando tiver quatorze, hora de ir embora.

    Ela ofereceu uma para voc? perguntei. E eu l ia querer aquele frango nojento? Por que ela faz isso? perguntou Georgina. D um tempo, cara disse Lisa. No posso saber tudo. E os laxantes? quis saber Polly . Ela precisa. Precisa mesmo, por causa de tanto frango! Tem mais coisa do que parece por trs disso tudo disse Georgina. Escuta aqui! Quem conseguiu entrar fui eu disse Lisa.Depois disso, a discusso degenerou rapidamente.Ainda naquela semana tivemos mais novidades sobre Daisy. Seu pai ia lhe dar

    um apartamento como presente de Natal. Um ninho de amor, nas palavras deLisa.

    Daisy estava cheia de si e passava mais tempo fora do quarto, na esperana deque algum lhe perguntasse sobre o apartamento. Georgina fez sua vontade.

    De que tamanho o apartamento, Daisy ? Sala e quarto. Sala em L, galinha separada. Voc quer dizer cozinha separada, n? Foi o que eu disse, sua imbecil. Onde fica o apartamento, Daisy? Perto do Hospital Geral. Ou seja, no caminho do aeroporto? Perto do Hospital Geral.Daisy no queria reconhecer que era no caminho do aeroporto. E do que voc mais gosta nele?Daisy fechou os olhos e fez uma pausa, saboreando a parte de que gostava

    mais. Da placa. Que placa? A placa onde est escrito: Se voc morasse aqui, j estaria em casa.

    Daisy brandiu o punho, empolgada. Entendeu? Todo dia as pessoas vo passarpor ali e ler a placa, e a vo pensar: mesmo! Se eu morasse aqui, j estariaem casa. Mas eu que estarei em casa. Filhos da puta.

    Naquele ano, Daisy foi embora antes, para passar o Natal em seu

  • apartamento. Ela vai voltar disse Lisa. No entanto, pela primeira vez, ela estava

    enganada.Certa tarde de maio fomos convocadas para uma reunio especial. Meninas disse a enfermeira-chefe , tenho uma notcia triste todo

    mundo se inclinou para a frente. Daisy se suicidou ontem. Ela estava no apartamento? perguntou Georgina. Ela deu um tiro nela mesma? perguntou Polly . Quem Daisy? Eu conheo essa Daisy ? perguntou a namorada do

    marciano. Ela deixou algum bilhete? perguntei. Os detalhes no interessam disse a enfermeira-chefe. Era aniversrio dela, no era? perguntou Lisa. A enfermeira-chefe

    concordou com a cabea.Fizemos juntas um minuto de silncio por Daisy .

  • Meu suicdio

  • O SUICDIO UMA FORMA DE ASSASSINATO assassinato premeditado.No algo que se faz da primeira vez que se pensa em fazer. A gente precisa seacostumar com a ideia. E precisa dos meios, da oportunidade, do motivo. Umsuicdio bem-sucedido exige boa organizao e cabea fria, coisas geralmenteincompatveis com o estado de esprito de quem quer se suicidar.

    importante cultivar um distanciamento. Uma forma de fazer isso imaginar-se morta ou morrendo. Havendo uma janela, deve-se imaginar oprprio corpo caindo da janela. Havendo uma faca, deve-se imaginar essa facapenetrando na prpria pele. Havendo um trem que j vai chegar, deve-seimaginar o prprio corpo esmagado sob as rodas. Esses exerccios so essenciaispara atingir o distanciamento necessrio.

    O motivo de suma importncia. Sem um motivo forte, vai tudo por guaabaixo.

    Meus motivos eram fracos: um trabalho de Histria Americana que eu noqueria fazer e a pergunta que eu me propusera meses antes: Por que no mematar?. Morta, eu no precisaria fazer o trabalho. Nem precisaria ficarponderando aquela pergunta.

    Essa ponderao me desgastava. Depois que a gente se faz uma perguntadessas, ela no nos larga mais. Acho que muita gente se mata s para pr fim aodilema de se matar ou no.

    Tudo o que eu pensava ou fazia era imediatamente incorporado ao dilema. Fizum comentrio idiota por que no me mato? Perdi o nibus melhor acabarcom tudo. At o que era bom entrava no jogo. Gostei desse filme talvez eu nodevesse me matar.

    Na verdade, eu s queria matar uma parte de mim: a parte que queria sematar, que me arrastava para o dilema do suicdio e transformava cada janela,cada utenslio de cozinha e cada estao de metr no ensaio de uma tragdia.

    S fui descobrir tudo isso, porm, depois de engolir cinquenta aspirinas.Eu tinha um namorado chamado Johnny, que escrevia poemas de amor para

    mim. Bons poemas. Liguei para ele, disse que ia me matar, deixei o fone fora dogancho, tomei minhas cinquenta aspirinas e percebi meu erro. A, sa para

  • comprar leite, coisa que minha me me pedira para fazer antes de eu tomar asaspirinas.

    Johnny chamou a polcia, que veio at minha casa e contou para a minha meo que eu havia feito. Ela apareceu no supermercado da Avenida Massachusettsno instante em que eu ia desmaiar em cima do balco do aougue.

    No trajeto de cinco quarteires at o supermercado, a humilhao e oarrependimento me invadiram. Eu havia cometido um erro e agora ia morrerpor causa dele. Talvez at merecesse morrer por isso. Comecei a prantear minhamorte. Por um instante, senti compaixo por mim e por toda a infelicidade queeu continha. Tudo comeou a turvar e a rodopiar. Quando cheguei ao mercado, omundo estava reduzido a um tnel estreito e latejante. Eu havia perdido a visoperifrica, meus ouvidos zumbiam, meu pulso latejava. As costeletas e asbistecas ensanguentadas, espremidas nos invlucros de plstico, foram as ltimascoisas que consegui enxergar com nitidez.

    A lavagem estomacal me fez recuperar os sentidos. Um tubo comprido foienfiado no meu nariz, at o fundo da minha garganta. Parecia que queriam mesufocar. Depois, comearam a bombear. Era como tirar sangue em grandequantidade a suco, a sensao de tecidos que ruam e se tocavam de um jeitodiferente do normal, a nusea de sentir que arrancavam tudo o que havia ldentro. Foi um timo desestmulo. Decidi que da prxima vez, com certeza, euno ia tomar aspirina.

    No entanto, quando terminaram, perguntei-me se haveria uma prxima vez.Eu me sentia bem. No estava morta, mas alguma coisa havia morrido. Talvezeu tivesse alcanado meu estranho objetivo de suicdio parcial. Senti uma levezae uma animao que havia anos no sentia.

    Essa despreocupao durou meses. Fiz alguns trabalhos no colgio. Parei desair com Johnny e passei a sair com meu professor de Ingls, que escreviapoemas melhores, embora no fossem para mim. Fui com ele para Nova York;ele me levou ao Museu Frick para ver o quadro de Vermeer.

    A nica coisa esquisita foi que, de repente, me tornei vegetariana.Por causa do meu desmaio em cima do balco do aougue, passei a associar

    carne com suicdio, mas sabia que havia mais coisas por trs disso.A carne estava machucada, sangrando, espremida em uma embalagem

    apertada. E, por mais que tivesse passado seis meses livre desse pensamento, eutambm estava.

