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Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 51 • Janeiro – Março de 2010 Passado ditatorial na mira Pesquisadoras da UFRJ destacam importância do projeto que cria a Comissão Nacional da Verdade para o debate dos direitos humanos, mas criticam tentativa de igualar atos praticados pelos opositores do regime militar às práticas de torturas e mortes cometidas pelos agentes do Estado, entre 1964 e 1985. 13a 17 Adilson de Oliveira Civilização do automóvel: início do fim? Embora o petróleo ainda vá de- sempenhar papel-chave nas pró- ximas décadas, a superação do atual paradigma produtivo será inevitável no século XXI, segun- do Adilson de Oliveira, diretor- geral do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ. Para fugir do papel de produtor de bens de baixo conteúdo tecnológico e alto consumo energético, ele sugere que o Brasil invista maci- çamente em educação. Nesta entrevista, o professor ti- tular do Instituto de Economia (IE/UFRJ) também revela os seus planos para o Colégio em 2010. 3a 5 17a 19 Nova Barcelona? Escolhido sede dos Jogos Olímpicos de 2016, o Rio de Janeiro terá uma chance histórica de se reinventar. O desejo oficial é seguir o modelo da cidade espanhola que abrigou os Jogos, em 1992, mas o desafio de garantir um amplo legado socioesportivo ainda preocupa especialistas. Entrevista Maçu da Mangueira “Trago para este carnaval, um passado de grande valor. Quantas saudades do famoso Marcelino. Foi um grande mestre-sala, desde os tempos de menino. Brigão e arruaceiro, era o grande destaque do bloco dos arengueiros.” 24e 25 Guerreiras ainda no século XXI Há 100 anos, o 8 de março era oficialmente instituído como o Dia Internacional da Mulher. Apesar dos avanços obtidos no último século, as desigualdades de gênero ainda persistem, tornando indispensáveis as políticas públicas para a promoção da igualdade entre homens e mulheres. . 10a 12 O alvo mais fácil Pesquisa acerca de práticas policiais na Maré mostra que percepção social de que moradores de favelas são cidadãos de “segunda classe” e apelo midiático em favor da ordem pública legitimam ação violenta em comunidades pobres.

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Page 1: Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ ... · O professor deve se convencer de que ele veio para mudar o Brasil, as cabeças, as mentalidades.” MARIA YEDDA

Gabinete do Reitor • Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Ano VI • Nº 51 • Janeiro – Março de 2010

Passado ditatorialna miraPesquisadoras da UFRJ destacam importância do projeto que cria a Comissão Nacional da Verdade para o debate dos direitos humanos, mas criticam tentativa de igualar atos praticados pelos opositores do regime militar às práticas de torturas e mortes cometidas pelos agentes do Estado, entre 1964 e 1985.

13a 17

Adilson de Oliveira Civilização do automóvel:início do fim?Embora o petróleo ainda vá de-sempenhar papel-chave nas pró-ximas décadas, a superação do atual paradigma produtivo será inevitável no século XXI, segun-do Adilson de Oliveira, diretor-geral do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ. Para fugir do papel de produtor de bens de baixo conteúdo tecnológico e alto consumo energético, ele sugere que o Brasil invista maci-çamente em educação.Nesta entrevista, o professor ti-tular do Instituto de Economia (IE/UFRJ) também revela os seus planos para o Colégio em 2010.

3a 5

17a 19 Nova Barcelona?Escolhido sede dos Jogos Olímpicos de 2016, o Rio de Janeiro terá uma chance histórica de se reinventar. O desejo oficial é seguir o modelo da cidade espanhola que abrigou os Jogos, em 1992, mas o desafio de garantir um amplo legado socioesportivo ainda preocupa especialistas.

Entrevista

Maçu da Mangueira

“Trago para este carnaval, um passado de grande valor. Quantas saudades do famoso Marcelino. Foi um grande mestre-sala, desde os tempos de menino. Brigão e arruaceiro, era o grande destaque do bloco dos arengueiros.”

24e25Guerreiras ainda no século XXI

Há 100 anos, o 8 de março era oficialmente instituído como o Dia Internacional da Mulher. Apesar dos avanços obtidos no último século, as desigualdades de gênero ainda persistem, tornando indispensáveis as políticas públicas para a promoção da igualdade entre homens e mulheres..

10a 12O alvo mais fácilPesquisa acerca de práticas policiais na Maré mostra que percepção social de que moradores de favelas são cidadãos de “segunda classe” e apelo midiático em favor da ordem pública legitimam ação violenta em comunidades pobres.

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Janeiro – Março 20102 Janeiro – Março 2010Jornal da

UFRJ

Reitor Aloísio Teixeira

Vice-reitora Sylvia da Silveira Mello Vargas

Pró-reitoria de Graduação (PR-1) Belkis Valdman

Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (PR-2)

Ângela Maria Cohen Uller

Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento (PR-3)

Carlos Antônio Levi da Conceição

Pró-reitoria de Pessoal (PR-4) Luiz Afonso Henriques Mariz

Pró-reitoria de Extensão (PR-5) Laura Tavares Ribeiro Soares

Superintendência Geral de Administração e Finanças

Milton Flores

Chefe de Gabinete João Eduardo Fonseca

Forum de Ciência e CulturaBeatriz Resende

Prefeito da Cidade UniversitáriaHélio de Mattos Alves

Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) Paula Maria Abrantes Cotta de Melo

Coordenadoria de Comunicação (CoordCom) Fortunato Mauro

Fotolito e impressão Gráfica Posigraf - Grupo Positivo

25 mil exemplares

Av. Pedro Calmon, 550. Prédio da Reitoria – Gabinete do Reitor

Cidade Universitária CEP 21941-590

Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-1621

Fax: (21) 2598-1605 [email protected]

JORNAL DA UFRJ é UmA PUBlICAção mENSAl DA CooRDENADoRIA DE ComUNICAção DA UNIVERSIDADE FEDERAl Do RIo DE JANEIRo.

Supervisão editorial João Eduardo Fonseca

Jornalista responsável Fortunato mauro (Reg. 20732 mTE)

Edição e pautaAntônio Carlos moreira, Coryntho Baldez

e Fortunato mauro

Redação Aline Durães, Bruno Franco,

Coryntho Baldez, Diogo Cunha, márcio Castilho,Pedro Barreto

e Rafaela Pereira

Revisão mônica machado

Arte Anna Carolina Bayer

Ilustração Caio monteiro e

Jefferson Nepomuceno

Charge Zope

Fotosmarco Fernandes

Expedição marta Andrade

Instituições interessadas em receber essa publicação devem entrar em

contato pelo e-mail [email protected]

o Jornal da UFRJ publica opiniões sobre o conteúdo de suas edições. Por restrições de espaço as cartas sofrerão uma seleção e poderão ser

resumidas.

Calendário Acadêmico de 2010

90 anos da UFRJCalendário 2010

“Vou dizer algumas citações da minha filosofia do cotidiano. A primeira é: ‘A história é a mais importante das ciências’. Acho que foi o editor da correspondência de

Erwin Schrõdinger que disse isso, citando as idéias do próprio Schrödinger. Sei que sem história não há realidade objetiva.”

CESAR LATTES. Entrevista concedida, em 1995, à revista Ciência Hoje.Professor Catedrático da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (1967 a 1969)

“Perdemos e ganhamos muitas coisas ao longo dos anos.Hoje temos a certeza de que precisamos mudar a concepção de História

(...).A universidade tem que se abrir (...). O professor deve se convencer de que ele veio para mudar o Brasil, as cabeças, as mentalidades.”

MARIA YEDDA LINHARES. Entrevista concedida ao Jornal da UFRJ, em 2008.Professora Catedrática de História Moderna e Contemporânea da Faculdade Nacional de Filosofia da

Universidade do Brasil

Só o passado verdadeiramente nos pertence.O presente... O presente não existe:

Le moment oú je parle est déjà loin de moi.O futuro diz o povo que a Deus pertence.

A Deus... Ora, adeus! MANUEL BANDEIRA. Passado, presente e futuro. In: Estrela da Tarde

Professor de Literatura Hispano-Americana da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil

Neste ano de 2010, a Universidade Federal do Rio de Janeiro completará 90 anos de existência. Para rememorá-los, celebrá-los e debatê-los nada mais oportuno que revisitar nas lições de alguns de seus grandes mestres os melhores caminhos a percorrer. Com nosso passado nas mãos, podemos olharmo-nos desde “a mais importante das ciências”, como nos ensinou Cesar Lattes. Devemos realizá-lo, contudo, com uma História renovada, social e cultu-ral, “que se faz com fontes, com fatos, com memória”, conforme mostra Maria Yedda. E, já que – avisa-nos o poeta – “o presente não existe”, façamos deste recém-agora um instante transitório voltado para adiante.

A observação das imagens reunidas nesse calendário não encontrará síntese nem cronologia rigorosa. Contemplar-se-ão, contudo, nesse passado, presentes diversos cujos ecos alcançaram o futuro, então indefini-

do, dos dias de hoje. Assim é que os 90 anos da UFRJ valem não apenas por si, mas especialmente porque abrem o decênio que trans-

correrá até o seu centenário em 2020. Lá, nesse futuro, a universidade chegará reestruturada, integrada e aberta, tal como a concebemos hoje, em perspectiva.

Art. 1o O início e o término de cada período letivo regular obedecerão às

seguintes datas:

I - Primeiro período letivo para:

a) Os alunos dos Cursos de Graduação em geral da UFRJ (exceto para os

alunos dos itens b, c e d): de 22 de março até 24 de julho de 2010.

b) Os alunos ingressantes através do Concurso de Acesso 2010 aos Cursos de

Graduação para o primeiro período (exceto para os alunos do item d):de 29 de março

a 31 de julho de 2010.

c) Os alunos da Faculdade de Medicina (Rio) e dos Cursos de Medicina (Macaé), de

Nutrição (Macaé) e de Enfermagem e Obstetrícia (Macaé), exceto os ingressantes através do Concurso

de Acesso 2010 aos Cursos de Graduação para o primeiro período: de 1° de março a 31 de julho de 2010.

d) Os alunos da Faculdade de Medicina (Rio) e dos Cursos de Medicina (Macaé), de Nutrição

(Macaé) e de Enfermagem e Obstetrícia (Macaé), ingressantes através do Concurso de Acesso 2010

aos Cursos de Graduação para o primeiro período:de 29 de março a 14 de agosto de 2010.

II - Primeiro período letivo para o Colégio de Aplicação: de 8 de fevereiro a 16 de julho de 2010.

III - Segundo período letivo para os alunos dos Cursos de Graduação em geral da UFRJ (exceto

para os alunos do item IV):de 9 de agosto até 18 de dezembro de 2010.

IV - Segundo período letivo para:

a) Os alunos da Faculdade de Medicina (Rio) e dos Cursos de Medicina (Macaé), de Nutrição

(Macaé) e de Enfermagem e Obstetrícia (Macaé): de 16 de agosto de 2010 a 15 de janeiro de 2011.

V - Segundo período letivo para o Colégio de Aplicação: de 2 de agosto a 17 de dezembro de

2010.

VII - Período Especial: de 3 de janeiro a 26 de fevereiro de 2011.

* Conforme a Resolução 06/09, do Conselho de Ensino de Graduação (CEG), na sessão ordinária de

02 de dezembro de 2009. Acesse o Calendário Acadêmico 2010 completo em www.pr1.ufrj.br.

Aloisio Teixeira Reitor

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 3Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Brasil

A proposta do pre-sidente Luiz Iná-cio Lula da Silva de criar uma Co-missão Nacio-

nal da Verdade com o objetivo de examinar as violações de direitos humanos durante aquele período reabriu um debate delicado para a sociedade brasileira: a apuração dos crimes cometidos por agentes do Estado envolvidos em práticas de repressão política. A dificuldade do país em lidar com seu passado ditatorial ficou exposta diante da reação imediata de autoridades do próprio governo em relação a algu-mas diretrizes do projeto. Mais de 30 anos depois da Lei de Anistia – sancionada, em agosto de 1979, pelo último presidente do ciclo mi-litar, general João Batista Figueire-do – a fixação de responsabilidades por torturas e mortes contra pre-sos políticos ainda provoca muitas controvérsias.

A Comissão da Verdade inte-gra o pacote de medidas previs-tas no novo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), anunciado em dezembro de 2009. Dois pontos, em especial, geraram grande polêmica: a Diretriz 23, que dispunha sobre a apuração dos atos praticados no contexto de “repres-são política” e a 25, propondo a su-pressão de eventuais normas e leis autoritárias remanescentes do pe-ríodo 1964-1985 que violem os di-

Pesquisadoras da UFRJ destacam importância do

projeto que cria a Comissão Nacional da Verdade

para o debate sobre os direitos humanos, mas

criticam alguns pontos, principalmente a tentativa

de igualar atos praticados pelos opositores do

regime militar às práticas de torturas e mortes

cometidas pelos agentes do Estado, entre 1964 e 1985.

Comissão reabre debate sobre

Márcio Castilho

”“ O debate

em torno da criação de

uma Comissão da Verdade representa um avanço

para o resgate da memória política do

país.

reitos humanos. No primeiro caso, os críticos interpretaram que a ex-pressão “repressão política” exclui-ria a apuração de crimes praticados por grupos de esquerda que par-ticiparam da luta armada contra o regime. Já o outro ponto poderia significar, para os grupos alinhados com os setores militares, a revisão do processo de anistia recíproca.

A oposição ao texto original da comissão colocou em lados opostos membros da equipe do governo. De um lado, o autor da proposta, Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria Es-pecial dos Direitos Humanos, e, de outro, Nelson Jobim, ministro da De-fesa, que chegou a apresentar ao pre-sidente Lula uma carta de demissão, assinada também pelos minis-tros militares. O impasse levou o governo a retirar do texto ori-ginal o termo “repressão política” e a instituir um grupo de trabalho para elaborar um anteprojeto de lei acerca do tema. Essa comissão, “composta de forma plural e supra-partidária”, tem prazo até abril de 2010 para encaminhar a proposta ao presidente Lula. Posteriormen-te, a matéria será encaminhada ao Congresso Nacional para análise e votação.

