garginalli filho. a comédia erudita em portugal. sá de miranda

201
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS EUGÊNIO GARDINALLI FILHO A COMÉDIA ERUDITA EM PORTUGAL: SÁ DE MIRANDA (TESE DE DOUTORADO) ORIENTADORA: PROFa. DRa. MARIA HELENA RIBEIRO DA CUNHA ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA PORTUGUESA SÃO PAULO, 2009

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Sá de Miranda

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    EUGNIO GARDINALLI FILHO

    A COMDIA ERUDITA EM PORTUGAL: S DE MIRANDA

    (TESE DE DOUTORADO)

    ORIENTADORA: PROFa. DRa. MARIA HELENA RIBEIRO DA CUNHA

    REA DE CONCENTRAO: LITERATURA PORTUGUESA

    SO PAULO, 2009

  • Palavras-chave

    1. S de Miranda 2. Cames 3. Comdia 4. Comdia latina 5. Comdia italiana do Renascimento

    Resumo A obra visa a estudar as comdias de S de Miranda, situando-as dentro do contexto paradigmtico que as informa e fundamenta. The book consists on a study of the comedias by S de Miranda, placed in the paradigmatic context that inspires and supports them.

  • 1

    NDICE

    I - Anfitrio: de Plauto a Cames

    2

    II - Plauto

    49

    III - Terncio

    73

    IV - Ariosto: Il Negromante. Bernardo Dovizi da Bibbiena: La Calandria

    85

    V - S de Miranda: Os estrangeiros

    103

    VI - S de Miranda: Os Vilhalpandos

    134

    VII - Apndice: Leitura da Carta a el-rei D. Joo

    165

    VIII - Bibliografia

    190

  • 2

    I

    ANFITRIO: DE PLAUTO A CAMES

  • 3

    1

    O Anfitrio est entre as obras mais renomadas e estimulantes de Plauto.

    Uma srie de adaptaes e reelaboraes atesta-lhe a frtil influncia ao longo

    dos sculos, mxime a partir do sculo XVI, quando, depois de Ludovico Dolce o

    ter feito em italiano, Cames o faz reviver em portugus, em meio ao movimento

    de assimilao da obra de Plauto e de Terncio fomentado pelo prestgio de

    Ariosto. Ao exemplo deste ltimo, por sinal, j acudira S de Miranda, no prlogo

    de Os Estrangeiros, ao fazer remontar a Plauto e Terncio sua inspirao

    dramtica, seu tentame de renovao do teatro em Portugal.

    A intriga da pea um prolongado qiproqu, a cujos meandros confia o

    autor o principal de seu escopo cmico. Pode-se esquematiz-la como a

    configurao de um paradoxo: uma mulher, a um s tempo adltera e fiel, ao invs

    de enxovalhar com a prevaricao a honra do marido, deixa-a impoluta e, mais do

    que impoluta, abrilhantada. A obra entrecha essa eventualidade estapafrdia,

    intrinsecamente propcia a toda sorte de surpresas, desinteligncias e peripcias

    hilariantes.

    O mais simples atrativo do entrecho consiste em ser a expresso viva de

    um tal contra-senso, a experincia dramtica de sua realizao que, formulada

    como o fiz acima, afigura-se impossvel. A soluo teatral do paradoxo funda-se

    numa ardilosa epifania: o desassossego libidinoso de Jpiter f-lo baixar a Tebas

    e tomar com uma espontaneidade s possvel a um deus o exato aspecto de

    Anfitrio, induzindo-lhe a esposa, por quem anda abrasado, a ceder naturalmente

    virtuosamente a seu desejo. Desse modo, merc do embuste mirfico, o que

    era na aparncia irrealizvel se consuma: Alcmena, malgrado manter-se

    irrepreensvel, converte-se em adltera, fidelissimamente infiel a Anfitrio.

    Entre tantos apangios e vicissitudes, Jpiter tambm notrio por

    licencioso, e suas faanhas erticas deram ao mundo uma florao de rebentos

    ilustres. Um deles Hrcules, fruto de seu comrcio com Alcmena. Mas essa

    seqela herica j nos leva ao cabo da intriga plautina. Para lhe dar comeo, o pai

    dos deuses vem acolitado de um de seus filhos, Mercrio, que no-lo indigita, no

  • 4

    prlogo, j a deleitar-se no leito inocente de Alcmena, que por sua parte se

    regozija com o retorno do marido. A fim de arredondar a marosca, o prprio

    Mercrio tornou-se ssia de Ssia, escravo de Anfitrio. O que vai seguir-se da

    um crescendo de desconchavos e sobressaltos, em que o desamparo atarantado

    dos mortais, entre a angstia, a indignao e a fria, busca restituir razo uma

    realidade que parece delirar. No so, porm, os indivduos que deliram, mas o

    delrio, como sabe o espectador, que se realiza, merc da concupiscncia e do

    capricho imperioso dos deuses.

    Tudo podem, claro, os imortais. Mercrio, a quem incumbe guardar de

    todo estorvo os prazeres de Jpiter, desejoso de desenfadar-se e de divertir a

    platia, mostrar-se- inclemente para com Ssia: pe-no de tal modo aturdido,

    com tomar-lhe a aparncia, que ao pobre-diabo pouco lhe falta para capacitar-se

    de sua prpria irrealidade. A Anfitrio impingir tambm uma bufonada desse teor.

    E Jpiter, igualmente cioso do riso e regozijo do pblico, s ao cabo de um bom

    martrio cmico decide-se a devolver a paz e a esposa a Anfitrio, exortando-o

    a recompor-se com Alcmena e a engolir, adoados pela glria futura de Hrcules,

    os seus motivos de agravo. Dbia compensao, dir-se- talvez, essa que

    Hrcules far incidir sobre seu nome, e que lhe imortaliza a imagem de marido

    enganado. Mas deve considerar-se o valor compensatrio, singularmente

    honorfico, que tem para ele a condio olmpica do amante: Dou-me por bem

    pago confessa Anfitrio , se me dado partilhar com Jpiter a metade do que

    possuo1.

    Seja como for, destrinada a maranha, restaura-se a concrdia no esprito

    de Anfitrio, quando a crise dos cnjuges parecia a pique de desbarat-los. No

    sabemos qual ter sido o efeito da revelao de Jpiter sobre Alcmena.

    Obviamente, num caso como esse, primacial e decisivo o ponto de vista do

    marido. Por outro lado, seria sem dvida um lance melindroso e dramaticamente

    complicado compelir a matrona a defrontar-se, diante do espectador, com a

    adltera em que se convertera. Tudo leva a crer que a disposio pacfica do

    marido ser bastante para pr ao conflito um final feliz.

  • 5

    2

    A situao crtica em que so enredados Anfitrio e Alcmena (e Ssia de

    envolta com eles) impe-lhes uma evidenciao emprica do inverossmil. O

    artifcio divino, com a confuso que provoca, acaba por cindi-los interiormente:

    uma fissura neles se produz entre a experincia imediata e a aptido intelectual, e

    por essa via mais acirrados lhes ficam, afinal, o esforo defensivo e o impulso de

    contestao.

    A turbulncia que ento se forma, medida que atrita os pontos de vista

    uns contra os outros, lembra a de Seis personagens procura de um autor, de

    Pirandello. Os laos intersubjetivos se desarranjam, j que cada indivduo,

    naturalmente imbudo em sua viso dos fatos, torna-se incapaz de intercmbio

    com o discurso alheio. Por outro lado, so tais as certezas com que cada um deles

    se abona, que o conflito fica fadado a no ter fim: converte-se num impasse.

    O impasse exacerba a procura do dilogo do dilogo efetivo, da

    compreenso recproca e reiteradamente a frustra. Os esforos tornam-se assim

    iterativos, e nenhum movimento essencialmente se efetua: passagem do dinmico

    ao mecnico, configurando uma situao com que afina em cheio a teoria

    bergsoniana da comicidade. Com efeito, num mundo movido pelo equvoco, as

    perspectivas se ofuscam, a rotina toma sentidos imprevistos, as aes desgarram

    dos desgnios e o indivduo, meio perdido de si mesmo, fica merc do

    automatismo que lhe vai baralhando as relaes com o mundo.

    Retesado at o mximo rigor, at o absurdo, o automatismo

    pseudodialgico, que Plauto explora com sobriedade, levar-nos-ia geometria

    reificada de A cantora careca, de Ionesco: falas sucedendo-se sem realmente

    interpenetrar-se, sem que nenhuma sntese, nenhum processo significativo se

    origine de sua seriao mecanicamente aditiva, num movimento aparente que

    aparenta, no remate, retornar ao princpio, mas que dele de fato jamais se

    desprendeu2.

    Em Plauto a mecnica cmica, quanto mais aturde e exaspera os

    personagens, tanto mais aguda lhes torna a necessidade de esclarecimento. A

  • 6

    inquietude inquisitiva vira um fator crucial de sua relao com o mundo. Em face

    disso, soa sobremaneira penetrante a referncia a Tirsias, a quem pretende

    recorrer Anfitrio, no fim da pea: ligada lenda de dipo, a celebridade do

    advindo ficou de fato indesligvel da obra mais visceralmente indagativa do teatro

    grego antigo.

    Baldada, entretanto, a busca de clareza em que se envolvem os

    atrapalhados agentes menos agentes que joguetes, na verdade humanos da

    comdia. E de sua agitao obscura, de seus repetidos sobressaltos, uma

    imagem se desprende e os focaliza, em meio s foras e mistrios que os

    transcendem, como alis o fazia a antiga lrica grega, como sumria

    representao da condio humana.

    3

    O Anfitrio uma pardia mitolgica, caracterstica que o singulariza tanto

    dentro da obra de Plauto como do momento da comdia grega o da Comdia

    Nova que a Plauto propiciou, como se sabe, o grosso de seus modelos. Ao

    cunho paradoxal do entrecho acrescenta pardia a imagem dbia de seus

    deuses, nos quais o olmpico e o mundano se entremeiam. Jpiter aparece aqui

    praticamente circunscrito motivao ertica, e Mercrio, por seu turno, pouco

    mais que sua obsequiosidade amoral para com Jpiter, sua ndole patusca em

    face dos humanos. Nada, claro est, de solene e venervel. Ainda assim, no so

    eles propriamente risveis, ou so-no apenas em certa medida, por contraste com

    sua imagem arquetpica e tradicional; tornam, em compensao, acusadamente

    risveis ou vulnerveis os demais personagens, convertendo-os em joguetes do

    desejo e dos caprichos que fazem descer a este mundo. Quer dizer: originam a

    barafunda em que os outros se extraviam, e conservam-se como timoneiros da

    situao. Como no esto nivelados aos humanos, nada arriscam na aventura, e

    tanto est em seu poder prolong-la como conclu-la. O mundanismo, em suma,

    da conduta dos deuses, no de sua essncia.

  • 7

    Jpiter e Mercrio mais o primeiro que o segundo, evidentemente so o

    paradigma utpico utpico enquanto incorporao possvel do impossvel do

    espectador da comdia. Sobre eles projeta a platia o seu anelo onrico de uma

    satisfao suprema, acima dos riscos, limites e interditos da realidade.

    Esse o sentido latente, no plano ldico da intriga, de sua divindade:

    promover a divinizao quimrica do espectador. E esse, de resto, o sentido final

    dessa espcie de cmico a que Mercrio aplica um rtulo ambguo tragicomdia

    , situando-o num incerto intervalo entre o cmico e o trgico: espao intermdio,

    parenttico, utpico, onde os deuses se humanizam para que os homens se

    divinizem3.