  • Topografiaelementar

  • TALVEZ AINDA NO ESTEJA CLARO por que vim parar aqui. Deve ter sidopor algo mais do que uma espinha. No mencionei que nunca havia visto aquelemdico antes, nem que ele levou quinze minutos ou vinte, talvez para resolverme internar. O que eu tinha de to demente que em menos de meia hora ummdico me despachou para o hospcio? E ele me tapeou: tinha dito que eu ficariaalgumas semanas. Fiquei quase dois anos. Eu tinha 18 anos.

    Minha internao foi voluntria. Tinha de ser, pois eu era maior de idade. Eraisso ou um mandado judicial se bem que, no meu caso, nunca teriamconseguido um mandado judicial , mas eu no sabia disso e, portanto, internei-me voluntariamente.

    Eu no era uma ameaa para a sociedade. Seria uma ameaa para mimmesma? As cinquenta aspirinas... mas isso eu j expliquei. Eram metafricas. Euqueria me livrar de certo aspecto da minha personalidade. O que fiz com aquelasaspirinas foi uma espcie de autoaborto. Por algum tempo, deu certo. Depois, oefeito passou, mas no tive coragem de tentar de novo.

    Vejam pelo ponto de vista do mdico. Estvamos em 1967. At mesmo vidascomo a dele, vidas profissionais vividas nos bairros elegantes, no meio do verde,tinham um estranho substrato, uma contracorrente originada em outro mundo ouniverso baratinado e deriva da juventude sem sobrenomes que tirava aspessoas do prumo. Usando a linguagem dele, poderamos chamar esse mundo deameaador. O que essa garotada est fazendo? E a, de repente, uma dessasjovens entra no seu consultrio, vestindo uma saia do tamanho de umguardanapo, ostentando no queixo um monte de espinhas e falando emmonosslabos. Est chapada, ele conclui. Torna a conferir o nome anotado nobloco sua frente. No foi apresentado aos pais dela em uma festa, h dois anos?Do corpo docente de Harvard... ou seria do MIT? As botas dela esto gastas, maso casaco de boa qualidade. O mundo l fora ruim, como diria Lisa. Ele nopode, em s conscincia, devolv-la a esse mundo, onde ela seria arrastada pelamar abaixo dos padres da sociedade que volta e meia invade seu consultrio enele atira outras iguais a ela. Uma forma de medicina preventiva.

    Estarei sendo generosa demais com ele? H alguns anos, li que foi acusado de

  • assdio sexual por uma ex-paciente. No entanto, isso vem acontecendo muito,acusar os mdicos virou moda. Vai ver que era apenas muito cedo naquelamanh, tanto para ele quanto para mim, e ele no pensou direito no que fazer.Vai ver que e isso mais provvel ele apenas quis tirar o corpo fora.

    J o meu ponto de vista mais difcil de explicar. Eu fui l. Primeiro, fui aoseu consultrio; depois entrei no txi, subi a escadaria de pedra do SetorAdministrativo do Hospital McLean e, se no me falha a memria, sentei-me emuma cadeira, onde passei quinze minutos esperando para assinar minha renncia liberdade.

    Quem pretende fazer uma coisa dessas precisa obedecer a vrios pr-requisitos.

    Eu estava tendo um problema com padronagens. Tapetes orientais, pisos decermica, cortinas estampadas, coisas desse tipo. Pior de tudo eram ossupermercados, com seus corredores que lembram tabuleiros de xadrez,compridos e hipnticos. Quando olhava para essas coisas, eu via outras coisasdentro delas. Pode parecer que eu sofria de alucinaes, mas no era o caso. Eusabia que estava olhando para um piso ou para uma cortina, mas suaspadronagens pareciam conter representaes em potencial que, em estonteantesequncia, ganhavam uma vida breve e fugidia. Aquilo ali podia ser umafloresta, uma revoada de pssaros, a foto da minha turma da segunda srie, masno era. Era um tapete, ou coisa parecida, embora as vises fugazes do quepoderia ser me deixassem exausta. A realidade estava se tornando demasiadodensa.

    Tambm vinha acontecendo alguma coisa com minha percepo das pessoas.Muitas vezes, ao olhar para o rosto de algum, eu no conseguia sustentar umaconexo ininterrupta com o conceito de rosto. A anlise sinttica de um rostopode revelar um objeto estranho: mole, pontudo, cheio de respiradouros e pontosmidos. Era o contrrio do meu problema com os desenhos. Em vez deidentificar um excesso de significados, eu no enxergava significado nenhum.

    Entretanto, eu no estava simplesmente pirando, despencando pelo poo rumoao Pas das Maravilhas. Meu infortnio ou minha salvao era ter perfeitaconscincia das minhas interpretaes equivocadas da realidade. Nuncaacreditei nas coisas que via ou pensava ver. Mais do que isso, compreendiacorretamente cada uma dessas estranhas atitudes.

    Pois bem. A eu dizia a mim mesma: voc est se sentindo isolada e diferentedas outras pessoas e por isso projeta nelas seu desconforto. Quando voc olhapara um rosto e v uma massa de borracha, porque teme que seu rosto sejamesmo uma massa de borracha.

    Essa lucidez permitia que eu me comportasse normalmente, o que suscitavaalgumas questes interessantes. Ser que todos viam aquilo e fingiam que noviam? Seria a insanidade uma simples questo de parar de fingir? Se algumas

  • pessoas no viam aquelas coisas, o que estava acontecendo com elas? Estariamcegas ou o qu? Perguntas como essas me deixavam abalada.

    Alguma coisa havia sido descascada, a cobertura ou casca que existe para nosproteger. Eu no sabia ao certo se essa cobertura fazia parte de mim ou se estavanas coisas do mundo exterior. Na verdade, isso no importava, pois onde querque tivesse estado, no estava mais.

    E esse era o pr-requisito mais importante: o de que qualquer coisa podia seroutra coisa. To logo admiti isso, conclu que podia estar louca ou que algumpoderia me achar louca. Como podia ter certeza de que no estava, se no podiater certeza de que uma cortina no era uma cordilheira?

    No entanto, devo admitir que eu sabia que no estava louca.O que pesou definitivamente na balana foi outro pr-requisito: meu estado de

    contrariedade. Minha ambio era negar. Fosse o mundo denso ou oco, ele sprovocava minha negao. Quando era para estar acordada, eu dormia; se deviafalar, me calava; quando um prazer se oferecia a mim, eu o evitava. Minhafome, minha sede, minha solido, o tdio e o medo, tudo isso era, sempre, umaarma apontada para meu inimigo, o mundo. claro que o mundo no estavanem a para esses sentimentos, e eles me atormentavam, mas eu extraa umasatisfao mrbida do meu sofrimento. Ele confirmava minha existncia. Toda aminha integridade parecia residir em dizer no.

    Portanto, a oportunidade de ser encarcerada era simplesmente atraentedemais para que eu resistisse a ela. Era um no descomunal o maior nodo lado de c do suicdio.

    Um raciocnio perverso. Por trs dessa perversidade, porm, eu sabia que noestava louca e que eles no poderiam me manter trancafiada em um hospcio.

  • Topografiaaplicada

  • DUAS PORTAS TRANCADAS, separadas por um espao de um metro e meioonde a gente tinha de esperar, enquanto a enfermeira passava de novo a chavena primeira porta e destrancava a segunda.

    Logo depois delas, trs cabines telefnicas. Ento, dois quartos individuais, asala de estar e a copa-cozinha. Essa disposio assegurava aos visitantes uma boaimpresso inicial.