Crime contra a humanidadePara Jessie Jane, professora do

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, o debate em torno da criação de uma Comis-

Aloisio Teixeira Reitor

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 4 Janeiro – Março 2010Brasil

Jornal da UFRJ: A reação de seto-res do governo quanto à proposta de criação da Comissão da Verdade demonstra a dificuldade do país em lidar com o seu passado ditatorial?

Mariléa Porfírio: Parece que sim, mas esta reação não é exclusiva da esfera governamental. São vários os setores da sociedade que apoiaram o período da repressão política e a violação dos direitos humanos. Gos-taríamos de salientar que, à época, a pauta dos direitos humanos volta-va-se contra o Estado. Hoje, com a democratização, ela deve constituir-se em agenda, embora, lamentavel-mente, o Estado seja hibridamente promotor e violador dos Direitos.

Jornal da UFRJ: A senhora defende a revisão da Lei de Anistia? Apesar dela ter representado uma política de esquecimento dos crimes cometi-dos durante a ditadura, para o senso comum, a Anistia promoveu a recon-

Entrevista

A diretora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), Mariléa Porfírio, afirma que a discussão acerca da Lei de Anistia deve se guiar em torno de uma “interpretação correta” quanto ao parágrafo que trata dos chamados “crimes conexos”. Segundo ela, com base em algumas interpretações de que foram anistiados todos os que cometeram crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política – “nesse caso, incluem-se os torturados” – pleiteia-se anistiar também assassinos, sequestradores e torturadores. “A Lei da Anistia não necessita ser revista. O necessário é interpretá-la corretamente. O Estado ainda continua sendo devedor para os brasileiros que lutaram para torná-lo democrático”, ressalta Mariléia. Nesta entrevista, a professora defende que o governo respeite tratados internacionais, como a Convenção Americana de Direitos Humanos, que torna imprescritível o crime de tortura.

ciliação nacional e foi uma etapa ne-cessária para a redemocratização do país. Qual a sua avaliação?

Mariléa Porfírio: A luta pela anistia ampla, geral e irrestrita mobilizou diferentes segmentos da sociedade e levou milhares de pessoas às ruas, ainda nos anos em que grassava o ter-rorismo de Estado. No entanto, em alguns momentos, parece que isto nunca existiu, que a Lei veio gracio-samente pela vontade dos governos militares de plantão. A Lei da Anis-tia acabou sendo restrita, parcial e limitada. Mais tarde, com a pro-mulgação da Carta Constitucional, em 1988, os crimes praticados pelo Estado foram reconhecidos como lesa-humanidade. A Lei da Anis-tia não necessita ser revista. O que se precisa é interpretá-la correta-mente. O Estado continua no papel de devedor com os brasileiros que lutaram por torná-lo democrático. A Anistia foi um acordo, que ainda

“A Lei da Anistia não necessita ser revista. O necessário é interpretá-la corretamente.”

são da Verdade representa um avanço para o resgate da memória política do país, mas deve servir também para a construção de um novo modelo que ve-nha a garantir efetivamente a proteção da vida e dos direitos humanos. “A comissão serve para conscientizar a sociedade de que a tortura e a violência do Estado são crimes imprescritíveis. Nesse momento, centenas de pessoas devem estar sendo torturadas. A tortura, que sempre foi um método absolu-tamente aceito em nossa sociedade, é um crime contra a humanidade”, afirma a historiadora. Ex-militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Jessie ficou nove anos presa na penitenciária feminina Talavera Bruce, no Rio de Janeiro, por sua participação política.

Victoria Grabois, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), do Centro de Filosofia e Ciências Huma-

nas (CFCH) da UFRJ, lembra que os grupos de extermínio ainda hoje atuantes, principalmente nas periferias das gran-des cidades, são uma herança dos chamados “esquadrões da

morte”, de onde saíram agentes que praticavam tortura para obter informações dos presos políticos. “Essa é uma discussão importante para a

sociedade. A nação precisa conhecer o que aconteceu para que esses fatos não se repitam”, complementa Victoria, que é vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.

Anistia recíproca?Salientando a importância do projeto para o debate sobre a questão dos

direitos humanos, as pesquisadoras fazem, no entanto, algumas ressalvas quanto à proposta de criação da Comissão da Verdade. Jessie Jane vê na deci-são do governo de retirar do texto a investigação de crimes cometidos no con-texto de “repressão política” uma tentativa de colocar militantes de esquerda e torturadores no mesmo patamar. Trata-se, segundo a historiadora, de uma leitura equivocada. “Os agentes do Estado prenderam, torturaram e assassi-naram. Aqueles que não foram mortos ficaram presos durante muitos anos. Houve impunidade”, afirma Jessie.

Para Victoria Grabois, a anistia favoreceu principalmente os agentes da repressão, cujos crimes não foram apurados. Segundo ela, os militantes de esquerda foram penalizados e alvo de perseguições durante a ditadura. “Os movimentos organizados pressionaram na época por uma Lei de Anistia am-pla, geral e irrestrita, mas ela foi parcial. Os militantes nunca esconderam participar da luta política e ideológica num regime de exceção, mas não sa-

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 5Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Entrevista não foi cumprido na sua totalidade. A principal questão imputa-se às in-terpretações que lhe foram emitidas quanto ao parágrafo que trata dos chamados “crimes conexos”. Várias interpretações atestam que por este parágrafo foram anistiados todos os que cometeram “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motiva-ção política”, nesse caso incluem-se os torturados. A partir dessa inter-pretação pleiteia-se anistiar assassi-nos, sequestradores, torturadores. Os atos praticados pelos opositores políticos ao Estado ditatorial termi-nam sendo igualados ao terrorismo perpetrado pelos agentes do Estado.

Jornal da UFRJ: O debate em tor-no da criação de uma Comissão da Verdade pode servir também para a construção de uma nova política de direitos humanos?

Mariléa Porfírio: Acreditamos que sim. A elaboração, a publicação e o debate que o Plano Nacional de di-reitos humanos (PNDH3) suscitou já são por si um excelente prenúncio de ampliação e discussão pública do tema dos Direitos Humanos, ainda

hoje bastante incompreendido. Por outro lado, enuncia que nossa de-mocracia e o Estado de Direito não existirão efetivamente sem o pleno respeito aos direitos humanos. Não é somente pela jurisprudência na-cional, mas em especial pela inter-nacional que não podemos deixar de considerar que quem viola os direitos hu-manos deve responder por seus crimes. Nesse caminho destaca-se a Corte Interamericana que ao interpretar que perpetuar a impuni-dade e impossibilitar o acesso à Justiça de vítimas e familiares, o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação corres-pondente ao que foi lesado, é uma afronta direta à Convenção Americana, em especial aos direitos humanos ali anunciados. Jornal da UFRJ: Qual a importância de o governo liberar o acesso a docu-mentos mantidos em sigilo pelos ór-gãos de inteligência militares?

Mariléa PorfírioMariléa Porfírio: Inúmeros agentes do Estado brasileiro hoje continuam efetivando práticas de violação dos direitos humanos, agora contra as camadas populares, residentes nas favelas e bairros de periferias de grandes cidades. É uma prática cor-riqueira e, aparentemente, aceita.

Também, como nos tempos da repressão ditatorial, são reali-zados sequestros, as-sassinatos, invasões de domicílios e tudo permanece inalterado. É também para que essa impunidade não continue sendo perpe-trada que os arquivos precisam ser liberados. Familiares, ex-perse-guidos políticos, pes-quisadores, universi-dades têm o direito de acesso irrestrito aos

documentos que registram a memó-ria do país. É a necessidade urgente do rompimento com o pacto do si-lêncio, com a injustiça continuada. É lançar luz para que a República e a democracia efetivamente aconte-çam. É uma trajetória que passa por

vários caminhos e um deles con-siste em pôr em prática a “Justiça de Transição”, pela qual o país ain-da nos é devedor.

Jornal da UFRJ: O que é exatamen-te a Justiça de Transição?

Mariléa Porfírio: Criada pelo Conselho de Segurança das Na-ções Unidas, a Justiça de Transi-ção prevê que os governos de pa-íses que passaram por um regime de exceção devam assumir quatro responsabilidades: dar acesso a in-formações e dados públicos para preservação da memória do perío-do; garantir reparação do prejuízo sofrido por cidadãos que tiveram seus direitos lesados pelo Estado; julgar e punir os responsáveis por crimes imprescritíveis contra a hu-manidade e não passíveis de anis-tia; e promover de mudanças nas instituições de Segurança Pública. Dos quatro aspectos, o Brasil só vem enfrentando apenas a ques-tão da reparação e, ainda, preca-riamente. Enquanto a verdade não for revelada em toda sua expres-sividade, a democracia plena será ainda um projeto a ser alcançado.

bemos quem foram os militares que torturavam e matavam nos órgãos pú-blicos. Mesmo depois da Lei de Anistia, muitos presos políticos continuaram respondendo a processos na Justiça Militar. Só foram anistiados com a pressão social”, recorda a pesquisadora do NEPP-DH, citando as manifestações popu-lares, a adesão do movimento operário e a importância da realização de greves de fome nas cadeias.

Abertura dos arquivosUm ponto fundamental na pauta de reivindicações

dos movimentos que lutam pela localização dos de-saparecidos políticos envolve a abertura dos arquivos da ditadura no período 1964-1985. A exemplo do lento processo de investigação dos abusos praticados pelo Estado nos chama-dos “anos de chumbo”, o país também está um passo atrás em relação a outras nações sul-americanas que passaram por regimes de exceção. Na Argentina, no Chile e no Uruguai, o acesso a documentos confidenciais está contribuindo para a elucidação das circunstâncias em que ocorreram diversos crimes políticos e a responsabilização dos culpados. Diferentes comissões formadas para discutir o passado ditatorial permitiram, por exemplo, ações contra os ditadores Jor-ge Rafael Videla (Argentina) e, mais recentemente, Augusto Pino-chet (Chile).

Jessie Jane defende a abertura dos arquivos das Forças Ar-madas e também das polícias militares que atuaram como forças auxiliares da repressão. “A abertura dos arquivos poderá fornecer novas luzes para a questão dos desaparecidos e o modus operandi desses es-quemas de repressão. No entanto, o acervo disponível já nos permite iden-tificar a forma como o regime se organizou para praticar terrorismo como uma política de Estado”, afirma a pesquisadora do IFCS.

O Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar (GEDM), começou a di-vulgar relatórios do Country Analysis and Strategy Paper (CASP) – docu-mentos foram produzidos por diversos setores da embaixada norte-ame-ricana no Brasil, pelo Departamento de Estado Americano e por outras agências daquele país. Os primeiros relatórios são referentes aos anos de 1967 e 1968. Em breve serão disponibilizados os documentos englobando 1972, 1973 e 1974.

“O Estado

ainda continua

devedor aos

brasileiros

que lutaram

para torná-lo.”

democrático.”

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 6 Janeiro – Março 2010Sociedade

Uma década em busca de

“outro mundo possível”

A edição 2010 do Fórum Social Mundial (FSM), realizada entre 25 e 29 de

janeiro, na região metropolitana de Por-to Alegre (RS), foi marcada pela avalia-ção dos dez anos do evento. Segundo números da organização do Fórum, 35 mil pessoas de 39 países se inscreveram nas 915 atividades realizadas por movi-mentos sociais, sindicatos, organizações não-governamentais (ONG) e demais membros da sociedade civil.

Se a primeira edição do FSM, em 2001, tinha como principal motivação realizar um contraponto ao Fórum Eco-nômico Mundial de Davos, na Suíça, a sensação, em 2010, foi de um amadure-cimento do debate e propostas mais con-cretas para o que ainda persiste como lema de todos os presentes: “outro mun-do é possível”. Além da capital gaúcha, outras seis cidades da Grande Porto Ale-gre sediaram debates e outras atividades:

Pedro Barreto

Canoas, Gravataí, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Sapiranga.

Modelo insustentávelO debate ambiental foi tema onipre-

sente em praticamente todas as mesas, dando a noção de que sem sustentabi-lidade não haverá futuro para o plane-ta. “O atual modelo econômico não é apenas injusto, como é insustentável, e a necessidade de mudança é urgente”, resumiu o sociólogo português Boa-ventura de Souza Santos. O professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra participou do seminário “Novos parâmetros de desenvolvimento”, ao lado de Marina Silva, senadora da República pelo esta-do do Acre, no dia 28, no Armazém 6 do Cais do Porto Alegre. A parlamentar citou números segundo os quais um au-mento de 1,5º C na temperatura média do planeta inviabilizará as condições de

vida humana. Outra estatística apresen-tada por Marina revela que existe hoje 20% da população mundial vivendo abaixo da linha de pobreza. “O mundo somente agora percebeu que estamos vivendo uma crise. Mas isto só aconte-ceu porque a bolha atingiu o coração do capitalismo mundial: os Esta-dos Unidos”, comentou a senadora. Boaventura criticou o modelo ne-oliberal de desenvolvimento econô-mico, liderado pelas grandes potências capitalistas do mundo e, que, segundo ele, não encontra resistência nem mes-mo nos países emergentes, tais como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China (cha-mados BRIC), que, segundo o sociólo-go, seguem os ditames econômicos do Primeiro Mundo. “O desenvolvimento que temos é calcado em um modelo po-lítico e econômico. Estamos assistindo à mercantilização dos bens mais básicos de vida: comida, água e o próprio ar. Pre-

cisamos parar de beber água na garrafi-nha”, enfatizou o sociólogo.

O professor evitou rechaçar o capi-talismo, mas ressaltou a importância de pensar por outra via. “Não estou dizendo que não possam existir empresas capita-listas, mas o que elas não podem é ditar todas as regras”, afirmou Boaventura, que também condenou os pensadores que decretaram o fim de conceitos como socialismo e revolução. “Mas o que é o socialismo do século XXI? Eu diria que é uma democracia sem fim. Não a democracia que temos hoje. Mas sim uma em que tenham voz os mais diversos movimentos sociais e cultu-rais”, completou o professor.

Papel das universidadesA solução estaria, portanto, em

uma mudança completa na consciên-cia dos mais diversos atores sociais. E, para Boaventura Santos, a univer-

Propostas mais concretas de

mudança social e de reformulação

do papel das universidades fizeram parte da agenda de

debates do Fórum Social

Mundial 2010

Pedro Barreto

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 7Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Sociedade

“As universidades

devem ser profundamente

reformuladas. Não é de

dentro para fora, mas sim

de fora para dentro que

esta instituição deve funcionar.