    A metamorfose de Jpiter insinua, no mbito virtual em que se absorve a

    platia, para onde a obra a alicia, uma espcie de invitation au voyage. Molire definiu-

    lhe vivamente a expanso volupturia, em sua reelaborao da pea de Plauto4:

    Il veut goter par l toutes sortes dtats,

    Et cest agir en dieu qui nest pas bte.

    Dans quelque rang quil soit des mortels regard,

    Je le tiendrois fort misrable,

    Sil ne quittoit jamais sa mine redoutable,

    Et quau fate des cieux il fut toujours guind.

    Il nest point, mon gr, de plus sotte mthode

    Que dtre emprisionn toujours dans sa grandeur,

    Et surtout aux transports de lamoureuse ardeur

    La haute qualit devient fort incommode.

    Jupiter, qui sans doute en plaisirs se connait,

    Sait descendre du haut de sa gloire suprme;

    Et pour entrer dans tout ce quil lui plait,

    Il sort tout fait de lui-mme,

    Et ce nest plus alors Jupiter qui parait.

    A isso me parece, em essncia, que remonta o interesse que o tema tem

    conservado ao longo dos sculos. Sob o assduo atrativo literrio dos amores

    extraconjugais, da comicidade pattica dos maridos defraudados de sua

  • 8

    soberania, de mistura com a magia dos duplos e seus qiproqus, h a perptua

    tenso das postulaes pulsionais interditas, niveladas disciplina cultural. E

    sobre essas ainda se avoluma, evidentemente, o peso das frustraes mais ou

    menos taxativas que determinam toda existncia. Ao Anfitrio ser ento plausvel

    referir, em certa medida, a tese com que interpreta Freud a persistente atualidade

    do dipo sofocliano: Se dipo rei capaz de comover os homens de hoje com

    intensidade no menor que aquela com que comovia os contemporneos de

    Sfocles, a nica explicao que o efeito da tragdia grega no reside na

    oposio entre o destino e a vontade dos homens, mas na particularidade do

    material em que essa oposio apresentada. Deve haver em nosso ntimo uma

    voz predisposta a reconhecer o imprio fatal do destino de dipo, ao passo que

    podemos rechaar, por artificiosos, argumentos como os de Die Ahnfrau ou de

    outras tragdias de destino. E, de fato, um fator dessa espcie est contido na

    histria de dipo. Seu destino nos comove unicamente porque poderia ter sido o

    nosso, porque antes de nascermos o orculo fez recair sobre ns essa mesma

    maldio5.

    Ao transplantar sua libido desmedida para os limites da comunidade

    humana, Jpiter lhe atropela a rotina, confunde-lhe os parmetros e convenes

    estratificadas. E isso no somente em razo do adultrio que protagoniza. O deus

    deflagra uma proliferao identitria que, rompendo os lindes da unicidade

    pessoal, faz desmoronar, virtualmente, os alicerces de toda interao social

    regulamentada. A conjuntura que se deixa vislumbrar atravs da subverso por

    ele produzida, com a ajuda de Mercrio, exibe assim um semblante sensivelmente

    carnavalesco. Ruptura de fronteiras, interpenetrao de domnios opostos so, de

    resto, noes inerentes prpria idia de tragicomdia6.

    Uma sugestiva figurao subversora, ensejada pelo jogo identitrio, a

    cena entre Mercrio (na pele de Ssia) e Anfitrio: o escravo em confronto com o

    amo. Efetivamente, o Ssia com que Anfitrio se defronta nesse passo em tudo,

    excetuada a aparncia, o contrrio de um escravo: com atitude e linguagem s

    compatveis com o estatuto senhorial, autoritrio e desabrido, oferece ao riso da

    platia, custa do espanto e do furor de Anfitrio, uma imagem do mundo de

  • 9

    ponta-cabea. A prpria situao cnica de ambos, alis, caracterstica dessa

    imagem: Ssia aparece no alto, no telhado; Anfitrio encontra-se na rua.

    Desse estado de liquefao hierrquica h no prlogo um indicativo sutil: a

    mistura que faz Mercrio, desde o primeiro momento da pea, de elementos

    intrinsecamente avessos equivalncia jocosa que lhes impe. Sublinhando o

    efeito burlesco, a sintaxe, mediante a reiterao prolongada e enftica, faz sentir a

    diferena, ao passo que a semntica denota a paridade: Se quereis que em

    vossos negcios, em vossas compras e vendas, eu vos faa generosamente

    prosperar, e que vos ajude em tudo que fizerdes; se quereis que vossas empresas

    e clculos dem sempre em sucesso, tanto no estrangeiro como aqui na cidade;

    que timos e suculentos lucros, sem interrupo, acrescentem o que haveis

    empreendido e entendeis empreender; se quereis que boas novas vos traga, a vs

    e a todos os vossos, e que no seja seno portador, no seja seno mensageiro

    do que se mostre mais proveitoso a vossa repblica pois me foi dado e conferido

    dos outros deuses, como sabeis, o privilgio de presidir s mensagens e aos

    ganhos ; se quereis verdadeiramente que vos atenda e que me empenhe em que

    tenhais incessante abundncia de lucros, permanecei em silncio assistindo

    comdia, e sede aqui rbitros equnimes e justos, todos vs7. Num dos pratos da

    balana, todo o peso dos negcios e interesses mercantis da cidade, com seu

    prolixo volume verbal; no outro, contrabalanando-o, o silncio atencioso do

    espectador, a que Mercrio condiciona o montante de seus benefcios. A isso

    ocorre-me comparar o comentrio seguinte, referido por Bergson em seu ensaio

    sobre o riso, no qual o cuidado impagvel da exatido produz, involuntariamente,

    um efeito similar ao estilizado por Mercrio: O assassino, depois de matar a

    vtima, deve ter descido do trem pelo lado contrrio ao da estao, violando os

    regulamentos administrativos8.

    O colapso da hierarquia destaca-se como uma figura sintomtica e a mais

    reforativa do impulso que faz prevalecer, contra a cultura e sobre a realidade, o

    desejo e sua aventura onrica. H porm nisso uma ambigidade capital, que

    importa enfim assinalar. No obstante a expressividade que a imaniza, a inverso

    no manifesta incondicionalmente o esprito carnavalesco. No episdio h pouco

  • 10

    referido, em que se trocam os papis do escravo e do senhor, o Ssia por quem

    se deixa conduzir a platia, que impera no palco, no Ssia, na verdade: o

    inslito da cena resume-se a um passatempo de Mercrio. A escaramua bufa,

    portanto, se por um lado desbarata a autoridade do senhor, por outro ratifica a

    supremacia do divino. Assim, como numa contrapartida cautelar, a imagem

    transgressora faz subentender uma mensagem normativa.

    4

    Dentre os mtodos a que recorre o desejo, desde os enleios da seduo

    at os extremos da violncia, o empregado por Jpiter sem dvida o mais

    espontaneamente eficaz. No se trata de uma conquista, j que o poupa a toda

    resistncia; nada, de fato, exige mulher, nem mesmo o mais simples gesto de

    assentimento; tudo se resume em que retome seu curso a rotina conjugal: Jpiter

    est nos braos de Alcmena; Alcmena, nos de Anfitrio.

    Mais precisamente: Alcmena est entre o desejo de Jpiter e a honra de

    Anfitrio. O paradoxo que lhe compete cumprir a satisfao simultnea dessa

    dupla exigncia: manter-se fiel ao marido ao mesmo tempo que o trai. Para isso,

    ser preciso objetivar inteiramente o sentido de sua conduta: a experincia do

    adultrio se consuma, com efeito, sem que lhe envolva a subjetividade. Com fazer

    de Jpiter um duplo fraudulento de Anfitrio, a comdia transforma-lhe a esposa,

    fielmente infiel um oxmoro personificado , igualmente num duplo: da mesma

    Alcmena.

    A sua e a de Jpiter so, por conseguinte, situaes essencialmente

    opostas: Jpiter, disfarado, conserva-se sujeito do que faz; Alcmena, alienada,

    vira objeto do que se lhe faz. Cega ao significado de sua prpria conduta, Alcmena

    torna-se em certa medida comparvel a dipo.

    Para preservar-lhe a pureza, sacrifica-se-lhe a subjetividade, e assim a

    honra do marido pode manter-se intata, sem que se frustre o desejo do deus. A

    integridade de Alcmena, percebe-se ento, no primordialmente um trao de seu

    carter, mas uma clusula e uma insgnia da dignidade de seu marido. menos,

  • 11

    em suma, um atributo de Almena que um direito de Anfitrio; no um modo de

    real-la, mas um meio de eximi-lo.

    Tanto na condio de esposa, adstrita ao que lhe cumpre observar, como

    na situao de amante, induzida ao que se lhe impe satisfazer, Alcmena

    distingue-se pela exterioridade: o eu tornou-se-lhe um duplo do marido, um duplo

    de si mesmo.

    No h, portanto, dentre os personagens principais da comdia, nenhum

    que no se encontre duplicado. Importa reconhecer, contudo, as facetas diversas

    dessa duplicidade: para Jpiter, como para Mercrio, um estratagema; para

    Anfitrio, como para Ssia, um revs; para Alcmena, em que ela mais radical e

    menos aparente, uma injuno. De resto, arrebatando-a ao domnio de si mesma,

    a comdia assegura-lhe a alteridade normativa: se o palco lhe restitusse a

    subjetividade, a platia a relegaria abjeo.

    5

    Observa Pierre Grimal, na nota que anteps sua traduo do Anfitrio,

    que esta talvez a mais misteriosa de todas as comdias de Plauto. Ela no se

    assemelha s demais; no pe em cena jovens amorosos, nem escravos hbeis

    em forjar intrigas, nem pais avaros, nada do que constitui o mundo habitual da

    Comdia Nova dos gregos9. Podemos compar-la que mais se lhe aparenta, Os

    Menecmos: a fieira de qiproqus decorrente da extraordinria similitude dos

    gmeos, se por um lado as irmana, por outro acentua a singularidade essencial do

    Anfitrio10.

    A trama do Anfitrio nasce da satisfao de um desejo; na obteno de

    outro desejo culmina a dos Menecmos: o de Ssicles (Menecmo II) em demanda

    do irmo (Menecmo I). A matria cmica dos sobressaltos e desencontros, num

    caso engendrada por Jpiter e Mercrio, no outro deriva acidentalmente da

    insero de Ssicles no contexto existencial de seu duplo. No obstante inslita, a

    comdia dos Menecmos pertence, ao contrrio do Anfitrio, simplesmente ao

    plano das vicissitudes humanas.

  • 12

    O mecanismo da pea consiste basicamente em transferir a um dos irmos,

    por equvoco, as seqelas dos atos e das reaes do outro despositivo idntico

    ao que, na tragicomdia, opera entre os deuses e os homens. Para tanto, os dois

    Menecmos devem revezar-se no palco ao longo de toda a obra, s no remate

    coincidindo no mesmo lugar.

