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O clima quente do norte pa- ranaense sempre pede uma gelada, e não é do sofá de casa que os milhares de universitários es- talam suas latinhas ou assobiam suas garrafas. Para atender a todos esses jo- vens, que além de fome de novidades, também têm sede de bebida, os bares precisam estar bem assessorados por garçons simpáticos, dinâmicos e ágeis. Os amigos do balcão estão sempre a postos, no aguardo do próximo psst, e atentos a qualquer movimento brusco que indique uma porção de pernil de porco com mandioca. Mas, como em toda amizade, paciência é finita. Se o beberrão exagera e ultrapassa os limi- tes, entra em ação o garçom modera- dor, garantindo os bons goles do res- tante dos frequentadores. Depois de 26 anos exercitando os bí- ceps com levantamento de bandejas, há um londrinense que conta histórias vivi- das aqui e em cidades da região. Com gel no cabelo, braços bem tor- neados e um sotaque pra lá de “porta Desce mais uma, garçom! Com mais de cem estabelecimen- tos vinculados à As- sociação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), Londrina possui, visivelmente, um público massiva- mente universitário. As dez instituições de ensino superior da cidade atraem cada vez mais estudantes para que o município se constitua como uma mescla cultural e étnica, mas da forma homogênea que todo turista aprecia. torta” – dos norte paranaenses e pau- listas interioranos –, Luis Prado é quem vai me receber às 22h da sexta-feira na portaria do bar Vila Bohemia. Ele passa 24 horas de sua semana em pé, carre- gando copos, garrafas e sorrisos de um lado para o outro. Pai de três filhos, ele dedicou 65% de sua vida à arte de ser- vir bem. Durante as noitadas, em meio a bandejas e taças, conheceu a mãe de sua prole, Ana Prado, que também já foi garçonete. “Véio”, como é chamado pelos cole- gas do estabelecimento onde trabalha, já passou por restaurantes, bares e ca- sas noturnas da região, atendendo a cli- entes de Bandeirantes, Ourinhos e Cam- bará. Em meio a bons e maus fregueses, até tiro já sobrou para Luís. Mas ele conta que não foi acidental, nem sem intenção. “O mauricinho folgado, que já era encrencado com o meu colega, sentou um dia e me chamou como se chamasse um cachorro. Atendi a noite toda com muita educação e respeito, mas quando ele estava me destratando [11] [10] VIDA NOTURNA

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Page 1: garçom! O Desce mais uma, - despautada.files.wordpress.com · Os amigos do balcão estão sempre a postos, no aguardo do próximo psst, e ... muita chuva e a chegada de um feriado

O clima quente do norte pa-ranaense sempre pede uma gelada, e não é do sofá de casa

que os milhares de universitários es-talam suas latinhas ou assobiam suas garrafas. Para atender a todos esses jo-vens, que além de fome de novidades, também têm sede de bebida, os bares precisam estar bem assessorados por garçons simpáticos, dinâmicos e ágeis.

Os amigos do balcão estão sempre a postos, no aguardo do próximo psst, e atentos a qualquer movimento brusco que indique uma porção de pernil de porco com mandioca. Mas, como em toda amizade, paciência é finita. Se o beberrão exagera e ultrapassa os limi-tes, entra em ação o garçom modera-dor, garantindo os bons goles do res-tante dos frequentadores.

Depois de 26 anos exercitando os bí-ceps com levantamento de bandejas, há um londrinense que conta histórias vivi-das aqui e em cidades da região.

Com gel no cabelo, braços bem tor-neados e um sotaque pra lá de “porta

Desce mais uma, garçom!