Os indígenas, camponeses e

as comunidades quilombolas

devem entrar nas

universidades.”

Alegre, Carlos Oliveira e Sidevaldo Miranda, integrantes da Via Campe-sina – organização internacional da qual faz parte o Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem-Terra (MST) – lembraram o drama do povo haitia-no que vive em condições subumanas desde meados de janeiro, após os aba-los sísmicos que atingiram todo o país.

Residentes há um ano no Haiti, Carlos e Sidevaldo são técnicos agrí-colas e buscam instrumentalizar a população daquele país, estimada em 9 milhões de habitantes, para cultivar alimentos em uma área pouco supe-rior a 27 mil km2. Cerca de 60% dos haitianos vivem em zonas rurais que são, em sua maioria, controladas por grandes empresas agrícolas transna-cionais. Além disso, cerca de 90% da água do país está contaminada com coliformes fecais.

Para tentar amenizar o sofrimen-to daquele povo, a Via Campesina entregou ao presidente Lula – que visitava o FSM naquele mesmo dia –uma carta sugerindo o envio de ajuda humanitária, que inclua o envio de 40 trabalhadores brasileiros, 550 tone-ladas de sementes, além de tratores e retroescavadeiras para a construção de cisternas e reservatórios de água. “Duvido muito que um soldado es-tadunidense, trajado com seu apara-to militar, tenha condições de servir um prato de comida para quem está faminto”, comentou Carlos Oliveira, em referência ao modelo de ajuda empreendido pelos Estados Unidos no Haiti.

A questão da alimentação como bem comum não-democratizado no mundo globalizado não atinge ape-nas o miserável Haiti. País com mais de 237 milhões de habitantes, distri-buídos em cerca de 2 milhões de km2

de área e integrante da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), a Indonésia ainda não re-solveu o problema da fome. É o que afirma Indra Lubis, representante da Via Campesina daquele país no FSM, durante palestra realizada no dia 27, no Armazém 7 do Cais de Porto Ale-gre. De acordo com o camponês, as empresas agrícolas instaladas na In-donésia aumentaram, desde a década de 1990, sua margem de lucro de 43% para 143%. Neste período, segundo Lubis, as transnacionais restringiram a produção de soja, sob o argumento de que não era um produto lucrativo. “O resultado foi o aumento do preço do tofu, alimento-base do povo indo-nésio”, destacou o camponês. “Temos que lutar pela implantação de fazen-das sustentáveis, que garantirá a sobe-rania alimentar do nosso povo”, suge-riu Lubis.

Comunicação: Brasil atrasadoPara que se garantam os direitos

humanos fundamentais é preciso que seja assegurado um princípio igual-mente fundamental: a Comunicação. Esta é a opinião de Maria Pia Matta

Cerna, jornalista, presidente da As-sociação Mundial de Rádios Comu-nitárias (Amarc) na América Latina e no Caribe, para quem “não é possível falar em sustentabilidade se não tiver-mos um espaço para debater Comu-nicação. Por isso, devemos lutar por um sistema midiático mais democrá-tico”, asseverou, no mesmo evento em que Indra Lubis discursara minutos antes.

Para Maria Pia, países como Ar-gentina e Uruguai estão na frente em termos da construção de uma política de Comunicação mais democrática, em relação ao Brasil e ao Chile, sua ter-ra natal. Segundo ela, o mérito daqueles países tem sido implementar leis que já existem, baseadas no princípio de que o espectro eletromagnético é um bem pú-blico e sua utilização é regulada através de contratos de concessão por tempo de-terminado. “Se as ferramentas existentes não forem empregadas, não há sustenta-bilidade. No Brasil, a TV Globo não acei-ta o debate. É como se apenas os empre-sários fossem aptos a possuir concessões. Mas há outros atores sociais que também têm esse direito”, afirmou a jornalista. A Internet é uma possibilidade, mas acaba por reproduzir o modelo dos demais meios, avalia a presidente da Amarc. “A política internacional ain-da é pauta dos jornais diários. A briga pelo poder comunicacional ainda se dá pelas rádios, TVs e jornais. Temos que construir uma comunicação contra-he-gemônica através de políticas públicas de regulação. A internet pode ser um instrumento de transformação, mas, para isso, ela precisa ser acessível, gratui-ta e não ser dominada pela publicidade”, concluiu, Maria Pia.

Porto Alegre foi a sede do Fórum Social Mundial de 2001 a 2003. Em 2004, mostrando que os debates ali realizados não estavam restritos a um pequeno e segmentado grupo, o evento se transferiu para Mum-bai, na Índia. No ano seguinte, a capital gaúcha voltou a sediar o en-contro, onde convergem as forças que acreditam em “outro mundo possível”. O caráter “altermundia-lista” do evento ganhou abrangên-cia internacional da edição de 2006, quando Bamako (Mali, África), Caracas (Venezuela, América) e Karachi (Paquistão, Ásia) abriga-ram as atividades. Nairóbi (Quênia, África) foi a sede em 2007.

Em 2008, o Conselho Internacio-nal do Fórum Social Mundial defi-niu que não aconteceria um evento centralizado do FSM, mas sim uma semana de mobilização e ação glo-bal, marcada por um dia de visibi-lidade mundial, em 26 de janeiro. Já em 2009, a IX edição do FSM ocorreu em Belém (PA), em evento que contou com mais de 5.800 or-ganizações, de mais de 142 países de seis continentes, além de mais de 1.300 representantes indígenas.

História de mobilizações

sidade tem papel primordial nesta transformação. “As universidades devem ser profundamente reformu-ladas. Não é de dentro para fora, mas sim de fora para dentro que esta ins-tituição deve funcionar. Os indígenas, camponeses e as comunidades qui-lombolas devem entrar nas universi-dades”, propôs, o sociólogo.

Quem também questionou o pa-pel das instituições acadêmicas em todo o mundo foi David Harvey. O geógrafo britânico e professor da Uni-versidade de Nova Iorque foi enfático ao afirmar que estas instituições pre-param os jovens para o mercado capi-talista, sem a preocupação em formar uma massa crítica que questione os valores apresentados. “As universida-des precisam mudar. Tem que haver um levante dos estudantes contra as bobagens que os professores dizem. Eles apenas reproduzem o modelo vigente”, incitou, Harvey, para em se-guida exemplificar: “quando estourou a atual crise financeira mundial, a rai-nha da Inglaterra quis saber dos aca-dêmicos de Harvard por que eles não haviam previsto aquilo”.

Soberania alimentarOutro conceito muito discutido

não apenas por acadêmicos, mas, principalmente, por representantes dos movimentos sociais, foi o de so-berania alimentar. Em entrevista co-letiva, concedida no dia 26 de janeiro, na Usina do Gasômetro, em Porto

Pedro Barreto

Boaventura: “Estamos assistindo à mercantilização dos bens mais básicos da vida”.

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 8 Janeiro – Março 2010Meio Ambiente

A expectativa em torno da Conferência, sobretudo dos anfitriões dinamar-

queses, era a obtenção de um acordo de alcance global, com metas obrigatórias de redução de emissões de gases poluen-tes, que atendessem às avaliações elabo-radas pela rede internacional de cientis-tas coordenada pelo IPCC (International Panel on Climate Change – Painel Inter-nacional sobre Mudanças Climáticas).

O IPCC recomendava que para evitar uma elevação em 2° C da tempe-

Um impasse previsível

A 15ª Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP–15) levou milhares de pessoas a Copenhague e engajou os principais líderes mundiais e diplomatas de 193 países

em duas semanas de árduas negociações. A despeito do otimismo, o resultado foi um acanhado acordo sem o estabelecimento de obrigações.

Bruno Franco

ratura global neste século, seria preciso que as nações industrializadas cortassem suas emissões de gases-estufa na razão de 25% a 40% até 2020, e em 80% a 95% até 2050.

Além de não conseguir se aproxi-mar das recomendações da comunidade científica, a COP-15 esteve, em muitos momentos, à beira do fracasso. Houve duas trocas na chefia da organização do evento, demonstrando a incapacidade de articulação diplomática do governo dinamarquês; violenta repressão a am-

bientalistas e manifestantes; ameaça de diversas delegações de se retirarem de Copenhague antes do fim do prazo; ras-cunhos de acordo foram divulgados sem autorização, causando mal-estar entre as delegações e suscitando críticas diversas.

Apenas boas intençõesQuando o pessimismo era genera-

lizado e o prazo previsto para as nego-ciações já se esgotava, uma reunião de poucos, mas representativos chefes de governo, resultou no Acordo de Cope-

nhague. Os maiores impasses à adoção de um texto-base para um acordo climá-tico residiam no acanhamento das me-tas aceitas pelos EUA – com base em propostas discutidas pelo Congresso norte-americano –, nas formas de fi-nanciar a redução do desmatamento em países em desenvolvimento e no estabelecimento de metas compulsó-rias de redução de emissão de CO2 para países não incluídos no Anexo I do Protocolo de Quioto (que incluía países de industrialização antiga).

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 9Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Meio Ambiente

O encontro reuniria apenas os países do grupo chamado Basic (Brasil, África do Sul, Índia e China), mas foi interrom-pida com a inesperada chegada do pre-sidente norte-americano Barack Obama que pediu assento ao lado de Lula. A despeito da irritação que isso provocou na delegação chinesa, Obama conseguiu negociar a mudança de linguagem de um ponto crucial de discordância: a ve-rificação das metas voluntárias de países emergentes, financiadas sem dinheiro externo.

Entre o termo inspeção, proposto por norte-americanos, e diálogo, como queriam os chineses, foi escolhida a expressão da Organização Mundial do Comércio: consulta e análise interna-cional.

O Acordo de Copenhague consis-tiu em apenas 12 parágrafos, que pro-punham esforços mundiais para que a temperatura global não se eleve em 2º C até o final do século. Os países ricos financiariam as políticas ecológicas das nações em desenvolvimento, com um fundo de 30 bilhões de dólares, até 2012 (a maior parte dos recursos advindos do Japão e da União Européia) e esse montante chegaria a US$100 bilhões até, 2020.

Enfrentando o ceticismoA COP–15 foi ainda desafiada por

um inesperado contratempo. A divulga-ção de uma série de reportagens, chama-da de Climategate, pelo jornalista James Delingpole, do jornal inglês Daily Tele-graph, relatando o vazamento de uma troca de mensagens entre cientistas da Universidade East Anglia, participantes do IPCC, e mostrando a manipulação de dados científicos para corroborar a tese de que o aquecimento global é causado pela atividade humana.

As denúncias de Delingpole deram novo alento aos céticos, sobretudo à crí-tica liberal que vê na preocupação eco-lógica nova justificativa para intervenção estatal na liberdade de indivíduos e em-presas.

Avaliando o ceticismo que cercou as discussões climáticas, Ricardo Iglesias, professor do Instituto de Biologia (IB) da UFRJ, alerta para a desconfiança acerca da meteorologia. “Eles [meteorologis-tas] acertam com grande probabilida-des as previsões entre 24 e 48 horas. Com uma semana, o erro já é de mais de 50%. Com um mês de antecedên-cia, nem eles acreditam nas previsões. Por outro lado, esses mesmos meteo-rologistas estão fazendo previsões para 20 e 30 anos. A primeira coisa seria ter

Um estudo coordenado por Carolina Dubeux, pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar do Meio-ambiente (Lima) – vinculado ao Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ – simulou os possíveis impactos que o aquecimento global acarretará à economia e à ecologia do país. Dadas as dimensões continentais do território brasileiro, a mudan-ça climática afetará as regiões de maneira distinta.

“O Nordeste, historicamente sofrido, terá maiores impactos cli-máticos que as demais regiões, principalmente pela redução acen-tuada da oferta de recursos hídricos que poderá chegar a menos 97% dos níveis de oferta atual na bacia do Atlântico Nordeste Oriental, por exemplo. A produtividade da agricultura tenderá a se reduzir de forma considerável, levando os agricultores a optarem por criação de gado de baixo retorno em substituição às culturas atuais”, afirma Dubeux.

Na avaliação da pesquisadora, o impacto das mudanças no clima farão os produtores do Centro-Oeste adotarem a mesma estratégia de seus colegas nordestinos. “Já a Região Sul, pelo aumento das temperatu-ras médias e redução de ocorrências de geadas, poderá até desfrutar de algum benefício agrícola. Mas não o suficiente para contrabalançar as perdas nacionais”, analisa a pesquisadora.

Segundo Dubeux, a pesquisa avaliou ainda o valor do patrimô-nio em risco devido ao aumento do nível do mar (R$ 200 bilhões), o valor das perdas com a redução da oferta de serviços ambientais na Amazônia (R$ 44 bilhões, no ano de 2100) e a vulnerabilidade da Região Nordeste no que se refere à ocorrência de doenças e de-manda por meios de subsistência que leva a migrações.

O estudo também avaliou o potencial brasileiro de contribui-ção ao esforço global de redução de emissões de gases de efeito estufa. A equipe coordenada por Dubeux considerou promissoras a possibilidade de expansão da oferta brasileira de etanol e o pro-grama de redução do desmatamento da Amazônia.

Além disso, a possibilidade de onerar empresas em função de suas emissões de CO2 é vista com bons olhos pela pesquisadora. “A taxa de carbono também apresenta resultados interessantes e tal simulação permite, principalmente, que se conheçam os impactos econômicos setoriais de uma política restritiva de carbono”, elogia Dubeux.

Simulação revela que Nordeste sofrerá mais com aquecimento do clima cuidado com previsões de tão longo

prazo”, pondera o professor.Apesar dessa desconfiança, o bió-

logo afirma que as pessoas acreditam no aquecimento global, pois a mídia compartilha essa crença. “Existem in-dicações de que isso é possível e de que este aquecimento seja causado pelo homem. As confirmações provêm ba-sicamente do IPCC, que é um grupo de cientistas subordinados aos seus respectivos países, ou seja sem auto-nomia”, critica Iglesias.