    Passando a sala de estar e dobrando o corredor, contudo, as coisas mudavam.Um corredor comprido, muito comprido: comprido demais. Sete ou oito

    quartos duplos de um lado, a sala das enfermeiras no centro, do outro lado,ladeada pela sala de reunies e pela sala de hidroterapia. As lunticas esquerda,a equipe de funcionrios direita. Os banheiros e os chuveiros tambm ficavam direita, como se os funcionrios tivessem o direito de supervisionar nossos atosmais ntimos.

    Um quadro-negro com nossos vinte e poucos nomes escritos em giz verde e,ao lado de cada um, espaos onde registrvamos com giz branco nosso destino: ahora da sada e, cada vez que deixvamos o pavilho, a hora do retorno. Oquadro-negro ficava pendurado bem em frente sala das enfermeiras. Sempreque algum ficava confinado quele pavilho, a enfermeira-chefe escreviaCONFINADO ao lado do nome, com giz verde. Ficvamos sabendo de umainternao com antecedncia, quando um novo nome aparecia na lista svezes, um dia antes de seu dono aparecer no pavilho. Quem recebia alta oumorria continuava algum tempo na lista, em uma espcie de tributo silencioso.

    No final do corredor horrvel, a sala de televiso. Gostvamos dali. Pelomenos, achvamos melhor que a sala de estar. Era bagunada, barulhenta,enfumaada e o mais importante ficava do lado esquerdo, o lado luntico dascoisas. Em nosso entender, a sala de estar pertencia equipe de funcionrios.Com frequncia nos manifestvamos para que nossas reunies semanais fossemtransferidas da sala de estar para a sala de televiso, mas isso nunca aconteceu.

    Passando a sala de televiso, o corredor dobrava mais uma esquina. Mais doisquartos individuais, um quarto duplo, um banheiro e a solitria.

    A solitria era do tamanho de um banheiro residencial. A nica janela era a da

  • porta, reforada com tela de galinheiro, que permitia que espiassem para ver oque a gente estava fazendo. No dava para fazer grande coisa ali dentro. Sobre opiso de linleo verde, apenas um colcho sem lenol. As paredes estavamdescascando, como se algum as tivesse atacado com unhas ou dentes. Asolitria, supunha-se, devia ser prova de som. No era.

    Podamos nos enfiar na solitria, fechar a porta e gritar por algum tempo.Quando acabvamos, podamos abrir a porta e sair. Gritar na sala de TV ou nocorredor era atuar (um termo psicolgico), coisa mal vista. Quanto a gritar nasolitria, tudo bem.

    Tambm podamos solicitar que nos trancassem na solitria. Poucas pediamisso. Tambm era preciso solicitar para sair. Uma enfermeira espiava pelatela de galinheiro e decidia se voc estava pronta para sair. Um pouco comoquem espia um bolo pelo vidro do forno.

    Segundo as regras de etiqueta da solitria, qualquer pessoa podia juntar-se avoc, desde que voc no estivesse trancada. Uma das enfermeiras podiainterromper sua gritaria para averiguar seu motivo, ou outra maluca qualquerpodia entrar e comear a gritar com voc. Da essa histria de solicitao. Opreo da privacidade era a liberdade.

    A verdadeira finalidade da solitria, contudo, era colocar as piradas dequarentena. Como grupo, a gente se mantinha em determinado nvel de agitaoe angstia. Aquela que passasse mais do que poucas horas acima desse nvel iapara a solitria. Segundo as funcionrias, se no fizessem isso, cada uma de nsaumentaria o grau de sua loucura at fazer a equipe perder o controle. No haviacritrios objetivos para decidir a ida de algum para a solitria. Isso era relativo,como uma curva de graduao na atribuio de notas escolares.

    A solitria funcionava. Um dia ou uma noite ali dentro, sem ter o que fazer, e amaioria se acalmava. Se no se acalmasse, ia para a segurana mxima.

    Nossas portas de fechadura dupla, janela com tela de ao, cozinha equipadacom facas de plstico e fechada chave, a no ser que uma enfermeiraestivesse presente, portas sem trinco nos banheiros: tudo isso era seguranamdia. A segurana mxima era outro mundo.

  • Preldio para umsorvete

  • O HOSPITAL FICAVA EM UMA COLINA na periferia da cidade, igual aoshospitais que vemos em filmes sobre loucos. Nosso hospital era famoso e haviaabrigado grandes poetas e cantores. O hospital se especializou em poetas ecantores, ou ser que os poetas e cantores se especializaram na loucura?

    O mais famoso de todos os ex-pacientes era Ray Charles. Vivamos esperandoque ele voltasse e fizesse serenatas da janela do pavilho de recuperao dedrogados. Ele nunca voltou.

    Contudo, tnhamos a famlia Tay lor: Kate e Livingston estavam l, emboraJames tivesse sido promovido para outro hospital antes da minha chegada. Nafalta de Ray Charles, seus blues com sotaque da Carolina do Norte eram obastante para nos entristecer. Os tristes precisam ouvir o som de sua tristeza.

    Robert Lowell tambm no passou por ali durante a minha estada. Sy lvia Plathchegara e partira.

    Por que ser que a mtrica, a cadncia e o ritmo provocam loucura em quemos produz?

    Os jardins eram grandes e de belo paisagismo. Tambm eram intocados, poisquase nunca nos deixavam passear por eles. De vez em quando, porm, comoprmio especial, ramos conduzidas atravs deles para ir tomar sorvete.

    Nosso grupo tinha uma estrutura atmica: um ncleo de malucas cercado porenfermeiras-eltrons nervosas, ativadas para nos proteger. Ou para proteger osmoradores de Belmont de ns.

    Os moradores eram abastados. A maioria trabalhava como engenheiro outecnocrata ao longo da Route 128 (A estrada da tecnologia da Amrica). Outrotipo importante de morador de Belmont era aquele que fazia parte da John BirchSociety. A John Birch Society estava mesma distncia a oeste que o hospitalestava a leste de Belmont. Para ns, as duas instituies eram variaes de umamesma coisa; os membros da John Birch com certeza no compartilhavam nossoponto de vista. Juntos, porm, ns e eles mantnhamos Belmont sob cerco. Osengenheiros sabiam disso e tinham o cuidado de no olhar acintosamente parans quando entrvamos na sorveteria.

    Dizer que nos deslocvamos com um grupo de enfermeiras no explica

  • completamente nossa situao. Um complexo sistema de privilgiosdeterminava quantas enfermeiras acompanhariam cada paciente e se umpaciente podia deixar o hospital.

    Esses privilgios comeavam com nenhum privilgio: confinada no pavilho.Era a situao habitual de Lisa. s vezes, ela dava um pulinho para o degrauseguinte, duas para uma. Isso queria dizer que ela podia deixar o pavilhoacompanhada de duas enfermeiras, mas s para ir ao refeitrio ou para a terapiaocupacional. Mesmo com nossa elevada proporo enfermeira/paciente, duaspara uma geralmente significava confinada no pavilho. Dificilmente havia duasenfermeiras disponveis para segurar Lisa pelos cotovelos e arrast-la parajantar. Em seguida, vinham uma para uma: uma enfermeira e uma pacienteunidas como gmeas siamesas. Algumas pacientes eram do tipo uma para umamesmo dentro do pavilho, o que equivalia a ter um pajem ou um camareiro. Ouuma conscincia pesada. Dependia da enfermeira. Uma enfermeira ruim, emuma situao uma para uma, podia ser um problema; geralmente, tratava-se deum posto de longo prazo, e a enfermeira poderia chegar a compreender seupaciente.

