gandhi (louis fischer)

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Louis Fischer

GANDHI 

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CÍRCULO DO LIVRO S.A.Caixa postal 7413São Paulo, Brasil

Edição integral Título do original: “Gandhi, his life and message for the world”

Copyright © 1954, Louis Fischer. Renovado © 1982, Louis Fischer.Publicado mediante acordo com a New American Library, Inc.,

Nova York, EUA Tradução: Raul de Polillo

Layout da capa: Anibal Monteiro

Licença editorial para o Círculo do Livropor cortesia de Martin Claret Editores Ltda.

Venda permitida apenas aos sócios do Círculo

Composto pela Linoart Ltda.Impresso e encadernado pelo Círculo do Livro S.A.

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ÍNDICE

Parte primeiraDO NASCIMENTO À GRANDEZA  

1 O mundo chora2 Menino atoleimado

3 Gandhi em Londres4 Dois incidentes moldam o futuro5 Preconceitos de cor6 Coragem diante do ataque7 A transformação8 Alma-força9 Vitória feliz

Parte segunda

GANDHI NAÍNDIA  

10 Ouvidos e bocas abertos11 O Mahatma Gandhi e os britânicos12 Sangue13 O caminho para o cárcere14 Jejuns de Gandhi15 Resposta a Moscou16 O sal da liberdade17 O faquir seminu

18 Em Londres, de minus fours  19 Filhos de Deus20 O mágico21 Pessoal22 Jesus Cristo e o Mahatma Gandhi23 Winston Churchill versus Mohandas Gandhi24 Minha semana com Gandhi25 Frustração e irritação26 Jinnah versus Gandhi

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Parte terceiraVITÓRIA E TRAGÉDIA  

27 Procurando o divino no homem28 Na véspera29 Cabra-cega ao redor da amoreira30 O nascimento de duas nações31 Gandhi rastela o seu jardim32 Amor sobre águas revoltas33 A vitória é para quem está pronto a pagar-lhe o preço34 Morte antes da prece

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Parte primeira

Do nascimento à grandeza

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1O mundo chora

À margem das águas sagradas do Jumna, perto de Nova

Deli, quase meio milhão de pessoas esperou, ao sol, que a

procissão fúnebre chegasse ao sítio da cremação. Predominava o

branco — o branco dos sáris de algodão, das mulheres, bem como

das vestimentas, dos capuzes e dos turbantes bulbosos, dos

homens.

Em Rajghat, a algumas dezenas de metros do rio, uma nova

pira fora construída com pedra, tijolo e terra. Era um quadrado

com uns dois metros e meio de lado, e cerca de sessenta

centímetros de altura. Troncos finos e longos, de sândalo,

borrifados de incenso, estavam empilhados sobre ela. O corpo doMahatma Gandhi jazia em cima da pira, com a cabeça para o

norte. Nessa posição, Buda encontrou o seu fim.

Às quatro horas e quarenta e cinco minutos da tarde,

Ramdas, terceiro filho do Mahatma, ateou fogo à pira funérea. Os

troncos irromperam em labaredas. A vasta reunião humana

emitiu um lamento profundo. Mulheres gemiam; homens

choravam. A madeira crepitou, fazendo borbulhar a sua umidade,

e as labaredas se uniram num único incêndio.

A seguir, houve silêncio. O corpo de Gandhi estava sendo

reduzido a carvão e cinzas.

Um dia antes, 30 de janeiro de 1948, um moço havia atirado

e matado Mohandas K. Gandhi, líder da Índia.

“Eu nunca vi Gandhi”, escreveu Léon Blum, antigo primeiro-

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ministro francês. “Não conheço seu idioma. Nunca pus os pés em

sua terra. E, contudo, sinto o mesmo pesar, como se eu houvesse

perdido alguém próximo e caro. O mundo inteiro foi lançado à

tristeza, devido à morte desse homem extraordinário.”Quando morreu, Gandhi era o que sempre fora: um cidadão

comum, sem riqueza, sem bens de raiz, sem títulos, sem posição

oficial, sem distinção acadêmica, sem realizações científicas. Não

obstante, os chefes de todos os governos, exceto os do governo

soviético, e os cabeças de todas as religiões, prestaram

homenagem ao homem esquelético e escuro, de setenta e oito anos

de idade, envolto num pano que mal lhe chegava aos joelhos.

O presidente Truman, o rei da Inglaterra, o presidente da

França, o arcebispo de Canterbury, o papa Pio XII, o rabino-chefe

de Londres, o dalai-lama do Tibete, e mais de três mil outras

personalidades estrangeiras enviaram mensagens de

condolências, não solicitadas, à Índia. O Conselho de Segurança

das Nações Unidas interrompeu as suas deliberações, para rendertributo a Gandhi. Philip Noel-Baker, delegado britânico, louvou

Gandhi como tendo sido “o amigo dos mais pobres, dos mais

abandonados e dos perdidos”.

“As grandes realizações de Gandhi”, declarou ele, “ainda

estão por vir.”

Outros representantes junto ao Conselho de Segurança

enalteceram a devoção de Gandhi à paz, bem como as suas

qualidades espirituais.

As Nações Unidas baixaram sua bandeira a meio-pau.

A humanidade baixou sua bandeira.

Os que lamentaram aquela morte tinham consciência de

alguns dos atributos do Mahatma.

“Gandhi tornou a humildade e a verdade mais poderosas do

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que impérios”, disse o senador norte-americano Arthur H.

Vandenberg.

“Não conheço outro homem, de qualquer época, e, com

efeito, nem na história recente”, declarou Sir Stafford Cripps,estadista britânico, “que haja demonstrado, tão poderosa e

convincentemente, o poder do espírito sobre as coisas materiais.”

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O general George C. Marshall, então secretário de Estado

dos Estados Unidos, tentando explicar a perda sofrida pelo

mundo, disse:“O Mahatma Gandhi era o porta-voz da consciência da

humanidade”.

Os homens, as mulheres e as crianças souberam, ou

sentiram, que, quando Gandhi tombou, por obra de três balas do

assassino, a consciência da humanidade ficou sem porta-voz. A

humanidade empobrecera, porque um homem pobre havia

morrido. Ninguém, dentre os que lhe sobreviveram, havia

enfrentado poderosos adversários, em sua terra e no estrangeiro,

com as armas da doçura, da franqueza, da honestidade, da

humildade, da não-violência, nem, com essas armas apenas, havia

ganho tantas vitórias. A sua história é uma narrativa de êxito

desusado, com meios também inusitados.

2

Menino atoleimado

Se Gandhi houvesse vivido na Índia há três mil anos, seu

nascimento teria sido envolto em mitos, e sua juventude, em

milagres. Mas a luz fria do século XIX mostra que a sua origem foi

comum, a sua infância, normal, os seus dias de estudante,

destituídos de acontecimentos, e a primeira fase dá sua carreira

profissional, um fracasso. “A criança é que gera o homem.” E

Mohandas, tanto o menino de escola como o adolescente, gerou,

obviamente, o Mahatma; entretanto, ninguém poderia predizer

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que isso ocorresse. Parecia ter pouca habilidade e menos ainda

talento.

Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em 2 de outubro de

1869, em Porbandar, pequena cidade à beira-mar, na penínsulade Kathiawar, na Índia ocidental, mais ou menos a meio caminho

entre Bombaim e Karachi. Kathiawar ficava fora das rotas

habitualmente seguidas, longe da influência européia; encontrava-

se ainda dividida em grande número de cidades-Estado,

governadas por príncipes nativos, que se comportavam como

pequenos tiranos em face dos seus súditos, e como trêmulos

sicofantas em presença dos ingleses. Porbandar (com uma

população de 72 077 almas, pelo recenseamento de 1872) era um

desses minúsculos domínios; Rajkot (com população de 36 770

almas), outro; e Vankaner (com população de 28 750 almas), um

terceiro. Em épocas diferentes, em sua carreira, Karamchand

Gandhi, pai do Mahatma, servira como primeiro-ministro do rajá,

ou rana, desses pequenos reinos.Mohandas escreveu, anos mais tarde, que seu pai “não tinha

instrução, salvo a decorrente da experiência”, e era até “inocente”

quanto à história e à geografia; mas se conservara “incorruptível, e

conquistara reputação de estrita imparcialidade, tanto no seio de

sua família, como fora dela”. Ademais, acrescentava o filho, “ele

amava o seu clã, dizia sempre a verdade, era bravo e generoso,

mas irritadiço”.

Karamchand, o político, casou-se com Putlibai, moça hindu,

devota e iletrada. Mohandas, quarto e último filho do casal,

lembrava sempre a santidade de sua mãe, bem como a sua

natureza profundamente religiosa. Putlibai assistia aos serviços do

templo todos os dias, e nunca tomava refeições sem fazer sua

prece. Os longos jejuns não a desencorajavam. Durante as

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chaturmas anuais — espécie de quaresma que durava toda a

estação chuvosa de quatro meses —, ela tomava habitualmente

apenas uma refeição por dia; num determinado ano, ademais, ela

observara jejum um dia sim, um dia não.A família era abastada. Karamchand possuía casa em

Porbandar, outra em Rajkot, e outra em Kutiana. Karamchand

usava um colar de ouro, e um irmão de Mohandas tinha um

pesado bracelete de ouro maciço. Mohandas dispunha de uma

ama própria, e era dono de uma concertina.

Na escola, em Porbandar, Gandhi achou difícil aprender a

conta de multiplicar.

“Meu intelecto deve ter sido preguiçoso, e minha memória,

não-desenvolvida”, escreveu o Mahatma sobre si mesmo, na

qualidade de aluno da escola primária. Um ano mais tarde,

quando a família se mudou para Rajkot, ele era “estudante

medíocre”, mas muito pontual.

O menino Mohandas era muito tímido. “Meus livros eminhas lições constituíam os meus únicos companheiros”,

recordou ele, quando adulto. Ao fim do horário escolar, corria para

casa. Faltavam-lhe a confiança e a iniciativa de falar com quem

quer que fosse.

“Eu tinha até medo de que alguém zombasse de mim.”

Ao ficar mais velho, entretanto, fez amizades, e brincava

tanto nas ruas como à beira-mar. Rodava pião e brincava com

balões de borracha. Fez-se quieto e obediente. “Eu aprendera a

cumprir as ordens dadas pelos mais velhos, não a analisar-lhes as

ações.”

Não obstante, começou a fumar às escondidas, com a idade

de doze anos, furtando dinheiro de seus pais e dos seus irmãos

mais velhos, a fim de comprar cigarros.

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De uma feita, ele e um jovem parente souberam que as

sementes de uma planta da floresta, denominada datura, eram

venenosas. Por isso, os dois se uniram num pacto de suicídio que

os deveria livrar para sempre do domínio dos pais. Impelidos pelaintuição do dramático, decidiram morrer no templo. Os dois

foram, de fato, ao santuário, com as sementes mortais no bolso.

No último instante, porém, faltou-lhes a coragem. Por uma

questão de respeito para consigo mesmos, cada qual engoliu duas

ou três sementes e voltou para casa.

A seguir, assuntos sérios reclamaram a atenção do menino.

Mohandas Karamchand Gandhi casou-se na idade de treze anos,

quando era aluno do segundo ano do curso ginasial. A noiva,

Kasturbai, também tinha treze anos de idade. Os respectivos

progenitores haviam feito o contrato nupcial, mas nada lhes

disseram enquanto os preparativos para as núpcias não ficaram

prontos.

“A esposa de meu irmão já me havia instruídocompletamente, quanto à minha conduta”, escreveu Gandhi,

quarenta anos após o acontecimento. “Não sei quem foi que

instruiu minha mulher.” Os dois estavam nervosos; e “aquela

instrução não podia levar-me longe”, acrescentou ele. “Mas

nenhum esclarecimento é realmente necessário, em tais assuntos.

As impressões do nascimento anterior são suficientemente

poderosas e tornam supérflua toda orientação.”

“Duas crianças inocentes, de todo ignorantes, se atiraram no

oceano da vida”, presumivelmente apenas com as suas

experiências de uma encarnação anterior para as guiar. Assim

Gandhi descreveu “o cruel costume do casamento na infância”. O

costume fizera-se possível devido à instituição indiana da família

conjunta, em cuja vigência os pais, seus filhos, as esposas e os

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filhos de seus filhos, muitas vezes montando a trinta ou mais

pessoas, viviam dentro da mesma casa. Os adolescentes recém-

casados, como Mohandas e Kasturbai, portanto, não tinham

motivos para se preocupar quanto à moradia, à mobília ou àalimentação. (Posteriormente, o governo britânico elevou a idade

mínima para o casamento.) “Não perdi tempo, assumi logo a

autoridade de marido”, recordou o sr. Gandhi, quando já crescido.

“Kasturbai não podia sair sem minha permissão.”

Assim, quando Kasturbai, de treze anos de idade, queria

brincar na rua, via-se obrigada a pedir permissão a seu marido, de

treze anos de idade; e ele lhe dizia, freqüentemente, que não, pois

era ciumento. Ela, porém, era teimosa, “fazia questão cerrada de

sair, quando e para onde bem entendesse”. Ele,

conseqüentemente, mostrava-se “cada vez mais aborrecido”; por

vezes, os dois passavam dias sem se falar.

“Naqueles tempos”, Gandhi mais tarde admitiu, “eu

costumava ser acossado pelo medo de ladrões, de fantasmas e deserpentes. Não ousava sair à noite.”

Sua jovem esposa não sentia temores dessa ordem.

“Eu me sentia envergonhado de mim mesmo”, escreveu ele.

Gandhi era baixo e magro; não apreciava o críquete nem a

ginástica, que eram coisas obrigatórias no ensino secundário. Mas

lera que caminhar ao ar livre fazia bem à saúde; por isso,

desenvolveu esse hábito.

“Essas caminhadas me proporcionaram uma constituição

razoavelmente robusta.”

Mesmo assim, ele invejava os rapazes grandes e fortes;

principalmente um amigo muçulmano, o xeque Mehtab, que se

distinguia na corrida em distância, bem como no salto, seja em

altura, seja em extensão. Essas realizações deslumbravam

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Gandhi, tanto quanto o deslumbrava também a reputação de que

o xeque gozava, de poder segurar serpentes vivas em suas mãos,

de não temer ladrões e de não ter medo de fantasmas. O que é que

explicava semelhante bravura? O xeque comia carne. A religião deGandhi proibia-lhe isso. Nunca havia tocado em carne.

Embora o domínio britânico na Índia se operasse indireta e

quase imperceptivelmente, em Kathiawar, os colegas de escola de

Gandhi já haviam aprendido a respeitar e a fazer oposição aos

ingleses. Recitavam um poema que dizia:

“Contemple o inglês poderoso;

Ele governa o pequeno indiano,

Porque, sendo comedor de carne,

 Tem cinco cúbitos de altura”.

Fosse porque desejasse expulsar os ingleses, ou melhorar a

sua própria força física e a sua coragem, Gandhi finalmentesucumbiu às tentações do xeque Mehtab; dirigiu-se, em

companhia dele, a um lugar oculto, à margem do rio, onde

Mohandas mastigou e tornou a mastigar a carne cozida de cabra

que o xeque levara consigo; por fim, engoliu-a. Sentiu-se mal

imediatamente. Na noite desse dia, sonhou vezes seguidas com

uma cabra viva a berrar no seu estômago. Não obstante, afigurou-

se-lhe que “comer carne era para ele um dever”; e cumpriu-o

durante um ano, no recanto secreto, em companhia do xeque.

Depois a dissimulação e a insinceridade lhe causaram repulsa; e

ele abandonou o consumo de carne, até a época em que pôde

retomá-lo em público, após a morte de seus pais.

Comer carne fez parte da revolta de Gandhi contra a religião.

Desagradava-lhe a “pompa resplendente” dos templos indianos, e

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confessava que não tinha “fé viva em Deus”. “Quem fez o

mundo?”, perguntava. “Quem o dirige?”

Ninguém lhe dava uma resposta satisfatória — nem mesmo

os livros sagrados que consultava. Em conseqüência, ele seinclinava “um tanto para o ateísmo”. Conservando, porém, a

mente aberta, ouvia os freqüentes debates de seu pai com amigos

muçulmanos, parses e jainistas, que iam à sua casa para discutir

diferenças entre os seus credos respectivos e o hinduísmo. O

 jainismo, seita reformada do hinduísmo, proíbe a matança de todo

ser vivo. Os sacerdotes jainistas usam máscaras de gaze branca

sobre a boca, para não aspirar, e, portanto, matar qualquer

inseto; pressupõe-se, ademais, que eles não saíam à noite, ou no

escuro, para não pisar, inadvertidamente, em algum verme. A

influência jainista era forte, em Kathiawar; e Gandhi, espírito

sempre aberto, embebeu-se de algumas idéias, tanto jainistas

como budistas, durante a sua breve rebelião contra o hinduísmo.

O pai de Gandhi, Karamchand, morreu em 1885, depois deuma enfermidade que durara vários anos, e em conseqüência da

qual os bens da família se haviam reduzido; o pai deixou poucas

posses. Assim, apresentou-se o problema da formação profissional

de Mohandas.

Gandhi demonstrava interesse pela medicina. Mas seu irmão

lhe recordava sempre a objeção paterna à dissecção de cadáveres.

Não seria melhor estudar advocacia? O avô de Gandhi,

Uttamchand, fora primeiro-ministro de Porbandar, e transmitira o

cargo ao filho Karamchand, que por sua vez o passara ao irmão,

 Tulsidas. O posto era quase uma propriedade de família; e, se

Mohandas se fizesse advogado, ficar-lhe-ia praticamente

assegurado o posto de primeiro-ministro de seu Estado natal.

Entretanto, sendo indeciso, Gandhi tinha medo da lei. Conseguiria

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ele ser aprovado nos exames? Nessa conjuntura, um amigo da

família sugeriu que um curso rápido, de três anos, na Inglaterra,

lhe apresentaria as melhores promessas de êxito profissional e

político. A perspectiva de uma permanência no exterior emocionouGandhi. Um tio, que então passara a ser o chefe da família,

objetou dizendo que os advogados formados na Europa se vestiam

“tão desavergonhadamente como os ingleses”, desprezavam as

tradições indianas, e nunca se apresentavam sem um charuto na

boca. Mesmo assim, desde que Putlibai concordasse, daria sua

permissão para a viagem. Putlibai alimentava suas dúvidas

quanto à moral dos moços na Inglaterra. A essa altura, um monge

 jainista, chamado Becharji Swani, prestou sua colaboração,

impondo a Gandhi o juramento de que não tocaria em vinho,

mulher ou carne.

Houve alguma dificuldade quanto aos fundos, até que

Laxmidas, irmão mais velho de Mohandas e advogado, tomou a

iniciativa de os proporcionar. Juntos, os dois viajaram paraBombaim, onde Gandhi deveria tomar o navio para a Inglaterra.

Novos aborrecimentos surgiram. Os Gandhi eram membros da

subcasta modh bania; e, quando os modh bania de Bombaim

souberam da projetada viagem de Mohandas para o exterior,

protestaram. Nenhum modh bania  jamais estivera na Inglaterra,

afirmavam os mais velhos, porque o hinduísmo não podia ser ali

praticado. Gandhi, porém, em atitude de desafio, disse-lhes, numa

de suas reuniões, que partiria. O chefe da subcasta, à vista disso,

colocou-o no ostracismo, dizendo: “Este rapaz deve ser tratado

como um fora-de-casta, a partir de hoje”.

Resoluto, Gandhi comprou uma passagem marítima, uma

curta jaqueta britânica, uma gravata e alimentos bastantes —

principalmente frutas e doces — para as três semanas de viagem

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até Southampton. Embarcou em 4 de setembro de 1888, um mês

antes do seu décimo nono aniversário. Uns poucos meses antes,

Kasturbai lhe havia dado um filho, e os dois puseram o nome de

Harilal.

3

Gandhi em Londres

Gandhi foi fotografado em Londres, assim que lá chegou. Na

fotografia, seus cabelos são pretos, bastos e cuidadosamente

repartidos um pouco para o lado direito. As orelhas são grandes.

O nariz, grande e pontudo. Os lábios e os olhos são impressivos.

Os olhos parecem espelhar confusão, espanto e emocionada

perturbação; parecem estar se movendo em busca de alguma

coisa. Os lábios são grossos, sensuais, tristes, defensivos. Gandhitem a aparência de um homem sem rumo, nem objetivo, que foi

ferido ou tem medo de ferir-se. Seu semblante é o de uma pessoa

que teme as lutas vindouras, tanto as interiores como as do

mundo exterior. Está como que a querer saber se poderá dominar

suas paixões, se conseguirá provar seu valor.

A vida britânica era muito estranha aos olhos do jovem

Gandhi. Sua autobiografia registra a tentativa e o fracasso na

tarefa de ajustar-se a ela. Gandhi comprou um chapéu alto,

sapatos com elástico nas laterais, calças listradas, um fraque,

uma bengala com castão de prata, camisas de seda e luvas de

couro. Pagou dez libras por um traje a rigor, feito sob medida na

Bond Street, e aplicou três libras em lições de dança.

“Eu não podia seguir o piano”, confessou ele, “nem executar

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qualquer coisa parecida a movimento rítmico.”

Na esperança de educar o ouvido para a música, comprou

um violino e contratou um professor. Pouco tempo depois, vendeu

o instrumento. Um esforço semelhante, no sentido de aperfeiçoara dicção, terminou de maneira igualmente rápida.

Gandhi sempre ansiou por se colocar em harmonia com seu

ambiente. Esta é a razão pela qual, anos mais tarde, adotou como

traje o lençol enrolado folgadamente até os joelhos. Dezenas de

milhões de camponeses indianos não usam coisa alguma, além

disso. Em Londres, Gandhi andava, reconhecidamente,

“macaqueando os cavalheiros ingleses”, supondo que isso pudesse

elevar-lhe a posição social e colocá-lo em sintonia com o que ele,

equivocadamente, considerava a nota dominante da vida

britânica.

Ao mesmo tempo, opunha forte resistência à acomodação.

Seus conhecidos ingleses insistiam em que ele comesse carne,

mas ele se recusava a romper o juramento que fizera à mãe. Naverdade, Gandhi tornou-se zeloso vegetariano, e, depois de alguma

hesitação, acabou rejeitando até os ovos e os pratos preparados

com ovos, porque figuravam na lista do banimento da carne: os

ovos eram criaturas potencialmente vivas. Essa privação adicional

e a conseqüente monotonia da dieta eram compensadas pela

“satisfação interior, marcadamente mais saudável, delicada e

duradoura” do que o alimento, que ele fruía por observar o voto.

Gandhi aprendeu a cozinhar; sua sopa de cenouras era uma

especialidade. Doces e especiarias continuavam a chegar, por mar,

mandados por sua família, que se encontrava na Índia. Ele pediu

que as remessas fossem suspensas; começou a comer e a gostar

de espinafres e de outras hortaliças, sem tempero.

“Muitas experiências dessa ordem”, observou ele,

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“ensinaram-me que a verdadeira sede do sabor não está na língua,

e sim na mente.”

E Gandhi começou, com isso, a notável tarefa, que lhe durou

a vida toda, de modificar a própria mente.Outras transformações estavam se registrando. Ele já havia

atravessado “o Saara do ateísmo”, e emergira sedento de religião.

Encontrou-se com a sra. Helena P. Blavatsky e a sra. Annie

Besant e leu seus livros sobre teosofia, mas não se converteu;

preferiu o hinduísmo. Um vendedor inglês de bíblias o persuadiu a

ler o Velho e o Novo Testamento. O Levítico e os Números o

entediaram, e ele não prosseguiu na leitura (até a época em que,

como mahatma, deleitou-se com os Profetas, os Salmos e o

Eclesiastes). Achou o Novo Testamento mais interessante; e o

Sermão da Montanha “foi direto ao meu coração”... “não resistais

ao que é mau; mas se alguém te ferir na tua face direita,

apresenta-lhe também a outra”... “bem-aventurados os mansos”...

“bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça”... “concorda rapidamente com o teu adversário”... “perdoa

aos homens as suas ofensas”... “não queirais acumular para vós

tesouros na terra”... “porque onde está o teu tesouro, aí está

também o teu coração”. Estas palavras de Cristo “deleitavam” o

futuro mahatma. Recordavam-lhe o Bhagavad-Gita, o livro sagrado

dos hindus, que, envergonhado, admitia não haver lido antes do

seu segundo ano como estudante de direito, em Londres. Isso lhe

produziu um enorme impacto, que repercutiu por toda a sua vida.

“Quando as dúvidas me acossam, quando as desilusões me

fitam em pleno rosto, e quando não vejo sequer um raio de

esperança no horizonte”, escreveu ele, na sua revista semanal,

Young India, de 6 de agosto de 1925, “volto-me para o Bhagavad- 

Gita e acho um verso para me confortar; e começo imediatamente

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a sorrir, em meio a um aborrecimento acabrunhador.” Mahadev

Desai, que foi por muitos anos secretário do Mahatma,

testemunha que “todos os momentos da vida de Gandhi

constituem um esforço consciente no sentido de viver a mensagemdo Gita”. Gandhi denominava-o “livro de referência espiritual”.

O Bhagavad-Gita, ou Canção celestial, é um fino poema, de

setecentas estâncias, a propósito da ciência e da prática da ioga.

Obra anônima escrita, na opinião dos eruditos, entre os séculos V

e II a.C., o Gita é uma conversação de campo de batalha entre o

seu herói, Krishna, que é venerado na Índia como um deus, e

Arjuna, chefe de uma facção numa famosa guerra civil. “Krishna”,

diz Sir Sarvapalli Radhakrishnan, o filósofo hindu, “é  a

encarnação humana de Vishnu, o Deus Supremo.”

A narrativa da vida de Krishna na terra mistura lenda com

nebulosos fatos históricos. Deus — diz a narrativa — encarnou-se

a Si mesmo no ventre da irmã de um rei indiano; e Krishna

nasceu, portanto, sem interferência do homem. Mas o rei,temendo o aparecimento de um rival, ordenara que todas as

crianças recém-nascidas, de sangue real, fossem entregues à

morte; e Krishna foi, por isso, transferido secretamente, por mão

divina, para a família de um humilde pastor, substituindo uma

sua filhinha. O menino Krishna derrotou todos os esforços do

mundo infernal feitos para o destruir. De uma feita, durante uma

inundação, ergueu uma montanha com seu dedo mindinho e

sustentou-a no ar durante sete dias e sete noites, a fim de que o

povo pudesse salvar-se e a seus animais. Sem cogitar que ele fosse

divino, todas as moças da aldeia o amavam, e dançavam com ele.

Ao atingir a adolescência, Krishna matou seu tio tirano,

conquistando fama universal. Por fim, retirou-se para uma

floresta, onde um caçador, tomando-o por uma rena, atirou-lhe

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uma flecha no calcanhar. Quando o caçador se aproximou e

reconheceu Krishna, foi acometido pela dor; mas Krishna sorriu,

abençoou-o e morreu.

O Gita começa com Krishna no campo de batalha, servindona qualidade de cocheiro desarmado de Arjuna. Do lado oposto se

encontram os primos reais de Arjuna, aguerridos na contenda

fratricida. Arjuna é avesso a todo combate. Diz a Krishna:

“Tenho pressentimentos infelizes, ó Keshava,

E não vejo nada de bom em abater parentes em combate.

Não procuro vitória, nem poder soberano, nem alegria

terrenal.

De que servem o poder soberano, os prazeres terrenais,

E mesmo a vida, para nós, ó Govinda?”

Keshava e Govinda figuram entre os muitos nomes de

Krishna. Sobrepujado pela repulsa pelo assassinato de seuspróprios parentes, Arjuna anuncia: “Eu não lutarei”.

Krishna adverte-o:

“Tu pranteias aqueles que não devias prantear

E proferes palavras vãs de sabedoria. O sábio não pranteia

nunca

Nem os vivos, nem os mortos.

Porquanto nunca deixei de ser; nem tu, nem estes reis,

Nem qualquer de nós deixará de ser, daqui por diante”.

A morte, em outros termos, pouco importa; a alma, ou atmã,

Krishna explica, é imortal e inatingível pelas armas de destruição

de uso do homem. Dando à alma a denominação esta, Krishna

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diz:

“Esta nunca nasce, nem, passando a ser,

 Jamais volta ao não-ser; não nascida, eterna, perpétua,Antiga, Esta não é abatida quando o corpo é abatido...

Assim como um homem joga fora vestimentas puídas, e

veste outras que

São novas, assim também as Estas encarnadas jogam fora

corpos

Gastos, e passam para outros, que sejam novos”.

Sucintamente, essa é a doutrina hindu da transmigração da

alma. Krishna acrescenta:

“A Esta, nenhuma arma fere; a Esta, nenhum fogo queima;

a Esta ,

Nenhuma água molha; a Esta, nenhum vento resseca...Porque é certa a morte de quem é nascido, e certo

É o nascimento do morto; conseqüentemente, tu não deves

lamentar

O que é inevitável”.

Além disso, acentua Krishna, Arjuna é membro da casta

guerreira hindu, a dos Kshatriyas, e é seu dever lutar.

A interpretação hindu ortodoxa do Gita, que o considera um

apelo divino às obrigações de casta e à matança, afigurava-se

inadmissível a Gandhi; e mesmo quando ele leu pela primeira vez

o livro, em Londres, em 1888-89, classificou-o como uma alegoria

em que o campo de batalha é a alma, sendo Arjuna o conjunto dos

impulsos superiores do homem, lutando contra o mal. Em todo

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caso, Arjuna sente-se, ainda assim, intrigado e confuso pelo

argumento de Krishna, segundo o qual, visto que a morte do corpo

não é morte, ele não precisa hesitar em ir à guerra. Que haveria a

ganhar?Krishna responde:

“Para mim, ó Partha, nada há a fazer

Nos três mundos; nada há que valha a pena ser ganho,

Que eu não tenha ganho; contudo,

Nunca estou em ação”.

O ideal é a ação numa justa causa, sem privilegiar o

pensamento. Krishna diz:

“Considera iguais o prazer e a dor, o ganho e a perda,

A vitória e a derrota; e ajaeza teus flancos para o combate;

Assim fazendo, não incorrerás em pecado”.

Este é um aspecto da ioga: desprendimento na ação. Krishna

diz:

“Atua, ó Dhananjaya (Arjuna), sem apego,

Seguindo à risca a ioga,

Mantendo o espírito sempre igual, no êxito e no fracasso;

A imperturbabilidade da mente é ioga”.

Krishna descreve o iogue como sendo a pessoa

“Cujo espírito se conserva imperturbado na tristeza,

E não anseia por alegrias; que é livre de paixão,

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De medo, e de ira. Essa pessoa é denominada

Ascética, de compreensão segura. O homem que se despe

De todos os anseios, e que se locomove

Sem preocupação, livre do sentido do Eu e do Meu,Esse alcança a paz”.

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Existem iogues que meditam e iogues que agem. O iogue de

ação é o iogue carma. O Mahatma Gandhi foi um iogue carma.

Num comentário ao Gita, Gandhi definiu o perfeito iogue carma:“É devotado quem não tem ciúmes de ninguém; quem é fonte de

bondade; quem não tem egoísmo; quem é desprendido de si; quem

dispensa o mesmo tratamento ao frio e ao calor, à felicidade e à

infelicidade; quem está sempre perdoando; quem se mostra

sempre satisfeito; aquele cujas resoluções são firmes; quem haja

dedicado mente e alma a Deus; quem não causa pavor; quem não

tem medo dos outros; quem é livre de exultação, de tristeza e de

receios; quem é puro; quem é versado em ação e contudo se

conserva não influenciado por ela; quem renuncia a todo fruto,

bom ou mau; quem trata por igual amigo e inimigo; quem não é

atingido pelo respeito, nem pelo desrespeito; quem não se

envaidece com o elogio; quem não se diminui quando o povo fala

mal dele; quem ama o silêncio e a solidão; quem tem raciocíniodisciplinado. Tal devoção é incompatível com a existência, ao

mesmo tempo, de fortes apegos”.

Gandhi resumiu-a em uma frase: “Ausência de desejo”.

Ausência de desejo, ou renúncia hindu — é o que se tem

objetado —, é coisa que conduz à indiferença pessoal, à

passividade, à pobreza nacional e à estagnação. Gandhi replicava

 — ao contrário — que o agir, ao mesmo tempo em que se renuncia

a todo interesse nos frutos da ação, é o melhor caminho para o

êxito.

“Aquele que está sempre levando em consideração o

resultado”, escreveu Gandhi, “fica freqüentemente com os nervos

abalados no cumprimento do dever. Torna-se impaciente e então

dá vazão à zanga, começando a fazer coisas indignas; passa de

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uma ação a outra, sem se conservar fiel a qualquer delas. Aquele

que se preocupa com o lucro é como o homem entregue aos

objetivos dos sentidos; está sempre sendo levado para longe de

sua meta; diz adeus a todos os escrúpulos; tudo está certo na suaestimativa; e socorre-se, portanto, de meios bons e condenáveis,

para atingir o seu fim.”

A renúncia — se a gente é capaz dela — cria a paz interior, a

serenidade necessária para que se consigam resultados

verdadeiramente duradouros, mesmo em se tratando de

resultados materiais, não maculados por meios indecorosos. Para

o praticante excepcional da autonegação reserva-se um prêmio

especial. Krishna declara:

“Mas há uma recompensa única. Os grandes iogues,

Os mahatmas, ou grandes almas, assim que chegam a Mim,

Atingem a perfeição mais elevada; eles não voltam

Ao nascimento, que é transitório e prenunciador desofrimento”.

Assim, a mais alta recompensa do iogue está em se fazer tão

firmemente unido a Deus, depois da morte, que não precisa voltar

ao estado de homem migrador e mortal. Várias vezes, em sua vida,

Gandhi manifestou a esperança de não nascer outra vez.

Os mahatmas são raros. A ausência de desejo é um ideal que

poucos, na Índia, ou em qualquer outra parte, atingem, ou mesmo

a que aspiram; mas o jovem hindu, recitando o Bhagavad-Gita

várias vezes por mês, talvez mais freqüentemente ainda, em casa

ou no templo, torna-se consciente de suas injunções e pode ser

inspirado, no limiar da existência, a ponderar a finalidade da vida.

Isso aconteceu, sem dúvida, a Gandhi, e exerceu influência sobre

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sua vida inteira.

O interesse de Gandhi no Bhagavad-Gita, juntamente com o

seu obstinado vegetarianismo, refletia a sua saudade da Índia. Ele

precisava sentir-se identificado com o meio; entretanto, suasprincipais relações na Inglaterra eram um grupo de vegetarianos

idosos, ferrenhos, que, ao que ele declarou mais tarde, “tinham o

costume de não falar de coisa alguma a não ser de comida ou

doença”. Seus estudos representavam uma necessidade aflitiva,

um degrau para uma profissão; e dedicou-lhes apenas umas

poucas linhas em suas reminiscências. Gandhi foi admitido ao

 Templo Interior e à Universidade de Londres; fez cursos de

francês, de latim, de física, de química; melhorou seu inglês; leu

direito romano e direito comum. Chamado ao foro em 10 de junho

de 1891, inscreveu-se no Supremo Tribunal no dia 11 de junho; e,

sem passar sequer mais um único dia na Inglaterra, zarpou para

Bombaim em 12 de junho.

A vida começou, para Gandhi, depois da faculdade. Em suarevista semanal, Young India, de 4 de agosto de 1924, ele escreveu

que os seus dias de escola ocorreram antes do tempo “em que...

eu comecei a vida”. Os dois anos e oito meses passados na

Inglaterra significaram uma fase de formação e devem ter deixado

sua marca. Sua influência, porém, foi provavelmente menor do

que seria de esperar. Porque Gandhi não era o tipo do estudante

comum. Era um realizador; ganhava conhecimento, confiança e

estatura, através da ação. Os livros e as pessoas exerceram, por

certo, influência sobre ele. Mas o verdadeiro Gandhi, o Gandhi da

história, não emergiu, nem sequer sugeriu sua existência nos

anos escolares. Pouco, talvez, deverá ser esperado do fraco indiano

de província, transplantado, na verde idade dos dezenove anos,

para a Londres metropolitana. Contudo, o contraste entre o

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bacharel em direito M. K. Gandhi, medíocre, inexpressivo, inibido,

hesitante, que deixou a Inglaterra em 1891, e o Mahatma do

século XX, que se tornou líder de milhões de pessoas, é tão

grande, que sugere que, até o momento em que o serviço públicopassou a explorar suas enormes reservas de força de vontade, de

intuição, de energia, de autoconfiança e de devoção a uma causa,

sua verdadeira personalidade permaneceu adormecida.

4Dois incidentes moldam o futuro

Quando Gandhi regressou à Índia, seu filho Harilal tinha

quatro anos. Sua mãe havia morrido; não lhe haviam mandado a

triste notícia, porque sabiam o quanto ele a amava. Sua esposa,

Kasturbai, era uma linda e jovem mulher, e ele se sentiu maisciumento dela do que nunca. De uma feita, os dois tiveram uma

briga tão séria, que ele a embarcou, de Rajkot, para a casa dos

pais dela, em Porbandar.

Como advogado, Gandhi fracassou, tanto em Rajkot como

em Bombaim. Nesta última cidade, teve uma causa de dez dólares,

mas mostrou-se tão tímido que nem sequer abriu a boca no

tribunal; e cedeu a procuração a um colega. Começou, então, a

realizar tarefas judiciárias eventuais para o príncipe reinante de

Porbandar. Laxmidas, seu irmão mais velho, seguindo as pegadas

do pai e do avô, trabalhava como secretário e conselheiro do

herdeiro do trono de Porbandar, e parecia estar na fila para

ocupar o posto de primeiro-ministro de seu pequeno reino natal.

Havia, porém, feito oposição ao agente político britânico, de quem

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seu destino dependia. Mohandas havia encontrado esse agente,

casualmente, em Londres. Laxmidas, portanto, pediu a seu irmão

que fizesse uma visita ao agente, e intercedesse junto dele, a seu

favor. Gandhi não achou correto fazer isso, mas cedeu àinsistência do irmão. O agente esclareceu que, se Laxmidas

houvesse sofrido injustiça, poderia apelar através dos canais

competentes. Gandhi insistiu; o agente ordenou-lhe que se

retirasse; e como Gandhi prosseguisse com seus argumentos, o

assistente do agente, ou o seu mensageiro, agarrou o suplicante e

pô-lo porta afora.

“O choque deste incidente”, escreveu Gandhi em sua

autobiografia, “mudou o curso de toda a minha vida.” Pela

primeira vez, sua vida tivera, pelo menos, uma direção negativa:

ele ficou sabendo o que não desejava fazer. O episódio

intensificou-lhe o horror à intriga baixa, à pompa palaciana, à

subserviência, ao servilismo que permeava os governos dos

pequenos principados de Kathiawar. Não se faria um sicofantabajulador. Aquilo envenenava o caráter. E ele desejou vivamente

subtrair-se àquela injunção.

Precisamente nessa época, uma firma de muçulmanos de

Porbandar se ofereceu para o enviar à África do Sul, por um ano,

na qualidade de seu advogado. Gandhi aceitou. “Eu desejava, de

uma forma ou de outra, deixar a Índia”, admitiu ele, com tristeza.

Havia já quase dois anos que deixara Londres; e era um fracasso;

por isso, resolveu “tentar a felicidade na África do Sul”, disse ele.

Logo após a sua chegada à África do Sul, Gandhi envolveu-

se num segundo incidente, que resultou em derrota e expulsão.

Dessa vez, sua vida tomou uma direção positiva.

Uma demanda judiciária exigiu a presença de Gandhi em

Pretória, capital do Transvaal. Ele tomou o trem para a viagem

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noturna e entrou num compartimento de primeira classe, com a

passagem. Em Maritzburg, na província de Natal, um homem

branco entrou no compartimento, olhou para o intruso escuro, e

retirou-se, para reaparecer um momento depois, com doisfuncionários da estrada de ferro, que ordenaram a Gandhi que

fosse para o vagão de bagagens. O indiano protestou, mostrando

sua passagem de primeira classe; mas eles disseram que ele tinha

de sair. Gandhi ficou. Em conseqüência, os funcionários foram

buscar um policial, que o atirou e às suas malas na plataforma da

estação.

Muitos anos após, o dr. John R. Mott, missionário norte-

americano na Índia, perguntou ao Mahatma Gandhi: “Quais foram

as experiências mais criativas de sua vida?”

Gandhi contou-lhe, então, a experiência por que passara em

Maritzburg.

Poderia ter voltado ao trem e ocupado um lugar na terceira

classe. Preferiu ficar na sala de espera da estação. O pessoal daestação tomou-lhe a bagagem e o sobretudo. Fazia frio nas

montanhas; mas ele não iria pedir aquilo a que tinha direito; por

isso, ficou sentado a noite toda, tremendo e meditando.

Esses dois episódios fizeram o homem; contudo, é

igualmente verdade que o homem produziu os episódios. Outros

indianos haviam sido expulsos de compartimentos, devido a

objeções opostas à sua presença ali, por um homem branco; e

haviam aceito acomodações mais modestas.

“Você não pode dar cabeçadas contra uma parede de pedra”,

aconselharam-no seus compatriotas, na manhã seguinte.

Quando, porém, Gandhi se defrontou com a injustiça, em

Maritzburg, não se curvou; recebeu, por isso, uma punição que

poderia ter sido evitada; daí, entretanto, surgiu a resolução de dar

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combate à terrível doença representada pelo preconceito de cor. A

intransigência e o sofrimento pessoal iluminavam o princípio em

questão, e acentuaram sua necessidade de lutar por ele. Em vez

de permanecer um ano na África do Sul, como advogado, Gandhiali ficou de 1893 a 1914 — vinte e um anos, durante os quais não

apenas ampliou sua figura moral e intelectual, mas também se

transformou em líder e advogado de grande projeção. Ao fim,

obteve uma grande vitória para a liberdade.

Naquela noite gélida, na sala de espera da estação de

Maritzburg, o advogado indiano, de vinte e quatro anos de idade,

começou a considerar-se um Davi lutando contra o Golias da

discriminação racial. Por que, Gandhi? Que foi que o pôs em

marcha, de Maritzburg para a grandeza mundial? Terá querido ser

moralmente forte, por ser fisicamente fraco? Ter-se-á sentido

menos agrilhoado e mais ambicioso, pelo fato de sua carreira, até

então, não haver produzido bons resultados? Terá percebido a

existência de talentos latentes e observado que eles poderiamemergir, mas somente se devotados ao serviço social? Terá sido

aquilo sorte, destino, hereditariedade, o Bhagavad-Gita, ou

alguma outra circunstância imensurável? Talvez alguns elementos

disso, mais o orgulho, a indignação moral e um sentimento de

inadaptação se haja combinado, no sentido de o encaminhar para

a liderança. O agente britânico de Porbandar e o policial branco de

Maritzburg eram símbolos de sua fraqueza, bem como da fraqueza

de seu povo; e ele se ressentia disso. Sempre que Gandhi se sentia

inquieto, ou perturbado, desejava fazer alguma coisa para superar

a situação. Na presença do mal, tinha de agir. Nunca o

satisfizeram os simples meneios de cabeça, nem o mero torcer das

mãos. A passividade repugnava-lhe. Não havia sequer uma única

fibra passiva em seu caráter; e toda a sua resistência era ativa.

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5

Preconceitos de cor

Uma semana após o incidente de Maritzburg, Gandhi

convocou uma reunião dos indianos de Pretória, e proferiu um

discurso sobre a discriminação dos brancos. Aquela foi sua

primeira fala pública. O zelo para com a causa dissolvera-lhe a

timidez e soltara-lhe a língua. O auditório compunha-se de

mercadores muçulmanos e alguns hindus. As declarações de

Gandhi apresentaram a característica, mesmo naquela primeira

fase, de sua singular capacidade de liderança. Ele instigou os

ouvintes a dizer a verdade nos negócios, a adotar hábitos mais

higiênicos, a esquecer diferenças de religião e de casta, e a

aprender o inglês. Visto que seu objetivo era conseguir umtratamento condigno para os indianos da África do Sul, estes

precisavam, em primeiro lugar, melhorar a si mesmos e acabar

com seus próprios maus hábitos. Freqüentemente, com efeito,

Gandhi se interessou mais pela promoção dos recursos humanos

do que pela consecução de fins políticos. Em que é que o homem

se beneficia, ao ser elevado o seu estado, quando ele mesmo não

se eleva? Os fins almejados por Gandhi eram, na verdade, meios

para a obtenção de melhores recursos, de um homem melhor. Ele

sempre procurava exaltar o indivíduo; por conseguinte, “sempre

constituiu mistério, para mim”, escreveu ele em sua biografia,

“como os homens podem sentir-se honrados pela humilhação dos

seus semelhantes”. Talvez ele soubesse a resposta: alguns homens

se sentem melhor quando elevam seus semelhantes, e outros,

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quando lhes dão pontapés e os humilham. É a diferença entre o

benfeitor e o fanfarrão, entre o mahatma e o ditador.

A perseguição, seja por parte das minorias, seja pelas

maiorias, resulta da intolerância em face das diferenças, bemcomo de receios baseados na falta de autoconfiança. Num mundo

de competição, a maior parte dos homens não gosta de rivais, de

não-conformistas, de dissidentes e de opositores. Muitos

defensores das minorias, em conseqüência, visavam impor a

minoria à maioria. Gandhi cometeu o mesmo erro. Lionel Curtis,

chefe do Departamento Asiático da República do Transvaal —

departamento então recém-constituído para cuidar dos assuntos

dos indianos —, relata que Gandhi o procurou e começou “a

tentar convencer-me dos aspectos positivos de seus compatriotas,

de sua diligência, de sua frugalidade, de sua paciência”.

“Sr. Gandhi”, respondeu-lhe Curtis, “o senhor está pregando

ao convertido. Não são os defeitos dos indianos que os europeus,

neste país, receiam; são as suas virtudes.”E visto que, em outras situações, os defeitos são dados como

 justificativa para a discriminação, nem as virtudes, nem os

defeitos, são decisivos; a discriminação requer a cura dos

discriminadores. Gandhi empreendeu isso também. Através da

purificação, tanto dos opressores como dos oprimidos, ele

esperava contribuir para o progresso moral do homem.

Gandhi reconhecia que os brancos, na África do Sul,

pensavam que precisavam de proteção contra a maioria composta

de negros e de indianos. A província de Natal, em 1896, tinha 400

000 habitantes negros, 51 000 indianos e 60 000 brancos. A

colônia do Cabo da Boa Esperança tinha 900 000 negros, 10 000

indianos e 400 000 europeus; a República do Transvaal, 650 000

negros, 5 000 indianos e 120 000 brancos. Em 1914, os cinco

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milhões de negros superavam, indiscutivelmente, o milhão e um

quarto de brancos.

Ao que se afigurava, os brancos receavam que os indianos

pudessem conferir a chefia aos negros. Ou, talvez, que osindianos, sendo imigrantes e em menor número do que os negros,

constituíssem alvo mais fácil de atacar.

Os indianos começaram a ir para a África do Sul em 1860,

como trabalhadores contratados, para cultivar as plantações de

cana-de-açúcar, chá e café, de propriedade dos ingleses, onde os

negros relutavam em ir trabalhar. Os indianos chegavam como

servos a prazo fixo, pelo período de cinco anos. Às vezes,

permaneciam, na qualidade de trabalhadores livres, por outros

cinco anos. Em qualquer dos casos, o contratador pagava a

viagem de regresso à Índia. Com freqüência, entretanto, os

trabalhadores contratados consideravam suas condições ali

melhores que as que teriam na Índia, e preferiam continuar na

África do Sul, na qualidade de homens livres. Preocupados com onúmero crescente de indianos radicados, bem como com sua

afluência, porquanto eram trabalhadores tenazes, hábeis e

parcimoniosos, os brancos modificaram os regulamentos, em

1894; daí por diante, toda pessoa contratada passou a ter de

regressar à Índia, ao expirar seu primeiro período de cinco anos de

serviço, ou a incluir-se na categoria de servo, na África do Sul,

pelo resto da vida. Uma cláusula de evasão dispunha que essa

pessoa poderia permanecer, na qualidade de trabalhador livre,

desde que pagasse uma taxa anual de três libras, por si mesma e

por cada um dos seus dependentes; visto, porém, que isso era

proibitivamente caro, as alternativas de fato eram ou a repatriação

ou a escravatura permanente.

 Também havia emigrantes livres que se dirigiam da Índia

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para a África do Sul e ganhavam a vida como bufarinheiros,

comerciantes, artesãos ou profissionais liberais, como Gandhi.

Alguns adquiriam propriedades consideráveis. Alguns indianos

possuíam até linhas de navios a vapor.Esses indianos livres eram súditos de sua majestade

britânica, a rainha Vitória; e os que podiam satisfazer as

qualificações de riqueza (duzentos e cinqüenta, para sermos

exatos), tinham o direito de votar. Em 1894, um ano depois da

primeira chegada de Gandhi à África do Sul, o Legislativo de Natal

aprovou uma lei despojando explicitamente os asiáticos de

franquias.

Muitas restrições se impunham aos indianos; na província

de Natal, todo indiano tinha de levar consigo um passe, para sair

à rua depois das vinte e uma horas. O Estado Livre de Orange,

república implantada pelo bôeres, ou colonizadores holandeses,

proibia aos indianos a posse de propriedades, dedicar-se a

negócios e trabalhar na lavoura. Na colônia da coroa deZululândia, os indianos eram proibidos de comprar ou possuir

terra. No Transvaal, os indianos tampouco tinham direito de

possuir terra; além disso, tinham de pagar uma taxa de três libras

pelo alvará de residência — mas a residência estava limitada aos

cortiços. Algumas comunidades, na colônia do Cabo, proibiam os

indianos de caminhar nas calçadas. Mesmo onde tais restrições

não existiam, os indianos evitavam os passeios das ruas, porque

podiam ser empurrados para fora deles. Gandhi foi empurrado,

uma vez. Contudo, os comentários das leis descreviam os indianos

como “asiáticos semibárbaros”.

“Eles nos tratam como a animais”, exclamou Gandhi, num

comício, em Madrasta, em 26 de outubro de 1896, no decorrer de

breve visita à sua terra natal.

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Como a Guerra dos Bôeres havia sido levada a efeito de 1899

a 1902, entre os colonizadores holandeses e os ingleses, sendo

ganha por estes últimos, os dois contendores trataram de curar

suas feridas, como é freqüentemente o caso, com o bálsamoproporcionado pela desgraça de um terceiro. A questão indiana,

na África do Sul, tornou-se, conseqüentemente, um futebol

político. Jan Christiaan Smuts, general e advogado bôer, que,

depois da derrota dos bôeres se tornou ministro das Finanças e da

Defesa da África do Sul, declarou, num discurso eleitoral, em

outubro de 1906: “O câncer asiático, que já penetrou tão

fundamente nas partes vitais da África do Sul, deve ser

resolutamente erradicado”.

O general Louis Botha, igualmente um antigo general bôer,

posteriormente elevado ao posto de primeiro-ministro, tornou mais

específico o plano antiindiano do governo; em janeiro de 1907,

num comício eleitoral, declarou: “Se o meu partido voltar ao poder,

empreenderemos a expulsão dos coolies para fora do nosso paísdentro de quatro anos”.

“Coolies ” era o termo insultuoso aplicado aos indianos.

A existência de mais de cem mil indianos estava em jogo.

Gandhi acreditava que poderia salvá-los.

6

Coragem diante do ataque

Gandhi não esperava desarraigar os preconceitos dos

brancos. “Os preconceitos”, escreveu ele no Times of India, de 2 de

 junho de 1918, “não podem ser removidos por meio de legislação...

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Eles cedem somente diante de um trabalho paciente e de

educação.” Nem tinha ele esperanças de acabar rapidamente com

a segregação. Os indianos, declarara, “sentem o ostracismo,

porém o suportam silenciosamente”. Sua contenda contra os sul-africanos era motivada pelo fato de estes “incentivarem o

preconceito, legalizando-o”. Pelo menos as leis devem ser justas,

pleiteava ele. Gandhi não previa a aplicação razoável das leis; os

brancos seriam sempre favorecidos. Mas, uma vez que o princípio

de igualdade legal se estabelecesse, ele se contentaria em deixar

que a vida surgisse de seu complicado emaranhado e em confiar

em que os bons cidadãos a iluminassem. Se, entretanto, os

indianos aceitassem, deitados de barriga para o ar, a sua

inferioridade, o mesmo aconteceria aos brancos que impusessem a

inferioridade.

 Tendo estado longe de sua família e de seu lar indiano,

durante três anos, e percebendo que seu trabalho contra a

discriminação exigia sua presença na África do Sul, por um longoperíodo, Gandhi regressou à Índia em 1896, a fim de buscar

Kasturbai, Harilal (que agora estava com oito anos de idade) e o

seu segundo filho, Manilal, nascido em 28 de outubro de 1892.

Aproveitou a oportunidade para informar seus compatriotas sobre

a luta de seus irmãos na África do Sul. Essas atividades,

comunicadas à África do Sul, despertaram ressentimentos tão

amargos que, quando o navio em que Gandhi viajava atracou em

Durban (um segundo barco chegara da Índia, ao mesmo tempo. E

tanto este barco, como aquele em que Gandhi viajara,

transportavam oitocentos passageiros), Gandhi foi acusado de

inundar o país com indianos não desejados. Na verdade, Gandhi

nada tinha a ver com a chegada desses passageiros. Os brancos

exigiram que os dois navios voltassem à Índia com sua carga

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humana. Quando, finalmente, os passageiros receberam

permissão para desembarcar, Gandhi foi atacado por uma

multidão hostil. Pedras, tijolos e ovos foram atirados contra ele; o

turbante foi-lhe arrancado da cabeça, e ele foi surrado e pisado.Gandhi ia desmaiar de sofrimento, mas agarrou-se à grade de

ferro de uma casa, e permaneceu de pé. Homens brancos

continuaram a vibrar-lhe socos no rosto e pancadas no corpo.

Nesse momento, a sra. Alexander, esposa do superintendente

municipal da polícia, passou por ali; colocou-se entre a multidão

enlouquecida e o infeliz Gandhi. Ferido e sangrando, ele foi levado

à casa de um indiano amigo, para a qual a sra. Gandhi e os dois

meninos já se haviam dirigido. Grupos ululantes cercaram a casa

e pediram que Gandhi lhes fosse entregue. Então, a sra. Alexander

apareceu em cena. A multidão queria o sangue de Gandhi.

“Vamos queimá-lo”, gritavam os populares.

Nos intervalos mais calmos, eles cantavam:

“E nós enforcaremos o velho Gandhi na macieira de frutosazedos”.

Alguns elementos se prepararam para atear fogo à casa.

Alarmado, o superintendente da polícia enviou, secretamente, dois

detetives ao interior da casa. Um deles deu a Gandhi seu uniforme

e seu capacete; a seguir, os dois detetives pintaram-se de escuro e

vestiram-se como indianos. Assim disfarçados, os três fugiram

pelos fundos da casa e, percorrendo o caminho através de ruas

laterais, entregaram Gandhi ao distrito de polícia, onde ele

permaneceu durante três dias, até que os ânimos se acalmassem.

Quando a notícia desse frustrado linchamento chegou a

Londres, o sr. Joseph Chamberlain, secretário de Estado britânico

para as Colônias, remeteu instruções às autoridades de Natal, a

fim de que processassem os atacantes. Gandhi conhecia vários

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dos seus assaltantes, mas recusou-se a agir contra eles. Disse que

aquilo não era culpa deles; era culpa da comunidade e do governo;

e ele não processaria ninguém.

“Esta é uma questão religiosa contra mim”, declarou ele,pondo em prática, desse modo, o “autocomedimento”.

Dois anos depois, Gandhi apresentou-se como voluntário

para organizar um corpo de padioleiros e de enfermeiros,

destinado a servir do lado dos britânicos, na Guerra dos Bôeres. O

governo de Natal recusou o oferecimento. Não obstante, Gandhi e

outros indianos começaram um treinamento, a suas próprias

expensas, na tarefa de enfermeiros. O governo recusou-se de novo

a utilizar os serviços dos indianos. Mas os bôeres estavam

avançando; os mortos empilhavam-se nos campos de batalha; e os

feridos careciam de tratamento adequado. Finalmente, as

autoridades sancionaram a formação de um Corpo Indiano de

Ambulância. Trezentos indianos livres se alistaram, além de

oitocentos trabalhadores contratados, que tiveram para isso oconsentimento dos seus patrões. A África do Sul e a Inglaterra

recompensaram-nos com aplausos, aos quais acrescentaram a

admiração quando tiveram notícias do corajoso comportamento

dos indianos durante a luta.

Em Johannesburg, pelas colunas da lllustrated Star, de julho

de 1911, o sr. Vere Stent, editorialista britânico, publicou um

artigo a propósito do sangrento encontro de Spion Kop, em janeiro

de 1900. O general Buller, comandante britânico, estava sendo

rechaçado; enviou, por isso, um despacho urgente, pedindo que os

indianos socorressem os feridos. Gandhi encaminhou-se, à frente

de seus homens, para o campo de batalha. Durante vários dias,

sob o fogo dos canhões inimigos, os indianos carregaram soldados

lamuriosos para o hospital da base.

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“Depois de uma noite de trabalho, que havia derreado

homens de arcabouço muito maior”, lembrou o sr. Stent,

“encontrei-me com Gandhi, pela manhã, bem cedo, sentado à

beira da estrada, comendo um biscoito. Todos os homens, natropa de Buller, se mostravam apáticos e deprimidos, soltando

imprecações sobre todas as coisas. Mas Gandhi mantinha-se

estóico em seu comportamento; mostrava-se alegre e confiante em

suas conversações e via tudo com bons olhos. Ele realizou uma

boa obra.”

Gandhi envergava um uniforme cáqui; usava chapéu de

feltro de cowboy de abas amplas, e braçadeira com o emblema da

Cruz Vermelha; e usava um bigode caído. Quando o Corpo Indiano

foi dissolvido, recebeu menção nos despachos; Gandhi e vários

dos seus companheiros foram condecorados com a Medalha de

Guerra.

Gandhi esperara que a fortaleza de ânimo dos indianos, na

guerra, tocasse o senso de justa consideração dos sul-africanos, emoderasse a hostilidade dos brancos contra os asiáticos de cor. Ao

contrário, a tensão cresceu. Não obstante, Gandhi se juntou ao

exército britânico, com um pelotão de vinte e quatro padioleiros e

ajudantes sanitaristas indianos, quando começou a rebelião zulu,

na primeira metade do ano de 1906. Apresentou-se como

voluntário, disse ele, porque “o império britânico existia para o

bem-estar do mundo”, e porque ele tinha “um senso genuíno de

lealdade para com esse império”.

Durante esses anos passados na África do Sul e nos

intervalos transcorridos na Índia, Gandhi revelou uma energia

inquebrantável, uma inexaurível capacidade para se indignar,

uma franqueza que inspirava confiança e um pendor especial para

travar facilmente relações pessoais, tanto com os humildes,

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quanto com os poderosos. Deu provas de ser um organizador

excelente e um líder eficaz. O grande Gandhi da história,

entretanto, estava apenas germinando, e até tinha dado pequenas

mostras disso.

7

A transformação

Na África do Sul, Gandhi vestia terno europeu, colarinho

duro e de pontas, camisa branca engomada, gravata de listras

alegres e sapatos lustrosamente polidos. Em Durban, alugou uma

villa inglesa, num setor aristocrático da praia. Ganhava, por ano,

de cinco mil a seis mil libras esterlinas, ou de vinte e cinco mil a

trinta mil dólares, com os seus trabalhos de advogado; e, no

conjunto, sua vida se assemelhava à de um indiano europeizadopela constante imitação do mundo dos brancos.

Contudo, ele tinha idéias estranhas. Quando nasceu

Ramdas, seu terceiro filho, na África do Sul, em 1897, tomou a

seu cargo o menino; e, tendo estudado um livro de obstetrícia,

intitulado Conselho a uma mãe, assistiu como parteira,

pessoalmente, o nascimento do seu quarto filho, Devadas, em 22

de maio de 1900. “Eu não estava nervoso”, relatou ele.

Gandhi deve ter sido um aborrecimento constante para

Kasturbai, no recesso de seu lar. Não somente interferia na

cozinha e no cuidado com as crianças, mas também mantinha

generosamente inúmeros pensionistas gratuitos, prestava-lhes

serviços humildes e forçava Kasturbai a fazer o mesmo. Não havia

água corrente na casa; cada quarto dispunha de um urinol para

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uso noturno. Gandhi recusava-se a empregar um “intocável”, ou

“varredor”, desses que, na Índia, fazem todos os serviços “pouco

limpos”. Ele, Kasturbai e, por vezes, os rapazes mais velhos

cuidavam dos urinóis. Ele insistia; ela não tinha alternativa. Masum pensionista, empregado no escritório de advogado de Gandhi,

era um antigo intocável que se fizera cristão para fugir às terríveis

privações que os hindus infligem aos seus párias, ou elementos

fora-de-casta. Para Kasturbai, hindu ortodoxa, entretanto, esse

pensionista continuava a ser ainda um intocável; e ela relutava em

cuidar de seu urinol. Na verdade, nutria horror a tudo aquilo, e

não via razão para que ela própria, ou seu marido e seus filhos

devessem fazer aquelas coisas. Ele, porém, considerava-as parte

da sua educação e, por vezes, ela chorava até ficar com os olhos

vermelhos. Isso o enervava. Não somente ela devia praticar

aqueles atos humildes, como também devia fazê-los alegremente; e

quando ele a via chorando, gritava-lhe, como ele próprio declarou:

 — Não admito uma estupidez dessas em minha casa! — Fique você com sua casa e deixe que eu me vá! —

exclamava ela.

Gandhi agarrou-a, de uma feita, pela mão, arrastou-a até o

portão, abriu-o, e esteve na iminência de expulsá-la.

 — Você não se envergonha? — soluçou ela. — Para onde é

que irei? Não tenho pais, nem parentes, aqui. Pelo amor dos céus,

Contenha-se e feche o portão. Que não sejamos vistos fazendo

cenas como esta!

Isso o fez voltar a si. Gandhi era de índole violenta; e sua

posterior calma de mahatma foi produto de longo treinamento no

controle de seu temperamento. Não foi com facilidade que se

tornou um iogue de mente serena, inteiramente despido de

desejos. Teve de moldar-se a si mesmo de novo. Reconhecendo

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suas deficiências, fez um esforço consciente no sentido de

superar-se, de modificar-se e de conter-se nos momentos de

impulsos negativos. Transformou-se em outra pessoa. Constituiu

um caso notável de segundo nascimento durante uma única vida.A transformação começou na África do Sul, e o resultado foi um

homem refeito por si mesmo.

Em 1896, nas vésperas de uma excursão à Índia, a

comunidade indiana da África do Sul oferecera-lhe muitos

presentes pessoais, que ele aceitara sem constrangimento. Mas

quando um tesouro em jóias, inclusive um colar de ouro para

Kasturbai, lhe foi presenteado, em 1901, ao tempo em que

planejava regressar a Bombaim, passou uma noite insone,

atormentado e hesitante entre o anseio de segurança — que o

pequeno monte de diamantes, pérolas, rubis e brincos de ouro lhe

proporcionaria — e o desejo de conseguir liberdade pela renúncia

à posse de bens materiais. Finalmente, resolveu desfazer-se

daquelas jóias. Os protestos de Kasturbai de nada valeram. Ospresentes foram utilizados na criação de um fundo em benefício

dos indianos da África do Sul.

Em Bombaim, em 1901, um agente norte-americano de

seguros visitou Gandhi, a fim de lhe vender uma apólice. “O

homem”, diz Gandhi, “tinha uma figura agradável e fala mansa.”

Discutiu o futuro de Gandhi, “como se fôssemos velhos amigos”.

Na América, declarou o agente, “uma pessoa como vós sempre faz

seguro; a vida é incerta”. A seguir, atingindo o tendão de Aquiles

de Gandhi, o agente declarou: “É vosso dever religioso fazer um

seguro”.

Gandhi inclinava-se a confiar mais em Deus do que numa

companhia de seguros; mas o norte-americano loquaz sacudiu a fé

do futuro mahatma, e conseguiu vender-lhe uma apólice de cinco

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mil dólares.