Ingênuas expectativasPara Iglesias, o fracasso das

negociações em Copenhague era previsível e seria ingenuidade es-perar algo diferente. A razão disso subjaz na relação existente entre crescimento econômico, consumo de energia e a conseqüente geração de poluentes. Além disso, o biólogo alerta para o lobby de indústrias po-luidoras, mas que geram muitos em-pregos e considerável riqueza, como a automobilística.

No entendimento de Iglesias, não há como substituir os combus-tíveis fósseis, no curto prazo, para a geração de riqueza. “Bush não assinou o Protocolo de Quioto não porque ele fosse mau. É porque ha-veria desemprego, fome e miséria. Na semana seguinte à que assinasse, ele seria destituído. Obama não le-vou nenhuma proposta concreta de redução de emissões pela mesma ra-zão”, avalia o professor do IB-UFRJ.

Durante a COP–15, o presidente

Barack Obama demonstrou o dese-jo de adotar um regime de metas de redução das emissões de CO2, ainda que tímido. No entanto, uma vez es-tabelecidas essas metas, elas teriam de ser cumpridas e “isso significaria que a economia norte-americana teria pro-blemas. E ela já tem problemas. Com metas de racionamento no consumo de energia, ela não vai se recuperar”, frisa Iglesias.

De acordo com o pesquisador, conseguir energia de fontes alternati-vas é tecnologicamente problemático e não há desejo da comunidade inter-nacional em mudar o modelo econô-mico. “Eliminando essa possibilidade de mudança, estamos com um proble-ma muito sério. Mantendo o modelo, a energia nuclear é a opção viável. O modelo econômico capitalista exige

o crescimento constante do uso de energia”, explica o pesquisador.

Na avaliação de Iglesias, não há possibilidade de a energia eólica ou a solar suprirem a demanda que o crescimento econômico acarreta, além de serem tecnologias mais onerosas. A única opção para compor a base da matriz energética, com redução na emissão de gases poluentes, seria a am-pliação do uso da energia nuclear.

Assim sendo, ele qualifica como “muita ingenuidade” as expectativas otimistas de que a Conferência de Copenhague traria algo mais positivo que o Protocolo de Quioto. “Era ab-solutamente esperado o fracasso em Copenhague. Assim como Bush não conseguiu reduzir as emissões, Oba-ma também não e a China não pode nem pensar nisso”, enfatiza Iglesias.

O Acordo de Copenhague consistiu em

apenas 12 parágrafos, que

propunham esforços mundiais

para que a temperatura global

não se eleveem 2º C.

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010Jornal da 10 UFRJ Segurança

O relato de mais um crime praticado por forças policiais em

favelas do Rio é narrado por Eliana Sousa Silva, então mora-dora da comunidade Nova Ho-landa, uma das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde residem mais de 113 mil pessoas, segundo da-dos oficiais do censo de 2000, realizado pelo Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatísti-

O alvomaisfácil

Pedro Barreto“Consegui me abrigar numa farmácia e de lá assisti a uma cena

dramática: uma criança de três anos de idade, agarrada à mão da avó,

foi atingida por uma bala, justamente no momento em que os policiais

passaram daquela maneira: sem olhar, de fato, para o que havia à frente.

Eles estavam dominados pela adrenalina e pela pressa, se isentando de

responder a algo que as outras pessoas não conseguiam identificar ou

entender.”

Marco Fernandes

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 11Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Segurança

Pesquisa

sobre práticas policiais

na Maré

mostra que

percepção

social de que

moradores

de favelas são

cidadãos de

“segunda classe” e apelo

midiático

em favor da

ordem pública

legitimam

ação violenta em

comunidades

pobres.

ca (IBGE). Eliana foi morar na Nova Holanda com seis anos de idade, recém-chegada da cida-de de Serra Branca, na Paraíba. Cresceu na comunidade onde aprendeu a conviver com toda a sorte de desrespeito aos di-reitos humanos praticada tanto por parte de policiais, como de traficantes e, mais recentemen-te, de milicianos. Entrou, ainda na adolescência, para os movi-mentos sociais do bairro e, de 1984 a 1990, exerceu o cargo de presidente da associação de moradores local. Graduou-se em Letras, pela UFRJ, em 1987, e, em 1995, concluiu o mestra-do em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Em 2009, defendeu sua tese de doutorado O Contexto das Práticas Policiais nas Favelas da Maré: a busca de novos caminhos a partir de seus protagonistas, no Programa de Pós-graduação em Serviço So-cial da PUC-Rio.

Falta de integração“Comecei a trabalhar no sen-

tido de pensar como podería-mos criar determinadas agendas que estavam fora de uma ação política da associação. Desde meados da década de 1980 e iní-cio de 1990, conseguimos con-quistar direitos básicos, como educação, saúde e saneamento básico. Mas, ao mesmo tempo, me inquietava o fato de que o governo construía escolas, mas a qualidade delas era muito ruim. Então eu cheguei à con-clusão de que apenas os movi-mentos sociais não dariam con-ta dessa mudança necessária. Discutir violência com foco em segurança pública era importan-te para mudar aquela realidade”, explica a primeira diretora e uma das idealizadoras da Divi-são de Integração Universidade Comunidade, órgão vinculado à Pró-reitoria de Extensão (PR-5) e também diretora das Redes de Desenvolvimento da Maré (Re-desmaré).

Eliana recorre ao conceito de representação para ilustrar como são estabelecidas as rela-ções entre os agentes públicos do Estado – remunerados para garantir proteção a todo e qual-quer cidadão – e os moradores das favelas. A pesquisadora re-corda a instalação do 22º Bata-lhão de Polícia Militar no Com-plexo da Maré desde 1989, mas que até hoje, segundo ela, ainda não se integrou à comunida-de. “Não existe uma confiança na ação da polícia, que chega à favela achando que todo mun-do ali está na rede do crime. O

batalhão chegou como um ele-mento estranho e faz questão de se manter dessa maneira. O comandante do batalhão faz ca-fés da manhã com as associações de moradores e o tempo todo o papo não é ‘como nós vamos conseguir estreitar as relações’, ou ‘como aquele espaço pode ser apropriado pelo morador’. Este, por sua vez, não vê aquilo ali como uma coisa pública, manti-do, inclusive, pelo dinheiro dele”, exemplifica Eliana.

Abuso de poder é rotina

A localização privilegiada da favela é, de acor-do com a pesqui-sadora, uma das razões que levou à implantação de equipamento po-licial de tal porte. “A Maré é a única favela do Rio que tem um batalhão com 690 homens. Um dos motivos para isso é o fato de ela estar na por-ta de entrada da cidade, às margens da Linha Amare-la, da Linha Ver-melha, ao lado de uma das maiores universidades do país e do aeropor-to. Ela, obviamente, causa preocupação do ponto de vista da ordem urbana. E quando o bata-lhão foi pensado para aquele local, foi por causa da série de inciden-tes que acontecem ali, que obviamen-te afetam a cidade. O problema é que aquele equipamen-to não se materia-lizou com o entor-no”, analisa a pes-quisadora.

“O morador da-qui não tem noção de seu direito”, co-menta Eliana, em referência ao fato de que mes-mo o próprio cidadão que ali reside crê no senso comum que discrimina os moradores dos bairros populares. “De alguma maneira, cria-se uma percepção de que ele é diferente do mora-dor da Zona Sul. Lá, o cidadão é dotado de todos os direitos, em oposição ao cidadão de segun-da classe, da favela, que precisa

ter um tratamento diferenciado. A missão da Polícia Militar é a prevenção e na Maré a polícia não age de maneira preventiva, como ela age no Leblon. Quando a polícia entra na favela, já entra maciçamente armada. A vida na Maré não pode valer menos do que a vida no Leblon”, afirma a pesquisadora.

No entanto, segundo ela, a percepção de vítima é igual-

mente equivocada: “todo mundo ali é coitadinho – não tem o que fazer, pois o traficante o domina – ou é sus-peito. Essas duas visões são precon-ceituosas porque não reconhecem o morador como ele é em si”. O domínio do tráfico na co-munidade também é legitimado pelo morador, “que re-conhece este poder ao chamar o trafi-cante para intervir em uma discussão entre marido e mu-lher, briga de vi-zinhos ou mesmo para dar permissão para a instalação de uma banquinha de frutas na calçada”, completa Eliana.

Tradição violentaPara Julita Le-

mgruber, diretora do Centro de Se-gurança Pública e Cidadania da Uni-versidade Cândi-do Mendes (Ceec-Ucam), à polícia é uma instituição violenta desde os seus primórdios. “No Brasil, a polí-cia nunca defendeu a cidadania, sem-pre defendeu, isto sim, o Estado. Exis-tem livros da polí-cia, na virada do século, que desde o início mostram esta corporação ao lado do poder e

contra os mais fracos”, destaca a socióloga.

O papel das UPPA pesquisa de campo de Elia-

na Sousa Silva foi finalizada an-tes da implantação das chamadas Unidades de Polícia Pacificado-ras (UPP) pelo atual governo do Estado. No entanto, ela acredi-ta que a iniciativa não contem-

plou o direito dos moradores ao formular as suas ações. “Na fa-vela é sempre uma ação de fora para dentro que decide como as pessoas têm que viver. Isso é o que vejo de problemático. Cadê o morador da favela? Que con-ceito de segurança está sendo trabalhado com esse morador? É um projeto para impactar na cidade, mas do ponto de vista da cidadania será que aquela pes-soa está sendo vista como um cidadão que possui direitos?”, questiona a pesquisadora re-cordando ainda a proibição dos bailes funk, tradicional evento de lazer nas referidas comuni-dades. “Essa questão foi sinto-mática. Cadê o direito de o ‘cara’ se divertir? Uma coisa é o pro-jeto de segurança pública, outra é ordenar a vida social daquela comunidade. Isso não é papel do policial”, contesta Eliana.

Apesar de elogiar as UPP, o sociólogo Michel Misse reforça as críticas às ações de seguran-ça pública do atual governo do Estado. “Se as futuras comuni-dades a serem ocupadas forem a Rocinha, a Maré, o Alemão, eu saúdo. Mas, para mim, não há diferença entre esta e as políti-cas de segurança pública ante-riores. É uma política que con-tinua sendo de ocupação, mili-tarizada, continua produzindo mortes. Em resumo: é uma po-lítica fracassada. O que se espe-ra é que, após esse tipo de ocu-pação, implante-se um projeto capaz de trazer o Estado para a comunidade e de impedir a volta das quadrilhas”, argumen-ta o coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS).

Performance midiáticaDurante a pesquisa para a

tese, Eliana ouviu mais de 500 moradores divididos em qua-tro áreas do Complexo da Maré: área 1, controlada pelo Coman-do Vermelho; área 2, Terceiro Comando; área 3, Amigos dos Amigos (ADA, grupo posterior-mente expulso da comunidade) e área 4, Milícia. A pesquisadora preocupou-se ainda em entre-vistar policiais e traficantes. Ao ouvir os agentes públicos de se-gurança, sua constatação foi que as ações policiais seguem pouco ou nenhum planejamento estra-tégico. “Eles me falavam muito: ‘a gente faz ação pra mídia. Se é interessante atuar no caso da co-munidade tal, porque interessa à imprensa, a gente vai agir assim’. É óbvio que isso gera uma dis-torção do que é uma política de

Marco Fernandes

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 12 Janeiro – Março 2010Segurança

Para que ocorra uma mudança de mentalidade em relação à Se-gurança Pública, Eliana Sousa Silva acredita que deva haver uma conver-gência de todos os atores sociais, en-tre eles a imprensa. “A mídia deveria ser mais honesta. Ela compra muito a ideia de que o Estado pode agir do jeito que age e, assim, justifica essa violência toda”, opina a pesquisadora. A legalização do comércio de drogas seria uma solução, de acordo com ela.

Estado de Segurança Pública. O agente de segurança se percebe não como servidor publico que está ali a serviço de uma políti-ca de Estado, mas a serviço da política de um governador, que define o que é a prioridade. E essa prioridade é definida mui-to do ponto de vista político e eleitoral”, relata a pesquisadora.

Após entrevistar um trafi-cante em uma penitenciária, Eliana constatou que mesmo os criminosos concordam que a ação policial carece de inteli-gência e se excede em truculên-cia: “ele me disse: ‘a polícia tem que entrar na favela procuran-do a nós, bandidos, e não escu-lachando os moradores que não têm nada a ver com o tráfico”. E ainda deu um exemplo: “minha mulher vive sendo estuprada por policias na minha casa. Isso não é certo, policial não pode fazer isso”. Falta um ordena-mento, uma consciência do que é certo e do que é errado. O mo-rador não vai achar ruim que a polícia aja dentro da lei. Mas quando há impunidade, quando o bandido faz uma coisa errada e o morador vê que não acon-tece nada e há conivência entre polícia e bandidos, o morador adquire outra consciência sobre aquele agente.

Autos de resistência ou execuções?

Dados da Secretaria de Se-gurança Pública do Rio de Ja-neiro informam que, em 2009, ocorreram 1.048 mortes por “autos de resistência”, que, pela explicação eufemística oficial, significam óbitos por meio de “confronto” com a polícia. Um desses casos foi o do menino Renan, baleado em uma in-cursão policial no Complexo da Maré, conforme descrito no início desta reportagem. Apesar de o episódio relatado não nar-rar exatamente um confronto, é assim que o assassinato des-ta criança de três anos de idade é tratado pelas autoridades de Segurança Pública do Estado.

De acordo com Julita Lem-gruber, os números revelam o que ela considera um “estímulo” às execuções. “Os Estados Uni-dos, que têm uma polícia re-conhecidamente desrespeitosa aos direitos humanos, onde há 19 mil forças policiais, ocorrem 350 mortes pelos chamados ‘au-tos de resistência’. Na Inglaterra, em 2005, ano em que Jean Char-les foi morto, aquele foi o único óbito causado pela polícia ingle-sa. Pesquisas já demonstraram que a maior parte das mortes pela polícia aqui são execuções

Quem é o “cliente” da Segurança Pública?

“Essa guerra às drogas é absurda. Ele-ger as drogas como o crime mais grave da cidade é uma estratégia política. É muito mais sério identificar como as armas chegam do que a própria dro-ga. Desarmem os traficantes para ver o que acontece. Não se fala muito das armas, mas por que não se procura en-tender como elas chegam nas favelas?”, indaga Eliana.