    Chegado a Epidamno, Ssicles v-se enredado no tringulo composto pela

    esposa, a amante e o parasita de seu irmo: o pequeno, o mesquinho mundo de

    Menecmo I, visceralmente contaminado pela impostura, o oportunismo e a

    cupidez. O empenho amoroso do recm-chegado trar ento para esse mundo um

    impulso afetivo genuinamente afetivo que no lhe menos estranho que ele

    mesmo: em face do gnio bilioso e possessivo da mulher, do visgo interesseiro da

    amante e do parasita, Ssicles evidencia-se como uma figura excepcional, de

    feitio soteriolgico. Sua presena irreconhecida faz avultar aos olhos do irmo, por

    meio das reaes que provoca, a ndole m daqueles que o rodeiam, propiciando-

    lhe um reconhecimento desenganado do mundo sua volta. A crise aparente tem,

    portanto, um sentido salutar. O siracusano, no fundo, no veio apenas reencontrar

    seu irmo: veio remi-lo de um cativeiro moral. Um ndice simblico disso a

    alforria afinal concedida a Messenio (o escravo correto e prestativo, que faz

    precisamente de reverso do parasita)11.

    Ao cabo de uma fase de atropelos e deambulao atabalhoada, devida

    coincidncia dos gmeos no mesmo crculo restrito (e em que sobressaem, com

    tpica ironia cmica, os tropeos e apertos causados por Ssicles ao irmo), a

    comdia desfecha com o equivalente de um matrimnio: o reconhecimento e a

    reunio afetuosa dos Menecmos12. Pondo mostra, desse modo, o predomnio do

    sentimento sobre o interesse, a obra sugere a qualidade inigualvel do vnculo

    fraterno, do liame familiar anlogo vinculao do indivduo a si mesmo , em

    confronto com as demais modalidades de intercmbio e convivncia a que a vida

    nos impele ou nos prende. Por outras palavras, a soluo dada pelo desenredo

    no recai, neste caso, apenas sobre a barafunda subseqente disperso

    identitria: transpondo as raias da intriga, remonta ao momento da fratura do

  • 13

    ncleo familiar, ao transe do menino sumido e que retorna agora sua

    integridade recomposta.

    O repertrio dos personagens de Plauto forma sem dvida um conjunto

    bulioso e destemperado; no infreqente v-lo desgarrar da legalidade, ou

    ziguezaguear pelas margens dos padres normativos, para a empurrado pelo

    egosmo, a estroinice, a concupiscncia, a cupidez, etc. Apondo-lhe por divisa

    uma clebre e desolada passagem da Assinaria, homo homini lupsus, E. Paratore

    o descortina, panoramicamente, como um mundo desconcertante e paradoxal,

    onde os escravos, os parasitas, os proxenetas, as prostitutas, constituem um

    centro, o saldo universo, e tudo se desenrola ao ritmo de frentica dana

    priapesca13. Eivado de excessos e desvios, de acidentes que acometem contra

    certos ngulos da estrutura institucional, dos valores sedimentados, esse mundo

    no entretanto o que se nos depara, a rigor, no Anfitrio.

    O indivduo torna-se uma pessoa lembra Aaron Gourevitch ao

    interiorizar a cultura, o sistema de valores, a viso de mundo que so prprios de

    uma sociedade ou de um grupo social14. Individuao do social e socializao do

    individual, a determinao da pessoa, com sua identidade, seu estatuto, a bitola

    moral que lhe baliza a existncia, uma sntese dinmica. A ruptura desse tenso e

    palpitante equilbrio, ao minguar a socialidade do indivduo, f-lo destoar mais ou

    menos estridentemente da disciplina coletiva. Mas a imagem do desejo

    absolutamente desempeado representa a prpria obliterao do sistema

    normativo: sua fora dissolutiva chega a exercer-se, radicalmente, sobre o

    princpio comunitrio. E esse surto voluptuoso, essa ruptura onrica da existncia

    normalizada, que, mais que faz-lo diferir profundamente dos Menecmos,

    empresta ao Anfitrio uma substancial singularidade em relao a todas as

    comdias do autor.

  • 14

    6

    A estrutura da intriga cmica compreende, em essncia, trs aspectos, aos

    quais natural corporizar-se, nas obras particulares, de modo mais ou menos

    expressivo, vibrante e manifesto. Esses trs componentes so constitutivos do

    que se poderia designar por idia cmica, idia que se exprime perfeio de

    acordo com a perspectiva crist no ttulo da obra-prima de Dante (do qual

    originalmente no constava, como se sabe, o qualificativo divina). Consiste a idia

    cmica num impulso impugnativo, num processo catrtico seu conseqente e

    num clmax salvfico. Condenao, purgao, salvao compem o fundamento

    dinmico desse tipo de intriga cujo movimento, em sua expresso modelar, restitui

    ou faz evolver a ordem avariada, viciosa ou subvertida sua primitiva ou ideal

    integridade, purificando-a de algum fator de corrupo, injustia, defectividade ou

    decadncia.

    Contra esse gnero de agente deletrio, vicioso, exorbitante, exterioriza a

    comdia a sua verve satrica ou censria, s vezes francamente invectiva. Em

    modulaes que variam do intuito admoestativo causticidade mais brusca, a

    comdia absorve a stira e subordina-a sua perspectiva soteriolgica. Esta, a

    dimenso salvfica, no de fato intrnseca stira, conquanto o seu escopo

    censrio possa ser visto como postulao crtica de uma retificao redentora, de

    uma mutao purificante.

    Em As nuvens, de Aristfanes exemplo que nos remete ao nico dos

    antigos comedigrafos gregos cuja obra sobreviveu , nociva a influncia

    disseminada por Scrates, o alvo mais visvel da comdia; no o menos aquilo

    que, no esprito e no carter de Estrepsades, o induz a buscar e assim favorecer

    o ensino socrtico. Sobre um e outro desses fatores faz incidir a comdia,

    pontualmente, o seu aguilho catrtico.

    Esquema idntico a esse encontra-se em O Tartufo, de Molire. Trata-se,

    aqui, de suprimir o ascendente implacvel que exerce o impostor sobre Orgon:

    resgat-lo e assim libertar-lhe a famlia da devoo apatetada e ruinosa em

  • 15

    que anda metido. Tartufo, com o rigorismo que prediga, a rigidez que faz imperar

    em torno de Orgon, um inimigo funesto de todo o espontneo, de todo anelo

    vital; sobre a urgncia de combat-lo concerta-se a famlia, incorporando o papel

    que em Aristfanes compete s prprias Nuvens.

    Comparando-se ento as duas comdias, descobre-se em ambas o mesmo

    movimento basilar, de resto evidente na homologia entre Scrates e Tartufo, entre

    Estrepsades e Orgon, entre as Nuvens e a famlia de Orgon: o movimento que

    resulta na eliminao do fator degenerativo e mistificante (passagem catrtica do

    momento satrico ao salvfico).

    Nesse sentido, precisamente, atua Lisstrata, na comdia homnima de

    Aristfanes, ao contrapor-se ao descalabro produzido pela guerra (uma guerra

    que, na realidade, ia exaurindo a plis e preparando-lhe o colapso). A afoita e

    sagaz ateniense imagina um meio de fazer cessar o impulso blico: provocar um

    impulso que com ele se defronte e o obrigue a capitular. O plano recusar-se

    inflexivelmente, enquanto a guerra dure, demanda sexual masculina. Promovem

    as mulheres, desse modo, uma espcie de combate em que o adversrio, ao

    invs de arrostar-se com o guerreiro, instala-se irresistvel no seu mago. Com

    esse artifcio, mais persuasivo que as palavras, a hoste feminina faz alastrar o

    impulso que h de pr fim ao mpeto belicoso dos homens: o impulso ertico.

    Afrodite toma o lugar de Ares; Eros, o de Thnatos. A crise gerada por Lisstrata,

    desdobrando-se nas rixas e debates que eletrizam o espao cnico, acaba

    revelando-se um antdoto perfeito: o fecho da comdia celebra a restaurao da

    paz, em meio ao regozijo por todo o cortejo de benefcios e prazeres que a

    acompanham.

    Outro exemplo conspcuo, j no contexto erudito de imitao renascentista

    da comdia latina, o que nos oferece A mandrgora, de Maquiavel. fcil

    constatar a virtude corretiva e vivificadora da empresa amorosa de Calmaco: a

    par da realizao afetiva que a ele prprio proporciona, ela ser com todos

    munificente: a Lucrcia jovem, bela, honesta, avisada propiciar o amor e o

    prazer; a Ncia em acusada dissimetria em relao esposa o filho que ele

  • 16

    fervorosamente almeja; e a qualquer dos demais personagens, de um jeito ou de

    outro, algum benefcio ou satisfao.

    Graas ao artifcio engenhado por Ligrio o facttum que assimila,

    renovando-as brilhantemente, as figuras cmicas tradicionais do escravo ardiloso

    e do parasita , forma-se uma tal sintonia entre as partes da intriga, que o desejo

    de Ncia converte-se em base da concretizao do de Calmaco, e o de Calmaco

    em meio bizarra troca de favores da efetivao do de Ncia. Associados,

    Calmaco e Ligrio perfazem, complementando-se, um equivalente de Lisstrata,

    animados da mesma funo, da mesma competncia dramtica da herona grega:

    o primeiro ilumina-a, determinando-lhe o fim; o segundo implementa-a,

    arquitetando-lhe os meios. Funo de resto simbolizada, em contraste com a

    esterilidade que pesa sobre o matrimnio de Ncia, pelo fecundo da ligao de

    Calmaco com Lucrcia.

    Dos alvos contra os quais acomete o ponto de vista satrico de A

    mandrgora, Ncia e Frei Timteo so sem dvida os principais: o frade em funo

    da impostura e do oportunismo, que pem em desavena seu carter e sua figura

    pblica e normativa; o doutor pela desproporo entre os privilgios que desfruta e

    os mritos que possui. A mordacidade do dramaturgo, no entanto, mais acerada

    se mostra em relao ao religioso15.

    Quanto a Lucrcia, de notar a transformao moral por que ela passa,

    fato que a nenhum dos demais personagens sobrevm. No obstante o escasso

    de sua presena em cena, Lucrcia a meta para a qual tudo converge todo o

    fervilhar dos desideratos e esforos que informam a intriga. Notria pelo decoro,

    estrita na observncia do imperativo conjugal (principal empecilho para o propsito

    de Calmaco), ela evolui no sentido de uma atitude muito mais dctil e receptiva

    incentivada em parte pelo desengano que o curso da ao lhe incutiu em face

    da vida. Uma aceitao, em suma, mais espontnea de si mesma, que em certa

    medida a aproxima do modelo ou programa existencial que Calmaco expe, no

    comeo da pea, ao reportar-se ao modo como vivia em Paris: tendo parte do

    tempo dedicado aos estudos, parte aos prazeres e parte, enfim, aos negcios; e

    de tal modo procedendo em cada uma dessas coisas, que nenhuma delas me

  • 17

    impedia as outras16. Programa que resume, logo de sada, o horizonte moral de A

    mandrgora: uma perspectiva que postula e sanciona, de modo seguro e

    temperado, a totalidade do humano enquanto tal. A essa perspectiva medular

    prende-se a declarao das mais expressivas da pea com que o jovem

    apaixonado celebra o sucesso de sua empresa: considero-me o homem mais feliz

    e contente que ter jamais existido no mundo; e, se esta felicidade no me fosse

    um dia faltar por causa da morte ou da velhice, seria mais bem-aventurado que os

    bem-aventurados, mais santo que os santos17. Smula de um ideal humano

    fremente e emblemtico, essa santidade laica o znite para onde a comdia

    encaminha, junto com Lucrcia e Calmaco, a fantasia sequiosa do espectador.