    As graduaes eram bizantinas. Uma para duas (uma enfermeira e doispacientes), depois grupo (trs ou quatro pacientes e uma enfermeira). Quem secomportasse bem em um grupo ganhava algo chamado privilgio de lugar dedestino. Isso queria dizer telefonar para a enfermeira-chefe to logo chegasseao lugar de destino, informando sua chegada. Tambm era preciso telefonarantes de voltar, e a ela calculava o tempo e a distncia, para o caso de vocpreferir fugir. Em seguida, vinha a escolta mtua, que consistia em duaspacientes relativamente no loucas que podiam se deslocar juntas. E osuprassumo: a liberao interna, que significava que voc podia andar sozinhapor todo o hospital.

    Dentro do hospital, uma vez percorrida toda a via-crcis, o circuito se repetiano mundo exterior. Os que estavam no nvel de escolta mtua ou mesmo deliberao interna provavelmente ainda teriam de sair em grupo.

    Portanto, quando amos Bailey 's da Waverley Square com nosso squito deenfermeiras, a disposio dos tomos em nossa molcula era mais complexa doque devia parecer aos olhos das mulheres dos engenheiros que tomavamcafezinho no balco e educadamente fingiam no olhar para ns.

    Lisa no podia nos acompanhar. Depois de sua terceira fuga, nunca conseguiupassar do uma para uma. Polly era uma para uma, mas o motivo disso era fazercom que se sentisse segura, e no cercada, e ela vinha sempre conosco.Georgina e eu estvamos em um grupo, mas, como no havia mais ningumnele, na prtica, ramos uma para duas. Cynthia e a namorada do marcianoestavam no uma para duas; consequentemente, parecia que Georgina e euramos to malucas quanto Cynthia e a namorada do marciano. No ramos e,

  • de nossa parte, havia certo ressentimento. Daisy ficava no topo da pirmide:cidade e hospital liberados. Ningum entendia por qu.

    Seis pacientes, trs enfermeiras.Na caminhada de dez ou quinze minutos colina abaixo, deixvamos para trs

    as roseiras e as rvores senhoriais do nosso belo hospital. Quanto mais nosafastvamos de nosso pavilho, mais aumentava o nervosismo das enfermeiras.Quando chegvamos na rua, calavam-se, fechavam o cerco sobre ns eadotavam o Olhar de Quem No Quer Nada uma expresso onde se lia nosou uma enfermeira que escolta seis lunticas at a sorveteria.

    No entanto, o que elas eram; e ns, por sermos as seis lunticas, noscomportvamos como tal.

    No que qualquer uma de ns fizesse algo diferente do habitual.Continuvamos a agir como j agamos no pavilho. Resmungos, rosnados,choros. Daisy cutucava as pessoas. Georgina alegava no ser to maluca quantoas outras duas.

    Vamos parar com essa atuao dizia uma das enfermeiras.Para fazer com que nos calssemos, eram bem capazes de nos beliscar ou de

    nos dar uma cutucada la Daisy, um belisco de enfermeira. No ascensurvamos por isso, da mesma maneira que elas no nos censuravam porsermos o que ramos. Tudo o que tnhamos era isso a verdade , e asenfermeiras sabiam.

  • Sorvete

  • ERA UM DIA DE PRIMAVERA desses que trazem esperana: cheio de brisassuaves e delicados aromas de terra aquecida. Tempo de suicdio. Daisy sematara uma semana antes. Na certa eles achavam que precisvamos dedistrao. Sem Daisy , a proporo equipe de funcionrios/pacientes era mais altado que o habitual: cinco pacientes e trs enfermeiras.

    Descendo a colina, passando pelas magnlias, que j perdiam suas florescarnudas, seu tom rosado amarelando e apodrecendo nas bordas; passando pelosnarcisos estorricados feito papel; passando pelos loureiros pegajosos, que tantopodem coroar como envenenar voc. Naquele dia, na rua, as enfermeirasestavam menos nervosas, talvez porque a febre da primavera as tornassedescuidadas ou porque quem sabe? aquele coeficiente funcionrias/pacientesacabasse sendo mais cmodo.

    O assoalho da sorveteria me perturbava. Era de cermica e formavaquadrados pretos e brancos, como um tabuleiro de xadrez, maior do que otabuleiro do supermercado. Se eu olhasse apenas para um dos quadradosbrancos, tudo bem; mas era difcil abstrair os quadrados pretos que cercavam osquadrados brancos. O contraste me incomodava. Sempre me sentiadesconfortvel na sorveteria. O cho queria dizer sim, no, isto, aquilo,em cima, embaixo, dia, noite todas as indecises e os opostos que, sena vida j so ruins, ficam ainda piores assim, explicitados no cho.

    Havia um garoto novo servindo o sorvete de casquinha. Ns nos aproximamosdele em bloco.

    Queremos oito casquinhas disse uma das enfermeiras. Tudo bem disse ele. Tinha uma cara afvel, cheia de espinhas.Demoramos um bocado de tempo escolhendo os sabores. Sempre

    demorvamos. Paoca de menta disse a namorada do marciano. O nome menta disse Georgina. Piroca de menta. Francamente! disse Georgina, engatando a marcha para um protesto. Xoxota de menta.

  • Por conta disso, a namorada do marciano foi premiada com um belisco deenfermeira.

    Ningum mais quis menta; o preferido foi o de chocolate. Havia um novosabor de primavera: pssego em calda. Foi a minha escolha.

    Voc quer com nozes?1 perguntou o garoto novo. Todas se entreolharam:devamos pronunciar aquela palavra? As enfermeiras prenderam a respirao.L fora, os passarinhos cantavam.

    Acho que no nos fazem falta disse Georgina.

  • Ronda

  • RONDAS DE CINCO EM CINCO MINUTOS. Rondas de quinze em quinzeminutos. Rondas a cada meia hora. Algumas enfermeiras diziam ronda quandoabriam a porta. A maaneta girando com um clique, a porta se abrindo com umestalo. Clique, giram a maaneta, estalo, abrem a porta, ronda, estalo, fechama porta, clique, giram a maaneta. Rondas de cinco em cinco minutos. No dtempo de beber uma xcara de caf, ler trs pginas de um livro, tomar umachuveirada.

    Anos mais tarde, com a inveno dos relgios digitais, lembrei-me das rondasa cada cinco minutos. Era a mesma maneira de assassinar o tempo, devagarinho,cortando-o em pedacinhos que iam sendo descartados com um pequeno clique,para nos avisar que o tempo passou. Clique, estalo, ronda, estalo, clique: maiscinco minutos da vida descendo pelo ralo. E transcorridos naquele lugar.

    Aos poucos, cheguei s rondas de meia em meia hora, mas as de Georginacontinuaram a cada cinco minutos. Como o quarto era o mesmo, no fezdiferena. Clique, estalo, ronda, estalo, clique.