Dois anos depois, de volta à África do Sul, Gandhi mudou de

idéia. Costumava dedicar trinta e cinco minutos matutinos aos

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cuidados de si próprio: vinte minutos para tomar banho e quinze

minutos para escovar os dentes, antigo hábito indiano; durante

essa prolongada massagem oral, decorava os versos do Bhagavad- 

Gita. Novamente impressionado pela sua doutrina de “ausência deposses”, deixou caducar a apólice de seguro. “Deus cuidaria da

família.” A transformação estava em marcha.

Mais ou menos a esse tempo, Gandhi travou relações com

um vegetariano britânico, Henry S. L. Polak, assistente do diretor

do Transvaal Critic. Certa noite, quando Gandhi estava tomando o

trem, Polak emprestou-lhe um exemplar do livro Até as últimas de

 John Ruskin, ensaísta e crítico de arte inglês. Gandhi ficou

sentado a noite inteira, lendo-o.

“Aquele livro”, disse ele, em outubro de 1946, “assinalou o

ponto decisivo da minha vida.”

Sem perda de tempo, Gandhi resolveu instalar-se numa

comunidade e viver de maneira simples. Nada, naquela obra,

poderia ter sugerido, necessariamente, semelhante conduta. Ocaso é que Gandhi simplesmente se encontrava prestes a dar um

passo de retorno à natureza; e uma passagem do livro de Ruskin

cristalizara sua determinação. Freqüentemente lia, nos textos, o

que desejava que os textos dissessem. Sendo um leitor criativo,

fazia-se co-autor da impressão que qualquer livro lhe produzisse.

Punha no livro coisas suas, e retirava-as de lá, com interesse. “Era

um hábito meu”, escreveu ele de uma feita, “esquecer aquilo de

que eu não gostava, e pôr em prática aquilo que me agradava.”

 Tendo interpretado Ruskin, Gandhi adquiriu imediatamente

uma propriedade de uns cem acres, perto de Phoenix, Natal, por

mil libras esterlinas, e transferiu para lá as oficinas e a redação da

revista semanal Indian Opinion, que ele passara a dirigir vários

meses antes. Ele e a família viviam, nessa época, ora em

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 Johannesburg, onde ele prosseguia desenvolvendo sua ampla

atividade de advogado, ora trabalhando na Comunidade Phoenix,

onde todas as pessoas ajudavam a imprimir a revista e a cultivar

mangueiras e laranjeiras.O problema da austeridade, isto é, de contentar-se com

pouco, e do autocontrole, preocupava cada vez mais o espírito de

Gandhi. Passou a jejuar, como sua mãe, sempre que se

apresentasse ocasião para isso; nos outros dias, subsistia com

duas refeições frugais de nozes e frutas, sem especiarias nem

tempero. Na comunidade, iniciou uma pesquisa, que se estendeu

por toda a sua vida, em busca de uma dieta que, ao mesmo tempo

que sustentasse a vida do homem animal, lhe erguesse a alma

acima desse estado. Nós não vivemos, pensava ele, com a

finalidade de alimentar, vestir, abrigar ou satisfazer o corpo; nós

contentamos o corpo a fim de viver. A vida começa depois que as

necessidades do corpo estão satisfeitas; contudo, quanta gente

arruína sua vida por viver em opulência. A alma, infelizmente,precisa de uma morada temporária; mas uma cabana de taipa,

limpa, serve tanto como um palácio, e, com efeito, é até melhor,

porque quando o físico absorve a parte do leão do esforço do

homem o espírito desfalece, a vida perde o conteúdo, e ocorre o

descontentamento.

A renúncia aos prazeres é masoquismo, diz um ocidental.

Entretanto, a ética cristã é ascética, e a santidade, em todas as

religiões, está relacionada com a autonegação. Gandhi não

acreditava na renúncia por amor à própria renúncia, nem a título

de tormento imposto à carne. “Uma mãe”, escreveu ele, numa

carta, “não dormiria nunca, por sua escolha, numa cama

molhada! Mas ela faria isso de bom grado com o propósito de

reservar uma cama seca para seu filho.” A renúncia de Gandhi foi

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o desinteressado desprendimento, próprio do amor. Todo

indivíduo experimenta gloriosos momentos de identificação,

através do amor, com seus semelhantes. Um santo tem muitos

momentos assim, quando, em vez de estar preocupado com suapessoa, se esquece e transcende a si mesmo, e vai ocupar um

lugar dentro dos outros. Essa união cancela pelo menos uma

parte da distância que fica entre o meu e o teu; e, por esse meio,

cria fortaleza com felicidade. No apogeu de sua qualidade de

mahatma, Gandhi era capaz de considerável grau de projeção

espiritual de si mesmo em seus seguidores. Qualquer

documentário cinematográfico sobre Gandhi na Índia mostra sua

quase total ausência de si mesmo e sua identificação com os

outros, em contraste com a afirmação da própria personalidade e

com os conspícuos maneirismos dos políticos de menor

envergadura.

Esse é um dos segredos de sua grandeza e de sua influência;

ele se misturava àqueles que o circundavam. O fenômeno causavaenorme impacto sobre todos os amigos e inimigos que o

contemplavam, e ele com freqüência lhes vencia a resistência,

mesmo quando os meios pelos quais o fazia despertavam dúvidas

ou repulsa. Os adversários podiam não gostar do que ele fazia,

mas não podiam opor-se ao que ele era, ou passava a ser, em

conseqüência de seus atos.

Uma das coisas que ele fez foi renunciar ao sexo. Durante as

marchas, de aldeia em aldeia, na época da insurreição dos zulus,

demorou-se em longos períodos de introspecção, e, finalmente,

resolveu abster-se para sempre de relações sexuais. Duas vezes,

antes disso — conta-nos ele, simplesmente —, procurara tornar-se

casto. Kasturbai concordara. Ambos passaram a dormir em camas

separadas; e ele tratava de não ir para a cama antes de se sentir

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fisicamente exausto. Das duas vezes, porém, sucumbira.

Contudo, enquanto se encontrava na Zululândia, fez um

voto, e isso pôs ponto final ao caso. Ao ser desmobilizado, foi para

a Comunidade Phoenix e relatou a Kasturbai sua resolução. Elanão protestou. “Ela nunca foi a tentadora”, escreveu ele. A

natureza das suas relações íntimas havia sido determinada por

ele.

Gandhi permaneceu em castidade, de 1906, quando tinha

trinta e sete anos de idade, até sua morte, em 1948.

É difícil identificar os motivos de Gandhi; ele mesmo não os

conhecia. Acreditava que sua castidade constituísse “resposta ao

chamado do dever público”. Por outro lado, afirmou: “Meu

principal objetivo era fugir da possibilidade de ter mais filhos”.

Mas, por que razão evitar novos filhos? A Comunidade Phoenix

havia-se transformado numa espécie de projeto de comunidade,

para o qual ele convidava numerosos adultos e crianças, cuja

manutenção corria às expensas de todos, sob responsabilidadecomum. Por que motivo não ter mais filhos próprios?

A castidade de Gandhi foi ainda mais complicada pelo que

parece ter sido um sentimento de culpa ligado a sexo. Ele estava,

certa noite, fazendo massagem nas pernas de seu pai — conta-nos

Gandhi —, quando, com a paixão despertada, pediu ao tio que o

substituísse e dirigiu-se para a cama de Kasturbai. Poucos

minutos após, uma criada bateu à porta e chamou Gandhi. Mas,

ao voltar ao quarto do enfermo, o pai já estava morto.

“Se a paixão não me houvesse cegado”, confessou Gandhi,

quarenta anos depois, “eu teria evitado a tortura, que se me

impôs, da separação de meu pai durante seus últimos

momentos... A vergonha de meu desejo carnal, no momento crítico

da morte de meu pai... tornou-se uma mancha que nunca serei

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capaz de apagar, nem de esquecer.”

Isso deve ter exercido influência sobre sua conduta

subseqüente. Gandhi deu à sua estada de trinta e três meses em

Londres a denominação “uma longa e salutar separação deKasturbai”. Quando de sua primeira partida para a África do Sul,

ele lhe disse como que consolando-a:

“Deveremos encontrar-nos de novo dentro de um ano”.

Esteve ausente por três anos.

A castidade, ou bramacharya, encontra-se com freqüência

nos costumes e na vida hindu. Depois de cumprir seu dever de

reprodução para com a família, a casta, o país, o hindu pode, ao

entrar na quadra dos cinqüenta, ou já no fim dos quarenta, ser

promovido para uma atividade sexual extra-marital, não

reprodutiva, ou a nenhuma; contudo, é raro que um homem se

torne brahmachari em pleno vigor, como Gandhi quando fez seu

voto. Talvez houvesse considerado que quatro filhos

representassem um dever bem cumprido. Ou, então, que apaternidade se fizera pecaminosa por haver pecado, pensava ele,

no momento da morte de seu pai. As condições de saúde de

Kasturbai também devem ter contribuído para isso. Ela era

anêmica e estivera, de uma feita, perto da morte, devido a

hemorragias internas; uma operação ginecológica realizada sem

clorofórmio, por ela encontrar-se muito debilitada, proporcionou-

lhe certo alívio, mas não a curou. A constituição física de

Kasturbai talvez haja levado Gandhi a defrontar-se com a óbvia

escolha entre a infidelidade e a castidade.

Em todo caso, procedendo a um exame retrospectivo, ele

identificou o motivo com o efeito — e o efeito foi espiritual.

Bramacharya, “compreendida plena e devidamente”, escreveu ele

em 1924, “significa a busca de Brahma”, ou de Deus. “Significa

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controle de todos os sentidos, a toda hora, em todo lugar, em

pensamento, em palavras e em ação.” Inclui, e, ainda assim,

transcende a restrição sexual; abarca a restrição na dieta, nas

emoções, no falar. Exclui a violência, a inverdade, o ódio e azanga. Cria equanimidade de espírito. É a ausência de desejo. “Os

brahmacharis perfeitos”, presumia Gandhi, “são perfeitamente

despidos de pecado. Encontram-se, portanto, perto de Deus. São

como Deus.” Era a isso que ele aspirava. Integrava a última etapa,

na auto transformação.

Na renúncia, o difícil não é renunciar ao conforto, ao luxo e

aos prazeres. Muita gente poderia cancelar as refeições

abundantes, o guarda-roupa completo, a residência fina, etc.; é o

próprio ego que essa gente não pode cancelar. O eu que se

encontra envolto, sufocado, em coisas materiais — que inclui a

posição social, a popularidade e o poder —, é o único eu que essa

gente conhece, e que não abandonará nunca por um novo eu

ilusório, por uma vida diferente, despojada dos ouropéis materiais,que talvez nunca seja atingida, que talvez não exista, ou, em todo

caso, não existe para essa gente, nem ao seu redor. Gandhi,

entretanto, teve a coragem de pular do chão sólido de seu velho eu

para o desconhecido, onde, por algum dom imperscrutável, sabia

que poderia encontrar um ponto de apoio, de onde lhe fosse

possível mover seu mundo. O ato não foi fácil. Deve ter sido

fisicamente doloroso. Ele era poderosamente sexuado; as

mulheres o atraíam, mesmo depois de ele fazer o voto. Possuía um

“estômago capaz”, dizia ele, e um apetite robusto. Estava

ganhando bem e poderia tornar-se um advogado muito rico. A

castidade e a pobreza voluntárias, portanto, representavam para

ele esforços penosos. Gandhi podia suportá-las, podia até provocá-

las, porque acreditava firmemente em alguma coisa, porque tinha

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uma causa. Com fé, a renúncia não constitui sacrifício; substitui

um prazer por outro. Alguns fazem uma doação; Gandhi deu-se a

si mesmo — e encontrou-se a si próprio. A quantidade da doação é

determinada pela intensidade da crença. “Renuncie a uma coisa”,escreveu Gandhi, “somente quando desejar tanto alguma outra,

que a coisa renunciada nenhuma atração mais exerça, ou quando

parecer que ela está interferindo no que é mais intensamente

desejado.”

A vida casta e austera constituía uma espécie de sublimação

que reforçava as paixões sociais de Gandhi. A renúncia redobrava

seu desejo de trabalhar para o bem-estar comum. Sendo menos

carnal, tornava-se menos egocêntrico. Elevando-se acima do

material, libertava-se para poder trabalhar mais decididamente

em favor de seus ideais. Por certo, as tempestades continuaram a

bramir dentro dele; agora, contudo, podia dominá-las, a fim de

gerar mais força para seus propósitos públicos.

A renúncia apresentava uma vantagem adicional direta: opovo confiava mais nele. Talvez porque tivessem sido explorados e

martirizados ao longo de séculos e deixados na dependência

irremediável de seus próprios parcos recursos, os indianos

encaravam com suspeita as pessoas que lhes ofereciam presentes.

Suspeitavam que no ato houvesse interesse pessoal, ou receavam

uma armadilha. Achavam difícil acreditar que alguém pudesse dar

alguma coisa a troco de nada. Haviam passado por excessivo

número de situações em que os ricos e os poderosos apenas

tomavam, nunca davam. Por essa razão, assim que os indianos se

convencem completamente do desprendimento de uma pessoa,

cercam-na de devoção desenfreada e de obediência desmedida. Tal

foi a recompensa de Gandhi.

Mais confiante em si mesmo e nos seus sequazes, o novo

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Gandhi enfrentou o governo sul-africano. No decorrer dos oito

anos seguintes, lutou contra ele, e, ao fim, venceu.

8

Alma-força

Henry Polak refere a observação de Gandhi, na África do Sul,

de que “Os homens dizem que eu sou um santo, perdendo-me a

mim mesmo em política. O fato é que eu sou um político fazendo o

máximo possível para ser um santo”. Na verdade, a política de

Gandhi era indistinguível de sua religião. “Meu patriotismo”, disse

ele, “é subserviente à minha religião.”

Em política, apegava-se a considerações morais; e, na

qualidade de santo, pensava que seu lugar não se encontrava

numa gruta, nem num claustro, e sim no lufa-lufa da peleja dopovo em prol de seus direitos e da justiça. A religião de Gandhi fê-

lo político; e sua política foi religiosa.

Político feito santo, ou santo feito político, e com toda a

eficiência adicional que a renúncia lhe proporcionava, Gandhi não

poderia nunca ter realizado o que realizou na África do Sul e na

Índia, não fosse a existência de uma arma peculiarmente sua. Era

uma arma sem precedentes, e permaneceu inimitada; em verdade,

tratava-se de algo tão raro, que ele não conseguiu encontrar um

nome para lhe dar, até que finalmente lhe ocorreu o de

“satyagraha ”. Satia significa verdade, o equivalente de amor, e

ambos são atributos da alma. Agraha é  firmeza ou força.

Satyagraha se traduz, portanto, por alma-força.

“Satyagraha ”, escreveu Gandhi, “é  a reivindicação da

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verdade não pela inflição do sofrimento ao opositor, e sim ao

próprio eu.” O opositor deve ser apartado do erro pela paciência e

pela simpatia. Apartado, não esmagado. A satyagraha assume

uma interação benéfica e constante entre os interlocutores, tendoem vista a sua reconciliação final. A violência, os insultos e a

propaganda superacalorada obstruem o caminho para essa

finalidade.

Gandhi nunca procurou humilhar nem derrotar os brancos,

seja na África do Sul, seja na Índia britânica. Desejava convertê-

los. Acreditava que, se pusesse em prática o Sermão da

Montanha, o general Jan Christiaan Smuts se recordaria de que

era cristão.

A satyagraha reverte a política da pena de talião, de olho por

olho, que faz a todos cegos — ou cegos de fúria. Essa orientação

paga com o bem o mal, até que o malfeitor se canse de praticar o

mal. Na África do Sul, e, por vezes, na Índia, Gandhi mostrou que

seres humanos comuns eram capazes de elevação de mente,mesmo sob a pressão de circunstâncias muito irritantes.

A satyagraha enfrentou sua primeira prova quando a

Transvaal Government Gazette, de 22 de agosto de 1906, publicou

o texto de uma lei que exigia que todos os homens, mulheres e

crianças acima de oito anos de idade, de nacionalidade ou de

descendência indianas, se submetessem ao registro oficial, bem

como à tomada de impressões digitais, sob pena de multa, prisão

e deportação da província. As mesmas penalidades seriam

infligidas a qualquer indiano encontrado sem o certificado de

registro.

Gandhi afirmou a uma grande massa popular reunida em

comício, no Teatro Imperial de Johannesburg, em 11 de setembro

de 1906, que a referida lei fora concebida contra os indianos,

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constituindo, portanto, uma afronta a eles e à Índia.

“O governo”, afirmou ele, “afastou-se de todo senso de

decência.”

E pediu ao auditório de três mil pessoas que jurasse desafiara ordenação e ir para o cárcere, ou, se fosse necessário, para a

morte. Advertiu os ouvintes de que a luta seria longa.

“Mas”, acentuou, “posso declarar, com denodo e coragem,

que enquanto existir ainda que seja um pugilo de homens fiéis ao

seu juramento, só poderá haver um fim para a luta; e esse fim é a

vitória.”

Este era um dos princípios básicos da satyagraha: a alma-

força não depende da quantidade. Depende do grau de firmeza.

A Lei de Registro dos Asiáticos foi aprovada em 31 de julho

de 1907. Gandhi, afirmando que “mesmo uma política monstruosa

se torna, ao seu tempo, normal, desde que sejamos fiéis a nós

mesmos”, chefiou seus compatriotas na recusa ao registro. Foi

sentenciado a dois meses de prisão. Pouco tempo depois, umemissário do general Smuts se dirigiu à prisão, com a proposta de

revogar a lei, desde que os indianos se registrassem

voluntariamente. Gandhi foi levado à sala de Smuts, onde,

envergando o uniforme da prisão, discutiu e aceitou a proposta.

Ele e outros indianos foram, então, postos em liberdade.

Regressando a Johannesburg, Gandhi encontrou severa

oposição por parte de indianos que diziam que a lei deveria ser

revogada primeiro, antes do registro.

“Que acontecerá se Smuts deixar de cumprir sua palavra?”,

perguntaram.

 — Um satyagrahi  — respondeu ele — diz adeus ao medo.

Portanto, nunca tem medo de confiar no contendor. Ainda que o

contendor faça jogo falso, com ele, vinte vezes, o satyagrahi está

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sempre pronto a confiar nele pela vigésima primeira vez, porque

uma confiança implícita na natureza humana é a própria essência

do seu credo.

A seguir, explicou a maneira pela qual se havia prontificadoa transigir com o registro voluntário: curvar-se à coação reduz a

dignidade e a estatura do indivíduo; mas as dificuldades do

governo deviam ser tomadas em consideração; esse governo se

encontrava sob forte pressão da parte dos brancos que

alimentavam o preconceito de raça. O registro fora concebido para

evitar que os indianos entrassem ilegalmente no Transvaal, e —

declarou Gandhi — visto que os indianos não pretendiam entrar,

nem levar imigrantes à província, “sub-repticiamente, ou por meio

de fraude”, que razão havia para que não se registrassem? A

colaboração, livremente proporcionada, era generosa, e, portanto,

enobrecedora. Conseqüentemente, a revogação do registro

compulsório modificava a situação.

Na reunião em que essas observações foram feitas, um patãgigantesco, nativo das inóspitas montanhas do noroeste da Índia,

perto do passo de Khyber, ergueu-se e gritou:

 — Nós não deixaremos nunca que nos tirem as impressões

digitais, nem permitiremos que os outros o façam! Juro, tomando

Alá por minha testemunha, que matarei o primeiro homem a

requerer o registro.

Gandhi respondeu que ele próprio seria o primeiro a

registrar-se.

 — A morte — acrescentou ele — é o fim inevitável de toda

vida. Morrer pela mão de um irmão, em vez de por doença ou por

qualquer outro meio não pode constituir, para mim, motivo de

tristeza. E se, mesmo em tal caso, eu me vir livre do pensamento

da zanga ou do ódio para com aquele que me tirar a vida, saberei

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que isso redundará em meu bem-estar perpétuo; e ele próprio

conhecerá mais tarde minha perfeita inocência.

Ninguém poderia ter previsto que, quarenta e dois anos

depois, Gandhi morreria pelas mãos de um irmão. O patã mantevesua palavra. Quando Gandhi se pôs a caminho da repartição de

registro, Mir Alam, homem de compleição robusta, com um metro

e oitenta de altura, avançou sobre ele e golpeou-o pesadamente na

cabeça. “Perdi os sentidos, imediatamente, com as palavras ‘ Ei

Rama ’   (ó Deus) em meus lábios”, assegura a narrativa feita pelo

próprio Gandhi. Murmurando estas mesmas palavras, destinava-

se ele a morrer no dia 30 de janeiro de 1948.

Mir Alam foi preso, com outros patãs; mas Gandhi obteve-

lhes a soltura.

 — Eles pensavam estar agindo corretamente — esclareceu — 

, e não tenho desejo de os processar.

Ao restabelecer-se do ataque, Gandhi registrou-se, e muitos

indianos lhe seguiram o exemplo. Qual não foi seu embaraço,quando Smuts se recusou a cumprir a promessa que fizera, no

sentido de revogar a lei do registro compulsório.

 — Aí o tendes vós — diziam os indianos, com sarcasmo, a

Gandhi. — Nós nos cansamos de dizer-vos que sois

excessivamente crédulo.

Às quatro horas, no dia 16 de agosto de 1908, mais de dois

mil indianos se congregaram na Mesquita de Hamidia, em

 Johannesburg, e atiraram seus certificados de registro dentro de

um caldeirão cheio de parafina comburente. O correspondente do

Daily Mail, de Londres, comparou o episódio ao Tea Party, uma

histórica manifestação de protesto ocorrida em Boston, na qual se

atirou ao mar uma partida de chá importado.

O escritório de advogado de Gandhi, em Johannesburg,

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tornou-se, assim, o quartel-general do movimento satyagraha. Em

outras ocasiões, Gandhi permanecia na Comunidade Phoenix, em

Natal, solicitando o apoio dos indianos daquela província, os quais

superavam de muito, em número, os treze mil do Transvaal. Viviaali uma existência frugal, espartana, dormindo ao ar livre, sobre

um pano fino, exceto quando chovia. Evitava todos os prazeres

materiais, e concentrava-se na batalha vindoura. “Um satyagrahi ”, 

escreveu ele, “tem de ser, se possível, ainda mais dotado de poder

de concentração do que um equilibrista de corda bamba.” Estava

em treinamento para o combate moral. A emergência já se havia

declarado: os indianos tinham decidido desafiar a proibição da

emigração indiana para o Transvaal e enfrentar a pena de prisão

circulando sem os certificados de registro.

A essa altura, Gandhi teve um gesto de dramática

simplicidade. Os indianos de Natal tinham-lhe pedido que lhes

permitisse pôr à prova a proibição da emigração para o Transvaal.

Ele escolheu um, depois outro, posteriormente outros mais,inclusive seu filho mais velho, Harilal, incumbindo-os de

comparecer pacificamente ao posto de fronteira do Transvaal e

tentar entrar. Todos foram detidos e ficaram três meses na prisão.

Gandhi juntou-se a eles. O mesmo fizeram dezenas de indianos do

 Transvaal, que disseram à polícia que não possuíam certificados.

Gandhi fez-se cozinheiro de setenta e cinco de seus

compatriotas numa prisão. Realizou, igualmente, trabalhos

pesados, que maltrataram suas mãos, e ofereceu-se

espontaneamente para limpar os vasos sanitários.

“O verdadeiro caminho para a felicidade”, escreveu Gandhi,

num artigo dessa época, “está em ir para a prisão e lá suportar

sofrimentos e privações, no interesse da própria pátria e da

própria religião.”

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A alma do encarcerado — ao que ele descobriu — era livre.

Nisso Gandhi se fez eco de Henry David Thoreau, o rebelde da

Nova Inglaterra, que escreveu, sobre sua própria experiência de

prisão: “Não me senti, sequer por um momento, confinado; e asmuralhas se me afiguravam um grande desperdício de pedra e de

argamassa”. Gandhi transcreveu estas palavras do livro Civil

disobedience, de Thoreau, e estudou todo esse ensaio durante sua

segunda estada na prisão. Qualificou o livro de um tratado de

mestre, que “deixou profunda impressão em mim”. Havia uma

característica de Thoreau em tudo quanto Gandhi fazia. Thoreau e

seu amigo Ralph Waldo Emerson tinham lido o Bhagavad-Gita e

alguns dos sagrados Upanishads hindus. Assim, Thoreau, em

Massachusetts, tomou de empréstimo a Índia de Gandhi e pagou

a dívida com palavras que chegaram até ele na cela da África do

Sul.

“A única obrigação que posso assumir”, disse Thoreau, no

seu Civil disobedience, “é a de fazer, a qualquer hora, o que eupenso que seja correto.” Achava ele que era muito mais honroso

ser direito do que observar a lei. Em 1849, Thoreau escrevia

protestando contra a escravidão e a invasão do México. “Há

milhares de pessoas, que em sua opinião se opõem à escravidão e

à guerra”, declarou ele, “e que, no entanto, nada fazem para pôr

fim a elas. Existem novecentos e noventa e nove patronos da

virtude, para cada homem virtuoso.”

Como Gandhi, Thoreau acreditava na capacidade de uma

minoria moral resoluta, para corrigir os males da maioria. “Sei

muito bem”, escreveu Thoreau, “que, se mil, se cem, se dez

homens cujos nomes eu poderia mencionar — se apenas dez

homens honestos  —, que digo? se um homem honesto, neste

Estado de Massachusetts, deixando de possuir escravos,

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resolvesse, de fato, retirar-se dessa associação (com o governo), e

fosse trancado por esse motivo na cadeia do município, isso

poderia significar a abolição da escravidão dos Estados Unidos.

Portanto, não importa quão pequeno possa ser o começo; o que ébem feito uma vez, está feito para sempre. Mas nós gostamos mais

de conversar a esse respeito...”

 Thoreau, pessoalmente, recusou-se a pagar impostos, e foi

encerrado na prisão; mas um amigo pagou por ele, e ele foi

libertado em vinte e quatro horas. Emerson declarou, no seu

Ensaio sobre política: “Não me recordo de um único ser humano

que haja continuadamente negado a autoridade das leis,

baseando-se no simples fundamento de sua própria natureza

moral”. Emerson morreu em 1882, e não podia ter conhecido

Gandhi, que, no momento exato em que lia Thoreau, se

encontrava no cárcere por desobedecer às leis injustas, com base

em fundamentos morais, e que continuaria a fazer isso,

invariavelmente, pelo resto da vida.O conde Leon Tolstói, com quem Gandhi se correspondeu em

1909 e em 1910, nutria a mesma fé na força do indivíduo moral e

na desobediência civil. “A posição dos governos, na presença dos

homens que professam o cristianismo”, escreveu Tolstói, em The

kingdom of God is within you (O reino de Deus está dentro de vós),

“é tão precária, que é preciso muito pouco para reduzir a cacos

seu poderio.” Tolstoi definiu o cristão da seguinte forma: “Ele não

entra em disputa com seu vizinho; não ataca, não emprega a

violência; ao contrário, ele próprio sofre, sem opor resistência, e,

devido a essa mesma atitude em face do mal, não somente se

liberta, mas também ajuda a libertar o mundo de toda autoridade

exterior”.

Através do trabalho manual, da renúncia à propriedade, da

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austeridade e da pregação cristã, Tolstói, nos seus últimos anos,

procurou criar uma síntese entre a religião e a conduta. Também

 Thoreau e Ruskin procuraram uma correspondência mais íntima

entre as finalidades e os atos do homem. O artista que existianeles lutava pela consecução da integridade que resulta da

integração das palavras com as crenças, e de ambas as coisas com

as realizações.

Romain Rolland, que se colocara sob a influência de Tolstoi,

fez uma hábil comparação entre Tolstói e Gandhi. “Em Gandhi”,

escreveu Rolland, em 1924, “tudo é natural, modesto, simples,

puro, enquanto todas as suas lutas são sublimadas pela

serenidade religiosa, ao passo que, em Tolstoi, tudo é revolta

orgulhosa contra o orgulho, ódio contra o ódio, paixão contra a

paixão. Tudo, em Tolstói, é violência, até mesmo sua doutrina de

não-violência.”

 Tolstoi era sacudido por tempestades; Gandhi, calmo e

equânime. A esse respeito, muitos associados de Gandhi eram, naverdade, tolstoianos. Por fazer, a toda hora, o que considerava

direito, e não o que se lhe afigurava oportuno, cômodo, proveitoso,

popular, seguro ou impressivo, Gandhi eliminou os conflitos

interiores de sua personalidade, e, conseqüentemente, adquiriu

força para se empenhar em pendências pacientes e pacíficas com

aqueles que considerava estarem praticando o mal. Tomava a

sério as palavras e as idéias; e achava que, tendo aceito um

preceito moral, tinha o dever de viver de acordo com ele. Então,

podia pregar esse preceito. Ele pregava o que praticava.

Na raiz de inúmeros males de nossa civilização, encontra-se

a discrepância entre a palavra, o credo e a ação. É a fraqueza das

Igrejas, dos Estados, dos partidos, das pessoas. Isso dá, aos

homens e às instituições, personalidades divididas. Gandhi tentou

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sanar isso por meio do estabelecimento da harmonia no lugar da

discrepância; e, à medida em que progressivamente ia

conseguindo isso, tornava-se feliz, repousado e alegre.

Gandhi era dono de perfeita saúde mental, porque nele apalavra, o credo e a ação compunham uma única coisa; só ele era

um integrado. Esse é o significado de integridade. “A verdade vos

fará livre” — e cheio de saúde. Por meio da verdade, Gandhi

libertou-se, a fim de ir para a prisão.

9

Vitória feliz

Para receber ordem de prisão, um indiano do Transvaal

precisava apenas partir com destino à província de Natal e

regressar à sua casa, no Transvaal. Isso viola a proibição deimigração, e era punido com um a três meses de cadeia. Alguns

homens do grupo da alma-força que ofereceram resistência

cumpriram oito ordens de prisão, recebendo do tribunal sempre

uma nova sentença, no momento de completar o cumprimento da

anterior. Em determinada ocasião, dos treze mil homens,

mulheres e crianças de descendência indiana existentes no

 Transvaal, dois mil e quinhentos se encontravam no cárcere, e

seis mil haviam fugido do Estado. Nenhuma solução se encontrava

à vista.

Em 1909, Gandhi enviou Henry Polak à Índia, e ele próprio

foi para a Inglaterra. Achava que um povo ressentido e

administradores razoáveis de um império predominantemente de

cor poderiam prestar auxílio na luta contra o preconceito de cor.

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Se a Índia se fizesse claramente consciente da realidade sul-

africana, a preocupação do vice-rei seria comunicada a Londres,

que, adequadamente instigada, poderia aconselhar comedimento a

Smuts. Essa é a técnica burocrática, agora madura, mas que,naquela época, se encontrava em seu nascedouro.

Gandhi ganhou o apoio de muitos liberais e de muitos

imperialistas esclarecidos, na Inglaterra. Embora a sua viagem

fosse destituída de resultados concretos imediatos, Gandhi obteve

êxito na tarefa de transformar a questão dos indianos da África do

Sul em uma das maiores dores de cabeça para o império britânico.

Aí estava a semente do triunfo final.

Regressando à África do Sul em fins de 1909, Gandhi

resolveu criar “uma espécie de comunidade cooperativa” em

miniatura, em cujo seio os resistentes civis “seriam treinados para

viver uma nova vida simples, em harmonia uns com os outros”. O

movimento precisava de um lar para os dependentes dos

resistentes que se encontrassem presos, e também para ospróprios resistentes, nos intervalos entre as ordens de prisão de

que fossem alvo. De conformidade com isso, Herman Kallenbach,

o segundo na hierarquia do comando do movimento satyagraha,

adquiriu mil e cem acres de terras em Lawley, a cerca de trinta e

quatro quilômetros de Johannesburg, e deu-os aos resistentes

livres. Kallenbach era um judeu alemão, alto, corpulento, de

cabeça quadrada, com enormes bigodes e pincenê. Rico arquiteto,

fizera-se budista, pugilista, lutador, aluno do famoso Sandow. Nas

palavras de Gandhi, era homem “de sentimentos fortes, amplas

simpatias, e simplicidade de criança”. Às terras por ele adquiridas

e doadas, Gandhi denominava Comunidade Tolstói. Gandhi, com

a família, e Kallenbach passaram a viver lá.

“Eu preparo o pão de que se precisa na fazenda”, escreveu

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Gandhi a um amigo que se encontrava na Índia. “A opinião geral,

por aqui, é a de que é bem-feito. Não pomos, nele, levedura, nem

farinha de trigo. Acabamos de preparar certa quantidade de geléia,

com laranjas produzidas na comunidade. Também aprendi apreparar um xarope de café. Pode ser dado, como bebida, até às

crianças.”

Gandhi era padeiro, fazia xarope de café e geléia. Kallenbach

ensinou-o a fazer escrivaninhas, mesinhas com gavetas, carteiras

escolares e também sandálias de couro. Da mesma forma, Gandhi

confeccionava blusas para sua esposa, que, ele se orgulhava de

dizer, ela realmente usava. Ele auxiliava nos serviços de cozinha;

evitava que as mulheres brigassem; e fazia as vezes de gerente-

geral. Ocasionalmente, quando não podia deixar de dar atenção a

um processo judiciário, deixava a fazenda às duas horas da

manhã, caminhava cerca de trinta e quatro quilômetros até a

cidade e voltava a pé, na mesma noite. Um dia, lembrava ele, “eu

andei setenta quilômetros”.Gandhi assegurava que sua resistência física procedia de

sua vida casta e uma dieta saudável. Ele e Kallenbach evitavam

alimentos cozidos, limitando-se à ingestão de pratos frugívoros,

compostos de bananas, tâmaras, limões, laranjas, abacaxi e azeite

de oliva. Tendo lido a respeito das crueldades praticadas na Índia,

para fazer com que as vacas e as fêmeas de búfalos produzissem o

máximo de leite, os dois deixaram de consumi-lo.

A população da comunidade variava de acordo com o

número dos satyagrahi que se encontrassem na prisão; por vezes,

subia a mais de cem. Kallenbach dividia com Gandhi a tarefa de

ensinar às crianças religião, geografia, história, aritmética e outras

matérias.

As idéias de Gandhi sobre a educação mista eram

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flagrantemente contrárias às convencionais. Ele encorajava os

meninos e as meninas, entre os quais já se contavam alguns

adolescentes, a banhar-se juntos, na fonte. Para garantia das

meninas, ele estava sempre presente, e “meus olhos seguiam asmeninas, como os olhos de uma mãe seguem uma filha”. Não há

dúvida de que os olhos dos meninos também as seguiam. À noite,

todos dormiam num terraço aberto, e um grupo mais jovem punha

suas camas ao redor da de Gandhi. Os “lugares de dormir”

ficavam apenas a pouco mais de meio metro um do outro; mas

Gandhi dizia que os jovens sabiam que ele os amava “com amor de

mãe”; ademais, não havia ele ensinado, a esses jovens, o

autocomedimento?

Como era inevitável, houve um incidente, em que se viram

implicados uma menina e dois meninos; em conseqüência, Gandhi

andou em busca de um recurso destinado “a esterilizar os olhos

pecadores” dos garotos. A busca manteve-o acordado a noite

inteira, mas pela manhã já o havia encontrado: pediu à meninaque raspasse a cabeça. Ela se mostrou surpresa e ressentida; mas

ele foi implacável, e ela finalmente concordou. Ele procedeu à

raspagem.

Comentando esse episódio, anos mais tarde, Gandhi

explicou sua inocência por meio da ignorância. Mas por que

motivo era ele ignorante? Desfez uma parte do mistério

acrescentando que sua fé e sua coragem se encontravam no

apogeu, na Comunidade Tolstói. A fé ilimitada em si mesmo por

vezes o cegava, impedindo-o de ver as hesitações, os sentimentos,

as fraquezas dos seus amigos. Ele media as capacidades dos

outros pelo seu próprio zelo. Era a espécie de cegueira que apaga

obstáculos e que conduz a grandiosas venturas.

Entrementes, o movimento de resistência passou a ser uma

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rotina de entrada e saída da prisão, aliviada pela parcimônia de

que se dispunha na comunidade. Não acontecia muito mais do

que isso. Os espíritos, com freqüência, se abatiam; mas não o de

Gandhi. Quando Gopal Krishna Gokhale, líder preeminente domovimento nacionalista indiano na Índia, chegou, em outubro de

1912, a fim de estudar a situação sul-africana, pediu, com

seriedade e aspereza, a Gandhi que lhe fornecesse uma lista dos

resistentes verdadeiramente dignos de confiança. Gandhi escreveu

sessenta e seis nomes, mas admitiu que seu número poderia cair

para dezesseis. A estes dava o nome de “o meu exército de paz”.

Contudo, pouco importava a insignificância das fileiras. Gandhi

nunca se sentiu abalado. O governo — disso ele estava certo —

acabara cedendo à alma-força. Gokhale exercia grande influência

sobre o povo, na Índia, bem como sobre seus governantes

britânicos. O novo governo da União Sul-Africana, chefiado pelos

generais Botha e Smuts, na esperança de que ele pudesse levar

uma boa impressão, proporcionou-lhe recepção calorosa,oferecendo-lhe o máximo de facilidades para visitar o país.

Prometeram-lhe, igualmente, revogar a proibição imigratória e

abolir a taxa anual de três libras esterlinas que pesava sobre os

trabalhadores indianos que concluíssem o seu contrato de

trabalho e ficassem na África do Sul.

“Duvido muito”, disse Gandhi, quando Gokhale lhe

comunicou essa promessa. “Vós não conheceis os ministros como

eu os conheço.”

Gandhi respeitava Gokhale; afirmava que ele era “como o

Ganges, em cujas águas, refrigerantes e sagradas, a gente se

demorava a banhar-se”; e aceitava-o como sendo o seu guru, ou

mentor político; mas ele não concordava com as opiniões de quem

quer que fosse, por mais que o exaltasse ou o amasse, se as

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considerasse erradas. Gokhale considerava a promessa Botha-

Smuts como indicadora do fim da luta sul-africana. De

conformidade com isso, disse a Gandhi que regressasse “à Índia,

dentro de doze meses; e não aceitarei nenhuma das suasdesculpas”. Gandhi, contudo, mostrou-se teimoso; e Gokhale

revidou, dizendo: “Vós agireis sempre à vossa maneira”.

Entretanto, ao regressar a Bombaim, ele declarou, numa reunião

no edifício da prefeitura, em dezembro de 1912, que “Gandhi tem,

nele próprio, a maravilhosa força espiritual de transformar os

homens comuns, que lhe estão ao redor, em heróis e em mártires”.

“Na presença de Gandhi”, acrescentou, “a gente se sente

envergonhado de fazer algo indigno; em verdade, a gente sente

receio até de pensar algo indigno.” Defrontando-se com os homens

preeminentes, como Gokhale, Gandhi sentia respeito e humildade,

e até mesmo receio; mas, envolto nesses sentimentos, tornava-se,

por vezes, impenetrável aos pensamentos deles. Gandhi sentia

desconfiança, sendo, contudo, independente. A confiança em simesmo o enchia de uma energia exuberante e de um brilho a que

nenhum crítico e, naturalmente, nenhum discípulo podia resistir.

O desenrolar dos acontecimentos demonstrou o acerto de

Gandhi. Smuts não tardou a anunciar, na Assembléia, que os

empregadores europeus de mão-de-obra contratada, em Natal,

não permitiriam a revogação da taxa de três libras esterlinas que

pesava sobre os ex-servos. Isso foi considerado uma ruptura da

promessa Botha-Smuts a Gokhale; e grandes massas de indianos

contratados e ex-contratados tomaram voluntariamente parte na

desobediência civil.

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Às duas pendências — a taxa e a proibição contra a

imigração — uma terceira se acrescentou quando um juiz da Corte

Suprema da colônia do Cabo sentenciou que somente os

casamentos cristãos eram legais. “Assim sendo, eu não sou vossa

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esposa”, exclamou Kasturbai, horrorizada. Com efeito, os

casamentos hindus, muçulmanos e parses foram invalidados, e as

esposas indianas passaram a ser consideradas concubinas.

Grande número de mulheres, então, se juntou aos grupos dosresistentes ativos.

Gandhi planejou sua campanha. Como primeiro passo, um

grupo de “irmãs”, de Natal, deveria enfrentar a ordem de prisão,

entrando no Transvaal sem licença; simultaneamente, um outro

grupo de irmãs, do Transvaal, entraria em Natal. As irmãs de

Natal foram presas; a indignação alastrou-se e conquistou novas

recrutas. As irmãs do Transvaal, entretanto, não foram presas.

Obedecendo a instruções prévias, elas se dirigiram às minas de

carvão de Newcastle, e incitaram os mineiros indianos a declarar

greve. Em conseqüência, o governo prendeu as mulheres,

aplicando, a cada uma delas, a pena de três meses de prisão. A

greve difundiu-se. Gandhi rumou para Newcastle. Os proprietários

das minas cortaram o fornecimento de luz e de água das casas dacompanhia ocupadas pelos grevistas indianos.

Acreditando que a greve duraria longo tempo, Gandhi

advertiu os grevistas, aconselhando-os a se retirar das suas

moradias, levando consigo alguns lençóis e alguma roupa, e a

armarem um acampamento ao ar livre. Em poucos dias, cinco mil

indianos, aproximadamente, estavam vivendo a céu aberto.

Gandhi não sabia o que fazer com eles. Como poderia ele

alimentar e abrigar semelhante multidão? Por fim, decidiu levá-

los, em marcha, para o Transvaal, e “fazer com que fossem

entregues, são e salvos, à prisão”. Antes de desfazer o

acampamento, entretanto, Gandhi telegrafou ao governo, dizendo-

lhe que podia prender o “exército de paz”, imediatamente, antes

que ele partisse para o Transvaal. O governo não estava inclinado

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a fazer-lhe favor algum dessa ordem. Uma semana depois, Gandhi

telefonou a Smuts, em Pretória, renovando o pedido de imediato

confinamento no cárcere, em Natal, mas oferecendo-se para enviar

os homens de regresso às minas, desde que a taxa de três librasesterlinas fosse revogada. O secretário de Smuts disse:

“O general Smuts não terá coisa alguma a fazer convosco.

Vós podeis agir como bem vos aprouver”.

Gandhi propôs, então, que se transpusesse a fronteira de

Natal e se passasse para o Transvaal; e se, como desconfiava, o

governo do Transvaal também se recusasse a abrir os cárceres ao

seu “exército”, este avançaria com destino à Comunidade Tolstói,

por meio de oito marchas diárias de cerca de trinta e três

quilômetros cada uma. Enquanto planejava a invasão (os

abastecimentos teriam de ser enviados a cada fim de etapa),

Gandhi advertiu os resistentes quanto às agruras que os

aguardavam, e pediu, ao mesmo tempo, que os menos dispostos

fossem para suas casas.Às seis e meia da manhã de 6 de novembro de 1913, Gandhi

contou suas forças. Havia dois mil e trinta e sete homens, cento e

vinte e sete mulheres e cinqüenta e sete crianças. “Oferecemos

nossas preces”, escreveu Gandhi, “e começamos a marchar em

nome de Deus.”

A polícia, na fronteira do Transvaal, permitiu que a coluna

em marcha passasse. Algumas das mulheres carregavam seus

bebês nos quadris ou às costas. A maior parte das pessoas estava

descalça. Aquilo era uma multidão variegada que falava tâmil,

télego, guzerate, hindi e outros idiomas indianos, e que se vestia

com diferentes trajes da Índia; mas todos eram leais para com o

pequeno general da paz, cuja ordem de batalha era: “Não resistir à

prisão; submeter-se ao açoite da polícia; comportar-se bem e

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asseadamente”.

Ao final do primeiro dia, Gandhi foi preso, mas posto em

liberdade depois de paga a fiança, devido às suas

responsabilidades para com os que marchavam. Na segundanoite, foi novamente preso, levado a um tribunal, e posto em

liberdade. Na quarta noite foi preso e conservado na prisão. A

marcha rumo à Comunidade Tolstoi prosseguiu sem ele.

Na manhã seguinte, quando a coluna chegou a Balfour, seus

componentes foram arrebanhados e levados para dentro de trens

que já se encontravam à espera e que os transportaram de volta

às minas, em Natal; ali, os indianos foram todos encerrados à

força dentro de cercados de arame, guardados por empregados da

companhia mineira, que haviam prestado juramento na qualidade

de condestáveis especiais. Mas os indianos se recusaram a descer

às minas de carvão.

Outros trabalhadores contratados abandonaram o trabalho

em sinal de solidariedade para com os mineiros. O Estadoconsiderava tais homens escravos, sem o direito à greve; e enviou

soldados para os reprimir. Num determinado lugar, os militares

fizeram fogo, matando e ferindo numerosos indianos.

A essa altura, cinqüenta mil trabalhadores contratados se

encontravam em greve; vários milhares de indianos alforriados

estavam na cadeia. Essa notícia foi telegrafada para a Índia, que

rugiu seu protesto. Lorde Hardinge, vice-rei britânico, num

enérgico discurso proferido em Madrasta, infringiu a norma da

não-interferência, criticando incisivamente as autoridades sul-

africanas, e pedindo a constituição de uma comissão de inquérito.

Os cabos telegráficos, entre a Índia e Londres e entre Londres e a

África do Sul, zuniram, transportando extensas mensagens. Em

18 de dezembro de 1913, o governo pôs em liberdade Gandhi,

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Polak e Kallenbach; estes dois últimos haviam sido presos com o

primeiro.

“Todos nós”, comentou Gandhi, “nos sentimos desapontados

quando fomos soltos.” A desobediência civil, uma vezdesencadeada devidamente, não precisa de líderes.

Ao mesmo tempo, o governo sul-africano nomeou uma

comissão, encarregando-a de investigar as queixas dos residentes

indianos. Gandhi aplicou-lhe imediatamente a denominação

“junta empacotada, destinada a vendar os olhos do governo e da

opinião pública, tanto da Inglaterra como da Índia”. Sir William

Solomon, presidente da junta, possuía — na declaração de Gandhi

 — “integridade e imparcialidade”; mas o sr. Ewald Esselen nutria

preconceitos, e o terceiro membro, coronel J. S. Wylie, fora um dos

chefes do frustrado linchamento ocorrido quando os dois navios,

transportando oitocentos indianos, haviam chegado a Durban, em

 janeiro de 1897. Gandhi propôs que se incluísse na comissão

vários indianos e elementos favoráveis aos indianos.Prevendo dificuldades, Gandhi preparou-se para lutar. A

uma grande reunião de massa, ele apareceu vestindo uma

camisola que lhe chegava até os joelhos, um lençol comprido e

sandálias. Havia abandonado as roupas ocidentais — esclareceu

ele — em sinal de luto pelos mineiros sacrificados durante a greve.

 — Estais vós preparados para compartilhar a sorte daqueles

nossos compatriotas que sob a laje fria hoje repousam?

 — Sim, sim — vozearam os presentes.

 — Espero — continuou Gandhi — que todo homem, mulher

e criança já crescida deixe de levar em consideração seus salários,

seus negócios e mesmo suas famílias ou seus próprios corpos.

Gandhi esperava, de gente comum, um gesto de auto-

abnegação à guisa do Gita. Obteve-o, porque aquela era gente

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religiosa; e ele acentuou que sua luta era “uma luta pela liberdade

humana, e, portanto, uma luta pela religião”.

De conformidade com isso, quando Smuts se recusou a

modificar e também a ampliar a comissão de queixas, Gandhianunciou que ele e os indianos que desejassem juntar-se a ele

partiriam de Durban, Natal, no dia de ano-novo de 1914, e

provocariam uma ordem de prisão.

Enquanto essa ameaça de uma nova marcha de indianos em

massa pesava sobre a cabeça do governo, os empregados brancos

de todas as estradas de ferro sul-africanas se declararam em

greve. Gandhi cancelou imediatamente sua marcha. A alma-força,

explicou ele, nunca tiraria vantagem da fraqueza de seu opositor,

nem contrairia alianças que não fossem de ordem natural. Os

resistentes civis esperavam convencer o cérebro e conquistar o

coração, por meio do sofrimento, da sinceridade e da conduta

ética, e não ferir, humilhar ou amargurar o adversário. As

mensagens de aprovação e de congratulações chegaram emenorme quantidade às mãos de Gandhi, procedendo da Índia, da

Inglaterra, da África do Sul. Smuts, embora ocupado com a greve

ferroviária (a lei marcial havia sido proclamada), convocou Gandhi

para uma conferência. Os indianos advertiram Gandhi quanto a

uma desilusão, recordando-lhe o empenho desrespeitado em

1908, bem como a promessa não-cumprida, feita a Gokhale. Em

resposta, Gandhi citou um provérbio sânscrito: “O perdão é o

ornamento do valoroso”.

A entrevista entre Smuts e Gandhi se prolongou em

negociações. “Gandhi”, disse Smuts, numa das entrevistas que

tiveram, “não desejamos, desta feita, qualquer desentendimento;

não desejamos reservas mentais ou de outra ordem; ponhamos

todas as cartas na mesa.” Esse começo amistoso conduziu a um

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progresso lento, porém contínuo. Cada uma das passagens e cada

uma das palavras, do acordo que se planejava, foi dissecada.

Finalmente, em 30 de junho de 1914, os dois homens sutis

trocaram cartas confirmando os termos do seu pacto. Odocumento, colocado em termos legais na Lei da Libertação

indiana, foi submetido ao exame do Parlamento, na colônia do

Cabo, e aprovado em julho, de conformidade com o “espírito não-

polêmico”, para o qual Smuts havia apelado.

Pelos termos do ajuste, a taxa de três libras esterlinas, que

pesava sobre os antigos trabalhadores indianos contratados, foi

revogada, cancelando-se os pagamentos atrasados; os casamentos

hindus, muçulmanos e parses foram declarados válidos; os

indianos nascidos na África do Sul poderiam entrar na colônia do

Cabo; mas a livre locomoção, entre as províncias da União, foi

proibida em outras circunstâncias que não essas; o trabalho

contratado, procedente da Índia, deveria cessar em 1920; os

indianos livres, entretanto, poderiam continuar a entrar, e asesposas poderiam viajar para a África do Sul, a fim de se juntarem

aos respectivos maridos.

Homenageado numa dúzia de jantares, Gandhi deu, à nova

lei, a denominação “Magna Carta dos Indianos da África do Sul”.

Embora se tratasse apenas de um compromisso, porquanto os

indianos continuariam a ficar segregados em suas províncias e

não poderiam possuir terras no Transvaal, nem comprar ouro

fosse onde fosse, ela constituía, não obstante, uma reivindicação

do princípio da igualdade racial, e removia a “tintura racial”.

Acima de tudo, representava uma vitória da alma-força, que —

escreveu Gandhi, na Indian Opinion  — “se se tornasse universal,

revolucionaria os ideais sociais e liquidaria os despotismos, bem

como o militarismo sempre crescente, sob o qual as nações do

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Ocidente estão gemendo...”

Com sua missão cumprida, Gandhi, cansado mas feliz,

acompanhado pela sra. Gandhi, que estava linda no seu sáribranco com alegres desenhos floridos, e por Herman Kallenbach,

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embarcou para a Inglaterra, em 18 de julho de 1914. Antes de

zarpar, enviou de presente ao general Smuts um par de sandálias

que ele fizera na prisão. Smuts usou essas sandálias em sua

fazenda, perto de Pretória, até 1939, quando, num gesto deamizade, as devolveu a Gandhi, que se encontrava na Índia,

dizendo: “Tenho usado estas sandálias durante muitos verões, a

contar daquela época, muito embora eu sinta não ser digno de

pisar no calçado de um homem tão grande”. Esse estado de alma e

essa generosidade demonstraram ser ele merecedor das simpatias

de Gandhi. Este não havia conseguido uma vitória sobre Smuts;

havia conquistado o próprio Smuts. O ajuste se procedeu, não

quando Smuts deixou de ter forças para lutar, e sim quando ele já

não tinha mais coração para lutar. “Não é possível atirar vinte mil

indianos ao cárcere”, declarou Smuts, nessa oportunidade.

Sentiu-se feliz quando a luta chegou ao fim. Escrevendo em 1939,

em elegante contribuição para um grosso volume comemorativo do

septuagésimo aniversário de Gandhi, Smuts, já então umestadista mundialmente famoso, disse que homens como Gandhi

“nos redimem de uma sensação de lugar-comum e de futilidade, e

constituem uma inspiração para nós, a fim de não nos cansarmos

de fazer o bem... Foi meu destino ser o antagonista de um homem

pelo qual, mesmo naquela época, eu nutria o mais elevado

respeito... Ele nunca esqueceu o fundo humano da situação,

nunca perdeu as estribeiras, nunca sucumbiu ao ódio; sempre

preservou o seu delicado humor nas situações mais desesperadas.

Suas maneiras e seu espírito contrastavam marcadamente,

mesmo naquele tempo, bem como em fases posteriores, com a

impiedosa e brutal preponderância da força, que se acha em voga

nos nossos dias”.

Escrever sobre tais coisas, vinte e cinco anos após, era muito

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mais fácil do que vivê-las. “Devo admitir francamente”, prosseguia

o artigo de Smuts, “que suas atividades me impunham séria

provação... Gandhi fez uso de uma nova técnica... Seu método

consistia em infringir deliberadamente a lei, e em organizar seussequazes num movimento de multidões.” Muitos de seus sequazes

foram encarcerados, e “Gandhi, em pessoa, recebeu — o que, sem

dúvida, desejava — um período de repouso e de tranqüilidade na

prisão. Para ele, tudo correu de acordo com os planos

preestabelecidos. Para mim — defensor da lei e da ordem — o que

houve foi a costumeira situação difícil, o ódio de aplicar uma lei

que não gozava de forte apoio popular, e, finalmente, a derrota,

quando a lei foi revogada”.

Foram necessários três fatores, para a consecução da vitória

na África do Sul, em 1914:

Primeiro, Gandhi. Em tributo prestado a Gandhi, em 1914,

no Hibbert Journal, o professor Gilbert Murray, de Oxford,

escreveu: “Cuidado ao lidar com um homem que não se incomodacom os prazeres sensuais, nem com o conforto, nem com o louvor,

nem com as honrarias, mas que está simplesmente resolvido a

fazer o que acredita que é direito. Esse é um inimigo perigoso e

inquietante, porque seu corpo, que podemos sempre conquistar,

nos proporciona um domínio muito insignificante sobre a sua

alma”. Isso explica a parte de Gandhi na vitória.

Segundo, houve os satyagrahi indianos, que lembravam os

heróis descritos num poema de Shelley, que Gandhi de uma feita

leu perante uma assembléia de cristãos, na Índia:

“Stand ye calm and resolute

Like a forest close and mute,

With folded arms and looks which are

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Weapons of unvanquished war. 

And if the tyrants dare,

Let them ride among you there,Slash, and stab, and maim and hew,

What they like, that let them do. 

With folded arms and steady eyes,

And little fear, and less surprise,

Look upon them as they slay,

Till their rage has died away ”.1

1 Conservai-vos calmos e resolutos / Como uma floresta fechada e muda, / Combraços cruzados e olhos que são / Armas de não vencida guerra. // E se ostiranos ousarem, / Deixai que cavalguem por entre vós, ali, I Que golpeiem, queapunhalem, que decepem e abatam a machadadas, / Deixai que façam aquiloque for do agrado deles. // Com braços cruzados e olhos fitos, / E pouco medo,e menos surpresa, / Contemplai-os de cima para baixo, enquanto eleschacinam, I Até que a fúria deles se exaura e se dissipe. (N. do T.)  

 Terceiro, houve Smuts. Um ditador não teria hesitado em

prender vinte mil indianos, ou, com efeito, em mandar fuzilá-los,

nem em encarcerar ou enforcar Gandhi. Não havendo democracia,

não haveria Gandhi. Smuts concorreu para a formação de Gandhi,

pelo fato de não o destruir. Gandhi elevou a estatura de Smuts.

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Parte segunda

Gandhi na Índia

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10

Ouvidos e bocas abertos

Na Índia, as qualidades espirituais de Gandhi foram logo

percebidas. Depois do seu regresso, em 1915, os presentes, nas

reuniões, gritavam: “Mahatmaji, Mahatmaji!” (O sufixo “ji” indicaafeição e respeito.) Algum tempo depois, o título de mahatma lhe

foi conferido pelo poeta Rabindranath Tagore, ganhador do prêmio

Nobel de literatura de 1913. “Grande alma em vestes de

camponês”, escreveu o poeta; e a coroa pousou para sempre na

cabeça do santo político.

 Tagore e Gandhi foram os indianos mais notáveis da

primeira metade do século XX. Os dois se reverenciavam

reciprocamente. Tagore chorou ao ver a Índia reduzida à condição

de “eterno trapeiro, rebuscando nas latas de lixo dos outros”,

sentimento compartilhado por Gandhi; e rezava, como fazia o

Mahatma, para “a magnífica harmonia de todas as raças

humanas”. Os dois eram nacionalistas e, ainda assim,

internacionalistas, sentimentalmente inseparáveis e almas gêmeasaté o fim. Mas eram também profundamente distintos um do

outro, e travavam freqüentes batalhas verbais. Gandhi era frugal;

 Tagore, pródigo; Gandhi, o asceta emaciado, de cabeça e rosto

raspados; Tagore, o homem de basta cabeleira branca, de grande

barba alva, rico intelectual aristocrata, com um semblante de

clássica beleza; Gandhi, o arrozal; Tagore, o roseiral; Gandhi, o

general; Tagore, o arauto; Gandhi, o braço a trabalhar; Tagore, a

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voz a cantar. Gandhi, por assim dizer, sentava-se numa praça de

mercado pela qual transitavam dezenas de milhões de pessoas

com suas carretas, suas preocupações, suas mercadorias e seus

pensamentos, mas ele se sentava e permanecia imóvel, e, dentrodele, havia paz. Sentir-se-ia sufocar numa torre de marfim, ou

numa altura olímpica, ao passo que Tagore dizia: “Se ouço uma

canção, meu sítar pode captar a melodia, e posso juntar-me ao

coro, porquanto sou cantor. Mas, no clamor louco da multidão,

minha voz se perde, e eu me sinto desorientado”. “Os milhões de

sofredores”, dizia Gandhi a Tagore, “pedem um poema: alimento

revigorante.” Tagore dava-lhes música. Em Saintiniketan, os

discípulos de Tagore cantavam e dançavam, usavam grinaldas e

tornavam a vida bela. Quando Gandhi lá chegou, em visita,

persuadiu os professores e os estudantes a ir para a cozinha, a

coletar o lixo, a limpar as privadas, a varrer os terreiros. Tagore

aquiesceu, tolerantemente, dizendo: “A experiência contém a

chave da swaraj 1”, ou do autocontrole, mas, quando Gandhipartiu, a experiência entrou em colapso. Talvez — visto que as

origens provinciais são tão importantes na Índia (em conseqüência

de separações lingüísticas e dos escassos meios de transporte) —

a diferença entre Tagore e Gandhi fosse a diferença existente entre

o Kathiawar isolado e a Bengala cosmopolita. Tagore aceitava o

presente e o Ocidente, com sua cultura e suas máquinas, e

emancipara-se a si mesmo da religião. Mas a torrente vital de

Gandhi era o hinduísmo; o passado da Índia, a sua inspiração;

Deus, o seu companheiro de todos os dias. Em retrospecto, ele

assume a estatura de um reformador do hinduísmo, mais ou

menos como Buda. Gandhi lutava pelo hinduísmo, mas contra as

suas deformações, sendo, simultaneamente, um produto e um

crítico da civilização ocidental. Amava o Ocidente, mas se opunha

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à sua influência sobre a Índia; amava a sua pátria, mas

condenava-lhe as falhas. Ideologicamente, mantinha-se com um

pé no individualismo e no nacionalismo do século XIX europeu, e,

com o outro, na época remota da glória e do obscurantismohindustânicos. As duas correntes se confundiam nele, e ele

procurava conseguir a mesma síntese no movimento em prol da

independência indiana. Tentava orientar esse movimento para o

que de melhor havia no Ocidente: Thoreau, Emerson, Ruskin,

Mazzini e os socialistas utópicos (não os marxistas). Destes,

hauria sua defesa do homem contra a máquina, e entrelaçava

tudo com as raízes do hinduísmo. Era deles também a

propugnação do individual contra o comunitário, que entretanto

não encontrava contrapartida nos costumes sociais da Índia.

1 “Autonomia.” (N. do E.)  

Gandhi queria um novo homem indiano no dia de hoje, nãoapenas uma Índia livre no dia de amanhã. Para ele, a verdadeira

liberdade da Índia significava o surgimento de um indivíduo

indiano livre e novo. Ele acreditava, com Tagore, que as algemas

da Índia eram feitas por ela mesma. Tagore escreveu: “—

Prisioneiro, dize-me quem foi que criou essa inquebrável corrente?

 — Fui eu — disse o prisioneiro — quem forjou, com todo o

cuidado, essa corrente”.

As idéias de Gandhi, diversas das convencionais, sobre a

independência indiana, evoluíram muito cedo, e

espontaneamente, na sua própria personalidade, pois ele as

expressou antes de adquirir grande experiência, como adulto, na

Índia. Tais idéias apareceram em 1909, no seu primeiro livro,

Autonomia indiana, escrito com as duas mãos, no navio a vapor,de regresso de uma viagem de serviço à Inglaterra. Gandhi

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permitiu que o livro fosse publicado em 1921, sem modificações,

e, na introdução a uma outra edição ainda, em 1938, declarou:

“Nada vi que me induzisse a modificar os pontos de vista nele

explanados”. O panfleto de setenta e seis páginas, portanto,permanece como seu credo.

“Alguns ingleses afirmam que eles tomaram e conservaram a

Índia por meio da espada”, escreveu Gandhi. “As duas afirmativas

são erradas. A espada é de todo inútil para conservar a Índia.

Somente nós é que conservamos os ingleses... Gostamos do seu

comércio; eles nos agradam por seus métodos sutis, e conseguem

de nós o que desejam... Nós reforçamos o domínio deles pela

discórdia entre nós mesmos.”

A seguir, Gandhi formulou os princípios que deveriam

orientar seus esforços através de decênios. “Se agirmos com

 justiça, a Índia será libertada mais cedo”, afirmou ele. “Vós vereis,

igualmente, que, se evitarmos cada inglês, como se ele não fosse

nosso inimigo, a autonomia será postergada. Se, porém, nós nosmostrarmos justos para com eles, receberemos seu apoio.” Não

acusava nem maldizia os ingleses, e, contudo, esperava que a

Índia livre passasse a ser diferente da Índia britânica. Alguns

argumentavam que a Índia, depois da libertação, se assemelharia

ao Japão, “com a nossa própria marinha, o nosso exército... o

nosso próprio esplendor; e, então, a voz da Índia ressoará pelo

mundo”. “Em outras palavras”, replicou Gandhi, “vós desejais a

governança inglesa sem os ingleses. Vós quereis a índole do tigre,

sem o tigre... Vós faríeis a Índia tornar-se inglesa... Esta não é a

swaraj que eu desejo.”

Os nacionalistas indianos, que ele havia encontrado em

Londres, tinham escarnecido de sua preocupação com o futuro

ético e social da Índia livre. O único objetivo de tais nacionalistas

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consistia na expulsão dos ingleses, como Mazzini e Garibaldi

haviam expulso os senhores estrangeiros da Itália. Gandhi

observava, hesitante: “Se vós acreditais que a nação italiana é feliz

porque os italianos governam a Itália, estais tateando naescuridão... De acordo com Mazzini, (a liberdade) destinava-se a

todo o povo italiano, isto é, aos seus lavradores. A Itália de Mazzini

ainda permanece em estado de escravidão”.

Gandhi salientou o mesmo ponto numa carta dirigida a lorde

Ampthill, antigo governador de Madrasta, em 9 de outubro de

1909: “Eu devia mostrar-me desinteressado quanto a saber quem

é que governa”. A consideração importante é saber como governa.

Os governantes indianos poderiam não ser melhores do que os

governantes britânicos, exatamente como “um Rockefeller indiano

pode não ser melhor do que um Rockefeller norte-americano”.

Gandhi olhava para além da liberdade nacional; punha seus olhos

na libertação social. Trinta e oito anos antes da independência,

seus olhos de vidente previram os problemas que minam a Índiaindependente de hoje. Não era a nacionalidade dos

administradores que lhe interessava, e sim os seus métodos e a

sua moralidade. Esse interesse para com o conteúdo da liberdade,

para com a verdade por trás da fachada, da forma e da bandeira,

caracterizou os seus esforços, de 1915 a 30 de janeiro de 1948, e

ele explica vários intervalos enigmáticos ocorridos quando ele

abandonou a luta contra os britânicos para passar a lutar por um

princípio.