    A mutao restauradora, em vez de infletir sobre uma conjuntura, pode

    operar-se direta e primordialmente sobre o indivduo, devolvendo-lhe o carter ao

    estado normal ou ideal de equilbrio: o Dyscolos encerra um dos clebres

    exemplos disso. A personalidade empedernida de Cnmon o veio principal da

    comdia de Menandro. Quanto ao componente da intriga fomentado por Sstrato,

    seu curso est pendente de Cnmon: da evoluo do misantropo depende, com

    efeito, a do propsito amoroso de Sstrato. Entrelaada dele e do padrasto, e

    alis imbuda de um contedo tico fundamental, decorre a trajetria ascendente

    de Grgeas.

    O que faz evoluir ou flexibilizar-se o misantropo nada mais , na verdade,

    que a erradicao, no plano anmico como o era no plano social, em As Nuvens,

    a proscrio de Scrates de um fator anmalo ou nocivo: aquilo que, na alma do

    protagonista, sobre constituir um foco impeditivo do convvio regular com os

    outros, se reflete opressivamente sobre a existncia de sua filha, sobre o amor de

    Sstrato, influindo ainda, em certa medida, na vida de Grgeas e de sua me.

    Bem diferente da de Cnmon, por conseguinte, dentro da urdidura do movimento

    dramtico, uma transformao como a sofrida por Lucrcia, em A mandrgora:

    esta no condio mas apenas uma das seqelas do desenvolvimento do

    entrecho (o que no a torna, entretanto, menos significativa).

    A Cnmon ser preciso remi-lo da clausura de seu prprio temperamento,

    de sua alma atabafada e enegrecida. Terem-no resgatado do poo uma

  • 18

    circunstncia cujo simbolismo, nesse contexto, imediatamente se percebe. E

    deve-se advertir que no lhe faltam, apesar de tudo, mritos para que esse fito se

    justifique: se ele fosse da laia de um Tartufo, simplesmente perverso e abjeto,

    justo seria, em vez de resgat-lo, suprimi-lo. Sua conduta a conseqncia de um

    desengano excessivamente acerbo, de uma viso que foca unilateralmente os

    homens, zurzindo-lhes o egosmo e a cupidez; nada contudo encerra, na verdade,

    de inquo e condenvel18.

    O mecnico sobreposto ao vivo19: a Cnmon, mineralizado em sua

    obstinao anti-social, assenta como uma luva essa frmula bergsoniana. No se

    dir, contudo, que ele esteja inteiramente equivocado: a atitude de Qureas,

    quando, amedrontado pela fria de Cnmon, se furta ao auxlio que Sstrato lhe

    pede, um indicativo claro de que o misantropo no vive simplesmente imerso

    num delrio atrabilirio. Caber a Grgias, com solicitude e didatismo, dar-lhe a

    prova decisiva de um novo padro de sociabilidade, de prontido desinteressada e

    amigvel20.

    Menandro trata esmeradamente de pr em relevo as qualidades de seus

    personagens, sublinhando por esse meio a justia do que a comdia lhes reserva

    no remate. A probidade laboriosa de Grgias, com seu cunho de desambio e

    solidariedade; a alma imaculada de sua meia-irm; o amor sincero de Sstrato, a

    par de um natural judicioso, sbrio, liberal e afvel tais caractersticas,

    contrapeso do modo de ser e de ver de Cnmon, ganham na obra um valor

    decisivo; ao inclu-las na equao do destino de cada personagem, Menandro lhes

    confere uma aura metafsica.

    esse um trao nuclear do substrato ideolgico da pea, e ningum melhor

    que Grgias o evidencia. Coroando-lhe o carter meritrio, a prosperidade final de

    Grgias corresponde ao que era, na ltima das obras conservadas de Aristfanes,

    o propsito de Crmilo, ao prover para que a Pluto fosse devolvida a viso:

    condicionar a riqueza moralidade. Nas dimenses reduzidas de uma peripcia

    domstica, estranha a qualquer expediente fantasista, Menandro faz reviver a

    utopia aristofnica. E deve-se alis notar que tudo, no Dyscolos, anda subordinado

    moralidade: o sucesso de Sstrato, por exemplo, ao contrrio do do Calmaco da

  • 19

    Mandrgora, no manifesta propriamente um triunfo do desejo posto que

    bafejado pela juventude , mas antes um corolrio da tmpera moral que o

    legitima21. E o desenlace conjugal no tampouco indiferente pureza de

    corao de sua meia-irm.

    Assim, embalado num sonho de coeso e de harmonia, emerge esse

    mundo que ressalta o carter como um valor fundamental, e onde o destino se

    define como corolrio da virtude: moralismo utpico, num cenrio que migrou da

    plis para o cotidiano do indivduo e da famlia; ou, mais exatamente, uma

    representao idealizada do possvel, imbuda de sentido crtico (no porm

    marcado de mordacidade), exortativo e compensatrio. Crtico, na medida em que

    indigita ou deixa ver a defectividade do real; exortativo, porquanto afeioa uma

    situao ou uma trama exemplar; compensatrio, visto que modela um sucedneo

    sublimado ou retificado da existncia concreta.

    O desfecho da comdia no revela, verdade, um Cnmon inteiramente

    refeito, em quem se tivesse substitudo, de chofre, a acrimnia anti-social por uma

    sociabilidade calorosa. Deixa entretanto ver, assente no re-conhecimento de si e

    dos outros que faculta ao protagonista, um pendor que aponta em cheio para a

    auto-superao do misantropo. Esta porm comea por se defrontar, conforme o

    indica a cena final, com uma inveterada resistncia.

    7

    No Anfitrio, como vimos, Jpiter quem, com o auxlio trfego de

    Mercrio, origina o desarranjo e deixa-o propagar-se e complicar-se, dispondo-se

    por fim a dirimi-lo. A intriga de ponta a ponta comandada por sua vontade

    inelutvel, e ganha com isso um sentido singular, ambivalente, que lhe vem de seu

    contedo ao mesmo tempo domstico e numinoso.

    Mercrio e Jpiter esto, como sabido, ligados a um repertrio cmico

    estvel. O primeiro descende do escravo solerte, agente desobstaculizador e fonte

    de hilaridade, sempre disponvel para toda sorte de expedientes e circunstncias

    burlescas; o segundo toma o lugar convencional do jovem apaixonado. A esses

  • 20

    papis no se adaptam eles, contudo, sem algum extravasamento, j que lhes

    imprimem a singularidade de suas prerrogativas divinas. Quanto a Anfitrio,

    malgrado o muito que se afana contra os impasses da intriga, no lhe compete

    solucionar seja o que for, mas compreender e acomodar-se com o que lhe foi

    reservado. A palavra de Jpiter, que elucida finalmente o sentido de seu

    desconcerto, prescreve-lhe o nimo acomodatcio e conciliatrio. Ao sonho

    encenado por Jpiter responde, desse modo, o senso do real, exemplificado por

    Anfitrio22.

    A ao discricionria dos deuses no implica contudo uma opresso

    inapelvel. A pea no se esgota, conquanto nisso se concentre, na volpia de

    Jpiter e nas tribulaes de Anfitrio e Alcmena, a par dos apertos de Ssia e das

    travessuras de Mercrio. Ela tambm assinala o nascimento de Hrcules, que

    brindar com benefcios maravilhosos os humanos; o heri, recorde-se, um

    prottipo do agente corretivo e purificador, expungindo o mundo de gente daninha

    e sinistra como Busris, por exemplo; e lembre-se ainda que na Alceste, de

    Eurpides, arrebata a herona s garras da morte, dando ao ncleo lutuoso da

    pea um remate propriamente cmico. Mas escusado prosseguir: o filho de

    Alcmena e Jpiter de sobejo conhecido. Basta frisar que com essa promessa de

    glria termina a comdia, deixando o transe dos mortais iluminado, para alm dos

    limites da intriga, por uma perspectiva jovial, uma expanso renovadora.

    8

    Do teatro de Cames pode dizer-se, com efeito, que menos do teatro que

    de Cames; por outras palavras, que subsiste no tanto por si quanto apensado

    ao restante de sua obra. De fato, a dramtica revelou-se a menos inspirada de

    suas musas, e a ateno que se lhe dedica quase sempre a que sobeja da

    leitura da pica e da lrica. Georges Le Gentil, que no lhe atribui mais que um

    valor secundrio, acha mesmo presumvel que s por algum estmulo ocasional,

    a pedido dos seus amigos ou de algum protetor influente, Cames se ter

    deixado aliciar pelo teatro23. De modo algo diverso pensa Filgueira Valverde, que,

  • 21

    num livro que visa, como o de Le Gentil, a todo o Cames, embora igualmente

    sucinto a respeito de seus autos, e sem dispor-se a contestar, marcadamente, a

    perifrica importncia que em regra se lhes atribui, no os subordina a escopo

    menos substantivo que o das obras consagradas. Depois de comparar com a de

    Cervantes a produo dramtica camoniana uma e outra obscurecidas pelas

    obras-primas que os celebrizaram , Valverde nelas sublinha, a par de uma

    posio independente, a marca da personalidade criadora dos dois artistas24.

    Naturalmente, quem se proponha estudar o Cames dramaturgo sentir-se-

    mais receptivo segunda das posies referidas. Quanto a estas pginas, previno

    que no tm em vista qualquer concluso valorativa; impus-me somente imbu-las

    da ateno meticulosa que toda anlise e interpretao reivindicam.

    Os autos de Cames publicaram-se postumamente; no entanto, diferena

    do que acontece com a lrica, para a qual foram to perturbadoras as

    circunstncias editoriais, nenhuma suspeita de apocrifia jamais os molestou. O

    Auto dos Enfatries e o Auto de Filodemo vieram a lume em 1587; o Auto de el-rei

    Seleuco, em 1645. Enfatrio, advirta-se, a forma que pe a princeps no ttulo do

    nosso auto, fazendo-a alterar no texto com Anfatrio. Esta, por mais que freqente

    e mais prxima da original, foi a que escolheu Salgado Jnior, em sua edio da

    Obra completa de Cames, tanto para o texto como para o ttulo da comdia. A

    mesma opo j fizera antes Hernni Cidade, apenas o ttulo excetuando da

    homogeinizao. A mim parece-me prefervel que no destoe o ttulo do texto:

    nosso auto chamar-se-, portanto, dos Anfatries.

    No tocante s datas em que foram compostos os autos, nada h que as

    faa precisar documentadamente; a variedade das hipteses a esse respeito

    aventadas induz a situ-las primeiro o Anfatries, depois El-rei Seleuco e por fim

    o Filodemo no perodo de 1542 a 1555, ano em que foi investido governador da

    ndia Francisco Barreto, a quem se representou, na ndia, o Filodemo, de acordo

    com nota que lhe est aposta no Ms. de Lus Franco. Se de supor, porm, que o

    momento da investidura fosse o ensejo da representao da pea, no foroso

    que o fosse tambm da composio, como adverte Hernni Cidade: E escrita

    ento e para tal festa? Pode l adivinhar-se!... Nenhum passo da forma, nenhum

  • 22

    rasgo da substncia no-lo indicam25. O mais que isso nos prova, portanto, que a

    partir de 1555 a veia dramtica se ter exaurido em nosso poeta.