O foco de ação da Secretaria de Segurança Pública, tendo como

“cliente” o morador da classe mé-dia é alvo de críticas tanto de Mi-chel Misse como de Eliana Sousa Silva. “As maiores vítimas da vio-lência são as camadas populares. As classes média e alta sofrem fur-tos, assaltos, roubos de veículos. Já os pobres morrem! Morrem, tanto participando de crimes, como sendo vítimas. E quando são vítimas, não pro-vocam comoção, como quando o são as classes média e alta”, conclui Misse.

sumárias. Nisso, o governo ain-da não tocou, ao contrário, con-seguiu aumentar ainda mais es-ses números”, analisa a sociólo-ga, lembrando ainda que apenas

2,8% dos homicídios são esclare-cidos pela polícia do Rio. “Uma política de Segurança Pública que não combate isso de frente não é uma política. De cada cem as-

sassinatos, praticamente 97 ficam impunes. Se tivéssemos uma po-lítica de Segurança Pública, tudo isso teria que estar lá”, completa a socióloga.

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 13Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Marco Fernandes

Entrevista

Adi

lson

de

Oliv

eira

Embora o petróleo ainda vá desempenhar

papel-chave nas próximas décadas, a civilização

movida a combustíveis fósseis ruirá no século

XXI. A catástrofe ambiental que acarretaria

a extensão a todo o planeta do padrão de

consumo das sociedades ricas, como a norte-

americana, torna inevitável a superação do atual

paradigma produtivo, na análise de Adilson de

Oliveira, diretor- geral do Colégio Brasileiro de

Altos Estudos da UFRJ. O automóvel pertence

a uma indústria do passado, que perderá força

paulatinamente, prevê o doutor em Economia do

Desenvolvimento pela Universidade de Grenoble

(Suíça) e especialista em Política Energética.

Para fugir do rebaixado posto – no cenário

internacional – de produtor de bens de baixo

conteúdo tecnológico e alto consumo energético,

Adilson de Oliveira sugere que o Brasil invista

maciçamente em educação durante pelo menos

20 anos. “Não se cria tecnologia com pessoas que

não sabem ler nem fazer conta”, argumenta o

professor titular da UFRJ.

Nesta entrevista, ele também revela os seus planos

para o Colégio, cuja sede funciona no prédio

que abrigou a Casa do Estudante Universitário

(CEU), no Flamengo. Após concentrar esforços

nas obras de restauração do edifício histórico,

Adilson de Oliveira pretende, neste ano, organizar

simpósios e criar os primeiros núcleos de pesquisa

em torno de temas interdisciplinares. “O nosso

foco é compreender a dinâmica brasileira e olhar

estrategicamente para o futuro”, destaca

o professor.

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 14 Janeiro – Março 2010Entrevista

início do fim?

Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: Qual o papel da energia na sociedade capitalista contemporânea?

Adilson de Oliveira: A energia tem um papel central no desenvolvimento social e econômico, tanto nas sociedades ca-pitalistas como nas que se pautam por outro tipo de regime, mais próximo do socialismo, como a China. A energia, desde a Revolução Industrial, foi o gran-de fator que permitiu o aumento da pro-dutividade, que significa produzir mais bens e serviços em menos tempo, o que aumenta a riqueza da sociedade. Mas para isso é preciso aumentar o consumo de energia. Daí advém o papel central da energia nas sociedades contemporâneas.

Jornal da UFRJ: Hoje, há uma preocu-pação crescente quanto à utilização de recursos energéticos considerados de alto impacto ambiental, especialmente os de origem fóssil. Como o senhor avalia a visão de ambientalistas de que o planeta pode sucumbir a esse modelo?

Adilson de Oliveira: O crescimento das emissões de gases do efeito estufa, entre os quais se coloca de modo cen-tral o CO2, vinculados aos combustíveis fósseis, é um fator que aumenta o risco de vivermos mudanças climáticas ex-tremas. Ou seja, períodos de forte calor, seguidos de períodos de frio exagerado, o que obriga a sociedade a se reorganizar para conviver com essa nova realidade. Há consenso em relação a isso. Vimos agora, na Conferência de Copenhague, a preocupação em criar políticas que pos-sam mitigar o problema das emissões. E, em decorrência dessa perspectiva, vem a

ideia de reduzir o consumo de petróleo e, principalmente, do carvão.

Jornal da UFRJ: O processo de substitui-ção dessas fontes será lento?

Adilson de Oliveira: Sim, não é fácil mudar uma sociedade acostumada, por exemplo, a andar de automóvel. E tam-bém a consumir eletricidade provenien-te do carvão, que não é tanto o caso do Brasil, mas dos Estados Unidos, da Chi-na, da Índia, entre outros países. Mudar esse padrão não é algo que se faça em poucos anos, demanda um esforço gran-de. Por isso, há também um consenso de que o petróleo continuará ocupando, nas próximas décadas, um papel central na economia mundial. Precisamos dei-xar para trás o uso do petróleo, mas isso acontecerá de modo muito mais vagaro-so do que desejaríamos.

Jornal da UFRJ: Se, por hipótese, o atual padrão de consumo da sociedade norte-americana se estendesse a todos os países do mundo o que aconteceria ao planeta?

Adilson de Oliveira: Essa projeção, para todos nós, seria catastrófica. Não apenas do ponto de vista ambiental, mas tam-bém sob a ótica econômica. Isso porque a pressão da sociedade chinesa, indiana, e mesmo a brasileira, pelo consumo de derivados de petróleo seria tão intensa que criaríamos tensões sociopolíticas de grande magnitude. Não seríamos capazes de produzir petróleo no ritmo desejado por esse modelo de sociedade e, dadas as disparidades regionais, os conflitos seriam inevitáveis. Na minha

opinião, a mudança do padrão da so-ciedade do automóvel para uma socie-dade com outro tipo de organização do sistema de transporte é algo inevitável. Por isso mesmo, acho que a indústria automobilística é uma indústria do pas-sado. Ela não vai desaparecer, mas já não terá papel central. Assim como a indús-tria têxtil, no século XIX, foi o motor do desenvolvimento econômico mundial e depois perdeu força, o mesmo aconte-cerá com a indústria automobilística no século XXI.

Jornal da UFRJ: E já se vislumbra algu-ma alternativa?

Adilson de Oliveira: As alternativas que vêm surgindo, crescentemente, são os transportes sobre trilhos, principal-mente nas regiões urbanas. E também há uma certa mudança no padrão de consumo. Hoje, as perdas ocorridas por ineficiência energética de equipa-mentos e produtos são monumentais. Alguns países da Europa e também os Estados Unidos e a China estão fazen-do um esforço enorme de utilização de equipamentos mais eficientes do ponto de vista energético. Utilizá-los com menor consumo de energia seria bom não apenas para o meio ambiente como para as pessoas, que reduziriam as suas despesas.

Jornal da UFRJ: De uns tempos para cá, os países ricos têm transferido in-dústrias que consomem muita ener-gia elétrica para países do chamado Terceiro Mundo, como o Brasil. Isso não seria uma divisão desigual de

funções econômicas e produtivas entre as nações?

Adilson de Oliveira: Sem dúvida. O que está acontecendo é um esforço imenso dos países mais ricos de transferência de indústrias poluentes para as nações em desenvolvimento. Essa é uma realidade. Mas, sob a ótica dos países em desen-volvimento, como o Brasil, interessa re-ceber investimentos industriais. Quere-mos nos industrializar e não ficar apenas exportando matéria-prima e comprando produtos acabados. O que temos que fa-zer é trazer essas indústrias, porém com tecnologias menos poluentes. Os países ricos já estão com a indústria instalada e esse processo de transformação é muito mais difícil. Podemos implantá-las com tecnologias muito mais modernas e me-nos agressivas ao meio ambiente. Isso é possível, há conhecimento tecnológico, o que falta é uma atenção maior dos órgãos públicos. O Brasil tem legislação ambien-tal adequada, mas falta cumpri-la.

Jornal da UFRJ: E de que modo o perfil de industrialização do Brasil, no século XX, impactou o consumo e a demanda por energia?

Adilson de Oliveira: Tivemos um período, em particular nas décadas de 1960 e 1970, de forte implantação das chamadas in-dústrias de base, que são intensivas em energia. Houve investimentos nas áreas petroquímica, siderúrgica, de alumínio, e de cimento, entre outras. São todas indústrias importantes para fornecer habitação para as cidades, construir es-tradas, hidrelétricas e fazer outras obras.

Civilização do automóvel:

Marco Fernandes

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 15Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Entrevista

Hoje, o Brasil tem uma matriz industrial bastante diversificada e sofisticada e não necessita mais centrar o seu desenvolvi-mento nesse tipo de indústria, ainda que ela tenha que expandir.

Jornal da UFRJ: Mas é possível fugir des-sa armadilha histórica de produzir bens de baixo conteúdo tecnológico e alto con-sumo energético?

Adilson de Oliveira: Acho que sim. É claro que isso exige um trabalho enorme e a superação de muitas barreiras. A meu ver, o principal déficit social brasileiro é o de educação. Para se produzir com alta tecnologia é preciso ter gente preparada. Não é possível inovar, criar novas tecno-logias, com pessoas que não sabem ler e nem fazer conta. Houve esforços para melhorar a educação, mas essa mudança é um processo longo. Uma criança não se transforma em um adulto em 10 anos, mas em 20 anos. Ou seja, durante esse tempo, no mínimo, é necessário investir em educação sem interrupções. Se con-tinuarmos esse processo de expansão da universidade e do ensino de qualidade no primeiro e no segundo graus, não vejo nenhuma razão para que o Brasil não chegue à situação de país produtor de bens com alto conteúdo tecnológico.

Jornal da UFRJ: Em relação ao planeja-mento energético, o Brasil é condicionado pelas necessidades dos grandes complexos industriais?

Adilson de Oliveira: Não vejo dessa for-ma. Acho que, efetivamente, os grandes consumidores têm um papel importante, uma vez que representam cerca de 30% do consumo de energia do país. O que é preocupante é o viés forte de investir na construção de hidrelétricas na Amazônia. Isso torna complexa a relação entre o Es-tado e a sociedade, porque sabemos que tais empreendimentos são complexos. A Amazônia é um bioma bastante sensível e o conhecemos pouco. Essa é a verdade. O conhecimento científico da área ainda é limitado e todos os projetos de grande magnitude geram, evidentemente, uma controvérsia enorme. É o que estamos assistindo agora no caso da usina de Belo Monte.

Jornal da UFRJ: Belo Monte é mesmo im-prescindível, como argumenta o governo?

Adilson de Oliveira: É claro que o de-senvolvimento hidrelétrico da Amazô-nia é importante. Aliás, toda a região é importante para o Brasil e o mundo. É uma área importante, que deve ser pre-servada, mas ao mesmo tempo é grande fonte de riqueza para a sociedade bra-sileira. Portanto, o Brasil deve trabalhar para desenvolvê-la, mas esse processo é complexo e o ritmo desse desenvolvi-mento deve ser bem pensado. O que me deixa inseguro é o esforço de implantar Belo Monte, aparentemente passando por cima de diversas etapas importantes. O que sempre digo é que a democracia

não é o governo da maioria, mas o res-peito ao direito das minorias. No caso de Belo Monte, é isso que está em questão. Até que ponto o direito das minorias, principalmente as indígenas, está sendo respeitado? Acredito que a usina de Belo Monte é necessária, mas não na rapidez em que o governo quer implantá-la.

Jornal da UFRJ: O Brasil teria outras al-ternativas viáveis?

Adilson de Oliveira: Sim, por exemplo, fazer um esforço razoável em eficiência energética. Os nossos equipamentos são de uma ineficiência muito grande e, diga-se de passagem, no resto do mundo também é assim. Estamos presenciando em 2010 esse fenômeno de calor exa-gerado e as nossas residências não são equipadas para um país de clima quente. O pé direito dos edifícios foram rebai-xados a patamares insuportáveis para a temperatura bra-sileira. Novas nor-mas de construção que respeitem o clima devem ser estabelecidas. A mudança deve começar, inclusi-ve, no ensino de algumas escolas de Arquitetura, que absorveram esse padrão de construção inade-quado para países tropicais.

Jornal da UFRJ: E o Plano Decenal de Energia, o senhor o considera adequa-do à previsão de crescimento da economia nos próximos anos?

Adilson de Oliveira: O Plano Decenal está padecendo de um problema que não decorre de sua elaboração. Ele foi feito num período em que a economia mun-dial estava crescendo de forma significa-tiva, antes da crise, que estourou em fins de 2007. Portanto, o Plano tem uma previsão de demanda relativamente oti-mista, uma vez que estava baseado na-quelas trajetórias de crescimento de um período de expansão. Acho que ele deve ser refeito para se adequar à nova realida-de de crescimento econômico mundial. Por isso mesmo, o empreendimento de Belo Monte poderia ser postergado para depois desse ajuste.

Jornal da UFRJ: Em relação à matriz energética brasileira, o Plano a tornará mais limpa ou mais suja?

Adilson de Oliveira: O Plano pretende manter o padrão brasileiro. Mas, na prá-tica, o que foi planejado não está sendo executado. Isso acontece não por culpa do plano em si, mas porque os instrumentos

utilizados para implementá-lo não estão induzindo os agentes econômicos a se comportarem conforme o planejado.

Jornal da UFRJ: Como assim?

Adilson de Oliveira: O Plano estabele-ce diretrizes, mas quando se realizam os leilões eles têm resultado distinto daqui-lo que se imaginava. Isso é fruto basica-mente das regras atuais. Um dos proble-mas centrais é essa vontade exagerada de construir Belo Monte e não olhar que existem diversos outros projetos meno-res de hidrelétricas que poderiam ser implantados. Outro ponto importante é que no planejamento há um viés con-trário a centrais movidas a gás natural. Isso coloca a sociedade brasileira na di-cotomia de construir hidrelétricas, como Belo Monte, ou então construir usinas térmicas a carvão e a óleo. É algo com-

pletamente equi-vocado. Não é ver-dade que o Brasil apenas tenha Belo Monte para cons-truir, assim como não é verdade que somente devamos construir térmicas a carvão ou a óleo. As térmicas a gás, muito menos po-luentes, poderiam ajudar bastante o sistema elétrico brasileiro. Infeliz-mente, as regras do leilão são feitas de tal forma que induzem a essa aparente dicoto-mia e colocam o país como refém de Belo Monte. É

uma estrutura de planejamento inade-quado à realidade.