    Esse era um dos motivos pelos quais preferamos ficar sentadas em frente sala das enfermeiras. A encarregada da ronda podia botar a cabea para fora edar uma geral sem nos incomodar.

    s vezes, elas tinham a audcia de perguntar onde que algum estava.Clique, estalo, ronda... o ritmo era momentaneamente interrompido. Voc viu a Polly? No vou fazer o servio que seu rosnava Georgina.Estalo, clique.Antes que percebssemos, ela estava de volta. Clique, estalo, ronda, estalo,

    clique.Aquilo no parava nunca, nem mesmo de noite. Era nosso acalanto. Era nosso

    metrnomo, nosso pulso. Era a nossa vida medida em doses pouco maiores doque as benditas colherinhas de caf. Colheres de sopa, talvez? Colheres de lata,amassadas, transbordantes de algo que devia ser doce, mas era amargo e seesvaa, se derramava sem que pudssemos sentir seu sabor: nossas vidas.

  • Objetos afiados

  • TESOURINHA DE UNHA. Lixa de unha. Lmina de barbear. Canivete (aqueleque papai nos d quando fazemos 11 anos). Broche (aquele broche que vocganhou na formatura do ginsio, com duas pequenas prolas cor-de-rosa). Osbrincos de ouro de Georgina (voc deve estar brincando! O problema a partede trs, quer ver? A enfermeira mostra os pequenos pinos na parte posterior; sopontudos, no est vendo?). Aquele cinto (meu cinto? Que histria essa? A culpaera da fivela. Algum pode arrancar o olho com essa parte da fivela, a partepontuda). Facas. Bem, quanto s facas, v l, mas garfos e colheres tambm?Facas, garfos e colheres.

    Comamos com plstico. Nosso hospital era um piquenique permanente.Cortar carne dura e velha com uma faca de plstico, depois enfi-la em um

    garfo de plstico (as pontas no conseguem espetar a carne, por isso tnhamos deusar o garfo como se fosse colher): comer com talheres de plstico d um sabordiferente comida.

    Houve um ms em que a entrega dos talheres de plstico atrasou e tivemos decomer com facas, garfos e colheres de papelo. Voc j comeu com um garfode papelo? Imagine s o gosto do papelo derretido e encharcado entrando esaindo da boca, roando a lngua.

    E quanto a depilar as pernas?Toca para a sala das enfermeiras. Quero depilar as pernas. Um minutinho s. Vou tomar banho agora e quero depilar as pernas. Deixa eu verificar as instrues para voc. Estou autorizada a depilar as pernas. Com superviso. Deixa eu ver e toca a remexer, a revirar. Tudo bem. S um minutinho. Estou indo.Na banheira do tamanho de uma piscina, do tamanho de uma piscina olmpica,

    funda e comprida, com ps em forma de garras. Clique, estalo, ronda... Ei! Cad meu aparelho de barbear? Sou apenas a encarregada da ronda.

  • Era para eu estar depilando as pernas.Estalo, clique.Mais gua quente: essas banheiras de hidroterapia so mesmo confortveis.Clique, estalo, chega minha supervisora de depilao. Trouxe o aparelho de barbear?Ela o passa para mim. Senta-se em uma cadeira junto banheira. Eu tenho 18

    anos. Ela tem 22. Fica me olhando depilar as pernas.Havia muitas pernas cabeludas em nosso pavilho. Precursoras do feminismo.

  • Outra Lisa

  • CERTO DIA, CHEGOU OUTRA LISA. Ns a chamvamos pelo nomecompleto, Lisa Cody, para diferenci-la da verdadeira Lisa, que ficou sendosimplesmente Lisa, como uma rainha.

    As Lisas se tornaram amigas. Uma de suas atividades prediletas era conversarpor telefone.

    As trs cabines telefnicas perto das portas duplas, com fechaduras duplas,constituam nossa nica privacidade. Podamos entrar nelas e fechar a porta. Atmesmo a mais maluca de ns podia se sentar em uma das cabines e manter umaconversa particular, ainda que consigo mesma. As enfermeiras possuam listasdos nmeros aos quais podamos ter acesso. Quando pegvamos o fone, aenfermeira atendia.

    Al dizamos. Aqui a Georgina (ou a Cy nthia, ou a Polly ). Queroligar para o 555-4270.

    Esse nmero no consta da sua lista dizia a enfermeira. E cortava a linha.No entanto, restava ainda o silncio empoeirado da cabine e o aparelho preto,

    antigo, com sua aresta dorsal bem pronunciada.As Lisas conversavam por telefone. Cada uma entrava em uma cabine,

    fechava a porta sanfonada e berrava dentro do fone. Quando a enfermeiraatendia, Lisa gritava sai da linha. E as Lisas continuavam o papo. s vezes sexingavam aos berros, outras vezes expunham, aos berros, seus planos para aqueledia.

    Quer ir jantar no refeitrio? berrava Lisa Cody .Contudo, Lisa, por estar confinada ao pavilho, tinha de berrar de volta algo

    como: Pra que voc quer comer aquela gororoba com aquele bando de psicticas?Ao que Lisa Cody respondia, aos berros: O que voc pensa que ? Uma sociopata! gabava-se Lisa.Lisa Cody ainda no recebera seu diagnstico.Cynthia era depressiva; Polly e Georgina eram esquizofrnicas; eu tinha um

    transtorno de personalidade. Quando recebi meu diagnstico, ele no me pareceu

  • grave, mas, com o tempo, acabou soando mais agourento que o das outras.Passei a achar que minha personalidade era como um prato ou uma camisa comdefeito de fabricao e, consequentemente, intil.

    Depois de mais ou menos um ms conosco, Lisa Cody recebeu seudiagnstico. Tambm era uma sociopata. Ficou feliz, pois queria ser igual a Lisaem tudo. Lisa no ficou to feliz, pois, at ento, fora a nica sociopata do grupo.

    Somos uma raridade disse-me certa vez. E geralmente somos homens.Depois que Lisa Cody recebeu seu diagnstico, as Lisas comearam a criar

    mais problemas. Vocs esto atuando diziam as enfermeiras. Ns sabamos o que estava

    acontecendo. A verdadeira Lisa estava provando que Lisa Cody no era umasociopata.

    Lisa passou uma semana escondendo seus sonferos debaixo da lngua, depoisos engoliu todos de uma vez e passou um dia e uma noite inteiramente dopada.Lisa Cody s conseguiu esconder quatro e vomitou ao engoli-los. Lisa apagou umcigarro no brao s seis e meia da manh, durante a mudana de turno dasenfermeiras. Naquela tarde, Lisa Cody provocou uma queimadura minscula nopulso e passou os vinte minutos seguintes molhando-o na gua da torneira.

    Depois, as duas travaram uma guerra em torno de suas vidas pregressas. Lisaconseguiu arrancar de Lisa Cody que ela havia crescido em Greenwich,Connecticut.

    Greenwich, Connecticut? Ela escarneceu: De um lugar como aqueleno poderia sair uma sociopata. Vai me dizer que tambm foi debutante!

    Bolinhas, tranquilizantes, cocana, herona Lisa tinha embarcado em todas.Lisa Cody disse que tambm tinha sido drogada. Arregaou a manga paramostrar as marcas: arranhes tnues ao longo da veia, como se alguma vez, hmuitos anos, tivesse se enganchado em uma roseira.

    Uma viciada patricinha disse Lisa. Voc estava brincando, isso sim. Pera, cara! Droga droga protestou Lisa Cody. Lisa puxou a manga at

    o cotovelo e enfiou o brao debaixo do nariz de Lisa Cody. Seu brao erapontilhado de calombos escuros, nodosos e autnticos.