    Quando Cames escreve o seu Anfatries, j em espanhol duas tradues

    havia da comdia de Plauto: a de Francisco de Villalobos, publicada em 1515 e

    vrias vezes reeditada (em 1517, 1543, 1547, etc.), e a de Henn Prez de Oliva,

    catedrtico e reitor da Universidade de Salamanca, vinda a lume em 152526. Foi o

    Anfitrio, por sinal, a primeira pea de Plauto que se traduziu para o espanhol, e

    p-la ento em espanhol era praticamente o mesmo que faz-la falar em

    portugus. No impossvel que Cames as tenha visto; dado que as

    desconheo, s posso cometer a uma pesquisa futura a influncia que talvez

    tenham exercido em seu trabalho. Como quer que seja, as edies citadas,

    acrescidas ainda no sculo XVI, no mbito peninsular, de um Amphitrion annimo

    (Toledo, 1554) e de outro Amphitrin que Juan de Timoneda fez publicar em 1559,

    acompanhado de Los Menemnos, testemunham o fascnio e o apreo suscitados

    ento pelo texto de Plauto27. Como se v, o incentivo vindo da Itlia ganhou alento

    no territrio ibrico, formando uma vaga a que responde, em portugus, o

    Anfatries camoniano.

    Em toda a extenso de sua comdia em que se disps a faz-lo, Cames

    segue de perto o texto de Plauto. No lhe transforma a intriga nem lhe altera o

    perfil dos personagens. Jpiter e Mercrio, assim como Ssia, Anfitrio e

    Alcmena, em substncia, no se apresentam em Cames seno como os vemos

    em Plauto, e a ao que os entrelaa evolui similarmente, num e noutro, para o

    mesmo final. As diferenas que nessas partes se verificam so inflexes

    secundrias; no que respeita aos personagens, encontram-se sobretudo na

    conformao do discurso amoroso, que Cames versifica de acordo com o cdigo

    lrico de seu tempo: as frmulas que campeiam e enxameiam no Cancioneiro geral

    de Resende. O que faz, portanto, diferir um texto do outro no est no modo como

    Cames modifica sua fonte: reside antes de mais nada nos elementos que lhe

    acrescenta. Essa diferena aditcia evidencia-se no momento inicial da comdia

    portuguesa, em que Plauto no aflora seno de forma sumria e incidental:

    apenas o bastante para que essa seo, de ndole visivelmente vicentina, no

  • 23

    aparea de todo despegada da ao subseqente a nica que na verdade se

    desenvolve e desfecha , e ainda o bastante para identificar, pelo modo como o

    poeta acena ao modelo, a adaptao que lhe fez.

    Em menor medida, contribui para diferenar o texto portugus do latino o

    que Cames suprime de sua fonte. Essa diferena subtrativa patenteia-se

    sobretudo na abertura da pea, onde foi omitido o prlogo de Plauto, por

    desnecessrio ou porque a informao preliminar seria ministrada platia por

    outra via, no momento da representao. Mais certo ser, suponho, considerar

    essa omisso indicativa do pblico do poeta, gente j suprida de um conhecimento

    suficiente seja direto ou indireto do original latino. Houve, de fato, quem fizesse

    datar o Anfatries dos tempos do Cames estudante, dando-o por destinado a um

    pblico prioritariamente acadmico. foroso notar, porm, que dos estudos de

    Cames sabe-se somente o muito que lhe aproveitaram, consoante o demonstram

    suas obras; no atinente a como e onde os fez, estamos to pouco documentados

    como a respeito de tantos outros aspectos e peripcias de sua vida.

    Cames pe na entrada de seu auto uma Alcmena lastimosa, vazando a

    saudade em frmulas consabidas momento lrico que a nenhuma passagem

    corresponde, precisamente, do texto original, mas que espelha a esposa afetuosa

    plasmada por Plauto: assim se nos apresenta ela, com efeito, em sua primeira

    apario na comdia latina (ato I, cena 3), coincidindo destarte os dois autores na

    imagem que de incio nos transmitem da personagem.

    Um poeta do Cancioneiro geral, Rui Gonalves, em versos que alis no

    primam pela originalidade, deste modo se dirige amada ausente28:

    Que de meus olhos partais,

    em qualquer parte qu esteis,

    em meu corao ficais,

    e nele vos converteis.

    Pela mesma toada principia o lamento da Alcmena camoniana29:

  • 24

    Ah! Senhor Anfatrio,

    Onde est todo o meu bem!

    Pois meus olhos vos no vem,

    Falarei coo corao,

    Que dentro nalma vos tem.

    E o mais do lamento, alis breve, assenta noutro lugar-comum da lrica

    amatria quinhentista: a mgoa amorosa metaforizada pela guerra, o sofrimento

    figurado como conflagrao anmica, a cuja difuso anda sempre ligada uma

    reminiscncia petrarquiana:

    Ausentes duas vontades,

    Qual corre mores perigos,

    Qual sofre mais crueldades:

    Se vs entre os inimigos,

    Se eu entre as saudades?

    Que a Ventura, que vos traz

    To longe de vossa terra,

    Tantos desconcertos faz,

    Que, se vos levou guerra,

    No me quis leixar em paz.

    Esse intrito amoroso refere-se a um ponto um pouco anterior quele em

    que comea a comdia de Plauto, cujo prlogo j nos indigita Jpiter na alcova de

    Alcmena. Trata-se de um relance apenas: depois de incumbir criada, Brmia,

    que envie Feliseu a apanhar notcias de Anfitrio, Alcmena esfuma-se; s na

    altura do v. 527 reaparecer30, quando Jpiter se lhe depara, na figura de

    Anfitrio, para dar incio a seu estratagema amoroso.

  • 25

    Quando Alcmena se retira, deixando no ar o hlito ansioso de sua saudade,

    um extenso parntesis dramtico se inicia (vv. 42-461), no curso do qual o palco

    ocupado por Brmia e Feliseu, de imediato, e em seguida por Feliseu e Calisto.

    Entre aqueles e estes uma momentnea interrupo, em que aparecem Jpiter e

    Mercrio (vv. 211-266), traz baila o ardil que este ltimo sugere a seu pai. Com o

    corao a perturb-lo, o Jpiter camoniano como sucedia ao Calmaco de

    Maquiavel incapaz de atinar com o meio de achegar-se a Alcmena (que alis

    se preza de virtuosa), e Mercrio quem lho indica. Na verdade, esse trecho

    intermdio um reflexo parcial do prlogo de Plauto, e tem igualmente a inteno

    de destacar para o pblico um contedo que interessa inteligibilidade da intriga.

    Brmia criatura de Cames: da de Plauto nada mais que o nome lhe

    ficou. Subtraindo latina o papel que lhe cabe no ltimo ato da comdia, Cames

    deixa sua Brmia inteiramente margem da ao principal to estranha a seu

    curso como Carlisto e Feliseu. De resto, a tarefa a este ltimo confiada nenhuma

    conseqncia ter, como tampouco o ter o bosquejo dramtico de suas relaes

    com Brmia.

    Negaceira e presumida em relao a Feliseu, Brmia um arremedo da

    dama que se repasta nos gabos e afeies que se lhe consagram:

    Quero Feliseu chamar,

    E dizer-lhe aonde h de ir.

    Mas ele, como me vir,

    Logo h de querer rinchar,

    De travesso.

    Eu, que de zombar no cesso,

    Por ficar com ele em salvo,

    Lano-lhe um e outro remesso;

    Aos seus furto-lhe o alvo,

    E ento ele fica avesso.

    Porque o melhor destas danas,

  • 26

    Com uns vendios assi,

    traz-los por aqui

    Ao cheiro das esperanas,

    Por viver.

    H-os homem de trazer

    Nos amores assi mornos,

    S pera ter que fazer;

    E depois, ao remeter,

    Lanar-lhe a capa nos cornos31.

    Essa tauromaquia amatria funda-se contudo num equvoco: o que lhe

    oferece Feliseu, de fato, somente o simulacro verbal de um pseudo-sedutor,

    salpicado de frmulas lricas convencionais. Feliseu responde ao prprio

    ressentimento com a expectativa infundada, o prazer especioso que provoca.

    Monologando para a platia, assim descortina seus mveis em relao a Brmia32:

    Esta tem l pera si

    Que eu sou por ela finado,

    E cr que zomba de mi;

    E eu digo-lhe que si,

    Sou por ela esperdiado.

    Preza-se das seguras,

    E eu no quero mais Frandes:

    Dou-lhe trela s travessuras,

    Porque destas coaduras

    Se fazem as chagas grandes.

    Que estas, que andam sempre vela,

    Estas vos digo eu que coo;

    Porque, de firmes na sela,

    Crem que falsam a costela,

    E ficam pelo pescoo.

  • 27

    Que quando estas damas tais

    Me cacham, ento recacho.

    O que Brmia ignora, e que s mais tarde nos ser dado saber, que

    Feliseu vive oprimido de uma insanvel frustrao afetiva. ele mesmo quem no-

    lo revela, na altura em que contracena com Calisto33:

    Feliseu. Eu quis bem a a mulher,

    Que vs conhecestes bem,

    E, com muito lhe querer,

    Casou-se.

    Calisto. Oh! e com quem,

    Que ainda o no posso crer?

    Fel. Com um mercador, que veio

    Agora do Egipto rico.

    Cal. Isso traz gua no bico.

    Esse homem parvo ou feio?

    Fel. Pois, vedes?, disso me pico.

    E em pago desta treio,

    Afora outros mil descontos

    Que traz consigo a afeio,

    Sempre os sinais destes pontos

    Trarei no meu corao.

    A preterio de seu amor, que ele em mais de uma ocasio expedira em

    versos amada, fez, portanto, azedar-se-lhe a alma, e a mgoa converteu-lhe o

    discurso amoroso em simples instrumento de simulao despicativa.

    Desprovido de um liame dinmico com o miolo da intriga, o pequeno

    entrecho protagonizado por Brmia e Feliseu parecer gratuito e excrescente, sem

    dvida, em face do que , a rigor, a imitao camoniana de Plauto. Deve porm

    notar-se que nesse jogo estril por eles urdido um motivo se destaca, e por meio

  • 28

    dele, essencialmente, que essa parte se associa ao restante da pea: o motivo do

    simulacro, da mscara. Com os petrechos que lhe faculta a poesia de seu tempo,

    Feliseu faz de apaixonado e nisso assimila-se a Jpiter, que, com meios

    infinitamente mais conclusivos, faz de Anfitrio. O liame entre Brmia e Feliseu e o

    ncleo da intriga no , portanto, de cunho propriamente dramtico, mas

    simptico: uma ligao de ndole menos sintagmtica que associativa, anloga s

    que se produzem por sinonmia e antonmia.

    A antonmia o contraste outro dos modos por que se conecta essa

    cena perifrica com seu centro. Entre Jpiter e Alcmena, com efeito, a mscara

    um meio que possibilita a aproximao; entre Feliseu e Brmia, ao contrrio, o

    fingimento nada enseja alm da distncia, da tenso que os conserva em seu

    isolamento recproco. E que mais, afinal, poderia advir de seu jogo? O disfarce,

    para Jpiter, um expediente do desejo; para Feliseu, uma expresso do malogro

    e do despeito. De mais a mais, o Jpiter amante est, obviamente, imune

    frustrao; o aflito Feliseu, com seu nome amargamente irnico feliz eu ,

    ilustra, ao invs, as vicissitudes dolorosas a que esto sujeitos os amores dos

    mortais, donde alis retira a musa camoniana um dos impulsos substanciais de

    sua temtica.