Jornal da UFRJ: O Brasil ainda subesti-ma as energias alternativas, como a eólica e a solar?

Adilson de Oliveira: De certa forma. A energia eólica é um pouco mais cara do que as outras fontes alternativas, inclusi-ve a hidrelétrica. E não temos uma base industrial para prover os equipamentos necessários para gerá-la. Então, se o Bra-sil quiser efetivamente produzir energia de fonte eólica teríamos que ter um pro-grama industrial específico. Nesse caso, acho que o governo vem agindo correta-mente, fazendo uma aposta progressiva na eólica. A energia solar é um pouco di-ferente. Temos um enorme espaço para utilizá-la, especialmente em regiões po-pulares. O brasileiro gosta de tomar ba-nho, o que é muito positivo, mas não de água fria. Usa-se muita eletricidade para aquecer a água. E a energia solar é perfei-ta para esse tipo de solução. No entanto, não temos um programa para difusão desse tipo de energia, em particular por-que existem alguns problemas adminis-

trativos. O controle do uso da energia elétrica nas comunidades populares é muito mal feito, o que gera a sensação de que é mais barato utilizar a energia elétrica. Portanto, esse uso de fontes al-ternativas, como a solar, passa também pela necessidade de mudar a arquitetura das construções populares. É preciso ou-tro tipo de projeto. O programa “Minha Casa, Minha Vida” deveria contemplar projetos de energia solar. Isso não está sendo feito. O que mostra pouca preo-cupação com a conservação de energia.

Jornal da UFRJ: O Brasil ainda convive com o risco de grandes “apagões”?

Adilson de Oliveira: A ministra Dilma Rousseff disse com grande propriedade que há que se diferenciar racionamento e apagão. Quando há racionamento, as pessoas querem consumir e o sistema não tem capacidade de produzir energia suficiente. É um fenômeno que aconte-ceu em 2001 e hoje esse risco pratica-mente desapareceu. Outro problema é o que chamo de blecaute, quando o siste-ma não tem confiabilidade para enfren-tar certos eventos que, muitas vezes, in-dependem da nossa vontade, como um acidente em uma torre de transmissão. Aí é preciso reestruturar o sistema, para, em um intervalo de três ou quatro horas, restabelecer o suprimento para todos.

Jornal da UFRJ: E o risco de blecautes ainda é grande?

Adilson de Oliveira: É um risco do qual o país não está livre. Mesmo porque isso pode acontecer por eventos impre-visíveis. Mas o que preocupa é o fato de estarmos construindo centrais cada vez mais distantes do grande centro de consumo, a Região Sudeste. Quando são construídas linhas de transmissão muito longas sempre se fica sujeito a problemas como o que aconteceu, re-centemente, em Itaipu, que acarretam em uma perda grande da capacidade de trazer energia até o mercado. E a reorganização dos fluxos no sistema é tão complexa que demanda tempo.

Jornal da UFRJ: O que fazer em casos como esse?

Adilson de Oliveira: Há duas coisas a se-rem feitas. A primeira é não ficar tão de-pendente assim da energia que vem de tão longe. Em segundo lugar, ter mecanismos gerenciais de proteção para, em tais cir-cunstâncias, isolar as partes mais cruciais do sistema, como hospitais, escolas, ban-cos, enfim, proteger a estrutura essencial da sociedade. É uma precaução que já existe, mas de forma pontual. É necessário alargar essa rede de proteção em grandes centros de consumo. Blecautes generalizados de 8 ou 10 horas realmente criam um caos na sociedade. E isso não pode acontecer.

Jornal da UFRJ: Em relação a outros países, como se situa o nível de investi-mento em energia no Brasil?

Não é possível

inovar, criar novas

tecnologias, com pessoas que não

sabem ler e nem

fazer conta.

Marco Fernandes

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 16 Janeiro – Março 2010Entrevista

Adilson de Oliveira: Estávamos cami-nhando no limite de nossas necessida-des até 2007. Com a queda da demanda, provocada pela crise, e as fortes chuvas que encheram os reservatórios, esta-mos numa situação confortável para os próximos três ou quatro anos, na parte elétrica. No que diz respeito ao petróleo, também estamos tranquilos. O único problema era o da importação de gás da Bolívia, superado com os últimos inves-timentos da Petrobras. Do ponto de vista energético, estamos também em situa-ção bastante confortável.

Jornal da UFRJ: E que oportunidades se descortinam para o Brasil utilizar seus recursos energéticos e crescer distribuindo renda?

Adilson de Oliveira: Estamos em um momento realmente excepcional da nossa história e podemos superar mui-tos dos nossos problemas. Por quê? Do ponto de vista político, vivemos um pro-cesso de pouca polarização. As eleições vêm aí e, embora haja diferenças parti-dárias, não identifico nenhuma mudan-ça radical de trajetória com a eleição de qualquer dos atuais presidenciáveis. Do ponto de vista econômico, a situação é bastante favorável porque temos uma oportunidade fantástica com a desco-berta do pré-sal. Um dos principais gargalos de nossa economia era exata-mente a dependência do petróleo e do gás natural. Agora, temos uma situação de quase autossuficiência na produção de petróleo como também poderemos ser fortes exportadores.

Jornal da UFRJ: Quais as vantagens dessa nova situação?

Adilson de Oliveira: São três, basica-mente. A primeira é que o petróleo é um produto com uma característica econômica importante, pois gera gran-des receitas. Isso significa que o gover-no terá condições de praticamente eli-minar o problema fiscal e, ao mesmo tempo, investir esses recursos em edu-cação, saneamento básico, ou seja, em setores que contribuam para resolver o problema da injustiça social brasileira. A segunda vantagem é que o petróleo vai permitir ao Brasil ocupar um pa-pel importante na geopolítica mundial, dado que ele é fundamental para a se-gurança energética de todos os países. Isso significa que o Brasil vai poder entrar nas negociações internacionais em condições relativamente favoráveis, utilizando o trunfo do pré-sal de forma positiva e não conflitiva. A terceira van-tagem é que esse petróleo, em função da escala de produção que poderemos ter, nos permite criar uma base industrial para suprir de bens e serviços o par-que produtor. Isso significa emprego de qualidade, pois precisaremos de muitos engenheiros, geólogos, e também ha-verá novas vagas para camadas médias, com bons salários. A estimativa é a cria-ção de até 400 mil empregos de qualida-de com o pré-sal.

Jornal da UFRJ: E teremos os cuidados ambientais necessários para explorar es-sas jazidas monumentais?

Adilson de Oliveira: Claro. Mas, com-parativamente ao que acontece em ou-tras partes do mundo, o Brasil não está tão mal. Deve-se ressaltar que a Petro-bras sempre teve uma política bastante sólida e cuidadosa com a preservação do meio ambiente. Felizmente, temos uma empresa estatal de alta tecnologia, com-petente e responsável.

Jornal da UFRJ: No que diz respeito ao Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, do qual o senhor é diretor geral. Como anda a recuperação do prédio onde ele funciona?

Adilson de Oliveira: Estou dirigindo o Colégio há dois anos, devido a um convite do reitor Aloísio Teixeira, que muito me honrou. Ele está sediado no prédio que abrigou a Casa do Es-tudante Universitário, na Avenida Rui Barbosa, no Flamengo. O prédio, belís-simo, está sendo restaurado, mas não sem certa dificuldade, pois é uma edi-ficação histórica que tem custo elevado de restauração. Estamos fazendo essa obra com recursos que não são da Uni-versidade, mas que recolhemos através da Lei Rouanet. Tivemos a felicidade de ter o apoio da Eletrobrás e da Petro-bras nessa empreitada. Mas estamos ainda buscando captar alguns milhões para finalizar a obra. Por isso mesmo,

as atividades do Colégio têm sido cen-tradas muito mais nessa ação inicial de restauração do prédio e de progressi-va organização para termos condições operacionais plenas em 2010.

Jornal da UFRJ: E quais são as princi-pais atribuições do Colégio?

Adilson de Oliveira: O Colégio foi idealizado como um lugar que preten-de congregar pesquisadores da UFRJ em torno de estudos de temas que não são feitos em suas áreas específicas de trabalho. Não tem sentido fazer uma atividade, por exemplo, que poderia ser feita pelo Instituto de Economia ou pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. O que queremos é con-gregar atividades de diversas áreas de conhecimento da UFRJ sobre te-mas que sejam orientados para a per-cepção do papel do Brasil no longo prazo. O nosso foco é compreender a dinâmica brasileira e olhar estrate-gicamente para o futuro, em quatro grandes dimensões.

Jornal da UFRJ: E quais são elas?

Adilson de Oliveira: Realizaremos atividades interdisciplinares, com professores da UFRJ, mas também com docentes de outras instituições, do Brasil ou do exterior, com algumas linhas de trabalho. Uma é a percepção sobre o papel do Brasil no mundo, ou seja, onde estará o Brasil daqui a 50

anos do ponto de vista geopolítico. A segunda dimensão é o tema da ocupa-ção do espaço territorial brasileiro, já que somos um país relativamente fra-cionado do ponto de vista do espaço geográfico. Temos uma enorme con-centração de atividades em São Pau-lo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo. Queremos refletir a respeito de como construir um espaço mais harmônico e articular o processo de incorporação social e econômica de regiões menos dinâmicas. A tercei-ra questão diz respeito à capacidade cientifica e tecnológica brasileira. Na década de 1950, o país tinha uma co-munidade científica quase irrelevan-te, que cresceu muito nos últimos 60 anos. A idéia é saber o que essa comu-nidade científica está fazendo e quais são as grandes trajetórias tecnológicas que interessam à sociedade brasileira, incluindo a articulação tanto do espa-ço doméstico como do internacional. E a última vertente é a cultura. O Bra-sil se distingue de outras sociedades por causa da miscigenação forte e da cultura rica e diversificada. Também temos uma alma brasileira, uma ale-gria de viver, mesmo enfrentando problemas, que nos causa orgulho. Como essa cultura vai se desenvolver e como ela é percebida pelas outras sociedades? Como a tornaremos cada vez mais respeitada e conhecida no resto do mundo? Essas são questões importantes para o nosso futuro.

Jornal da UFRJ: E quais serão as ati-vidades que darão suporte à reflexão acerca desses grandes eixos temáticos?

Adilson de Oliveira: Uma das ati-vidades será a organização de sim-pósios, a partir deste ano. Também faremos algum tipo de pesquisa, reu-nindo professores de áreas distintas, que poderão produzir documentos com análises de longo prazo. Estamos trabalhando com a ideia de criar um centro específico de reflexão sobre o papel dos combustíveis, e do petróleo em particular, na economia brasileira nas próximas décadas. E, finalmen-te, vamos lançar algumas publicações para disseminar o conhecimento pro-duzido em pesquisas e simpósios.

Jornal da UFRJ: Haverá algum tipo de articulação do Colégio com instâncias públicas no sentido de informar e sub-sidiar políticas de longo prazo?

Adilson de Oliveira: Esse é o nosso objetivo maior, ou seja, fazer com que esses estudos alimentem políticas pú-blicas estratégicas e contribuam para a agenda social e também a agenda empresarial. Esperamos criar pontes de diálogo e articulação com esses agentes, criando novas oportunida-des de desenvolvimento para o país. Vejo com muito entusiasmo a possi-bilidade de construirmos um cami-nho para que o Brasil supere as suas dificuldades.

Marco Fernandes

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 17Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Esporte

Escolhida sede dos Jogos Olímpicos de 2016, a cidade do Rio de Janeiro terá uma chance histórica de se reinventar. O desejo oficial é seguir o modelo da cidade espanhola que abrigou os Jogos em 1992, mas o desafio de garantir um amplo legado socioesportivo ainda preocupa especialistas.

Um antigo sonho bra-sileiro foi alcançado, no dia 2 de outubro de 2009, quando, em

eleição realizada em Copenhague (Di-namarca), a cidade do Rio de Janeiro desbancou Madri, Tóquio e Chicago, e conquistou o direito de sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016.

Embora a candidatura carioca fos-se considerada, tecnicamente, inferior à madrilenha, prevaleceram, na deci-são do Comitê Olímpico Internacional (COI), o amplo apoio popular e gover-namental à candidatura do Rio, a cam-panha muito bem conduzida, o bom momento político e econômico que conferiu inédita proeminência interna-cional ao Brasil, bem como a elogiada consistência do projeto elaborado pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB).

Passada a euforia nacional que su-cedeu a escolha da sede olímpica, a rea-lidade bate à porta. Caso o Brasil queira consolidar seu prestígio e espelhá-lo em um evento impecável, há muito trabalho a ser feito. Sobretudo, quan-do a meta, propalada pelos governos federal, estadual e municipal, é a de fazer não apenas um bem-sucedido certame esportivo, mas legar à cidade reformas estruturais que a transfor-mem para melhor.

Nova Barcelona?

Rio de Janeiro

Projeto do Parque Olimpico do Rio a ser construido na Barra da Tijuca

Bruno Franco

RIO2016/BCMF Arquitetos

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 18 Janeiro – Março 2010Esporte

Os dois prefeitos assinaram um convênio para que a organização dos Jogos do Rio acompanhe os prepara-tivos das Olimpíadas de Londres. No planejamento inglês, parte significati-va dos assentos do Estádio Olímpico (55 mil do total de 80 mil) e do Par-que Aquático (15 mil de uma soma de 17.500) será provisória e as equipes de ambas as cidades discutirão a possibi-lidade desse material ser utilizado nos Jogos de 2016.

Além disso, a Prefeitura carioca busca criar no Rio um empreendi-mento semelhante ao Think London, agência público-privada de atração de investimentos que, desde sua criação,

em 1994, levou mais de 1.400 empre-sas de 40 países para Londres e criou 50 mil empregos na cidade.