    Cicatriz isso, cara disse Lisa. Quanto s suas, melhor nem falar.Apesar de derrotada, Lisa Cody no teve o bom senso de desistir. Continuou a

    sentar ao lado de Lisa no caf da manh e nas reunies. Continuou a esperar nacabine telefnica por uma chamada que no vinha.

    Preciso me livrar dela disse Lisa. Voc ruim, hein? disse Polly . Vacona! disse Lisa. Est falando de quem? perguntou Cy nthia, a protetora de Polly .Contudo, Lisa no se deu ao trabalho de esclarecer.Certa tarde, na hora do crepsculo, quando as enfermeiras percorriam os

  • corredores para acender as luzes que davam uma iluminao espalhafatosa aonosso pavilho como um parque de diverses, descobriram que todas aslmpadas haviam desaparecido. No estavam quebradas: haviam sumido.

    Ns sabamos quem havia feito aquilo. A questo era onde as guardara. Noescuro, ficava difcil procurar. At as lmpadas dos quartos haviamdesaparecido.

    Lisa tem um verdadeiro temperamento artstico observou Georgina. Limitem-se a procurar! disse a enfermeira-chefe. Todo mundo

    procurando!Lisa passou a busca sentada na sala de TV.Quem as achou foi Lisa Cody, como era de esperar. Na certa, tambm

    planejara passar a busca sentada no lugar que lhe trazia lembranas de diasmelhores. Ao empurrar a sanfona da porta, deve ter sentido alguma resistnciapois havia dzias de lmpadas eltricas l dentro mas ela insistiu, tal qualinsistira com Lisa. O estrondo dos cacos nos levou correndo para as cabines.

    Quebradas disse Lisa Cody .Todo mundo quis saber como Lisa conseguira fazer aquilo. Meu brao

    comprido e magro foi tudo o que ela disse.Dois dias depois, Lisa Cody desapareceu. Em algum ponto entre nosso

    pavilho e o refeitrio, conseguiu escapulir. Nunca a encontraram, apesar deterem empreendido uma busca que durou mais de uma semana.

    Ela no conseguiu aguentar este lugar disse Lisa. E emboraprocurssemos identificar algum indcio de inveja em sua voz, no notamosnenhum.

    Alguns meses mais tarde, enquanto era levada para uma consulta ginecolgicano Hospital Geral de Massachusetts, Lisa tornou a fugir: dessa vez conseguiuganhar dois dias. Quando voltou, parecia particularmente satisfeita consigomesma.

    Estive com a Lisa Cody disse. Srio? disse Georgina, enquanto Polly sacudia a cabea. Ela agora uma autntica viciada disse Lisa com um sorriso.

  • A ronda dosnamorados

  • ESTVAMOS SENTADAS NO CHO, fumando, em frente sala dasenfermeiras. Gostvamos de ficar sentadas ali. Dessa maneira conseguamosficar de olho nas enfermeiras.

    Com rondas a cada cinco minutos fica impossvel disse Georgina. Eu consegui disse Lisa Cody . Que nada disse a verdadeira Lisa, que recm-iniciara sua campanha

    contra Lisa Cody . Conseguiu coisa nenhuma. Consegui sim, com rondas de quinze em quinze minutos insistiu Lisa Cody . Com quinze minutos, pode ser disse Lisa. Com quinze fica fcil, ora disse Georgina. O Brad jovem disse Lisa. Com quinze, pode ser que d p.Eu ainda no tinha experimentado. Embora meu namorado j no estivesse

    grilado por eu estar no hospital e viesse me visitar, a encarregada da ronda meflagrara chupando o pau dele e ficara decidido que nossos encontros passariam aser supervisionados. Ele no tinha me visitado mais.

    Elas me pegaram eu disse. Embora todas soubessem do flagrante, eucontinuava a falar dele, porque aquilo me incomodava.

    Grande coisa. Elas que se fodam disse Lisa, rindo. Foda-se voc,fodam-se elas.

    Acho que em quinze minutos ele no consegue afirmei. Sem distraes. Direto ao que interessa disse Georgina. Afinal, quem que voc anda comendo? perguntou Lisa a Lisa Cody, que

    no respondeu. Voc no est comendo ningum disse Lisa. Vai se foder disse Daisy , que ia passando. Ei, Daisy disse Lisa. Voc consegue trepar com rondas de cinco em

    cinco minutos? No estou a fim de trepar com esses babacas daqui disse Daisy . Desculpe sussurrou Lisa. Voc tambm no est comendo ningum disse Lisa Cody .Lisa riu. A Georgina vai me emprestar o namorado dela por uma tarde.

  • Bastam dez minutos disse Georgina. Elas j pegaram vocs? perguntei. Elas no esto nem a. Gostam do Brad. Voc tem que trepar com um dos pacientes explicou Lisa. D o fora

    nesse seu namorado panaca e namora um paciente. , esse seu namorado um p no saco disse Georgina. Eu acho ele engraadinho disse Lisa Cody . Ele problemtico disse Lisa.Desandei a choramingar. Georgina me fez um afago. Ele nem vem te visitar lembrou. verdade disse Lisa. Ele engraadinho, mas no vem te visitar. E de

    onde foi que ele saiu, com aquele sotaque? Ele ingls. Foi criado na Tunsia.No meu entender, aquelas eram credenciais importantes para um candidato a

    namorado. Manda ele de volta pra l aconselhou Lisa. Deixa que eu fico com ele disse Lisa Cody . Ele no consegue foder em quinze minutos avisei. S se voc chupar o

    pau dele. Pois que seja disse Lisa Cody . De vez em quando, at que eu curto uma chupada disse Lisa.Georgina sacudiu a cabea. Salgado demais. Isso no me incomoda falei. Voc j pegou algum com gosto bem amargo, azedo, feito um limo, s

    que pior? perguntou Lisa. Alguma infeco de pica disse Georgina. Eca! disse Lisa Cody . Que infeco, que nada disse Lisa. Tem pica com esse gosto, s isso. Ah, mas que falta faz isso? eu disse. A gente arruma um novo para voc no refeitrio disse Georgina. Sobrando algum, traz para mim disse Lisa, que continuava confinada ao

    pavilho. Garanto que o Brad conhece algum cara legal acrescentou Georgina. Deixa pra l eu disse. A verdade era que eu no queria um namorado

    louco.Lisa olhou para mim. J sei o que voc est pensando disse. Voc no

    quer um namorado louco, no ?Constrangida, no respondi. Isso voc supera ela argumentou. H outra escolha?Todas riram. At eu tive de rir.A encarregada da ronda enfiou a cabea para fora da sala das enfermeiras e

  • abanou-a quatro vezes, uma para cada uma de ns. Ronda de meia em meia hora disse Georgina. Assim que seria bom. Um milho de dlares tambm seria bom disse Lisa Cody . Que lugar! disse Lisa.Todo mundo suspirou.

  • Em quem vocacredita, nele ou

    em mim?

  • O mdico diz que conversou comigo durante trs horas. Eu digo que foram vinteminutos. Vinte minutos entre a minha entrada pela porta e a sua deciso de memandar para o McLean. Talvez eu tenha passado mais uma hora no seuconsultrio, enquanto ele ligava para o hospital, ligava para meus pais, chamavao txi. Uma hora e meia o mximo que lhe concedo.