    A outra das sees marginais a que antes me referi, entre a apario de

    Jpiter e Mercrio e o comeo da ao por eles representada, rene a Feliseu um

    tipo tambm independente de Plauto: Calisto. Letrado, ou aparentando s-lo,

    capaz de lastrar com Petrarca o comentrio da performance lrica do amigo,

    Carlisto ainda mais evanescente que Brmia; seu papel resume-se em fazer de

    interlocutor de Feliseu e faz-lo conhecer melhor do espectador. por intermdio

    dessa cena que o perfil amoroso de Feliseu, do qual o dilogo com Brmia nos

    consentira um vislumbre, deixa ver suas motivaes. Assim, dentre os

    personagens concebidos pelo autor portugus, torna-se Feliseu o menos

    inconsistente e instantneo: seu enamoramento, o conseqente trato com as

    musas, o rival mais abastado que lhe fora preferido, a amargura indelvel do

    malogro esses dados, posto que referidos de passagem, bastam, com efeito,

    para conferir a Feliseu alguma perspectiva e densidade existencial.

  • 29

    O motivo do amor que no logra realizar-se, no por mngua afetiva mas

    em virtude de um bice pecunirio, e cujo legado aflitivo alis compartilhado, ao

    que sugere o prprio Feliseu (vv. 322-331), tanto por ele como por ela, de teor

    anlogo ao contedo social que muitas vezes, na lrica de Cames, est

    subjacente aos desencontros e s frustraes amorosas. O soneto Senhor Joo

    Lopes, o meu baixo estado, dado a lume nas Rimas de 1616, deixa vincado, por

    exemplo, no terceto final, o conflito entre o anelo amoroso de unio e o imperativo

    hierrquico da separao:

    Senhor Joo Lopes, o meu baixo estado

    Ontem vi posto em grau to excelente,

    Que vs, que sois inveja a toda a gente,

    S por mim vos quisreis ser trocado.

    Vi o gesto suave e delicado,

    Que j vos fez contente e descontente,

    Lanar ao vento a voz to docemente,

    Que fez ao ar sereno e sossegado.

    Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto

    Ningum diria em muitas; eu s, cego,

    Magoado fiquei na doce fala.

    Mas mal haja a Fortuna e o Moo cego!

    Um, porque os coraes obriga a tanto,

    Outra, porque os estados desiguala34.

    Aos que se afanam em escarafunchar na obra a existncia do poeta, seria

    possvel lobrigar talvez, em Feliseu, um esgar auto-irnico de Cames.

    O cmico da alma amorosa a desatar em versos que, posto lhe atestem a

    paixo, lhe caricaturam o talento, fora j encenado por Gil Vicente. O amante

  • 30

    infeliz, temperado com o poeta canhestro, contrasta assim jocosamente,

    acentuando-lhe a singularidade, com o deus que nenhum empecilho separa da

    consumao de seu prazer.

    no ponto em que se retiram Calisto e Feliseu que tem incio,

    propriamente, a imitao camoniana do Anfitrio plautino. Pouco h de Plauto em

    toda a parte da pea que se desenrola at esse passo. A Alcmena da abertura,

    camonizada pela saudade modulada em clichs quinhentistas, uma aluso ao

    texto latino; a rpida entrada dos deuses, entre os vv. 212 e 266, limita-se a

    anunciar ao pblico o artifcio que se vai pr em cena, e procede do prlogo de

    Plauto. Assim, Cames vai aos poucos aproximando-se, num movimento

    seccionado pelos parnteses cnicos de Brmia e Feliseu e de Feliseu e Calisto,

    do entrecho do primeiro Anfitrio.

    Ao quadro dramtico alinhavado entre Brmia, Feliseu e Calisto, acrescido

    da presena espectral da amada de Feliseu e de seu marido, bastaria um leve

    remanejamento e alguma delonga e inflexo conclusiva para converter-se num

    auto maneira, por exemplo, de Quem tem farelos? ou do Auto da ndia. Cames

    praticamente acopla ao texto plautino refundido um pequeno auto de extrao

    vicentina, o que, em seu contexto nacional, pode dizer-se que o deixa,

    contrariando a cronologia, a meio caminho entre Gil Vicente e S de Miranda.

    Estruturalmente, o Anfatries tornou-se desse modo uma obra hbrida, que

    remonta em parte a Gil Vicente, em parte a Plauto, trao que alis recorda um

    processo combinatrio a contaminatio a cujo emprego por Plauto j Terncio

    se referira (no prlogo da Andria).

    Deve-se entretanto notar que, alm da homogeneidade mtrica e estilstica,

    correspondncias h, como indiquei, entre o contedo acrescido pelo poeta

    lusitano, claramente subsidirio, e o oriundo de Plauto, substancial, que permitem

    ao texto sobrepor a impresso da coerncia da descontinuidade. Certo , porm,

    que a obra no escaparia ao crivo crtico de Aristteles. Para alcanar o padro de

    unidade de ao preconizado pela Potica aristotlica, Cames teria de ter feito o

    que no se props fazer: entremear de tal maneira na intriga plautina os

    elementos adventcios, que eles se tornassem, na medida prpria, determinativos

  • 31

    de seu curso e fossem por ele determinados, assumindo dinamicamente o sentido

    de seu movimento dramtico. Um tal propsito teria redundado, naturalmente,

    numa aguda remodelao do texto original.

    Mais aristotlico se mostra, sem dvida, o Anfitrio de Molire. O prlogo

    entre Mercrio e a Noite elucidativo dos passos iniciais da intriga, que em

    seguida se detm na cena entre Mercrio e Ssia. Molire absorve-lhe a seiva

    cmica como Cames o tinha feito; pelo visto, a nenhum dos poetas pareceu

    oportuno afastar-se nesse ponto de Plauto. Coincidem ambos, outrossim, em

    rejeitar o prlogo expositivo do modelo latino (e outras intervenes de igual teor,

    de Mercrio e de Jpiter cena 2 do primeiro ato e incio do terceiro , que

    resumem o curso subseqente da ao). Molire estrutura seu prlogo de forma

    dramtica, e o faz avanar cursivamente at a chegada de Ssia. Quanto a

    Cames, a primeira parte de seu texto, merc do interesse intrnseco que a

    complica, tem, como vimos, menos o sentido prospectivo de uma introduo que a

    relativa intransitividade de um auto embrionrio.

    No to plautino como o de Cames afigura-se-me o Ssia de Molire,

    renovado por meio de uma difcil e desentoada peripcia conjugal. Clanthis, sua

    esposa, inteiramente moliriana, faz enxamear sua mgoa e suas queixas em

    torno do marido: apoquentaes no cogitadas por Plauto, motivadas por

    Mercrio. Clanthis resume-se em servir de correlato de Alcmena, dando

    oportunidade a Mercrio, que assim tambm se renova, de glosar num registro

    francamente jocoso o mote das dissenses conjugais. Tudo que Molire entretece

    sua volta, fazendo-a contracenar com Mercrio e com Ssia, forma um adendo

    que, em face dos efetuados por Cames, aponta o aspecto estrutural em que

    principalmente divergem os dois dramaturgos: o imaginado por Molire no fica

    aditcio, mas entremeia-se de modo correntio na intriga oriunda de Plauto.

    Combinatrio e aditivo, o princpio estrutural camoniano tem em mira no a

    unidade, mas antes a variedade. Os componentes autctones, estranhos a Plauto,

    no esto entrelaados ao nuclear por meio de nexos dinmicos de tenso,

    cooperao e subordinao; os liames que a ela os aglutinam so, como ficou

  • 32

    dito, no ativos, mas qualitativos. Ou seja: no propriamente dramticos, mas

    prioritariamente lricos.

    H um lirismo epidrmico no Anfatries: reminiscncias petrarquistas que

    nele sobrenadam, momentos melfluos ou efusivos que fazem falar os

    personagens moda dos poetas de seu tempo. O lrico, contudo, no lhe pontilha

    apenas a textura estilstica: intrnseco arte combinatria com que o poeta

    coordena e associa os elementos heterogneos da obra. Um modo de

    estruturao que se pode advertir, por exemplo, num poema como o seguinte, do

    prprio Cames (constante das Rimas de 1595), em que as estrofes se

    evidenciam como objetivaes gmeas de um mesmo ncleo significativo (Obra

    completa, p. 481):

    Quando me quer enganar

    A minha bela perjura,

    Pera mais me confirmar

    O que quer certificar,

    Pelos seus olhos me jura.

    Como meu contentamento

    Todo se rege por eles,

    Imagina o pensamento

    Que se faz agravo a eles

    No crer to gro juramento.

    Porm, como em casos tais

    Ando j visto e corrente,

    Sem outros certos sinais,

    Quanto me ela jura mais,

    Tanto mais cuido que mente.

    Ento, vendo-lhe ofender

    Uns tais olhos como aqueles,

    Deixo-me antes tudo crer,

  • 33

    S pela no constranger

    A jurar falso por eles.

    O poeta est preso entre os olhos e as palavras da bela: nestas a

    experincia o impede de acreditar, mas daqueles o corao no lhe permite

    dissentir. As dcimas so duas maneiras de exprimir esse amor dilemtico, esse

    impulso retesado entre a razo, que o incrimina, e o sentimento, que o absolve e

    reconfirma.

    9

    Um dos aspectos marcantes do entrecho de Plauto o seu

    desenvolvimento linear. A cena inicial entre Mercrio e Ssia prolongou-se, em

    funo de seu interesse cmico, de forma que poder julgar-se, verdade, um

    tanto digressiva; mas ambos se acham subordinados ao principal: o primeiro

    est de vigia, justamente, para que no ocorra um contratempo como o que o

    segundo est prestes a provocar. Mercrio no malbarata a ocasio e tira partido,

    galhofeiro e incompassivo, das facetas mais frgeis e hilrias do carter do

    escravo.

    A fora do episdio, entretanto, no est pendente apenas da comicidade

    buliosa; responde ainda a um estmulo mais ntimo. Mercrio improvisa em torno

    de seu duplo imitao de Jpiter em relao a Alcmena um jogo que no

    est, manifestamente, isento de prazer: o prazer do poder. A cena entre os dois,

    com sua rixa burlesca e a agilidade que a eletriza, constitui-se num sucedneo

    que faz subentender a outra, que lhe concomitante e em cuja intimidade, claro,

    estamos proibidos de imiscuir-nos (mas que Mercrio nos incita, no prlogo e no

    decorrer deste mesmo passo, a imaginar), entre Jpiter e Alcmena. Enquanto o

    filho, no palco, diverte-se com Ssia, o pai regala-se com Alcmena nos bastidores:

    a rixa cmica um correlato simblico, antifrstico, do encontro amoroso. A

    expressividade do episdio no devida apenas, portanto, sua veia bufa, mas

    ainda ao contedo ertico que lhe est subjacente.