Gandhi aventou essas idéias durante o seu primeiro ano na

Índia. G. K. Gokhale, presidente da Sociedade dos Servidores da

Índia, lhe havia “ordenado” que passasse esse ano com “seus

ouvidos fechados, mas com sua boca aberta”. Entretanto, nas

muitas reuniões, nas quais os compatriotas agradecidos

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comemoravam os atos de Gandhi na África do Sul, ele,

naturalmente, falava — falava num tom franco, nada impressivo,

de conversação. Alguns se mostravam desiludidos. Haviam

esperado um novo gigante, o homem leonino que havia derrotadoSmuts. Ao invés disso, viam uma figura pequena e magra, metida

num turbante ridiculamente amplo e num lençol esvoaçante —

uma figura que mal conseguia fazer-se ouvir, e que, para levar

vantagem, dizia coisas estranhas. Uma fotografia, tirada nesse

primeiro ano, mostra-o sentado numa plataforma, com os

calcanhares encostados às coxas, nu, se não fosse o lençol que lhe

chegava aos joelhos, fazendo discurso enquanto, ao seu redor, se

aglomeram políticos indianos, em roupas européias. Gandhi dizia

a esses políticos que rasgassem tais trajes. Como poderiam os

líderes, envergando roupas da Bond Street, calças e paletós de

Bombaim, chegar ao coração dos camponeses? Como poderiam os

oradores, falando inglês, atingir-lhes a alma?

Camponeses? Mas os políticos nada tinham que fazer com oscamponeses. Os nacionalistas e os autonomistas indianos, bem

como o Congresso Nacional da Índia, esperavam persuadir os

britânicos a transferir parte do seu poder aos indianos. Com isso

em mente, eles envergavam fraques negros e calças listradas; liam

petições num inglês impecável, dirigidas a polidos burocratas

ingleses. O templo da independência da Índia, pensavam eles,

seria forrado de memoriais dirigidos a um soberano extremamente

generoso, e ao sátrapa desse soberano. Outros, principalmente na

tumultuária província de Bengala, treinavam suas mãos cor de

cobre e seus olhos castanhos, enormes e em brasa, para disparar

tiros contra esses burocratas ingleses.

Não era por meio do terror, ensinava Gandhi, e não era por

meio de “suplicantes” aos pés dos governantes ingleses,

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amestrados, como Tagore dizia, no uso da “correta lamúria

gramatical”, que poderia ser conseguida a liberdade. “Nenhuma

contribuição de papel nos dará jamais governo próprio”, disse

Gandhi, a uma assembléia ilustre de notáveis e de estudantes, nacerimônia de inauguração do Hindu University Central College, de

Benares, em fevereiro de 1916. “Nenhuma quantidade de

discursos nos tornará preparados para um governo próprio.

Somente a nossa conduta nos tornará preparados para isso.”

Muitos marajás e muitos rajás se encontravam na assembléia,

fazendo “uma exibição de jóias”, disse ele, “que constituía um

espetáculo opulento”. “Despojai-vos dessas jóias e colocai-as a

serviço dos vossos compatriotas na Índia”, instigou. Mas Gandhi

não esperava que eles assim procedessem. “Nossa salvação só

poderá vir através dos trabalhadores das fazendas. Nem os

advogados, nem os médicos, nem os ricos senhores de glebas

poderão proporcioná-la.”

A melhoria das aldeias era a Primeira Liberdade de Gandhi.Mais de oitenta por cento da população da Índia viviam nas

aldeias; e os que ali viviam eram pobres, analfabetos, enfermos,

desanimados. A libertação do camponês da pobreza não poderia

ser a realização de uma pequena classe superior, nem o presente

de uma potência estrangeira. Os camponeses tinham de

conquistá-la. Gandhi desejava, para sua pátria, uma metamorfose

psicológica que lhe pudesse dar liberdade interior e, depois,

inevitavelmente, liberdade exterior; porque, uma vez adquirida

pelo povo a dignidade individual, esse povo poderia insistir na

exigência de melhor nível de vida, sem que ninguém conseguisse

mais conservá-lo em estado de escravidão.

As distâncias na Índia são grandes, e as comunicações,

pobres. Poucos sabem ler, e poucos possuem radioreceptores.

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Conseqüentemente, os ouvidos da Índia são enormes e sensíveis.

Em 1916, esses ouvidos começaram a captar a voz de um homem

que era corajoso e indiscreto — de um homem pequeno, que

amava os pobres e que os defendia aos olhos dos ricos —, de umhomem santo. Gandhi ainda não havia exsurgido à categoria de

figura nacional. As centenas de milhões de habitantes da Índia

não o conheciam. Mas a fama de um novo mahatma ia se

difundindo. A força, as riquezas, os elefantes, as jóias, os exércitos

e os policiais conseguem a obediência da Índia. Mas é a devoção

que lhe conquista o coração.

Depois, Gandhi sentou-se em seu ashram. Na Índia antiga, o

ashram era um retiro religioso para monges. Seus membros

renunciavam ao mundo, e, contemplando-se a si mesmos, por

dentro e por fora, esperavam o fim. O ashram de Gandhi,

entretanto, permaneceu em íntimo contato com o mundo. Na

verdade, tomou-se o âmago da Índia. Os indianos contemplaram

aquele retiro, e começaram uma nova vida.O Satyagraha Ashram situou-se primeiro em Kochrab, e

depois, em caráter permanente, em Sabarmati, do outro lado do

rio Sabarmati, a contar da superpovoada cidade de Ahmedabad.

Ali, enraizando-se na areia, no solo e na alma do povo da Índia,

Gandhi adquiriu pleno vigor. O ashram consistia num grupo de

cabanas baixas, pintadas de branco, em meio a um horto de

árvores frondosas. Abaixo do conjunto, via-se o rio, onde as

mulheres batiam suas roupas sobre pedras chatas, e por onde

vacas e búfalos vadeavam. Ao redor, o cenário apresentava-se

delicadamente pastoral; mais perto, porém, encontravam-se

massas retorcidas de cortiços como que amontoados uns sobre os

outros, confundindo-se abaixo das feias chaminés das fábricas de

tecidos de Ahmedabad, cujos proprietários financiavam o ashram.

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O quarto de Gandhi era mais ou menos do tamanho de uma cela;

suas janelas tinham barrotes de ferro, ali colocados por um

ocupante anterior. Com exceção dos períodos passados na prisão,

Gandhi viveu naquela cela durante dezesseis anos. Alguns dosmais ativos líderes do movimento de independência começaram

sua carreira política aos pés do Mahatma, em Sabarmati. A

população do ajuntamento flutuou entre trinta almas, no começo,

e duzentas e trinta, quando atingiu o número máximo. Os

membros do povoado tratavam das árvores frutíferas, teciam,

fiavam, plantavam trigo, rezavam, estudavam e ensinavam nas

aldeias circunvizinhas. Um ar de repouso, de tranqüilidade, ainda

pairava sobre o ashram, quando eu o visitei, em 1948 — um

decênio e meio depois de Gandhi transferir-se para outro lugar.

Até hoje, o coração dos indianos sente dor pela glória

perdida de sua pátria. Gandhi proporcionava-lhes bálsamo.

Alguns procuravam uma ilusão de força, torcendo a cauda do

leão; e esse gesto se tornou reflexo da ação que persistiu depois deo leão haver desaparecido. Gandhi não sucumbia freqüentemente

a essa tentação. Ao contrário, sentava-se em meio às árvores,

religiosamente concentrado e imperturbável, não mais

macaqueando os cavalheiros ingleses, e sim assemelhando-se a

um santo da Antiguidade, e recordando à nação que ela já havia

visto muitos conquistadores, mas os havia conquistado pelo

simples ato de se conservar fiel a si mesma. Gandhi restaurou a

confiança da Índia. A vara mágica de sua personalidade tornou-se

a lança de sua nação.

A Índia teve grandes homens, antes de Gandhi, que

sonharam e trabalharam em prol da regeneração nacional. Eram

como luminosos planetas, num firmamento remoto — estrelas

fulgurantes, lançando sua luz sobre uns poucos satélites. Gandhi

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encontrava-se firmemente implantado na terra. Recebia sustento

do povo que caminhava sobre ela, e, por sua vez, dava-lhe frutos.

Era do povo, pelo povo e para o povo.

11

O Mahatma Gandhi e os britânicos

Gandhi não era um hindu conformado, nem um conformado

nacionalista. Nenhum “ismo” o prendia em suas garras. Ele nunca

mordera uma isca. Era independente, imprevisível, e, por isso, um

incitador e uma pessoa difícil para os britânicos. “Será que eu me

contradigo?”, perguntava-se. “A consistência é um fantasma.”

Gandhi tinha a coragem do rebelde, que consiste em ser fiel a si

mesmo no dia de hoje, mas diferente no de amanhã. “Meu

objetivo”, escreveu ele, de uma feita, “não está em ser coerente emrelação às minhas afirmativas anteriores sobre uma determinada

questão, e sim em ser coerente em relação à verdade, tal como ela

se me apresenta num determinado momento. O resultado é que eu

evoluí de verdade em verdade...” Seu pacifismo, como sua filosofia

social, teve um crescimento lento. Em 1914, em viagem da África

do Sul para a Índia, ele organizou um Corpo de Ambulância,

composto de estudantes indianos, para servir o exército britânico,

e admitiu, acusando-se a si mesmo, que “aqueles que se limitam

ao atendimento dos feridos em campo de batalha não podem ser

absolvidos da culpa de guerra”. Na Índia, mais tarde, incitou os

indianos a cooperar com o esforço britânico de guerra. “Eu

descobri”, disse ele, na defesa dessa atitude impopular, “que o

império britânico possui certos ideais pelos quais eu me

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apaixonei, e um desses ideais é o de que todo súdito do império

britânico dispõe da maior liberdade possível para sua energia e

para sua honra... Disse, mais de uma vez, que o melhor governo é

o que governa menos. Descobri, no quadro do império britânico,que é possível para mim ser governado menos. Daí minha lealdade

para com o império britânico.”

Em julho de 1918, Gandhi recrutou elementos para o

exército britânico, na cidade e nas zonas rurais. “Não pode haver

parceria entre o bravo e o afeminado. Nós somos contemplados

como um povo covarde. Se desejamos ficar livres desse reproche,

temos de aprender a usar as armas.”

Os camponeses, nas aldeias, retorquiam: “Vós sois pregador

da não-violência”, diziam, “como podeis pedir que peguemos em

armas?” “A parceria com o império é o nosso objetivo bem

definido”, respondia ele. Gandhi queria que a Índia gozasse de

situação semelhante à do Canadá, da Austrália e da Nova

Zelândia. A idéia da separação completa ainda não haviaconquistado o seu espírito, e estava longe da mente da maior parte

dos nacionalistas indianos. “Se o império desaparecer, com ele

desaparecerão as nossas mais caras aspirações”, argumentava.

Em 1942, interroguei Gandhi a respeito de sua atitude

favorável à guerra, no decurso do primeiro conflito mundial. “Eu

tinha acabado de regressar da África do Sul”, explicou ele. “Ainda

não havia encontrado meu ponto de apoio. Não me sentia seguro

de minhas convicções.” Visto que transigia com relação a seu

nacionalismo, a fim de permanecer nos limites do império, a sua

inelutável honestidade o forçava a transigir também quanto a seu

pacifismo, a fim de recrutar elementos para o exército britânico. O

realismo triunfava sobre a religião. A política diluía o seu

pacifismo.

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Até essa altura, Gandhi tinha tido apenas uma pendência

com os britânicos.

O episódio começou durante a convenção anual do

Congresso Nacional indiano, em Lucknow, nas Províncias Unidas,em dezembro de 1916. “Um camponês”, narrou Gandhi, “veio a

mim; tinha o aspecto pobre e emaciado de qualquer outro

camponês da Índia, e disse: ‘Eu sou Rajkumar Shukla. Nasci em

Champaran, e desejo que visiteis o meu distrito’.” Gandhi nunca

tinha ouvido mencionar aquele lugar; situava-se no sopé do

Himalaia, no Estado de Bihar, nas vizinhanças do remoto reino do

Nepal.

Os meeiros estavam enfrentando dificuldades nas suas

relações com os proprietários de terras britânicos. Não iria Gandhi

ouvir-lhes as queixas? Era o que o camponês lhe perguntava. O

Mahatma esclareceu que tinha compromissos em outros lugares.

Shukla seguiu-o por toda parte, e, finalmente, chegou ao ashram.

Durante semanas a fio, manteve-se constantemente ao lado deGandhi. “Fixai uma data”, suplicava ele.

Impressionado pela tenacidade do meeiro, Gandhi marcou

um encontro em Calcutá, para vários meses depois. Shukla estava

lá, de cócoras, quando Gandhi chegou, e esperou até que o

Mahatma ficasse livre. A seguir, os dois viajaram para

Champaran.

Gandhi encontrou dificuldades para esclarecer todos os

fatos. Primeiro, visitou a associação dos proprietários de terras

britânicos. O secretário lhe disse que não podia dar informações a

pessoas estranhas à organização. Gandhi declarou que não era

uma pessoa estranha. A seguir, visitou o comissário britânico,

que, ao que Gandhi relata, “começou a ameaçar-me,

aconselhando-me, afinal, a retirar-me dali...” Gandhi ficou.

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A situação, de conformidade com as verificações de Gandhi e

com a pesquisa histórica subseqüente, era esta: mais de um

milhão de camponeses cultivava terra alugada de senhores

ingleses; os locatários podiam plantar arroz, trigo, milho, cevada,ou qualquer outro vegetal que escolhessem; mas quinze por cento

das terras tinham de ser semeados de índigo; a colheita do índigo

devia ser toda entregue aos proprietários das terras, a título de

pagamento do aluguel de toda a área cultivada. Entretanto, nos

primeiros anos do século XX, a indústria de tintas químicas, na

Alemanha, havia conseguido produzir e aperfeiçoar um índigo

sintético; em conseqüência, entrou em colapso o mercado do

índigo natural. Os proprietários de terras, em vista disso, deram

ordens aos seus meeiros para que não plantassem mais índigo e,

simultaneamente, aumentaram o aluguel. Agiram assim apoiando-

se num antigo acordo que dispunha que, se um camponês

deixasse de cultivar índigo, seu aluguel poderia ser elevado. Os

camponeses, porém, haviam tido notícias relativas ao índigosintético, e ficaram sabendo do motivo pelo qual os proprietários

não queriam mais que se plantasse índigo; portanto, resistiram ao

aumento do aluguel. Os proprietários responderam com a coerção;

os meeiros passaram a ser surrados; suas casas foram invadidas,

seu gado, seqüestrado. Coagidos, milhares de camponeses

concordaram com os aumentos de aluguel. A pendência começara

em 1912; os camponeses mostravam-se ressentidos, mas

impotentes. Foi isso que tornou Rajkumar Shukla tão

decididamente paciente no acompanhamento dos passos de

Gandhi, até conseguir levar o Mahatma a Champaran, em 1917.

Um dia, o Mahatma, no decorrer de suas investigações,

viajava para uma aldeia, no dorso de um elefante, quando um

policial o alcançou e o conduziu de volta à cidade. Ali, Gandhi

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recebeu uma notificação oficial, ordenando-lhe que saísse

imediatamente de Champaran. Gandhi assinou a ordem, mas

escreveu, no seu verso, que lhe desobedeceria. Em conseqüência,

foi chamado ao tribunal, no dia seguinte.A vizinhança do tribunal se apinhou com a presença de

milhares de camponeses que haviam tido notícia de que um

mahatma chegara para os auxiliar em suas dificuldades com as

autoridades. A polícia pediu a Gandhi que a ajudasse a conter a

multidão. Gandhi mostrou-se amigo e cooperador; esta foi a prova

concreta de que o poder das autoridades, até então não discutido

e temido, poderia ser insuficiente, quando desafiado.

No interior do tribunal, Gandhi declarou-se culpado. Havia

desrespeitado a ordem de sair de Champaran, disse ele ao

tribunal, “não por falta de respeito para com a autoridade

constituída, mas em obediência à lei superior do nosso ser, à voz

da consciência”. Concluiu pedindo a aplicação da pena que lhe

coubesse.O magistrado disse que anunciaria a sentença depois de um

recesso de duas horas; até então, Gandhi seria posto em

liberdade, após o pagamento de fiança. Gandhi recusou-se a isso.

Foi posto em liberdade sem ela. Quando o tribunal tornou a se

reunir, o juiz declarou que redigiria o veredicto dentro de alguns

dias. Entrementes, permitiu que o Mahatma permanecesse em

liberdade. Vários dias após, o caso foi encerrado, em obediência a

instruções procedentes de autoridade superior. A desobediência

civil havia triunfado, afirmou Gandhi, pela primeira vez, na Índia.

“O que eu fiz”, explicou Gandhi, “foi uma coisa muito

comum. Declarei que os britânicos não podiam impedir minha

locomoção em minha própria pátria.” Em verdade, nada havia de

muito comum nisso.

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Gandhi permaneceu em Champaran sete meses, e regressou

para duas breves estadas. A visita, empreendida ocasionalmente,

pela insistência de um lavrador meeiro analfabeto, na esperança

de que duraria uns poucos dias, tomou cerca de um ano da vida

do Mahatma. Afinal, os proprietários de terras concordaram em

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desistir de novos aumentos de aluguel e em reembolsar vinte e

cinco por cento dos aumentos que já haviam recebido. Gandhi

achou que o montante do reembolso importava menos do que o

consentimento dos donos das plantações, no sentido de o realizar.Durante sua estada no distrito, Gandhi promoveu a ida para

lá de um médico, para ministrar cuidados aos camponeses, e de

professores para dar instrução às crianças. Kasturbai também

para lá se dirigiu, passando a ensinar normas de higiene às

mulheres.

A experiência de Champaran obedeceu a um padrão

tipicamente gandhiano; começou, não como um ato de desafio aos

britânicos, mas como um esforço destinado a aliviar o sofrimento

dos pobres. A política de Gandhi surgiu dos problemas práticos de

milhões de pessoas desfavorecidas. A sua foi uma lealdade não

para com abstrações, e sim para com seres humanos, em seu dia-

a-dia. Gandhi não manipulava mentalmente as idéias; punha-as

em prática.Antes de deixar Champaran, Gandhi organizou uma junta de

preeminentes advogados de Bihar, inclusive Rajendra Prasad, que

mais tarde se fez presidente da Índia livre, destinada a proteger os

meeiros, a fim de que estes não fossem molestados. Os advogados

indianos pediram o concurso de Charles Freer Andrews,

missionário pacifista inglês, que se havia tornado discípulo do

Mahatma. Andrews concordou, mas Gandhi pôs objeções.

“Vós pensais”, declarou ele aos advogados, “que, nesta luta

desigual, talvez seja uma boa medida ter um inglês do nosso lado.

Isso mostra a fraqueza do vosso coração. A causa é justa, e vós

deveis confiar em vós mesmos, para ganhar a batalha.”

“Ele tinha lido corretamente o nosso pensamento”, comentou

Rajendra Prasad, “e nós não tivemos resposta... Gandhi, assim,

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nos deu uma lição de autoconfiança.”

Na fase de Champaran, Gandhi desenvolveu um enorme

esforço no sentido da regeneração do seu povo, porque confiava na

capacidade britânica de adaptação política. Se os indianosdemonstrassem, por sua disciplina interior, por sua unidade, por

sua dignidade e por sua confiança, merecer mais liberdade, a

Inglaterra a proporcionaria. Essa tese recebeu extraordinário

impulso com a adoção, em dezembro de 1916, do Pacto de

Lucknow, que entrou em vigor entre o Congresso Nacional

indiano, predominantemente hindu, e a Liga Muçulmana, cujo

presidente, Mohammed Ali Jinnah, disse que sua organização

“agora está em pé de igualdade com o Congresso Nacional indiano,

pronta para participar de quaisquer esforços patrióticos em prol

do progresso do país, considerado este como um todo”. Com

hindus e muçulmanos concordes quanto a um amplo programa

político moderado de reforma, cujos benefícios presumíveis as

duas comunidades compartilhariam, muitos indianos esperaramprematura satisfação à petição enviada pelo Congresso a Sua

Majestade, o rei-imperador, no sentido de a “Índia ser elevada, da

posição de dependência, à de parceiro em pé de igualdade, no

império, com os domínios governados por si próprios”. Sua

esperança animosa foi revigorada pela nomeação de Sir Edwin S.

Montag para o posto de secretário de Estado para a Índia. Sir

Edwin, com efeito, anunciara, em 20 de agosto de 1917, na

Câmara dos Comuns, uma nova política britânica, que

contemplaria “não somente o aumento da participação dos

indianos em todos os ramos da administração”, mas também a

outorga de “instituições de autogovernança, tendo em vista a

realização progressiva de um governo responsável na Índia,

considerada esta como parte integrante do império britânico”.

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Essas palavras foram tomadas como penhor de iminente

concessão da categoria de domínio.

Vastos círculos da Grã-Bretanha desejavam satisfazer as

aspirações políticas normais e legítimas da Índia, ao passo queoutros, de espírito não tão liberal, percebiam que a guerra, na

qual meio milhão de soldados indianos havia combatido

valentemente, e a doutrina de autodeterminação do presidente

Woodrow Wilson haviam acirrado de maneira excessivamente

profunda os povos coloniais, de modo que já não era permissível

um simples retorno ao obtuso imperialismo antebellum. 

Muito antes, o primitivo período de ataque e pilhagem, de

Robert Clive (em que se registraram a luta, os embustes, as

artimanhas, as intrigas, a política e Deus sabe o que mais, com

cujo emprego a Inglaterra ganhara poder na Índia) e do

governador-geral Warren Hastings (cujo processo, na Inglaterra,

de fevereiro de 1788 a abril de 1795, revelara grande falta de

escrúpulo e inegável corrupção), havia chegado ao fim. Um anodepois do Motim de 1857, a governança da Companhia das Índias

Orientais foi abolida, e a rainha Vitória, assumindo o governo da

Índia, nomeou lorde Canning para a qualidade de seu primeiro

vice-rei. Daí por diante, e lentamente, os ideais britânicos de

governança decente se infiltraram na administração da Índia.

Não obstante, o imperialismo britânico não podia negar suas

origens, nem aquietar seus receios.

 — Afinal de contas — disse-me lorde Linlithgow, vice-rei

britânico, em 1942 — nós somos a potência de ocupação. Desde o

Motim, temos hesitado em pôr armas nas mãos dos indianos.

De 1858 a 1947, a governança britânica continuou a ser

ocupação estrangeira. Os ingleses estavam na Índia, nunca foram

da Índia. Muitos funcionários britânicos se mostravam devotados

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ao país, e, depois de vinte ou mais anos de serviço, se sentiam

como que em casa na Índia, e como estrangeiros quando

rumavam para seu lar, na Inglaterra. Ficavam com o coração

partido e arruinavam a própria saúde, tratando de solucionarproblemas difíceis e de fazer face a um povo também difícil, cuja

gratidão desejavam, mas raramente recebiam.

Os britânicos eram senhores em casa alheia. Sua simples

presença constituía humilhação. Imperialismo é governo de outro

povo, por outro povo, para outro povo. Constitui insulto perpétuo,

porque parte da premissa segundo a qual os de fora têm o direito

de governar os de dentro, os quais, entretanto, não podem

governar-se por si mesmos. Ainda que os britânicos houvessem

convertido a Índia numa terra banhada de leite e de mel — e, em

verdade, fizeram com que alguns desertos se banhassem

amplamente de água —, seriam sempre malvistos. A sujeição

alimenta o desejo de libertação. Por isso, o imperialismo cava sua

própria sepultura — e não pode haver bons colonizadores.No início do século XX, o número de indianos instruídos

aumentou. Uma classe média indiana se constituiu; numerosos

indianos, enriquecidos na indústria e no comércio, desejavam

dispor de espaço econômico. Os nativos, que aspiravam ao poder,

se viam diminuídos pela governança alheia. A vitória do Japão

contra a Rússia em 1904-1905 (a primeira vez em que uma nação

asiática derrotou brancos europeus) estimulou a oposição

nacionalista dos indianos à Inglaterra.

Alguns políticos britânicos desejavam que se fizesse frente à

hostilidade da Índia com sangue e ferro; outros, que se

abrandasse essa hostilidade por meio de reformas. Em 1885, lorde

Dufferin, vice-rei britânico, antecipando-se astutamente a

tumultos populares, e na esperança de os canalizar para a calma

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legalidade, amparou o Congresso Nacional indiano. Os vice-reis

que se seguiram abençoaram o gesto. Mas os autocratas do ferro e

sangue não prestaram auxílio aos moderados utilizadores de luvas

de pelica.Debatendo-se entre sua sagacidade política e sua ânsia de

domínio, os ingleses, através dos anos, cederam tanto poder

aparente quanto as circunstâncias requereram, e tão pouca

substância desse poder quanto as condições permitiram.

Inevitavelmente, quanto mais concessões eles faziam, tanto mais

eram solicitados a fazer; e os intransigentes, à vista disso, se

opunham a qualquer concessão. Para caracterizar essa

mentalidade intransigente, o Relatório Hunter, de 1920 — um

documento oficial britânico —, citou o general Drake-Brockman,

de Deli, assinalando que “a força é a única coisa para com a qual

o asiático manifesta algum respeito”. Essa foi uma atitude

generalizada na administração britânica. O mesmo se diga do

conceito do marechal-de-campo, lorde Roberts: “Foi essaconsciência da inerente superioridade do europeu que conquistou

para nós a Índia. Por mais bem-instruído e por mais capaz que

seja um nativo, e por mais valoroso que ele demonstre ser,

acredito que nenhuma categoria que possamos outorgar-lhe o

levará a ser considerado um igual por um funcionário britânico”.

Os indianos o sabiam, e tinham horror a isso. Sir Edwin

Montagu definiu a governança britânica na Índia como sendo feita

de “excesso de madeira, excesso de ferro, excessivamente

inelástica e excessivamente antediluviana, de modo a não poder

servir às suas finalidades nos tempos modernos”; em outras

palavras, era como um complexo dinossauro político

vegetomineral, incapaz de mudança, mas, ainda assim,

conservado em vida pela alimentação que lhe era proporcionada

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pelos intransigentes, em Londres, e pelos teimosos, em Deli. A seu

tempo, conseqüentemente, a implícita promessa de condição de

domínio, feita por Montagu, na fase da maré baixa dos êxitos

britânicos de guerra, transformou-se em pergaminho amarelecido;e, quando a paz veio, uma Índia desiludida se fez tumultuada.

 Também Gandhi se desiludiu. Seu espírito era como um

campo de batalha em que a cautela pelejava constantemente

contra a paixão. Pronto a morrer por um princípio, ele preferia a

transigência e a arbitragem. Era combatente por natureza, e

pacificador nato. Desejava colaborar com os britânicos, e esperava

que o século XX vencesse o antigo dinossauro. Todavia, quando a

condição de domínio foi posta na prateleira — quando, em vez

dessa condição, se confirmaram medidas repressivas de tempo de

guerra —, o Mahatma empreendeu sua primeira ação deliberada

contra o imperialismo britânico na Índia.

12

Sangue

 Tribunais secretos vinham sentenciando gente em todas as

partes da Índia, pelos crimes de sedição e de oposição. Bal

Gangadhar Tilak, nacionalista indiano de proa, foi encarcerado,

dando-se o mesmo com a sra. Annie Besant, teosofista irlandesa

de nascimento, oradora brilhante, que passara a amar, a viver e a

trabalhar em favor da Índia. Dois poderosos líderes muçulmanos

 — os dois irmãos Shaukat e Mohammed Ali — se encontravam

igualmente na prisão, com milhares de nacionalistas de menor

influência. Os jornais haviam sido amordaçados pela censura de

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tempo de guerra.

Quando terminou a Primeira Guerra Mundial, em novembro

de 1918, os indianos esperaram a restauração das consideráveis

liberdades civis, que haviam usufruído, sob governança britânica,em tempos normais. Sentiram-se, pois, penosamente surpresos

quando os rigores de tempo de guerra se prolongaram por força

das leis Rowlatt, aprovadas pelo Conselho Legislativo Imperial de

Nova Deli, em 18 de março de 1919. Classificando essa legislação

de “injusta, subversora do princípio da liberdade e destruidora dos

direitos elementares do indivíduo, no qual se baseia a segurança

da comunidade considerada como um todo, e do próprio Estado”,

Gandhi fizera campanhas contra ela. A ineficácia apoquentava-o.

O Mahatma passara a ser um símbolo de força, para uma nação

que se sentia impotente. A despeito de sua fraqueza, ele

representava a virilidade; obteve alguns resultados; ele, pelo

menos, reagia poderosamente. A Índia havia sido esvaziada de sua

antiga robustez, ou assim pensavam os indianos. Gandhi estavalhe restaurando o vigor. Mas todos os protestos contra as leis

Rowlatt haviam sido ignorados. Os indianos não significavam

coisa alguma. Gandhi não significava coisa alguma. Que fazer?

Em Madrasta, convalescendo dos efeitos de disenteria

deliberadamente provocada por experiências dietéticas, Gandhi se

pôs à procura de uma resposta. Certa manhã, anunciou, ao seu

hospedeiro, Chakravarti Rajagopalachari, mais tarde governador-

geral da Índia: “Esta noite, veio-me a idéia, em sonho, de que

deveremos convocar a nação para observância de um hartal geral”.

Sendo uma suspensão completa da atividade econômica —

com as lojas fechadas, as fábricas inativas, os navios não

descarregados, os bancos cerrados —, o hartal colocaria vastas

massas em ação, demonstrando sua unidade, disciplina e força.

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Um hartal dura um, dois ou três dias. Como elemento de

equilíbrio, Gandhi propôs um satyagraha, cuja campanha deveria

começar com a resistência prolongada às limitações impostas

contra as liberdades civis pelas leis Rowlatt. Planejou-se, comoprimeiro passo, a venda de literatura política proibida pelo

governo. Gandhi sentiu-se feliz quando Seiscentos homens e

mulheres, em Bombaim, assinaram o compromisso do

satyagraha. Os indianos zombaram do pequeno número de tais

elementos. “A prova do pudim está no comer”, Gandhi respondeu.

Ele havia ganho com menos gente na África do Sul. “Até mesmo

um governo poderoso como o governo da Índia”, declarou ele, “terá

de ceder, se formos fiéis ao nosso compromisso. O compromisso”,

acentuou, “é o de uma tentativa no sentido de se introduzir o

espírito religioso na política. Nós não podemos mais acreditar na

doutrina do pagar com a mesma moeda; não responderemos com

ódio ao ódio, com violência à violência, com o mal ao mal...

Retribuiremos o mal com o bem. Nada é impossível”, concluiu ele.Esse diapasão vibrou de fé na pessoa humana, no povo e em

Deus.

O hartal consubstanciou-se num êxito enorme. Gandhi

denominou-o “um espetáculo maravilhoso”. Mas ainda não

conhecia seus compatriotas; havia-lhes subestimado o pendor

para a violência. Nas grandes cidades, o hartal foi acompanhado

de incêndios, de corte de fios telegráficos, de saque a armazéns, de

bloqueio de comboios ferroviários e de agressões físicas contra

ingleses. Como penitência, Gandhi jejuou durante três dias, e

pediu aos seus sequazes para que jejuassem durante vinte e

quatro horas. Depois, recebeu mais notícias relativas a violências

praticadas em cidades pequenas. Bruscamente, em 18 de abril de

1919, ele dissolveu toda campanha do satyagraha. Aquilo fora um

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“erro de cálculo do tamanho do Himalaia”, de sua parte, disse ele

aos seus compatriotas. “Devo parar, agora, e tomar em

consideração a melhor forma de fazer face à situação.” Gandhi não

se preocupou com o fato de admitir seu próprio erro. Não possuíanenhuma das inclinações dos ditadores à infalibilidade. Ao

contrário. “Somente quando uma pessoa vê seus próprios erros,

com uma lente convexa, e faz justamente o inverso no caso dos

outros”, disse ele, em sua autobiografia, “é que essa pessoa se

torna capaz de chegar a uma acertada estimativa relativa das

duas partes.” Gandhi exagerava as proporções de seus enganos, e

reduzia as de seus vizinhos. Alguém, de uma feita, sugeriu que ele

poderia perder sua autoridade moral. “A autoridade moral nunca

se conserva pelo fato de a gente se apegar a ela”, foi sua resposta.

“Ela vem sem a gente a procurar, e é conservada sem esforço.”

Sua autoridade moral residia nele, e, posteriormente, conseguiu

uma existência independente; nada do que ele fez, nem mesmo

seus maiores erros e seus maiores fracassos, a empanou.A pior manifestação, ou violência  pós-hartal, ocorreu na

província de Penjab, notadamente em Amritsar, cidade de cento e

cinqüenta mil habitantes, sagrada para os siques de barba longa,

de turbante e de aspecto másculo; isso pôs em relevo o quanto

eram perigosos os rescaldos dos incêndios nos corações ingleses e

indianos. Dois hartals  — em 30 de março e em 6 de abril —

transcorreram sem incidentes, ao que informou a Comissão Oficial

Hunter, britânica, que procedeu a investigações sobre o caso: “Os

europeus podiam andar, e andaram, sem ser molestados, em meio

às multidões”. Em 9 de agosto, entretanto, as autoridades

baniram, da província, dois líderes do partido do Congresso: um,

muçulmano, o dr. Saifuddin Kitchlew, o mesmo que foi recebido

por Stálin um pouco antes da morte do ditador, em março de

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1953; e o outro, hindu, dr. Satyapal. “Iniciando-se com o

desagrado produzido pela ação do governo, que deportou os dois

políticos locais”, reza o Relatório Hunter, “uma turba amotinada

varreu as ruas. Três ingleses preeminentes foram mortos.”Dois dias mais tarde, o brigadeiro-general Reginald E. H.

Dyer — oficial regular do exército britânico, nascido na Índia, e

antigo elemento operando em seu país — assumiu o comando, em

Amritsar, e, em 12 de abril, emitiu uma proclamação proibindo

procissões e comícios. “Mas”, diz o Relatório Hunter, “é  evidente

que, em muitas partes da cidade, a proclamação não foi lida.”

A seguir, o Relatório Hunter conta o episódio do massacre de

13 de abril, verificado em Jallianwalla Bagh, massacre esse que

deu forma aos acontecimentos de anos subseqüentes, e que está

indelevelmente escrito na história da Índia. “Cerca de uma hora”,

afirma o texto, “o general Dyer soube que o povo pretendia realizar

um grande comício, lá pelas quatro e meia da tarde. Ao ser

perguntado sobre a razão pela qual não havia adotado medidasdestinadas a impedir que o comício fosse levado a termo,

respondeu: “Dirigi-me para lá, assim que me foi possível. Tive de

pensar sobre o assunto e tomar minha decisão”.

“Quando examinado por nós”, assevera o Relatório Hunter,

“ele (Dyer) explicou que seu espírito tomou a decisão no decorrer

de sua ida para lá, em automóvel; se suas ordens contrárias à

realização do comício fossem desobedecidas, ele estaria pronto a

fazer fogo sem perda de tempo.” “Eu estava resolvido”, depôs o

mencionado general. “Eu levaria todos os homens à morte.”

 Jallianwalla Bagh, ao que diz o relatório, “é  um trecho

retangular de terreno baldio, coberto, até certo ponto, por

materiais de construção e destroços. É quase todo cercado pelas

paredes dos edifícios. As entradas e as saídas, ali, são poucas e

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imperfeitas... Na extremidade pela qual o general Dyer entrou, há

uma elevação, de ambos os lados da passagem. Uma grande

multidão se havia reunido na extremidade oposta do Bagh, e

estava ouvindo um homem que se achava sobre uma plataformaerguida a uns cento e quarenta metros de distância, a partir do

ponto em que o general Dyer estacionara suas tropas”. O relatório

calcula que havia de dez a vinte mil pessoas no Bagh. “Nenhum

dos manifestantes se encontrava munido de arma de fogo, embora

seja possível que alguns deles estivessem armados de pau”, afirma

o relatório.

Dyer foi para o Bagh com vinte e cinco soldados gurcas,

procedentes do Nepal, e vinte e cinco soldados beluchis,

procedentes do Beluchistão, armados de carabinas; além disso,

dispunha de quarenta gurcas (armados apenas de faca), e de dois

carros blindados.

O interrogatório a que a comissão submeteu Dyer diz:

“Pergunta: Supondo-se que a passagem fosse suficiente para

permitir que os carros blindados entrassem, teríeis vós aberto fogo

com as metralhadoras? Resposta: Penso que, provavelmente, sim”.

“Os carros blindados eram muito grandes”, prossegue o

relatório. “Assim que o general Dyer entrou no Bagh, estacionou

vinte e cinco soldados de um lado da elevação, à entrada, e mais

vinte e cinco soldados do outro lado. Sem dar, à multidão, ordem

de dispersar — que considerou desnecessária, uma vez que os

manifestantes ali se encontravam em desobediência à sua

proclamação —, deu ordem aos soldados para que fizessem fogo; e

a fuzilaria continuou durante cerca de dez minutos.”

“Quando o fogo teve início, a multidão começou a dispersar-

se. Ao todo, 1 650 cartuchos foram deflagrados... Os tiros foram

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individuais, e não de salva... Aproximadamente 379 pessoas foram

mortas”, e, ao que a comissão calculou, as pessoas feridas foram

em número umas três vezes maior. Portanto, 1 137 feridos, mais

379 mortos, ou 1 516 atingidos para 1 650 balas. A multidãoconstituíra um alvo perfeito. Os manifestantes haviam corrido

para o lado do Bagh cercado pela parede mais baixa, que media

um metro e meio de altura. Dyer ordenou a seus homens que

mirassem aquele ponto. O relatório, a respeito do depoimento de

Dyer, diz:

“Pergunta: De intervalo a intervalo, vós mudáveis a direção

do fogo e o dirigíeis para o lugar onde a multidão era mais

compacta? Resposta: Exatamente”.

O despacho do próprio general Dyer aos seus superiores

militares — que é citado no Relatório Hunter, com os seus grifos

 — afirma: “Já não era apenas uma questão de meramente

dispersar a multidão, e sim de produzir um efeito moral suficiente,

não somente no espírito dos que ali estavam, mas maisparticularmente em todo o Penjab. Não podia haver a hipótese de

severidade indevida”.

“Pensei que estivesse fazendo um grande bem”, foi a airada

recapitulação de Dyer, quanto ao massacre de Jallianwalla Bagh.

Mas a Comissão Hunter (cujas averiguações foram impressas pelo

 jornal East India) decidiu que “esta foi, infelizmente, uma errônea

concepção do seu dever”.

A publicação das averiguações obedeceu ao título de

“Relatório da comissão nomeada pelo governo da Índia para

investigar as perturbações ocorridas no Penjab, etc. Londres.

Secretaria de Sua Majestade, 1920, Cmd. 681”.

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13

O caminho para o cárcere

Gandhi respondeu ao massacre de Amritsar com uma

diretriz política: a de não cooperação. Boicote das mercadorias

britânicas, das honrarias britânicas, dos tribunais britânicos, das

escolas britânicas, do trabalho britânico. Advogou esse

procedimento numa conferência muçulmana realizada em Nova

Deli, em novembro de 1919.

Em dezembro de 1919, entretanto, o governo permitiu que a

convenção anual do Congresso se reunisse perto do local do

massacre, e pôs em liberdade Shaukat e Mohammed Ali, os dois

nacionalistas muçulmanos, de modo que pudessem ir diretamente

da prisão para a assembléia. No mesmo mês — e na forma de novo

bálsamo para o profundo ferimento infligido por Dyer — o rei-

imperador anunciou as reformas Montagu-Chelmsford, por meiodas quais algumas repartições públicas importantes da província

seriam entregues aos indianos. “Uma nova era está sendo

inaugurada”, proclamou o monarca.

Gandhi esperava que assim fosse. Pediu à Assembléia que

aprovasse as reformas e ajudasse a pô-las em prática. Gandhi

abandonou a não-cooperação, que havia proposto um mês antes,

e passou a aconselhar a cooperação. “Confiar é uma virtude”,

argumentou ele. “É a fraqueza que nutre a desconfiança.” Sabia

que os indianos não queriam que se pensasse que eles eram

fracos.

A autoridade de Gandhi ia aumentando. Pertencia à classe

média, e a classe média indiana o havia seguido no terreno da

política. Os delegados da classe média predominaram nas

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reuniões anuais do Congresso, tanto em 1919 como nos anos

subseqüentes. Também os pobres compareceram.

O Congresso adotou, de conformidade com isso, uma

resolução favorecendo as reformas Montagu-Chelmsford.Entretanto, Tilak, Jinnah e outros nacionalistas de proa

fizeram oposição a tais reformas (que eram coisa muito diversa da

condição de domínio); e as desilusões do pós-guerra, causadas

pelas promessas britânicas, se acentuaram ainda mais. A geração

mais jovem depositava pouca confiança no império britânico.

Lorde Chelmsford, o vice-rei, havia exonerado Dyer, e o Relatório

Hunter, embora condenando o general, não recomendara medida

alguma contra o dyerismo. Os muçulmanos mostravam-se

exaltados contra a Inglaterra, por esta haver imposto condições de

paz consideradas duras à Turquia, nação islâmica, bem como por

haver deposto o sultão-califa turco.

Sempre ansioso no sentido de unir hindus e muçulmanos —

sempre se fazendo eco das aspirações da juventude — e sempresensível aos desvios dos elevados padrões morais, Gandhi

regressou à sua política anterior de não-cooperação. Em dezembro

de 1920, a convenção anual do Congresso, realizada em Nagpur,

reconsiderou a sua decisão do ano anterior e votou contra a

colaboração com os britânicos. À vista disso, Gandhi remeteu

suas duas medalhas sul-africanas ao vice-rei, com uma carta

dizendo: “Não posso conservar respeito, nem afeto, por um

governo que tem caminhado de erro em erro, no propósito de

defender sua própria imoralidade”.

Esta mudança — do amor para com o império britânico à

repulsa a esse mesmo império, ocorrência momentosa, tanto na

vida de Gandhi quanto na da Índia — decorreu do banho de

sangue de Jallianwalla. O intervalo de confiante cooperação,

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refletindo a preferência congênita do Mahatma pela acomodação

pacífica, foi logo encerrado por um descontentamento generalizado

por toda a nação. Os atos de Gandhi se moldavam, muitas vezes,

no receio de que, se ele não liderasse o povo, as violentas paixõeso fariam. Sua estratégia, em tais ocasiões, consistia em avançar

na direção do objetivo almejado pelo povo, mas insistindo na

adoção de seus próprios métodos. Na sessão do Congresso,

realizada em Nagpur, em dezembro de 1920, Gandhi — de acordo

com essa estratégia — prometeu que, se a não-cooperação da

Índia continuasse a ser não-violenta, o autogoverno seria

alcançado dentro de um ano.

Gandhi transmitiu essa mensagem ao povo. Motilal Nehru

abandonou sua rendosa banca de advogado, deixou de tomar

álcool e tornou-se um não-cooperador total. C. R. Das, o líder do

foro de Calcutá, Vallabhbhai Patel, rico jurisconsulto de

Ahmedabad Jawaharlal Nehru e centenas de outras

personalidades abandonaram para sempre os tribunais britânicos.A juventude universitária abandonou suas salas de aula.

Professores e estudantes rumaram para as aldeias, a fim de pregar

a não-cooperação, sendo que esta, para os camponeses,

significava o não-pagamento de taxas e o não-consumo de álcool

 — constituindo um golpe duplo contra as rendas do governo.

Durante sete meses, Gandhi percorreu a zona rural, com

tempo tórrido e úmido, locomovendo-se em trens quentes,

superlotados e imundos, e discursando para assembléias de

multidões de mais de cem mil pessoas; essas multidões, naqueles

dias pré-microfônicos, apenas podiam esperar ser alcançadas pelo

espírito do Mahatma. Por toda parte, as multidões ululantes

exigiam a presença do Mahatma; queriam vê-lo; e o ato de o ver

como que as santificava. Os habitantes de determinado lugar

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fizeram saber que, se seu trem não se detivesse em sua pequena

estação, eles se deitariam sobre os trilhos e deixariam que o

comboio passasse sobre seus corpos. O trem parou; e quando

Gandhi, despertando de um sono profundo, apareceu, a multidão,que até ali se mostrara palradeira e clamorosa, caiu de joelhos na

plataforma ferroviária, e chorou. Durante aqueles exaustivos sete

meses de viagem, todas as refeições do Mahatma, em número de

três por dia, eram iguais; consistiam em meio litro de leite de

cabra, três fatias de torradas, duas laranjas e um pouco de uvas

frescas, ou mesmo de uvas passas. Essas refeições o enchiam de

energia.

A longa jornada de propaganda em prol da não-cooperação,

efetuada por Gandhi, teve todos os atributos de uma revivescência

religiosa. Em parte dessa jornada, os irmãos Ali, muçulmanos, o

acompanharam. Gandhi esclarecia, aos seus ouvintes, que não

deviam fazer uso de roupas estrangeiras; e, quando os ouvintes o

aplaudiam, pedia-lhes que se despissem de todas as peças deindumentária feitas no exterior, e as amontoassem à sua frente.

Na pilha que assim se formava, de camisas, calças, paletós,

chapéus, sapatos e roupas de baixo, Gandhi riscava um fósforo, e,

à medida que as labaredas iam abrindo seu caminho através

daquelas mercadorias importadas, ele suplicava a todos que

passassem a fiar e a tecer suas próprias roupas. Ele mesmo se

dedicou à fiação, empregando nisso meia hora por dia. Deu, à

fiação cotidiana, a denominação “sacramento”, que orientava para

a direção de Deus a mente dos fiadores. Pouco tempo depois,

nenhum indiano mais apareceu à sua presença usando qualquer

peça de indumentária que não fosse tecida em casa.

O ano passou sem o autogoverno prometido por Gandhi.

Muitos nacionalistas aconselharam a rebelião aberta contra o

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domínio britânico. As dissenções aumentaram, no Congresso. A

insistência do Mahatma quanto à fiação, à temperança e ao

desafio verbal ao Estado passou a ser ridicularizada. A juventude,

principalmente, exigia ação.“Se a Índia adotar a doutrina da espada”, respondeu Gandhi,

“ela poderá ganhar uma vitória momentânea, mas, então, a Índia

deixará de ser o orgulho de meu coração.” “Sua repulsa à

violência”, dizia o Mahatma, era adamantina, “quase beirando o

fanatismo”; e visto que ele, agora, era indispensável ao movimento

nacionalista, a comissão executiva do Congresso, reunindo-se em

Deli, no dia 4 de novembro de 1921, aprovou uma resolução

favorável a uma campanha não-violenta de desobediência civil;

mas, ao mesmo tempo, concordou em não agir sem o

consentimento do Mahatma. Rabindranath Tagore havia advertido

Gandhi, com expressões de reproche, fazendo-o ver que o fogo que

consumira as roupas estrangeiras poderia também inflamar os

espíritos; e Gandhi sentiu-se receoso. Em dezembro de 1921 e em janeiro de 1922, dez mil indianos foram encarcerados por

praticarem ofensas políticas. Motilal Nehru, C. R. Das e centenas

de outros representantes do Congresso já se encontravam presos.

Em várias províncias, os camponeses haviam iniciado movimentos

espontâneos, contra o pagamento de impostos. A Índia estava de

mau humor.

Na sessão anual do Congresso, que se realizou em

Ahmedabad, em dezembro de 1921, Gandhi, “com toda a

humildade”, fez novo apelo à Grã-Bretanha. “Seja lá o que for que

fizerdes”, explicou ele, “seja lá como for que nos reprimirdes, um

dia conseguiremos fazer com que, embora relutantemente, vós vos

arrependais; e tomai cuidado para não fazerdes, dos trezentos

milhões de indianos, vossos inimigos eternos.” Esse desafio à

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sabedoria britânica constituía também um pedido de auxílio.

Gandhi sentia-se apreensivo com o que os indianos poderiam

fazer, sob a provocação das medidas repressivas.

A fim de impressionar a Inglaterra, e de satisfazer tanto suanecessidade de ação quanto a da Índia, Gandhi iniciou, então,

uma campanha de desobediência civil na cidade de Bardoli (cuja

população era de oitenta e sete mil almas), perto de Bombaim,

onde poderia supervisionar pessoalmente a experiência. Em 1.° de

fevereiro de 1922, informou lorde Reading, vice-rei, quanto ao seu

plano.

Gandhi restringiu a desobediência civil à experiência de

Bardoli, porque não tinha certeza sobre se lhe seria possível

conservar dentro de normas pacíficas uma campanha que

abarcasse a nação toda; fez isso também com o propósito de

induzir o povo da Grã-Bretanha, por meio de uma demonstração

de retenção de impostos por parte dos indianos, a proporcionar à

Índia uma independência muito maior do que a consideradapossível para os indianos.

A experiência de Bardoli tinha apenas começado quando, em

8 de fevereiro, Gandhi recebeu notícias de uma atrocidade

cometida três dias antes, numa pequena cidade chamada Chauri

Chaura, nas Províncias Unidas, a cerca de mil e trezentos

quilômetros de distância de Bardoli. Realizou-se uma procissão

legal. “Mas”, como Gandhi relatou no semanário Young India,

“quando a procissão passou, seus participantes foram

interceptados e agredidos pelos policiais do governo. Os peregrinos

gritaram por auxílio. A multidão regressou. Os policiais abriram

fogo. A pouca munição de que dispunham logo se exauriu, e eles

se retiraram para a prefeitura, em busca de segurança. A multidão

 — ao que meus informantes me contam — ateou, por isso, fogo ao

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prédio. Os policiais, que lá se haviam encerrado voluntariamente,

tiveram de sair para salvar a própria vida; assim que saíram,

foram reduzidos a pedaços; e seus restos mutilados foram atirados

à fúria das labaredas.”Esse assassínio brutal de vinte e dois policiais constituiu um

mau agouro, declarou Gandhi. “Suponhamos que Deus permitisse

que a desobediência não-violenta de Bardoli se coroasse de êxito, e

que o governo abdicasse de seus rigores, em favor dos vitoriosos

de Bardoli; quem controlaria os elementos desordenados que

poderiam perpetrar desumanidades, à primeira provocação?”

Gandhi não tinha segurança quanto a poder efetuar esse controle.

De conformidade com isso, suspendeu o esforço de desobediência

de Bardoli e proibiu qualquer desacato ao governo, em qualquer

parte da Índia.

“Deixemos que o adversário se vanglorie com nossa

humilhação, ou com a assim chamada derrota”, exclamou ele. “É

melhor ser acusado de covardia e de fraqueza do que ser culpadode violar nosso juramento e de pecar contra Deus. É um milhão de

vezes melhor parecermos desleais perante o mundo do que sermos

desleais conosco mesmos.”

A uma palavra de Gandhi, a Índia se ergueria em revolta.

Havia extremistas que diziam que os britânicos poderiam ser

expulsos da Índia. O mundo se encontrava ainda profundamente

envolvido pelo turbilhão do pós-guerra, e a Grã-Bretanha

defrontava-se com uma crise difícil em muitas partes do globo.

Gandhi, porém, não compraria a independência ao preço de um

derramamento nacional de sangue; uma Índia livre, nascida do

assassínio, traria a marca disso, em sua fronte, durante decênios.

Ele sacrificou o fim — em todo caso duvidoso, naquela época —

porque os meios maléficos para o conseguir o envenenariam.

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 Tendo revogado a desobediência civil, condenado a rebelião e

proibido a hostilidade franca ao Estado, Gandhi ficou desarmado,

e lorde Reading mandou prendê-lo.

 Tinha havido pressão sobre Reading, procedente de Londres,bem como de governadores provinciais britânicos da Índia, para

que Gandhi fosse encarcerado, mas Reading resistira a isso.

Reading havia subido de menino de recados, a bordo de navios, à

categoria de lorde do Supremo Tribunal, à de embaixador da

Inglaterra em Washington, e, agora, à de vice-rei; seu espírito

legalista desaprovava a prisão baseada apenas em meras palavras,

proferidas ou escritas. Ele declarou: “Estou preparado para

enfrentar as conseqüências da prisão de Gandhi, se ele entrar em

ação”. Entretanto, quando teve a certeza de que Gandhi não

empreenderia ação alguma, ordenou sua prisão; ordenou-a

precisamente por essa razão, e também porque Gandhi havia

assegurado, às autoridades, que não haveria conseqüências. Num

artigo inserido em seu semanário Young India, em 9 de março de1922, intitulado “Se eu for preso”, Gandhi escreveu: “Rios de

sangue, derramados pelo governo, não podem atemorizar-me; mas

eu me sentiria profundamente penalizado se o povo molestasse,

ainda que levemente, o governo, por minha causa, ou em meu

nome. Seria uma infelicidade para mim, se o povo perdesse seu

equilíbrio por ocasião de minha prisão”. Ele foi preso em 10 de

março às dez e meia da noite.

Gandhi havia dado motivo para tanto. As acusações foram

as de pregar sedição em três artigos publicados. No primeiro, de

19 de setembro de 1921, dissera: “Não hesito em dizer que é

pecado, seja lá para quem for, militar ou civil, servir este

governo... A sedição já se tornou o credo deste Congresso... A não-

cooperação, sendo embora um movimento estritamente religioso e

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moral, visa, deliberadamente, à derrubada do governo, e é,

portanto, legalmente, sedição...” No segundo, de 21 de dezembro

de 1921, escrevera: “Lorde Reading deve compreender que os não-

cooperadores se encontram em guerra contra o governo.Declararam a rebelião contra ele... Lorde Reading está no direito,

portanto, de os colocar fora das condições de lhe fazerem mal”. No

terceiro, de 23 de fevereiro de 1922, Gandhi exclamara: “Como

pode haver qualquer transigência, enquanto o leão britânico

continuar a agitar suas garras ensangüentadas diante de nossos

olhos?... Os milhões de indianos, comedores de arroz, imbeles,

parece que resolveram realizar seu próprio destino sem mais

tutela e sem armas... A luta que teve início em 1920 é uma luta de

vida ou de morte...”

A pequena sala do tribunal de Ahmedabad ficou apinhada

no dia 18 de março. Depois da leitura da acusação, e depois de o

promotor público, ali chamado advogado geral, haver apresentado

as razões contra Gandhi, o Mahatma ergueu-se e declarou: “Aquiestou... para provocar e para me submeter alegremente à mais

severa penalidade que me possa ser infligida, pelo que, perante a

lei, é crime deliberado, e pelo que me parece ser o mais elevado

dos deveres de um cidadão”. A seguir, passou a explicar “a razão

pela qual, eu, de ferrenho legalista e cooperador, passei a ser um

intransigente desafeto e não-cooperador”. Referiu-se às suas

experiências sul-africanas; disse como fora para a guerra ao lado

da Grã-Bretanha, e como, na Índia, recrutara elementos para o

exército inglês. “Eu era levado pela crença”, esclareceu ele, “de que

seria possível, por meio de tais serviços, conquistar o estado de

perfeita igualdade, no império, para meus compatriotas.”

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Depois, em 1919, haviam ocorrido os choques: as leis

Rowlatt, o massacre de Jallianwalla, os açoitamentos, a injustiça

praticada contra o califa turco. “Lutei pela cooperação e pela

efetivação das reformas Montagu-Chelmsford. Mas cheguei com

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relutância à conclusão de que os vínculos britânicos haviam

tornado a Índia mais desamparada do que o fora em qualquer

tempo antes, seja política, seja economicamente... Ela se reduziu a

esse estado, por tal forma, que agora tem pouca força para resistiràs fomes. Antes do advento dos ingleses, a Índia fiava e tecia, nos

seus milhões de lares, exatamente as roupas de que precisava,

para aumentar seus parcos recursos agrícolas.” As indústrias

domésticas haviam sido arruinadas pelos produtos

industrializados britânicos. Embora muitos funcionários ingleses

pensassem estar ajudando a Índia, “eles não sabem que um

sistema sutil, mas eficiente, de terrorismo, e que uma organizada

demonstração de força, de um lado, combinada com a privação de

todas as possibilidades de represália e de autodefesa, de outro,

haviam emasculado o povo e induzido, nele, o hábito da

simulação”. Gandhi, portanto, considerava “uma honra ser

desrespeitoso”; por isso, solicitou “a pena mais severa”.

Quando Gandhi se sentou, o juiz Bromfield curvou-se emreverência a ele, e proferiu a sentença. “A lei não é respeitadora de

pessoas”, afirmou. “Não obstante, será impossível ignorar o fato de

vós figurardes numa categoria diferente da de qualquer outra

pessoa que jamais julguei, ou que jamais terei a possibilidade de

 julgar. Seria impossível ignorar o fato de, aos olhos de milhões de

vossos conterrâneos, vós serdes um grande patriota e um grande

líder. Até aqueles que divergem de vós, em política, olham para

vós como para um homem de ideais superiores, e de nobre e

mesmo de santa vida.”

Assim dizendo, o juiz sentenciou Gandhi a seis anos de

prisão. Quando o tribunal encerrou a sessão, a maior parte dos

espectadores caiu aos pés de Gandhi e chorou. Gandhi sorriu, ao

ser conduzido para fora dali, a caminho do cárcere.

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Esta não foi a última vez que os ingleses prenderam e

encarceraram Gandhi. Mas foi a última vez que o julgaram.

14

 Jejuns de Gandhi

Em 12 de janeiro de 1924, o Mahatma foi conduzido

apressadamente da prisão central de Yeravda para o Hospital

Sassoon, na cidade de Poona; nessa noite, o coronel Maddock,

cirurgião britânico, procedeu a uma intervenção cirúrgica, em

conseqüência de uma apendicite. A operação foi bem sucedida, e

Gandhi agradeceu de todo o coração ao médico; contudo,

desenvolveu-se um abscesso, e o restabelecimento foi lento. O

governo achou que, naquelas circunstâncias, seria generoso e

prudente pôr em liberdade o prisioneiro convalescentes e fez issoem 5 de fevereiro de 1924. A experiência deixou Gandhi “com uma

reserva extremamente pequena... de energia”. Em dois meses,

contudo, voltou ele a editar o Young India, o seu semanário de

língua inglesa, e a Navajivan, revista publicada em Gujarati, na

sua língua natal.

Durante os vinte e dois meses que Gandhi passou no

cárcere, a situação política na Índia piorara seriamente.

Resumindo-a, Gandhi escreveu: “Dezenas de advogados

retomaram as tarefas de sua profissão. Alguns até lamentam tê-

las abandonado... Centenas de moços e moças, que se haviam

retirado das escolas e dos colégios do governo, se arrependeram de

sua ação, voltando a freqüentá-los”. Certo número de líderes

nacionalistas — notadamente Motilal Nehru, pai de Jawaharlal, e

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C. R. Das — haviam resolvido participar dos quadros legislativos

municipais, provinciais e nacionais, no propósito de obstruir e

instruir as autoridades britânicas. Gandhi desaprovou isso.

Continuou a ser — ao que declarou no Young India, em 10 de abrilde 1924 —“um forte descrente do governo”. Muita gente, porém, se

sentia incapaz de fazer os sacrifícios que a não-cooperação exigia,

e o Mahatma percebeu que o espírito claudicante do povo não

poderia sustentar seu boicote antigovernamental. Em

conseqüência, retirou-se da política, no sentido comum da

expressão, e, durante os poucos anos seguintes, dedicou-se a ela

no sentido que ele dava a esse vocábulo, que era o do

enobrecimento do povo. “Estou certo de que”, escreveu ele, ao seu

amigo inglês, Charles F. Andrews, “no instante em que a Índia se

purificar, a Índia se tornará livre, e não um momento sequer antes

disso.”

A purificação não tinha acepção mística. Significava coisa

concreta como a amizade hindu-muçulmana, porquanto, ao que oMahatma afirmava, “nenhum problema é mais importante, nem

mais premente do que ela”. Gandhi concordava com o líder

muçulmano Jinnah em que “a união hindu-muçulmana significa

swaraj”, ou seja, autogoverno. Em vez de união, entretanto, duas

comunidades religiosas se encontravam de punhais

desembainhados. “Pressinto a vinda da onda de violência”, Gandhi

anunciou.

Depois do regresso de Gandhi à Índia, em 1915, ele logo

percebeu que as relações entre hindus e muçulmanos

determinariam o futuro da Índia. Falou com freqüência sobre tal

assunto, e dedicou a edição inteira de 29 de maio de 1924 do

semanário Young India ao seu próprio artigo de seis mil palavras

intitulado “A tensão hindu-muçulmana — sua causa e sua cura”.

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Pôs a cura em umas poucas palavras. A amizade hindu-

muçulmana era possível, disse ele, “porque é tão natural, tão

necessária, para as duas partes, e porque eu acredito na natureza

humana”. Essa sentença contém quase todo o espírito de Gandhi.Uma vez que o objetivo é bom e que o homem é bom — dizia ele — 

, o objetivo pode ser alcançado. Aqui estava a fé que fizera dele um

grande mahatma. Que importava que ele fracassasse? Ele era

grande mesmo no fracasso. Qualquer pessoa pode ser menor no

êxito do que na derrota; isso depende do que ela procura fazer.

Em 1946, quando a Índia estava se dividindo entre o

Paquistão, de Jinnah, e a República da Índia, de Nehru, para

enorme e infindável sacrifício das duas partes, discuti com o sr.

 Jinnah, que, a essa época, já havia deixado de ser o reformador

que fora em 1920; disse-lhe que o mundo “precisa de harmonia,

não de novas discórdias”; precisava da unificação da Índia, não da

sua divisão.

“Eu sou realista”, respondeu ele: “Lido com as coisas talcomo elas são.”

Chamei a atenção dele para o caos em que as divisões

religiosas e nacionalistas haviam transformado a Europa.

“Tenho de lidar com as características divisoras que

existem”, insistiu ele.

 Também Gandhi era um realista.

“Sou um realista prático”, proclamava ele.

O seu, porém, era o realismo que combate o mal, ao invés de

fazer uso dele. Não sendo um utopista, ele sabia que, embora o

homem fosse bom, a bondade tinha de ser evocada; do contrário,

alguém exploraria a maldade. Para evocar a bondade, ele jejuava

em intenção da amizade hindu-muçulmana.

Os jejuns de Gandhi constituíam um processo de

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comunicação dele com seus semelhantes. “Evidentemente, nada

do que eu digo, ou escrevo, pode aproximar as duas comunidades

uma da outra”, declarava ele. Daí o jejum. Para se comunicar, o

Ocidente fala ou se locomove. O Oriente contempla, senta-se,sofre. Gandhi recorria tanto aos métodos ocidentais como aos

orientais. Quando as palavras falhavam, jejuava.

Ao longo de sua vida, Gandhi explorou novos campos de

comunicação. Por vezes, dirigia-se a uma gigantesca multidão,

mas, em vez de proferir um discurso, sentava-se, de pernas

cruzadas; inclinava-se, oscilando levemente de um lado para

outro; não dizia coisa alguma; a seguir, sorria, unia as palmas das

mãos, fazendo a saudação hindu, e a multidão se ajoelhava e

chorava. Ele havia estabelecido a comunicação. Havia tocado no

coração dos presentes. Nas entrevistas que concedia, Gandhi não

fazia apenas declarações, nem apenas respondia a perguntas. Seu

objetivo principal consistia em estabelecer uma relação íntima

com a outra pessoa, porque isso contribuía, mais do que aspalavras, para a mútua compreensão.

O jejum era, também, um recurso para chegar ao coração e

ao espírito dos homens.

“Jejuei”, disse certa vez, “para reformar os que me amavam.”

E acrescentou: “Não se pode jejuar contra um tirano, porque o

tirano é incapaz de amor, e, por isso, inacessível a uma arma de

amor, como o jejum”.

Gandhi nunca jejuou para obter vantagens do governo

britânico. Seus jejuns se dirigiam a seu próprio povo, porque,

entre esse povo e ele, uma corda de simpatia existia

presumivelmente, na qual o jejum tocava. O jejum tinha de ser

altruísta. “Posso jejuar por meu pai, para curá-lo de um vício”,

escreveu o Mahatma, “mas não jejuarei para conseguir dele uma

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herança.” Uma vez que o jejum não se destinava à consecução de

ganhos pessoais, mas ao benefício público, o povo acabaria por

percebê-lo, sendo por isso afetado.

Embora Gandhi o negasse, havia, a intervalos, um elementode intimidação em seus jejuns, como quando ele jejuou porque os

proprietários de moinhos, de Ahmedabad, que lhe eram

devotados, se haviam recusado a aceitar a arbitragem numa greve.