    No podemos estar certos os dois. Faz diferena qual dos dois tem razo?Para mim faz. Mas parece que estou errada.Tenho uma prova concreta: a linha Hora da Internao do Relatrio da

    Enfermeira no Ato de Internao do Paciente. A partir da, sou capaz dereconstituir tudo. Ali diz: 13h30.

    Sa de casa cedo. Mas cedo, para mim, pode ser at nove da manh. Eutrocara o dia pela noite essa foi uma das coisas que o mdico fez questo defrisar.

    Eu disse que cheguei ao consultrio dele antes das oito, mas parece quetambm estou enganada quanto a isso.

    Fao uma concesso, dizendo que sa de casa s oito e levei uma hora indopara uma consulta marcada para as nove. Somando vinte minutos, d nove evinte.

    Vamos passar adiante, para a corrida de txi. O trajeto de Newton a Belmontleva cerca de meia hora. Lembro-me de ter esperado quinze minutos no prdioda administrao antes de assinar o termo de internao. Acrescente-se maisquinze minutos de burocracia at a entrevista com a enfermeira que redigiu orelatrio. D um total de uma hora, o que quer dizer que cheguei ao hospitalmeio-dia e meia.

    Pronto, a est, entre as nove e vinte e as doze e trinta: uma consulta de trshoras!

    Ainda assim, acho que eu que tenho razo. Tenho razo no que importa.Mas agora voc acredita nele.No se precipite. Tenho mais provas.A Guia de Internao, redigida pelo mdico que supervisionou meu caso, e

    que, evidentemente, teve de preencher um extenso relatrio antes de me passar

  • para aquela enfermeira. No canto superior direito, na linha Hora da Intern., l-se:11h30.

    Vamos recapitular mais uma vez.Subtraindo meia hora de espera antes da internao e depois de passar por toda

    a burocracia, chegamos s onze da manh. Subtraindo a meia hora dentro dotxi, so dez e meia. Subtraindo a hora que fiquei esperando enquanto o mdicodava os telefonemas, so nove e meia. Considerando-se que sa de casa s oitopara um compromisso s nove, o resultado uma conversa de meia hora.

    A est, pronto: entre nove e nove e meia. No vou discutir por causa de dezminutos.

    Agora voc acredita em mim.

  • Velocidade viscosidade

  • A LOUCURA ASSUME duas variantes bsicas: a lenta e a rpida.No estou falando do seu incio ou da sua durao. Refiro-me qualidade da

    loucura, ao problema cotidiano da pirao.Os nomes so muitos: depresso, mania, ansiedade, agitao. No dizem

    grande coisa.A qualidade predominante, na forma lenta, a viscosidade.A experincia se faz espessa. As percepes se adensam e embotam. O tempo

    se arrasta, pingando lentamente pelo filtro entupido de uma percepo adensada.A temperatura do corpo baixa. O pulso preguioso. O sistema imunolgicofica meio adormecido. O organismo torna-se turvo e salobro. At mesmo osreflexos se reduzem, como se a nossa perna no tivesse nimo para sair do torpore reagir com um chute marteladinha no joelho.

    A viscosidade se d nas clulas. O mesmo acontece com a velocidade.Ao contrrio do coma celular da viscosidade, a velocidade investe cada

    plaqueta e fibra muscular com um pensamento prprio, um meio de conhecer ecomentar seu comportamento. H uma percepo exacerbada e, para l dainfinidade de percepes, uma infinidade de pensamentos sobre essaspercepes e o prprio fato de ter percepes. A digesto capaz de matar! Oque quero dizer que a percepo ininterrupta dos processos digestivos podematar pela exausto. E a digesto apenas uma digresso do pensamento, que onde comea o verdadeiro problema.

    Tomemos um pensamento qualquer qualquer coisa, tanto faz. Estou cansadade ficar aqui sentada em frente sala das enfermeiras: um pensamentoperfeitamente racional. Eis o que a velocidade faz com ele.

    Primeiro, voc analisa a frase: Estou cansada. Pois bem, ser cansaoexatamente? Isso o mesmo que sonolncia? Voc precisa conferir todas aspartes do corpo para ver se est com sono e, enquanto faz isso, bombardeadapor imagens sobre a sonolncia, mais ou menos assim: cabea caindo sobre otravesseiro, cabea batendo no travesseiro, Joo Pestana e a Bela Adormecidaesfregando os olhos sonolentos, um monstro marinho. Ih, um monstro marinho.Com sorte, voc se esquiva do monstro marinho e se atm sonolncia. De volta

  • ao travesseiro, a lembrana de ter tido caxumba aos 5 anos, a sensao dapapada inchada sobre os travesseiros, a dor ao salivar. Pare. Vamos voltar sonolncia.

    No entanto, a ideia da salivao atraente demais e voc parte em excursopelo interior da sua boca. J esteve ali antes e no achou bom. O problema alngua: s pensar na lngua que ela se torna um estorvo. Por que ser que togrande? Por que spera nas bordas? Ser uma deficincia de vitamina? Seriapossvel arrancar a lngua? Sem ela, a boca no ficaria mais confortvel?Haveria mais espao no seu interior. Sua lngua, agora, cada clula da sua lngua, imensa. Ela um imenso objeto estranho dentro da sua boca.

    Tentando diminuir o tamanho da lngua, voc se concentra nos seuscomponentes: a ponta lisa; a parte de trs inchada; os lados so speros, comofoi observado antes (deficincia vitamnica); a raiz, um problema. A lngua temrazes. Voc j as viu e, enfiando o dedo na boca, capaz de senti-las, mas noconsegue senti-las com a prpria lngua. um paradoxo.

    Paradoxo. A tartaruga e a lebre. Aquiles e... o que mesmo? A tartaruga? Otendo? A lngua?

    De volta lngua. Enquanto voc pensava em outra coisa, parece que eladiminuiu de tamanho, mas pensar nela faz com que torne a crescer. Por que serque suas bordas so speras? Ser falta de vitaminas? Voc j pensou isso antes,mas agora o pensamento grudou em sua lngua. Aderiu existncia de sualngua.

    Tudo isso levou menos de um minuto e ainda falta destrinchar o resto da frase,quando, na verdade, voc s queria decidir se ficava ou no de p.

    A viscosidade e a velocidade, embora opostas, podem parecer iguais. Aviscosidade gera a inrcia da falta de inclinao; a velocidade gera a inrcia dafascinao. Quem observa no consegue saber se uma pessoa est calada equieta porque sua vida interior estacionou ou porque sua vida interior de umaatividade paralisante.

    O que as duas tm em comum o pensamento repetitivo. As experinciasparecem pr-gravadas, estilizadas. Padres mentais especficos se ligam amovimentos ou atividades especficas e, sem que voc perceba, torna-seimpossvel abordar aquele movimento ou atividade sem deslocar uma avalanchede pensamentos pr-pensados.

    Uma avalanche letrgica de pensamentos sintticos pode levar diasdespencando. Uma parte da paralisia muda da viscosidade ocorre porque vocsabe em detalhes o que vem pela frente e fica esperando sua chegada. L vem opensamento eu no presto. E nisso, l se vai o dia de hoje. O dia inteiro, aquelepinga-pinga insistente, eu no presto, eu no presto. O prximo pensamento,no dia seguinte, eu sou o Anjo da Morte. Por trs desse pensamento existeuma fulgurante extenso de pnico, uma extenso inalcanvel. A viscosidade

  • achata a efervescncia do pnico.Esses pensamentos no significam nada. So mantras idiotas que existem

    dentro de um ciclo predeterminado: Eu no presto, eu sou o Anjo da Morte, eusou burra, eu no fao nada direito. O primeiro pensamento j desencadeia oresto do circuito. como gripe: primeiro uma dor de garganta e depois,inexoravelmente, o nariz entupido e a tosse.