Com a escolha de Londres para sede das Olimpíadas de 2012, o Think London vislumbrou novas oportuni-dades de investimento e mapeou toda a cadeia produtiva dos Jogos de Pe-quim, buscando levar para Londres in-vestimentos semelhantes aos feitos na capital chinesa.

Mike Charlton, diretor da agência, e Paes acertaram uma futura reunião com empresários que investirão em Londres e têm interesse em investir de igual modo nos Jogos do Rio de Janei-ro.

Propostas insuficientesPara Ricardo Esteves, o problema

não é o que está sendo planejado e sim o que não está sendo planejado. Fala-

Para Waldyr Ramos, diretor da Escola de Educação Física e Despor-to (EEFD) da UFRJ, será um desafio transformar em realidade o bom pro-jeto proposto pelo COB tendo em vista as dificuldades brasileiras em agilizar processos de licitação. Ramos destaca que a utilização das instalações deve ser planejada pelo Comitê. “Muitos equipamentos esportivos olímpicos são construções grandiosas, mas as cidades têm dificuldade de utilizá-los após os Jogos”, ressalta o professor.

Para Ricardo Esteves, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, espera-se de um even-to dessa magnitude que deixe algum legado para a cidade, como aconteceu em outras sedes de Jogos Olímpicos: “o que de certa maneira não ocorreu no Rio com o Pan-Americano, em que o legado ficou restrito aos equipamentos esportivos”.

Visca Barça!O modelo a ser seguido é o de

Barcelona. A principal cidade da Ca-talunha, região espanhola de forte identidade étnica e cultural, possuía importantes áreas urbanas em fran-ca decadência, como a sua zona por-tuária, e os investimentos feitos para as Olimpíadas foram determinantes para tornar Barcelona um dos destinos tu-rísticos mais importantes da Europa.

O governo municipal manifestou, desde a eleição, o desejo de aprender com as experiências de cidades que já sediaram os Jogos e com elas estabele-cer parcerias. Em uma série de encon-tros internacionais, batizada como Rio Roadshow Olímpico, o prefeito Eduar-do Paes encontrou-se, no final de outu-bro, com seu colega catalão, Jordi Her-reu, e reiterou o anseio de que o “Rio se torne a Barcelona de amanhã”. Herreu, por sua vez, garantiu-lhe apoio: “vocês estão começando um sonho, nós já passamos por isso. Na construção des-se sonho, terão Barcelona a seu lado”.

Além de Herreu, Paes reuniu-se com Pascoal Maragal, prefeito de Barcelona à época dos Jogos, e tam-bém com Nikitas Kaklamanis e Dora Bakoianis, atual prefeito e ex-prefeita de Atenas (sede dos Jogos de 2004) e com o prefeito de Londres, a sede dos próximos Jogos (2012), Boris Johnson.

se de investimentos, boa parte deles na área de transportes, como o corredor T5, ligando Barra da Tijuca à Penha, a ligação C entre Barra e Deodoro e cor-redores de ônibus. No entanto – avalia o urbanista – “a menos que se planeje uma reorganização do sistema de li-nhas de ônibus, não haverá um corre-dor eficaz quando terminar o evento.”

Esteves defende que os sistemas de trens, barcas e metrô devem ser melhorados. “A Supervia, concessio-nária dos trens, não foi capaz de fazer acontecer o cenário proposto na época das concessões. Hoje transporta 430 mil passageiros quando devia e po-dia transportar dois milhões“, critica

o professor da FAU. Ele lembra ainda o potencial de ligação entre São Gon-çalo, Ilha do Governador e Centro por barcas: “Temos um espelho d´água ex-celente e não aproveitamos isso. Temos um sistema de metrô proposto pelo governo do estado com seis linhas e esperamos que o governo faça os in-vestimentos que ele mesmo disse que iria fazer”.

Para Esteves, o alto custo da cons-trução de linhas de metrô é um argu-mento falacioso para justificar a ina-ção do poder público. “É como se não investir em transporte fosse significar uma economia que não existe. A con-ta de não termos o metrô existe. Nós pagamos um pouco todo dia. Caro é ter a vida nessa cidade sem um sistema de transportes eficiente”, desmistifica o urbanista.

O professor critica o ex-prefeito

por ter gasto na Cidade da Música cerca de metade do valor estimado da linha quatro do metrô. “O ganho para a cidade seria muito maior caso fosse construída a linha”, afirma Esteves.

Segundo o urbanista, o prazo con-vencional para a construção metro-viária, é de uma estação por ano. No entanto, como o traçado está pronto, pode haver o início simultâneo de obras em diversas estações: “assim, quatro anos seriam suficientes para pôr em operação uma linha de metrô dependendo do processo construtivo”.

Esteves lamenta ainda a não in-clusão da bicicleta como opção de transporte público. Isso mostra que o espírito olímpico ainda não baixou na equipe que está tocando o projeto. “Se-ria vantajoso fazer uma conexão entre bicicleta-trem ou bicicleta-metrô, bi-cicleta-corredor de ônibus. O impor-tante é reduzir o uso do carro. O que congestiona essa cidade é o excesso de carros. Repensar as formas de circula-ção dessa cidade é necessário e o mo-mento olímpico permite isso”, sugere o especialista.

Os primeiros projetosUm dos projetos elaborados para

recuperar a cidade e prepará-la para as Olimpíadas é o Porto Maravilha, que visa a transformar a Zona Portu-ária em área de lazer e entretenimen-to. O plano prevê, entre outras obras a construção de um parque, com quiosques, restaurantes, banheiros públicos, anfiteatro ao ar livre, lâmina d’água, espaço multiuso, estaciona-mento, a Pinacoteca do Rio de Janeiro e uma alça rodoviária na Av. Brasil para desafogar o trânsito. O conjunto de intervenções deve exigir investi-mentos da ordem de R$ 200 milhões. Os gastos e o cronograma de todas as obras olímpicas deverão estar dis-poníveis na página eletrônica www.transparenciaolimpica.com.br

Outro projeto elaborado em fun-ção dos Jogos é o Rio em Forma Olím-pica, voltado para crianças de seis a 16 anos, cujo objetivo é ampliar o núme-ro de escolinhas de esportes e vilas olímpicas, bem como profissionalizar aquelas que se destacarem. A previsão da Prefeitura é alcançar em torno de 30 mil crianças numa primeira fase, com

“O problema não

é o que está sendo

planejado para o

megaevento esportivo,

mas sim o que não está

sendo planejado”.

reprodução

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 19Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Equipe Técnica do Plano Diretor/ Atelier Universitário

Esporte

aulas três vezes por semana em mais de 600 pontos da cidade.

Para Waldyr Ramos, o Rio em Forma Olímpica parece um projeto muito tímido e sem características es-truturantes. “É um projeto feito para ser dirigido por organizações sociais. Não tenho nada contra elas, mas não há nada que garanta que é uma polí-tica que veio para ficar. Isso vai ficar ao sabor dos orçamentos, discutidos anualmente, ao sabor de políticas de governo e não de políticas de Estado. Uma das dimensões do projeto visa a detectar talentos. Mas e aí? Quem vai cuidar desses talentos e empregá-los”, avalia o professor.

Segundo Ramos, é desejável que o país obtenha muitas medalhas, mas não se consegue isso em sete anos, não

se muda a realidade sócio-esportiva de um país em prazo tão curto. “Eu me daria por satisfeito se construíssem novas escolas, com quadras e pátios esportivos nos bairros que nucleassem as escolas do seu entorno, geridas pe-las CRE – Coordenadorias Regionais de Educação”, pondera o diretor da EEFD.

Olimpíadas da BarraNovos equipamentos esportivos

são necessários para que a cidade se adeque às normas do COI. Entre as instalações que serão construídas estão o Centro Olímpico de Treina-mento (COT), com sede na Barra da Tijuca, ao lado da Vila Olímpica e que servirá para a preparação das equipes brasileiras e internacionais, e o Par-

A Cidade Universitária poderá oferecer condições de treinamento para de-legações estrangeiras em eventos de grande porte com a construção do

Complexo Integrado de Atividade Física (Ciaf), proposto no Plano Diretor UFRJ 2020. Esboçado antes da escolha do Rio como sede olímpica, o Ciaf foi pensado para atender a projetos de desenvolvimento do esporte na universi-dade. “A EEFD opera na capacidade máxima e sua demanda é muito grande. Podemos utilizar esse espaço para o esporte base, para o treinamento de nossos estudantes, para sediar competições universitárias e regionais. Há uma carên-cia de espaços para sediar eventos de maior porte na cidade do Rio de Janeiro. Em competições de natação, por exemplo, o Maria Lenk e o Julio de Lamare são muito caros”, explica Waldir Ramos.

O Ciaf funcionará com módulos que comportarão piscinas, espaço náutico, campo de futebol, pista de atletismo, ginásio, ginásio de lutas, para espor-

te de alto nível e de base, bem como áreas externas para o lazer, com ciclovia, espaço para caminhada, atendendo também às comunidades do entorno da Cidade Universitária.

Desenvolvimento do esporte na UFRJ

Pista de AtletismoPraia Olímpica

Espaço Náutico

que Radical, em Deodoro (X Park), que vai abrigar as provas de Ciclismo (BMX e mountain bike), além de ca-noagem.

O estádio olímpico João Havelan-ge (Engenhão) terá sua capacidade expandida dos atuais 45 mil lugares para 60 mil e o estádio Mário Filho (Maracanã), palco das cerimônias de abertura e encerramento, bem como das partidas de futebol, também será reformado. O vôlei de praia, a ma-ratona aquática e o triatlo serão dis-putados na praia de Copacabana. Na Lagoa Rodrigo de Freitas, terão lugar as competições de remo e canoagem, enquanto o iatismo será disputado na Marina da Glória. O Parque do Fla-mengo sediará o ciclismo (estrada) e a marcha atlética. O Sambódromo será

palco das provas de Tiro com Arco, além da chegada e da largada da Mara-tona Olímpica.

A maior parte das instalações olímpicas ficará na Barra da Tiju-ca, uma escolha criticável, na vi-são de Ramos. “Eu penso que uma vez que os Jogos envolverão gran-des recursos, estes deveriam ser aplicados em uma região carente de investimentos. Como a região portuária, que traria mais bene-fícios à cidade e à população que mais utiliza meios de transporte público, de baixa renda”, explica o pro-fessor que suspeita haver uma correla-ção entre a preferência pela Barra e os vultosos investimentos imobiliários que se concentram nesse bairro e que se va-lorizarão com as Olimpíadas.

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 20 Janeiro – Março 2010Trabalho

O Brasil é o maior produtor de açúcar e álcool do mun-do. Para fazer funcionar as

engrenagens das 400 indústrias de cana espalhadas pelo país, são necessários um milhão de trabalhadores. Boa parte de-les, entretanto, é submetida a condições de trabalho exploratórias e não possui seus direitos trabalhistas respeitados.

As irregularidades encontradas nas lavouras canavieiras remetem, guarda-das as devidas proporções, à escravidão do século XIX. Tanto é que muitos pes-quisadores denominam as atividades ali realizadas como trabalho escravo con-temporâneo.

Por serem oriundos dos confins mais pobres do país, os trabalhadores enxergam nos canaviais de São Paulo a oportunidade de melhorarem de vida. “São pessoas invisíveis aos olhos do go-verno. Resta a eles apenas a migração forçada e temporária para áreas mais desenvolvidas do país”, afirmou Antô-nio Almeida, pesquisador da PUC-SP, durante a III Reunião Científica Traba-lho Escravo Contemporâneo e Questões Correlatas. O encontro, ocorrido em outubro de 2009, foi organizado pelo Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) da UFRJ.

Novas senzalasAssim que chegam ao Sudeste e de-

pois de arregimentados para extraírem a cana, os trabalhadores se instalam em barracos e cortiços da periferia das cidades. Pagam, em média, 150 reais mensais por essas moradias, intitula-das por Almeida de “novas senzalas”. Nelas, os bóias-frias dormem amon-toados no chão ou dividem um único colchão com cerca de seis colegas de trabalho.

Esses trabalhadores são, em geral, homens entre 18 e 20 anos, e analfa-betos funcionais — possuem de 3 a 7 anos de escolaridade. “O perfil desse trabalhador é o homem jovem, com vigor físico e habilidade adquirida, geralmente, em um trabalho tão duro quanto o corte da cana: o trabalho na roça, com a enxada. Ele troca a enxada pelo facão. O lápis não entra nessa his-tória, porque o período da safra coincide

da canaJovens nordestinos entre 18 e 20 anos aceitam o ritmo massacrante desses trabalho nos canaviais

do Sudeste para fugir à fome e à indigência. Para estudiosos do fenômeno, eles vivem em condições semelhantes às da escravidão.

Aline Durães

com o período letivo”, explica José Rober-to Novaes, professor do Instituto de Eco-nomia da UFRJ.

Nos canaviais, os trabalhadores são instados a cortar de 10 a 15 toneladas de cana por dia. Caso não cumpram a meta, podem ser demitidos no segundo mês de contrato. O ritmo intenso de trabalho provoca uma série de infortúnios: doen-ças respiratórias, câimbras, tendinites, problemas de coluna e, não raro, morte. De abril de 2004 a julho de 2008, 21 tra-balhadores morreram por exaustão nos canaviais de São Paulo. “Essa é uma es-tatística; sabemos que, na prática, esse nú-mero é maior”, observou Antônio Almeida.

Migrar é, para muitos jovens brasileiros, a única alternativa à fome e à indigência. Nem mesmo as condições massacrantes do dia-a-dia nos canaviais são capazes de desanimá-los. “Muitas vezes, eles agrade-cem a oportunidade de trabalharem com a cana. Isso porque, na terra deles, a condição é ainda pior. No Sudeste, eles viram consu-midores, passam a comprar DVD, tevês, ge-ladeiras, motocicletas. Isso faz com que eles enxerguem o trabalho no canavial como uma oportunidade. Por isso não reivin-dicam os seus direitos, pois precisam da-quele trabalho”, narra José Roberto.

Carteira assinada, direitos negadosPor terem carteira assinada, alguns

pesquisadores se negam a classificar esses trabalhadores como escravos con-temporâneos. O cotidiano nos canaviais mostra, entretanto, que o atual regime de trabalho dos bóias-frias se assemelha com a escravidão do século XIX. Embo-

ra as empresas carimbem o documento, é comum não recolherem o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Os exames admissionais também nem sempre são realizados de forma ade-quada. “O problema não se restringe às leis trabalhistas, as condições em que o trabalho é efetuado são péssimas”, realça José Roberto Novaes.