Os moageiros se submeteram, afinal, para que ele não morresse; a

morte de Gandhi, por aquele jejum, seria como uma morte

praticada pelas mãos dos moageiros. Mas o jejum em prol da

união hindu-muçulmana estava destituído de compulsão. O

hindu, em Allahabad, e o muçulmano, em Agra, não seriam

compelidos a melhorar as relações entre as duas religiões, só

porque Gandhi jazia moribundo. Fariam isso — se o fizessem —

quando o sacrifício dele houvesse estabelecido uma espécie de

sintonia entre o Mahatma e eles. O jejum era a maneira que

Gandhi adotava para atingir as pessoas, o coração dos outros,para que pudessem sentir e reagir como ele próprio sentia e

reagia.

“Estou, portanto”, anunciou ele, “impondo a mim mesmo um

 jejum de vinte e um dias, a partir de hoje, e a concluir em 6 de

outubro de 1924. Reservo-me a liberdade”, explicou, “de beber

água, com ou sem sal.”

A água, durante o jejum, lhe causava náuseas, e ele, por

isso, lhe acrescentava uma pitada de sal ou de bicarbonato de

sódio. Bebia água porque não desejava morrer. Amava a vida e

desejava preservar o próprio corpo. Permitia que lhe fizessem

massagens, dormia regularmente e caminhava, para ganhar

forças. Todas as suas extravagâncias dietéticas, estranhas aos

olhos dos ocidentais, e mesmo aos de muitos indianos,

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destinavam-se a transformá-lo num instrumento biologicamente

perfeito para a consecução de objetivos espirituais; e ele

continuou a ser, até que uma bala o atingiu, um homem forte que

poderia ter vivido muito mais. Não obstante, quandoconsiderações morais tornavam imperativo o jejum, seu corpo não

se opunha a isso. Se a carne fosse fraca, ela sofreria, e até mesmo

sucumbiria; mas não podia opor-se.

Dois médicos muçulmanos estiveram constantemente a

serviço de Gandhi, durante o jejum de vinte e um dias em prol da

união hindu-muçulmana; e Charles Freer Andrews, missionário

cristão, lhe serviu de enfermeiro. O jejum foi feito em casa de

Mohammed Ali, irmão mais moço de Shaukat. Durante vinte e um

dias, a atenção da Índia se concentraria naquela casa

muçulmana. Os muçulmanos tratariam de fazer com que os

Mohandas e os Mohammed se tornassem amigos. Os hindus

acabariam vendo que seu santo havia confiado a própria vida a

um muçulmano. Ali estava uma demonstração comovente defraternidade.

No segundo dia de jejum, Gandhi redigiu um apelo, que

tomava toda uma página, em prol da “união na diversidade”. “A

necessidade do momento”, afirmou ele, “não é uma religião, e sim

o respeito mútuo, a recíproca tolerância dos devotos de religiões

diferentes.” Ao sexto dia, preparou outro artigo sobre o mesmo

tema. No décimo segundo dia, redigiu cento e doze palavras, para

publicação, que mostraram o quanto a tônica de sua política se

havia desviado. “Até agora”, afirmou ele, “tem sido uma luta e um

anseio em prol da mudança de sentimentos entre os ingleses que

compõem o governo da Índia. Essa mudança ainda está por vir.

Mas a luta, no momento, deve ser transferida para a consecução

de uma mudança de sentimentos entre os hindus e os

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muçulmanos. Antes que eles ousem pensar em liberdade, devem

tornar-se suficientemente corajosos para se amarem uns aos

outros, tolerarem as religiões uns aos outros, mesmo seus

preconceitos e superstições, e para confiarem uns nos outros. Issorequer do indivíduo fé em si mesmo. E fé em si mesmo significa fé

em Deus. Se tivermos essa fé deixaremos de nos temer uns aos

outros.” Opor ao medo a fé constituía a própria essência de

Gandhi. No vigésimo dia, ele ditou uma prece; os vinte dias, disse

ele, haviam sido “dias de graça, de privilégio e de paz”.

Naquela noite, o Mahatma Gandhi se apresentou

maravilhosamente brilhante e bem disposto; às quatro horas da

madrugada seguinte, ao que Andrews informou, “fomos chamados

para as preces da manhã”. Andrews perguntou a Gandhi se ele

havia dormido bem. “Sim, muito bem, na verdade”, respondeu

Gandhi; e Andrews escreveu: “Foi uma felicidade observar, desde

logo, que a sua voz estava ainda mais firme do que na manhã

anterior...”Seis horas depois, no último dia de jejum, Gandhi disse a

Andrews:

 — Podeis recordar as palavras do meu hino cristão favorito?

 — Sim. Devo cantá-lo para vós, agora?

 — Não, não agora — explicou Gandhi —, mas tenho em

mente fazer com que, quando interromper meu jejum, realizemos

uma pequena cerimônia expressando a união religiosa. Gostaria

que o Imã Sahib recitasse os versos de abertura do Corão. A

seguir, gostaria que cantásseis o hino cristão; sabeis ao qual me

refiro, aquele que começa assim: “Quando eu examino a

maravilhosa cruz”, e termina com as palavras: “O amor, tão

extraordinário, tão divino, exige a minha alma, a minha vida, o

meu todo”.

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Isso deveria ser seguido por um hino hindu.

Ao meio-dia, Gandhi falou a meia voz, pedindo, aos seus

muitos amigos que se achavam presentes, que “entregassem suas

vidas, se necessário fosse, em prol da causa da fraternidade”. Ascanções foram então cantadas, e Gandhi bebeu um pouco de suco

de laranja, a fim de quebrar o jejum de três semanas.

Não há provas de que o ordálio haja sido muito eficaz. O

amor de Gandhi não conseguiu dissolver a rocha de granito da

hostilidade hindu-muçulmana — coisa que ele atribuiu, em larga

escala, a noções falsas, relativas à defesa da religião. Assim, as

procissões religiosas hindus com freqüência passaram à frente de

mesquitas muçulmanas, na hora da prece; e isso irritava os

sequazes do Profeta. Constituía erro, da parte dos hindus, pensar

que sua religião exigisse que eles fizessem isso; e constituía erro,

da parte dos muçulmanos, perpetrar represálias, efetuando

agressões. Da mesma forma, os hindus adoravam a vaca, e os

muçulmanos a comiam. Entretanto, embora Gandhi reconhecesseque a proteção à vaca simbolizava “a proteção de toda criatura de

Deus”, e constituía, portanto, “o fato central do hinduísmo”, ele

nunca pudera compreender — ao que esclareceu — a razão pela

qual isso provocava tamanha antipatia por parte dos

muçulmanos. “Nada dizemos a respeito da matança [de vacas] que

ocorre todos os dias, por obra dos ingleses”, observava Gandhi,

“mas nossa fúria se faz rubra como brasa, quando um

muçulmano abate uma vaca.” Ainda assim, ao fim das contas, “as

vacas acabam com seu pescoço por baixo da faca do magarefe,

porque os hindus as vendem... Em nenhuma parte do mundo o

gado é mais maltratado do que na Índia... As condições de semi-

inanição, da maioria do nosso gado, são um desdouro para nós”.

A música diante das mesquitas e a matança de vacas

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provocaram com freqüência conflitos entre hindus e muçulmanos;

mas o mesmo se pode dizer dos raptos e das conversões forçadas

de mulheres e crianças de uma comunidade religiosa pelos

homens de outra. Tais conflitos eram provocados até por boatos,como ocorreu, em Bombaim, em 1938, quando uma briga, em

altos brados, teve início entre três hindus e um muçulmano, que

haviam estado a jogar cartas e a beber num parque; a contenda

originou boatos sobre combates, e afinal provocou verdadeiras

batalhas de rua que resultaram numa lista de catorze mortos,

noventa e oito feridos e duas mil e quatrocentas e oitenta e oito

prisões. Essas ferozes explosões provinham de circunstâncias

sociais e econômicas, que o Mahatma raramente discutia e

geralmente subestimava. Uma chave para a compreensão dessa

situação deve ser encontrada no fato de, em setecentas mil aldeias

da Índia, os hindus e os muçulmanos viverem pacificamente, lado

a lado. Ademais, no exército indiano, os hindus, os muçulmanos,

os siques e os cristãos comiam, dormiam, faziam treinamentos eguerreavam lado a lado, sem maiores atritos. As tensões hindu-

muçulmanas constituíam uma enfermidade citadina, do século

XX, enfermidade provocada pelo homem, enfermidade da classe

média, que contagiava alguns políticos com a loucura do poder.

Devido ao preceito islâmico, o grosso da riqueza muçulmana,

na Índia, era aplicado em terras, deixando a indústria e o

comércio aos hindus e aos parses, que preferiam alugar os

serviços de seus próprios correligionários. A classe média

muçulmana tardou, por isso, a surgir; e, quando surgiu, nos

começos do século, mal podia competir com os hindus e os parses,

que já gozavam as vantagens de maior cultura e de melhores

relações. Os jovens muçulmanos tinham de enfrentar a mesma

forte concorrência na conquista de empregos públicos, empregos

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que, à vista do atraso econômico da Índia, constituíam uma das

principais, se não a principal, atividades no país. Tais jovens,

conseqüentemente, insistiam em que uma porcentagem dos

referidos empregos fosse reservada a eles, independentemente desuas qualificações. Os líderes muçulmanos lançaram esse clamor;

e, tanto por necessidade como por justiça, os britânicos cederam.

Os muçulmanos, que integravam um quarto da população

da Índia, e os hindus, que compreendiam três quartos, são

parentes próximos. Numerosos muçulmanos da Índia são hindus

convertidos — convertidos pelos invasores árabes, afegãos e

persas, que começaram a penetrar na Índia no século VIII. O sr.

 Jinnah declarou que os hindus convertidos compunham setenta e

cinco por cento da população muçulmana; o pândit Nehru elevou

essa cifra a noventa e cinco por cento. Em algumas partes da

Índia, os muçulmanos fazem suas adorações em templos hindus.

Em muitas regiões, os muçulmanos e os hindus não se

distinguem uns dos outros quanto à aparência, às roupas, aoidioma e aos costumes. Ali, os muçulmanos têm até castas, como

os hindus. O hindi e o urdu, idiomas predominantes,

respectivamente, dos hindus e dos muçulmanos, se escrevem com

caracteres diferentes; o primeiro absorveu mais vocábulos

sânscritos, ao passo que o segundo faz uso de maior número de

palavras persas; mas os dois continuam sendo muito

semelhantes. Ademais, em grandes áreas da Índia, os mu-

çulmanos e os hindus não conhecem o urdu, nem o hindi,

possuindo, ao invés, uma língua comum, o bengali, na província

de Bengala, por exemplo. O próprio sr. Jinnah, nascido em

Kathiawar, de descendência hindu, falava guzerate em casa de

seus pais, exatamente como Gandhi.

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Contudo, os vínculos lingüísticos e raciais eram minados

pelas diferenças religiosas; e as novas rivalidades, surgidas da

competição pelas limitadas oportunidades econômicas existentes

na Índia, tornavam as coisas ainda piores. O hindu, ademais,

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propende ao isolacionismo separatista, e, de velha data, adquiriu

uma atitude de superioridade esnobe para com os muçulmanos,

recusando-se, entre outras coisas, a misturar-se com eles através

do casamento, ou a fazer suas refeições à mesma mesa em suacompanhia. Um hindu ortodoxo pode visitar um lar muçulmano,

mas não bebe sequer um copo d’água, nem come ali. Os políticos

muçulmanos, tirando proveito da conseqüente hostilidade,

disseram, aos seus seguidores, que a independência viria a

significar a opressão por parte da maioria hindu; significaria

ausência de empregos públicos, ausência de negócios, e, talvez,

regresso compulsório ao hinduísmo. Essas ameaças, ao que

 Jinnah declarou em 1917, eram irreais. “Não temais”, clamava ele,

“trata-se de um embuste apresentado a vossos olhos para que

fujais da cooperação e da união, que são dados essenciais para a

autonomia.” Entretanto, o embuste podia ser apresentado de uma

maneira tão verossímil que, por fim, o próprio sr. Jinnah utilizou-

o para seus costumeiros propósitos.Os britânicos, sentindo-se inseguros na Índia, naturalmente

tiraram proveito da dissensão entre hindus e muçulmanos. A Grã-

Bretanha não dividia para reinar. Os indianos já estavam

divididos. A Grã-Bretanha apenas os dividira um pouco mais, a

fim de reinar mais facilmente.

Frustrado pelo fracasso de seu jejum em prol da causa

hindu-muçulmana, Gandhi viu que o estado de domínio e a

liberdade nacional se encontravam muito mais distantes do que

ele havia pensado. Na segunda metade do ano de 1924, o mundo

afundou-se na “normalidade” do pós-guerra. O Plano Dawes

empreendeu a tarefa de salvar a economia alemã. As grandes

potências européias estavam reconhecendo a Rússia soviética.

Com exceção do sul da China, onde o general Chiang Kaichek

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tinha uma aliança com Moscou,

O bolchevismo se encontrava em maré baixa. Coolidge e a

complacência presidiam os Estados Unidos. O império britânico,

desafiado pelo Sinn Fein1  irlandês e pelas revoltas do Orientepróximo, entre os anos de 1919 e 1923, estava, agora, como que

acalmado, em águas plácidas. Na Índia, as paixões do período pós-

Amritsar se haviam extinguido, e as dúvidas e o desespero, bem

como, provavelmente, a não-violência de Gandhi, estimulavam o

ardor do nacionalismo beligerante. Não era hora para uma franca

rebelião antibritânica. O Mahatma dedicou-se à reeducação de um

país para a liberdade — um processo lento.

1  Organização política fundada em 1905 na Irlanda e que defendia suacompleta separação política da Grã-Bretanha. (N. do E.)  

15

Resposta a Moscou

Entre 1924 e 1929, que foram os anos de modorra, o

Mahatma Gandhi não podia saber o que os jornais teriam de

informar em 1940, nem o que agora está registrado na história.

Ele estava apenas tentando uma estrada para a liberdade.

Contudo, o caminho que palmilhava, naquela fase da depressão

política da Índia, conduzia à independência nacional. Teria

tomado o mesmo rumo, em qualquer caso, porquanto o que fez,

nos fins de 1920, era em si correto, era um meio desejável, fosse

qual fosse o fim. Estava convencido de que um bom meio é, em si

mesmo, um bom fim. Isso lhe dava a ânsia de prosseguir, muito

embora não visse luz à saída do túnel; isso lhe dava uma sensação

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de certeza, muito embora não estivesse seguro de sua direção. O

emprego dos meios adequados, ao que ele sentia, nunca poderia

constituir uma perda; deveria proporcionar um ganho duplo;

deveria haver o benefício decorrente dos meios empregados, maisa consecução do fim almejado. Podia, portanto, ser paciente,

porquanto estava indo para algum destino, mesmo quando não

parecia estar se movendo para a frente.

 Tilak e Gokhale estavam mortos, e o Mahatma havia sido

conduzido, pelo povo, ao pináculo da eminência. Sua choupana,

no ashram de Sabarmati, era, agora, a Casa Branca da Índia; e,

quando Gandhi se achava em excursão, as multidões o cercavam,

aonde quer que ele fosse. “Não me deixam só nem sequer quando

tomo banho”, escreveu ele. À noite, seus pés e suas pernas, dos

 joelhos para baixo, se cobriam de arranhaduras feitas por

homens, mulheres e crianças que inclinavam a cabeça até o chão

e lhe tocavam no corpo. Sua deificação estava começando; a tribo

de Gond venerava-o. “Já manifestei meu horror e minha enérgicadesaprovação quanto a esse tipo de idolatria”, exclamava ele.

Muitos indianos consideravam-no uma reencarnação de

Deus, à maneira de Buda e de Krishna; Deus descido

temporariamente à terra. Vinham das montanhas, das planícies,

das aldeias mais longínquas, para se santificarem vendo-o ou

tocando-o. Em Dacca, na província de Bengala, um homem idoso,

ostentando a fotografia de Gandhi pendurada no pescoço,

apresentou-se chorando e disse que o Mahatma o havia curado de

uma paralisia crônica. “Vós me fareis um favor tirando essa

fotografia de vosso pescoço”, retrucou Gandhi. “Não fui eu, e sim

Deus, que vos tornou são.”

Nem mesmo os intelectuais estavam imunes. Certo dia, um

advogado, viajando no mesmo trem com Gandhi, caiu ao chão, de

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cabeça para baixo, Quando o apanharam, viu-se que se

encontrava ileso. O advogado atribuiu sua salvação ao fato de ser

companheiro de viagem do Mahatma.

“Nesse caso, não devíeis sequer ter caído”, riu Gandhi.Entristecido pela vazia glorificação, Gandhi escreveu: “Não

sou nenhum mahatma. Minha condição de mahatma não tem

valor”. Teria preferido que os indianos lhe seguissem as pegadas, a

vê-los beijarem-lhe os pés. Queria auxílio., não aclamações, nem

adoração. Queria auxílio, acima de tudo, para implantar

indústrias domésticas e, em particular, a da fiação. “Para mim”,

proclamava ele, “nada, no mundo político, é mais importante do

que a roca.”

Durante minha estada junto a Gandhi, em 1946, entrei em

seu quarto, enquanto ele se encontrava fiando. Ele explicou

aquela devoção:

 — Se trezentos milhões de indivíduos fizessem a mesma

coisa, uma vez por dia, não pelo fato de Hitler o haver ordenado, esim por se sentirem inspirados pelo mesmo ideal, poderíamos ter

união suficiente de propósitos para conseguir a independência.

Sugeri, jocosamente, que, quando ele parava de fiar, para

falar comigo durante uma hora, estava adiando a independência.

 — É isso mesmo — riu ele. — Vós haveis atrasado o swaraj

em seis metros.

As tangas, xales, toalhas e lençóis de Gandhi eram todos de

fazenda tecida em casa, ou khadi. Um número cada vez maior de

indianos já passava a usar roupas de tais tecidos. Alguns, porém,

escarneciam. “Envoltórios brancos e monótonos”, zombavam. “A

libré de nossa liberdade”, replicava Jawaharlal Nehru.

Gandhi acreditava tanto na roca, que a pôs no centro da

bandeira do Partido do Congresso, que depois se tornou a

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bandeira da Índia independente. Essa foi sua contribuição

especial para a educação dos espíritos abertos para a política, que

viviam nas cidades; aquilo os tornou conhecedores da população

camponesa pobre e sem instrução. Constituiu uma aventura naidentificação da liderança com as massas, porquanto ele sabia

com que facilidade, na Índia, o esplendor dos palácios, feito de

ouro, prata, sedas, jóias e elefantes — ou, em termos mais

modernos, o glamour das gigantescas unidades industriais —

podia esconder, à vista da gente, a pobreza animal que havia em

suas choupanas.

Para assistir o desfavorecido — ensinava Gandhi — é preciso

compreendê-lo; e para compreendê-lo é preciso, às vezes, viver

como ele vive. “Estou procurando progredir de baixo para cima”,

declarava; e alertava os intelectuais, dizendo-lhes que, se não lhe

apoiassem a política do khadi, “a Índia culta se separará do único

vínculo visível e tangível que a une às massas”. A fiação era,

assim, outro meio de comunicação, e um trabalho de amor.Organizar e financiar o movimento da roda de tecer eram a

finalidade principal de suas várias excursões pela zona rural.

Geralmente, Gandhi viajava de terceira classe. Sugeria que, se o

vice-rei, o comandante-em-chefe e os marajás fizessem o mesmo,

as condições higiênicas da terceira classe seriam melhoradas. Em

toda parte a que se dirigia, coletava dinheiro. Ao longo de toda a

sua vida, Gandhi sempre foi um irreprimível arrecadador de

fundos. As quantias eram empregadas na compra de rocas e fusos

para os camponeses, na abertura de lojas, nas cidades, para a

venda do khadi das aldeias, no treinamento de fiadores e no

preparo de mestres de tecelagem. Assim que o trem parava nas

estações, ele punha para fora da janela a concha feita com a

palma de sua mão, de modo que o povo pudesse ali depositar

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moedas e cédulas. Ou, então, passava pelo meio das multidões,

vendendo fazendas tecidas em casa. Gandhi aceitava também

ouro e jóias. “O exército de minhas namoradas aumenta dia a

dia”, orgulhava-se ele. “A última é Ranibala, de Burdwan, umaadorável garota talvez de uns dez anos. Não ousei perguntar-lhe a

idade. Eu brincava com ela, como sempre faço, e lançava olhares

furtivos a seus seis pesados berloques de ouro. Com delicadeza,

expliquei-lhe que tais berloques constituíam peso excessivo para

seus tenros punhos; e lá foi a mãozinha dela arrancando os

berloques.” Mais tarde, nesse mesmo dia, ele relatou o

acontecimento numa reunião de mulheres e conseguiu “uma boa

dúzia de berloques e dois ou três pares de brincos, tudo sem

pedir. Escusado dizer que tudo será empregado em khadi”.

Gandhi explicava às mulheres que elas aumentariam a própria

beleza, dando a ele seus adornos: “Bela é quem o belo faz”, citava

ele. Além disso, dizia, as mulheres indianas usavam um

“mobiliário pessoal” excessivo em suas orelhas, no nariz, nosbraços, nos tornozelos. Elas ficariam mais limpas sem isso.

Os amigos o acusavam de exagerar a eficácia da fiação.

Estamos na era da máquina, clamavam eles, e todo o seu

trabalho, sabedoria e santidade não fariam retroceder os ponteiros

do relógio. “Há cento e cinqüenta anos”, respondia Gandhi, “nós

tecíamos todas as nossas roupas. Nossas mulheres fiavam ótimos

fios, em seus lares, e com isso complementavam os ganhos de

seus maridos... A Índia precisa de cerca de doze metros de pano

por cabeça, ao ano. Ela produz, ao que penso, menos da metade

dessa quantidade. A Índia planta e colhe todo o algodão de que

precisa. Exporta vários milhões de fardos de algodão para o Japão

e para Lancashire, e recebe, de volta, grande parte disso, na forma

de tecido, embora ela seja capaz de produzir todo o pano e todo o

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fio necessários para satisfazer suas conveniências, pelo processo

da fiação manual e da tecelagem manual... A roca de tecer foi

dada de presente à nação, a fim de proporcionar ocupação aos

milhões de pessoas que, pelo menos durante quatro meses porano, não tinham o que fazer.”

A preocupação máxima de Gandhi era a de auxiliar o pobre

mal empregado; visto como ele e seu Deus eram associados, ele

alistou o Todo-Poderoso na sua tarefa. “A um povo faminto e

ocioso”, escreveu, “a única forma aceitável, em que Deus ousa

aparecer, é na de trabalho, e na de promessa de alimentos através

dos salários.” A pobreza, sustentava o Mahatma, conduz à

“degradação moral”. Queria uma Índia próspera e feliz. “Se não

desperdiçarmos nossa saúde e nossa riqueza”, insistia, “o clima e

os recursos naturais de nosso país são de tal ordem, que

poderemos nos tornar o povo mais feliz do mundo.”

A noção mais ou menos difundida, segundo a qual Gandhi

favorecia o estado de pobreza, se deve, provavelmente, ao fato deele praticar a pobreza consigo mesmo, por sua espontânea

vontade, e de condenar os extremos da riqueza. “Na África do Sul,

onde tive o privilégio de associar-me a milhares de nossos

compatriotas, nos termos mais íntimos”, declarou ele, de uma

feita, “observei, de maneira quase invariável, que, quanto maiores

são os bens dos ricos, maior é a sua torpeza.” A seguir, citou

 Jesus: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha,

do que um rico entrar no reino de Deus”. Gandhi dizia ao rico que

se fizesse um pouco mais pobre, dando aos pobres.

Em Bengala, Gandhi foi hóspede de um fazendeiro que lhe

servia leite numa tigela de ouro, e frutas em pratos também de

ouro. “De onde obtivera ele aqueles pratos?”, perguntara Gandhi,

mais tarde. “Da substância dos camponeses”, respondia. “Numa

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terra em que a vida dos camponeses é uma longa e prolongada

agonia, como ousa ele possuir tais coisas luxuosas?”

Gandhi temia que a industrialização deixasse os camponesese os operários sem trabalho, e aumentasse o “torturante

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pauperismo” da Índia. Por isso, preferia teares domésticos a

fábricas de tecidos. “Se multiplicardes a produção individual

milhões de vezes”, alertava, “isso não vos dará, por acaso,

produção em massa, em escala formidável? Ouso dizer,entretanto, que vossa produção em massa é um termo técnico que

designa produção pelo menor número possível de pessoas, através

do concurso de maquinaria altamente complicada. Tenho dito a

mim mesmo que isso está errado. Minha maquinaria deve ser do

tipo elementar, para que eu possa pô-la no lar de milhões de

pessoas.” Seu lema era: “Uma fábrica em miniatura em cada lar”.

“Nessas condições”, um entrevistador recapitulou, em

novembro de 1934, “vós fazeis oposição à máquina somente

porque e quando ela concentra a produção e a distribuição nas

mãos de uns poucos?”

“Tendes razão”, respondeu Gandhi, “odeio o privilégio e o

monopólio. Tudo o que não pode ser compartilhado pelas massas

é tabu para mim. Isso é tudo.”É interessante assinalar que, hoje, na Índia, onde grande

parte do ensinamento de Gandhi é ignorada, a economia do

Mahatma, outrora considerada retrógrada e ingênua, agora está

sendo aceita por um grupo cada vez maior de ocidentalizados, de

indianos de mente moderna, de socialistas, por exemplo, e

também por determinados membros do governo. As indústrias são

naturalmente necessárias, mas em muitos países asiáticos e

africanos, elas dão origem ao prolongado desemprego das massas,

bem como à miséria, em vez de. proporcionar a prosperidade das

multidões e lazeres compensadores. As pessoas substituídas por

um torno complexo não são logo absorvidas por outras tarefas;

morrem de fome. “Se as indústrias, na Índia, forem

completamente mecanizadas, não será possível dar emprego a

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todo o nosso povo”, afirmou o primeiro-ministro de Bombaim, em

dezembro de 1952.

Pelas ruas de Madrasta, sob o sol canicular de agosto, vi

homens de pele cor de chocolate, cobertos por turbantes eenvoltos apenas em lençóis, puxando e empurrando pesadas

cargas sobre plataformas munidas de roda, do tamanho de

caminhões de duas toneladas. Sua força de trabalho é mais barata

do que a dos animais. Tais homens se ressentiriam do emprego de

bois ou de cavalos, não se falando sequer do emprego de veículos

motorizados. Gandhi não era contra o Ocidente, nem contra a

indústria; seu olhar indiano via simplesmente os problemas

econômicos da . Índia e da Ásia com mais clareza do que os cegos

apregoa-dores europeus da máquina pela máquina.

Interrogado até o tédio sobre se opunha objeções à máquina,

Gandhi exclamava:

“Como posso fazer objeções, quando sei que até meu corpo é

um exemplo bem delicado de máquina? A roca é máquina; umpequeno palito também é máquina. Aquilo a que ponho objeções é

o culto da máquina, não à máquina considerada em si mesma.

Nos dias de hoje, a máquina apenas ajuda uns poucos a cavalgar

nas costas de milhões de pessoas. A máquina não deve tender a

atrofiar os membros do homem. Por exemplo, eu poderia fazer

exceções inteligentes. Tome-se o caso da máquina de costura

Singer. É uma das poucas coisas realmente úteis jamais

inventadas; e há romantismo a respeito da máquina considerada

em si mesma”.

Gandhi havia aprendido a costurar numa máquina Singer.

“E não precisaríeis vós de grandes fábricas para produzir tais

máquinas?”

“Sim”, concordava Gandhi. “Mas idealmente”, acrescentava,

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num argumento circular, tipicamente gandhiano, “eu proibiria

todas as máquinas, ainda que tivesse de rejeitar meu próprio

corpo, que não é dos mais prestimosos para a salvação, e procurar

a libertação absoluta da alma. Desse ponto de vista, eu rejeitariaqualquer máquina; mas as máquinas permaneceriam, porque,

como o corpo, elas são inevitáveis.”

Com o mesmo espírito, ele disse “é e não é”, quando duas

mulheres norte-americanas lhe perguntaram se era verdade que

ele fazia objeções às estradas de ferro, consideradas como

recursos de locomoção rápida.

Gandhi também não repelia amenidades e habilidades de

tipo ocidental. “O Ocidente”, escreveu a Miss Madeline Slade,

“sempre mereceu minha admiração por suas invenções cirúrgicas

e por seus progressos de ordem geral, em todas as direções.” Mas,

sendo bem-indiano, e não se inclinando a imitar ostensivamente o

Ocidente, nem a procurar impressionar fosse lá quem fosse, por

meio de uma superestrutura tecnológica, erguida sobre a baseapodrecida do atraso das massas, Gandhi se concentrava de

preferência na aldeia indiana, onde, de acordo com o que todas as

autoridades admitiam, o superpovoamento torna supérfluas quase

todas as máquinas.

Desde tempos imemoriais, a principal defesa da Índia contra

o invasor foram suas aldeias. Invadida vinte e seis vezes, e sempre

pelo Ocidente, a Índia o teme, e tem prazer em desafiá-lo, bem

como em condená-lo. A confiança máxima de Gandhi em sua

pátria fazia com que ele fosse o menos isolacionista de todos;

queria “que as culturas de todos os países soprassem pela minha

casa, tão livremente quanto possível” (embora se recusasse a ser

“purgado por qualquer delas”), mas para uma emergência, o

reduto central, a última fortaleza, contra o intruso armado ou

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desarmado, seriam sempre os camponeses. Os forasteiros podiam

conquistar e governar, nas capitais federais e provinciais, e

mesmo nos distritos, mas as aldeias, isoladamente sem

importância e remotas, possuíam sua própria Gibraltar interior —uma organização interna, popular, coesa, que Gandhi desejava

manter intata. Ele falava freqüentemente do Panchayat, ou

Conselho dos Cinco Anciãos, que, desde tempos antigos,

governava cada uma das aldeias, autonomamente; e ele também

advogava a independência econômica para a aldeia. Sua aldeia

ideal, escreveu ele na revista Harijan, em 26 de julho de 1942,

seria uma “república completa, independente de suas vizinhas

quanto às suas necessidades vitais, e, ainda assim,

interdependente quanto a muitas outras necessidades, nas quais

a dependência é uma necessidade”. Essa aldeia produziria seus

próprios alimentos e daria “colheitas úteis” — não de ópio — para

vender; teria escolas, teatro, abastecimento de água potável,

centros públicos, com eletricidade em cada choupana. Aqui estavauma prova concreta de sua aceitação das técnicas ocidentais,

quando elas beneficiavam as massas de indivíduos necessitados.

Uma aldeia autogovernada, confiante em si mesma,

comerciando principalmente com as aldeias vizinhas e auto-

suficientes, e importando um mínimo de dispositivos complicados,

era a receita de Gandhi para a democracia na Ásia. Quanto mais

essas pequenas unidades geográficas, que eram as aldeias,

conseguissem desenvolver-se, devido ao esforço cooperativo feito

em sua base, tanto menos espaço restaria para a ditadura

procedente de cima e de longe. Ele as preferia às cidades quentes,

sujas, parecidas com barris de arenques, da Índia, com seus

cortiços de operários industriais.

Não há qualquer fundamento na pressuposição

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freqüentemente repetida segundo a qual o Mahatma Gandhi

advogava o regresso a uma sociedade pré-industrial; ele queria

progresso, com auxílio da tecnologia ocidental, mas não às

expensas do homem-entidade-biológica, nem do homem-ser-humano-espiritual. Os males do industrialismo europeu,

combinados com a exploração oriental, não são um belo

espetáculo na Índia, nem em qualquer parte da Ásia.

Num nível mais alto, filosófico, Gandhi simplesmente

percebia, muito antes que outros o fizessem, os perigos e os

horrores de uma civilização em que a máquina pode escravizar o

homem, em vez de levar a termo sua função essencial, que é

libertá-lo. Em Londres, em 1931, Charlie Chaplin pediu para ver

Gandhi. Gandhi, que nunca vira, até então, um filme

cinematográfico, não conhecia o nome dele, e, ao ser informado,

disse que não tinha interesse por atores. Mas, quando soube que

o ator procedia de família pobre, que vivia nos cortiços de

Lambeth, em Londres, recebeu-o. A conversação começou — comofreqüentemente começava, no caso de visitantes ocidentais — com

uma falsa concepção, por parte do próprio visitante, quanto à

atitude de Gandhi em face da máquina; e a resposta, ao que

parece, impressionou de tal forma Chaplin, que este dedicou uma

de suas fitas ao tema da corrida diária entre homens e máquinas.

Quanto mais rapidamente as máquinas se movem, tanto

mais rapidamente o homem vive, e tanto maior é o tributo, em

tensão nervosa, que ele paga às máquinas. A cultura, o lazer, e,

com efeito, o próprio ato de viver, se tornam tão entrelaçados com

as máquinas, que o homem, individualmente, tende a empobrecer-

se interiormente. O indivíduo fica mais ou menos na posição do

selvagem que faz um ídolo e depois o serve e venera. Para Gandhi,

a mecanização, ou qualquer outra forma de progresso, não era um

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fim em si mesma; julgava os progressos materiais pelo seu efeito

moral e espiritual sobre os seres humanos. O indivíduo era sua

preocupação central. E julgava os indivíduos, não pelo que

possuíam, e sim pelo que eram; não pela propriedade, e sim pelapersonalidade; não pela fortuna exterior, e sim pelas riquezas

interiores. O seu era o individualismo do valor, não o da riqueza. A

industrialização fizera homens ricos, mas fizera-os homens? Na

qualidade de maior personalidade do século XX, se não de vinte

séculos, e, por certo, do mais fervoroso defensor do individualismo

em nossa era, Gandhi vivia a interrogar-se sobre quanto o rude

materialismo poderia contribuir para o desenvolvimento dos

indivíduos. Sonhava com uma Índia próspera que, entretanto, não

lançasse seu povo para dentro de uma máquina que lhe reduzisse

os membros, tomando-os pigmeus estandartizados e conformados.

Observando o mundo, identificava a industrialização com o

materialismo, e temia as duas coisas, como se fossem ameaças ao

crescimento do homem. Sua crença, em defesa do indivíduo, ofazia naturalmente anticomunista; contudo, considerava o

comunismo como um produto final de um processo que corrói

também os países não-comunistas; portanto, a atitude que fazia

dele um adversário do sistema soviético também o induzia a

criticar a civilização ocidental; entre os dois, via uma diferença de

grau, mais do que de espécie. “O bolchevismo”, afirmou Gandhi, “é

o resultado necessário da moderna civilização materialista. Sua

insensata adoração da matéria deu surgimento a uma escola que

se formou para considerar o adiantamento materialista a

finalidade da vida, e que perdeu o contato com as coisas de capital

importância da vida... Predigo que, se desobedecermos à lei da

supremacia final do espírito sobre a matéria, da liberdade e do

amor sobre a força bruta, dentro de uns poucos anos teremos o

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bolchevismo grassando por esta terra que foi outrora tão santa.”

Isso se referia à Índia, mas poderia ter sido dito a propósito de

qualquer país. O Ocidente talvez se mostre tão assustado com o

bolchevismo, com o stalinismo, ou com o sovietismo, por sentir ogerme da mesma enfermidade dentro de si.

Gandhi tinha a resposta e o antídoto para o stalinismo: um

indivíduo grande, valoroso, convencido da preponderância do

espírito sobre a matéria, que pudesse resistir às invasões a sua

liberdade por situar os princípios acima dos bens materiais. Essa

receita deveria derrotar o comunismo e curar a democracia.

Em todos os discursos, em todos os escritos, em todos os

 jejuns, em todos os atos políticos de Gandhi — em todas as suas

lutas com o marechal Smuts na África do Sul, com britânicos e

com seu próprio povo, na Índia —, ele se punha à altura do

problema que se apresenta a toda pessoa na superfície do nosso

planeta: “Como pode o indivíduo moderno manter sua paz interior

e sua segurança exterior, como pode conservar-se honesto, livre eautenticamente ele próprio, em face dos assaltos que se efetuam

contra ele, por parte da força de governos poderosos, da força de

poderosas organizações econômicas, da força do mal que reside

nas maiorias cruéis e nas minorias militantes, e da força que

agora se extrai do átomo?” Muita gente fica em atitude de medo

perante essas aglomerações de força; admite sua incapacidade de

lutar, e submete-se. O resultado, em todos os países, é um homem

que se encolhe cada vez mais. Isso abre a porta ao totalitarismo e

ameaça a democracia, porquanto, sem um indivíduo que esteja

pronto e seja capaz de se defender a si mesmo, contra as

exorbitâncias do poder, a liberdade está condenada.

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O poder foi a principal preocupação de Lênin e de Stálin.

Desconfiando do indivíduo, que, portanto, precisava ser vigiado e

esmagado, eles fundaram um movimento e um Estado, com base

no princípio da liderança: um partido de elite, dominado por umhomem, lidera as “massas” obedientes. Daí a ditadura

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desumanizada. A preocupação principal de Gandhi era o

indivíduo, que ele treinava na afirmação de seu próprio eu e de

sua própria vontade, não somente contra o Estado britânico, mas

também contra qualquer outro Estado. “Gandhi endireitou nossascostas e enrijeceu nossa espinha”, disse Nehru. O poder não pode

subir por um dorso ereto.

Gandhi devotou a maior parte de sua vida a estudos

relativos à nutrição; procurou vitaminas para o corpo e alimentos

que tornassem os homens fortes. Seu cardápio para o

desenvolvimento tinha por base o destemor. Profeta da não-

violência, ele declarou, não obstante, que “onde houver escolha

entre a covardia e a violência, eu escolherei a violência”, porque a

covardia reduz o amor-próprio do homem, e, portanto, sua

estatura. Gandhi, pessoalmente, não tinha medo; foi esta, mais do

que qualquer outra qualidade, a razão do seu crescimento, da

condição de uma pessoa comum que ele era no segundo e no

terceiro decênios de sua vida, para o homem grande como umamontanha em que ele por fim se transformou. Não temia governos,

nem prisões, nem a morte; a morte o uniria ao seu Deus; a

doença, ele podia conquistá-la; não temia, igualmente, a fome, a

impopularidade, a crítica, nem a repulsa.

O individualismo de Gandhi alimentava-se de coragem. “A

não-violência”, disse ele, “requer muito mais coragem do que a

violência.” Nenhum covarde seria capaz de conservar-se sentado,

quieto, no chão, enquanto os cavalos da polícia avançassem

galopando sobre ele; nem de deitar-se diante de um carro, nem de

ficar imóvel tendo policiais a brandir cassetetes ao seu redor. Essa

era a resistência ativa dos bravos. Gandhi aplicava uma técnica de

combate que transformava a tradicional docilidade do afável hindu

em heroísmo. O método provinha da sua fé no barro comum. Ele a

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equiparava a si mesmo e vice-versa. “Os ideais que regulam minha

vida”, escreveu, “são representados pela aceitação da humanidade

em geral... Não tenho a menor sombra de dúvida de que qualquer

homem, ou qualquer mulher, possa conseguir o que consegui, serealizar o mesmo esforço, cultivando a mesma esperança e a

mesma fé. Sou apenas uma pobre alma lutadora, ansiando por ser

inteiramente boa... Sei que ainda tenho diante de mim uma

trajetória difícil a percorrer.” Reconhecia a fraqueza humana

existente em si mesmo e nos outros, e não esperava a perfeição da

parte de ninguém, mas acreditava verdadeiramente na capacidade

de o homem emendar-se, bem como na infinita capacidade de sua

ascensão. Recusando-se a concentrar-se no que havia de mau nas

pessoas, com freqüência as modificava, considerando-as não como

o que elas eram, mas como o que desejavam ser, como se o que

havia de bom nelas fosse tudo o que havia nelas mesmas. Esse

otimismo criador às vezes ampliava a dimensão de seus

associados; e até mesmo o visitante casual sentia seus benefícios.Perpétuo reformador de homens, Gandhi aceitava-os, não

obstante, como eles eram. O amor tornava-o indulgente. Possuía

um código extremamente rigoroso de conduta para seu próprio

uso, e outro código, indulgente, para aplicar aos outros. Vivia em

feliz harmonia com os homens e as mulheres por ele convidados a

fazer parte do ashram, mas que não acreditavam em Deus, nem

na não-violência, nem na castidade, nem nele mesmo. Na verdade,

encorajava a rebelião e o não-conformismo, considerando-os

recursos auxiliares no desenvolvimento do indivíduo. A

deslealdade para com ele nunca o perturbava; perturbava-o,

porém, a deslealdade para com os princípios.

A universal deslealdade para com os princípios, sob todos os

sistemas sociais, se deve ao custo deles. Sob a ditadura, o custo

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pode ser a morte; numa democracia, o desconforto e o embaraço.

Gandhi estava pronto a pagar, fosse qual fosse, o preço dos

princípios pelos quais se batia Quanto mais pobre de bens

materiais ele fosse, tanto mais ele poderia pagar. E tanto mais ricoo pagamento o deixaria, em moeda do espírito, que era a única

moeda a que ele atribuía valor.

Gandhi alimentava a mesma atitude nos outros. Dizia a seus

seguidores que sacrificassem suas relações e seus contatos com

ele, em nome e em benefício de suas próprias crenças. Não

chefiava apenas um movimento, fazendo esforços para seu bom

êxito; estava forjando uma nação, pela moldagem de homens. Se

estava para ser pai de uma nação, então queria ter filhos gigantes.

Quando defrontado pela oposição, no Partido do Congresso, ou no

círculo das pessoas mais chegadas, no ashram, Gandhi por vezes

cedia, muito embora pudesse facilmente superá-la; respeitava a

divergência. Esse respeito é o maior sinal de masculinidade. De

uma feita, numa conferência sobre educação básica, todos osparticipantes concordaram com Gandhi, exceto Zakir Hussain,

mestre-escola muçulmano. Gandhi nomeou-o presidente da

sociedade em prol da educação básica. A força de vontade do

Mahatma, juntamente com sua fé fanática nos princípios, poderia

tê-lo transformado em ditador — ele tinha um traço de ditador

dentro de si —, mas seu interesse na formação de indivíduos o

tornava um democrata.

Conseqüentemente, o séquito de Gandhi se fez grande,

diverso e difuso. Sua personalidade atraía também uma ampla

série de líderes. Pyarelal Nayyar, que foi secretário principal de

Gandhi por muitos anos, enumerou alguns deles na revista

Harijan, de 15 de março de 1952. “O círculo íntimo do Mahatma”,

escreveu ele, “compreendia hábeis capitalistas e homens de

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negócios, como G. D. Birla e Seth Jamnalal Bajaj; céticos como

Acharya Kripalani; intelectuais e revolucionários como o pândit

 Jawaharlal Nehru; estadistas e políticos astutos como o pândit

Motilal Nehru e Vithalbhai Patel; homens de fé e de renúncia,como Vinoba Bhave; juristas de espírito sutil, como

Rajagopalachari; altruístas como o dr. Rajendra Prasad; espíritos

profundos e teólogos, como Maulana Azad; médicos brilhantes,

que eram geniais em seu ramo de atividade, como o falecido dr.

Ansari e o dr. Hakim Ajmal Khan Saheb; personalidades

pitorescas, como a irreverente e maternal Sarojini Naidu, o

rouxinol da Índia; damas da sociedade de sangue azul, como Miss

Slade e, por fim, mas não menos importante, o nosso Homem de

Ferro, o pilar granítico da Índia livre, infelizmente agora tombado,

Sardar Patel. Essa lista é apenas ilustrativa.”

“Qual era”, pergunta Pyarelal, “o segredo dessa maravilhosa

atração que Gandhi exercia sobre o espírito e o sentimento de

lealdade dos homens?” Era o seu “realismo intenso e multilateral”,respondia ele, “era seu tato, sua profunda simpatia, sua

delicadeza e seu encanto pessoal...” Os capitalistas sentiam-se

arrastados por ele, “pela sua agudeza na compreensão dos

negócios práticos, pela sua sinceridade, pela sua coragem”;

Acharya Kripalani transformou-se em seu escravo, quando

descobriu, no Mahatma, o rebelde e o revolucionário que ele

próprio aspirava ser; o pândit Jawaharlal Nehru — requintado e

intelectual — sentiu-se fascinado pelo seu dinamismo e pela obra

de arte integrada pela sua vida. Recordo-me de como, em

determinada ocasião, no decorrer de um debate acalorado, Nehru

irrompeu, impacientemente: “Eu quero revolução, isto é apenas

reformismo”, ao que Gandhi acrescentou: “Eu tenho feito

revoluções, enquanto outros têm falado a respeito delas. Quando

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vossa exuberância houver diminuído e quando vossos pulmões

estiverem exaustos, podereis vir a mim, se estiverdes realmente

falando a sério quanto a fazer uma revolução”.

Motilal Nehru, pai de Jawaharlal, também tinha suasdiferenças com Gandhi. “Eu disse ao Mahatmaji”, relatou de uma

feita Nehru, pai, a Pyarelal, “que não acredito na espiritualidade

dele, e que não me disponho a acreditar em Deus, pelo menos

nesta vida.”

“E o que foi que ele disse em resposta?”, indagou Pyarelal,

ofegante.

“Ele apenas riu”, respondeu Motilal Nehru.

Maulana Azad, o erudito islâmico, continua Pyarelal, “achou

que ele estava à altura de um sacerdote e representava uma

catolicidade religiosa em ação”; Vinoba considerava Gandhi um

santo da antiga Índia; “Rajagopalachari encontrou nele uma

clareza de pensamento, uma perspicácia, uma maravilhosa

rapidez de apreensão da causa de seu adversário, uma agudeza depercepção legal, que reduziam à condição de mesquinharia as

acrobacias forenses das celebridades jurídicas convencionais”.

Os médicos viam com bons olhos seu interesse pela saúde; a

sra. Naidu descobriu que ele era “um poeta em ação”. Madeline

Slade, filha de um almirante britânico que possuía as insígnias de

cavaleiro, observa Pyarelal, recebeu, de Gandhi, “essa profunda

espiritualidade pela qual ansiava a alma faminta do Ocidente,

adoradora de riquezas materiais”; e Sardar Vallabhbhai Patel, o

estadista-dono-de-máquinas, senhor do Partido do Congresso,

“descobriu que, em Gandhiji, por fim, havia um líder político que

não era discursador, mas homem de ação que fazia com que as

coisas acontecessem, e que nunca deixava de fazer o bem, desde

que resolvesse fazê-lo”.

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Por certo, esses são os encômios de um discípulo fiel; não

obstante, aproximam-se da verdade, porquanto Gandhi atraía, de

fato, e guiava todos esses homens, todas essas mulheres e muitos

outros. “Exercia influência sobre eles”, explica Pyarelal, “porqueGandhi nunca pôs ninguém a serviço de algo que não fosse do

interesse da pessoa em questão. Usava de tal forma seus

instrumentos, que tirava e desenvolvia o que de melhor havia nos

homens, de maneira que estes cresciam, em robustez e em

estatura, de dia para dia... Nos debates, nunca procurava

sobrecarregar nem sobrepujar o opositor com demonstração de

pujança intelectual. Fazia do opositor um companheiro à procura

da verdade. O objetivo era sempre o de converter, nunca o de

coagir, nem o de suprimir. O opositor nunca se apagava na

humilhação da derrota; ao contrário, compartilhava plenamente a

emoção e a alegria da descoberta da verdade, que era levado a

sentir, tanto quanto as sentia o próprio Gandhiji. Isso tornava

mais receptiva a mente do opositor, em vez de a fazer maisresistente.” Daí a jactância de Gandhi: “Eu sou um democrata

nato”.

O Mahatma Gandhi não amava a humanidade em sentido

abstrato; amava os homens, as mulheres, as crianças; e esperava

auxiliar a todos, como indivíduos e como grupos de indivíduos. Ele

lhes pertencia; eles sabiam disso, e, por isso, pertenciam a ele. Por

dar guarida ao desleal, ele desfazia a deslealdade. Sua lealdade

provocava a deles. Dessa maneira, durante os piores anos de

derrota e de depressão, de 1924 a 1929, preparou-se para os

triunfos ulteriores. A Índia, agora, o chamava Bapu— “Pai”.

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16

O sal da liberdade

Em 1928, a Índia fervia de manifestações trabalhistas e

nacionalistas de intranqüilidade. Em dezembro desse ano, o

assistente do superintendente da polícia, Saunders, de Lahore, foi

assassinado. Gandhi qualificou o fato de “um ato de covardia”.

Bhagat Singh, o suposto assassino, evitou ser preso e logo

alcançou a condição de herói. Em 8 de abril de 1929, entrou na

Assembléia Legislativa, em Nova Deli, repleta dos seus membros

ingleses e indianos; lançou duas bombas contra eles, e depois

começou a atirar com seu revólver. Por sorte, somente um

legislador ficou seriamente ferido.

Na província de Bengala, que era sempre um centro de

turbulência e de oposição tanto aos britânicos como à chefia

exercida pelo Congresso, Subhas Chandra Bose, procelária detempestade, cujo lema era “Dai-me sangue e eu vos prometo

liberdade”, havia arregimentado grande número de seguidores

rebeldes. A eloqüência de Jawaharlal Nehru, clamando

“independência, agora”, granjeou-lhe popularidade entre a

 juventude.

Uma batalha se fazia pressentir, mas Gandhi entrou no

assunto cautelosamente. Aquela deveria ser uma batalha em que

seu lado lutaria com uma espécie particular de arma: a

desobediência civil. Nenhum arsenal de governo a produzia.

Diversamente da maior parte dos rebeldes, Gandhi não tomava

munição de seu adversário.

Em viagem para a sessão anual do Congresso, em Calcutá,

em dezembro de 1928, alguns amigos interrogaram Gandhi,

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quando seu trem se deteve em Nagpur:

 — Qual seria a vossa atitude em face de uma guerra política

de independência?

 — Eu declinaria de tomar parte nela — respondeu. — Hoje,estou ensinando ao povo a maneira de fazer face a uma crise

nacional por meios não-violentos.

Na sessão, contudo, os moços, liderados por Bose e Nehru,

exigiram ação. Advogaram uma declaração de independência, e,

por via implícita, uma guerra de independência. Gandhi insistiu

em que se desse aos ingleses um prazo de dois anos. Sob pressão,

reduziu o prazo para um ano. Se, em 31 de dezembro de 1929, a

liberdade não houvesse sido conseguida, na forma de implantação

de soberania, anunciou Gandhi: “Eu me declararei um walla

independente... Já rompi com o passado”. O desfecho deveria

ocorrer em 1930.

Lorde Irwin, mais tarde lorde Halifax, vice-rei, ao que

informa seu biógrafo, Alan Campbell Johnson, “esteve em grandeparte absorvido”, durante os primeiros quatro meses de 1929, “na

procura de soluções administrativas, com o propósito de fazer face

aos perigos do terrorismo político e das greves industriais”.

Funcionários das uniões trabalhistas foram presos às vintenas. O

remédio, naturalmente, não estava nas medidas, e sim em sua

capacidade como estadista. Isso foi vislumbrado como uma

possibilidade, quando o Partido Trabalhista britânico subiu ao

poder, na Inglaterra, tendo Ramsay MacDonald, um dos campeões

da concessão da liberdade à Índia, na qualidade de primeiro-

ministro. Gandhi sentiu-se encorajado. Na revista Young India, de

9 de maio de 1929, ele formulou a esperança de que a liberdade

seria conseguida por meios não-violentos, “através de um acordo

de cavalheiros com a Grã-Bretanha. Mas, a essa altura”, advertiu

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ele, “não se tratará de uma altiva manobra imperialista britânica,

no sentido da consecução da supremacia no mundo, e sim, de

uma humilde tentativa da Inglaterra, no sentido de servir aos fins

comuns da humanidade”. No verão, lorde Irwin foi a Londres,passou vários meses em conferências com o novo governo, e

regressou a Deli para anunciar, em 31 de outubro de 1929, que o

governo de Sua Majestade estava planejando uma conferência de

delegados britânicos e indianos; afirmou, ademais, que “a

finalidade natural do progresso constitucional da Índia... era a

consecução da soberania”.

Gandhi e os líderes nacionalistas mais velhos responderam

favoravelmente a esse plano, e, sem se amedrontarem com os

protestos que partiam de Jawaharlal Nehru e de Subhas Chandra

Bose, bem como dos seus sequazes, se prepararam para transigir.

Uma entrevista com lorde Irwin foi combinada para o dia 23 de

dezembro. Entrementes, em Londres, lorde Reading, antigo vice-

rei, chefiou, na Câmara dos Lordes, um ataque contra a política deMacDonald na Índia, e, na Câmara dos Comuns, os tóris e os

liberais se coligaram contra o governo trabalhista (que dispunha

apenas de uma minoria parlamentar), para condenar a prematura

promessa de soberania, feita por Irwin. A entrevista da tarde, com

Gandhi, Jinnah, Motilal Nehru, Vithalbhai Patel e Sir Tej Bahadur

Sapru, grande Constitucionalista, concluiu, naturalmente, com a

‘declaração do vice-rei, segundo a qual “ele se sentia incapaz de

prejulgar, ou de conseguir qualquer compromisso da Conferência

da Mesa Redonda, no sentido de qualquer diretriz em particular...”

Essa foi a abertura perturbadora da notável sessão anual do

Congresso, realizada em Lahore, em dezembro de 1929, sob a

presidência de Jawaharlal Nehru, que festejara seu quadragésimo

aniversário um mês antes. Com Gandhi na qualidade de diretor de

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cena, a sessão desfraldou a bandeira da liberdade e adotou uma

resolução a favor da independência irrestrita, bem como da

separação da Índia do império britânico. “Swaraj, agora, significa

independência completa”, afirmou Gandhi. O Congresso deuinstruções, a seus membros e a seus amigos, no sentido de se

retirarem das legislaturas, sancionando a desobediência civil e o

não-pagamento de impostos. A comissão executiva do Congresso

foi autorizada a decidir sobre quando a campanha do satyagraha

deveria começar; Gandhi disse: “Eu sei que isso é um dever que

recai primacialmente sobre mim”. Ele teria de ser o coração, o

cérebro e a mão diretora de qualquer movimento de desobediência

civil, e teria, portanto, de escolher a hora, o lugar e a finalidade

exata. Gandhi retirou-se para o seu ashram, a fim de refletir sobre

a questão.

A Índia estava tensa, na expectativa. Rabindranath Tagore, a

quem Gandhi dedicava a mais profunda veneração, encontrava-se

nas proximidades do ashram de Sabarmati, e compareceu parauma visita, no dia 18 de janeiro. Tocado pela curiosidade, inquiriu

o que o Mahatma tinha reservado para a Índia, em 1930. “Estou

pensando incansavelmente, dia e noite”, respondeu Gandhi, “e

não vejo luz alguma surgir dentro da escuridão circunstante.”

“Há muita violência pairando no ar”, asseverou Gandhi.

Nessas circunstâncias, a desobediência civil, a única alternativa

em relação à “rebelião armada”, envolvia “riscos indubitáveis”; e

ele andava, por isso, à procura de uma forma de desobediência

civil que não pudesse explodir numa violência espalhada por toda

a nação. Durante seis semanas, andou em busca da referida

forma, enquanto o país esperava impacientemente. Os olhos da

Índia estavam postos na choupana de Gandhi.

Naquele momento, ele sabia o que tinha de fazer.

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Antes de pôr em prática seu plano, comunicou-o ao vice-rei,

porquanto sempre sustentava que “qualquer sigilo mina o

verdadeiro espírito da democracia”. A carta dirigida a Irwin foi, por

certo, a mais estranha jamais recebida por um chefe de governo.

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“Caro amigo”, começava ela. “Antes de dar início à desobediência

civil e de assumir o risco que receei enfrentar nestes anos todos,

gostaria de me aproximar de vós para encontrar uma saída.”

Gandhi acreditava em negociações que pudessem proporcionar aoadversário uma alternativa. “Não posso lesar intencionalmente

nenhum ser vivo, e muito menos seres humanos, ainda que

possam ter causado os maiores danos a mim e aos meus”,

continuava a carta. “Embora, portanto, eu considere que o

governo britânico seja uma maldição, não pretendo lesar um único

inglês, nem qualquer interesse legítimo que ele possa ter na

Índia... E qual o motivo por que eu considero o governo britânico

uma maldição? Ele empobreceu milhões de criaturas, através de

um sistema de exploração progressiva, bem como por meio de

uma administração militar e civil, ruinosamente dispendiosa, que

o país nunca poderá suportar. Reduziu-nos, politicamente, à

servidão. Minou os fundamentos da nossa cultura... Receio... que

nunca houve qualquer intenção de se conceder... a soberania àÍndia, num futuro imediato...”

A seguir, Gandhi particularizava. “Numa Índia

independente”, escreveu ele, “todo o sistema de arrecadação

deveria ser revisto, de maneira a fazer com que o bem do campo-

nês fosse sua finalidade primacial. O sistema britânico, en-

tretanto, parece ser concebido para espremer a própria vida para

fora dele. O imposto que incide até sobre o sal que ele, camponês,

tem de usar, para viver, é tão alto, que faz o fardo pesar ainda

mais sobre seus ombros... O imposto é ainda mais ominoso sobre

o homem pobre, quando se recorda que o sal é a única coisa que

ele deve comer em maior quantidade do que o homem rico.” O

missivista explicou ainda que o imposto sobre o sal, para o

camponês, representava o ganho de três dias por ano. O

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camponês consumia mais sal do que o rico, porque suava mais, ao

trabalhar nos campos, sob o escorchante sol tropical da Índia. A

carta de Gandhi queixava-se, mais adiante, de que “o imposto

sobre bebidas e remédios é pago, igualmente, pelo pobre. Ele minaos fundamentos, tanto de sua saúde como de seu moral”.

As iniqüidades exemplificadas acima, acusava o Mahatma,

“estão sendo mantidas com o propósito de se levar avante uma

administração estrangeira que é, como se pode demonstrar, a

mais dispendiosa do mundo. Tomai o vosso próprio salário”, disse

ele ao vice-rei, “de mais de vinte e uma mil rupias (cerca de sete

mil dólares norte-americanos) por mês, afora muitos outros

adicionais indiretos... Vós estais recebendo mais de setecentas

rupias por dia (aproximadamente duzentos e trinta e três dólares

norte-americanos). Comparai isso com a renda média do povo, na

Índia, que é de menos de duas anás (quatro centavos de dólar

norte-americano) por dia. Assim, vós recebeis muito mais do que

cinco mil vezes a renda média da Índia. O primeiro-ministrobritânico recebe apenas noventa vezes a renda média da Grã-

Bretanha. De joelhos, peço-vos que pondereis sobre esse

fenômeno. Apresentei uma ilustração pessoal, para pôr em relevo

uma verdade penosa. Eu também nutro por vós grande

consideração como homem, e não desejo, por isso, melindrar

vossos sentimentos. Sei que não precisais dos vencimentos que

recebeis. Provavelmente, a totalidade desses vencimentos se

destina a obras de caridade. Mas um sistema que proporciona e

possibilita semelhante arranjo merece ser sumariamente

cancelado. O que é verdade em relação ao salário do vice-rei é

verdade, em geral, em relação a toda a administração...”

“Nada, a não ser a não-violência organizada”, escreveu

Gandhi, a seguir, “pode conter a violência organizada do governo

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britânico... Essa não-violência será concretizada na desobediência

civil... Minha ambição é, nada menos, a de converter o povo

britânico por meio da não-violência, e assim induzi-lo a ver o dano

que tem causado à Índia.”Depois, Gandhi abria caminho para negociações. “Convido-

vos, respeitosamente, a abrir o caminho para a erradicação

imediata de tais males, e assim abrir um caminho para uma

verdadeira conferência entre iguais.”

“Mas”, e esse era o plano de Gandhi, “se vós não podeis ver

vossa maneira de lidar com tais males, e se minha carta não

causa emoção alguma ao vosso coração, no décimo primeiro dia

deste mês tomarei a iniciativa, com os coopera-dores do ashram

que eu conseguir, de desrespeitar as determinações das leis do

sal... Cabe a vós frustrar meu desígnio, pelo recurso de me

prender. Espero que haja dezenas de milhares de pessoas prontas,

de modo disciplinado, a tomar a mesma atitude depois de mim.”

Lorde Irwin não respondeu; seu secretário acusou orecebimento. Irwin recusou-se a ver Gandhi, e, por outro lado, não

mandou prendê-lo.

Ao aproximar-se a data de 11 de março, a Índia começou a

ferver de excitação. Dezenas de jornalistas, indianos e

estrangeiros, acompanhavam os passos de Gandhi no ashram. O

que, exatamente, ele iria fazer? Milhares de pessoas acamparam

nas redondezas da aldeia, para assistir ao espetáculo. Os

telegramas procedentes do resto do mundo mantiveram em

atividade a repartição postal de Ahmedabad. “Deus vos proteja”,

telegrafou a Gandhi, de Nova York, o reverendo dr. John Haynes

Holmes.

No dia 12 de março, depois de as preces haverem sido

cantadas, o Mahatma e setenta e oito elementos masculinos do

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ashram, cujos nomes e cujas características pessoais foram

publicados pela Young India, para conveniência da polícia,

deixaram a aldeia, a pé.

“Estamos marchando em nome de Deus”, disse Gandhi.O grupo rumou para o sul, em direção ao mar. Durante vinte

e quatro dias, seus componentes caminharam. Gandhi apoiava-se

num cajado de bambu, laqueado, de cerca de dois centímetros e

meio de diâmetro e um metro e quarenta centímetros de

comprimento, com ponta de ferro. Um cavalo se encontrava à

disposição, mas Gandhi nunca se utilizou dele.

“Menos de dezoito quilômetros por dia, em duas etapas, sem

bagagem! É uma brincadeira de criança!”, declarava ele.

Alguns dias, caminhavam cerca de vinte e três quilômetros.

Gandhi tinha sessenta e um anos de idade. Vários de seus

seguidores se cansaram e ficaram com os pés doloridos.

“A moderna geração é delicada, fraca e excessivamente

mimada”, comentou o Mahatma. Durante a marcha, Gandhi fiou eteceu uma hora por dia, e manteve um diário.

Gandhi e sua congregação itinerante seguiram por estradas

sujas e tortuosas, de aldeia em aldeia. Os camponeses aspergiam

água nas estradas e espalhavam folhas sobre elas. Todos os

povoados, na rota da marcha, se engalanaram com bandeiras da

Índia. Quando os peregrinos passavam, os camponeses, que

procediam da zona rural, caíam de joelhos. Duas ou três vezes por

dia, os caminhantes se detinham para tomar parte em reuniões

populares em que o Mahatma e outros exortavam a população a

fazer e a usar tecidos de fabricação doméstica, a abandonar o

álcool e o ópio, a deixar de lado o costume dos casamentos na

infância, e a viver vida pura.

Na área percorrida, mais de trezentos chefes de aldeias

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renunciaram aos seus cargos governamentais. Geralmente, os

habitantes de uma aldeia acompanhavam os peregrinos até a

aldeia seguinte, constituindo uma espécie de guarda de honra. De

todas as partes da Índia, moços e moças convergiram, a fim de seunirem à coluna que avançava. Quando Gandhi atingiu o mar, em

Dândi, no dia 5 de abril, o pequeno grupo inicial já se havia

transformado em verdadeiro exército de não-violência, com um

efetivo de vários milhares de membros.

Não dormiram a noite toda de 5 de abril; passaram-na

rezando, e, bem cedo, na manhã seguinte, acompanharam o

Mahatma ao mar. Ele entrou na água, depois voltou à praia e ali

apanhou um pouco de sal deixado pelas ondas. A sra. Sarojini

Naidu, de pé, ao seu lado, gritou:

“Salve, libertador!”

Gandhi infringiu assim a lei britânica que declarava ser

crime passível de punição a posse pessoal de sal não adquirido do

monopólio governamental desse produto. Ele, em pessoa, nãotinha feito uso de sal durante uns seis anos.

Se Gandhi houvesse ido de trem, ou de automóvel, para

buscar sal, o efeito do empreendimento teria sido considerável.