    Algum dia esses pensamentos devem ter significado alguma coisa. Devem tersignificado o que afirmam. A repetio, porm, tirou-lhes o gume. Tornaram-semsica de fundo, o pot-pourri Muzak do dio que sentimos de ns mesmos.

    O que pior: uma sobrecarga ou o seu contrrio? Por sorte, nunca tive deescolher. As duas coisas se manifestavam, passavam correndo ou driblando pormim e seguiam adiante.

    Adiante para onde? De volta para as minhas clulas, para ficarem espreitacomo vrus, esperando a prxima oportunidade? Para o ter do mundo,aguardando as circunstncias que propiciariam seu reaparecimento? Endgenoou exgeno, natureza ou educao o grande mistrio da doena mental.

  • Tela desegurana

  • PRECISO DE AR FRESCO disse Lisa. Estvamos sentadas no cho emfrente sala das enfermeiras, como de costume.

    Daisy ia passando. Me d um cigarro disse. Se vira, sua vaca disse Lisa. E depois deu-lhe um. Que cigarro mais nojento disse Daisy . Lisa fumava Kool. Preciso de ar fresco Lisa tornou a dizer. Apagou o cigarro no carpete

    marrom e bege e se levantou. Ei! disse, enfiando a cabea pela portadividida em duas da sala das enfermeiras, que estava entreaberta. Estouprecisando de um pouco de ar fresco, porra!

    Daqui a um minutinho, Lisa disse uma voz l dentro. J! Lisa bateu no batente que dividia a metade superior e a inferior da

    porta. Isso ilegal. Vocs no podem manter uma pessoa fechada dentro deum prdio durante meses. Vou chamar meu advogado.

    Lisa volta e meia ameaava chamar seu advogado. Ela tinha um advogadoindicado pelo tribunal, um cara de seus 26 anos, bonito, de olhos amendoados. Eleno conseguira impedir sua internao. Chamava-se Irwin. Lisa alegava tertrepado com ele algumas vezes, no tribunal, na sala onde os clientes consultavamseus advogados.

    Sempre que Lisa ameaava chamar o advogado, a enfermeira-chefe seinteressava.

    O que foi, Lisa? perguntou com uma voz cansada, debruando-se nopeitoril.

    Quero um pouco de ar fresco, porra. No precisa gritar disse a enfermeira-chefe. Porra, de que outro jeito vou fazer com que prestem ateno na gente, aqui

    neste lugar?Lisa s chamava o hospital de este lugar. Pois estou aqui, na sua frente disse a enfermeira-chefe. Estou

    prestando ateno. Ento j sabe o que quero.

  • Vou pedir a uma atendente para abrir sua janela disse a enfermeira-chefe.

    Janela! disse Lisa. Virou-se um instante para olhar para ns. No querosaber de janela, porra.

    Bateu de novo no peitoril. A enfermeira-chefe deu um passo para trs. Ou a janela ou nada, Lisa disse. Janela ou nada cantarolou Lisa.Afastou-se alguns passos pelo corredor, para que todas, inclusive a

    enfermeira-chefe, pudessem v-la. Eu s queria ver como que voc ia se virar, em um lugar como este, sem

    nunca respirar um pouco de ar puro, sem nunca poder abrir a prpria janela,porra, e com um bando de piranhas cheias de frescura dizendo o que voc pode eo que no pode fazer. Valerie, t na hora do almoo; Valerie, no precisa gritar;Valerie, hora do sonfero; Valerie, vamos parar com essa atuao. Sabe como, no sabe? Ou seja, como que voc ia se virar? Me diz, porra!

    O nome da enfermeira-chefe era Valerie. O que quero dizer que voc no aguentaria dez minutos neste lugar. Vaca de merda disse Daisy . Quem chamou voc? disse Lisa, apontando o dedo para Daisy . Me d um cigarro disse Daisy . Dane-se disse Lisa. Dirigiu-se enfermeira-chefe. Vou chamar meu

    advogado. Tudo bem disse a enfermeira-chefe, que era bem esperta. Voc acha que eu no tenho direitos? isso que voc acha? Quer que eu faa a ligao?Lisa agitou o brao para encerrar o assunto. No disse. No, mas abre

    a janela. Judy chamou a enfermeira-chefe. Judy era uma jovem atendente loura,

    que a gente gostava de atormentar. Valerie! gritou Lisa. S quando estava contrariada chamava a

    enfermeira-chefe de Valerie. Valerie, quero que voc abra a minha janela. Estou ocupada, Lisa. Vou chamar meu advogado. Judy pode fazer isso. No quero nenhuma vaca fresca dentro do meu quarto. Nossa, como voc chata disse a enfermeira-chefe. Apertando a

    campainha de segurana que destrancava a parte inferior da porta, juntou-se ans no corredor.

    Lisa sorriu.Para abrir uma janela, o funcionrio tinha de destrancar a tela de segurana,

    que era uma rede grossa e inexpugnvel, presa a uma moldura de ao, depois,

  • levantar as pesadas janelas de vidro inquebrvel e fechar e trancar de novo a telade segurana. Isso levava uns trs minutos e era um trabalho rduo. Era umafuno tpica para os atendentes. Depois de aberta a janela, o ar entrava pela telade segurana, desde que houvesse brisa naquele dia.

    A enfermeira-chefe voltou do quarto de Lisa, um pouco corada pelo esforo. Pronto disse. Bateu na porta da sala das enfermeiras, pedindo queapertassem a campainha e a deixassem entrar.

    Lisa acendeu mais um cigarro. Sua janela est aberta disse a enfermeira-chefe. Estou sabendo disse Lisa. Voc no vai nem entrar l, no ? disse ela suspirando. Olha, cara... disse Lisa. Isso ajuda a passar o tempo. Por um

    segundo, encostou a ponta acesa do cigarro no brao. No viu? Levou vinteminutos, meia hora, talvez.

    A campainha soou, a enfermeira-chefe abriu a porta, entrou e se debruou denovo no peitoril.

    verdade, ajuda a passar o tempo disse. Me d um cigarro disse Daisy . Dane-se, sua vaca! disse Lisa. Depois lhe deu um.

  • Guardis

  • VALERIE TINHA UNS 30 ANOS. Era alta, de pernas e braos compridos.Parecia-se muito com Lisa, embora fosse loura. Ambas eram longilneas,esguias e flexveis. Lisa sabia enroscar-se nas cadeiras e nos cantos e Valerietambm. Quando alguma de ns ficava perturbada e ia se encolher entre umaquecedor e uma parede, atrs de uma banheira ou em outro lugar pequeno eseguro, Valerie se enroscava toda e ia se sentar a seu lado.

    Embora tivesse lindos cabelos louros, ela os escondia em uma trana enroladana nuca. Esse misto de trana e coque nunca se desmanchava ou saa do lugar.Raramente algum conseguia convencer Valerie a desmanchar o coque e nosmostrar a trana, que descia at a cintura. S Lisa sabia direito como convenc-la a fazer isso, mas a tran