Com mais de cem estabelecimen-tos vinculados à As-

sociação Brasileira de Bares e Restaurantes

(Abrasel), Londrina possui, visivelmente, um público massiva-

mente universitário. As dez instituições de ensino superior da cidade atraem cada

vez mais estudantes para que o município se constitua como uma mescla cultural e étnica,

mas da forma homogênea que todo turista aprecia.

torta” – dos norte paranaenses e pau-listas interioranos –, Luis Prado é quem vai me receber às 22h da sexta-feira na portaria do bar Vila Bohemia. Ele passa 24 horas de sua semana em pé, carre-gando copos, garrafas e sorrisos de um lado para o outro. Pai de três filhos, ele dedicou 65% de sua vida à arte de ser-vir bem. Durante as noitadas, em meio a bandejas e taças, conheceu a mãe de sua prole, Ana Prado, que também já foi garçonete.

“Véio”, como é chamado pelos cole-gas do estabelecimento onde trabalha, já passou por restaurantes, bares e ca-sas noturnas da região, atendendo a cli-entes de Bandeirantes, Ourinhos e Cam-bará. Em meio a bons e maus fregueses, até tiro já sobrou para Luís. Mas ele conta que não foi acidental, nem sem intenção. “O mauricinho folgado, que já era encrencado com o meu colega, sentou um dia e me chamou como se chamasse um cachorro. Atendi a noite toda com muita educação e respeito, mas quando ele estava me destratando

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VIDA NOTURNA

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muito, depois de muita cerveja na ca-beça, eu passei com um copo, esbarrei nele e respingou refrigerante. Não foi sem querer, era para molhar mesmo. Ele já tinha feito para merecer muito mais”, comenta.

Depois disso a situação foi de mal a pior. O cliente jogou um copo de cerveja no rosto de Luis, e, no auge de seus 20 anos, o garçom não deixou o desaforo

passar em branco. “Dei uma cadeirada nas costas dele, porque se eu não rea-gisse, ele ia vir pra cima. O problema foi que ele saiu, pegou uma arma no carro e voltou para atirar em mim. E atirou. A bala pegou no meu braço, mas ficou tudo bem”.

Rindo do causo, “Véio” olha por cima do ombro para ver se a casa não vai

encher. Frustração quando nas me-sas só enxerga os promoters e o ge-rente. Mas respira fundo, retoma o sorriso e lembra de mais uma história de bêbados inconvenientes. “Outra vez aqui em Londrina, há pouco tempo atrás, eu trabalhava em um bar que é aberto, não tem portaria na saída. Então a gente precisava ficar de olho, porque se o cliente ia embora sem pagar a conta deles era descontada do nosso salário. Um belo dia aparecem dois moços e vão gastando. Quando vi eles já tinham consumido 250 reais e estavam indo para o lado da porta. Fui atender outra mesa e quando olhei de volta já não estavam mais. Tinham corrido para fora. Gritei para outro garçom, corri, peguei os dois pela camiseta e levei para o balcão. Fiz deixarem os celulares e identidades como ga-rantia de que voltariam no outro dia para pagar, já que disseram não ter dinheiro o suficiente. E voltaram”, orgulha-se da perseguição quase

cinematográfica.22h40: hora para o lanche pré-

balada (um sanduíche e suco) e para a reunião que acerta os ponteiros desconfigurados nas noitadas ante-riores. Escada acima, estão cinco dos seis garçons sentados em volta de uma mesa do camarote. “Aqui não tem

como você ficar, porque discutimos assuntos sérios do bar”, explica o supervisor geral, Roberto Henrique Rodrigues.

Alguns degraus abaixo e o novato no ramo também está fora da reunião. An-derson Alves, de apenas 18 anos, engrenou na carreira de garçom há dois me-ses, mas já planeja sair assim que conseguir o diploma de administração, em três anos. “É bom mas é estressante, tem muita gente ignorante, que puxa a camiseta ou tenta roubar o balcão”. Como plano de fundo dos assuntos sérios está a banda passando o som, ajustando os equipamentos e combinando re-pertório.

Reunião encerrada, todos descem. Alguns cabisbaixos (provavel-mente os ponteiros estavam muito desre-gulados), e outros con-fiantes, como Luis. O relógio já indica 23h20 e, depois do lanchinho e

da conversa com a equipe, Luis começa a mudar o semblante: de descontração para preocupação. O motivo? Pouca gente, muita chuva e a chegada de um feriado prolongado – que é quando os mancebos londrinenses vão para a casa de seus pais para lavar as roupas, con-seguir o estoque da despensa e ganhar um colinho da mamãe. Mais meia hora e alguns jovens persistentes, ou que moram na casa dos genitores, apare-cem para tomar o item mais pedido da casa: vodka com energético.