Mas o fato de ele caminhar cerca de trezentos e setenta

quilômetros em vinte e quatro dias, de haver concentrado a

atenção de toda a Índia, de haver palmilhado a zona rural do país,

dizendo “Prestem atenção! Eu darei um sinal à nação”, e de haver

apanhado um punhado de sal, em desafio público a um governo

poderoso, foi coisa que exigiu imaginação, dignidade e sentido de

espetáculo de um grande artista. O gesto impressionou os

camponeses analfabetos e fascinou os críticos requintados, como

Subhas Chandra Bose, que comparou a Marcha do Sal à “marcha

de Napoleão a Paris, depois do seu regresso de Elba”.

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Realizado o ato prometido, Gandhi retirou-se do cenário. A

Índia tinha a sua deixa; ele se havia comunicado com ela,

furtando um pouco de sal de uma praia.

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Ao longo da vasta faixa litorânea da Índia, bem como em

suas numerosas baías e enseadas, os camponeses entravam na

água, com panelas, e de lá retiravam sal, ilegalmente. A polícia

procedeu a prisões em massa. Voluntários do Congressopassaram a vender sal clandestinamente nas cidades. Muitos

elementos receberam sentenças de prisão de breve tempo. A

polícia varejou a sede do Partido do Congresso, em Bombaim,

onde o sal estava sendo preparado em frigideiras, nos telhados

das casas. Reuniu-se um comício de protesto de sessenta mil

pessoas; centenas de participantes foram algemados, ou levados

para a prisão com os braços amarrados por cordas. O sal retirado

por Gandhi, de uma praia, em Dândi, foi vendido ao maior

ofertante, pelo preço de mil e seiscentas rupias — mais de

quinhentos dólares norte-americanos —, que se destinaram a um

fundo público. Jawaharlal Nehru foi condenado a seis meses de

prisão, por violar a lei do sal. O prefeito de Calcutá recebeu

sentença semelhante, por ler folhetos sediciosos numa reuniãopública e por incitar o povo ao boicote de tecidos estrangeiros.

Kishorlal Mashruwala, um dos discípulos mais fiéis do Mahatma,

foi encarcerado por dois anos. Muitas cidades observaram o

hartal 1, quando os líderes do Congresso foram presos. Províncias

inteiras foram despojadas de seus líderes nacionalistas. Vithalbhai

Patel, o líder da maioria da Assembléia Legislativa federal,

renunciou ao cargo e aconselhou os indianos a boicotar o governo.

Em Peshawar, na fronteira noroeste, a polícia e os militares foram

expulsos da cidade; mais tarde, as tropas retomaram-na, matando

setenta pessoas e ferindo umas cem. O governo colocou sob

censura todos os jornais nacionalistas. O vice-rei, escreve o

biógrafo de lorde Irwin, “tinha enchido as masmorras com nada

menos que sessenta mil criminosos políticos”. Um mês depois de

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Gandhi se haver banhado no mar, em Dândi, a Índia fervilhava de

revolta, furiosa porém pacífica. Ansiosos por prosseguir com o

movimento e sabendo, por experiência, que Gandhi renunciaria a

ele se o povo se mostrasse violento, os indianos permaneceram emestado de não-violência, a despeito dos espancamentos e das

prisões.

1  Palavra hindi para designar a cessação coletiva do trabalho como forma de protesto (N. do E.)  

No dia 4 de maio, menos de um mês após tornar-se um

criminoso por violar a lei do sal, Gandhi foi preso, à noite,

enquanto dormia numa tenda, a poucos quilômetros de distância

da cena de seu crime. As autoridades que o prenderam mediram

sua altura: um metro e cinqüenta e três centímetros. Sem dúvida,

poderiam identificá-lo de novo, em prisões subseqüentes, pois lhe

registraram os sinais de nascimento: uma pequena cicatriz, na

coxa direita, uma pequena mancha na pálpebra inferior direita e

uma cicatriz do tamanho de uma ervilha abaixo do cotovelo

esquerdo. Gandhi gostou de ir para a cadeia: “Tenho me sentido

perfeitamente feliz; refiz-me de muito sono atrasado”, escreveu ele

a Miss Slade. A cabra da prisão era ordenhada em sua presença.

(Gandhi não bebia leite de vaca nem de búfala, mas sua esposa,

Kasturbai, o persuadira, durante uma enfermidade quase fatal, a

beber leite de cabra. Deu certo; e ele continuou a tomar desse leite

pelo resto da vida.)

Vários dias antes de sua prisão, Gandhi informara o vice-rei

de que “se Deus quiser” ele e alguns companheiros fariam um

reide contra as salinas de Dharsana, cerca de duzentos e trinta

quilômetros ao norte de Bombaim. Deus — ao que se averiguou

posteriormente — não quis. A sra. Sarojini Naidu, a poetisa,

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substituiu-o, como chefe da incursão. Do feito, participaram dois

mil e quinhentos voluntários. Antes de iniciar o reide, a sra. Naidu

advertiu a todos que seriam espancados, “mas”, disse ela, “não

deveis opor resistência; não deveis erguer sequer uma das mãos,nem defender-vos de qualquer golpe”.

Webb Miller, o conhecido correspondente da United Press

que morreu na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial,

encontrava-se no local, e descreveu o acontecimento, primeiro em

telegramas, depois em seu livro I found no peace. Manilal Gandhi,

o segundo filho do Mahatma, avançou à frente dos excursionistas,

e aproximou-se das grandes panelas de sal, que estavam rodeadas

por fossos e por cercas de arame farpado, além de estarem

guardadas por quatrocentos policiais de Surat, sob o comando de

seis oficiais britânicos. “Em completo silêncio”, escreve Miller, “os

homens de Gandhi seguiram avante e pararam a cerca de uns

cem metros da paliçada. Uma coluna, composta de elementos

escolhidos, se separou da multidão, atravessou os fossos eaproximou-se das cercas de arame farpado.” Os oficiais

ordenaram-lhes que se retirassem, mas a coluna continuou a

marchar para a frente. “De súbito”, continua Miller, “a uma voz de

comando, dezenas de policiais nativos correram contra os

peregrinos, que avançavam, e vibraram golpes contra suas

cabeças, com seus cassetetes de aço. Não houve um só dentre os

que marchavam que erguesse a mão para aparar qualquer golpe.

Os que tombavam faziam-no como boliches. Do ponto em que me

encontrava, eu ouvia o impressionante baque dos cassetetes

contra os crânios desprotegidos. O grupo dos peregrinos que ficara

à espera gemia e soluçava, contendo a respiração, em sofredora

complacência, a cada golpe vibrado. Os atingidos caíam ao chão,

inconscientes, ou contorcendo-se, com o crânio fraturado ou com

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os ombros quebrados... Os sobreviventes, sem desfazer a fila,

silenciosos e tenazes, prosseguiam marchando, até serem por sua

vez abatidos.” Quando a primeira coluna foi prostrada ao solo,

outra avançou. “Embora todos soubessem”, escreve Webb Miller,“que dentro de poucos minutos seriam espancados e abatidos, e

talvez mortos, não consegui perceber neles qualquer sinal de

hesitação ou de medo. Todos marchavam com firmeza, de cabeça

erguida, sem o encorajamento de música, nem de aclamações, e

também sem a possibilidade de sequer saírem ilesos de ferimentos

ou da morte. A polícia correu de encontro à segunda coluna, e

metódica e mecanicamente abateu-a também. Não houve luta, não

houve combate, os peregrinos simplesmente marchavam para a

frente, até serem abatidos.” Outro grupo, de vinte e cinco

elementos, avançou e sentou-se. “A polícia”, ao que Miller

testemunha, “começou a dar pontapés, selvagemente, nos homens

sentados, atingindo-os no abdome e nos testículos.” Outra coluna

se apresentou. Enfurecida, a polícia arrastou seus componentespelos braços e pés, e atirou-os aos fossos. “Um deles foi arrastado

para o fosso onde eu me encontrava”, registrou Miller. “O baque

de seu corpo me borrifou de água lamacenta. Outro policial

arrastou um homem de Gandhi até o fosso, lançou-o dentro dele,

e martelou-lhe a cabeça com seu cassetete. Depois, durante horas

e horas, os padioleiros transportaram uma corrente de homens

inertes, a verter sangue.”

Um oficial britânico tomou a sra. Naidu pelo braço e disse:

 — Sarojini Naidu, estais presa.

Ela se desvencilhou da mão dele:

 — Eu irei — disse ela —, mas não me toqueis.

 Também Manilal Gandhi se submeteu à voz de prisão.

As incursões e os espancamentos continuaram por vários

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dias.

A Índia, agora, estava livre. Legalmente, tecnicamente, nada

se havia modificado. A Índia era ainda colônia britânica. Mas

havia uma diferença. E Rabindranath Tagore explicou-a. Eledeclarou, ao Manchester Guardian, de 17 de maio de 1930, que a

“Europa havia perdido completamente seu antigo prestígio moral

na Ásia. Ela já não é mais considerada pelo mundo a campeã da

 justiça, nem o expoente de um elevado princípio, mas apenas um

reduto da supremacia da raça ocidental e a exploradora dos que

se achavam além de seus limites. Para a Europa, esta foi, na

realidade, uma grande derrota moral. Muito embora a Ásia seja

fisicamente fraca e incapaz de se proteger contra as agressões a

seus interesses vitais ameaçados, ela pode, ainda assim, olhar de

cima para baixo, para a Europa, ao passo que, anteriormente,

olhava de baixo para cima”. Tagore atribuiu aquele tento, na

Índia, a Gandhi.

A Marcha do Sal e suas conseqüências produziram doisefeitos: deram, aos indianos, a convicção de que poderiam se

libertar do jugo estrangeiro que pesava sobre seus ombros; e

tornaram os britânicos conscientes de que estavam subjugando a

Índia. Era inevitável, depois de 1930, a Índia se recusar, mais

cedo ou mais tarde, a ser governada e, ainda mais importante do

que isso, a Inglaterra se recusar, mais cedo ou mais tarde, a

governar.

Quando os indianos se deixaram espancar pelos cassetetes e

pelas coronhas das carabinas e não recuaram, mostraram que a

Inglaterra era impotente, e que a Índia era invencível. O resto era

apenas questão de tempo.

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17

O faquir seminu

O primeiro-ministro Ramsay MacDonald viu-se em situação

embaraçosa por ser o encarcerador de Gandhi. De todas as partes

do mundo, bem como de todos os pontos de seu próprio país,

chegou-lhe às mãos um dilúvio de telegramas, pedindo a soltura

do Mahatma. O sr. MacDonald e alguns dos ministros de seu

gabinete poderiam ser colocados diante de suas próprias

declarações públicas, louvando Gandhi e favorecendo a autonomia

indiana. Lorde Irwin se sentiu mais do que apenas embaraçado; a

desobediência civil havia paralisado sua administração. A

arrecadação caiu verticalmente. A polícia e as forças militares

resmungavam ao peso da sobre-humana incumbência de manter

a lei e a ordem.

Uma conferência de que participaram indianos que haviamsido nomeados pelo vice-rei reuniu-se em Londres, em fins de

novembro de 1930, e não chegou a conclusão alguma; o

Congresso, a única organização que gozava de prestígio popular

na Índia, não esteve ali representado. Em sua sessão de

encerramento, no dia 19 de janeiro de 1931, MacDonald

manifestou a esperança de que o Congresso enviaria delegados à

segunda conferência. Mas os delegados estavam todos na cadeia,

na Índia. Lorde Irwin aproveitou a deixa — ou a ordem — e pôs em

liberdade Gandhi, os Nehru, pai e filho, e vinte outras

personalidades parlamentares, no dia 25 de janeiro, véspera do

dia da independência, proclamado pelo Congresso. Em sinal de

apreço para com este gesto amistoso, Gandhi escreveu a Irwin,

pedindo-lhe uma audiência.

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Irwin acedeu. O primeiro encontro se registrou em 17 de

fevereiro, às catorze horas e trinta minutos, e durou três horas e

quarenta minutos.

“Com isso, o palco ficou armado”, escreve o biógrafo deIrwin, “para o mais dramático encontro pessoal entre um vice-rei e

um líder indiano, em toda a efervescente história do rajá

britânico.”

Aquilo foi mais do que dramático. Foi histórico e decisivo.

Winston Churchill viu isso melhor do que ninguém. Sentiu-se

revoltado, ao que declarou, pelo “espetáculo nauseabundo e

humilhante deste advogado do Templo Interior, e agora faquir

sedicioso, a subir meio nu as escadarias do palácio do vice-rei, a

fim de ali negociar e parlamentar, em pé de igualdade, com o

representante do rei-imperador”.

A zanga e o desprezo de Churchill, indisfarçados e ferozes,

não lhe ofuscaram a visão. Ele captou os fatos básicos, que não

consistiam na seminudez do Mahatma, nem na sua profissãoabandonada, e sim na igualdade que ele havia conquistado e

estava confirmando em suas conversações com Irwin. Gandhi não

chegava, como a maior parte dos visitantes do vice-rei, para pedir

favores. Surgia como o líder de uma nação, a fim de negociar, “em

pé de igualdade”, com o representante de outra nação. A Marcha

do Sal havia demonstrado que a Inglaterra não poderia governar a

Índia contra Gandhi. O rajá britânico estava à mercê do faquir

seminu; e Churchill sentiu-se enojado. Churchill percebia que a

Inglaterra estava concedendo à Índia a independência, em

princípio, embora negando-a temporariamente, na prática.

Depois de muitos encontros e muita contenda, Irwin e

Gandhi assinaram o que o biógrafo de Irwin denominou “Pacto de

Deli”, no dia 5 de março. Dois estadistas haviam concluído um

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pacto, um tratado, um texto redigido de mútuo acordo. A

desobediência civil seria suspensa; os encarcerados, postos em

liberdade; e o preparo do sal, permitido nas costas marítimas. O

Congresso estaria presente à seguinte conferência, em Londres.Nada se prometeu; nem a independência, nem a soberania.

Dentro de poucos meses, e, por certo, na perspectiva dos

acontecimentos históricos, os termos do pacto perderam seu

significado. Os porta-vozes britânicos sustentavam que, nas

negociações que conduziram ao mencionado pacto, Irwin havia

ganho a batalha, e a afirmativa tem sentido. Vários membros do

Congresso criticavam o Mahatma por haver fracassado na

consecução de uma posição concreta de independência. Qualquer

outro político teria lutado por maiores concessões. Gandhi sentiu-

se satisfeito com a essência; tinha estabelecido os fundamentos de

uma nova ordem de relações entre a Índia e a Grã-Bretanha.

Dezessete anos mais tarde — um minuto, apenas, na vida de um

povo antigo — a Índia seria independente. O pacto fora um passo,um meio, não um fim.

A insistência nos meios dava a Gandhi perspectiva ampla,

paciência e equanimidade. Poderia esperar pelos dividendos por

todo o tempo em que o assunto se desenvolvesse de acordo com os

princípios que considerava corretos.

18

Em Londres, de “minus fours”

Gandhi embarcou, em Bombaim, a bordo do S.S. Rajputana,

ao meio-dia de 29 de agosto de 1931, acompanhado por seu filho

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mais jovem, Devadas, de seu secretário, Mahaved Desai, que,

disse ele, “superara Boswell no próprio jogo de Boswell”, de Miss

Slade, de Pyarelal Nayyar, seu ajudante, de G. D. Birla, o

milionário proprietário de fábricas de tecidos, do pândit Malaviya eda sra. Naidu. Gandhi estava viajando como único delegado do

Congresso à segunda conferência, em Londres. Nenhum outro

delegado era necessário, uma vez que ele falava pela organização e

também por uma considerável parte da Índia.

Em Londres, de 12 de setembro a 5 de dezembro, ele esteve

hospedado, a maior parte do tempo, no Kingsley Hall, na East

Settlement House, como hóspede de Muriel Lester, que o havia

visitado em 1926. Pelas manhãs, realizava um passeio pelas áreas

de cortiços; homens e mulheres, a caminho do próprio trabalho,

sorriam para ele; ele se empenhava em conversar com os

transeuntes; e, mais tarde, ia mesmo à casa deles. As crianças o

chamavam de “tio Gandhi”, punham-se a caminhar ao lado dele e

davam-lhe a mão, conservando-a bem segura. Um pirralhotraquinas e zombador gritou, certa vez:

“Olá, Gandhi! Onde estão suas calças?”

O Mahatma riu gostosamente.

Gandhi constituía interessante tema, e os jornalistas se

mantinham ao seu redor, incessantemente. Um repórter o

interrogou a propósito de suas roupas.

“Vós usais”, respondeu ele, “ plus fours; eu uso minus fours.”1 

1 Trocadilho intraduzível entre “plus fours” (calção folgado, preso embaixo dos joelhos, que se usa para jogar golfe) e “minus fours”, neologismo criado porGandhi, opondo “minus” (menos) e “plus” (mais). (N. do E.)  

Quando ele foi convidado a tomar chá, no Buckingham

Palace, com o rei Jorge e a rainha Mary, toda a Inglaterra ficou

preocupada com o que Gandhi vestiria. Ele se enrolou no

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costumeiro lençol, usou sandálias, um xale e seu relógio de um

dólar, a pender, balouçante. Posteriormente, alguém indagou de

Gandhi se ele estivera suficientemente vestido.

“O rei”, respondeu ele, “estava suficientemente vestido pornós dois.”

Gandhi divertia-se em qualquer lugar. Conversava com lorde

Irwin, com o primeiro-ministro durante a Primeira Guerra

Mundial, David Lloyd George, com o arcebispo de Canterbury,

com o marechal-de-campo Smuts, com Bernard Shaw e com

dezenas de outras personalidades; e viajou para o interior do país,

indo para as vizinhanças de Reading, a fim de apresentar seus

respeitos ao coronel Maddock, que lhe havia retirado o apêndice,

no cárcere de Poona. Winston Churchill recusou-se a avistar-se

com ele.

Gandhi falou também em numerosos comícios públicos, e

passou dois memoráveis fins de semana em Oxford. Em discursos

e em conversações particulares, procurou, acima de tudo, explicaro que entendia por independência da Índia. Ele separaria

“inteiramente a Índia do império britânico, mas não da nação

britânica, se é que desejo que a Índia ganhe e não que se

prejudique. A qualidade de império deve ser cancelada, e eu

gostaria de ser um parceiro em pé de igualdade com a Inglaterra,

compartilhando de suas alegrias e de suas tristezas, e um parceiro

em pé de igualdade com as autoridades. Mas é preciso que seja

uma parceria em pé de igualdade”. Gandhi, assim, descrevia com

precisão, e com notável previsão, a posição que a Índia livre

assumiu na Commonwealth, em 1948.

Gandhi foi ainda mais longe; viu o que muitos dos seus

sequazes não haviam discernido.

“A independência isolada não é o objetivo”, afirmou ele. “O

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objetivo é uma interdependência voluntária.”

As colônias libertadas apreciam tanto sua independência

recém-conquistada, que a consideram uma realidade duradoura.

Mas a lei da natureza, no amor, na amizade, no trabalho, noprogresso, na segurança, é a interdependência criadora.

Por toda parte, Gandhi fazia amigos, devido ao encanto

pessoal, à sua franqueza, à sua humanidade, à sua acessibilidade.

Chegou até a entrar na “toca do leão”, em Lancashire, onde seu

movimento em favor do khadi e contra o uso de tecidos de

fabricação estrangeira na Índia havia causado uma penosa

situação de desemprego. Numa assembléia de tecelões, um

homem disse:

“Sou um dos desempregados; mas, se eu vivesse na Índia,

diria a mesma coisa que o sr. Gandhi”.

Uma encantadora fotografia, batida do lado de fora de

Greenfield Mill, em Darwen, mostra Gandhi completamente

envolto num lençol de produção doméstica, do pescoço aos joelhos, porque fazia frio, comprimido entre mulheres que o

saúdam e o aplaudem; uma delas, para seu embaraço, está lhe

segurando uma das mãos. Gandhi fazia amigos até mesmo entre

aqueles aos quais magoava.

“Descobri que meu trabalho deve ser feito fora da

conferência”, disse ele numa sessão em Londres. “Esta é a

verdadeira Conferência da Mesa Redonda. A semente que agora

está sendo lançada talvez consiga amaciar o espírito inglês e

impedir a brutalização de seres humanos.”

Os diários de Mahadev Desai mostram que o Mahatma com

freqüência ia para a cama às duas horas da madrugada; punha-se

novamente de pé às três horas e quarenta e cinco da mesma

madrugada, para as preces; escrevia carta e lia os jornais;

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repousava outra vez, das cinco às seis da manhã; e, daí para

diante, não tinha mais descanso, até a madrugada seguinte, lá

pela uma ou duas horas. Não admira, pois, que uma ou outra vez

adormecesse durante as sessões da conferência. Não dava, a essaconferência, o melhor dos seus esforços.

A Conferência da Mesa Redonda estava destinada a

fracassar. Lorde Reading, membro da delegação britânica,

formulou o propósito britânico numa sentença:

“Acredito que a verdadeira política entre a Grã-Bretanha e a

Índia é a de que devemos esforçar-nos, tanto quanto nos for

possível, no sentido de pôr em prática o pensamento da Índia,

preservando, ao mesmo tempo, nossa posição, que não devemos e

não podemos abandonar”.

Uma força irresistível — o anseio indiano de ser livre — se

defrontou com um obstáculo irremovível: o desejo britânico de

permanecer na Índia. Isso tornou o acordo impossível.

O governo britânico designara dois detetives da ScotlandYard para servir de guarda pessoal a Gandhi na Inglaterra. Eram

policiais de tipo especial, de porte gigantesco, desses que

usualmente protegem realezas. Os dois passaram a gostar do

“pequeno homem”. Ao contrário da maior parte dos dignitários,

Gandhi nem os mantinha ao alcance da mão, nem fingia ignorar-

lhes a presença. Discutia com eles assuntos públicos e visitava-os

em suas casas. Antes de deixar a Inglaterra, solicitou que lhes

fosse permitido acompanhá-lo até Brindisi, na Itália, de onde ele

zarparia para a Índia. O chefe dos detetives perguntou a razão

daquilo.

“Porque eles fazem parte de minha família”, respondeu

Gandhi.

Da Índia, enviou a cada um dos detetives um relógio, com a

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seguinte inscrição: “Com amizade, de M. K. Gandhi”.

19

Filhos de Deus

“Regressei de mãos vazias”, disse Gandhi à multidão

gigantesca que o recebeu em Bombaim. Disse-o logo ao descer do

navio, em 28 de dezembro.

Contudo, “a julgar pelo calor, pela cordialidade, pelo afeto

demonstrado na recepção, dir-se-ia que o Mahatma havia

regressado com o swaraj na concha da mão”, observou,

causticamente, Subhas Chandra Bose. Gandhi regressara com a

integridade intacta e extravasando boa vontade.

“Não tenho consciência alguma de uma única experiência,

durante meus três meses de Inglaterra e de Europa”, esclareceuGandhi, “que me haja feito sentir que, afinal de contas, o Oriente é

o Oriente, e o Ocidente é o Ocidente. Ao contrário, convenci-me,

mais do que nunca, de que a natureza humana é sempre a

mesma, pouco importando o clima sob o qual floresce, e de que, se

a gente se aproxima de um semelhante com sinceridade e afeto,

obtém decuplicada sinceridade e afeto mil vezes maior, em

retribuição.”

Exatamente uma semana mais tarde, ele estava na cadeia.

Lorde Willingdon havia substituído Irwin, na qualidade de

vice-rei, e, em outubro de 1931, um novo governo assumiu o

poder, na Inglaterra, tendo, por certo, Ramsay MacDonald por

primeiro-ministro, mas ministros conservadores nos postos-

chaves do gabinete. Sir Samuel Hoare passou a ser secretário de

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Estado para a Índia. Dentro de várias semanas, foram

proclamadas as ordenanças de poderes de emergência na

província de Bengala, nas Províncias Unidas e na província de

Peshawar, na fronteira noroeste, onde o Congresso era acusado detentar a obstrução do governo britânico através da instalação de

um governo paralelo a ele.

 — O problema é saber — declarou Sir Harry Haig, ministro

do Interior do governo da Índia — se o Congresso vai impor sua

vontade a toda a nação.

 Jawaharlal Nehru e muitos outros líderes já haviam sido

encarcerados, e agora Gandhi estava alojado na prisão de

Yeravda; logo lhe foram fazer companhia Vallabhbhai Patel, que

Gandhi apelidara de “Sardar”, ou nobre, e Mahadev Desai.

O Mahatma sempre obedecia rigorosamente aos

regulamentos da prisão, e também observava suas próprias

normas, dentre elas, a de não provocar agitações dentro do

cárcere. Uma vez que ele não podia ser político, concentrava-se noesforço de ser santo. Muitos foram os debates que manteve com

Vallabhbhai e Mahadev, sobre temas sagrados; por vezes, outros

prisioneiros, bem como os próprios carcereiros e médicos

britânicos, participavam das conversações.

Depois de algum tempo, Gandhi começou a escrever seus

pensamentos sobre Deus e sobre a conduta ideal do homem; tais

pensamentos foram publicados mais tarde em forma de um

pequeno livro, sob o título de Yeravda Mandir (“Templo de

Yeravda”). Um cárcere onde Deus é discutido e venerado se

transforma em templo: “Deus existe”, escreveu Gandhi.

O vocábulo “satya ”  significa “verdade”; deriva-se de “sat”,

que significa “ser”. “Sat” também designa Deus. Portanto,

“Verdade é Deus”, e Deus é o que é. “Somente Ele é”, registrou

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Gandhi, porquanto “nada mais do que vejo meramente através dos

sentidos pode persistir, nem persistirá.”

Ao longo dos anos, Gandhi procurou provar a existência de

Deus. “É impossível demonstrar, pela razão, a existência de Deusem sentido limitado”, arriscou-se a dizer. “Há uma ordem no

universo; há uma lei inalterável que governa todas as coisas e

todos os seres que existem ou vivem. Não se trata de uma lei cega,

pois nenhuma lei cega pode governar a conduta dos seres

humanos... Essa lei, pois, que governa a vida toda é Deus...

Percebo longinquamente que, ao passo que tudo ao meu redor

está sempre mudando, sempre morrendo, existe, na base de toda

essa mudança, uma força viva, que não se modifica, que sustenta

o conjunto inteiro, que cria, que dissolve e que torna a criar. Esta

força normativa, ou espírito, é Deus... Em meio à morte, a vida

persiste; em meio às inverdades, a verdade persiste; em meio às

trevas, a luz persiste. Daí eu deduzo que Deus é Vida, Verdade e

Amor. Ele é Amor. Ele é o supremo Deus.”Contudo, desconfiando do fracasso desse valente esforço

racional, concedeu que “a fé transcende a razão... Se pudéssemos

resolver todos os mistérios do universo, seríamos iguais a Deus.

Cada gota do oceano compartilha a glória do oceano, mas não é o

oceano”. Por analogia, todo ser humano compartilha a natureza de

Deus, mas não é Deus, e não pode saber o que Ele é. “O

comportamento mais seguro”, aconselhava o Mahatma, “é o de

acreditar no governo moral do mundo, e, portanto, na supremacia

da lei moral, a lei da verdade e do amor...”

Gandhi se preocupava muito com a existência de Deus, mas

ele nunca tivera uma experiência mística; nunca ouvira uma voz,

nem contemplara uma visão, nem tivera alguma experiência

reconhecida de Deus. Muito embora alguns místicos não-indianos,

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ansiosos por situar seu misticismo num ponto fixo, se apegassem

ocasionalmente a Gandhi, este não era um místico, e desmentia

que o fosse.

“Não tenho qualquer revelação especial da vontade de Deus”,insistia.

Sustentava, ao contrário, que “Deus se revela a Si mesmo,

todos os dias, a todos os seres humanos; mas nós fechamos

nossos ouvidos à ‘ainda pequena voz’... Deus nunca vos aparece

em pessoa, e sim em ação”.

Agora, nos silêncios da prisão do Templo de Yeravda, o

Mahatma ouviu aquela ainda pequena voz a chamar por ele, a fim

de que entrasse em ação. O resultado foi a mais tensa das

quinzenas, da moderna história da Índia. “Para encontrar um

paralelo para a angústia de setembro de 1932”, escreveu

Rajagopalachari, “temos de remontar à Atenas de vinte e três

séculos passados, quando os amigos de Sócrates se reuniram ao

redor do filósofo, na prisão, e insistiram em que ele fugisse damorte... Sócrates sorriu a essa sugestão... e advogou a

imortalidade da alma.”

Sem medo de morrer — certo de que a alma nunca morre —

o Mahatma empreendeu um jejum até a morte, por causa de um

tema que, para ele, se afigurava supremamente religioso. Dizia

respeito aos intocáveis — os mais infelizes dentre os muitos

infelizes, no seio do povo da Índia.

Um hindu ortodoxo não deve tocar um intocável, nem

qualquer coisa que seja tocada por um intocável. Se, por acaso,

isso ocorre, tem de se purificar por meio de abluções ritualmente

prescritas. Até mesmo a sombra de um intocável é considerada

impura, em algumas zonas da Índia. Obviamente, portanto, os

intocáveis não devem entrar num templo hindu. Habitam os

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piores setores dos piores cortiços do mundo, e, nas aldeias, vivem

nos mais infectos arredores, para onde se drenam os esgotos e as

águas servidas; mas essas são as únicas águas de que eles podem

se servir, porque o uso de poço lhes é vedado. O poço passaria aser poluído.

Os intocáveis são párias, fora-de-casta, no sentido hindu do

vocábulo, significando que eles não pertencem a qualquer das

quatro castas hindus, que são, da superior para a inferior: os

brâmanes ou sacerdotes, os xátrias ou governantes e guerreiros,

os vaixás ou comerciantes e lavradores e os sudras ou artesãos.

Abaixo dessas castas, mas muito no i fundo, de modo a não poder

enquadrar-se nem sequer no último degrau da escala social

hindu, é que vem o pária, ou o intocável, que é o hindu do lado de

fora da paliçada.

Em séculos idos, as castas e seus milhares de subdivisões

então existentes dentro de cada casta eram guildas profissionais e

hereditárias. Assim, Gandhi pertencia à casta vaixá e à subcastade modh-bania. Os banianos são comerciantes; os Gandhi, num

passado remoto, foram merceeiros. Gandhi quer dizer “merceeiro”.

A tradição e as autoridades locais mantinham todos os adultos na

esfera de sua guilda, de modo que as castas mais elevadas não

perdessem a casta pela infiltração de membros de castas

inferiores; da mesma forma, as castas inferiores não eram

invadidas pelos desempregados das castas superiores. Esse ajuste

dava, presumivelmente, a cada grupo, a vantagem da segurança

econômica, mas submetia o indivíduo à regimentação econômica.

Embora a casta com freqüência exercesse essa função

economicamente estabilizadora, sua origem é política, e sua

sanção, religiosa. Os árias, que desceram para o sul, procedendo

de suas terras natais na Ásia central, há milhares de anos,

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durante a longa noite não registrada em cronologias, antes do

surto da história escrita, conquistaram gradativamente a Índia,

desde o rio Indo e desde a cordilheira do Himalaia, até a ponta sul

da península, no cabo Comorim; e, à medida que avançavam,misturavam tolerantemente seus costumes e suas idéias aos

costumes e às idéias da cultura autóctone. O produto é o

composto agora conhecido sob a denominação de hinduísmo.

Contudo, os árias transformaram os habitantes nativos em seus

instrumentos econômicos, conservando para si mesmos as tarefas

proveitosas e aristocráticas de governar e combater. A força da

religião, entretanto, era tão grande, que os brâmanes se colocaram

como integrantes da casta mais elevada — acima da casta dos

governantes e dos guerreiros; e isso aconteceu principalmente

porque eles foram capazes de dar à graduação das castas uma

garantia de estabilidade, nimbando-a com o manto da religião. Os

brâmanes como que enrouparam cada casta numa fórmula

sagrada de destino imutável. Vós sois um brâmane, ou um sudra,ou um intocável, em conseqüência de vossa conduta numa

encarnação prévia. A categoria da casta, portanto, é

predeterminada para esta vida, e todos devem submeter-se a ela.

Contudo, a boa conduta presente pode dar origem a uma

promoção póstuma, ou vice-versa. Um brâmane ambicioso pode

renascer na classe dos comerciantes, ao passo que um mercador

espiritual e culto pode regressar a esta vida na qualidade de

brâmane. Uma mulher pode tornar-se homem na encarnação

seguinte, e vice-versa. Alguns hindus gostariam de ter consciência

de, ao renascer, estar pertencendo ainda à mesma família, apesar

da possibilidade da mudança de parentesco; um marido e uma

esposa podem vir a ser irmão e irmã, ou irmã e irmão. Os homens

com inclinações femininas podem transformar-se em mulheres; e

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a alma de um hindu sanguinário pode reencarnar-se num animal.

Alguns intocáveis tentaram, através da adoção do

cristianismo, ou do islamismo, fugir ao seu destino humilhante e

tormentoso, mas os cinqüenta milhões, ou os sessenta milhões,que é a quanto, mais ou menos, eles montam, se curvam ao

destino, na crença de que estão fazendo penitência pelas

fraquezas ancestrais, e na esperança de se elevarem numa

encarnação vindoura. Com apenas umas poucas centenas de

exceções, portanto, os intocáveis da Índia continuam segregados

nos seus misteres humildes, encarregando-se de varrer as ruas,

de esfregar os assoalhos, de limpar lavatórios, de fazer trabalhos

em couro, e de realizar outras coisas que, para o sistema hindu de

casta, constituem tabus religiosos. Até os dias de hoje, na divisão

altamente minuciosa do trabalho, uma enfermeira de hospital não

toca numa comadre (recipiente em que os doentes acamados

fazem suas necessidades sem sair do leito), nem arruma uma

cama; e a empregada que faz uma cama e transporta a bandeja dealimentos se recusa a atender o pedido de um enfermo para

apanhar um pedaço de gaze caído no chão; e mais ainda se

recusará, se o pedido for para lidar com qualquer objeto

pertencente ao banheiro; todos esses afazeres se reservam aos

intocáveis. Há uma escala social até mesmo dentro da

comunidade dos intocáveis; na casa de um rico amigo, em

Bombaim, os intocáveis, que são os seus criados permanentes,

não limpam as privadas porque isso pode chegar aos ouvidos dos

moradores de suas aldeias, e, em conseqüência, degradá-los. Para

tais misteres, eles saem pela cidade, a fim de alugar os serviços de

intocáveis inferiores a eles próprios.

Em contraste com a rigidez que mantém os intocáveis no seu

devido lugar, bem no fundo da escala, as barreiras ocupacionais

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entre os membros das castas hindus começaram a ser superadas

logo no alvorecer do século XIX; em alguns setores, isso ocorreu

muito antes. O avô e o pai de Gandhi, por exemplo, não foram

merceeiros; foram primeiros-ministros. Hoje, um brâmane podeser motorista de praça; se, porém, ele for lavrador, em

determinados distritos, não empunhará o arado; em vez disso,

pagará a um hindu de casta menos elevada que a dele, para fazer

tal serviço em seu lugar; um vaixá pode ser um alto funcionário

público, ou um professor; e um xátria ou guerreiro pode ser

empregado como guarda-livros.

Entretanto, embora as castas, como agrupamentos

profissionais, estejam se desintegrando ao impacto das pressões

econômicas modernas, as distinções sociais entre elas persistem

teimosamente. Não importa o grau de pobreza de um brâmane,

nem a simplicidade de sua tarefa; ele nunca permitirá que seus

filhos se casem com membros de uma casta inferior à dele. E

também não receberá hindus de baixa casta à sua mesa.Nos primeiros anos de seu sacerdócio de mahatma, Gandhi

favorecera o sistema de castas.

“Considero as quatro divisões fundamentais, naturais e

essenciais”, disse ele, em 1920; e, em 6 de outubro de 1921,

escreveu, na Young India, que a “proibição dos casamentos

cruzados e da promiscuidade de companhia à mesa é essencial à

evolução da alma”.

Essa defesa de um aspecto ignóbil da ortodoxia hindu

permanece como acusação sempre capaz de ser citada contra

Gandhi, mas ele, na verdade, se retratou completamente, nas

palavras e nos atos.

“As restrições quanto à promiscuidade de companhia à mesa

e quanto aos casamentos entre elementos de castas diferentes”,

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declarou Gandhi, em 4 de dezembro de 1932, “não fazem parte da

religião hindu.” Hoje, essas duas proibições estão enfraquecendo a

sociedade hindu.

Em 1921, elas eram “essenciais”; em 1932, debilitantes.Gandhi era um observador extremamente agudo, flexível e

honesto, de modo que não podia dar seu apoio a uma

discriminação sistemática que estava fragmentando e

corrompendo a sociedade hindu.

É possível que uma experiência íntima haja concorrido para

mudar-lhe o ponto de vista. Em 1927, o mais moço dos filhos de

Gandhi, Devadas, apaixonou-se por Lakshmi, filha de C.

Rajagopalachari, e desejou casar-se com ela. Mas Rajagopalachari

era brâmane, e Gandhi, vaixá; Gandhi, portanto, fez objeções ao

casamento entre pessoas de castas diversas, bem como aos

noivados que não fossem arranjados pelos progenitores. Gandhi

era suficientemente antiquado, de modo que sustentava (como

ainda faziam e fazem, de resto, inúmeros hindus instruídos) queos casamentos contratados pelos progenitores eram mais felizes

do que os oriundos do afeto. Entretanto, Devadas e a moça

persistiram, e, finalmente, o ilustre pai concordou em sancionar-

lhes a união, desde que os jovens ainda se quisessem, depois de

cinco anos de separação. Assim, os dois esperaram, penosamente,

até que se casaram, com pompa, em Poona, em 16 de junho de

1933, na presença dos dois pais jubilosos.

Nos anos subseqüentes, Gandhi recusou-se a comparecer a

qualquer casamento que não fosse de pares pertencentes a castas

diversas. Com efeito, tendo rompido com a ortodoxia hindu,

marchou cada vez mais para longe do hinduísmo, até tornar-se

capaz de dizer, no Hindustan Standard, de 4 de janeiro de 1946:

“Declaro, portanto, aos moços e às moças que desejam casar-se,

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que não podem casar-se no ashram de Sevagram [para o qual

Gandhi se mudara, depois de haver deixado Sabarmati], a menos

que um membro da assistência seja intocável”. Gandhi havia,

pois, percorrido a volta toda, indo da extrema desaprovação doscasamentos entre elementos de castas diferentes à aprovação

unicamente de tais casamentos, e daí ao apogeu do horror para

com os hindus ortodoxos: para os casamentos entre um elemento

de casta e outro fora-de-casta, ou pária, com bênção pessoal. O

fato de ele, não obstante, ter um número sempre crescente de

sequazes entre os hindus é parte do milagre de Gandhi, bem como

um tributo de homenagem à tolerância dos hindus, em meio à sua

própria intolerância.

Uma sabedoria maior mostrou a Gandhi os males do sistema

de castas, mas sua hostilidade à intocabilidade era emocional, e

aparecera na infância. “Eu costumava rir de minha mãe”, escreveu

ele, numa carta dirigida a Charles Freer Andrews, “por obrigar-nos

a tomar banho, quando nós, os seus filhos, tocávamos emqualquer pária.” Gandhi brincou com um menino intocável,

mesmo depois de a sua amada Putlibai o proibir. Na África do Sul,

alguns de seus clientes de advocacia e alguns de seus amigos

eram intocáveis; de uma feita, hospedou um deles em sua

residência. Regressando à Índia, tomou parte num comício

realizado em maio de 1918, reunido para pedir melhoria de

condições de vida dos intocáveis. Ao ser apresentado aos

assistentes, perguntou :

“Há aqui algum intocável?”

E quando viu que nenhuma mão se erguia Gandhi recusou-

se a proferir seu discurso. Nem bem se havia instalado em

Sabarmati, quando convidou um pai, uma mãe e sua pequena

filha, Lakshmi, todos intocáveis, para ali morar, na qualidade de

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membros da comunidade. Os magnatas de Bombaim e de

Ahmedabad, à vista disso, retiraram seu apoio financeiro ao

ashram. Sem se deter por tal motivo, Gandhi declarou que iria

viver numa choupana, no bairro dos intocáveis. Mas, certamanhã, um homem, que, soube-se depois, era Ambalal Sarabhai,

o maior fabricante de tecidos de Ahmedabad, para lá se dirigiu,

em seu automóvel; deixou treze mil rúpias, em cédulas, nas mãos

de Gandhi, e retirou-se. Ainda assim, as mulheres do ashram se

recusaram a trabalhar na cozinha, em companhia das mulheres

intocáveis. Os hindus dão grande importância aos alimentos, e a

presença de mulheres intocáveis, no lugar em que eles eram

preparados, poluía tudo quanto a comunidade comesse. Até

mesmo Kasturbai, embora acostumada, como estava, com as

idiossincrasias de seu santo marido, não conseguia tolerar isso.

Gandhi apelou para sua razão e para sua natureza generosa; mas

a crença na intocabilidade reside em algum remoto recesso

nervoso, onde, juntamente com a intolerância racial, com o dogmae com o preconceito de cor, resiste às investidas do senso comum

e do sentimento de humanidade. Ele, portanto, disse-lhe que, se

aquilo fosse pecado, o pecado era dele, uma vez que era ele o

responsável, e que ela, como esposa de hindu, devia obedecer.

Estas foram expressões que ela compreendeu. As outras mulheres

do ashram a acompanharam na aquiescência. Mas isso não deu

por concluídas as dores de cabeça. Certa manhã, o Mahatma

anunciou que havia adotado a pequena Lakshmi como sua filha,

e, portanto, como filha de Kasturbai. A devota e semi-analfabeta

Kasturbai ficou perplexa, sem compreender. Sob muitos aspectos,

entretanto, ela possuía um caráter mais santo, mais iogue, do que

seu tempestuoso marido; principalmente depois que ele passara a

ser casto, ela o aceitou como seu mestre. Quem era ela para

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discutir com o homem de Deus? A aversão para com os intocáveis

continuou, não obstante, a roer seus nervos.

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Com o correr dos anos, muitos milhares de hindus da casta

superior passaram a sentir-se honrados por ir ao ashram, por

falar com Gandhi e por sentar-se à sua mesa. Uns poucos, sem

dúvida, purificavam-se depois de sair de lá, mas muitos nãoconseguiam ser tão hipócritas. A intocabilidade perdera uma parte

de sua maldição, para eles. A massa, porém, podia adorar Gandhi

e ter horror aos intocáveis.

Sendo, teoricamente, uma barreira oposta à contaminação, a

intocabilidade contagia os que a praticam, bem como o país que

permite sua existência. Os degradadores são arrastados para

baixo, moral, econômica e socialmente, juntamente com aqueles

que degradam. O êxodo em massa dos intocáveis do hinduísmo

deveria enegrecer para sempre a consciência dos hindus, sem

acarretar benefício algum para os intocáveis. Em vez de concordar

com semelhante derrota — que, em todo caso, era apenas a

sugestão de uns poucos dos seus líderes, e não desfrutava de

qualquer perspectiva de ampla aceitação, porque os intocáveis,que eram religiosos ingênuos, tinham medo de arriscar suas

probabilidades de melhor vida em futuras encarnações —, Gandhi

preferiu “espicaçar a consciência hindu, no sentido da realização

de ações religiosas justas”. Essa era a razão de seu jejum até a

morte.

Do grande drama que se encontrava em iminência de

ocorrer, os protagonistas foram o Mahatma e Ambedkar. O dr.

Bhimrao Ramji Ambedkar, principal chefe dos intocáveis, era dono

de um corpo poderoso e de um intelecto robusto, tenaz, superior.

Seu avô e seu pai se haviam distinguido pela prestação de serviços

no exército britânico, e, através deles, ele se tornou conhecido do

marajá de Baroda, que o mandou para a faculdade de direito da

Universidade de Columbia, em Nova York. Sua brilhante carreira,

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como advogado, o guindou à preeminência, fazendo com que fosse

admitido como porta-voz dos intocáveis.

Nessa qualidade, estivera presente à Segunda Conferência,

em Londres, nos meses de setembro a dezembro de 1931; ali,propôs um eleitorado separado para os intocáveis, ou, pelo menos,

a reserva de assentos para os intocáveis, dentro do bloco hindu

das legislaturas indianas. Gandhi opôs-se a ambas as propostas,

por as considerar divisionistas, reacionárias e infrutíferas.

Subseqüentemente, entretanto, as autoridades londrinas

prosseguiram na elaboração de uma Constituição para a Índia, e,

dentro de pouco tempo, chegou aos ouvidos de Gandhi, na prisão

de Yeravda, a notícia de que os novos estatutos instituiriam não

somente um eleitorado muçulmano em separado, mas também

um eleitorado à parte para as “classes oprimidas”, que era como

os britânicos denominavam, oficialmente, os intocáveis. (Gandhi

denominava-os harijans, que significa “filhos de Deus”, e, por isso,

seu novo semanário recebeu o título de Harijan.)  Em 1909, os britânicos haviam introduzido eleitorados

separados para os hindus e os muçulmanos. Em conseqüência, e

enquanto os rajás britânicos permanecessem na Índia, um

muçulmano só poderia votar num candidato muçulmano, e um

hindu, somente num hindu. Os danos causados por semelhante

instituição foram incalculáveis, porque ela elevou as diferenças

religiosas à categoria de fator decisório em todas as questões

políticas. Era como se os católicos, na Inglaterra, nos Estados

Unidos e na França, pudessem votar somente em candidatos

católicos, tanto ao Parlamento como a todos os outros cargos

eletivos, como se os protestantes só pudessem votar em

candidatos protestantes, e os judeus nos judeus. O problema

central era o de se construir uma ponte que superasse o abismo

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que ficava entre os hindus e os muçulmanos, e, assim,

transformar a Índia numa nação; entretanto, os eleitorados,

apartados, fechando a porta às condições políticas, destruíam a

ponte e ampliavam a distância a transpor.Agora, além disso, a Inglaterra planejava a instituição de um

eleitorado à parte para as “classes oprimidas”. Gandhi, à vista

dessa circunstância, protestou perante Sir Samuel Hoare, em 11

de março de 1932, e declarou que, se, de fato, os britânicos

criassem um eleitorado intocável em separado, “eu jejuarei até a

morte”.

Sabia que isso criaria obstáculos às autoridades de quem

era prisioneiro, “mas, para mim, o passo tomado em consideração

não é um método, é uma parte de meu ser”.

O ministro respondeu ao prisioneiro, dizendo que nenhuma

decisão havia sido tomada ainda, e que, antes de ela ser tomada,

os pontos de vista do Mahatma seriam levados em conta. Nenhum

novo desenvolvimento ocorreu, até 17 de agosto de 1932, quandoo primeiro-ministro, Ramsay MacDonald, se pronunciou a favor

dos eleitorados separados. No dia seguinte, Gandhi enviou uma

carta ao primeiro-ministro, afirmando que “tenho de resistir à

vossa decisão com minha vida”. O jejum, escreveu ele, começaria

ao meio-dia de 20 de setembro.

Numa resposta sensivelmente longa, remetida de Downing

Street, 10, a 8 de setembro de 1932, o sr. MacDonald manifestou

sua “surpresa e, permiti-me que acrescente, meu pesar muito

sincero”. O sr. Gandhi, sugeria o primeiro-ministro, havia

entendido mal; os britânicos haviam tomado em consideração sua

conhecida devoção aos intocáveis. A nova legislação, explicou o

primeiro-ministro, permitiria que a classe dos oprimidos votasse

com o eleitorado hindu, em pé de igualdade. Não era isso, por

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acaso, o que o Mahatma desejava? E, ademais, durante os vinte

anos seguintes, os oprimidos votariam, num número determinado

de distritos eleitorais especificados, como intocáveis, escolhendo

seus próprios legisladores. Em outras palavras, acentuou o sr.MacDonald, um intocável “terá dois votos”. Por certo, seu

defensor, Gandhi, não objetaria.

A resposta de Gandhi, enviada a Downing Street, da prisão

central de Yeravda, argumentou que “o mero fato de as classes

oprimidas terem dois votos não as protege nem a elas, nem à

sociedade hindu, contra futuras dissoluções... Eu não deveria ser

contra, inclusive quanto ao excesso de representação das classes

oprimidas. Sou contra a separação constitucional delas, mesmo

que em forma limitada, do enquadramento hindu, enquanto elas

preferem pertencer a esse mesmo enquadramento”.

Isso encerrou a correspondência entre o prisioneiro e o

primeiro-ministro. Gandhi jejuam. A divisão da Índia em dois

eleitorados já era coisa suficientemente má. Não lhe era possívelcontemplar três Índias.

De todos os lados, chegaram-lhe cartas, mensagens,

tentando dissuadi-lo. Muitos amigos não compreenderam a razão

pela qual ele tencionou morrer por tal questão. Nehru, no cárcere,

“sentiu-se aborrecido com ele”, ao que escreveu em sua

autobiografia Toward freedom, “por escolher uma saída lateral

para seu sacrifício supremo... Senti-me irritado com ele...”

Gandhi não se demoveu da idéia. Ele via além dos legalismos

e da lógica. Era verdade que o projeto de MacDonald daria origem

a um eleitorado separado e a um eleitorado conjunto hindu-

harijan. Mas o efeito psicológico positivo do eleitorado conjunto

seria anulado pelo efeito do eleitorado separado. Com um

eleitorado separado, os candidatos e os legisladores harijans

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eleitos acentuariam os fatores que os separavam dos hindus de

casta. Uma máquina político-partidária poderia surgir daí, com

visível interesse em perpetuar o abismo entre castas e indivíduos

fora-de-casta. Sua munição política seria a injustiça hindu —munição muito abundante, com efeito. Esse arranjo era contrário

aos princípios básicos de Gandhi: harmonia na diversidade; amor

a despeito das diferenças. As divisões convidam às colisões; a

separação alimenta o ódio e a violência, tanto no pensamento

como na ação.

Gandhi não jejuava contra a Inglaterra, jejuava para remover

as incapacidades dos harijans, de modo que eles desejassem

formar uma unidade política com os hindus. Seu objetivo era uma

comunidade hindu. MacDonald havia afirmado que, se os hindus

e os harijans concordassem com um arranjo eleitoral diferente,

mas mutuamente satisfatório, a Grã-Bretanha o aceitaria.

Às onze horas e trinta minutos da manhã de 20 de setembro,

Gandhi tomou sua última refeição. Consistiu ela num copo deágua quente, com mel e suco de limão.

20

O mágico

No dia em que começou seu jejum, Gandhi acordou às duas

e meia da madrugada, e escreveu uma carta a Rabindranath

 Tagore. “Pela madrugada, às três horas, terça-feira”, começou ele.

“Entrarei nos portões de fogo ao meio-dia. Se puderdes abençoar o

esforço, desejo-o.” Solicitou, igualmente, a crítica de Tagore, “se

vosso coração condena meu gesto. Não sou tão orgulhoso a ponto

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de deixar de fazer uma confissão pública de meu erro, seja qual

for o preço dessa confissão, se eu me considerar a mim mesmo em

falta”. Mas, se Tagore aprovasse, Gandhi ansiava por sua bênção.

“Ela me amparará”, disse o Mahatma, humildemente.Outros poderiam não entender, mas Tagore conhecia a Índia;

Gandhi respeitava-lhe os pontos de vista, e tomá-los-ia em

consideração. No momento em que Gandhi se preparava para

fechar a carta, chegou-lhe um telegrama de Tagore. “Vale a pena

sacrificar uma vida preciosa”, dizia o despacho, “pela causa da

unidade da Índia e de sua integridade social... Espero,

fervorosamente, que não sejamos tão insensíveis, a ponto de

permitir que tamanha tragédia nacional atinja sua duração

extrema.”

Gandhi, então, acrescentou um  post scriptum, agradecendo

“vosso telegrama afetuoso e magnífico. Ele me amparará em meio

à tempestade na qual estou prestes a entrar”.

Nessa noite, Tagore discursou perante sua escola, emShantiniketan: “Uma sombra se abate, hoje, sobre a Índia, como

uma sombra projetada por um sol eclipsado... Mahatmaji, que,

por meio de sua vida de dedicação, fez com que a Índia se

tornasse sua na verdade, começou seu voto de supremo sacrifício

pessoal”. Explicou o jejum: “Cada país tem sua própria geografia,

onde o espírito mora e onde a força física nunca pode conquistar

sequer uma polegada de chão. Os governantes que procedem de

fora devem ficar do outro lado dos portões”. A Inglaterra não

governava a alma da Índia. Mas a Grande Alma... mantém seu

domínio, mesmo quando já não está mais fisicamente presente...

O sofrimento que o Mahatma avocou a si mesmo não é um ritual;

é uma mensagem a toda a Índia e ao mundo... Nenhuma

sociedade civilizada pode vicejar, desde que sua humanidade haja

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sido permanentemente mutilada... nós insultamos nossa própria

humanidade, insultando o homem naquilo em que ele é

impotente... Contra essa fraqueza moral, profundamente

estratificada, de nossa sociedade, o Mahatma pronunciou seuultimato”. Não se tratava de uma demonstração acessória. Gandhi

estava jejuando para salvar a alma da Índia.

Imediatamente, líderes hindus se reuniram em Bombaim,

para conferenciar com líderes harijans, principalmente com

Ambedkar. A secular crueldade hindu, para com os seus infelizes

companheiros de casta, enchera Ambedkar de fúria e de desprezo.

Se alguém, na Índia, houvesse podido contemplar a morte de

Gandhi com equanimidade, esse homem teria sido ele. Ambedkar

qualificou o jejum de “uma jogada política”. Na conferência,

enfrentou as maiores inteligências hindus, e deve ter auferido um

prazer muito doce, vendo-as cortejá-lo, para salvar a vida do

Mahatma que tanto amavam.

O propósito dos representantes hindus naquela conferênciaera a consecução de um eleitorado conjunto, que, não obstante,

satisfizesse o desejo de Ambedkar, quanto à admissão de legítimos

representantes harijans na legislatura. Ambedkar argumentava

que, se os harijans fossem eleitos conjuntamente, por eleitores

harijans e hindus — como Gandhi insistia —, os harijans se

tornariam vassalos dos hindus, e hesitariam em expor suas

pretensões, com receio de que os hindus os derrotassem na

eleição seguinte.

A fim de dissipar a apreensão legítima de Ambedkar, Sir Tej

Bahadur Sapru, jurista eminente, propôs uma coisa nova para a

Índia: as eleições prévias. Os candidatos harijans a algumas

cadeiras na legislatura seriam selecionados em consultas privadas

entre hindus e intocáveis. Mas o restante dos candidatos às

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cadeiras reservadas aos harijans não figuraria na chapa. Gandhi

havia aceito a reserva de cadeiras aos harijans, no dia anterior ao

do começo de seu jejum. Aqueles candidatos restantes seriam

escolhidos em eleições prévias, nas quais somente os harijansvotariam. Para cada cadeira, haveria uma lista de três harijans; e,

nas eleições finais, os hindus votariam em um deles. Isso

permitiria que os harijans elegessem seus defensores mais

valorosos e mais expressivos; e os hindus nunca os poderiam

derrotar.

Ambedkar examinou o esquema devagar, minuciosamente.

Saiu da conferência, permanecendo fora dela várias horas, a fim

de estudar o caso com seus colegas intocáveis. A seguir, voltou à

conferência, e, a título de tentativa, aceitou.

Agora, o problema era Gandhi. Sapru, Jayacar, Raja-

gopalachari, Devadas Gandhi, Rajendra Prasad e Birla tomaram o

trem da meia-noite, de Bombaim para Poona, e compareceram

diante de Gandhi às sete horas da manhã, no segundo dia de jejum. Gandhi já se encontrava enfraquecido. Ouviu a exposição

do plano, fez perguntas, mas permaneceu intransigente, embora

compreensivo e cordato. Queria ver aquilo por escrito, desejava

falar com Ambedkar e com o sr. M. C. Rajah, um harijan pró-

Gandhi na legislatura.

Na manhã seguinte, Gandhi criticou a proposta de Sapru.

Por que razão estabelecer uma distinção entre dois grupos de

candidatos harijans? Por que razão não se poderiam indicar todos

os candidatos nas eleições prévias em que só os harijans tomariam

parte? Por que razão deveria qualquer harijan ficar em regime de

dívida política para com os hindus?

Ambedkar chegou à prisão de Gandhi naquela tarde. Foi ele

quem falou quase o tempo todo. Declarou-se pronto a concorrer

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para a salvação da vida do Mahatma, mas “desejo minha

compensação”, esclareceu.

Gandhi havia começado a ceder. O jejum estava afetando-o

severamente. Nos jejuns anteriores, tomava água de hora em hora.Dessa vez, passou a bebê-la irregularmente. Nos jejuns anteriores,

a massagem lhe moderava as dores. Desta feita, recusava as

massagens. Mostrava-se muito agitado. Dores agudas sacudiam-

lhe o corpo depauperado. Para ir ao gabinete sanitário, tinha de

ser levado em padiola. O mais leve movimento, e, por vezes, o

simples ato de falar davam-lhe náuseas.

Quando Ambedkar disse “desejo minha compensação”,

Gandhi ergueu-se enérgica mas penosamente, apoiou-se num

cotovelo, e falou durante vários minutos. Mencionou seu

devotamento para com os intocáveis. Discutiu o Plano Sapru

ponto por ponto, e definiu sua objeção: por que motivo não se

deveriam ter somente candidatos harijans, escolhidos por

harijans? A seguir, Gandhi tombou, exausto, sobre seutravesseiro.

Ambedkar estava encantado. Esperava ser posto sob

pressão, na presença do Mahatma moribundo, a fim de ser

forçado a recuar da posição que assumira. Entretanto, em vez

disso, Gandhi lhe oferecia mais do que ele havia aceito a título de

tentativa. Em conseqüência, Ambedkar aprovou as alterações

introduzidas por Gandhi no texto de Sapru.

Mais tarde, naquele dia, a sra. Gandhi foi transferida da

prisão de Sabarmati para a de Yeravda. Ao caminhar, lentamente,

na direção de seu marido, ela abanou a cabeça, de um lado para

outro, em sinal de reprovação, e disse:

“Outra vez a mesma história, hein?”

Gandhi sorriu. Sua companhia dava-lhe alegria. O Mahatma

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permitiu que ela lhe fizesse massagens, e, depois, aceitou os

serviços de um massagista profissional, mais por causa dela do

que por desejá-los.

No dia 23 de setembro, sexta-feira, o dr. Gilder, especialistaem moléstias do coração, chegou de Bombaim, e, juntamente com

os médicos da prisão, diagnosticou as condições do prisioneiro,

considerando-as perigosas. A pressão do sangue era

alarmantemente alta. (A pressão do sangue de Gandhi sempre

subia, quando grandes decisões estavam na iminência de ser

tomadas.) A morte poderia sobrevir a qualquer momento.

Durante o dia todo, Ambedkar negociou com os

representantes hindus. Apresentou-lhes novas exigências,

incorporando a elas sua “compensação”,

1) A aquiescência do primeiro-ministro MacDonald havia

dado, aos intocáveis, um total de setenta e uma cadeiras nas

legislaturas provinciais. Ambedkar pediu cento e noventa e sete.

2) Sapru havia sugerido uma lista de três candidatosharijans para cada cadeira. Gandhi sugeriu cinco; Ambedkar,

dois. Quanto menor fosse o número de candidatos postos na lista

das eleições prévias, tanto mais facilmente Ambedkar os poderia

controlar.

3) Finalmente, havia o problema de um referendo em que os

eleitores harijans teriam de decidir sobre a época em que as

cadeiras reservadas aos harijans deveriam ser abolidas,

cancelando-se quaisquer distinções entre harijans e hindus.

Gandhi desejava esse cancelamento em cinco anos. Ambedkar, em

quinze.

Bem tarde, nessa sexta-feira, Ambedkar visitou novamente

Gandhi. O dia estava quente, sufocante. Gandhi estendia-se no

catre, sobre um lençol branco, no pátio da prisão, à sombra de

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uma frondosa mangueira. Nem uma folha se movia. A pressão

sangüínea do Mahatma havia subido ainda mais. Ele não podia

falar a não ser em sussurros. Ambedkar regateou duramente. Não

se chegou a nenhuma decisão.O sábado, quinto dia do jejum, poderia ser, ao que

concordavam os médicos, o último dia de vida de Gandhi. Durante

toda a manhã, Ambedkar discutiu com os hindus, e, ao meio-dia,

apareceu ao lado do Mahatma. Informou-o de que haviam chegado

a um entendimento entre as setenta e uma cadeiras oferecidas por

MacDonald e as cento e noventa e sete exigidas por ele. O número

delas seria cento e quarenta e sete. Gandhi aprovou. Haviam

chegado a um entendimento também quanto ao número de nomes

na lista.

Um desentendimento persistiu: versava sobre o tempo em

que a distinção política entre hindus e harijans, nas eleições,

continuaria a existir. Ambedkar cedera até dez anos. Gandhi não

desistiu dos cinco.Os negociadores se encontraram de novo, e encontraram

Ambedkar irredutível. Então, Rajagopalachari fez uma coisa que,

provavelmente, foi a que salvou a vida de Gandhi. Sem consultar o

Mahatma, ele e Ambedkar concordaram em que o tempo da

abolição da diferença eleitoral entre hindus e harijans fosse

determinado em discussão ulterior. Isso poderia tornar

desnecessário o referendo.

Rajagopalachari correu à prisão e explicou a Gandhi a nova

combinação.

“Fazei-me o favor de repeti-la”, pediu Gandhi. Estava

esgotado.

Rajagopalachari repetiu-a.

“Excelente”, murmurou o Mahatma.

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Nesse sábado, o Pacto de Yeravda, que é como a história da

Índia o designa, foi assinado pelos principais chefes hindus e

harijans. 

Entretanto, aquilo não era um pacto, e Gandhi recusou-se aabandonar o jejum antes de o governo britânico haver oficialmente

aceito seus termos, ao invés do esquema originai de MacDonald. O

texto foi telegrafado para Londres. Entretanto, era domingo, e a

maioria dos membros do governo inglês havia saído da cidade.

MacDonald fora assistir aos funerais de uma tia, em Sussex.

Ao ter notícia do acordo feito em Poona, MacDonald

regressou apressadamente ao prédio número 10 da Downing

Street. Em companhia de Sir Samuel Hoares e de lorde Lothian,

estudou o texto até a meia-noite.

Entrementes, a vida de Gandhi ia se esvaindo. O Mahatma

disse a Kasturbai a maneira como ela deveria distribuir seus

poucos pertences, que se encontravam ao redor de seu catre.

 Tagore chegou de Calcutá e cantou algumas canções quealiviaram o prisioneiro moribundo.

Na segunda-feira, de manhã, o governo britânico anunciou,

em Londres e em Nova Deli, que havia aceito o Pacto de Yeravda.

Às cinco e quinze da tarde, Gandhi interrompeu o jejum, bebendo

um copo de suco de laranja, que Kasturbai lhe oferecera.

Nos seis dias do “Jejum Épico”, como se passou a denominá-

lo, os acontecimentos importantes não ocorreram no pátio da

prisão, nem na sala em que Ambedkar forçara os hindus a ceder,

nem em Londres. Ocorreram por toda a Índia. Nehru, que, de

início, se mostrara zangado com Gandhi, por jejuar a propósito do

caso dos intocáveis, logo viu a luz. “Então”, é o que registra a sua

autobiografia, “chegou a notícia da tremenda subversão, por todo

o país... Que grande mágico, pensei eu, era aquele pequeno

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homem sentado na prisão de Yeravda! E como ele conhecia bem a

maneira de puxar os cordões que moviam o coração do povo!”

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A mudança de sentimentos do coração hindu fora o

propósito do jejum de Gandhi.

“Nenhum acordo alinhavado entre os líderes dos hindus de

casta e os líderes de sua rival, a classe depreciada, corresponderáa meu propósito”, declarara ele, cinco dias antes do começo do

 jejum. “O acordo, para ser válido, tem de ser real. Se o espírito da

massa hindu ainda não está preparado para arrancar de seu seio

as raízes e os ramos da intocabilidade, tenho de me sacrificar sem

a menor hesitação.”

Assim, enquanto ele ali estava definhando, tinha os olhos

fitos além das negociações, na realidade viva das relações dos

hindus com os intocáveis.

A notícia do jejum difundiu-se por toda a Índia. Os que

sabiam ler contavam aos que não sabiam:

 — O Mahatma está jejuando.

 — Por que o Mahatmaji está jejuando?

 — Porque nós, os hindus, fechamos nossos templos aosintocáveis e os tratamos mal.

As cidades fervilhavam de excitação. Os camponeses, que

iam ao mercado nas cidades, levavam os relatos para as aldeias.