  • 34

    Plauto cuida inclusive de filigranar, nas repetidas interjeies de Ssia

    (nisso s vezes secundado por Mercrio), um vis alusivo ao sentido latente

    daquilo que o palco manifesta: ao evocar Plux, Ssia traz baila os amores entre

    Zeus e Leda, lance anlogo ao que ento se desenrola na alcova de Alcmena; e

    ao mencionar Hrcules (anacronismo jocoso que o dramaturgo lhe consente),

    acena de modo incisivo ao mesmo momento amoroso. Plux e Cstor (este

    especialmente por Alcmena) sero, verdade, repetidamente evocados ao longo

    da pea, o que alis no peculiariza o Anfitrio: ao lado de Hrcules (a quem

    nomeia o prprio Anfitrio, no incio do segundo ato), so eles encontradios nas

    obras de Plauto, onde em geral no passam nota Pierre Grimal de interjeies

    estereotipadas, quase vazias de sentido; no contudo nesta comdia, como

    fcil verificar35.

    No terceiro ato, a cena entre Mercrio e Anfitrio (vv. 1359-1463 do texto de

    Cames) oferece-nos uma rplica, tanto por seu sentido implcito quanto por

    vrios de seus aspectos, da que antes se desenrolara entre Mercrio e Ssia.

    Comandada de novo por Mercrio, a disputa que agita o palco sobrepe-se

    simbolicamente palpitao ertica dos bastidores. As recomendaes de Jpiter

    a Mercrio, entrada do episdio, indicam-no impressivamente: Trata de afastar

    Anfitrio desta casa, quando chegar; imagina o meio que te agrade. Quero que

    com ele se caoe, enquanto eu me delicio com esta esposa de emprstimo36.

    No se equiparam contudo, malgrado as bufonices de Mercrio, o Ssia e o

    Anfitrio que esses episdios apoquentam. O Ssia entontecido e achincalhado

    por seu duplo representa uma espcie de abjeo que difere, visivelmente, das

    agruras de Anfitrio: este, apesar de tudo, conserva sempre um certo aprumo e

    gravidade. Ssia, nada mais que um escravo, acha-se ao nvel das grosserias e

    risotas que Mercrio faz revolutear sua volta; Anfitrio, ao contrrio, no se

    mostra em momento algum ridculo, e as afrontas que lhe impinge o deus soam

    tanto mais agressivas e anmalas quanto menos ele se presta ao desfrute.

    Cames, quando se pe propriamente a adaptar o texto de Plauto, no

    deixa, claro, de lhe assimilar os aspectos burlescos; guarda-se porm de infl-

    los e de comprometer, com isso, a direitura da trama original. Foi por certo a clara

  • 35

    e coesa economia do Anfitrio que o ter induzido a no lhe mexer na urdidura,

    dispondo margem de sua rbita dramtica os contedos que lhe acrescentava.

    O Jpiter do Anfatries , como antes afirmei, o mesmo de Plauto: no um

    Jpiter que s coo pensamento / governa o Cu, a Terra e o Mar irado; no, em

    suma, um poder ou saber supremo, mas um desejo supremo. A supremacia do

    desejo funda a dimenso onrica e origina o tempo parenttico da intriga, o

    contexto carnavalesco da pea.

    evidente que os deuses de Cames esto mais distantes dele e do seu

    tempo, que apenas os conserva em sua memria literria e erudita, do que o

    estavam de Plauto e de seu pblico. A pardia mitolgica est fadada, portanto,

    na verso camoniana, a perder uma parcela de seu interesse e agucidade; por

    outro lado, natural seja essa perda compensada por um saldo de conotaes

    peculiares.

    Como a de Plauto, a comdia de Cames representa um mundo

    momentaneamente submetido e revirado pelo desejo. O brioso e severo general,

    nimbado de uma vitria que ainda lhe fumega nas mos, torna a casa e descobre

    a esposa, robustecida de virtude romana e adoada de afeio portuguesa, nos

    braos de um outro um deus, para ns, mas para ele simplesmente um outro.

    Violado, por conseguinte, com o sacramento matrimonial, o estatuto do marido, e

    espezinhada a virtude da esposa, que, num paroxismo vexatrio e

    desconcertante, lhe foi arrebatada juntamente com a prpria identidade. Nome e

    renome reduziram-se-lhe a nada; defraudado de si mesmo, Anfitrio fica afinal

    exposto (por artimanha de Mercrio) ao desacato trocista do prprio escravo.

    Quanto a Alcmena, pesa-lhe sobre a reputao a sombra ominosa do adultrio

    que de fato cometeu, embora no lhe possa ser imputado. A virtude sucumbe,

    com manter-se virtuosa, ao desregramento e ao vcio, deixando aberto o palco

    paradoxal da comdia ao momento carnavalesco onde campeia, encenada por

    Jpiter, a liberdade utpica do desejo.

    A demanda que ento se inicia, para Anfitrio, o resgate da identidade e

    do estatuto que lhe foram usurpados; para Alcmena, a da prpria integridade

    psquica e moral. Trata-se, em suma, de restaurar a inteligibilidade e a

  • 36

    regularidade do mundo: desfazer o emaranhado de equvocos e descompassos

    que fazem aflorar familiaridade dos seres um estranhamento como o da loucura.

    As implicaes desse propsito ou melhor, desse imperativo so o labirinto de

    surpresas e entrechoques que, alvoroando at a beira da dissoluo a sociedade

    conjugal, perfaz o principal do entrecho cmico.

    No estivesse disposta entre o divino e o humano, coordenada pela

    hegemonia do primeiro sobre a normatividade do segundo, a problemtica da

    pea poderia ceder a um peso trgico. H nela, com efeito, um antagonismo que

    faz pensar na Antgona, de Sfocles na luta ali configurada entre dois gneros

    de leis: as no escritas, tradicionais, de origem divina (assim Antgona as define),

    e as advindas de uma autoridade poltica, que o rei faz promulgar. Luta que Hegel

    resume num conflito entre duas instncias axiolgicas o Estado e a famlia

    que, protagonizadas com uma intensidade refratria a toda compatibilizao ou

    escalonamento, se arremessam fatalmente na catstrofe. O choque entre as duas

    supremas potncias morais escreve Hegel nas Lies sobre a filosofia da

    religio , est apresentado de uma maneira plstica nesse exemplum absoluto

    da tragdia que Antgona. Aqui o amor familiar, o amor sagrado, interior, que

    corresponde ao sentimento ntimo e por isso tambm conhecido como a lei dos

    deuses domsticos, choca-se com o direito do Estado37. Um choque fomentado

    pela rigidez unvoca, pela unilateralidade de cada uma das perspectivas em pauta,

    e no por desiguais assinala Hegel em seu teor de legitimidade. Se Creonte

    fosse somente ou essencialmente um tirano acentua George Steiner , no

    seria digno do desafio de Antgona (...). Se Creonte no encarnasse um princpio

    tico, sua derrota no possuiria uma qualidade trgica nem um sentido

    construtivo. Na apresentao exemplar de Sfocles, essa derrota, em exato

    equilbrio com a de Antgona, compreende um progresso38.

    Numa leitura a que no estranha, sem dvida, a perspectiva hegeliana,

    Jean-Pierre Vernant descortina na Antgona, por sua parte, uma antinomia entre

    dois tipos diferentes de religiosidade: de um lado, a religio familiar, puramente

    privada, limitada ao crculo estreito dos parentes prximos, os phloi, centrada no

    lar familiar e nos mortos de outro, uma religio pblica onde os deuses tutelares

  • 37

    da cidade tendem finalmente a confundir-se com os valores supremos do

    Estado39. Em conseqncia, dada a natureza das motivaes que as fazem

    conflitar, nenhuma das atitudes fundamentais que a pea representa, tal como as

    interpreta o helenista francs, poderia ser a boa sem admitir a outra, sem

    reconhecer justamente aquilo que a limita e a contesta40.

    Quer isso dizer, em sntese, que a atitude de Creonte no se encontra de

    fato destituda de fundamentao objetiva. No se lhe pode, certo, inquinar a

    motivao original, mas tambm certo que a pea no nos deixa propensos a

    aplaudir o modo com que a conduz e a amplitude que lhe imprime. Como observa

    Max Pohlenz, dissentindo frontalmente de Hegel, se o poeta tivesse tido a

    inteno de fazer de Creonte o representante de um princpio legtimo, no teria

    certamente se esforado em subtrair-lhe, durante o conflito, a nossa simpatia41. A

    concluso de Pohlenz incisiva: o verdadeiro representante da plis no ele,

    que, segundo a palavra proftica de Tirsias, conduz o Estado ao mais grave

    perigo, mas Antgona, que conserva o esprito religioso de que depende o bem da

    plis, e com seu ato quer impedir o crime de Creonte. Ela no sucumbe ao

    supremo direito da plis, mas ao poder do tirano, que ope a violncia ao

    direito42.

    A essa exegese adere decididamente Albin Lesky. Desde que Hegel

    escreve o helenista austraco pretendeu encontrar na Antgona o conflito

    objetivo entre duas pretenses justificadas, a do Estado e a da famlia,

    reiteradamente foram defendidas interpretaes parecidas. Mas a maneira

    incondicional com que na parte seguinte da pea se condena a Creonte, as torna

    inconsistentes face ao texto. Antgona luta na verdade pelas leis no-escritas e

    inviolveis dos deuses, como ela mesma o diz, leis a que a plis nunca deve opor-

    se. Mas Creonte, com seu ato, no representa, de maneira nenhuma, essa plis

    cuja voz est unnime ao lado de Antgona; sua ordem constitui arrogncia e

    crime43.

    Vrios passos da pea poderiam aduzir-se em favor desse ponto de vista.

    O que no entanto indicam os comentrios de Hegel e de Vernant que no falta

    absolutamente legitimidade inspirao originria de Creonte. O soberano no

  • 38

    simplesmente um celerado. Seu erro reside no modo por que interpreta e pe em

    prtica um princpio em que ele, com efeito, assenta energicamente a estabilidade

    da plis, a sua prpria segurana, e que afinal se compadece, a seu ver, com as

    atribuies autnticas da soberania. Nesse sentido, Creonte no discrepa do

    modelo exposto por Aristteles no cap. 13 da Potica: o de um homem que, sem

    atingir a excelncia na ordem da virtude e da justia, acaba, no devido ao vcio

    ou maldade, mas por algum erro, caindo na infelicidade44. Impelido por sua

    viso particular de um princpio que se lhe apresenta incontrovertvel e capital, ao

    cabo de um tumulto blico, Creonte, que acaba de ascender ao trono, no

    consegue furtar-se ao excesso ruinoso que, paradoxalmente, procede de um

    imperativo intemerato. O erro do heri assinala James Redfield um erro no

    sentido pleno do termo, mas est adstrito a condutas tpicas do homem de bem.

    Ato ao mesmo tempo livre e condicionado, levado a efeito sob a presso

    inexorvel das circunstncias, ele s pode despertar em ns a compaixo45.

    Essas palavras reportam-se a Heitor, o trgico prncipe troiano, mas no quadram

    menos ao Creonte dramatizado por Sfocles.

    Alimentando-se de uma paridade moral atestvel pelo espectador, o litgio

    entre Anfitrio e Alcmena tornar-se-ia, de fato, desastroso sem a peremptria

    interveno de uma instncia superior: cada um dos cnjuges tem por igual o

    respaldo da verdade, que os inclina naturalmente irredutibilidade recproca.

    Acionada pelo estigma do adultrio, a reao prescrita ao marido resultaria na

    desagregao do casal, quando no desandasse em nada mais grave. Desse

    modo, ensejada por um equvoco, por uma convico errnea, uma motivao

    imperativamente justa deflagraria uma ao efetivamente injusta, cegamente

    dissolutiva, para todos danosa.