Balde vai, balde vem, 12h10 e a en-trada para a parte interna do bar é li-berada. No local, propício para ouvir música bem alta e paquerar, há apenas alguns garçons, bartenders e seguran-ças. “Véio” leva dois ou três combos do destilado para as mesas ao relento e volta para o bar. Ele conta que tem Sín-drome do Pânico diagnosticada há três anos, e trata há dois. “O medicamento não pode ser misturado com álcool. Fiz durante um ano o tratamento e bebia nos churrascos em casa, ou dava umas

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bicadas no trabalho, aí não adiantou. Agora estou fazendo há um ano con-forme o médico pediu, e não tenho mais sintoma nenhum”. Mas Luis frisa que não foi a agitação noturna que desencadeou a doença; “foi umas outras coisas aí, meio compli-cadas”.

Depois da confissão o garçom parte para alguns atendimentos aos poucos que entraram na balada. Conversa com uns como se fossem velhos amigos, com direito a tapinha nas costas e abraços. Uma menina, de um grupo de cinco, puxa conversa com muita alegria e até trata Luis como “Lu”. Ele explica que depois de tantos anos trabalhando em casas noturnas na mesma cidade é fácil encontrar conhecidos onde vai.

Lá fora alguns conversam e pro-moters continuam sentados para atrair mais público; sem sucesso. A chuva volta a cair e os clientes não precisam se espremer porque há espaço de sobra, já que o lugar, que

habitualmente abriga de 700 a 800 pessoas, não passa dos cem fre-gueses.

Se fosse uma noite comum, agora, 1h, começaria o ápice da corre-ria entre os funcionários. Mas Luis dá apenas algumas voltas, os bar-tenders testam novos enfeites de drinks, e os seguranças conversam de maneira tranquila.

Vez em quando o “Véio” escora no balcão e conta uma história, entre elas algumas de casos obscenos que já presenciou em noites passadas. “Tenho até vergonha de falar, mas já teve situação de o

casal entrar junto no banheiro e sair meia hora depois. Ou de ficar se agar-rando na frente de todo mundo, in-clusive colocando as mãos em lugar onde não deve. Uma vez uma mu-lher foi tão descarada que colocava a mão no [membro] do homem, depois lambia a mão. Era cons-trangedor”. Luis também des-creve as inúmeras vezes em que vê mulheres de saia e sem calcinha dançando na parte de cima, para que os que estão em baixo vejam tudo. “A gente só dá risada. Vai fazer o quê?”.

Sobre a esposa, Luis explica que Ana não sente ciúmes. “Já trabalhei em uma boate de striptease, mas como pagava bem ela até me incentivou a ir”.

1h45 e o semblante do gar-çom já não é mais o mesmo das 22h. Algum tumulto e se espalha a notícia de que a banda não tocará em decorrência

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do público escasso, e, além disso, o bar não venderá mais bebidas. É anunciado o fim daquela noite de balada, com direito a convite de retirada e tudo. A frustra-ção misturada com indignação toma

conta dos olhos, sobrancelhas e testa do veterano das bandejas, que diz

nunca ter visto cena igual. “Agora tenho mais uma história

para contar. Pena que essa é triste. A banda não tocar, tudo bem. Mas fechar o bar e mandar todo mundo embora? Onde já se viu? Isso não pode. Mas como sou só o garçom, não opino em nada, nem decido nada. Se acham me-lhor assim, eu vou embora mais cedo”, lamenta.

Luis e o restante da equipe recolhem as coisas e tiram os aventais, esperando que o ser-tanejo do sábado seja melhor que o pop rock de sexta-feira, e cruzam os dedos para que na madrugada seguinte só che-

guem em casa depois das 6h.