Os ouvidos da Índia estavam alerta para a captação de mais

notícias. “O Mahatmaji está definhando.” “O Mahatmaji está

morrendo.” “Temos de nos apressar.” Era mau prolongar a agonia

de Gandhi. Ele representava uma fatia de Deus; era o mensageiro

de Deus na terra. As relações da massa com ele eram altamente

emocionais, transcendendo a lógica. Bem no começo da semana

do jejum, o famoso Templo Kalighat, de Calcutá, bem como o Ram

Mandir, de Benares — sendo ambos cidadelas da ortodoxia hindu

 —, abriram suas portas aos intocáveis, pela primeira vez nos

vários milhares de anos da história hindu. Em Bombaim, uma

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organização feminina instituiu um pleito, em frente a sete grandes

templos hindus, com urnas de votos vigiadas por voluntários. Os

adoradores lançaram vinte e quatro mil oitocentos e noventa e sete

votos a favor da admissão dos harijans, e quatrocentos e quarentae cinco contra. Imediatamente após, alguns templos, nos quais

 jamais um harijan pisara, foram abertos. Em Allahabad, doze

templos, até então inacessíveis aos intocáveis, abriram suas

portas no primeiro dia do jejum de Gandhi. Nos Estados nativos

de Baroda, Caxemira, Bhor e Kolhapur, a discriminação religiosa

nos templos cessou. Os jornais imprimiram os nomes de centenas

de templos que procederam de igual maneira.

Em Deli, hindus de casta e harijans confraternizaram-se

publicamente nas ruas. Na Universidade de Benares, estritamente

hindu, o reitor Dhruva, com numerosos brâmanes, jantara, em

público, com numerosos limpadores de ruas, remendões e lixeiros.

Os alunos hindus também aderiram, tomando assento em bancos

anteriormente reservados aos intocáveis. As estradas e as ruas seabriram aos harijans. Muitas aldeias e muitas pequenas cidades

permitiram que os intocáveis passassem a usar os poços de água

de uso comum.

A sra. Swarup Rani Nehru, mãe de Jawaharlal, dama

extremamente ortodoxa, fez divulgar a notícia de que ela havia

recebido alimento das mãos de um intocável. Milhares de damas

hindus, de grande projeção, seguiram seu exemplo. Nas aldeias e

nas cidades, por toda a Índia, milhares de organizações adotaram

resoluções, prometendo fazer cessar a discriminação e combatê-la.

Cópias telegrafadas de tais decisões começaram a formar uma

pilha da altura de um homem no pátio da prisão de Gandhi. Uma

mãe, curvada sobre o berço de um filho em crise de alta

temperatura, não poderia mostrar-se mais ansiosa do que aquela

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Índia que contemplava o catre branco do Mahatma, que morria.

Embora Gandhi não fosse místico, afetava os outros de maneira

mística. A razão desaparecia. Apaixonada, freneticamente —

porque o fim poderia chegar a qualquer momento —, os hindusreagiam com um único soluço esperançoso: “Ele não deve morrer”.

Durante o jejum de seis dias, os casamentos foram adiados;

muitos hindus se abstiveram de ir ao cinema, ao teatro e aos

restaurantes. Um espírito de reforma, de penitência, de

autopurificação, varreu a terra. O mágico era também um músico,

com o gênio de um artista para tocar nas cordas sensíveis do

coração do homem interior.

“Ninguém será considerado intocável, em conseqüência de

seu nascimento”, estatuía o Pacto de Yeravda. Os hindus devotos,

com grande número de seguidores religiosos, assinaram a

declaração. Ela marcou uma reforma religiosa, uma revolução

psicológica, a liquidação de uma enfermidade milenar do

hinduísmo. Constituiu alimento para a saúde moral da Índia.Nenhum acordo político, friamente acertado, entre Gandhi e

Ambedkar, sem jejum, teria conseguido semelhante resultado.

O “Jejum Épico” melhorou permanentemente as condições

dos harijans; rompeu uma corrente que se estendia para trás, na

Antiguidade, e que escravizara dezenas de milhões de pessoas.

Alguns elos da corrente permanecem. A revista Harijan, de 14 de

 junho de 1952, informou: “Em Parli, perto de Natham, um jovem

harijan, que se recusou a tomar chá numa casca de coco,

insistindo em que fosse servido numa chávena de vidro, recebeu

pontapés e foi pisado, com saltos de sapatos, na cabeça, por obra

de um hindu de casta, que depois foi condenado e multado... Em

Kottagudi, um barbeiro de aldeia que se recusou a cortar o cabelo

de um menino harijan foi acusado pela polícia e condenado pelo

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magistrado local. Mais tarde, porém, os harijans foram convocados

pelos hindus de casta... e advertidos no sentido de não mais se

servirem daquele barbeiro, sob pena de uma multa coletiva lhes

ser imposta... Em Kidaripatti, os harijans não têm permissão paratransportar os restos mortais dos que lhes são caros, pelos

passeios públicos, nem para rodar pelas ruas das aldeias em

bicicletas... Em Kelavaloo, os harijans retiram a água de uma

lagoa suja, onde os homens se banham e o gado é lavado”. Casos

como estes formavam legião. Os preconceitos viscerais não

morrem num dia, nem num decênio. Mas o jejum transformou a

discriminação antiintocável de dever religioso em pecado moral, e

inscreveu, na própria vida, uma declaração de direitos dos

harijans. 

Gandhi ficou satisfeito. Cinco dias após o término do jejum,

ele já estava tecendo, fiando e escrevendo durante muitas horas

por dia, e seu peso já havia atingido cerca de cinqüenta quilos. “O

 jejum”, disse ele, em carta dirigida a Miss Slade, “foi realmentenada, se comparado com as misérias que os párias sofreram

através das idades. E assim eu continuo a murmurar: Deus é

grande e misericordioso,”

O Mahatma permaneceu na prisão,

21

Pessoal

No dia 8 de maio de 1933, ainda no cárcere, Gandhi

empreendeu um jejum de três semanas, porque uma jovem norte-

americana, muito atraente, havia provocado algumas apostasias

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no ashram. O governo pôs o Mahatma em liberdade, logo no

primeiro dia; recordando-se do “Jejum Épico” em prol dos

harijans, o governo não queria saber de ficar com o Mahatma

morto em suas mãos. Mas Gandhi suportou o jejum com muitafacilidade; o espírito e a mente repousaram.

A seguir, Gandhi transferiu o ashram de Sabarmati a um

grupo de intocáveis e estabeleceu seu próprio quartel-general em

Wardha, pequena cidade perto do centro geográfico da Índia. Mais

tarde, instalou-se na aldeia de Sevagram, a poucas milhas de

distância de Wardha. Em novembro de 1933, partiu dali, para

uma excursão de dez meses, em benefício do bem-estar dos

harijans, visitando todas as províncias da Índia, sem regressar

uma só vez à sede. De 1934 a 1939, Gandhi dedicou-se à fiação, à

educação básica, à difusão das línguas hindi e hindustani como

idiomas nacionais, à prática de dietas corretas, à cura natural, ao

alívio das condições dos párias e aos assuntos do Congresso. O

principal organizador do Partido do Congresso era SardarVallabhbhai Patel, advogado possuidor de espírito altamente

perspicaz e de maravilhosa memória para os nomes — homem que

podia ser amigo e enérgico, e que se sentia como que em casa

quando se encontrava no meio de controvérsias decorrentes de

interesses litigiosos entre províncias, negócios, classes, religiões e

políticas, acima e ao redor dos quais o Congresso formava uma

espécie de tenda de abas esvoaçantes. O principal propagandista

do Congresso era Jawaharlal Nehru, bem-apessoado, delicado,

caprichoso, que se dizia socialista, e que atraía os jovens e os

intelectuais, devido à sua eloqüência e ao seu comportamento.

Gandhi dava, ao partido, alguma atenção, mas a subversão social

o absorvia muito mais. Em sua revista, publicava fórmulas para o

preparo de estrume animal, bem como prescrições para a cura de

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mordidas de serpentes e da malária. Demorava-se, por vezes, no

valor nutricional do amendoim. O amendoim integrava assunto

político, tão político como os partidos políticos, as eleições ou as

conferências. Nada do que era indiano era alheio a seu interesse.Ele era a Índia, e a Índia reclamava-o como sua propriedade.

 Todas as questões e todos os problemas eram levados à sua

consideração, e sua opinião tinha, com freqüência, a autoridade

de lei e de veredicto de corte suprema. Vivia sem paredes ao seu

redor; era acessível a toda gente; comia, dormia, caminhava,

trabalhava, lia e tecia em público; e todos os seus atos, bem como

todos os seus pensamentos, constituíam propriedade pública.

Quando permitia que um bezerro doente e presa de sofrimento

fosse eliminado pelo processo de morte indolor, por meio de

injeção aplicada por veterinário, a correspondência de protesto se

fazia numerosa e feroz. Ele insistia em que havia procedido

corretamente. Outra controvérsia, que chegou às raias da ameaça

de ataque físico, foi provocada pelo comentário que Gandhiproferiu, ao receber a notícia de que um fabricante de tecidos

havia dado caça a sessenta cães vagabundos, na sua propriedade

industrial, matando-os em seguida.

“Haveria outra coisa a fazer?”, indagou Gandhi.

Essa atitude era ofensiva ao hinduísmo, clamaram os seus

críticos. E Gandhi encheu edições inteiras de sua revista com as

cartas de protesto. Os missivistas diziam, entre outras coisas, que

Gandhi sucumbira à desumanidade dos ocidentais. Sua resposta

calou fundo:

“O ideal de humanidade, no Ocidente”, disse ele, com

suavidade, “talvez seja inferior, mas sua transposição para a vida

prática é muito mais íntegra do que a nossa. Nós nos contentamos

apenas com o ideal, e somos vagarosos, ou preguiçosos, na sua

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execução.”

O problema das crianças enviuvadas também o preocupava.

Os progenitores casavam suas filhas ainda pequenas, com filhos

ainda pequenos de outras famílias, e até mesmo com homensvelhos; quando o marido morria, na infância ou na senilidade, a

criança viúva, que podia ter a idade de três ou seis anos, não

podia, por força da lei hindu, tornar a casar-se. “A existência de

crianças viúvas”, escreveu Gandhi, “é  uma grande mancha no

hinduísmo... Considero o novo casamento das viúvas virgens não

somente desejável, mas também o imperioso dever de todos os

progenitores que por acaso tenham filhas nessas condições.” Aos

beatos hindus, que afirmavam que isso constituía um segundo

casamento proscrito pela religião, Gandhi respondia: “Tais

crianças na verdade nunca foram casadas”. A objeção do

Mahatma, quanto às crianças viúvas, era a de que elas eram

“alheias ao amor”, e que todo ser humano deve ter amor.

Contudo, o amor físico devia ser restrito. Gandhi acreditavaque o intercurso sexual freqüente produzia efeitos debilitantes nos

indianos. Quando Margaret Sanger o visitou, em dezembro de

1935, a fim de conseguir seu apoio, que seria decisivo, à

campanha favorável ao controle da natalidade na Índia, não

recebeu qualquer encorajamento.

“Ainda que se presuma”, disse ele, em certa ocasião, “que o

controle da natalidade, por meios artificiais, seja justificável sob

determinadas condições” — o que já era uma hipótese valiosa —,

“ele é impraticável entre milhões de pessoas” — para as quais um

pêni é o salário de um dia.

Gandhi percebia a necessidade de se limitar a população da

Índia. “Se eu conseguisse encontrar um recurso de deter a

procriação, de uma forma civil e voluntária, enquanto a Índia

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permanece no seu miserável estado presente, eu o poria em

prática hoje”, escreveu ele a Charles F. Andrews. O controle que

ele incentivava era o da disciplina mental. “O autocontrole é o

meio único de se regular o índice da natalidade.” Sua contribuiçãorealística, para a solução do problema do controle do aumento da

população, consistia no casamento tardio — não antes dos vinte e

um anos de idade para as mulheres, nem antes dos vinte e cinco

anos de idade para os homens. Gandhi procurou evitar que seus

filhos se casassem cedo. Mas um aumento de cinco milhões de

bocas por ano, nos decênios de 1940 e 50 (indubitavelmente

excessivo nas condições da Índia, visto que isso anularia até o

considerável progresso econômico do período após a

independência, e, portanto, conduziria à frustração), não poderia

ser eliminado apenas pela elevação de uns poucos anos na idade

mínima para o casamento.

Ao negar que “a indulgência sexual, pelo simples prazer que

ela proporciona” — e não para finalidades de procriação —, “éuma necessidade humana”, Gandhi esquecia sua própria

 juventude e sua própria masculinidade juvenil. Mesmo mais tarde,

embora ele se mantivesse casto, dos trinta e sete anos de idade até

ser assassinado, seu sexo não se havia extinto. “Minha hora mais

negra”, revelou o maduro Mahatma de sessenta e sete anos de

idade, no Harijan, de 26 de dezembro de 1936, “ocorreu quando

eu me encontrava em Bombaim, alguns meses atrás. Aquela foi

uma hora de tentação. Enquanto eu dormia, senti, de súbito, o

desejo de ver uma mulher. Um homem resoluto, que procurara

erguer-se e tornar-se superior ao instinto, durante cerca de

quarenta anos, passou a sentir-se intensamente angustiado,

quando teve essa pavorosa experiência. Por fim, dominei aquele

sentimento, mas me vi cara a cara com o mais negro instante de

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minha vida; se eu sucumbisse a ele, o fato teria significado o meu

fracasso absoluto.” A maior parte das pessoas é  incapaz de

semelhante auto-revelação, e talvez mesmo a julgasse

desnecessária, mas ele queria que o mundo ficasse sabendo averdade a seu respeito; a sua autobiografia se intitula Minha vida

e minhas experiências com a verdade, e a verdade era a inteira

verdade que — ao que ele esperava — teria de ser uma lição para

os outros. “Como sempre afirmei, ao longo de minha vida, que

aquilo que é possível para uma pessoa é possível para todas as

outras”, disse ele, “minhas experiências não têm sido realizadas às

ocultas, e sim a céu aberto.” Durante os últimos anos de sua vida,

e contra os protestos de seus discípulos masculinos, Gandhi se

empenhou num doce teste de autocontrole, dormindo

publicamente, na mesma cama, com uma ou outra de suas

devotadas assistentes. Fazer isso era muito mais honesto do que

suprimir o anseio; contudo, aquele santo extremamente complexo

conseguia ser encantadoramente ingênuo; e ele provavelmenteacreditava, de verdade, que a inocente alegria constituísse apenas

um estudo psicológico.

A preocupação do Mahatma com toda espécie de questões

íntimas, de ordem pessoal ou social, levou à porta sempre aberta

do seu ashram todos os tipos de monstros, de charlatães, de

vagabundos e de cruzados, ansiosos por conseguir a aprovação

dele para seus planos, por vezes fanfarrões, por vezes sérios.

Gandhi recebia também visitas de amigos, de conhecidos, de

associados políticos e de estranhos, que lhe pediam

consentimento para se casar ou para se separar — porquanto ele

era o pai adotivo, o “Bapu”, da maior parte dos indianos. O motivo

pelo qual admitiam que Gandhi soubesse o que era melhor para

eles, e o motivo pelo qual aceitavam um conselho que com

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freqüência dava resultados penosos, constituem um enigma no

terreno da adulação. Gandhi, ele próprio, estava longe de haver

sido marido perfeito e um pai perfeito. Um estrangeiro, de uma

feita, lhe perguntou — e somente um estrangeiro poderiaperguntar-lhe semelhante coisa:

 — Como vai sua família?

 — Toda a Índia é minha família — respondeu Gandhi.

Essa atitude o tornava mais ou menos impessoal para com

sua esposa e seus filhos. Considerável tensão havia assinalado

suas primeiras relações com Kasturbai; com a idade, porém, a

tensão se afrouxara; e os dois se transformaram num casal

modelo: ela, o máximo de prestatividade; ele, o padrão de

consideração. Ela nunca se portou como sendo a sra. Gandhi;

nunca aceitou qualquer privilégio; nunca se esquivou ao trabalho

mais duro; e nunca deu mostras de notar a existência do pequeno

grupo composto de moças e discípulas de meia-idade, que, em

atitude de adoração, se interpunha entre ela e seu ilustre esposo.Durante a semana que passei com Gandhi, em 1942, nunca a

ouvi dizer uma única palavra ao marido, nem ele falou com ela. Às

refeições e às preces, ela se sentava logo atrás do ombro esquerdo

dele, abanando-o solicitamente, e sempre fitando-o. Ele raramente

olhava para ela; contudo, queria que ela se conservasse o mais

possível perto dele; e sempre pareceu haver perfeito entendimento

entre os dois. Era óbvio que, embora fosse a sombra do Mahatma,

ela era também ela mesma, com personalidade bem marcada,

dona de grande força de vontade, desprendida, observadora. Suas

faces chupadas, sua boca em linha reta e de lábios finos, seus

maxilares quadrados, sugeriam sofrimento e dedicação, mas

indicavam também determinação. Ela nunca se rendeu a ele, e

parecia ter prazer nisso. “Ba”, disse ele, de uma feita, referindo-se

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a Kasturbai como “mãe”, “toma chá, a despeito do fato de viver

comigo.” Da mesma forma, ela o desafiava, bebendo café. “Eu até

seria capaz de o preparar afeiçoadamente para ela”, acrescentava

ele. Gandhi acabou amando Kasturbai.Contudo, o Mahatma nunca aprendeu a ser pai para seus

filhos. Admitindo que eles deveriam ser filhos de santo, e,

portanto, santos em miniatura, negou-lhes toda educação formal,

com fundamento na convicção de que o caráter fosse mais

precioso do que a instrução, e o serviço público, mais importante

do que uma profissão. Os filhos ressentiram-se disso. Seu filho

mais velho, Harilal, tornou-se beberrão dissoluto e perverso,

separado de sua mulher e de seus filhos, e, por certo com o

propósito de fazer o Mahatma sofrer, converteu-se ao islamismo,

sob o nome de Abdulla. Manilal, segundo filho de Gandhi, aceitava

a indevida punição paterna, bem como sua disciplina, com o

espírito de auto-abnegação de seu pai asceta; ao contrário do

rebelde Harilal, procurava chegar o mais perto possível do ideal deseu pai, seguindo-lhe as pegadas, na qualidade de líder da

resistência popular contra a moderna perseguição às pessoas de

cor, criada pelo primeiro-ministro Malan, na África do Sul.

Ramdas viveu tranqüilamente numa pequena cidade indiana de

província, gerindo a filial de uma firma comercial. Somente

Devadas, o mais moço de seus filhos, permaneceu perto do pai,

servindo-lhe de secretário, quando convidado a isso, mas

observando, de vez em quando, que o Mahatma era mais afetuoso

na qualidade de avô. A explicação disso talvez esteja no fato de

Gandhi ter um conceito impessoal da imortalidade.

“Mas não poderá um artista, ou um poeta, ou um grande

gênio, deixar o legado de sua genialidade à posteridade, através de

seus filhos?”, perguntou alguém.

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“Sem dúvida, não”, respondeu o Mahatma. “Ele terá mais

discípulos do que os filhos que jamais possa ter.”

Gandhi amava muitas crianças e acreditava em sua

bondade; “o mal aparece apenas quando elas se fazem adultas”.Eu o vi olhando, divertido, para as crianças, no ashram, e

beliscando-as carinhosamente.

“Ela é meu repouso”, disse ele, a propósito de uma menina

que acariciava em minha presença. Há uma deliciosa fotografia de

Gandhi acarinhando com o nariz uma menina que estava em seus

braços, e outra fotografia dele mesmo, a correr atrás de um neto,

filho de Ramdas, ao mesmo tempo que os dois, neto e avô,

seguram as extremidades opostas da mesma vara.

Moços e velhos ficavam como que de boca aberta junto de

Gandhi; as relações pessoais com ele, dentro e fora do ashram,

eram simples, diretas e amistosas. Gandhi respondia a todas as

cartas de sua volumosa correspondência, e nunca o fazia com

formalidades. Sempre que as pessoas se apresentavam a ele, paraque lhes resolvesse os problemas e os aborrecimentos privados,

ele, pacientemente, abrandava tudo e tudo suavizava. Durante as

fatídicas negociações com o governo britânico, em 1946, quando

os colegas e os ministros componentes do gabinete competiam

para obter um pouco do seu tempo, eu o vi, andando de um lado

para outro, à frente de seu pórtico, por mais de um quarto de

hora, a falar com uma jovem mulher paralítica, e, depois, por um

período igual, com um jovem; e, quando perguntei a razão disso,

foi-me dito, por um assistente, que se tratava de um casal de

intocáveis, cujas relações se haviam interrompido. Gandhi estivera

tentando ajudá-los. O Mahatma dava e recebia amor ao infinito.

Havia nele algo de feminino. Com freqüência, comparava-se a si

mesmo a uma mãe, e falava de haver sido “enviuvada”.

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“Espero que não tenhais deixado de notar a mulher que

existe em mim”, escreveu ele, de uma feita, à sra. Naidu.

Gandhi era caprichosamente asseado, meticulosamente

econômico, e muito delicado. Sua capacidade para sofrer e para seidentificar, seu ato de tecer e sua inclinação para a não-violência,

continham, provavelmente, elementos de ordem feminina. Gostava

de atender os doentes, de cuidar dos fracos — mas desdenhava

essa ordem de cuidados para consigo mesmo. Tinha aparência

bem máscula e era dono de um corpo e de uma vontade de aço;

não obstante, era também docemente gentil e suavemente terno;

firme, embora acariciante; duro, embora complacente; valente,

embora meigo. Tinha o poder de um ditador, mas o espírito de um

democrata; por isso, preferia conquistar mais com o afeto do que

com a força. O que ganhava com o ferro, ele o ocultava. A intuição

era a aliada de seu intelecto, e, com efeito, por vezes o guiava, ou

a ele se sobrepunha. Essa combinação de qualidades masculinas

e femininas, entrelaçadas harmoniosamente, sem deixar vinco,nem emenda, tornava Gandhi intricado e fascinante, constituindo

uma chave importante para a interpretação de sua vida pessoal e

de sua atuação pública,

22 Jesus Cristo e o Mahatma Gandhi

Entre aqueles que foram sentar-se aos pés de Gandhi,

encontravam-se missionários cristãos. Gandhi amava Jesus; e os

devotos hindus chegavam a acusá-lo de ser secretamente cristão.

O Mahatma considerava isso “ao mesmo tempo um libelo e um

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louvor: um libelo, porque há homens que me acreditam capaz de

ser secretamente seja lá o que for... um louvor, porque se trata de

um reconhecimento, embora relutante, de minha capacidade de

apreciar as belezas do cristianismo”.Sempre tolerante e de espírito aberto, Gandhi duvidava que

somente os sagrados Vedas hindus fossem a palavra revelada de

Deus.

“Por que não a Bíblia e o Corão?”, perguntava ele.

Gandhi evitava o estabelecimento de rivalidades entre

religiões. Em 1942, quando eu era hóspede de sua casa, notei a

única decoração que havia nas paredes de barro da sua pequena

choupana: uma estampa em branco e preto de Jesus Cristo, sob a

qual estava escrito: “Ele é nossa paz”. Perguntei-lhe o que

significava aquilo.

“Vós não sois cristão”, observei-lhe eu.

“Eu sou cristão, hindu, muçulmano e judeu”, respondeu

Gandhi. E isso fazia dele um cristão muito mais cristão do que amaior parte dos cristãos.

Gandhi apresentava um problema desconcertante aos

teólogos cristãos da Índia. Ele, hindu, era a pessoa mais

semelhante a Cristo do mundo. “E, por conseguinte”, comentava o

dr. E. Stanley Jones, preeminente missionário norte-americano,

que passara muitos anos na Índia e muitas horas em comunhão

com Gandhi, “um dos homens mais parecidos com Cristo, da

história, não era de forma alguma chamado cristão.” “Deus”,

declarou o dr. Stanley Jones, “faz uso de muitos instrumentos; e

Ele pode ter recorrido ao Mahatma Gandhi para cristianizar a

cristandade não-cristã.”

A mensagem de Gandhi aos cristãos, por toda parte, é a de

que o homem do século XX pode ser cristão. O sr. S. K. George,

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cristão sírio da Índia e conferencista do Colégio do Bispo, de

Calcutá, escreveu um livro intitulado Gandhi’s challenge to

christianity (O desafio de Gandhi à cristandade), e dedicou-o “Ao

Mahatma Gandhi, que tornou Jesus e a Sua mensagem reais paramim”. O reverendo K. Matthew Simon, da igreja sírio-cristã de

Malabar, na Índia, disse, referindo-se a Gandhi: “Foi a vida dele

que provou, a meus olhos, mais do que qualquer outra coisa, que

o cristianismo é religião praticável até no século XX”.

Durante muitos anos de terna amizade, Charles Freer

Andrews, o missionário britânico, e Gandhi se tornaram tão

íntimos, que o Mahatma referiu-se a ele dizendo: “Ele é mais do

que um irmão de sangue, para mim”.

Gandhi chamava-o “Charlie”; e ele chamava Gandhi de

“Mohan”.

“Não creio que eu possa dizer que tenho, por qualquer outra

pessoa, um apego mais profundo do que pelo sr. Andrews”,

escreveu Gandhi.O santo hindu não encontrou alma que fosse mais

aparentada com a dele próprio do que a de Andrews, o cristão; o

missionário cristão não encontrou melhor cristão do que Gandhi,

o hindu.

Na África do Sul, por um momento, Gandhi pensara em

tornar-se cristão. Mas houve perguntas que não encontraram

respostas satisfatórias. “Por que motivo”, perguntava ele aos

cristãos que procuravam convertê-lo, “Deus teve apenas um filho?

Se Ele teve um, por que não teve outro? No hinduísmo, houve

certo número de encarnações humanas do Todo-Poderoso. Por que

razão posso ir para o céu e conseguir salvação exclusivamente por

ser cristão?”, indagava. Era o céu reservado aos cristãos? Era

Deus cristão? “Acredito”, disse ele, anos mais tarde, na Índia,

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“que, no outro mundo, não haja hindus, nem cristãos, nem

muçulmanos.”

Em Sabarmati e Sevagram, os missionários, sentados no

chão da sua choupana, tentaram convertê-lo ao cristianismo. Ele,falando em voz baixa, tentara fazer o mesmo com eles. (Mas por

que arrolar um santo, numa igreja?)

Em tais seminários, Gandhi zombava ocasionalmente dos

missionários, por transformarem em cristãos os famintos indianos

que eles alimentavam e os indianos enfermos que eles curavam.

“Fazei de nós melhores hindus”, suplicava.

Gandhi poderia ter convertido muitos cristãos ao hinduísmo.

A uma alusão de sua parte, Miss Slade e outros se teriam tornado

hindus. Ele, entretanto, lhes disse apenas que tratassem de ser

bons cristãos.

Por fim, Gandhi abraçou Cristo, mas repeliu o cristianismo.

E definiu sua atitude, com maior clareza, na Associação Cristã de

Moços, em Colombo, no Ceilão, em 1927.“Se naquela oportunidade eu tivesse de enfrentar somente o

Sermão da Montanha e minha própria interpretação dele”,

declarou Gandhi, “não hesitaria em dizer: ‘Oh, sim, sou cristão...’

Mas, negativamente, posso dizer-vos que muita coisa que passa

por cristianismo é uma negação do Sermão da Montanha.”

E Gandhi lançou uma farpa:

“Por obséquio, tomai nota de minhas palavras”, prosseguiu.

“Não estou falando, no presente momento, da conduta cristã.

Estou falando do credo cristão, do cristianismo tal como ele é

entendido no Ocidente.”

O Mahatma lançou um pouco mais de luz sobre esse seu

ponto de vista quando permaneci ao seu lado, em 1946.

“Paulo”, disse ele, “não era judeu, era grego, tinha espírito

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inclinado para a eloqüência e para a dialética, e distorceu Jesus.

 Jesus possuía uma grande força, a força do amor, mas o

cristianismo se desfigurou quando foi para o Ocidente. Tornou-se

uma religião de reis.”Esse raciocínio refletia seu desapontamento, que cada vez

mais se aprofundava, em face da civilização ocidental. Observando

a inclinação do mundo para a guerra, durante a década de 30,

Gandhi se fez cada vez mais crítico do Ocidente, e cada vez mais

pacifista. Nunca chegou a ser pacifista completo, nem tolstoiano

absolutista no sentido de pessoa incapaz de defender a guerra sob

quaisquer circunstâncias. Mas, para aqueles que indagassem o

motivo pelo qual ele havia apoiado a Primeira Guerra Mundial,

recusando-se, contudo, a apoiar a Segunda Guerra Mundial, mais

 justificável, contra o nazismo alemão, contra o fascismo italiano e

contra o militarismo japonês, poderia responder que ele, Gandhi,

era diferente, e que o mundo também era diferente. O Mahatma

tinha mais fé na não-violência do que no Ocidente. Via o fascismo,o stalinismo, a guerra, o crime e a corrupção como demonstrações

correlatas do triunfo da violência ocidental sobre a moral cristã; e

percebia, portanto, que a violência não podia curar os males que a

própria violência havia produzido. Como político cujo país estava

na iminência de ser invadido, Gandhi talvez não se permitisse o

luxo de perspectivas de longo alcance (que é, provavelmente, a

razão pela qual prometeu permanecer “fora do mundo oficial”,

mesmo numa Índia independente), mas, como superpolítico, via,

com os olhos do espírito, que a humanidade se destruiria a si

mesma, se não adotasse um processo longo e terapêutico. No

limiar da guerra, sempre há poderosa justificação para se entrar

nela. É quando as sementes da provação são semeadas pela

ganância e sopradas ao vento pelo ódio e pela estupidez, que a

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estratégia gandhiana pode ser aplicada.

A não-violência de Gandhi era, acima de tudo, um credo de

ética pessoal, que incluía a verdade, o amor, a prestatividade,

métodos e meios escrupulosos, a tendência a não melindrar porfatos nem por palavras, a afável tolerância de diferenças, e a

ausência de desejo, ou, pelo menos, a moderação na corrida aos

bens materiais.

A não-violência gandhiana, em segundo lugar, é uma técnica

destinada a prevenir o conflito entre raças, comunidades e países.

“Virai o farol para dentro”, insistia ele, repetidamente, “talvez a

falta seja, em parte, nossa. Adjudicai, negociai, arbitrai”, suplicava

ele, “do contrário, uma rixa inter-religiosa, ou um incidente racial,

dará, imediatamente, combustível para outro; e uma guerra

originará os venenos, os medos e os planos militares que tornam

mais provável a eclosão de uma segunda e de uma terceira. A

violência perpetua-se por si mesma.”

Essas são verdades simples. Gandhi sabia disso. Sugeri-lhe,em 1946, que deveria pregar a paz para o Ocidente.

“Por que razão precisa o Ocidente de mim para lhe dizer que

duas vezes dois são quatro?”, ruminava ele.

Ao que parece, o cérebro ocidental captou essa aritmética,

mas a consciência ocidental, bem como o coração do Ocidente,

não conseguem deduzir as conclusões práticas que dela decorrem.

Daí as críticas de Gandhi ao mundo cristão. Mas, por outro lado,

ele não era cego às falhas da Índia. “Tenho um trabalho não

acabado por aqui”, afirmou Gandhi, ao discutir uma sua visita ao

Ocidente.

“Temos excesso de homens de ciência, mas escassez de

homens de Deus. Captamos o mistério do átomo e rejeitamos o

Sermão da Montanha.”

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Não era Gandhi que dizia isso; era o general Omar N.

Bradley, chefe do estado-maior conjunto das forças armadas dos

Estados Unidos, em discurso proferido em Boston, a 10 de

novembro de 1948.“O nosso”, prosseguia Bradley, “é um mundo de gigantes

nucleares e de pigmeus morais. Sabemos mais a respeito de

guerra do que a respeito de paz, mais a propósito de matar do que

a propósito de viver.”

Gandhi não sabia coisa alguma a propósito de matar, mas

havia encontrado o segredo de uma vida feliz e útil. Ele era um

pigmeu nuclear e um gigante moral. Rejeitava o átomo, por haver

aceito o Sermão da Montanha, de Cristo. Era cristão, hindu,

muçulmano e judeu. Quem mais o é? Talvez seja essa a razão pela

qual foi um hindu que se tornou “porta-voz da consciência da

humanidade”. Uma vez que sempre dava ouvidos aos imperativos

de sua própria consciência, podia falar pela e para a consciência

dos outros.

23

Winston Churchill versus Mohandas Gandhi

No dia em que a Segunda Guerra Mundial teve início, a Grã-

Bretanha arrastou a Índia para o conflito, por meio de

proclamação sem prévia consulta. A Índia protestou

veementemente contra essa revelação adicional e humilhante de

sua impotência. Mas, já no dia seguinte, Gandhi tomou um trem

para Simla, capital indiana de verão, e chorou, numa entrevista

com lorde Linlithgow, vice-rei britânico.

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“Quando me pus a descrever, aos olhos dele, o Parlamento e

a Abadia de Westminster, assinalando sua possível destruição”,

informou Gandhi, “comecei a chorar. Senti-me desconsolado. No

íntimo de meu coração, encontro-me em perpétua querela comDeus, pelo fato de Ele permitir que tais coisas continuem a

acontecer.” O hitlerismo, disse ele, “significa força bruta e

impiedosa, reduzida à categoria de ciência exata, e manobrada

com precisão científica. Cheguei à conclusão de que Herr Hitler é o

responsável pela guerra”. “Minha simpatia para com a Inglaterra e

para com a França”, explicou, “não é resultado de emoção

momentânea...”

Quando a França se rendeu aos nazistas, e a vida da

Inglaterra passou a depender da força aérea, Gandhi profetizou,

sobriamente: “A Inglaterra resistirá até a morte, e morrerá

heroicamente, se tiver de morrer. Teremos notícias de reveses,

mas não teremos notícias de desmoralização”.

O respeito de Gandhi para com as virtudes do povo britânicose manteve alto durante a guerra toda. “Não quero que a

Inglaterra seja derrotada e humilhada”, declarou, num discurso

dirigido à Comissão do Congresso Pan-Indiano, em 15 de

setembro de 1940. “Portanto, nada tenho, a não ser votos de

felicidade, a fazer para o vosso país e para a Grã-Bretanha”,

escreveu Gandhi, em carta dirigida ao presidente Roosevelt,

datada de 1.° de julho de 1942, que me incumbiu de entregar.

No ano de 1942, os japoneses se expandiram rapidamente

pelo sudeste da Ásia, até as fronteiras da Índia, ameaçando

invadi-las. Gandhi manteve-se firme contra eles.

“Se os japoneses vierem, como poderemos oferecer-lhes

resistência não-violentamente?”, perguntaram-lhe.

“Não lhes daremos alimento, nem abrigo”, respondeu o

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Mahatma, em 14 de junho de 1942, pelas colunas do Harijan,

“nem com eles faremos quaisquer negócios. Eles deverão ser

levados a sentir que não são desejados... O povo... deverá evacuar

os lugares infestados, a fim de evitar a prestação compulsória deserviço ao inimigo.”

Antes disso, quando o sr. Takaoka, membro do Parlamento

nipônico, lhe pedira uma mensagem para o partido político

 japonês que atuava sob o lema “A Ásia para os asiáticos”, Gandhi

recusara, dizendo:

“Não subscrevo a doutrina da Ásia para os asiáticos, se ela

tem o sentido de uma combinação antieuropéia”.

Durante a guerra toda, Gandhi conservou-se contra os

 japoneses, contra os nazistas e contra Mussolini, sendo a favor

dos britânicos, dos franceses, dos norte-americanos. Afetado pela

devoção de tempo de guerra, de Nehru, para com o generalíssimo

e a sra. Chiang Kaichek e para com a União Soviética, o Mahatma

também fez declarações de apoio à China e à URSS. “Não é porqueamo a nação britânica e odeio a germânica”, afirmou ele. “Não

considero os alemães, na qualidade de nação, piores do que os

ingleses, nem do que os italianos. Nós todos somos lambuzados

pelo mesmo pincel; somos todos membros da vasta família

humana. Recuso-me a reconhecer quaisquer diferenças... Não

tenho o direito de reclamar qualquer superioridade para a Índia.”

Gandhi opunha-se, simplesmente, aos governos agressores.

Em conseqüência, no dia seguinte ao do começo da guerra,

assumiu publicamente o empenho de não causar embaraços à

Inglaterra; com efeito, deu à Inglaterra e aos aliados dela seu

apoio moral. Gandhi não iria nunca além disso. Não poderia

participar do esforço de guerra.

O Partido do Congresso não se encontrava inibido da mesma

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forma. Com exceção dos discípulos mais chegados do ashram de

Gandhi, e de homens como Khan Abdul Ghaffar Khan, “o Gandhi

da fronteira”, um doce gigante patã, poucos líderes do Congresso

eram pacifistas ou acreditavam na não-violência. AcompanhavamGandhi na sua campanha de não-violência, porque esse era, em

regra, o preço que tinham de pagar pela sua liderança, e também

porque a Índia não tinha outra alternativa, uma vez que não

possuía armas. Gandhi sabia disso. Para ele, a não-violência

constituía um credo; para o Congresso, “uma política”. O

Congresso, portanto, estava pronto a lançar, de todo o coração, a

Índia no conflito armado, a troco de uma compensação. “Uma

Índia livre e democrática”, afirmou o Congresso, num manifesto

redigido por Nehru, “se associará prazerosamente a outras nações

livres, para a defesa mútua contra a agressão e a favor da

cooperação econômica...”

“Lutarei contra o Japão, de espada na mão”, disse Nehru,

numa oportunidade ulterior, “mas só poderei fazer isso comohomem livre.”

Gandhi não interferiu; apenas se absteve.

O governo britânico, entretanto, não tinha intenção de dar à

Índia liberdade, independência, soberania, nem sequer direitos

menos expressivos. Winston Churchill era primeiro-ministro, e

continuava a ser guiado pela sua famosa frase de 10 de novembro

de 1942: “Não me fiz primeiro-ministro do rei a fim de presidir à

liquidação do império britânico”. Churchill detestava, talvez até

temesse, o “faquir seminu”, que amava a Inglaterra, mas que

poderia destruir o império. “O gandhismo e tudo aquilo por que ele

se bate deve finalmente ser agarrado e definitivamente esmagado”,

declarou Churchill, em 1935. Agora, pela primeira vez, depois de

1935, Churchill se encontrava no poder — no supremo poder —, e

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nutria o propósito de esmagar o gandhismo, a fim de salvar sua

Inglaterra.

Um grande homem é feito de uma peça só, como uma boa

escultura. Churchill e Gandhi eram semelhantes, porquanto cadaqual dava a própria vida em benefício de uma única causa. O

propósito absorvente de Churchill era a preservação da Grã-

Bretanha, na qualidade de potência de primeira grandeza. Ele era

produto do século XIX, e gostava de o ser. Amava a realeza, a

casta, o império. Lloyd George desprezava as classes superiores

inglesas, os generais, a nobreza — e combatia tudo isso. Seu

apego não era tanto para com as referidas coisas, era para com o

século XIX, que lhes havia dado existência. O século XIX fora o

século britânico, o século da Pax Britannica, depois da derrota da

França napoleônica, e antes do surto da Alemanha do cáiser; o

século do florescente império, sob o cetro da rainha Vitória. A

glória passada da Inglaterra era o deus de Winston. As classes

superiores eram sinônimo, para ele, da grandeza de sua pátria. Omesmo se diria da democracia parlamentar, e o mesmo da Índia.

Churchill tomou parte na Segunda Guerra Mundial para

preservar o legado da Grã-Bretanha. Permitiria ele que um faquir

seminu roubasse à sua pátria aquele legado?

“Temos o propósito de conservar o que é nosso”, disse

Churchill.

A Índia era propriedade da Inglaterra, que se recusava a

desistir dela. A partir do momento em que se tornou primeiro-

ministro do rei, em 1940, até o dia em que, em 1945, foi afastado

do poder, Churchill moveu guerra contra o Mahatma Gandhi.

Aquilo foi uma peleja entre o passado da Inglaterra e o futuro da

Índia.

Para Churchill, o poder era poesia. Ele era um Napoleão

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byroniano. Odiava, com paixão, as tiranias estrangeiras que

ameaçavam a Inglaterra, e orientava contra elas todo o fervor

moral que seu gênio podia gerar, mas não alimentava simpatia

alguma para com a luta moral de Gandhi contra a dominaçãobritânica. Poderia ter morrido, para conservar a Inglaterra livre,

mas detestava aqueles que desejavam que a Índia se tornasse

livre. Para ele, os indianos constituíam o pedestal de um trono.

Isso explica o fracasso da missão empreendida por Sir

Stafford Cripps, em nome do governo britânico, em meados de

1942. Cripps, o magro, austero, rico, ascético e vegetariano

trabalhista, poderia ter chegado a um acordo com o Partido do

Congresso; poderia, mesmo, ter o Congresso em suas mãos, mas

Churchill visualizava Gandhi a subir os degraus da escadaria do

palácio do vice-rei, a fim de dividir o poder com o rei-imperador; e

Gandhi não deveria partilhar desse poder.

Na perspectiva histórica dos acontecimentos subseqüentes, é

claro que o ano de 1942 teria sido o melhor para se levar Patel,Nehru, Rajagopalachari, Azad e outros seus colegas por aqueles

degraus acima, passando pela guarda indiana soberbamente bem-

apessoada, estatuária, imóvel e pitoresca, com suas lanças, a

caminho das câmaras internas do poder, e assim preparar o

caminho para uma Índia independente, voluntariamente

associada, como agora, à Commonwealth. O exército e a polícia

dos britânicos, que na época se encontravam em pleno controle da

situação, poderiam ter garantido uma transição pacífica, e evitado

a divisão da Índia em República indiana e Paquistão, bem como

todo o seu enorme custo em vidas, em ódios, em ruína econômica

e em tensões políticas, coisas pelas quais as duas partes estão

pagando, e continuarão a pagar ao longo de decênios. Alguns

perceberam isso naquela época.

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“Nós estaremos fora daqui dentro de dois anos depois do fim

da guerra”, disse-me Sir Reginald Maxwell, membro do conselho

do vice-rei para os assuntos internos; disse-o com uma precisão

notável, em 1942. “Não estamos destinados a permanecer naÍndia”, disse-me o vice-rei, numa entrevista. É provável que

também Churchill soubesse disso. Mas a mesma vontade,

gloriosamente indomável, que permitiu que Churchill

permanecesse impertérrito, em presença daquilo que chegou a

parecer inevitável derrota nas mãos de Hitler, fazia dele um bloco

inamovível, posto na estrada que a Índia teria de percorrer, rumo

à sua inevitável liberdade. Churchill não seria o instrumento da

liquidação do império. Isso foi deixado a outro governo britânico,

de outra Inglaterra, nobre na vitória, mas enfraquecida pelo preço

dessa mesma vitória.

24

Minha semana com Gandhi

A tonga — carruagem de um cavalo e duas rodas, em que os

passageiros se sentam olhando para trás — levou-nos, ao dentista

de Gandhi e a mim, da cidade de Wardha para a aldeia de

Sevagram. Durante a viagem de cinco milhas, ou cerca de nove

poeirentos quilômetros, tentei fazer com que me falasse do

Mahatma como paciente. Ele, entretanto, falou dos britânicos na

Índia.

Gandhi esperou-nos no ponto em que a estrada se encontra

com a aldeia. Aquela era a primeira vez que eu o via. Ele deu

alguns passos na minha direção e disse, estendendo os braços

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abertos:

“Sr. Fischer”.

Pareceu-me mais alto do que eu havia presumido.

Envergando apenas o seu célebre lençol e calçando sandálias,fazia um forte contraste entre um branco rutilante e um

bronzeado suave. Parecia bem-constituído, o peito redondo, a

cintura fina e as pernas longas, magras e musculosas; seus

 joelhos eram marcadamente salientes. Gandhi, naquela época,

tinha setenta e três anos. Convidou-me a sentar junto dele, num

banco; sentou-se em primeiro lugar, e, com a palma da mão, como

que limpou o local onde eu estava para me sentar. A maneira

como fez isso sugeria: “Esta é a minha casa; entre”.

Senti-me imediatamente como que em minha casa.

Percebendo meu desejo de saber o que me estava sendo

reservado, disse-me que eu poderia ter uma palestra de uma hora

com ele, depois do almoço, e caminhar em sua companhia, à

tarde. Entregou-me aos cuidados de Kurshed Naoroji, neta dofamoso nacionalista indiano parse, Dadabhai Naoroji, que havia

abandonado seus estudos sobre a voz, na Europa, para servir a

Gandhi. Ela, então, apareceu e me instalou na casa dos hóspedes:

uma choupana de paredes de taipa, coberta de bambu, que se

compunha de uma sala, com chão de terra batida, e um pequeno

quarto contíguo, com bacias, baldes e jarros de água no seu piso

de cimento. A temperatura era de quarenta e três graus

centígrados lá fora, e não muito mais baixa, dentro; cinco ou seis

vaporizações diárias constituíam o mínimo, para se ter algum

conforto. A aldeia e o ashram não dispunham de água corrente,

nem eletricidade, ventiladores, rádio ou telefone. Assim era a

Índia.

Às onze horas, Kurshed me conduziu à choupana de

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Gandhi. Deixei meus chinelos do lado de fora e entrei numa sala

em penumbra, onde Gandhi estava deitado numa enxerga, sobre o

chão de terra batida. Ao seu lado, havia alguns manuscritos e

uma estante de madeira, de uns vinte e cinco centímetros dealtura, munida de vários orifícios circulares, nos quais se viam

sua caneta-tinteiro e seu lápis. Fui apresentado aos secretários:

Mahadev Desai, Pyarelal e Kishorlal Mashruwala. Depois de um

momento, Gandhi soergueu-se, e, em tom de fingido comando,

disse-me:

 — Venha comigo.

Era hora de almoço.

 — Agora, calce seus sapatos e ponha seu chapéu — disse

ele. — Essas coisas são indispensáveis aqui. Não vá sofrer

insolação.

Duas longas paredes feitas de esteiras, unidas por outra

parede, ao fundo, e por um teto, tudo do mesmo material,

constituíam a sala de refeições. Cada pessoa, cerca de trinta comas crianças, tinha uma fina esteira de palha por baixo, e uma

bandeja de cobre à frente.

Gandhi sentou-se numa almofada. Membros do ashram,

femininos e masculinos, movendo-se sem fazer barulho, descalços,

depositavam alimentos nas bandejas, panelas e frigideiras junto

às pernas de Gandhi. O Mahatma me passou uma tigela de

bronze, cheia de vegetais moídos, em cujo interior pensei discernir

folhas picadas de espinafre e pedaços de algo parecido com

abóbora. Uma mulher deitou uma pitada de sal em minha

bandeja; outra me deu um caneco de metal, com água quente, e

outro, com leite quente. A seguir, recebi duas pequenas batatas

cozidas e vários pãezinhos, chatos e circulares, de trigo. Gandhi —

eu me encontrava sentado ao lado dele, com outra pessoa entre

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mim e ele — passou-me um biscoito salgado, duro, da espessura

de uma folha de papel, tirando-o de um recipiente de metal que

estava à sua frente.

Ao som do gongo, um moço robusto, de calções, parou decuidar das bandejas, pôs-se de pé, fechou os olhos, de modo que

somente uma estreita fresta branca se manteve aberta (fazendo-o

parecer cego), e começou um canto estridente, no que foi

acompanhado por todos. A prece terminou com “Shahnti, Shahnti,

Shahnti” (Paz, Paz, Paz). Depois, todos começaram a comer com as

mãos; pescavam os vegetais, com um daqueles biscoitos dobrados

em triângulo. Deram-me uma colher de chá. Gandhi mastigou

ativamente, parando apenas para servir sua mulher e os vizinhos

mais próximos.

 — Vós vivestes na Rússia soviética durante catorze anos.

Qual vossa opinião sobre Stálin?

Essa foi a primeira pergunta política que Gandhi me fez.

Eu sentia um calor enorme; minhas mãos estavampegajosas; meus tornozelos e minhas pernas começavam a doer,

por eu estar sentado em cima deles; por isso, respondi,

brevemente:

 — Muito capaz e muito impiedoso.

 — Tão impiedoso como Hitler? — indagou ele.

 — No mínimo.

Depois de uma pausa, o Mahatma voltou-se para mim e

disse:

 — Já vistes o vice-rei?

Eu respondi que sim. (“Não tenha dúvida alguma quanto a

isso, dissera-me o vice-rei, o velho Mahatma é a maior coisa que

existe na Índia.”)

Serviram-me uma segunda vez meus alimentos.

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 — Podeis beber quanta água desejardes — apressou-se

Gandhi a dizer. — Tomamos sempre o cuidado de fazer com que

ela seja fervida. E, agora, comei vossa manga.

Comecei a descascar minha fruta; ele riu; outros riramtambém. O Mahatma explicou que os indianos, em regra, giravam

e espremiam a manga em suas mãos, a fim de a amaciar, e,

depois, chupavam-lhe a polpa por uma das extremidades, mas,

acrescentou ele, eu tinha o direito de a descascar, a fim de ver se

estava em boas condições.

O jantar, com quase o mesmo cardápio, foi servido logo

antes do cair do sol. Tomei o desjejum sozinho, na choupana de

hóspedes: chá, biscoitos, pão, manteiga, mel e manga. Ao almoço,

no segundo dia, Gandhi trocou minha colher de chá por uma

colher de sopa.

 — Isso é mais consentâneo com vosso tamanho — zombou

ele.

Ofereceu-me uma cebola cozida. Eu preferi uma crua, querepresentava um alívio em relação à insípida dieta. Ao almoço, no

terceiro dia, Gandhi disse:

 — Fischer, dai-me vossa tigela; vou enchê-la de verdura.

Eu lhe disse que, depois de comer quatro vezes o mesmo

prato de espinafre e abóbora, em dois dias, não tinha desejo de

fazer isso outra vez.

 — Vós não gostais de verduras — comentou.

 — Eu não gosto dessas verduras três dias seguidos.

 — Ah! — sugeriu ele — deveis acrescentar bastante sal e

limão.

 — Desejais que eu lhes destrua o gosto.

 — Não — riu ele. — Que lhes enriqueça o gosto.

 — Sois tão contrário à violência, que não devíeis sequer

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destruir um sabor.

 — Se fosse apenas isso que o homem matasse, não me

importaria — observou.

Enxuguei a transpiração de meu rosto e de meu pescoço. — Da próxima vez que eu vier à Índia... — comecei eu. Não

me pareceu que ele estivesse ouvindo; por isso, parei.

 — Sim — estimulou-me ele. — Da próxima vez que vierdes à

Índia...

 — Ou devereis ter ar condicionado em Sevagram, ou ir viver

no palácio do vice-rei.

 — Está bem — concordou ele, sem indicar sua escolha.

Gandhi estimulava a brincadeira e a piada. Certa tarde,

citou uma observação que fizera em Londres, a lorde Sankey.

 — Pensais que eu chegaria a esta verde idade avançada, se

não tomasse cuidado comigo mesmo? Esta é uma de minhas

faltas.

 — Pensei que fôsseis perfeito — gracejei.Ele riu; e os oito ou dez membros do ashram que

usualmente se sentavam em sua companhia, para as

conversações da tarde, também riram. (Gandhi me havia

perguntado se eu fazia objeções à presença deles.)

 — Não — assegurou o Mahatma. — Sou muito imperfeito.

Antes de vos retirardes, descobrireis centenas de falhas em mim;

e, se não as descobrirdes, eu vos ajudarei a achá-las.

Geralmente, antes de iniciar a entrevista, ele procurava para

mim o ponto mais fresco do chão. Depois, com um sorriso, dizia:

 — Agora, convido vossos sopros.

De uma feita, uma mulher muçulmana lhe apresentou um

pouco de lama empacotada, para pôr sobre o abdome; o Mahatma

estendeu o braço e disse:

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“Receberei vossos sopros deitados”.

Ao fim de uma hora, ele olhava para seu relógio de um dólar,

e anunciava:

“Vossa hora terminou”.Gandhi era minuciosamente pontual.

Uma vez, quando eu me retirava, ele disse:

“Ide e sentai numa banheira”.

Fiquei a meditar sobre se isso seria o equivalente indiano ao

“vá tomar banho”. Contudo, ao cruzar, sob o sol escaldante, os

cem metros que separavam a cabana dele da casa de hóspedes, o

calor secou o interior de minha cabeça, e eu decidi que sentar

numa banheira deveria ser uma excelente idéia. Com efeito, admiti

que poderia até aperfeiçoá-la. Depois de cada conversação, eu

redigia, à máquina, literalmente as memórias; e este era o ordálio

do dia, porque, dentro de cinco minutos, me via cansado e coberto

de suor. Estimulado pela sugestão de Gandhi, no sentido de ir

sentar-me numa banheira, preparei uma pequena caixa demadeira e uma das tinas de lavar roupa, cheia de água; pus uma

toalha turca, dobrada, sobre a caixa; a seguir, dispus uma caixa

ainda mais alta, do lado de fora da tina; e coloquei minha

máquina de escrever sobre ela. Após completar esses arranjos,

sentei-me, despido, na caixa posta dentro da tina, e datilografei

minhas notas. A intervalos de uns poucos minutos, assim que eu

começava a transpirar, afundava um caneco de bronze na água da

tina e derramava o líquido sobre meu pescoço, minhas costas,

minhas pernas. Esse método me permitia datilografar uma hora

inteira, sem me sentir exausto. A inovação foi motivo de

divertimento no ashram, e provocou comentários alegres. Aquela

não era uma comunidade insossa. Gandhi cuidava disso.

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As noites eram refrescantes e repousantes. Cada qual

dormia do lado de fora de sua choupana, numa rede de cordas,

coberta por uma manta e sustentada por quatro suportes de

madeira, de uns trinta centímetros de altura. Dormi melhor ali do

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que o havia feito durante anos. As noites eram tranqüilas; o céu,

cheio de estrelas. Kurshed advertiu-me para que não pusesse os

pés no chão, no escuro, sem sapatos: havia escorpiões por ali.

Pelas manhãs, às cinco horas, quando me dirigia, a pé, paraa choupana de Gandhi, encontrava-o sentado em sua cama, ao ar

livre, tomando o desjejum de polpa de manga com uma colher.

 Terminada a parca refeição, ele recebia de Kasturbai uma toalha e

uma garrafa de água, longa, retangular, de gargalo estreito,

arrolhada, e lavava suas mãos, antes de começar uma caminhada

pelos campos vizinhos. De uma feita, uma gota do suco de manga

amarelo caiu no lençol com que ele envolvia o corpo; ele esfregou a

mancha, ativamente, durante vários minutos. Nas caminhadas da

manhã, bem como da tarde, ele pousava os braços nos ombros de

dois rapazes, ou de duas moças — todos disputavam esse prazer

 —, mas o Mahatma caminhava para a frente, com grandes

passadas, e falava durante meia hora, sem se cansar e sem perder

o fôlego.O corpo do Mahatma não revelava sua idade. Sua pele era

tenra e macia, e tinha um brilho saudável. Suas belas mãos não

tremiam, quando ele comia ou escrevia. Nunca se entregava a

lembranças. Lloyd George, nos seus setenta anos, começava a

responder a perguntas sobre ocorrências do dia, e logo passava a

falar de sua própria conduta numa campanha da Primeira Guerra

Mundial, ou de sua luta por algumas reformas sociais, no começo

do século. Gandhi concentrava-se nos planos para o futuro e nas

lutas do dia-a-dia. O vigor de seu pensamento social também

testemunhava sua juventude intelectual. Tornava-se cada vez

menos conservador, à medida que se tornava mais idoso. Nas

décadas de 20 e 30, por exemplo, advogara doações voluntárias de

terra dos donos de fazendas aos camponeses, mas, um decênio

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mais tarde, embora sem abandonar o método das doações

voluntárias, insistia em que se pusesse em prática uma orientação

mais drástica.

“Os camponeses deviam tomar as terras”, respondeu-mequando lhe perguntei a respeito de seu programa agrário para

uma Índia livre. Perguntei se os donos de fazendas seriam

compensados.

“Não”, disse ele, “isso seria impossível, do ponto de vista

fiscal.”

A esclerose não lhe modificara a capacidade de mudar, de

aprender, de agir.

Seu rosto, naturalmente, acusava sua idade. Esse rosto

constituía uma pequena parte de uma cabeça de abóbada alta, de

que as grandes orelhas se desprendiam quase em ângulo reto. O

lábio superior, coberto por um restolho de bigode branco e preto,

era tão estreito, que quase se ligava ao nariz, grosso, de ponta

caída. A expressão de seu semblante provinha dos olhos serenos,tranqüilos, suaves; o lábio inferior, muito delicado, indicava

autocontrole, resistência e sofrimento; o sorriso, sempre presente,

punha à mostra as gengivas nuas. (Gandhi usava sua dentadura

somente para comer; depois da refeição, tirava-a e lavava-a em

público.) Os traços faciais, com exceção dos olhos, eram feios; em

repouso, seu rosto seria feio, mas raramente se apresentava em

repouso. Estivesse ele falando, ouvindo ou pensando, seu rosto

era um espelho tremeluzente, com muitas facetas a refletir o que

lhe ia por dentro. O Mahatma não tentava formular suas idéias em

forma acabada; pensava falando alto, de modo que a gente como

que podia ouvir-lhe o cérebro a funcionar. Não se ouviam apenas

palavras; ouviam-se os pensamentos a nascer. Não se recebia um

produto polido de propaganda, como acontece com muitos

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políticos; assistia-se a um processo mental, que era criador para

ele e para a gente.

Lloyd George tinha a aparência do grande homem. Churchill

e Franklin D. Roosevelt apresentavam estatura e distinção. Dava-se o contrário com Gandhi. A proximidade íntima, sem

formalidades, em conversações, em caminhadas, às refeições, com

esse homem quatro quintos despido, era o que de menos indicado

podia haver para conduzir alguém à admiração ou à veneração;

contudo, por essa mesma razão, dava origem ao milagre de sua

personalidade, produzindo um impacto poderoso. Todos os

recursos da capacidade de impressionar de um grande homem —

como o palácio, ou a mansão histórica, os guardas, a espera na

ante-câmara, a porta fechada na iminência de abrir-se, o poder da

autoridade — faltavam nele. A simplicidade terra-a-terra de

Gandhi, despida de qualquer traço de poder, aparente ou real,

acentuava-lhe a autoridade. Esse ditador onipotente é o que

apresentava menos probabilidade de ter qualquer autoridade.Gandhi não tinha força para compelir, nem para punir, nem para

recompensar. Seu poder era nulo; sua autoridade, enorme.

Provinha do amor. Convivendo com ele, podia-se perceber o motivo

pelo qual era amado: ele amava. Não somente em incidentes

isolados, mas também na sucessão dos dias, de manhã, ao meio-

dia, à noite, através de decênios, em cada ato, em cada palavra,

manifestara o seu amor para com os indivíduos e para com a

humanidade. Nem se lhe podia deixar de notar, em cada sentença,

em cada atitude, sua lealdade de toda a vida para com uns poucos

princípios simples, amplamente propalados: a exaltação dos meios

acima dos fins; a não-violência; a primazia da verdade; as

qualidades curativas da confiança; a consideração para com as

dúvidas, as perdas de tempo, o meio circunstante e os conflitos

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interiores dos outros. Encarava os problemas de todos os dias à

luz de valores eternos e universais. Indo ao coração ético de um

problema prático, e deixando de lado considerações superficiais,

Gandhi encontrava o núcleo permanente que existia no efêmero.Isso permitia que ele estilhaçasse o átomo social e encontrasse

uma nova fonte de energia nas massas. Alguns escreveram ou

discursaram como ele, ou ainda melhor. A grandeza de Gandhi

estava em fazer o que os outros deveriam fazer, mas não faziam.

Ficava-se maravilhado, a contemplar o milagre, pois, na

aparência, aquela era uma maneira de viver, conseguida sem a

manifestação de qualquer esforço, em vez de constituir a execução

de um programa consciente.

“Talvez não obtenha êxito”, escreveu Tagore a respeito de

Gandhi. “Talvez falhe, como falhou Buda e como Cristo falhou, na

tarefa de desviar os homens de suas iniqüidades, mas ele será

sempre recordado como alguém que fez de toda a própria vida

uma lição para os tempos vindouros.”Gandhi subira acima de seus atos, ganhara considerável

independência, em relação a seu êxito ou a seu fracasso. Ele é que

era importante, não seus atos, nem suas palavras. Talvez nisso

estivesse a razão pela qual os homens podiam divergir de seus

pontos de vista, sem repelir sua pessoa, e aceitar suas diretrizes,

contrárias ao melhor juízo dos outros, sem qualquer sentimento

de humilhação.

Uma tarde, fui à choupana de Mahadev Desai, e contemplei-

o a fiar. Contei-lhe que estivera ouvindo Gandhi e estudando

minhas anotações, e que ficara a meditar sobre aquilo que poderia

ser sua força de agarra na alma do povo; eu chegara à conclusão

preliminar de que era sua paixão que constituía essa força.

 — É certo — concordou ele.

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 — Qual é a raiz de sua paixão? — perguntei.

 — Esta paixão é a sublimação de todas as paixões de que a

carne é herdeira — explicou.

 — Sexo? — Sexo, raiva e ambições pessoais. Gandhi encontra-se sob

seu próprio completo controle. Isso dá origem a uma tremenda

energia e a uma tremenda paixão.

Na semana que passei no ashram, essa energia e essa paixão

estavam levando o Mahatma a outra campanha de desobediência

civil. Sir Stafford Cripps fora à Índia, fracassara e de lá se retirara;

Churchill fazia oposição à independência indiana. Sempre

ansioso, como Krishna, por entrar em ação, o Mahatma, em junho

de 1942, estava cogitando da realização de um movimento contra

o governo, sob o lema “Saia da Índia”. A ação era seu antídoto

para a frustração.

Gandhi sustentava que a posição das democracias, na

guerra, seria moralmente indefensável, se a Índia não conseguissesua independência.

“Vosso presidente”, disse-me ele, certa tarde, “fala a respeito

das Quatro Liberdades. Inclui-se, nelas, a liberdade de ser livre?”

Roosevelt havia feito pressão, com efeito, para que Churchill

cedesse, e permitisse que Cripps conquistasse os indianos para o

esforço de guerra, mas o primeiro-ministro do rei se manteve

irredutível.

 Jawaharlal Nehru e Maulana Azad, presidente do Congresso,

se opuseram, não obstante, à campanha de desobediência civil

proposta por Gandhi. Nehru passou três dias discutindo com

Gandhi, no ashram, enquanto eu me encontrava lá.

“Ele combateu minha posição com uma paixão que não

tenho palavras para descrever”, Gandhi informou, afetuosamente,

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pelas colunas do Harijan. Os contatos pessoais com Nehru,

explicou o Mahatma, “fazem-no sentir muito mais a miséria da

iminente ruína da China e da Rússia... Nessa miséria, ele

procurava esquecer sua antiga querela contra o imperialismo[britânico]. Mas, antes de deixar o ashram, a lógica dos fatos”,

como Gandhi dizia, “o assoberbou”. É muito mais provável que

tenha sido Gandhi a sobrepujá-lo. Em minha presença, Gandhi

disse a Nehru que lançaria a campanha da desobediência civil

com ou sem a sua adesão.

Algo de profundo, na índole de Nehru, se rebela contra a

rendição. A obediência automática, que a maior parte dos indianos

davam a Gandhi, era recusada a Jawaharlal. Nehru adquiriu um

sentimento de independência dizendo não ao mestre indiscutido; a

resistência lhe proporcionava a ilusão de força. As explosões

públicas de seu humor e as trovoadas de sua oratória de desafio

eram, igualmente, reforços psicológicos para uma pessoa que

disso precisava. A esse respeito, Nehru se fazia estranhamenteparecido com a Índia, e dessemelhante de Gandhi. Nehru brincava

de pujança. Uma personalidade fraca e uma fraca nação faziam os

movimentos e os rumores de um forte. O forte Gandhi emprestava

pujança ao fraco.

Contudo, tendo sido sobrepujado pela premência de Gandhi,

Nehru se transformou em advogado ainda mais impertérrito da

desobediência civil do que o próprio Gandhi. O Mahatma era

maleável.

“Afigura-se-me”, argumentei, no decorrer de uma entrevista

vespertina, “que os britânicos não podem, provavelmente, deixar a

Índia de uma só vez. Isso significaria entregar a Índia de presente

ao Japão. A Inglaterra nunca concordaria, nem os Estados Unidos

aprovariam. Se pedirdes que os britânicos se retirem com armas e

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bagagens, estareis pedindo simplesmente o impossível; estareis

ladrando contra uma árvore. Não quereis dizer que eles devem

também retirar seus exércitos, ou é isso o que pretendeis?”