    Da autoridade de Jpiter dimana a soluo do conflito entre a esposa

    realmente inocente e o marido realmente ultrajado. O processo ruinoso fica

    destarte suspenso no por meio de sua evoluo intrnseca, que desgua num

    impasse, mas por intermdio de Jpiter, que origina um conflito trgico

    potencialmente trgico e lhe oferece uma soluo cmica.

  • 39

    Igualados moralmente por sua verdade comum, Anfitrio e Alcmena no se

    acham menos justificados diante de Jpiter. E nisso manifesta a comdia, em sua

    faceta essencial, subjacente ao curso incuo de seu ncleo conflitual e ao timbre

    burlesco da ao, o que aproxima e faz infletir para longe do trgico a intriga

    plautina. Com efeito, as resolues e atitudes de Jpiter no so justas so de

    Jpiter: o divino no est nivelado aos padres de legitimidade dos homens.

    Justa pois, sua maneira, a conduta de Jpiter, mas no o menos a de

    Anfitrio e Alcmena, que permanecem perfeitamente adstritos a esses padres:

    da, afinal, sua indignao e sua perplexidade. Semelhante em certo sentido a

    Alcmena, Jpiter funde em sua conduta a transgresso e a licitude absorvidas e

    igualadas em sua soberania. Se Anfitrio se mostra pacificado e se tem por

    ressarcido em face de Jpiter, no porque admita ter-se desmedido e se

    disponha a retratar-se, ou porque incrimine Alcmena, mas porque no pode furtar-

    se ao reconhecimento da supremacia divina. Isso, alis, tambm faz parte de seu

    cdigo moral. O cdigo sanciona, por conseguinte, a infrao do prprio cdigo, e

    assim consente a soluo serenamente cmica do conflito. Soluo que sublinha,

    diante do desejo insopitvel de Jpiter, a postura cordata e conformada de

    Anfitrio.

    10

    H no Decameron um conto, o segundo da terceira jornada, que refere um

    artifcio anlogo ao do Jpiter plautino: uma fraude identitria, engenhada

    igualmente pela paixo, por meio da qual um reles plebeu, um palafreneiro mas

    arguto e bem aquinhoado pela natureza , fazendo-se passar pelo rei, logra

    insinuar-se no leito da rainha e abrasar-se, como num sonho, em tamanha regalia.

    Teudelinga, a rainha, no foi portanto menos iludida que Alcmena, e o adultrio,

    apesar de se ter cumprido, no lhe pode tampouco ser imputado. O temerrio

    cavalario conseguiu, com sua inventiva, uma proeza equiparvel s que se

    fazem, no domnio da poesia, por agudeza y arte de ingenio: uma coincidncia ou

    fuso de elementos opostos (que tanto mais aguda e conseguida ser, enfim,

  • 40

    quanto mais dessemelhantes os objetos entrelaados). No caso em apreo,

    bvia a incompatibilidade extrema dos nveis hierrquicos que se entremeiam.

    Um artifcio amoroso, astuciado pelo desejo contra as discriminaes e

    incriminaes da cultura: como a comdia de Plauto, a narrativa de Boccaccio

    alicia o leitor para o mbito utpico instaurado pelo triunfo da paixo. Um triunfo

    que, por um momento, eleva o humilde cavalario incomensuravelmente acima de

    suas rasteiras possibilidades existenciais.

    Algo como um portento, portanto, impelido pela audcia e municiado pela

    astcia, foi o que levou a efeito o protagonista, a quem faltam radicalmente os

    meios de que dispe o poder. Meios que a Jpiter, claro, sobejam: seu artifcio

    consiste num movimento descendente do Olimpo a Tebas , posto em prtica de

    forma infalivelmente discricionria; o do nosso palafreneiro que afinal sai ileso da

    aventura, graas mais uma vez sua esperteza perfaz, ao contrrio, uma

    incrvel escalada. Destaca-se assim em sua faanha, demasiado humana e quase

    divina, uma nota odissica uma tcita celebrao da sagacidade e do arrojo.

    Imagem do homem bem diferente, de resto, da que nos sugerem as

    estremunhadas personagens de Plauto.

    Guiado e circunscrito por seu modelo, a comdia de Cames faz ressumar

    de seus personagens as mesmas caractersticas da limitao, da vulnerabilidade

    humana. No porm o que se colige de Os Lusadas, onde predomina a imagem

    da grandeza, da aptido de resistncia e realizao do ser humano. Marca

    clssica e crist da humanidade, a precariedade faz ressaltar, na epopia, o poder

    de superar-se e de expandir-se dos bares assinalados. Trata-se, claro, de um

    aspecto prprio do modo epopico de representar o homem, de cantar-lhe os

    propsitos e empresas. Em Plauto por um momento aflora, por sinal, nas palavras

    de Alcmena, um vislumbre do ideal herico: uma exaltao hiperblica da bravura,

    que de to abrangente a faz incluir qualquer outro bem46. Sucede que essa nota

    herica, se tem um cariz especial para os contemporneos do autor nascido

    quando estava em curso a primeira guerra pnica e que assistiu a todo o

    desenrolar da segunda , a nenhum ponto relevante se aplica das vicissitudes de

  • 41

    seu Anfitrio. Ter sido esse, talvez, o motivo de Cames ter simplesmente

    ignorado aquele momento da pea.

    Similar capacidade do palafreneiro de Boccaccio a que demonstra

    posto que mais arguto que arrojado o Ligrio de A mandrgora. Em sua

    comdia, Cames no se despegou de seu modelo: fragmentria, portanto, em

    relao ao restante de suas obras, a imagem do humano que dela se irradia.

    11

    Jorge Luis Borges fez conhecer num de seus contos o singularssimo

    projeto de um romancista francs, Pierre Menard, que se props reescrever o

    Dom Quixote: no parafrase-lo ou reelabor-lo segundo uma perspectiva nova e

    pessoal, mas re-cri-lo: obter da prpria criatividade um duplo exato do que

    lograra Cervantes de seu prprio engenho e arte. Alguns fragmentos subsistem da

    empresa descomunal de Menard, que enfim s pouco mais que um sonho se

    revelou, e Borges pde compar-los com o original de Cervantes. Apesar da

    identidade cabal dos textos cotejados, o de Menard, observa Borges, se mostra

    surpreendente e radicalmente mais rico. A razo dessa riqueza suplementar,

    desse contedo diferencial, a mesma que no nos permite fazer soar como

    soava no seu tempo a msica de Bach, malgrado a faam executar em

    instrumentos escrupulosamente restaurados e segundo os parmetros criativos

    que lhe so prprios: no se lograr restaurar jamais o ouvido de seu sculo. O

    Bach que nos chega aos ouvidos transps um complexo itinerrio, e vem

    naturalmente marcado por tudo com que se defrontou na travessia: Beethoven,

    Brahms e Wagner, por exemplo, e ainda Debussy, Schnberg e Stravnski, entre

    tantos outros. Nosso Bach se define em sua singularidade por meio da posio

    que ocupa numa constelao musical profundamente diversa, em suma, daquela

    em que seus coetneos o inseriam. E foi isso, afinal, o que por fora sucedeu ao

    Quixote de Cervantes ao tornar-se o Quixote de Menard. E o que tinha de

    passar-se com o Anfitrio de Plauto ao converter-se no de Cames.

  • 42

    Tais avatares semnticos fermentam inclusive ao nvel da mincia

    anedtica. Acerca do Anfitrio de Molire, Georges Mongrdien escreve: A

    comdia Anfitrio levanta um pequeno problema histrico: a aventura de Jpiter e

    Alcmena uma aluso s relaes de Lus XIV e de Mme de Montespan?47.

    Robert Jouanny, em sua edio do Thtre complet de Molire, refere a tese

    sustentada entre outros por Michelet que atribua a comdia a uma encomenda

    do prprio rei, desejoso de com ela celebrar seus nascentes amores com a altiva

    Athnas de Mortemart, marquesa de Montespan48. Acresce que o marqus,

    segundo consta, no teria encarado a coisa com esprito propriamente esportivo.

    Quanto a Cames, seu Anfitrio est confinado, antes de mais nada, a um

    Portugal embebido em dogmatismo cristo, implacavelmente custodiado pelos

    tentculos inquisitoriais da F. Ambiente crispado e ttrico, onde o intelectual

    surgir sempre salpicado de suspeita. Com o Parnaso, ento, sitiado pela censura

    e o horizonte cultural balizado pela ortodoxia, ter sido por certo acentuado o teor

    religioso dos modos de sentir e interpretar, dos hbitos de apreenso, dos critrios

    de apreciao da literatura. Nesse contexto, acostumado alm disso clareza e

    severidade das discriminaes hierrquicas, a dimenso transgressiva e a ndole

    carnavalesca do Anfatries haveriam de irradiar, quando nada com uma

    insinuante efetividade subliminar, um apelo e uma inquietude peculiares. Esse ,

    alis, como antes sugeri, o fundo de seu fascnio atravs dos sculos, de Plauto,

    cuja obra o mais antigo remanescente literrio do tema, at os nossos tempos.

    Facnio, afinal, que est na raiz da fortuna antonomstica dos nomes de Anfitrio e

    de Ssia, e que, radicado nas imagens da onipotncia do desejo e de sua irrupo

    subversora no contexto coercitivo e oneroso da cultura, pode ter-se por anlogo

    ao exercido pela lenda de dipo. Por fim, ainda no plano dos desdobramentos

    sugestivos e subterrneos da intriga, no teria sido impossvel pressentir, com um

    frmito ambguo e obscuro, por trs da figura de Alcmena, sob as facetas da

    probidade rigorosa e da maternidade divina, a efgie fugidia daquela cuja

    maternidade prodigiosamente paradoxal foi por Dante celebrada de forma

    inexcedvel:

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    Vergine madre, figlia del tuo figlio,

    umile e alta pi che creatura,

    termine fisso detterno consiglio,

    tu se colei che lumana natura

    nobilitasti s, chel suo fattore

    non disdegn di farsi sua fattura49.

  • 44

    NOTAS

    1 Plaute, Terence, Oeuvres compltes, p 56. Ao longo deste estudo, Plauto ser citado sempre segundo o texto desta edio, que rene toda a sua obra, acrescida da de Terncio, em traduo de Pierre Grimal. A completa imprenta desta e das demais obras referidas deve procurar-se na Bibliografia, in fine. Proveitosa tambm me foi cumpre-me lembrar a traduo do corpus plautino para o espanhol levada a efeito por Jos Romn Bravo. No que toca ao Anfitrio, especificamente, h em portugus, ao que sei, as tradues de Agostinho da Silva e de Carlos Alberto Louro Fonseca. Esta ltima suprime do texto, por insignificantes, certos elementos que nem sempre me parecem s-lo. Das comdias de Plauto no se fez ainda, infelizmente, uma traduo integral em nosso idioma. 2 A cena final da pea a suma paroxstica desse automatismo basilar. 3 Assim explica Mercrio sem o intuito de aceder, claro, uma nova categoria Potica de Aristteles a rubrica tragicomdia (Oeuvres compltes, pp. 14-15): Vou dizer primeiro o que pretendo pedir-vos; em seguida, contar-vos-ei o argumento desta tragdia... Por que franzistes a testa? Por ter dito que se trata de uma tragdia? Sou deus, posso mudar isso. Esta mesma pea, se o preferis, farei que de tragdia se mude em comdia, sem que um s de seus versos seja alt