Durante pelo menos dois minutos, um pesado silêncioencheu a choupana. Gandhi ouvira-me; e agora estava ouvindo a

si mesmo.

“Tendes razão”, disse, por fim. “Não. A Inglaterra, os Estados

Unidos e outros países podem conservar seus exércitos aqui e

fazer uso da Índia como base de operações militares.”

Mais tarde, no mesmo dia, Mashruwala me disse que

discordava energicamente desse ponto de vista. Mas Gandhi

estava pronto a transigir; e escreveu ao presidente Roosevelt que,

“se os Aliados julgam necessário, podem conservar suas tropas, às

suas próprias expensas, na Índia...”

“Dizei a vosso presidente que desejo ser dissuadido”, disse-

me ele.

Estava preparado para cancelar seus planos a respeito dadesobediência civil e desejava discutir o assunto com o vice-rei.

Antes de eu deixar o ashram, Desai me pediu que sugerisse ao

vice-rei um encontro com Gandhi. Eu não tinha liberdade para

revelar isso a Nehru, mas quando, em viagem para Deli, o

encontrei em Bombaim, na residência de sua irmã, a sra. Krishna

Hutheesing, perguntei-lhe se pensava que Gandhi deveria avistar-

se com o vice-rei.

“Não. Para quê?”, exclamou Nehru.

Estava, de novo, opondo resistência à rendição, ao passo que

Gandhi ainda tinha esperança de que ele e Linlithgow pudessem

encontrar o caminho para um entendimento. Intransigente quanto

a princípios, Gandhi sempre transigia quanto a tempo e ritmo.

Lorde Linlithgow se recusou a receber Gandhi.

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25

Frustração e irritação

Em maio, junho e julho de 1942, sentia-se uma sufocante

falta de ar na Índia. Os agressores japoneses se encontravam nas

redondezas, na Birmânia. A Inglaterra parecia excessivamente

fraca, não podendo proteger a Índia contra uma invasão. Os

políticos indianos de voz ativa mostravam-se exasperados por sua

extrema impotência. Não podiam defender sua pátria nem

explorar a emergência britânica para libertá-la.

Nessa pesada atmosfera, a Comissão do Congresso Pan-

indiano se reuniu em Bombaim, em 7 de agosto, a fim de discutir

a campanha de desobediência civil proposta por Gandhi.

Conciliatório, a despeito de reveses, o Mahatma disse a A. T.Steele, do Herald Tribune, de Nova York, que “se alguém pudesse

convencer-me de que, em meio à guerra, o governo da Grã-

Bretanha não pode declarar livre a Índia, sem comprometer seu

esforço de guerra, eu gostaria de ouvir sua argumentação”.

Steele perguntou se ele desistiria da desobediência civil, se

fosse convencido disso.

“Naturalmente”, respondeu Gandhi. “Minha queixa é de que

essa boa gente fala a meu respeito, jura por mim, mas nunca

condescende em falar comigo.”

Logo depois da meia-noite de 8 de agosto, o Mahatma

discursou perante os delegados. Uma resolução, aprovando a

desobediência civil, havia sido aprovada. Mas Gandhi advertiu os

delegados dizendo que “a luta verdadeira não começa neste

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preciso momento”. Como em ocasiões semelhantes, em anos

anteriores, ele recordou:

“Vós apenas haveis colocado alguns poderes nas minhas

mãos”.O Mahatma procuraria evitar aborrecimentos.

“Meu primeiro ato será o de esperar pela manifestação de

Sua Excelência, o vice-rei...”

Duas ou três semanas se passariam. Que é que eles fariam,

nesse ínterim?

“Há a roca... Mas há algo mais que tendes de fazer... Cada

um de vós deveria, a partir deste momento, considerar-se a si

mesmo um homem livre ou uma mulher livre; devíeis até mesmo

agir como se fôsseis livres, e não mais como criaturas sujeitas ao

tacão do imperialismo.”

Isso inverteu o conceito materialístico de que as condições é

que determinam a psicologia. Não. Gandhi dizia que o homem

pode refazer sua psicologia, e, por meio dela, sua condição. “O quepensais passais a ser”, afirmou ele, de uma feita.

Obviamente, Gandhi, conhecendo o humor do país, percebeu

a necessidade de ação. Obviamente, receava a ação violenta, e,

para evitá-la, planejou outra tentativa de entendimento com o

vice-rei. Obviamente, o vice-rei tinha instruções para não

parlamentar com o rebelde seminu. Antes do despontar do sol, do

dia 9, Gandhi, Nehru e algumas dezenas de outros membros do

Congresso, de primeira plana, foram levados para a prisão.

Gandhi, com a sra. Naidu, Mahadev Desai, Miss Slade e Pyarelal,

foram alojados no palácio de Aga Khan, em Yeravda, perto de

Poona. No dia seguinte, Kasturbai e o dr. Sushila Nayyar foram

levados para lá.

No momento em que as portas da prisão se fecharam atrás

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de Gandhi, as comportas da violência se abriram. Postos policiais

e edifícios públicos foram incendiados; trilhos de estradas de ferro,

arrancados; linhas telegráficas, destruídas; funcionários

britânicos, assaltados e mortos. Um poderoso movimentosubterrâneo veio à luz, liderado em muitos casos pelos socialistas,

que constituíam, então, um segmento do Congresso. Em algumas

áreas, a ordem de Sua Majestade não vigorava mais; governos

indianos livres foram constituídos em grande número de cidades e

distritos.

As declarações britânicas lançaram à porta de Gandhi a

culpa pelas perturbações da ordem. Numa carta escrita na prisão

e dirigida ao vice-rei, Gandhi repeliu a acusação, e por sua vez

acusou o governo de “distorções e de inverdades”.

A resposta do vice-rei discordava disso.

O fato de ele, o apóstolo da não-violência, ser classificado

como autor de uma violência amplamente difusa e sangüinária

irritava Gandhi, ao que parece, a ponto de o pôr fora de suacostumeira equanimidade de julgamento. Na véspera do ano-novo

de 1942, tornou a escrever ao vice-rei. “Esta é uma carta muito

pessoal... Não devo deixar que o velho ano expire sem desabafar

aquilo que rouqueja em meu peito contra vós. Pensei que

fôssemos amigos... Por que motivo, antes de adotar medidas

drásticas, não me chamastes?... Sou perfeitamente capaz de ver-

me, a mim mesmo, como os outros me vêem.” O governo “culpara

homens inocentes”. Esse governo, não ele, o Mahatma, havia

provocado os incêndios e os assassinatos, mas, visto que o

governo insistia em acusá-lo falsamente, ele jejuaria; “crucificaria

a carne através do jejum”.

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Uma carta, pela volta do correio, da parte do vice-rei,

estigmatizou o projetado jejum, considerando-o “chantagem

política”. Não obstante, dois dias antes do fixado para o começo do

 jejum, o governo ofereceu liberdade a Gandhi e a seuscompanheiros. O Mahatma recusou. Não estava na iminência de

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 jejuar para conseguir soltura; o jejum “é, de minha parte, um

apelo ao Altíssimo Tribunal, a fim de conseguir a justiça que não

pude obter de vós”. Era inocente, e desejava purificar-se do

reproche.O jejum de três semanas quase o matou. No décimo terceiro

dia, Kasturbai ajoelhou-se diante de uma planta sagrada e rezou;

havia-o dado já por perdido. O pulso do Mahatma era fraco; e sua

pele, fria. Ele sobreviveu.

Gandhi não encontrou repouso. Andou à procura do

“bálsamo suavizante para minha dor”. Bombardeou a todos,

funcionários ou não, na Índia e na Inglaterra, com a evidência de

que não lhe cabia responsabilidade alguma pelas destruições e

pelas mortes produzidas pelo movimento subterrâneo e pela sua

repressão. Se ele fosse um homem livre, poderia ter evitado a

violência, poderia ter jejuado contra seus colegas do Congresso

envolvidos nas desordens. Nenhuma de suas cartas foi publicada

na época. Gandhi não teve acesso à imprensa. Não pôde, de umlado, rebater publicamente os falsos argumentos apresentados

pelo governo, nem, de outro lado, conter a violência de seus

amigos.

Um ressentimento tempestuoso imperou dentro do seu peito.

Sofreu tormentos. Um iogue perfeito teria permanecido

indiferente, mas o Mahatma não se encontrava completamente

desprendido.

Para completar a tragédia, Mahadev Desai, amigo,

conselheiro e cronista de Gandhi, a quem dedicava mais estima do

que a um filho, morreu, a seu lado, na prisão, de enfarte do

miocárdio.

E, no dia 22 de fevereiro de 1944, Kasturbai, com a cabeça

pousada no regaço de seu marido, exalou seu último suspiro. O

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Mahatma ficou desconsolado. Também nisso ele não conseguira

atingir o desprendimento. Pranteou a morta. Daí por diante, no

dia 22 de cada mês, até sua morte, Gandhi levou a efeito um

serviço religioso por intenção de Kasturbai; nesse serviço, aspreces eram cantadas, recitando-se, ademais, o texto inteiro do

Gita. 

Seis semanas após o passamento de sua esposa, Gandhi

sofreu um ataque de malária terçã benigna, que o mergulhou em

delírio. Uma agitação, em prol de sua soltura, varreu a Índia. A

morte era esperada de um momento para outro. O governo

colocou uma guarda pesadamente armada ao redor da prisão. Às

oito horas da manhã do dia 6 de maio de 1944, Gandhi e seus

companheiros foram postos em liberdade. Aquela foi a última vez

que esteve preso. Ao todo, o Mahatma passou dois mil e oitenta e

nove dias em cárceres indianos (quase seis anos); e duzentos e

quarenta e nove dias em prisões da África do Sul.

Gandhi recuperou-se numa praia, perto de Bombaim, naagradável residência de um amigo. A dona da casa sugeriu-lhe que

fosse ao cinema; ele nunca havia assistido a uma fita, fosse ela

muda ou sonora. Gandhi concordou, com relutância. O filme

Missão em Moscou, em exibição num subúrbio adjacente, foi

levado àquela casa e ali exibido.

Qual foi a apreciação do Mahatma?

“Não gostei do filme”, declarou ele.

Não lhe agradara a dança no salão de baile, com mulheres

escassamente vestidas.

O Mahatma passou várias semanas repousando e

recuperando suas forças.

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26

 Jinnah versus Gandhi

 Tendo regressado à arena política, em julho de 1944, Gandhi

procurou obter uma audiência com o novo vice-rei, lorde Wavell,

cavalheiro, general e poeta. Wavell recusou-se a vê-lo. Incitado por

obra de Rajagopalachari — que, sob alguns aspectos, se fizera

mais gandhiano do que o próprio Gandhi, na qualidade de

conciliador —, o Mahatma então escreveu a Mohammed Ali

 Jinnah, presidente da Liga Muçulmana, sugerindo a conveniência

de conversações. Um entendimento entre o Congresso e a Liga —

pensava Gandhi — deveria impelir os ingleses da Índia a ceder o

poder. “Irmão Jinnah”, foi a saudação dirigida por Gandhi ao

chefe muçulmano; e o Mahatma assinou “Vosso irmão, Gandhi”. A

resposta de Jinnah foi dirigida a “Caro senhor Gandhi”, e assinada

“M. A. Jinnah”. Na correspondência subseqüente, Gandhicomeçou suas cartas com a expressão “Caro Quaid-e-Azam”, ou

Grande Líder, título então recentemente adquirido. Jinnah

continuou a escrever “Caro senhor Gandhi”. Suas conversações

duraram dezessete dias e deram em nada.

Em maio de 1945, a Alemanha se rendeu. No dia 26 de julho

de 1945 o Partido Trabalhista, na Inglaterra, derrotou

decisivamente os conservadores, e Clement R. Attlee substituiu

Churchill, na qualidade de primeiro-ministro.

No dia 14 de agosto de 1945 o Japão rendeu-se. O novo

governo, constituído pelo Partido Trabalhista, anunciou,

imediatamente, que procurava “uma pronta realização do

autogoverno para a Índia”; a seguir, convocou Wavell para que

fosse a Whitehall. Ao regresso do vice-rei a Deli, ele prometeu a

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restauração da governança provincial pelos indianos, bem como a

reunião de uma assembléia destinada a redigir uma Constituição

federal. O mesmo vice-rei formaria um Conselho Executivo do

Congresso Muçulmano. Era uma espécie de gabinete ministerial,sob supervisão britânica, na capital federal. Jinnah, contudo, só

aceitaria a divisão da Índia. “Nós poderíamos liquidar o problema

da Índia em dez minutos”, declarou ele, em Bombaim, em

dezembro de 1945, “se o sr. Gandhi dissesse: ‘Concordo em que

deva existir um Paquistão; concordo em que um quarto da Índia,

composto de seis províncias — que são a de Sind, do Beluchistão,

do Penjab, da província da Fronteira do Noroeste, de Bengala e do

Assam —, com os seus limites atuais, passem a constituir o

Estado do Paquistão’.”

O sr. Gandhi, entretanto, nunca diria isso. Considerava a

“vivissecção” da Índia uma “blasfêmia”. Em qualquer caso, a

bissecção da Índia, nos termos propostos por Jinnah, era

impossível e injusta. Jinnah queria constituir o Paquistão, paraque os hindus não predominassem sobre os muçulmanos. Mas o

Assam, que ele pedia para o Paquistão, possuía apenas 3 442 479

muçulmanos, contra 6 762 254 não-muçulmanos. Na vasta

província do Penjab, os muçulmanos montavam a 16 217 242; os

não-muçulmanos, a 12 201 577. Em Bengala, com cerca de

sessenta milhões de habitantes, os muçulmanos representavam

cinqüenta e dois por cento — ou pouco mais do que a metade.

Somente nessas três províncias, se elas fossem incluídas no

Paquistão, cinqüenta milhões de muçulmanos predominariam

sobre quarenta e sete milhões de hindus e de siques. O Paquistão

nasceria com um pesado problema de minoria ao redor de seu

 jovem pescoço. Ao mesmo tempo, o Paquistão proposto por Jinnah

deixaria vinte milhões de muçulmanos, ou um quinto dos

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muçulmanos da Índia, sob governança hindu. Ainda assim,

 Jinnah se mostrava surdo à lógica e cego à aritmética. Uma

resolução irracional, mesmo quando entra em conflito com o

interesse próprio, faz, não obstante, e com freqüência, a história.Mohammed Ali Jinnah era uma figura notável. Com mais de

um metro e oitenta centímetros de altura, pesava uns sessenta

quilos; e era um homem extremamente esguio. Seus cabelos,

bastos, longos, grisalhos, penteados para trás, cobrindo-lhe a

cabeça bem-modelada. O rosto bem-barbeado era fino; o nariz,

longo e aquilino. Suas têmporas e suas faces constituíam

depressões profundas que faziam com que os zigomas saltassem,

como elevados planaltos horizontais. Quando não estava falando,

esticava para fora o queixo, apertava os lábios e unia as

sobrancelhas, tudo formando uma expressão de inviolável

seriedade. Jinnah quase nunca ria. Usava, com freqüência,

roupas européias; contudo, em cerimônias públicas e privadas

também envergava roupas muçulmanas: uma túnica cor de palhaque lhe chegava até os joelhos, calças indianas, apertadas, que se

agarravam a suas pernas ossudas, sapatos de couro, pretos — e

um monóculo que pendia de um cordão negro. Era

“indubitavelmente”, escreveu George E. Jones, em The New York

Times, de 5 de maio de 1946, “um dos homens mais bem-vestidos

do império britânico”. O sr. Jones, que entrevistou Jinnah várias

vezes, descreveu o líder muçulmano, em seu livro Tumult in India,

como “um soberbo manipulador político, um Maquiavel, na

acepção amoral da designação... Seus defeitos pessoais redundam

numa reserva por vezes hostil, num grande convencimento e

numa visão estreita... Trata-se de homem extremamente

desconfiado, que sente que sofreu injustiça muitas vezes na vida.

Sua reprimida intensidade beira o psicopática. Retirado e isolado,

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 Jinnah é arrogante, a ponto de ser descortês...”

 Jinnah não era muçulmano devoto. Infringia o código

islâmico bebendo álcool, comendo carne de porco e indo pouco à

mesquita. Sabia mal o idioma urdu, e não falava árabe. Desligou-se de sua comunidade religiosa por volta de seus quarenta anos —

a fim de casar-se com uma moça parse, de dezoito anos de idade.

Não obstante, o não-religioso Jinnah queria o estabelecimento de

dois Estados religiosos, ao passo que o religioso Gandhi só se

daria por satisfeito com um Estado secular e unido.

 Jinnah, primeiro filho de um rico mercador de peles, couros

e goma-árabica, era muçulmano khoja. Os khojas eram

muçulmanos recém-convertidos. Muitos khojas conservam o

sistema conjunto de famílias e usam nomes hindus. “Jinnah” é

um nome hindu. Nos séculos XVIII e XIX, os khojas tentaram

regressar ao hinduísmo, mas foram repetidamente repelidos. Isso

pode ter sido um fator inconsciente no ódio manifestado por

 Jinnah contra os hindus.Era, igualmente, uma questão pessoal. “Encontro-me neste

movimento há trinta e cinco anos”, disse-me ele, na primeira das

duas entrevistas que me concedeu, em sua opulenta villa de

Bombaim, em junho de 1942. “Nehru trabalhava sob as minhas

ordens, na Sociedade Pró-Autonomia. Gandhi trabalhou também

sob minhas ordens. Eu desenvolvia grande atividade no Partido do

Congresso... Meu objetivo era a união hindu-muçulmana... E tudo

se manteve assim, até 1920, quando Gandhi foi conduzido à

ribalta. As relações hindu-muçulmanas começaram a piorar... Tive

a impressão clara de que a unidade estava irremediavelmente

perdida — de que Gandhi não a desejava. Resolvi ficar na

Inglaterra. Nem sequer fui para a Índia, a fim de vender as

propriedades que tinha lá; vendi-as através de um corretor.

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Permaneci na Inglaterra até 1935. Encetei a carreira de advogado,

perante o Conselho Privado, e, contrariamente às minhas

expectativas, obtive grande êxito.”

Num artigo sobre Jinnah, no Economist, de Londres, de 17de setembro de 1949, um articulista que, sem dúvida alguma,

conhecia seu trabalho, assinalou que, enquanto Jinnah exercia

sua profissão de advogado em Londres, alguém “lhe repetiu que

Nehru — a quem Jinnah desprezava e odiava — dissera, em rodas

íntimas, que ‘Jinnah estava liquidado’. Enfurecido, Jinnah

arrumou imediatamente as malas e embarcou de regresso à Índia,

somente para ‘mostrar a Nehru’... Ao nariz de Cleópatra, como

traço marcante na história, talvez se deva acrescentar o orgulho

pessoal de Jinnah”.

O amor-próprio ferido é um animal feroz. O ciúme,

despertado por um mesquinho ponto de vista de um rival que está

começando a subir a escada do sucesso, pode transformar-se em

poderoso estímulo no sentido da conquista do poder, com opropósito de se fazer mal a esse rival e a outros. Razões desse

calibre fizeram história. Mas a história deve proporcionar auxílio,

oferecendo, ao enciumado, uma oportunidade; deve ajustar as

próprias mãos, por baixo dos pés dele, para lhe imprimir impulso.

Os acontecimentos históricos integraram, com efeito, um estribo,

para ajudar Jinnah a subir à sela. Os muçulmanos das classes

superiores e médias da Índia tinham, na verdade, medo da

governança hindu; e, visto que o trabalho de Gandhi, nos decênios

de 20 e 30, tornava inevitável a independência do país, num

futuro previsível, esses muçulmanos se organizaram para lhe

reduzir o alcance. Uma Índia livre, ao que eles acreditavam, seria

uma Índia dominada pelos hindus. “Hinduraj” — é como

designavam o caso. E é verdade que cem milhões de muçulmanos

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passariam a ser sempre uma minoria, no seio de trezentos milhões

de não-muçulmanos (hindus, siques, parses, cristãos e outros), se

os sentimentos religiosos tivessem de dar forma à política. Os

muçulmanos ricos, juntamente com a classe média maometana,que então começava a emergir, compondo-se de intelectuais e de

comerciantes, presumiam que, numa Índia livre, onde houvesse

maioria de hindus, estes conseguiriam a maior parte dos postos

governamentais e gozariam de outras vantagens econômicas.

Mostravam-se, pois, relutantes e não queriam assistir à saída dos

britânicos que os haviam ajudado na consecução de cargos

políticos e de adequada representação parlamentar.

O projetado Paquistão, entretanto, daria aos muçulmanos

toda a força política, todos os cargos governamentais e todos os

controles sobre a indústria e o comércio. Ainda mais importante

era a sociedade rural. Com exceção de Jinnah, os fundadores e os

chefes da Liga Muçulmana eram donos de terras que temiam que

uma Índia chefiada por Nehru lhes subdividisse as propriedadespara dá-las aos cultivadores. O Partido do Congresso, da província

da Fronteira do Noroeste, inteiramente muçulmana, havia, com

efeito, conquistado poder político, organizando os camponeses.

Mas um Paquistão teocrático — como esperavam as classes

superiores — constituiria um veneno para o radicalismo social; o

camponês, presumivelmente, seria persuadido a colocar a pátria

acima da propriedade rural.

O Paquistão era, assim, a resposta às preces dos

muçulmanos ricos e aos sonhos da classe média maometana. Um

Estado religioso lhes ofereceria segurança social, bem como

monopólio político e econômico.

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Nenhuma pessoa, arrastada pela desalmada ambição de

ganho dos donos de terras, ou pelas aspirações a funcionário dos

instruídos desempregados, ou pelo obscurantismo dos mullahs

(pregadores), poderia fundir todos esses impulsos numa cruzada

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nacional. Isso exigia a atuação de alguém que se encontrasse

acima de tais premências, assim como Hitler, pessoalmente, se

havia encontrado acima das finalidades financeiras e negocistas

da camada superior da burguesia alemã e dos barões rurais daPrússia Oriental. Jinnah era esse homem. Incorruptível, rico e

desinteressado de benefícios econômicos para si próprio, foi o seu

ódio furioso contra Gandhi e Nehru — que haviam trabalhado “sob

suas ordens”, e que o haviam empurrado para fora da política —,

 juntamente com seu convencimento e sua “reprimida intensidade”

que beirava o psicopático, que o fizera voltar à política, estando ele

 já na casa dos sessenta, com uma tenacidade que não conhecia

qualquer princípio, exceto o do êxito a todo o custo. Entrevistar

 Jinnah era como ficar a ouvir um disco quebrado; não havia

discussões, nem assunto; apenas infinitas repetições de frases

feitas tais como: Os hindus e os muçulmanos são nações

separadas; Gandhi quer o Hinduraj; O Paquistão deve ser criado.

Esse fanatismo unilateral, essa paixão irracional, esse ódioilimitado — tudo reunido numa pessoa não-suspeita de motivos

egoísticos — exerciam um fascínio enorme sobre o espírito de

pessoas cuja vida dura e cujas frustrações as tornavam presa fácil

de objetivos simples, carregados de emoção: Os muçulmanos

devem possuir seu próprio país; Os muçulmanos governarão os

hindus e os siques, em vez de serem governados; Que se retirem

os hindus mercadores, industriais, lavradores e funcionários

públicos. As vítimas de Jinnah ignoravam, exatamente como ele, a

matemática das minorias e as considerações de ordem prática.

 Jinnah dava-lhes um estandarte intoxicante: Paquistão. Ele

pensava exclusivamente em conseguir o Paquistão; não pensava

nunca nos problemas do Paquistão. Com efeito, durante os

primeiros poucos anos depois de haver esboçado a idéia, recusou-

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se até a indicar os próprios limites territoriais do Paquistão.

Quanto menos concreto o plano, tanto mais fascinante ele se fazia

e tanto menos sensível se tornava à crítica. A situação era um

paraíso de fanático. Jinnah se havia transformado no maior problema de

Gandhi.

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Parte terceira

Vitória e tragédia

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27

Procurando o divino no homem

Gandhi resolvera que desejava viver até a idade de cento e

vinte e cinco anos; naturalmente não como “um cadáver animado,

como um fardo para os parentes e a sociedade”, e sim fisicamente,em forma e ativo. Toda pessoa pode atingir essa idade madura —

afirmava ele — por meio da cura natural: nada de remédios;

apenas a dieta correta, as aplicações de compressas de lama, os

banhos, o sono regular, as lavagens internas quando necessárias,

nada de álcool, nada de estimulantes — desde que possuísse

também a verdadeira chave da longevidade: “o desprendimento do

espírito”. O “néctar” que sustenta a vida é a prestação de serviço, é

a renúncia aos proveitos. Isso não deixa “espaço para os

aborrecimentos nem para a impaciência”. O desapego de si mesmo

conserva a vida, ao passo que o amor do “eu” a mata. De certo

modo, a ânsia de Gandhi no sentido de viver durante mais meio

século representava um convencimento, ao mesmo tempo que um

reflexo de sua fé e de seu realismo. O trabalho que restavadesenvolver poderia ser feito, mas não no tempo normal de

duração do homem mortal.

Quando visitei o Mahatma Gandhi de novo, em fins de junho

de 1946, ele se encontrava em excelente forma. Assim que cheguei

a Nova Deli, dirigi-me de táxi para o cortiço de intocáveis em que

ele vivia. A reunião devocional da noite se encontrava em curso;

postei-me ao pé dos três degraus de madeira por onde Gandhi

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desceria da plataforma de preces.

 — Ah! Aí estais vós — disse ele. — Bem, não melhorei muito

minha aparência nestes últimos quatro anos.

 — Eu não ousaria divergir de vós — respondi.Ele atirou a cabeça para trás e riu. Tomando-me pelo braço,

caminhou na direção de sua choupana de pedra; perguntou-me

sobre minha saúde, minha viagem, minha família; depois, pediu-

me que fizesse a caminhada com ele, às cinco e meia da manhã

seguinte. Nas três semanas que se seguiram, permaneci em sua

companhia. Suas mãos tremiam levemente, quando ele comia; e

ele já não caminhava tão agilmente como o fazia quatro anos

antes; nem sua voz soava tão firme como anteriormente, mas o

Mahatma mostrava-se igualmente ligeiro em seus movimentos e

regular em seus exercícios. Depois do jantar, certo dia, na clínica

de cura natural do dr. Dinshah Mehta, em Poona, convidou-me a

caminhar a seu lado.

 — Por certo, não ireis caminhar sob a chuva — protesteilevemente.

 — Vinde comigo, ancião — disse ele, e estendeu-me um

braço. Sua tendência para a piada e o riso continuava intacta.

Não obstante, havia sombras a escurecer-lhe a vida.

 — Não convenci a Índia — disse-me. — Há violência a nosso

redor. Sou uma bala disparada.

Ainda pensava que poderia ganhar a batalha travada com

seu próprio povo, e desejava ter mais anos de saúde, para fazer

isso, mas seu otimismo, tão intrínseco como seus músculos e seus

ossos, agora se apresentava empanado por dúvidas.

De um determinado ponto de vista, entretanto — o mais

importante —, ele prosseguia sendo o mesmo: era o carma iogue, o

homem sempre ativo, sempre em movimento, sempre a caminho

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de sua meta. O mínimo que ele costumava fazer era o máximo

possível. Trabalhava incessantemente com as numerosas

organizações que havia instituído para o bem-estar dos harijans,

tratando de educação, de fiação, do reerguimento das aldeias;agora, estava fundando uma instituição de cura natural. Escrevia

vários artigos, todas as semanas, para seus jornais em língua

inglesa e em língua guzerate; respondia a dúzias de cartas, todos

os dias; e coletava dinheiro das massas, nos comícios, e também

de particulares, principalmente de amigos ricos. Foi a sua maneira

de tomar dinheiro dos ricos que deu margem a que a sra. Naidu

proferisse seu famoso ditério: “Custa um mundo de dinheiro

conservar Gandhi pobre”. Um milionário, dono de fábricas de

tecidos, G. D. Birla, sustentara o ashram, com seu hospital e sua

leiteria, a partir de 1935, ao preço de dezessete mil dólares norte-

americanos por ano.

Além de suas múltiplas atividades para o bem-estar social,

Gandhi também se dedicava ao Partido do Congresso. Embora ohomem forte do Congresso fosse Sardar Vallabhbhai Patel, e

embora seu estadista (concordasse Gandhi com sua política, ou

deixasse de fazê-lo, como freqüentemente acontecia) fosse C.

Rajagopalachari, mais conhecido por muitos pelo nome de Rajaji,

o certo é que Jawaharlal Nehru já havia sido designado para a

categoria de sucessor político do Mahatma. Nehru não era cem por

cento gandhiano e não se equiparava a Gandhi, mas, entre

Gandhi e Nehru, existia uma relação afetuosa de pai para filho

que nenhum desentendimento conseguia arrefecer.

“Alguém sugeriu que o pândit Jawaharlal e eu nos havíamos

afastado um do outro”, declarou o Mahatma, numa reunião

executiva do Congresso, em 15 de janeiro de 1942. “Será

necessário muito mais do que simples diferenças de opinião para

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nos separar. Tivemos divergências a partir do momento em que

passamos a trabalhar juntos; e, contudo, venho dizendo, há já

vários anos, e digo agora, que não Rajaji, e sim Jawaharlal será

meu sucessor. Diz ele que não compreende minha língua e que elefala uma língua que é estrangeira para mim. Isso pode ou não ser

verdade. Mas o idioma não é barreira que se oponha à união de

corações. E disso eu tenho certeza: quando eu me houver ido, ele

falará minha língua.”

“Nehru tem mentalidade de orador”, disse-me Gandhi, em

1946. Patel orgulhava-se de ser o homem que dizia sempre amém

a Gandhi. Nehru era o homem que ora dizia e ora não dizia amém

a Gandhi. Daí a esperança de Gandhi de que ele, um dia, falasse a

língua do coração do Mahatma.

À medida que a independência nacional da Índia se

aproximava, as atividades políticas se faziam mais intensas, e

Gandhi se mantinha em seu epicentro, Nehru, Patel, Rajaji e

outros líderes eram visitantes diários naquele cortiço deintocáveis. Todos iam para lá, a fim de conseguir a aprovação sem

a qual não se sentiam nunca seguros quanto à aceitação pública

de seus planos e de suas propostas; iam, igualmente, em busca da

orientação proporcionada por Gandhi. Todos precisavam do seu

“instinto”, ou da sua intuição — vocábulo vago que, não obstante,

se tornava o problema central nas negociações para a libertação

da Índia.

Uma impressionante Missão Ministerial Britânica chegou à

Índia, em 23 de março de 1946, a fim de estabelecer os termos da

libertação nacional do país; eram seus membros: lorde Pethick-

Lawrence, secretário de Estado para a Índia; Sir Stafford Cripps,

presidente da Câmara do Comércio; e Albert V. Alexander,

primeiro lorde do almirantado; essas personalidades solicitaram

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sugestões aos líderes indianos sobre os ajustes requeridos para se

substituir a governança britânica pela liberdade indiana. Mas os

líderes do Congresso e da Liga Muçulmana não conseguiam entrar

em acordo sobre aquilo que desejavam; e a missão ministerial, emvista disso, redigiu seu próprio plano, publicando-o em 16 de maio

de 1946. Depois de minucioso estudo, Gandhi declarou sua

“convicção... de que este é o melhor documento que o governo

britânico poderia ter apresentado, naquelas circunstâncias.... O

propósito único da Inglaterra”, afirmou ele, “é dar por finda a

governança britânica tão cedo quanto possível”.

A publicação da missão ministerial referira-se a uma

“volumosa evidência” de um “desejo quase universal, fora do

círculo dos que apóiam a Liga Muçulmana, de unidade da Índia”.

Por outro lado, revelara a existência de “uma muito genuína e

aguda ansiedade”, no seio dos muçulmanos, “com receio de se

encontrarem submetidos a uma perpétua governança de maioria

hindu”.A missão, em face de tais fatos, examinara “bem de perto, e

imparcialmente, a possibilidade da divisão da Índia”, mas votou

contra ela. As “duas metades do proposto Estado do Paquistão”,

afirmara a publicação da missão ministerial, “estão separadas por

uma distância de cerca de mil e cem quilômetros, e as

comunicações entre as duas, tanto em tempo de guerra, como em

tempo de paz, ficariam dependentes da boa vontade do

Hindustão”. Na metade ocidental do Paquistão — observara aquela

publicação — a minoria não-muçulmana constituiria trinta e sete

por cento de toda a população; e, na metade oriental, quarenta e

oito por cento; enquanto isso, vinte milhões de muçulmanos

ficariam fora do Paquistão, na qualidade de minoria, no

Hindustão. “Esses algarismos mostram”, afirmava o documento

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britânico, “que a instituição de um Estado soberano separado,

denominado Paquistão, de acordo com os planos admitidos pela

Liga Muçulmana, não resolveria o problema da minoria comunal”,

que era o propósito presumível da referida instituição.Os três ministros do gabinete britânico estudaram então a

conveniência da instituição de um Paquistão menor, fora das

áreas hindu e sique, mas “um tal Paquistão”, disseram eles, “é

considerado, pela Liga Muçulmana, de todo impraticável”.

(Entretanto, esse é o Paquistão que agora existe.) O Paquistão

menor — escreveram os ministros — exigiria a divisão do Assam,

de Bengala e do Penjab — medida que, em sua opinião, “seria

contrária aos desejos de grande percentagem da população das

mencionadas províncias. “Bengala e Penjab”, continuava o

documento, “têm cada qual seu idioma comum, afora uma longa

história própria e uma tradição. Ademais, qualquer divisão do

Penjab dividiria, necessariamente, os siques, deixando

substanciais grupos de população sique de ambos os lados dalinha de fronteira.”

Por essas razões, a missão ministerial recomendara ao

governo britânico que não dividisse a Índia. Recomendara-lhe, ao

invés: 1) uma Índia unida, abarcando a Índia britânica e os

Estados nativos dos marajás e dos rajás, com um governo federal

responsável pela defesa, pelas relações exteriores e pelas

comunicações; 2) um parlamento federal que não poderia aprovar

qualquer medida de maior alcance, de caráter racial ou religioso, a

menos que a seu favor votasse a maioria dos deputados hindus e

a maioria dos deputados muçulmanos; e 3) governos provinciais

com amplos poderes. O governo federal, controlado por

salvaguardas adequadas a favor das minorias, se limitaria a umas

poucas e inevitáveis tarefas, enquanto tudo o mais ficaria a cargo

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dos governos provinciais, que, nas zonas de maioria muçulmana,

se comporiam principalmente de maometanos.

A Assembléia Constituinte, convocada para redigir uma

Constituição baseada nesses princípios, reunir-se-ia dentro depouco tempo, em Nova Deli; e depois se subdividiria em três

seções. A seção A compreenderia delegados do grupo de províncias

da Índia central, de maioria hindu; a seção B, os delegados das

províncias da Índia ocidental, preponderantemente muçulmanas,

abarcando a província da Fronteira do Noroeste, a de Sind e a do

Penjab; a seção C, os delegados de Bengala e do Assam. O objetivo

dessas três assembléias constituintes secionais seria o de

organizar as constituições para as três subfederações em que a

Índia estava para ser dividida.

Foi de encontro a esse recife que o plano da Missão

Ministerial Britânica se espatifou. O instinto de Gandhi — como

ele o denominava — rebelou-se à idéia das assembléias

constituintes secionais. Era possível — argumentou o Mahatma —que a província da Fronteira do Noroeste, que sempre fora pró-

Congresso, preferisse fazer parte da seção A; por que razão deveria

ela ser forçada a pertencer à seção B? O Assam era, em sua maior

parte, hindu; por que motivo deveria juntar-se a Bengala, que

possuía pequena maioria muçulmana? Ele tomou em

consideração essa coação. Não — responderam os britânicos —,

essas áreas tomariam parte apenas nas assembléias que

redigissem Constituições; e se, mais tarde, não concordassem com

elas, poderiam retirar-se de seu grupo e unir-se a outro. Assim, o

Assam poderia juntar-se à seção A, hindu. Gandhi receou que,

depois de redigida a Constituição, seria muito tarde; que a

província do Assam, por exemplo, ou a província da Fronteira do

Noroeste ficassem vinculadas entre si, por qualquer liame legal, e

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não pudessem mais retirar-se. O fato é que Gandhi, pelo menos

dessa vez em sua vida, e num momento dos mais críticos, se

tornou vítima de suas próprias suspeitas. Havia dado aos

britânicos um certificado de boa vontade. Por outro lado,alimentava dúvidas: não seriam aquelas seções e aqueles grupos

uma cilada, destinada a fazer deslizar, por ali, pela porta traseira,

um quarto do Paquistão, ou uma metade do Paquistão?

A situação não se tornou mais desafogada quando Jinnah,

depois de denunciar a missão ministerial, por fazer uso de

“argumentos que eram lugares-comuns, e já haviam sido

inutilizados”, contra o Paquistão, ainda assim, no dia 4 de junho

aceitou o plano dessa missão. Isso pode ter sido uma política hábil

e um feliz golpe psicológico, porquanto qualquer coisa que a Liga

Muçulmana aprovasse era ipso facto considerada errada aos olhos

de muitos membros do Congresso. O Congresso debateu o

problema durante semanas. As suspeitas os perturbavam. Nehru,

sentado, de pernas cruzadas, na minha cama, na clínica de curanatural do dr. Mehta, ponderando sobre as intenções dos

britânicos, disse:

“Não parece que eles se estejam preparando para deixar a

Índia”.

O seu companheiro constante, sr. Krishna Menon, mais

tarde alto comissário em Londres e delegado indiano junto às

Nações Unidas, compartilhava e alimentava esse ceticismo, aliás

amplamente difundido entre os membros do Congresso. Ao longo

de vários meses, na Índia, durante esse período, quase não

encontrei nacionalista indiano que conseguisse persuadir-se de

que a Inglaterra se retiraria com autoridade. Isso se afigurava

irreal, coisa excessivamente boa e impossível de ser verdadeira,

extremamente desnecessária. Alguns membros do Congresso,

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principalmente entre os socialistas, que haviam tido seu batismo

de violência em 1942 e 1943, pensavam que a independência só

seria sólida e permanente se eles lutassem por ela e expulsassem

os britânicos. Como sempre, o clima político do país pairava comoum banco de bruma também sobre os círculos fechados dos

políticos, influenciando suas decisões.

As suspeitas de Gandhi espessavam ainda mais a bruma.

Contudo, ele não permitia que o Congresso repelisse o plano

britânico; ao contrário, insistia em sua adoção. Disse ele que, uma

vez que sua razão não lhe amparava o instinto, suas suspeitas

talvez fossem injustificadas. De conformidade com isso, o

Congresso concordou em participar da Assembléia Constituinte.

Mas as dúvidas do Mahatma sobreviveram em outros espíritos; no

começo de julho, Nehru indicou, em animada entrevista concedida

à imprensa, em Bombaim, que o Congresso não faria parte de

assembléias secionais, destinadas a redigir constituições para as

três subfederações. Isso matou o plano da missão britânica, de 16de maio de 1946. Jinnah, agora, estava livre para cancelar sua

aceitação do esquema.

Em retrospecto, afigura-se que a proposta britânica era a

melhor que Gandhi, Nehru e o Congresso poderiam haver

esperado; muito melhor até do que a divisão da Índia, que de fato

ocorreu. Por certo, argumentar-se-á que o plano não funcionaria,

ou que, de qualquer forma, conduziria à constituição de um

Paquistão uno. Em política, porém, nunca é possível provar que

alguma coisa que não aconteceu pudesse ter acontecido. A

questão é simplesmente que o plano britânico, de 16 de maio de

1946 — que poderia ter sido emendado e aperfeiçoado —,

continha os elementos para a constituição de uma Índia unida,

com um governo federal, e, portanto, poderia ter impedido o horror

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da divisão cirúrgica realizada posteriormente.

Não se tem certeza alguma sobre se Jinnah permitiria ou

não que um governo federal, de uma Índia unida, funcionasse. O

vice-rei Wavell estivera procurando criar um governo federalprovisório, representando o Congresso e a Liga Muçulmana.

 Jinnah concordou, sob a condição, porém, de que ele nomeasse

todos os muçulmanos que tivessem de participar do gabinete. O

Congresso protestou, porque não se havia considerado a si mesmo

puramente hindu nem religioso; tinha membros muçulmanos, e

alguns deles, como o presidente Azad, sem dúvida preeminentes.

Reconhecer a Jinnah o direito exclusivo de selecionar os

muçulmanos do governo equivaleria a aceitar a proposta segundo

a qual a Liga Muçulmana falaria por todos os muçulmanos da

Índia, e que a Índia, por conseguinte, deveria ser dividida

politicamente, porque já se encontrava dividida religiosamente.

Defrontado por essa poderosa objeção do Congresso, Wavell

cedeu, pedindo a ambas as organizações que apresentassem suaslistas de candidatos a membros do governo; ficava entendido,

entretanto, que nenhum dos lados poderia vetar os nomeados pelo

outro. À vista disso, Jinnah declinou de participar do governo. Em

12 de agosto de 1946, Wavell autorizou Nehru a formar o governo.

Nehru foi avistar-se com Jinnah, oferecendo-lhe uma escolha de

cadeiras no gabinete; Gandhi disse que Jinnah poderia ser até

primeiro-ministro, ou ministro da Defesa. Jinnah rejeitou o

oferecimento. Nehru, então, nomeou um gabinete composto de

seis membros do Congresso; destes, cinco eram hindus de casta e

um harijan, além de dois muçulmanos, um sique, um cristão e um

parse.

 Jinnah respondeu declarando ser o dia 16 de agosto o “Dia

da Ação Direta”. Um tumulto, que durou quatro dias, ocorreu em

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Calcutá; desse tumulto, ao que lorde Pethick-Lawrence afirmou,

as conseqüências foram “cerca de cinco mil mortos e quinze mil

feridos”. Vários dias após, um dos muçulmanos nomeados por

Nehru para o gabinete foi colhido numa emboscada, em lugarsolitário, em Simla, e apunhalado sete vezes. “Obviamente

político”, foi como as autoridades britânicas qualificaram o

assalto.

Nehru tornou-se primeiro-ministro da Índia, no dia 2 de

setembro. Jinnah proclamou aquele como um dia de lamentação e

deu aos muçulmanos instruções para que hasteassem bandeiras

negras; no dia seguinte, em Bombaim, ele disse:

“Os soviéticos podem ter interesse maior do que o de simples

espectadores nos negócios da Índia, e, ademais, não se encontram

muito longe da Índia”.

 Jinnah devia sentir-se realmente enfurecido e pronto a

utilizar-se de qualquer meio para conseguir seus fins. As

bandeiras negras dos muçulmanos foram o mesmo que bandeirasvermelhas para os hindus. Tiroteios e apunhalamentos se

verificaram em Bombaim, espalhando-se pelo Penjab, por Bihar e

pela província de Bengala. A Liga Muçulmana anunciou que

boicotaria a Assembléia Constituinte, que concordara em apoiar.

Gandhi afirmou que o país estava se aproximando de uma

guerra civil. Alarmado, Wavell redobrou seus esforços, no sentido

de introduzir os jinnahistas no governo de Nehru. Jinnah, por fim,

concordou e nomeou cinco ministros, dos quais quatro

muçulmanos e um intocável contrário a Gandhi. Jinnah sempre

havia sustentado que a Liga Muçulmana representava todos os

muçulmanos, e exclusivamente os muçulmanos. Por que razão,

então, havia ele escolhido um hindu, um intocável, a não ser para

causar aborrecimentos ao Congresso e aos hindus de casta? Esse,

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com efeito, foi o propósito de Jinnah; e Liaquat Ali Khan, o mais

conspícuo dos membros da Liga que faziam parte do governo,

declarou, francamente, que os muçulmanos não reconheciam o

governo de Nehru como o governo da Índia; não se sentiam,portanto, na obrigação de cooperar com ele. E não cooperaram.

 Juntaram-se para o boicotar. O governo passou a ser uma casa

dividida — pela religião.

A maior parte dos membros do Congresso, incluídos no

gabinete, e muitos de seus assistentes, rumaram para a choupana

de Gandhi, em pleno cortiço, para pedir conselho; alguns iam lá

diariamente. Gandhi era o “superprimeiro-ministro”. O Mahatma,

entretanto, conservava suas vistas na questão central, que eram

as relações hindu-muçulmanas.

“Eu teria preferido que os hindus morressem sem

represálias”, disse, referindo-se aos assassinatos contínuos.

A envenenada situação política não conseguiu desviar-lhe a

atenção de outros problemas fundamentais; Gandhi afirmou que,quando havia um surto epidêmico, os harijans “são surrados e

não podem tirar água dos poços”; insistiu na rejeição da Lei do

Sal, suplicando ao mesmo tempo, ao povo, que fosse paciente com

os novos ministros, que se debatiam sob responsabilidades a que

não estavam acostumados. Escreveu sobre a lepra, bem como

sobre a necessidade de preces coletivas. (De uma feita, fizera

massagem num leproso, que aparecera no ashram pedindo

auxílio.)

O “fogo enfurecido” do antagonismo entre hindus e

muçulmanos o atormentava.

“Por que motivo não posso sofrer essa angústia com

imperturbada calma de espírito?”, perguntou. “Receio que não

tenha o desprendimento requerido para viver cento e vinte e cinco

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anos.”

Ainda assim, sua fé nos seres humanos persistia,

encontrando revigorante apoio até mesmo em pequenas migalhas.“Em Bombaim”, escreveu em sua revista, “um hindu deu abrigo a

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um amigo muçulmano. Isso enfureceu a turba hindu, que pediu a

cabeça do muçulmano. O hindu se recusou a entregar o amigo.

Em conseqüência, os dois tombaram, literalmente, num abraço

fatal... Não é esse o primeiro exemplo de cavalheirismo, no meiodo endoidecimento. Durante o recente banho de sangue ocorrido

em Calcutá, registraram-se episódios de muçulmanos que, com

perigo para suas vidas, deram abrigo a seus amigos hindus, e

vice-versa.” Gandhi sentiu-se encorajado.

“A humanidade”, afirmou, “morreria, se não houvesse

exibição, em qualquer tempo, em qualquer lugar, daquilo que há

de divino na criatura humana.”

Desse ponto em diante, até sua morte, Gandhi andou à

procura do divino que admitia existir no homem e da parte sadia

que devia haver na Índia. Chegaram a ele relatos de violências nas

remotas regiões de Noakhali e de Tippera, em Bengala oriental,

onde muçulmanos matavam e convertiam, à força, hindus e

raptavam suas mulheres. O fato de os tumultos se alastrarempelas aldeias causava perturbação especial ao espírito de Gandhi;

e ele resolveu ir a Noakhali. Os amigos procuraram dissuadi-lo;

disseram-lhe que sua saúde era precária e que os membros do

Congresso, pertencentes ao governo, precisavam dele em Nova

Deli.

“Tudo o que sei é que não estarei em paz comigo mesmo, a

não ser que vá para lá”, respondeu.

Pediu ao povo que não comparecesse à estação de estrada de

ferro para receber sua bênção; não se encontrava com o espírito

preparado para dá-la. O povo compareceu em hordas. A caminho

de Bengala, imensas multidões assediaram as estações

ferroviárias, invadindo completamente os trilhos. Os populares

subiam aos telhados das estações terminais; quebravam

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venezianas e vidraças e criavam uma algazarra de romper os

tímpanos. De uma feita, por várias vezes o maquinista deu o sinal

de partida do trem, mas alguém puxou repetidamente o freio de

emergência, e o trem parou, com um solavanco. Numa estação, asautoridades ferroviárias voltaram as mangueiras de incêndio

contra o povo que se encontrava entre os trilhos, e inundaram o

compartimento em que Gandhi viajava. O Mahatma chegou a

Calcutá com um atraso de cinco horas, fatigado pelo barulho — e

triste.

 Trinta e duas pessoas haviam sido mortas em conflitos de

índole religiosa, em Calcutá, poucos dias antes da chegada do

Mahatma. Em companhia do muçulmano H. S. Suhrawardy,

primeiro-ministro de Bengala, Gandhi percorreu as áreas afetadas

da cidade; rodou, de automóvel, através de ruas desertas, onde o

lixo alcançava quase um metro, e onde se viam casas assaltadas e

lojas fechadas. Gandhi declarou sentir-se assoberbado “por uma

sensação depressiva, em face da loucura multitudinária que podepôr o homem abaixo de um selvagem”. Contudo, sua determinação

persistiu. Permaneceria em Calcutá e em Noakhali.

“Não deixarei Bengala”, disse ele, numa reunião de preces,

“enquanto o último dos provocadores do tumulto não houver sido

expulso. Posso permanecer por aqui durante um ano ou mais. Se

necessário, morrerei aqui. Mas não aceitarei o fracasso. Se o único

efeito de minha presença, em carne e osso, é o de fazer com que o

povo olhe para mim, numa esperança e numa expectativa que

nada posso fazer para satisfazer, então será muito melhor que os

meus olhos se fechem na morte.”

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28

Na véspera

Enquanto se preparava para ir a Noakhali, para aquilo que

deveria tornar-se um dos capítulos mais desconcertantes de toda

a sua desconcertante vida, chegaram a Gandhi, em Calcutá,

notícias relativas a negros acontecimentos ocorridos na vizinha

província de Bihar, onde havia uma população composta de trinta

e um milhões de hindus e de cinco milhões de muçulmanos. Os

ataques de muçulmanos contra os hindus em Noakhali haviam

inflamado os hindus de Bihar. O dia 25 de outubro foi declarado

“Dia de Noakhali”. Os discursos proferidos por membros do

Congresso (que seriam talvez capazes de se atirar de borco, ao

chão, e beijar os dedos dos pés do Mahatma) e as manchetes

sensacionalistas dos jornais, exagerando o número das vítimas

hindus, nos conflitos de Noakhali, lançaram os hindus em plenahisteria; milhares deles desfilaram pelas ruas e pelas estradas

rurais, clamando “sangue por sangue”. Na semana que se seguiu,

ao que informou o correspondente do Times, de Londres, que se

encontrava em Deli, o número de pessoas que os funcionários

reconheceram como mortas nos tumultos, em Bihar, foi de quatro

mil quinhentos e oitenta. Gandhi, mais tarde, elevou o total a mais

de dez mil, na maioria muçulmanos. Em face das paixões

facilmente inflamáveis, bem como das condições de

superpovoamento da Índia, os massacres ocorriam, em regra, em

grande escala.

Abatido pelo sofrimento, Gandhi dirigiu um manifesto aos

habitantes de Bihar. “As iniqüidades dos hindus de Bihar”, disse

ele, “justificam a afrontosa afirmativa de Quaid-e-Azam Jinnah,

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segundo a qual o Congresso é uma organização hindu... Façamos

com que não sejam os habitantes de Bihar, que tanto conseguiram

no sentido de elevar o prestígio do Congresso, os primeiros a

cavar-lhe a sepultura.” Como penitência pelos assassíniosocorridos em Bihar, Gandhi anunciou que se manteria “com a

dieta mais reduzida possível”, e que isso poderia transformar-se

em “jejum até a morte, se os habitantes de Bihar que erraram não

virarem outra página”. Nessa conjuntura, o primeiro-ministro

Nehru, Patel, Liaquat Ali Khan e Abdur Rab Nishtar — sendo estes

dois últimos membros do gabinete de Nehru — voaram para

Bihar. Enfurecido pelo que viu e ouviu ali, Nehru ameaçou

bombardear Bihar, por via aérea, se as matanças não cessassem.

“Mas essa é a maneira britânica”, comentou Gandhi.

Depois de algum tempo, Bihar tranqüilizou-se, e Calcutá

voltou à calma; por isso, Gandhi prosseguiu viagem para

Noakhali, onde os hindus aterrorizados fugiam, em presença da

violência da maioria muçulmana.Noakhali, no delta inundado de água dos rios Ganges e

Brahmaputra, é uma das áreas menos acessíveis da Índia;

algumas aldeias só podem ser atingidas por meio de barcos a

remo. De Calcutá a Noakhali, ambas as cidades pertencentes à

mesma província de Bengala, Phillips Talbot, estudante norte-

americano em missão de pesquisas, viajou quatro dias, de trem,

de vapor, de bicicleta, de balsa movida a vara que os próprios

barqueiros empunhavam, e a pé, a fim de chegar à aldeia em que

Gandhi se encontrava. Gandhi costumava levantar-se às quatro

horas da manhã; fazia uma caminhada de uns cinco ou seis

quilômetros, por vezes descalço; ia a uma aldeia vizinha; lá

permanecia um, dois ou três dias; conversava e rezava

incessantemente, em companhia de seus habitantes; de lá rumava

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para o povoado rural seguinte. Abrigava-se nas choupanas dos

camponeses que concordavam em proporcionar-lhe alojamento;

alimentava-se de frutas e de verduras, a que acrescentava leite de

cabra, quando havia. Essa foi sua maneira de viver, de 7 denovembro de 1946 a 2 de março de 1947; tinha acabado de ver

passar o seu septuagésimo sétimo aniversário. Naqueles quatro

meses, viveu em quarenta e nove aldeias.

As caminhadas eram particularmente difíceis. Gandhi

começou a sofrer de frieiras. Com freqüência, elementos hostis

espalhavam lixo e ramos espinhosos por onde ele passava, entre

aldeia e aldeia. Gandhi não se queixava dos que assim procediam;

dizia que haviam sido induzidos ao mal pelos seus políticos. Em

certo número de lugares, a viagem, de um lugar para outro,

implicava a passagem por pontes que se compunham apenas de

quatro ou cinco troncos de bambu, de cerca de uns dez

centímetros de diâmetro, unidos entre si por amarras de juta, ou

de videira, e apoiados em estacas também de bambu, da altura detrês a cinco metros, fincadas em chão pantanoso. Essas

estruturas rudimentares, claudicantes, tinham às vezes

balaustradas de um lado só; outras vezes, não. De uma feita, o pé

de Gandhi escorregou e ele quase caiu no chão lamacento, bem

embaixo; mas conseguiu mal e mal recuperar o equilíbrio. A fim de

adquirir mais firmeza nos pés e de dissipar o medo, nas passagens

por aquelas pontes amarradas com corda, o Mahatma exercitava-

se caminhando por pontes mais fáceis, montadas a poucos

centímetros do chão.

Gandhi aceitou deliberadamente o desafio físico e espiritual

representado pelas condições daquelas paragens remotas e dos

seus dois milhões e meio de habitantes, dos quais oitenta por

cento eram muçulmanos. Mês após mês, ele persistiu. “Minha

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presente missão”, escreveu de Noakhali, em 5 de dezembro, “é a

mais difícil e complicada de minha vida. Estou preparado para

qualquer eventualidade. O faça ou morra tem de ser posto à prova

aqui. O  faça, aqui, significa que os hindus e os muçulmanosdevem aprender a viver juntos, em paz e amizade. Do contrário, eu

morrerei na tentativa.”

O Mahatma dispersou sua comitiva habitual; Pyarelal, sua

irmã, o dr. Sushila Nayyar, Sucheta Kripalani, uma bengali, Kanu

Gandhi, a esposa de Kanu, Abha, e outras pessoas, cada qual foi

enviada a uma aldeia diferente, com freqüência isolada e hostil,

com ordem de lá permanecer. Quando Pyarelal caiu de cama, com

malária, e remeteu um telegrama a Gandhi, pedindo que sua irmã

tivesse permissão para ir ter com ele e assisti-lo, o Mahatma

respondeu:

“Se meus emissários caírem doentes, devem restabelecer-se

ou morrer lá... Na prática, isso significa que eles devem dar-se por

satisfeitos com remédios caseiros ou com a terapia dos cincoelementos da natureza. O dr. Sushila tem sua própria aldeia para

cuidar...”

Gandhi submetia-se, ele próprio, à mesma disciplina,

inflexível e cruel. Tinha em sua companhia apenas o professor de

antropologia, Nirmal Kumar Bose, um antigo companheiro de

ashram, que lhe servia de intérprete bengali; tinha, igualmente,

Parasuram, seu estenógrafo permanente, para cuidar da enorme

correspondência, parte da qual se realizava com ministros do

gabinete, que seguiam suas diretrizes; e Miss Manu Gandhi. O

Mahatma ajudava-a a preparar as refeições e a limpar a

choupana; por vezes, fazia automassagem.

De quando em quando, Gandhi parecia sentir-se

desesperado. O professor Bose, de uma feita, surpreendeu Gandhi

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murmurando, de si para si: “Que é que eu deveria fazer? Que é

que eu deveria fazer?”

De acordo com a informação do governo muçulmano de

Bengala, duzentas e dezesseis pessoas haviam sido mortas nostumultos então recentes ocorridos em Noakhali e no distrito

vizinho de Tippera. Mais de dez mil casas haviam sido pilhadas.

Em Tippera, nove mil oitocentos e noventa e cinco hindus tinham

sido forçados a converter-se ao islamismo; em Noakhali, o total

era maior. Milhares de mulheres hindus tinham sido raptadas e

forçadas a casar-se com muçulmanos, para que a comunidade

hindu nunca mais as recebesse de volta. Com o mesmo propósito,

os hindus tinham sido compelidos a abater vacas e a comer-lhes a

carne. Os hindus haviam sido forçados a deixar a barba, a

envolver-se em seus lençóis, torcendo-os, à maneira muçulmana,

em vez de os usar à maneira hindu, e a recitar o Corão.

No começo da peregrinação Noakhali—Tippera de Gandhi,

alguém sugeriu que ele deveria instigar os hindus a mudarem-separa outras províncias. O Mahatma repeliu veementemente

semelhante ato de derrotismo, porque a troca de populações

corresponderia à admissão da impossibilidade de se conservar

unida a Índia. Isso tolheria, à fé de Gandhi, um esteio básico: o de

que uma afinidade existe, ou pode ser estabelecida, entre povos

que se consideram diferentes. Esta era, agora, sua tarefa.

“Eu, porém, digo-vos: Amai vossos inimigos; fazei bem aos

que vos odeiam; e orai pelos que vos perseguem e caluniam, para

que sejais filhos de vosso Pai, que está nos céus, o qual faz nascer

seu sol sobre bons e maus e manda a chuva sobre justos e

injustos. Porque, se amais somente os que vos amam, que

recompensa haveis de ter?” Assim falou Jesus.

Assim Gandhi vivia — e pedia aos outros que vivessem. De

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uma feita, estava ele sentado no chão de uma choupana

muçulmana; discursava sobre as belezas da não-violência, quando

alguém lhe entregou uma nota informando que o homem à sua

direita havia matado certo número de hindus. Gandhi sorriulevemente, e prosseguiu falando. Algum tempo depois, vários

muçulmanos depositaram-lhe aos pés suas armas mortíferas. Os

muçulmanos mais pobres compareciam diariamente, aos grupos,

às suas reuniões de preces, mas os muçulmanos ricos e

instruídos ameaçavam os pobres com a aplicação de sanções

econômicas; também os políticos muçulmanos de Calcutá

desaconselhavam os contatos com Gandhi. Na aldeia de

Narayanpur, um muçulmano deu abrigo e alimento a Gandhi.

Este agradeceu em público. Semelhante hospitalidade ia se

tornando freqüente. Cinco mil hindus e muçulmanos

compareceram à reunião promovida por Gandhi no dia 22 de

 janeiro, na aldeia de Paniala. Ele interrompeu os serviços

religiosos para permitir que os muçulmanos se afastassem damultidão e se voltassem em direção a Meca, a fim de fazer suas

preces. Num domingo, em Raipur, Gandhi foi convidado a um

 jantar oferecido por comerciantes hindus a duas mil pessoas,

compreendendo hindus de casta, intocáveis, muçulmanos e

cristãos. Sentiu-se feliz. O sacerdote muçulmano conduziu-o à

mesquita local. Grupos de camponeses acorreram à sua

choupana, em busca de conforto e confissão. Ele disse aos hindus

que não ficassem na dependência dos militares, nem da polícia,

mas sim de sua própria bondade.

“A democracia e a dependência dos militares, ou da polícia,

são coisas incompatíveis”, ensinou ele.

Na aldeia de Chandipur, Gandhi ficou sabendo que hindus

que haviam fugido durante os tumultos estavam começando a

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voltar. Este constituía o objetivo de sua missão.

Os ouvintes perguntavam-lhe o motivo pelo qual percorrera

tão longo caminho; por que motivo não havia ele chegado a um

acordo com Jinnah, em vez de se sujeitar pessoalmente a tãoexaustiva peregrinação?

“Um líder”, respondia ele, “é feito pelos que o seguem. O povo

deve estar em paz consigo mesmo; então, seu desejo de paz com

seus vizinhos será refletido por seus líderes.”

Gandhi dirigira-se a Noakhali para criar um vínculo humano

entre hindus e muçulmanos, antes que a política e as

determinações legais erguessem uma muralha entre eles. O

Mahatma se encontrava, na verdade, numa corrida contra os

políticos. Conseguiria êxito sua terapia, antes que os políticos

dessem início à própria cirurgia?

Os escalpelos estavam prontos. Em fins de novembro de

1946, o primeiro-ministro Attlee chamou Nehru, Jinnah, o

ministro da Defesa, Baldev Singh, e Liaquat Ali Khan, ao edifícionúmero 10 da Downing Street, para a realização de uma

conferência extraordinária a respeito da Assembléia Constituinte

indiana, projetada para reunir-se em Nova Deli, no dia 9 de

dezembro. Jinnah anunciara que a Liga Muçulmana não tomaria

parte na assembléia, porque o Congresso havia rejeitado o plano

das reuniões secionais em que as seções A, B e C redigiram

Constituições para as três subfederações. Se, porém, a Liga

Muçulmana se recusasse a participar da redação das

Constituições da Índia livre, como poderia a Inglaterra libertar a

Índia? A quem seriam transferidos os poderes? Foi para obter

resposta a essas perguntas que Attlee convocara os líderes

indianos para uma reunião em sua residência oficial.

Durante sua estada em Londres, Jinnah declarou

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publicamente que esperava que a Índia fosse dividida em um

Estado hindu e um Estado muçulmano, acrescentando que

compartilhava das apreensões do sr. Churchill “a propósito das

possibilidades de guerra civil e de tumultos na Índia”. Essadeclaração foi lida como se fora uma advertência: “Paquistão ou

guerra civil”. Inevitavelmente, portanto, as conversações da

Downing Street, 10, se concluíram em desentendimento.

Regressando à Índia, o ministro Nehru fez a longa viagem à

aldeia de Srirampur, em Noakhali, a fim de apresentar a Gandhi

um relato do fracasso registrado em Londres. O Mahatma, não

obstante, insistiu em que o Congresso permanecesse fora dos

comitês de redação das Constituições para as três subfederações;

considerava-as uma armadilha para dividir a Índia. Contudo, em 6

de janeiro de 1947, a Junta Pan-indiana, em desafio a Gandhi,

resolveu, por noventa e nove votos contra cinqüenta e dois,

participar dos comitês. No entanto, esse esforço da missão

ministerial britânica no sentido de reviver o plano de 16 de maiode 1946 chegou tarde e foi inútil. A situação evoluíra além disso.

O primeiro-ministro Attlee anunciara, na Câmara dos Comuns, no

dia 20 de fevereiro de 1947, que a Inglaterra sairia da Índia,

“numa data não posterior à de junho de 1948”; o lorde e almirante

Louis Mountbatten, bisneto da rainha Vitória, substituiria Wavell.

Seria o vigésimo e último vice-rei britânico da Índia.

Attlee não dissera que a Índia seria dividida, mas os

acontecimentos, agora, se desenrolavam muito rapidamente. Os

tumultos se multiplicavam na populosa província do Penjab, terra

de muçulmanos, de siques e de hindus. O Penjab, que era o

coração e a parte maior do projetado lobo ocidental do Paquistão,

e Bengala, sua fração ocidental, manifestavam pouco entusiasmo,

dando pouco apoio à idéia da formação do Paquistão. Sendo essa

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província muçulmana em sua maioria, não temia o domínio

hindu. Por outro lado, também os muçulmanos do Penjab e de

Bengala não sentiam um parentesco tão acentuado que

desejassem pertencer, juntos, ao mesmo Estado nacional. Mesmoassim, o apelo de Jinnah, para que se recorresse à ação direta,

sufocou a razão por meio das paixões, em todos os setores; e o

Penjab passou a inundar-se de sangue. Na primeira semana de

março, uma resolução da Junta Funcional do Congresso

examinou a probabilidade da “divisão do Penjab em duas

províncias, de modo que a parte predominantemente muçulmana

pudesse separar-se da parte não-muçulmana”. Esse foi um divisor

de águas político. De um lado, a resolução forneceu um espelho

aos muçulmanos do Penjab, mostrando-lhes que os tumultos

persistentes resultariam na vivissecção de sua província. De outro

lado, a Junta Funcional do Congresso passou a aceitar, com isso,

o princípio de um Paquistão menor — o Paquistão dos dias de

hoje.Perturbado por tais desenvolvimentos do problema e tendo,

de algum modo, acalmado Noakhali, Gandhi rumou para o oeste,

na direção do Penjab. Na viagem, viu-se detido pelo derramamento

de sangue de Bihar. Sem descanso, percorreu a província. “Os

hindus de Bihar”, declarou, “haviam esquecido, num repente de

insanidade, que eram seres humanos.” Admoestou-os contra

qualquer iniciativa tendente a vingar a matança dos hindus por

muçulmanos, no Penjab. Nesse rumo se encontrava a ruína para

toda a Índia. Insistiu em que as pessoas procuradas pela polícia,

em conexão com os tumultos ocorridos, deveriam apresentar-se às

autoridades ou a ele próprio. Centenas de pessoas assim

procederam. Um dia, chegou um telegrama de um hindu,

advertindo o Mahatma de que não condenasse os hindus por

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aquilo que haviam feito. Gandhi leu o despacho em sua reunião de

preces; e respondeu que “eu renegaria minha condição de hindu,

se exaltasse as injustiças praticadas por meus companheiros

hindus”. Suplicou, aos hindus, que suspendessem seu boicoteeconômico contra os muçulmanos, mas “nem sequer um hindu se

levantou para proporcionar a indispensável segurança... Portanto,

não havia muito de que se maravilhar, se os muçulmanos se

sentissem, como de fato se sentiam, receosos de regressar às suas

aldeias”. Gandhi lhes disse que, se os tumultos prosseguissem, a

Índia “poderia perder a maçã de ouro da independência”.

Essa era a situação, no dia 22 de março de 1947, quando

lorde Mountbatten, bem-posto em seu uniforme naval branco,

chegou a Nova Deli, em companhia de sua esposa, Edwina, a vice-

rainha. O encanto pessoal dos dois, bem como suas maneiras

amistosas, conquistaram muitos corações, tanto nas camadas

superiores, como nas inferiores. Dentro de quarenta e oito horas,

entretanto, Jinnah enviou uma informação a Mountbatten dizendoque “terríficos desastres” estavam reservados à Índia, se não se

instituísse o Paquistão. Quatro dias depois de sua chegada, o novo

vice-rei convidou Jinnah e Gandhi para que fossem avistar-se com

ele. Gandhi encontrava-se em regiões remotas de Bihar.

Mountbatten lhe ofereceu um aeroplano. Gandhi preferiu a

locomoção de milhões de pessoas. Na estação de Patna, antes de o

trem partir, coletou dinheiro para auxiliar os harijans. Em 31 de

março, conferenciou com lorde Louis durante duas horas e um

quarto. Os dois tiveram outros cinco encontros demorados, entre

esse dia e o dia 12 de abril. Jinnah realizou um número igual de

conferências com Mountbatten, no mesmo período. Essas duas

semanas, e os dois meses que se lhes seguiram, foram os que

mais pesaram nos destinos da moderna história da Índia. Quando

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o inteiro e doloroso processo da vivissecção da Índia se completou,

Mountbatten contou sua história.

29

Cabra-cega ao redor da amoreira

Lorde Mountbatten discursou perante os membros da Real

Sociedade do Império, em Londres, em 6 de outubro de 1948; e

apresentou-lhes seu relato do que havia acontecido. “Na Índia”,

disse ele, “Gandhi não era comparado a qualquer estadista, como

Roosevelt ou Churchill. Os indianos classificavam-no,

simplesmente, em seu espírito, como Maomé ou Cristo.” Em seu

primeiro encontro com Gandhi, pedira-lhe que lhe dissesse algo a

propósito de suas experiências na África do Sul. A Jinnah,

perguntara a respeito de sua vida anterior em Londres. “Euapenas desejava falar com eles, a fim de travar conhecimento, de

estar junto deles, de conversar.” Dissera a Gandhi e a Jinnah, em

separado, “algumas coisas a respeito de minha vida anterior.

Depois, quando pensei dispor de alguma espécie de entendimento

com os homens com os quais tinha de lidar, comecei a falar-lhes a

propósito dos problemas que nos deparavam”.

A missão de Mountbatten consistia em retirar a Inglaterra da

Índia até junho de 1948. A fim de dar, ao Parlamento britânico, o

tempo necessário para os debates e a aprovação da indispensável

legislação, para essa diminuição do império, a solução deveria

estar pronta lá pelos fins de 1947. Mas, no local, ele e seus

conselheiros concordaram em que esse programa seria

excessivamente lento; as coisas estavam acontecendo de modo

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excessivamente rápido. O mal, explicou Mountbatten, tinha

começado com o Dia da Ação Direta, de Jinnah, em 16 de agosto

de 1946. A isso se seguiu o massacre de hindus, em Noakhali, por

sua vez seguido pelas represálias hindus em Bihar; depois, os“muçulmanos massacraram os siques em Rawalpindi (no Penjab)”;

e uma insurreição irrompeu na província da Fronteira do

Noroeste. “Lá cheguei”, contou Mountbatten aos seus ouvintes,

“para encontrar esse terrível pêndulo de massacre num

movimento cada vez mais amplo.”

“Pessoalmente, eu estava convencido de que a solução

correta, na época, como ainda hoje, seria a conservação de uma

Índia unida, de acordo com o plano de 16 de maio de 1946”,

revelou Mountbatten. Mas isso pressupunha a cooperação entre

as duas partes. “O sr. Jinnah, entretanto”, afirmou Mountbatten,

“tornou intensamente claro, desde o primeiro momento, que,

enquanto ele vivesse, não aceitaria nunca uma Índia unida. Pedia

a divisão; insistia na formação do Paquistão. O Congresso, deoutro lado, favorecia o critério de um país não-dividido, mas os

líderes do Congresso concordavam em que aceitariam a divisão,

no propósito de evitar a guerra civil.” Mountbatten “estava

convencido de que a Liga Muçulmana lutaria”.

O Congresso, todavia, disse Mountbatten, recusava-se a

permitir que grandes áreas não-muçulmanas fossem dadas ao

Paquistão. “Isso significava, automaticamente, a divisão das

grandes províncias do Penjab e de Bengala”, de modo que suas

áreas não-muçulmanas deixassem de ser incorporadas ao

Paquistão muçulmano. “Quando eu disse ao sr. Jinnah”, confiou

Mountbatten à Real Sociedade do Império, “que tinha o acordo

provisório [do Congresso], quanto à divisão da Índia, ele se

mostrou exaltadamente satisfeito. Quando eu disse que,

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logicamente, estava implícita a divisão do Penjab e de Bengala,

ficou horrorizado. Apresentou os mais poderosos argumentos para

demonstrar as razões pelas quais as referidas províncias não

deveriam ser divididas. Declarou que elas possuíamcaracterísticas nacionais e que a divisão seria desastrosa.

Concordei mas acrescentei o quanto sentia que as mesmas

considerações se aplicavam à divisão da Índia. Jinnah não gostou

disso, e passou a explicar as razões pelas quais a Índia deveria ser

dividida; e assim fizemos uma espécie de Cabra-cega ao redor da

amoreira, até que ele, finalmente, percebeu que poderia obter ou

uma Índia unida, com o Penjab e Bengala não divididos, ou uma

Índia dividida, com o Penjab e Bengala igualmente secionados; por

fim, aceitou esta última solução.”

Dessa forma, decidiu-se dividir a Índia, país de quatrocentos

milhões de habitantes. Gandhi nunca concordou com isso. Na

realidade, esperava conseguir a revogação de tal decisão.

30

O nascimento de duas nações

“Sr. Gandhi”, esclareceu lorde Mountbatten ao Mahatma, em

um de seus seis encontros, “hoje, o Congresso está comigo.” “Mas

a Índia ”, respondeu Gandhi, “está comigo hoje.”

Ao relatar essa troca de afirmativas ao professor Nirmal

Kumar Bose, Gandhi qualificou de “impudente” a declaração de

Mountbatten; entretanto, aquela declaração correspondia à

verdade, e passou a constituir a chave da divisão da Índia, ao

passo que a declaração de Gandhi expressava meramente uma

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esperança. Se a Índia tivesse estado, de fato, com Gandhi, ele

conseguiria inverter a orientação do Congresso.

Os ministros do Congresso haviam passado por uma

experiência desconcertante e traumática, no seio do gabinete deNehru, onde seus colegas muçulmanos estavam fazendo uso de

todas as oportunidades e de todos os estratagemas, no sentido de

obstruir o trabalho do governo. Distraídos e desgastados pelo

contato diário com os obstrucionistas não-disfarçados, que se

encontravam em seu meio, os membros do gabinete do Congresso,

 juntamente com muitos de seus sequazes, estavam começando a

inclinar-se para a aceitação da opinião resumida nesta sentença:

“Pois bem, se insistis na formação do Paquistão, que ele seja

formado”. Nehru pôs esse sentimento em palavras, quando disse,

em 21 de abril de 1947: “A Liga Muçulmana poderá ter o

Paquistão, se desejar tê-lo, mas apenas sob a condição de que ela

não tome outras partes da Índia que não desejam juntar-se ao

Paquistão”.Essa aceitação relutante do Paquistão menor, que é o que

hoje existe, com as províncias de Assam, Bengala e Penjab

divididas, foi o resultado de uma subestimação da catástrofe que a

divisão poderia produzir. Em Nova York, em 16 de outubro de

1949, o primeiro-ministro Nehru declarou que lutaria até o fim

contra o estabelecimento do Paquistão, se tivesse previsto as

terríveis conseqüências que desse estabelecimento decorreram. A

divisão da Índia provocou a morte de centenas de milhares de

indianos, e o desenraiza-mento de quinze milhões de pessoas, que

se tornaram refugiadas. Deu origem à guerra na Caxemira, a

gigantescas perdas econômicas em todos os setores do

subcontinente representado pela Índia e a uma contínua

hostilidade religiosa-nacionalista, com desastrosos efeitos e

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incalculáveis ameaças potenciais. Pouco importa que Gandhi

tenha ou não pressentido intuitivamente a eclosão dessas

conseqüências; ele julgava e repelia as divisões, não pelos seus

resultados possíveis, mas por achá-las essencialmente negativas.Isso lhe dava energia para lutar, ao passo que os líderes mais

moços, como se expressou um íntimo associado do ashram de

Gandhi, eram “cansados e míopes”.

A luta contra a divisão teria retardado a independência, na

esperança de conquistar a liberdade para um país unido. Mas

numerosos líderes do Congresso, com exceção, naturalmente, de

seus homens de proa, já tinham cheirado o caldeirão do poder e

dos empregos governamentais; tinham horror, por isso, ao

pensamento de voltar à parcimônia e à austeridade da luta.

Ademais, a luta poderia terminar na prisão. O cárcere, para

Gandhi, significava repouso e consecução de seu objetivo; para os

outros, significava sofrimento. “Minha passagem pelo cárcere,

dessa feita, se transformou, para meus nervos, em ordálio muitomaior do que haviam sido minhas visitas anteriores”, escreveu

Nehru a Gandhi, em 13 de agosto de 1934. O ordálio se fez

progressivamente pior, e a última prisão de Nehru, de 9 de agosto

de 1942 a 14 de julho de 1945 — quase três anos —, não podia

fazer com que um novo período de confinamento se tornasse mais

convidativo, principalmente porque a sensatez da luta se lhe

afigurava muito duvidosa. A guerra civil ameaçada por Jinnah já

havia projetado sua sombra sangrenta diante de si, na forma de

tumultos repetidos; o governo inglês não mostrava ânimo — logo

após a Segunda Guerra Mundial — de lutar contra os

muçulmanos da Índia; Mountbatten descrevera a divisão como

algo inevitável e a independência como uma coisa fascinante;

oferecera poder ao Congresso, enquanto Gandhi, ao mesmo

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Congresso, oferecera prisão. Contra essas realidades formidáveis,

Gandhi nada de mais substancial poderia opor do que sua não

demonstrada pressuposição segundo a qual o povo da Índia era

uno e que seria “blasfêmia” dividi-lo. O Mahatma conhecia afraqueza de sua posição; quando dissera a Mountbatten “Mas a

Índia está comigo no dia de hoje”, a frase constituíra apenas uma

enunciação de fé, e ele não poderia esperar ser acreditado no que

dizia. Percebera que o fardo da prova caíra sobre seus próprios

ombros.

Gandhi, portanto, deixou Deli imediatamente depois de suas

conversações com o vice-rei e regressou a Bihar. A província, em

abril, estava tropicalmente quente, e ele mal podia suportar o

esforço exigido pelas extensas excursões que fazia às aldeias.

Entretanto, não dava grandes considerações ao próprio corpo. A

paz, em Bihar, “dissolveria” as desordens em Calcutá e em outras

partes. Sua mãe, que não recebera instrução, costumava dizer-lhe

que o átomo refletia o universo; se cada pessoa tomasse sob seuscuidados suas proximidades imediatas, o mundo seria um lugar

bem melhor. O general Shah Nawaz, cidadão muçulmano que

Gandhi deixara em Bihar quando fora para Deli, informara que os

muçulmanos estavam regressando às suas aldeias, de onde

haviam fugido. O Mahatma se sentiu feliz.

A essa altura, Nehru telegrafou a Gandhi, pedindo-lhe que se

dirigisse à capital federal; a Junta Executiva do Congresso estava

sendo convocada para uma decisão histórica: aprovar ou rejeitar a

formação do Paquistão. O Mahatma fez a viagem de mais de

oitocentos quilômetros no calor sufocante de um trem poeirento.

Nehru apoiava a aceitação da formação daquele Estado,

como a única evasiva de uma situação intolerável. Vallabhbhai

Patel hesitava. Teria preferido submeter à prova da força a ameaça

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de guerra civil de Jinnah, e suprimir, nesse ínterim, os tumultos,

por meio das armas. Por fim, porém, também concordou. Dois

anos e meio depois, explicou que “concordara com a divisão, por

ser esta a última tábua de salvação quando atingimos uma fasena qual poderíamos perder tudo”. A alternativa parecia ser: ou o

Paquistão ou a continuação da governança britânica.

Gandhi não fez segredo algum de sua mágoa, em

conseqüência da decisão do Congresso. “O Congresso”, disse ele,

numa reunião de preces, numa colônia de intocáveis, em Nova

Deli, no dia 7 de maio, “tinha aceito o Paquistão e solicitava a

divisão do Penjab, bem como da província de Bengala. Eu me

oponho a qualquer divisão da Índia, agora, como sempre me opus.

Mas, o que é que posso fazer? A única coisa que posso fazer é

desassociar-me de semelhante esquema. Ninguém pode forçar-me

a aceitá-lo, com exceção de Deus.”

A julgar pelas aparências, Deus não interferira no caso.

O Mahatma foi, então, ver Mountbatten, para ter com eleuma entrevista crucial. “Os britânicos”, aconselhou, “deviam sair

da Índia com suas tropas, e enfrentar o risco de entregá-la ao caos

ou à anarquia.” À primeira vista, isso parecia insensatez, mas, na

verdade, ocultava uma solução astuta: os britânicos, obviamente,

não poderiam abandonar a Índia sem governo; Gandhi disse a

Mountbatten que, se houvesse governo, deveria ser um governo

constituído pelos membros do Partido do Congresso; se a

Inglaterra se recusasse a isso, o Congresso se retiraria do gabinete

provisório; então, visto que a minoria da Liga Muçulmana não

conseguiria governar a Índia, contra a oposição do Congresso, a

Grã-Bretanha, a despeito de seu desejo de retirar-se, ver-se-ia

obrigada a ficar.

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Gandhi percebeu que era impossível para a Grã-Bretanha

fazer antagonismo à maioria, a fim de aplacar a minoria.

Conseqüentemente, se o Congresso não aprovasse a formação do

Paquistão, a Inglaterra não poderia criar esse Estado; e, se a

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Inglaterra não o criasse, não poderia haver Paquistão.

Essa estratégia, entretanto, exigiria que o governo britânico,

com o apoio do Congresso, enfrentasse a ameaça de violência feita

por Jinnah — coisa que não se sentia inclinado a fazer. Por outrolado, caso os britânicos abandonassem a Índia, o Congresso teria

de combater, sozinho, a Liga Muçulmana —, o que, tampouco, se

sentia inclinado a fazer.

 Tendo captado essas trágicas verdades, Gandhi atravessou,

apressado, o continente, rumando para Calcutá. O Paquistão não

nasceria, a não ser que a província de Bengala consentisse num

ato de cirurgia que lhe separaria os músculos dos ossos, o coração

do cérebro, o leste do oeste.

 — Quando tudo corre mal — perguntou Gandhi ao seu

auditório, em Calcutá —, pode a bondade do povo da camada mais

baixa fazer-se valer contra qualquer influência maléfica?

Esse foi seu sonho desesperado. A província de Bengala

tinha um idioma, uma cultura, uma história de resistência àdivisão de seu território, por obra dos britânicos, logo no começo

do século. Deixaria ela de se opor a Jinnah, agora?

Depois de seis dias de incessante trabalho, em Calcutá,

Gandhi viajou para Bihar. A despeito do calor tórrido, visitou

muitas aldeias. Seu refrão era sempre o mesmo: “Se os hindus

dessem mostras de possuir espírito de fraternidade, isto seria bom

para Bihar, para a Índia e para o mundo”.

“Ele está queimando a vela pelas duas extremidades”,

informou Sushila Nayyar, seu médico. O Mahatma esforçava-se no

sentido de deter a maré favorável à divisão. Se o esforço o

matasse, que importaria?

“Na Índia que se está formando nos dias de hoje, não há

lugar para mim”, disse ele, com voz trêmula de emoção. “Já

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renunciei à esperança de viver cento e vinte e cinco anos. Devo

durar, talvez, um ano ou dois.”

Entrementes, o governo britânico tomara sua decisão:

aceitaria a divisão, se as províncias de Bengala e do Penjabvotassem a favor da própria divisão. “Oponho-me naturalmente

tanto à divisão das províncias, como à divisão da própria Índia”,

declarou Mountbatten, pelo rádio, em Nova Deli. Ademais,

esclareceu ele, seu esquema “não excluía negociações entre as

comunidades, para a consecução de uma Índia unida”.

De Londres, Herbert L. Matthews telegrafou para The New

York Times, dizendo que “o sr. Gandhi constitui uma verdadeira

dor de cabeça, porque, se resolver ‘fazer jejum até a morte’, poderá

muito bem provocar a ruína do plano”.

Em 15 de junho de 1947, a Comissão Pan-indiana do

Congresso deu ao plano sua aprovação, pela maioria de cento e

cinqüenta e três votos contra vinte e nove, com algumas

abstenções. O Congresso já havia abandonado Gandhi. Opresidente do Congresso, J. B. Kripalani, num discurso franco,

explicou as razões disso:

“Vi um poço, onde mulheres e suas crianças, cento e sete

criaturas ao todo, se atiraram, para salvar a própria honra. Em

outro lugar — um lugar de adoração — cinqüenta moças foram

mortas por seus parentes masculinos, pela mesma razão... Essas

pavorosas experiências afetaram, sem dúvida, meu modo de

entender a questão. Alguns membros nos acusaram de haver

tomado essa decisão por decorrência do medo. Devo admitir o

fundamento da acusação, mas não no sentido em que ela foi feita.

O medo não é pelas vidas perdidas, nem pelo lamento das viúvas,

nem pelo choro dos órfãos, nem pelas muitas casas que se

incendiaram. O medo é de que, se continuarmos como até agora,

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tomando represálias e amontoando indignidades uns contra os

outros, nós nos reduziremos, progressivamente, a um estado de

canibalismo ou de coisa ainda pior...”

“Tenho estado em companhia de Gandhi durante estesúltimos trinta anos”, continuou Kripalani. “Juntei-me a ele em

Champaran. Nunca me desviei da lealdade para com ele... Mesmo

quando tenho divergido dele, sempre considerei seu instinto

político mais correto do que minhas atitudes laboriosamente

arrazoadas. Hoje, também sinto que ele, com seu supremo

destemor, está certo, e que o meu comportamento é errado.”

A maior parte dos opositores de Gandhi provavelmente

sentia o mesmo.

“Por que motivo, então, não estou com ele?”, interrogou

Kripalani.

Com efeito, por que motivo ele não seguia Gandhi, uma vez

que reconhecia que ele estava certo?

“É porque”, respondeu, “Gandhi não encontrou ainda amaneira de atacar o problema por um critério básico de massa.”

O país não estava respondendo ao apelo de Gandhi a favor

da paz e da fraternidade.

Esse foi o motivo pelo qual Gandhi não passou a jejuar. Um

 jejum até a morte impediria que o Congresso sancionasse a

divisão. O que aconteceria, então? O fato desconjuntada o Partido

do Congresso, que ele alimentara para que passasse a governar a

Índia. Poderia fazer isso, de qualquer maneira, se o povo estivesse

com ele.

“Ainda que apenas a Índia não-muçulmana estivesse

comigo”, afirmou o Mahatma, “eu conseguiria o modo de desfazer

a divisão proposta.” Mas a Índia não-muçulmana havia desertado

de junto dele. “Não concordo com o que os meus amigos mais

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íntimos fizeram, ou estão fazendo”, declarou o Mahatma.

“Trinta e dois anos de trabalho”, esclareceu Gandhi,

“chegaram a um fim inglório. É preciso ter muita coragem para

dizer isso, e dizê-lo em público.” Foi preciso uma coragem aindamaior para continuar a trabalhar em meio aos destroços de uma

obra que durara uma vida toda. Gandhi, nessa fase, se guindou a

uma altura suprema.

31Gandhi rastela o seu jardim

O Mahatma Gandhi fracassou na tarefa de impedir a divisão

da Índia, porque as divergências religiosas eram mais fortes do

que as coesões nacionalistas. Os demagogos apelavam, com mais

êxito, para os sentimentos que separavam os hindusmuçulmanos, do que Gandhi, Nehru e outros podiam fazê-lo para

os interesses que deveriam uni-los. Os cristais do nacionalismo

hindu ainda não se encontravam estruturados e coesos numa

massa suficientemente dura, capaz de impedir que o machado da

religião a cortasse em duas partes. A Grã-Bretanha assegurara

liberdade nacional à Índia, antes que a Índia se houvesse

transformado em nação; conseqüentemente, a Índia se

transformava em duas nações. Dessas duas, o Paquistão integrava

uma comunidade religiosa debatendo-se para se erguer à

categoria de nação, e a República indiana não passava de uma

quase-nação perturbada por isolacionismos provinciais, diferenças

lingüísticas e ódios religiosos. Gandhi era, na verdade, o pai de

uma nação ainda não nascida.

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Como todos os seres humanos, Gandhi deve ser medido por

aquilo a que aspirava; queria uma nação indivisível, conduzida e

povoada por grandes personalidades, livre e destemida, num

mundo similarmente constituído. Não estava disposto a aceitarmenos do que isso. No último ano de sua vida, portanto, Gandhi

deve ser julgado, também, por aquilo a que não aspirava. Seu

objetivo nunca havia sido o da expulsão dos britânicos, com a

correspondente substituição de seu governo por indianos. Uma

independência em duas peças, separadas pela religião, pelo ódio e

pela ambição de poder, e entregues a um mar de sangue, não lhe

proporcionava prazer algum. O Mahatma tinha a força e a

coragem de a rejeitar; essa é a verdadeira dimensão de sua

grandeza. A Índia conseguiu sua independência no dia 15 de

agosto de 1947, mas Gandhi anunciou: “Não posso participar das

comemorações”. Encontrava-se ele em Calcutá, de novo lutando

contra os tumultos. Convidado a ir à capital, a fim de assistir ao

surgimento oficial da vida da nação, declinou do convite e nãoenviou mensagem alguma ao país. Durante aquele dia inteiro,

 jejuou e rezou. “Há perturbações por perto”, escreveu a Rajkumari

Amrit Kaur, no dia seguinte. Em meio às festividades, seu coração

se sentia pesado e seu espírito, triste. “Haverá alguma coisa

errada em mim?”, perguntava-se ele, “ou será que as coisas estão,

de fato, caminhando mal? Encontro-me muito longe da condição

de equanimidade.” Seu desapego, pregado pelo Gita, estava

claudicante. Contudo, sua fé nunca o abandonou. “Nenhuma

causa, que seja intrinsecamente justa, pode jamais ser descrita

como perdida.”

Gandhi escreveu outra carta a Rajkumari, em 29 de agosto:

“A humanidade é um oceano. Se umas poucas gotas do oceano se

sujam, nem por isso o oceano fica sujo”. O Mahatma conservava

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sua fé na humanidade e em si mesmo. “Sou um combatente nato,

que não conhece o fracasso”, esclareceu, numa reunião de preces,

em Calcutá. A divisão era um fato, mas “sempre é possível, por

meio da conduta correta, diminuir um mal, e, em certa altura,fazer com que o bom surja do que é mau”.

Ele também voltava seu sentido perscrutador para seu

íntimo. “Estou andando às apalpadelas, hoje”, afirmou. Estava

cheio de “perguntas penetrantes”. A Kurshed Naoroji escreveu:

“Posso fazer eco à vossa prece, para que eu realize a paz e me

encontre a mim mesmo. Trata-se de tarefa difícil, mas estou

procurando efetuá-la. Oh, Deus! Conduzi-nos da escuridão para a

luz!” Gandhi aproximava-se de seu septuagésimo oitavo

aniversário. O mundo que construíra jazia parcialmente em ruínas

a seu redor. Contudo, preparava planos para o futuro.

São Francisco de Assis estava rastelando seu jardim, quando

alguém lhe perguntou sobre o que ele faria se, de súbito, viesse a

saber que teria de morrer antes do pôr-do-sol, naquele mesmo dia.“Eu acabaria de rastelar meu jardim”, respondeu ele.

Gandhi continuou a rastelar seu jardim.

32

Amor sobre águas revoltas

A presença de Gandhi em Calcutá, durante o mês de agosto

de 1947, acalmou a tempestade inter-religiosa; e os jornais

prestaram homenagem ao mágico envolto num lençol. Mas a

divisão de Bengala, prejudicial para muçulmanos e hindus, de

novo os lançou em louco frenesi. A divisão deu origem a mais

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problemas do que aqueles que solucionou. Lá pelo fim do mês, o

mar de ódio cresceu e inundou a própria residência onde Gandhi

se encontrava hospedado. Ele acabara de ir para a cama, na noite

de 31 de agosto, quando um grupo descontrolado de hindus,carregando o corpo de um hindu que se dizia haver sido

apunhalado por muçulmanos, irrompeu dentro da casa, aos

brados. Os membros do grupo quebraram vidraças com pedras e

socos; vibraram pontapés contra as portas; e procuraram

danificar a instalação elétrica. Gandhi levantou-se da cama, para

os apaziguar. “Comecei a gritar com eles”, narrou o Mahatma,

numa carta datada do dia seguinte, dirigida a Sardar Vallabhbhai

Patel, “mas quem estava em condições de ouvir?” Os muçulmanos

formaram um círculo para o proteger com seus corpos. Um tijolo

foi atirado contra Gandhi. O tijolo alcançou um muçulmano que

se encontrava de pé, ao lado de Gandhi. Um dos amotinados

brandiu um pau, longo e fino, que por muito pouco deixou de

atingir o Mahatma na cabeça. Gandhi abanou a cabeça,entristecido. Por fim, chegou a polícia; o chefe da polícia apelou

para Gandhi, a fim de que se retirasse para seu quarto. Lá fora, os

policiais dispersaram a multidão com bombas de gás

lacrimogêneo.

O Mahatma resolveu jejuar. Numa declaração dirigida à

imprensa, no dia 1.° de setembro, disse: “Fazer ato de presença,

em face de uma multidão ululante, é coisa que nem sempre dá

resultados. Por certo, não deu resultados na noite passada. O que

minha palavra, proferida por mim em pessoa, não pôde fazer,

talvez meu jejum faça. O jejum tocará o coração de todas as

facções que se digladiam no Penjab, se o fizer em Calcutá.

Portanto, começarei a jejuar a partir das oito e quinze esta noite,

para concluir somente se e quando a tranqüilidade voltar a

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Calcutá”. Era um jejum até a morte.

Os grupos de pessoas começaram a afluir para a residência

de Gandhi, no dia 2 de setembro. Fariam fosse lá o que fosse, para

lhe salvar a vida — ao que diziam. Essa era uma interpretaçãoerrada, explicou ele. Seu jejum “tinha intenção de sacudir a

consciência e de remover a preguiça mental”. Salvar-lhe a vida era

coisa secundária, posterior à mudança de sentimentos. Vários

muçulmanos preeminentes apareceram, e também um funcionário

da União dos Marinheiros do Paquistão compareceu, para lhe

assegurar que todos trabalhariam em prol da harmonia inter-

religiosa. No dia 4 de setembro, a municipalidade informou que a

cidade estivera absolutamente em paz, durante vinte e quatro

horas. Quinhentos policiais, inclusive seus oficiais britânicos,

haviam começado um jejum de solidariedade, de um dia, mesmo

permanecendo em serviço. Matadores brutais, chefes de bandos

de rufiões, aproximaram-se da cabeceira de Gandhi, e choraram,

ao contemplar-lhe o corpo esquelético; juraram abster-se dedepredações. Muitas deputações hindus, muçulmanas e cristãs,

de comerciantes e de operários, fizeram voto, na presença do

Mahatma, assegurando que não haveria mais desordens em

Calcutá. Gandhi acreditou naquela gente; dessa vez, porém, quis o

voto por escrito. E, antes que os presentes assinassem, disse o

Mahatma, eles deviam ficar sabendo que, se o voto fosse violado,

ele daria início a um “jejum irrevogável”, que se concluiria

somente com sua morte. Os presentes retiraram-se, deliberaram e

assinaram. Gandhi, em conseqüência, interrompeu seu jejum de

setenta e três horas.

A partir daquele dia, através de muitos meses durante os

quais o Penjab e outras províncias foram sacudidas por massacres

religiosos, a cidade de Calcutá, bem como os grupos muçulmanos

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e hindus da dividida província de Bengala, se mantiveram livres

de desordens. Bengala manteve sua palavra para com o Mahatma.

No dia 7 de setembro, Gandhi deixou Calcutá, rumando para

o Penjab. Um outro setor de seu jejum requeria o rastelo. Naviagem, o trem parou em Deli, onde Sardar Patel, o ministro da

Saúde Rakcumari Amrit Kaur, e várias personalidades associadas

foram ao encontro de Gandhi com as trágicas notícias de que os

tumultos se repetiam por toda Deli.

O Mahatma deixou o trem. Os amigos disseram-lhe que ele

não poderia ficar em segurança nos bairros dos intocáveis, que

podiam ser facilmente varridos pelos assassinos profissionais.

Gandhi, por isso, instalou seu acampamento na “palaciana

comunidade Birla”, como ele a denominou.

Os serviços vitais, tanto em Nova Deli como em Deli, a velha,

foram interrompidos pelas desordens; nada de vegetais, de leite,

de frutas frescas. As duas cidades se assemelhavam a “uma

cidade dos mortos”. Os refugiados hindus e siques, procedentes doPenjab, começaram a entrar em Deli, aos milhares, levando

consigo narrativas ora autênticas ora exageradas de atrocidades

praticadas pelos muçulmanos; isso incitou as represálias contra

os muçulmanos de Deli, às quais os refugiados se associaram

entusiasticamente. O assassinato espalmou-se pelas ruas, e

ninguém estava imune.

Em Okla, aldeia a cerca de vinte e dois quilômetros da

cidade, numa região repleta de tradição muçulmana e rica em

ruínas de antigas fortalezas e mesquitas da civilização mongol,

ficava a Jamia Millia Islamia, escola muçulmana de preparação

para os cursos secundários. A escola era dirigida por um amigo de

Gandhi, o dr. Zakir Hussain, educador bem-posto, de longa barba,

possuidor de uma bela cabeça e de um coração nobre. Desde

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agosto de 1947, a escola se encontrava engolfada num mar de

refugiados siques e hindus, todos enfurecidos; havia, ademais,

uma vizinhança composta de camponeses para os quais tudo o

que era islâmico, fosse criatura humana ou edifício, não mereciamais do que ódio. À noite, os estudantes e os professores

montavam guarda, esperando um assalto de hora em hora. Num

círculo a seu redor, podiam ver aldeias e residências muçulmanas

incendiadas. Nas proximidades, corria o rio Jumna. Noite após

noite, ouviam muçulmanos pular, gemendo, para as águas, a fim

de fugir a seus perseguidores; depois, os perseguidores pulavam

no rio atrás deles; verificavam-se lutas e baques; a vítima era

conservada com a cabeça debaixo da água até afogar-se ou até

emitir um último grito desesperado, enquanto uma faca lhe tocava

a garganta nua. Fechando-se cada vez mais, o círculo de violência

aproximava-se da escola apavorada. Numa noite escura, chegou

um automóvel de praça ao pátio de Jamia Millia. Do carro desceu

 Jawaharlal Nehru. Com sua característica coragem física, suahabitual despreocupação, havia viajado sozinho, guiando o veículo

e atravessando a faixa formada pela multidão enlouquecida até a

ameaçada escola muçulmana, com o propósito de passar a noite

em companhia do dr. Zakir Hussain e proporcionar-lhe proteção.

Quando Gandhi teve notícia do perigo em que se encontrava a

escola, saiu de automóvel, passou uma hora com o dr. Hussain, e

discursou para os estudantes. Sua presença tornou o lugar como

que sagrado. Depois disso, a escola ficou a salvo.

Na viagem de regresso à Comunidade Birla, Gandhi visitou

vários acampamentos de refugiados. Insistiu-se em que ele

tomasse uma guarda pessoal armada; os hindus e os siques,

enlouquecidos pelos assassínios e pelos raptos de pessoas que

lhes eram caras, poderiam atacá-lo, como se ele fosse pró-

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muçulmano. Gandhi seguiu sem escolta. A essa altura, o

Mahatma desenvolveu energia desordenada, empreendendo

inspeções diárias aos campos de concentração de refugiados nas

redondezas da cidade e percorrendo várias vezes por dia suasvizinhanças em tumulto. Choveu no dia 20 de setembro. “Estou

pensando hoje no pobre refugiado de Deli”, narrou ele, em sua

reunião de preces, “tanto no Penjab oriental (na República

indiana), como no Penjab ocidental (no Paquistão), enquanto

chove. Tive notícia de que uma coluna humana de cerca de

noventa quilômetros está despejando gente na União indiana, que

procede do Penjab ocidental”, disse ele. “Sinto calafrios, ao pensar

que isso pode acontecer. Uma coisa dessas não tem paralelo na

história do mundo e faz com que eu curve a cabeça ao peso da

vergonha, como também deveria fazer com que vós curvásseis a

vossa.”

Gandhi não estava exagerando. A coluna humana de cerca

de noventa quilômetros era uma dentre muitas, na GrandeMigração; nela, quinze milhões de infelizes seres humanos

percorreram centenas de milhas para longe de seus lares, a

caminho do desconforto, da doença, da morte. Para fora da parte

do Penjab entregue ao Paquistão, rumando para o oriente, em

direção a Deli, saíam milhões de hindus e de siques, fugindo aos

punhais e aos bastões dos muçulmanos. Para fora da União

indiana, rumando para o Paquistão, saíam milhões de

muçulmanos, temendo as adagas e os dardos dos hindus e dos

siques. Uns poucos policiais e jovens voluntários eram tudo o que

distinguia as referidas colunas das figuras desordenadas do povo

em pânico. Muitos fugiam em seus carros de bois; os que nunca

haviam possuído um carro desses, ou os que o haviam possuído

mas tinham sido despojados de sua propriedade, marchavam a

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pé; famílias inteiras caminhavam pelas estradas poeirentas,

durante semanas; os adultos carregavam as crianças; os homens

carregavam os fracos e os aleijados em cestos; os velhos eram

levados ao ombro. Com freqüência, os enfermos e os decrépitoseram abandonados à beira da estrada, e lá deixados a morrer. A

cólera, a varíola e doenças mortais desse tipo dizimavam as

hordas migradoras. Os cadáveres, no chão, e os corvos a fazer

círculos sobre eles, assinalavam-lhes a rota. Por vezes, duas

colunas hostis, avançando em direções opostas, se encontravam,

e, a despeito das energias combalidas e das miríades de

preocupações, prosseguiam em suas insensatas vinganças

recíprocas, nos campos arados. O Penjab, celeiro da Índia, morria

à míngua, com seu trigo precioso e abundante, pisado e calcado

para dentro da terra por milhões de pés cansados. A União

indiana sentia a garra da fome. O governo de Nehru organizou

acampamentos, fora de Deli, destinados a receber os migrantes,

antes que eles conseguissem inundar a cidade. Ainda assim,milhares e milhares de pessoas fugiam através dos cordões

policiais; iam saquear armazéns, dormir em portais, em alpendres,

em sarjetas, em templos, em lares abandonados; e, por essa

forma, desorganizavam a vida da capital e os serviços do governo.

Reduzidas a um tipo primitivo de viver, as pessoas deslocadas se

viam impelidas por paixões também primitivas, que contagiavam

até as pessoas que se encontravam em situação diferente.

Nessa cidade de loucos e de mortos, o Mahatma Gandhi

procurou difundir o evangelho do amor e da paz. Interpôs-se à

torrente das paixões em ebulição, e falou, com apoio na razão fria:

os muçulmanos molestados deviam ficar; “os hindus e os siques,

que os molestassem, desacreditariam sua própria religião,

causando danos irreparáveis à Índia”; os portadores de armas

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deviam entregá-las a ele; “pequenas somas me foram entregues

espontaneamente”. Gandhi aventurou-se a comparecer a um

comício de quinhentos membros da Rashtriya Sevak Sangha, ou

RSS,  corporação paramilitar de hindus militantes, altamentedisciplinada e ferozmente antimuçulmana, e disse, aos presentes,

que eles próprios destruiriam o hinduísmo, por força de sua

intolerância; as atrocidades praticadas pelo Paquistão não

constituíam justificativa para as atrocidades levadas a efeito pelos

hindus; “nada se lucra, retribuindo-se o mal com o mal”; na

realidade, o Mahatma era amigo dos muçulmanos e também dos

hindus e dos siques; “parece que os dois lados enlouqueceram”.

Depois desse discurso, disse que responderia a perguntas.

“Permite o hinduísmo o assassínio e os maus-tratos?”,

indagou um membro da RSS.

“Um malfeitor não pode punir outro”, respondeu Gandhi.

Durante o dia todo, o Mahatma cruzou e recruzou a cidade,

correndo para setores onde, ao que o informavam, se estavamreunindo multidões sedentas de sangue. O enfurecido mar

humano se dividia, quando ele o atravessava; punha-se de

semblante sorridente e de mãos como que postas, palma contra

palma, no ato tradicional de bênção. As ondas de ódio se

acalmavam. Gandhi esteve presente a uma comemoração que

reunia cem mil siques barbados, com as respectivas famílias — e

condenou-lhes as violências praticadas contra os muçulmanos. Os

siques tinham estado a beber e a provocar tumultos, acusou ele.

“Conservai limpos vossos corações e descobrireis que todas as

outras comunidades vos seguirão o exemplo.” Nas reuniões de

prece, Gandhi coletava dinheiro para a compra de lençóis

destinados aos refugiados. Nos campos de refugiados, aconselhou

os internos a tecer e a limpar as coisas e os lugares de que se

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respondeu Gandhi, simplesmente. — Devemos reconhecer o fato

de que a ordem social dos nossos sonhos não pode vir através do

Partido do Congresso atual... Há tanta corrupção, na atualidade,

que o caso me apavora. Todos querem levar grande quantidade devotos em sua algibeira, porque os votos dão o poder.

Kripalani descreveu a situação como “burocratismo,

empreguismo, corrupção, suborno, mercado negro e ganância”.

A despeito da manifesta desilusão de Gandhi quanto ao

Congresso e ao governo, ele ainda constituía a chave da política na

Índia; e os ministros, de Nehru para baixo, o consultavam

regularmente. O Mahatma, entretanto, ansiava por campos mais

vastos de atividade. Esperava poder ir ao Penjab e ao Paquistão, a

fim de os pacificar. Os planos para sua viagem ao Paquistão já se

encontravam em elaboração. Contudo, hesitava em sair de Deli.

As violências esporádicas prosseguiam. Um comerciante

muçulmano, pensando que as coisas já se houvessem acalmado,

abrira as portas de sua loja; uma bala o abateu. Ainda não haviasegurança para os muçulmanos que saíssem à rua, na maioria

dos setores da cidade. Intuitivamente, Gandhi percebeu a

possibilidade de se renovarem os tumultos. Resolveu jejuar. “Veio-

me essa idéia, num clarão”, disse ele, e anunciou o jejum sem

consultar Nehru, Patel ou o médico. Esse foi seu último jejum, e

imprimiu uma imagem de bondade no cérebro da Índia.

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33

A vitória é para quem está pronto

a pagar-lhe o preço

O Mahatma Gandhi começou seu último jejum na manhã de

13 de janeiro de 1948. Deu-lhe o nome de “jejum dos jejuns”, até a

morte se necessário fosse, dirigido à “consciência de todos”,

hindus e muçulmanos, nas duas partes da Índia dividida. Se

todos respondessem, ele se sentiria feliz; se um grupo, como por

exemplo o dos siques, respondesse, consideraria isso um milagre e

iria, então, para o meio dos siques e passaria a viver entre eles.

Sabia que poderia morrer, “mas a morte, para mim, seria uma

gloriosa libertação, preferível a transformar-me em testemunha

impotente da destruição da Índia, do hinduísmo, do siquismo e do

islamismo”. Seus amigos não deveriam preocupar-se: “Estou nas

mãos de Deus”.

No primeiro dia, dirigiu-se a pé para sua reunião de preces,

no pátio da Comunidade Birla, e realizou os serviços religiosos,

como de costume. Alguns o acusaram, disse ele, de estar jejuando

a favor dos muçulmanos. Eles estavam certos. “Durante toda a

minha vida, estive, como todos deveriam estar, do lado das

minorias e dos necessitados... Espero uma purificação integral dos

corações.” Não importava o que os muçulmanos do Paquistão

estavam fazendo. Os hindus e os siques deviam recordar-se da

canção favorita de Tagore: “Se ninguém responde ao teu chamado,

caminha sozinho, caminha sozinho”.

No segundo dia, os médicos lhe disseram que não fosse às

preces; por isso, ele ditou uma mensagem para ser lida à

congregação. Mas quando a hora das preces chegou, não pôde

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resistir, e foi para lá. O jejum, explicou o Mahatma, era pela

purificação de todos; dele, em primeiro lugar. “Suponhamos que

haja uma onda de autopurificação por todas as partes de ambas

as Índias!”, exclamava ele, esperançoso. Uma verdadeira amizadeentre as religiões o faria “pular como uma criança”, e, então, seu

desejo de viver cento e vinte e cinco anos renasceria.

Gandhi repeliu os médicos. Não desejava ser examinado.

Recusou-se a beber água, com ou sem sal, ou suco de fruta

cítrica. Seu peso caía um quilo por dia. Seus rins funcionavam

mal, e Gandhi começava a perder forças. Não se incomodou com

isso; “Entreguei-me a Deus”.

No terceiro dia, submeteu-se a uma lavagem do cólon. Às

duas e meia da madrugada, acordou, pediu um banho quente, e,

na banheira, ditou a Pyarelal uma declaração insistindo em que o

governo de Nehru pagasse ao Paquistão quinhentos e cinqüenta

milhões de rupias, ou cento e vinte e cinco milhões de dólares,

correspondendo à parte do Paquistão nos haveres da antiga Índiaunida. Mais tarde, naquele dia, o dr. John Matthai, ministro das

Finanças do governo de Nehru, o próprio Nehru em pessoa e

Sardar Vallabhbhai Patel visitaram Gandhi, a fim de lhe

explicarem as razões pelas quais o gabinete votara contra aquele

pagamento. Em primeiro lugar, o dr. Matthai e Nehru explicaram

suas razões; a seguir, Patel falou durante uma hora e meia,

 justificando a recusa. Quando Patel terminou, Gandhi sentou-se

em seu catre e disse: “Sardar, vós não sois mais o Sardar que eu

conheci”, e rompeu em pranto. Matthai, Nehru e Patel, à vista

disso, retiraram-se e convocaram outra reunião do gabinete que,

depois de ouvir o relato da reação do Mahatma, votou a favor do

pagamento dos cento e vinte e cinco milhões de dólares. A soma

foi paga.

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Durante grande parte desse dia, uma fila infinita de indianos

e de estrangeiros, milhares e milhares, passou a três metros de

distância do catre de Gandhi, no pátio interno da Comunidade

Birla. O Mahatma ficava a maior parte do tempo em posiçãoagachada, como um embrião, com os joelhos para cima, na

direção do estômago, e os punhos abaixo do peito. O corpo e a

cabeça estavam completamente cobertos por um lençol branco,

feito de fazenda tecida em casa, que lhe emoldurava o rosto. Os

olhos conservavam-se fechados, e o Mahatma parecia estar

dormindo ou em estado de semiconsciência. Um sofrimento agudo

se estampava em sua fisionomia. Ainda assim, de qualquer

maneira, mesmo no sono ou na semiconsciência, o sofrimento

parecia sublimar-se; era um sofrimento atenuado pela exaltação

da fé e moderado pela consciência da devoção. Gandhi afigurava-

se plenamente em paz consigo mesmo; e, quando acordava, sorria.

 Tentou ir à reunião de preces, mas não conseguiu ficar de pé; em

conseqüência, de seu leito, falou por um microfone ligado a umalto-falante que se encontrava no pátio onde se faziam as preces e

a uma cadeia nacional de rádio, que transmitiu sua palavra a

todas as regiões do país. “Não vos preocupeis com o que os outros

estão fazendo”, comentou, com voz fraca. “Cada um de nós deveria

voltar a vista para dentro de si e purificar o coração tanto quanto

possível. Estou convencido de que, se vos purificardes

suficientemente, auxiliareis a Índia e encurtareis o período de meu

 jejum.” Mas os indianos não deveriam pensar primacialmente

nele. “Não. Ninguém pode fugir à morte. Assim sendo, por que

razão recear a morte? Na verdade, a morte é uma amiga que traz a

libertação do sofrimento.” Nesse momento, Gandhi teve um

colapso, e o resto de sua mensagem foi lido para ele. Os médicos

advertiram o Mahatma, no quarto dia do jejum, assegurando-lhe

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que, mesmo que sobrevivesse, passaria a sofrer permanentemente

de séria lesão. Estivera sem beber água, e seus rins não estavam

funcionando. Desprezando a advertência, falou à reunião de

preces pelo microfone durante dois minutos e jactou-se de “nuncame haver sentido tão bem no quarto dia de qualquer jejum”. Sua

voz parecia também mais forte.

Em 17 de janeiro, seu peso estabilizara-se em cerca de

cinqüenta quilos. Mandou que Pyarelal fosse à cidade, a fim de

certificar-se de que havia segurança para o regresso dos

muçulmanos. Centenas de telegramas chegaram de marajás, de

muçulmanos do Paquistão e de todas as partes da Índia. Gandhi

sentiu-se gratificado, mas emitiu uma advertência segundo a qual

“nem os rajás, nem os marajás, nem os hindus, nem os siques,

nem quaisquer outras pessoas prestarão serviço a si próprio, nem

à Índia considerada como um todo, se nesta conjuntura, que é

para mim sagrada, procurarem iludir-se, tendo em vista a

cessação de meu jejum. Todos deveriam saber que nunca me sintotão feliz como quando jejuo para o espírito. Esse jejum me

proporcionou a felicidade mais elevada do que até agora tive.

Ninguém precisa perturbar esse estado feliz, a menos que possa

afirmar, franca e honestamente, que em sua jornada se voltou

deliberadamente de Satã para Deus”. No dia 18 de janeiro, o

Mahatma sentiu-se melhor, e permitiu que lhe fizessem uma leve

massagem. Seu peso permanecia nos cinqüenta quilos.

Desde que o jejum começara, às onze horas da manhã do dia

13 de janeiro, várias conferências foram realizadas, na residência

do dr. Rajendra Prasad, novo presidente do Congresso, tendo em

vista uma paz verdadeira entre os elementos divergentes, e não

apenas uma cessação de ataques violentos. Gandhi explicara-lhes

que meras promessas assentadas no papel não abalariam sua

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determinação de jejuar até a morte. Exigia garantias, além de

planos detalhados para sua execução. Os delegados não deviam

prometer mais do que aquilo que sabiam que os seus seguidores

estivessem prontos a conceder. Durante cinco dias, estiveram elespalestrando, debatendo, planejando, consultando colegas e cons-

ciências. Finalmente, na manhã do dia 18 de janeiro, cem

conferencistas hindus, siques, muçulmanos, cristãos e judeus,

mais os representantes da RRS,  juntamente com os dois hindus

mahasabha, contando-se igualmente o alto comissário do

Paquistão, Prasad, Nehru e Azad, todos se apresentaram perante

Gandhi. Prometeram, por escrito, “proteger a vida, a propriedade e

a fé” dos muçulmanos, bem como garantir sua livre circulação

pelas áreas onde temiam aparecer. As mesquitas lhes seriam

devolvidas; os refugiados hindus que nelas se haviam abrigado

seriam evacuados; e os homens de negócios muçulmanos que

haviam fugido ou que se haviam ocultado poderiam retornar à

atividade. Todas essas medidas deveriam ser tomadas sem oconcurso da polícia ou da força militar; o povo cuidaria delas.

Como evidência da seriedade da mudança, já se haviam registrado

cenas emocionantes de confraternização hindu-muçulmana; e tais

cenas foram descritas ao Mahatma, fatigado e em jejum.

Gandhi então ergueu-se no catre, fraco mas vibrante, e

discursou aos delegados. A imprensa havia relatado atrocidades

ocorridas em Allahabad, disse ele. Gandhi indicou claramente que

as RRS e os hindus mahasabha, cujos representantes se achavam

ali na sala, arcavam com a responsabilidade. “Se vós não podeis

fazer com que a Índia toda se conscientize de que os hindus, os

siques e os muçulmanos são irmãos”, declarou, “isso será de mau

agouro para os dois domínios. Que acontecerá à Índia, se os dois

se desentenderem?” Esse pensamento sacudiu o Mahatma, e as

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lágrimas começaram a rolar pelas suas faces encovadas. Os

presentes soluçavam. Quando Gandhi recuperou o controle de si

mesmo, sua voz estava excessivamente fraca e mal podia ser

ouvida; o Mahatma sussurrou suas observações ao ouvido do dr.Sushila Nayyar, que as foi repetindo em voz alta. Estariam eles

procurando iludi-lo? Estariam eles tentando salvar-lhe a vida?

Desejava ir ao Paquistão. Libertá-lo-iam por meio da conservação

da paz? Maulana Azad, líder muçulmano do Congresso, os porta-

vozes da RSS,  o embaixador do Paquistão e um sique fizeram

declarações tranqüilizadoras. Gandhi sentou-se em seu catre,

silencioso, e mergulhou em pensamentos. Nesse momento, estava

decidindo se devia ou não morrer. Anunciou que suspenderia o

 jejum. Em primeiro lugar, leram-se trechos das Escrituras parse,

muçulmana e japonesa; depois, o versículo hindu:

“Conduzi-me da inverdade para a verdade,

Das trevas para a luz,Da morte para a imortalidade”.

A seguir, as moças do ashram cantaram um hino hindu, e

Quando eu contemplo a maravilhosa cruz, hino cristão favorito de

Gandhi. Por fim, o Mahatma aceitou um copo contendo cerca de

duzentos e cinqüenta gramas de suco de laranja; lentamente,

bebeu-o. Interrompeu o ato de beber para dizer que, se as

promessas de paz fossem mantidas, isso lhe reavivaria o desejo de

chegar aos cento e vinte e cinco anos de idade ou talvez mesmo

aos cento e trinta e três. Naquela tarde, teve uma entrevista com

Arthur Moore, antigo redator do diário Statesman, de propriedade

britânica. Moore informou que Gandhi “se apresentava aliviado e

alegre; e seu interesse, enquanto esteve falando comigo, não se

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concentrava nele mesmo, e sim em mim; assediava-me com

perguntas de difícil resposta”.

Discursando na reunião de preces, daquela noite, Gandhi

interpretou as promessas como significando “Aconteça o queacontecer, haverá completa amizade entre hindus, muçulmanos,

siques, cristãos e judeus — uma amizade que não deverá mais ser

interrompida”. De que isso era mais do que a piedosa ilusão de

um homem em busca de bálsamo, foi testemunha Sir Mohamed

Zafrullah Khan, ministro do Exterior do Paquistão, que disse ao

Conselho de Segurança das Nações Unidas em Lake Success:

“Uma nova e imensa onda de sentimento e de desejo de amizade

entre os dois domínios está varrendo o subcontinente, em

resposta ao jejum”. Ele era de fato um mágico. Se, porém, os

políticos deixassem de interferir... O fim do jejum restaurou a

habitual alegria de Gandhi, e ele voltou ao trabalho, com vigor.

Encontrava novo apego à vida, porque havia destemidamente

enfrentado a morte.

34

Morte antes da prece

No primeiro dia depois do jejum, Gandhi foi conduzido às

preces, numa cadeira. Em seu discurso, que mal se podia ouvir

através do microfone, informou que um representante dos hindus

mahasabha, que acreditavam na supremacia hindu, e que haviam

sido os progenitores ideológicos da militante RSS, havia repudiado

o pacto de paz de Deli. Gandhi manifestou seu pesar por isso.

Enquanto o Mahatma discursava perante os que se haviam

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reunido para as preces, na noite seguinte, ouviu-se o barulho de

uma explosão. O auditório se agitou. “Não vos preocupeis com

isso”, apressou-se Gandhi a dizer. “Ouvi-me.” Uma granada de

mão havia sido atirada contra ele, por cima do muro do jardimvizinho.

No dia seguinte, Gandhi dirigiu-se, a pé, para o local das

preces — pela primeira vez, depois de concluído o jejum. Foram

enviadas a ele milhares de felicitações, asseverou Gandhi, por

haver permanecido calmo durante o incidente da bomba. O

Mahatma esclareceu o caso:

“Eu teria merecido elogios”, disse, “somente se tivesse

tombado em conseqüência de semelhante explosão e, ainda assim,

conservado o sorriso em minha face e nenhum rancor contra o

assaltante. Ninguém deveria olhar de cima para baixo para o

 jovem transviado que havia atirado a bomba. Provavelmente, ele

olha para mim como se eu fosse um inimigo do hinduísmo.”

O Mahatma pediu ao rapaz que se recordasse de que“aqueles que divergem de mim não são necessariamente maus”; e

solicitou à congregação que tivesse piedade do “infiel” e que

procurasse convertê-lo.

O jovem era Madan Lal, refugiado procedente do Penjab que

vivera numa mesquita de Deli até que a polícia, de acordo com o

pacto de paz feito com Gandhi, começara a desocupar os locais

muçulmanos de preces. “Vi com meus próprios olhos coisas

horríveis, no Paquistão”, testemunhou ele, no processo. “Fui

também testemunha ocular do abatimento de hindus, a tiros, nas

cidades do Penjab...” Enfurecido, participara de uma conspiração

da RSS destinada a matar Gandhi. Quando foi preso, depois que

sua granada de mão não chegou a atingir Gandhi, Nathuram

Vinayac Godse, seu companheiro de conspiração, chegou a Deli

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procedente de Bombaim. Godse, de trinta e cinco anos de idade,

era redator-chefe de um semanário hindu mahasabha, em Poona,

além de ser brâmane de elevada categoria. Godse, Madan Lal e

sete outros conspiradores foram processados juntos; o processodurou mais de seis meses. “Sentei-me e fiquei a meditar

intensamente sobre as atrocidades perpetradas contra o

hinduísmo, bem como sobre seu futuro, negro e fatídico, se

deixado a enfrentar o Islã por fora e Gandhi por dentro”, afirmou

Godse, ao fazer seu depoimento; “e... resolvi, de súbito, tomar a

medida extrema contra Gandhi.” O êxito do então recente jejum do

Mahatma estimulara, de modo especial, os planos de Godse e

Madan Lal. Sentiram-se atarantados diante da autoridade do

Mahatma e não encontraram armas contra isso. Lal, em seu

depoimento, declarou que ficara exasperado pelo pagamento dos

quinhentos e cinqüenta milhões de rupias ao Paquistão.

Depois da prisão de Lal (uma velha mulher, analfabeta, se

havia agarrado a ele, segurando-o até a chegada da polícia), Godsecomeçou a rondar a Comunidade Birla. No bolso de seu paletó

cáqui, escondia um pequeno revólver.

No domingo, dia 25 de janeiro de 1948, os participantes da

reunião de preces foram particularmente numerosos. Satisfeito

com o fato, Gandhi disse aos fiéis que fossem buscar esteiras de

palha ou panos grossos, tecidos em casa, a fim de se sentarem,

porque o chão no inverno é frio e úmido. Alegrava-lhe o espírito,

disse Gandhi, a notícia de que os hindus e os muçulmanos

estavam passando por uma fase de “reunião de corações”. Será

que cada hindu e cada sique que vier às preces daqui por diante

quererá trazer consigo “pelo menos um muçulmano”, como

manifestação concreta de fraternidade? Godse, de atalaia no seio

da multidão, não poderia ter concordado com isso. Por que razão

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 — ele e os seus companheiros de conspiração perguntaram —

deveriam os muçulmanos ir às preces dos hindus? Por que razão

deveria o Corão ser lido por um mahatma hindu? Se eles

conseguissem livrar-se de Gandhi, os muçulmanos ficariamindefesos, e, então, os hindus teriam liberdade de atacar o

Paquistão e reunir a Índia.

Godse estava encolerizado, mas contemporizou. Os ministros

do governo faziam pressão sobre Gandhi, para que aceitasse uma

guarda pessoal e permitisse que os fiéis fossem revistados. Essa

idéia repugnava Gandhi.

O primeiro-ministro Nehru e o deputado do primeiro-

ministro, Sardar Patel, não andavam muito de acordo a respeito

de vários assuntos. Eram opositores temperamentais. A disputa

entre os dois preocupava Gandhi. O Mahatma ficava a indagar se

eles poderiam permanecer juntos no mesmo gabinete ministerial.

Parecia que Gandhi teria de fazer uma escolha e pedir ao outro

que se demitisse. Os dois haviam entregue a situação nas mãos doMahatma. Gandhi amava Nehru e sentia-se seguro de sua

imparcial amizade para com os hindus, os siques e os

muçulmanos. Patel, entretanto, era estadista, além de ser hábil

administrador; sua saída paralisaria a governança. Por fim,

Gandhi resolveu contra a necessidade de sacrificar qualquer dos

dois; os dois eram indispensáveis um ao outro. De acordo com

isso, o Mahatma escreveu uma nota, em inglês, a Nehru, dizendo

que os “dois deveriam manter-se juntos”. Às quatro da tarde do

dia 30 de janeiro Patel ouviu igual mensagem da boca de Gandhi.

Às quatro e meia, a última refeição de Gandhi lhe foi servida;

compunha-se de leite de cabra, verduras cruas e cozidas, laranjas

e uma poção feita de gengibre, limão, um pouco de manteiga e

suco de babosa. Enquanto ele se alimentava, os outros

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conversavam. Já eram cinco horas. E Abha, sabendo da devoção

de Gandhi à pontualidade, levantou seu relógio niquelado.

“Preciso dividir-me em dois”, disse Gandhi a Patel. E saiu

rapidamente, a pé, para o ponto de reunião de preces.“Estou dez minutos atrasado”, observou a Abha e a Manu,

em cujos ombros se apoiava. “Tenho horror a atrasar-me. Devia

ter estado aqui às cinco em ponto.”

Assim dizendo, o Mahatma subiu rapidamente os cinco

degraus que o puseram ao nível do assoalho ocupado pelos fiéis,

para a prece. Gandhi encontrava-se, agora, a apenas poucos

metros da plataforma de madeira sobre a qual costumava sentar-

se durante os serviços religiosos. A maior parte dos presentes se

pôs de pé; muitos se acotovelaram para a frente, a fim de ficar

mais perto dele; os que se encontravam mais próximos curvaram-

se até seus pés. Gandhi ergueu os braços, sorriu e uniu as palmas

de suas mãos, no ato tradicional de saudação e de bênção.

Godse conseguira colocar-se na fila da frente; tinha a mãosobre o revólver, no bolso. Não alimentava ódio pessoal contra

Gandhi, declarou Godse no processo pelo qual foi condenado à

morte por enforcamento: “Antes de deflagrar os tiros, eu, na

verdade, desejei-lhe felicidade e curvei-me à sua frente, em

reverência”. Godse colocara-se na passagem pela qual Gandhi

deveria transitar e inclinara-se, Manu procurara afastá-lo dali,

para um lado, de modo que Gandhi pudesse começar os serviços

sem mais delongas, Godse empurrou-a para longe, e, plantando-

se a menos de um metro diante do Mahatma, atirou três vezes. O

sorriso desvaneceu-se do rosto de Gandhi; os braços do Mahatma

penderam-lhe dos lados do corpo.

“Oh, Deus!”, murmurou e caiu morto no mesmo instante.

Seu legado é a coragem, sua lição, a verdade, sua arma, o

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amor.

Sua vida é seu monumento.

Ele agora pertence à humanidade.

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O AUTOR E SUA OBRA  

O jornalista americano Louis Fischer esteve presente no centro

nervoso dos principais acontecimentos de nossa época. Interessado

na Revolução Soviética, seguiu para a Rússia em 1922 como

correspondente free lance. Durante catorze anos, observou as

transformações políticas e sociais ali ocorridas. Conheceu de perto

os principais líderes soviéticos e escreveu uma biografia de Lênin

que lhe valeu o National Book Award dos Estados Unidos. Sua

atitude inicial de entusiasmo transformou-se, pouco a pouco, em

amargo desapontamento. 

Nascido a 29 de fevereiro de 1896, em Filadélfia, formou-se

em pedagogia em 1916 e, em seguida, alistou-se como voluntário na

causa israelense pela reconquista de Jerusalém. Vinte anos mais

tarde, foi o primeiro americano a apresentar-se para lutar naGuerra Civil Espanhola pela causa republicana, juntando-se à

Brigada Internacional. O pacto entre a Alemanha e a União

Soviética, em 1939, e a invasão da Finlândia pelo exército russo

 foram o ponto final de suas esperanças revolucionárias. 

Retornou definitivamente aos Estados Unidos com sua esposa

russa, Bertha Mark, e seus dois filhos. Mas suas viagens pelo

mundo continuaram. A Índia passou a ocupar todas as suas

atenções, e Fischer tornou-se um grande admirador do Mahatma

Gandhi, que conheceu em 1942. Ao mesmo tempo em que convivia

com o grande líder indiano, devotava-se a conhecer a realidade do

 país. Dessa experiência, nasceu o livro “Gandhi, sua vida e

mensagem para o mundo”, publicado pela primeira vez em 1952.

Baseado nessa obra, o diretor inglês Richard Attenborough realizou,em 1982, o filme “Gandhi ”, que recebeu vários Oscars e conquistou

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sucesso mundial. 

Antes desse livro, Fischer já havia lançado uma biografia de

Gandhi: “The life of Mahatma Gandhi ”  (1950). Distinguindo-se

sobretudo como especialista em questões soviéticas, Fischercontinuou sua atividade de correspondente estrangeiro e ampliou

sua fama, proferindo inúmeras conferências sobre questões

internacionais. Foi também professor da Woodrow Wilson School,

da Universidade de Princeton. 

Ao morrer, a 15 de janeiro de 1970, deixava uma vasta obra,

da qual se destacam sua autobiografia, “Men and politics ” (1941), e

“Fifty years of soviet communism, an appraisal ”  (1968). Aí

transparece a coerência de um homem que lutou pelas causas em

que acreditava, mantendo sempre sua integridade através da

distância crítica diante de seus próprios engajamentos. Enfim, um

homem que viveu intensamente os grandes dilemas de seu tempo. 

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