Nem todas as empresas descumprem a lei, entretanto. Diante de uma fiscaliza-ção cada vez mais atuante do Ministério do Trabalho no campo, muitas usinas passaram a seguir à risca a legislação tra-balhista. EPI (equipamentos de proteção individual) que reduzem o risco de aci-dentes durante o corte, ônibus cobertos nos quais o trabalhador pode se proteger do sol durante o almoço, complexos vi-tamínicos que minimizam dores mus-culares e câimbras, alojamentos mais adequados, essas foram algumas das conquistas obtidas pelos bóias-frias nos últimos anos.

Elas, contudo, não se traduzem, na prática, em melhores condições de vida. Os equipamentos de proteção, por exemplo, embora existam, não dispõem de boa qualidade, e sua reposição é de-morada. As luvas e os sapatos são de ta-manho único e, por isso, nem sempre se ajustam às mãos e aos pés dos cortadores. Os óculos de proteção ficam embaçados por conta da fuligem da cana, o que os leva, frequentemente, a abandoná-los no decorrer do expediente. “O empresário cede os equipamentos, mas o trabalha-dor não usa, porque, no fim das contas, eles atrapalham o trabalho. A perneira,

por exemplo, dificulta os movimentos. Com isso, o trabalhador passa a ser res-ponsabilizado por possíveis problemas. Falta adequar os EPI à realidade dos ca-naviais”, avalia Novaes.

Cada trabalhador recebe por produ-ção, ou seja, seus salários variam de acor-do com a quantidade de cana cortada. O ganho por produtividade somado às bai-xas remunerações — paga-se, em média, 3 reais por tonelada extraída — compe-lem esses homens, muitas vezes, a ul-trapassarem os limites físicos. Não raro, trabalham até mesmo em seus horários de pausa; para economizar tempo, almo-çam sob o sol, aspirando o pó da cana. “Eles têm uma hora para o almoço e pausas durante a manhã e a tarde. Mas o próprio trabalhador não quer parar, por-que, se ele parar, ganha menos. Ganhar menos significa para ele ganhar aquém do necessário para sobreviver em condi-ções de pobreza. Ele não pode se dar ao luxo de parar”, enfatiza o professor.

Embora reconheça que os direitos trabalhistas sejam conquistas sociais dos trabalhadores da cana, José Roberto No-vaes acredita que o esquema de ganho por produção as invalida. “Se o conjunto de melhorias não estiver relacionado à diminuição do ritmo e da intensidade do trabalho, não adianta. Toda a legislação trabalhista pode estar sendo cumprida, mas ainda haverá trabalhadores morren-do por excesso de trabalho na produção”, informa o economista.

Mecanização e Reforma AgráriaNa década de 1980, cada trabalha-

dor costumava produzir, diariamente, cinco toneladas de cana cortada. Em 20 anos, esse número quase triplicou, sem haver qualquer modificação substancial nas tecnologias de corte. Francisco José Alves, professor da Universidade Fede-ral de São Carlos (UFScar), explica que houve uma intensificação do trabalho nos canaviais. Para o pesquisador, esse processo deve ser interrompido pela completa mecanização da extração. “Cortar cana não é trabalho para ser hu-mano”, defende o pesquisador.

Se hoje o trabalho nas lavouras cana-vieiras fosse completamente mecaniza-do, cerca de 180 mil trabalhadores, pro-

O papel da universidade A discussão acerca de melhores condições para os cortadores

de cana ainda está longe do fim. Um debate apurado, com intensa participação social, é crucial para que a questão da superexploração do trabalho no campo seja solucionada.

Na opinião de José Roberto Novaes, a universidade, como espa-ço de construção de conhecimentos e de reflexões, pode auxiliar nesse processo. “A universidade é universalidade e deve estar vol-tada para atender demandas desse segmento social que não tem recursos. Ela deve, cada vez mais, se constituir em um espaço de produção de material reflexivo. Refletir sobre a ideia de processo social, refletir sobre a história e sobre as lutas sociais é um papel preponderante que a universidade deve lutar para ampliar”, opina o pesquisador.

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 21Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

venientes apenas do estado de São Paulo, ficariam desempregados. Para evitar esse cenário caótico, Alves sugere a distribui-ção de terras: “A migração forçada, o pa-gamento por produção e a inexistência de políticas públicas compensatórias ajudam a entender a intensificação do trabalho. O processo de exploração de trabalhadores no campo somente terá fim com a Refor-ma Agrária”, aponta Francisco Alves.

José Roberto Novaes compartilha dessa opinião. Para o economista, a ques-tão central é pensar como realocar no mercado de trabalho o contingente de trabalhadores que perderá seus pos-tos com a mecanização completa do campo brasileiro. “Os cortadores de

Jefferson Nepomuceno

cana são jovens que vieram da terra, mas que, diante das dificuldades en-contradas em suas regiões de origem, se desiludiram com a possibilidade de trabalhar com a agricultura familiar. Deve-se, então, encontrar mecanismos que fixem o homem à terra e, assim, não o obrigue a migrar. Ele pode migrar, mas por opção e não por necessidade”, ressalta o professor da UFRJ.

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 22 Janeiro – Março 2010Saúde

Os novos velhos alimentos

Antigamente, comer bem – no sentido nutricional, não no gastronômico –

era, para o senso comum, comer muito. Numa época em que a morte por desnutrição era rotineira, o im-portante era “encher a barriga” para saciar a fome.

No Brasil, o problema da falta de comida convivia com a tradição de uma alimentação farta e pesada, he-rança dos colonizadores portugue-ses, dos africanos e dos imigrantes europeus. Mesmo nas famílias

Pesquisas no campo da Nutrição que associam o consumo de alimentos à redução do risco de doenças, como o câncer, incentivam o consumo de antigos alimentos da dieta brasileira.

abastadas, comia-se com avidez. Por outro lado, os enormes rebanhos de gado que se espalharam ao longo dos séculos pelas terras brasileiras, garantiam a base carnívora de nossa alimentação – complementada por frutas, legumes e hortaliças.

Até a década de 1980, as pesqui-sas nutricionais no Brasil davam ên-fase às doenças endêmicas da popu-lação. Buscava-se saber, por meio das propriedades nutricionais dos ali-mentos, em que eles poderiam servir

ao combate da fome e ao

fortalecimento da frágil constituição física do brasileiro. Por outro lado, a cultura alimentar brasileira persiste carnívora e pesada, com a voraz assi-milação da miríade de alimentos in-dustrializados e fast-foods. Essa é uma das causas, no século XXI, para o au-mento de uma das novas doenças con-temporâneas, a obesidade, que atinge mesmo as classes baixas. Além dela, estão hoje associadas ao problema da alimentação do brasileiro o câncer e as

doenças cardiovascula-res.

Surge a NutracêuticaA pesquisa nutricional tem acom-

panhado esses problemas ligados à alimentação e à saúde da população. A antiga nutrição, que tinha acesso aos componentes nutricionais mais facil-mente identificáveis, foi sobreposta por

uma pesquisa destinada a identifi-car compostos que tenham uma

ação relacionada à redução do risco de doenças. Esse campo de investigação, denominado Nutracêutica, fruto da junção

de Nutrição e Farmacêutica, resultou na chamada nutrição

funcional, conceito surgido no Ja-pão, na década de 1980, a partir da

identificação de novos componentes

em alimentos há muito estudados pela Nutrição tradicional.

Eliane Fialho, professora do Ins-tituto de Nutrição Josué de Castro (INJC) da UFRJ, esclarece que a no-vidade está em um novo tipo de estu-do dos velhos alimentos. “O alimento funcional é considerado um alimento como qualquer outro”, analisa a pes-quisadora, acrescentando que todos os alimentos do reino vegetal têm com-postos bioativos e são, portanto, con-siderados alimentos funcionais.Polife-nóis, fitatos, oligossacarídeos, carote-nóides, fibras, fitoquímicos são alguns dos compostos bioativos, substâncias responsáveis por dar qualidade funcio-nal ao alimento. Eles produzem efeitos metabólicos e fisiológicos úteis à boa saúde do organismo (propriedade funcional), além de auxiliar no com-bate a doenças crônicas e degenerati-vas – características necessárias para registrá-los como alimentos com propriedade funcional ou de saúde, segundo legislação estabelecida pela Agência Nacional de Vigilância Sani-tária (Anvisa), em 1999.

Pesquisas avançamEliane Fialho aponta que é neces-

sário, para comprovar a propriedade funcional, primeiro, identificar em

Diogo Cunha

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 23Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Saúde

laboratório as substâncias do alimen-to. Depois, realizar ensaios experi-mentais em cobaias. Somente assim, poderão ser feitos os ensaios clínicos com seres humanos. “Todo esse ca-minho leva muito tempo, podendo chegar a 10 ou 20 anos”, avalia a pes-quisadora. Por isso, a maioria dos es-tudos relacionados às propriedades funcionais dos alimentos ainda não apresenta resultados conclusivos. Não se pode ainda, portanto, quan-tificar a eficiência da maioria deles. Às vezes, existe a certeza quanto à propriedade funcional, mas não se pode traduzir em números essa pro-priedade. Outras vezes, nem essa certeza se consegue estabelecer. “Às vezes, o alimento tem uma quanti-dade determinada de uma substân-cia, mas não é considerado fonte porque não tem outros componen-tes que favoreçam a absorção pelo organismo”, explica a nutricionista Cristina Freitas, também professora do Instituto de Nutrição da UFRJ.

No entanto, as pesquisas já pos-sibilitaram o tabelamento de alguns alimentos. Há tabelas da Associação Dietética Americana (ADA) e do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). No Brasil, uma tabela de composição de ali-mentos está sendo feita pela Univer-sidade de São Paulo (USP).

Prevenção de câncerMesmo ainda não conclusivos,

os estudos têm recolhido evidên-cias das propriedades funcionais e

de saúde dos alimentos. O tomate, a goiaba e a melancia, por exemplo, estão senso associados à redução do risco de ocorrência do câncer de próstata. A razão é a presença do carotenóide licopeno, um pigmento que dá a coloração vermelha a esses alimentos. Os derivados de tomate que passaram por processamento térmico, como o molho de toma-te e o ketchup, apresentam maior

biodisponibilidade de licopeno, ou seja, apresentam maior quantida-de deste composto pronto para

ser absorvido pelo organis-mo, podendo, portanto, ser mais eficiente na prevenção.

Outro exemplo está na soja e em seus produ-

tos fermentados, como o tofu e o molho tipo shoyo. A isoflavona, um

composto bioativo pre-sente em grande quantida-de na soja, está associado à

redução dos sintomas da me-nopausa e do risco de câncer

de mama e de útero, além de doenças cardiovascu-lares. Este composto está

mais biodisponível justa-mente nos derivados de soja

que sofreram processo de fermen-tação.

Dentro do conjunto de alimentos funcionais se destacam dois grupos importantes, os alimentos probió-ticos e prebióticos. Os probioticos contém bactérias vivas que traba-lham para a manutenção da boa saúde intestinal; são os iogurtes e os leites fermentados. Já os prebioticos contém o alimento para essas bacté-rias. Estes alimentos são compostos bioativos como os oligossacarídeos, as fibras, os açúcares e os álcoois de açúcares. A alcachofra, a banana e a batata yacon são considerados ali-mentos prebioticos.

Benefícios do vinhoUm exemplo de composto que

já conta com ensaios clínicos com humanos é o resveratrol. Esse po-lifenol, presente na uva, no suco de uva e no vinho tinto, é associado à redução do risco de doenças car-diovasculares e de diversos tipos de câncer. Há inclusive a recomendação da ADA para que se tome um cálice com 200 ml de vinho tinto por dia. A respeito desse composto, Eliane Fialho cita uma informação que evi-dencia quanto os estudos ainda têm a progredir: “no mundo inteiro não se chegou a 15 ensaios clínicos com resveratrol. Desses, somente quatro ou cinco foram concluídos. Portanto, é muito cedo para afirmar que uma determinada quantidade desse com-posto isolado no alimento vai dar um benefício final, evitando que a mulher tenha câncer de mama, por exemplo”.

A nutricionista afirma que a mí-dia acaba divulgando informações prematuras, quando afirma que um determinado alimento que não pas-sou por testes clínicos vai impedir a ocorrência de uma doença. Para ela, a pessoa deve procurar orientação do profissional de saúde antes de se-guir as dicas da televisão. No entanto, não se deve esperar desse profissional receitas infalíveis. “Eu não tenho dú-vidas a respeito dos benefícios desses alimentos, mas não vou receitar cinco

“A mídia acaba divulgando informações

prematuramente, quando

afirma que um determinado alimento que

não passou por testes clínicos vai impedir a

ocorrência de uma doença.”

A despeito das incertezas com relação à eficiência dos alimentos, a indústria farmacêutica vem cada vez mais vendendo esses compos-tos como remédios. Eliane Fialho atesta tal tendência. “A indústria farmacêutica está ávida por esse tipo de pesquisa. Já encontramos diversas farmácias de manipulação com produtos que podem ser pres-critos por médicos e nutricionistas. Além disso, existem produtos pron-tos para a compra que muitas vezes não atendem à real necessidade do indivíduo”, afirma ela, acrescentan-do que a indústria de cosméticos também está investindo na área.

Para Luiz Eduardo Carvalho, professor da Faculdade de Farmá-cia da UFRJ, o conceito de alimento funcional serve mais à indústria. “Para poder registrar como alimen-to é que se inventou na lei esse con-ceito de funcional. Paga-se o regis-tro de alimento, que é barato, não é preciso provar os efeitos clínicos, e vende o alimento com caixinha de remédio, dentro da farmácia, com propaganda de remédio”, frisa Car-valho, que é coordenador do Labo-ratório de Vida Urbana, Consumo e Saúde (LabConsS) da Faculdade de Farmácia. Segundo ele, o conceito de alimento funcional é desnecessário. “O alimento funcional não existe, existe uma alimentação saudável e todo mundo sabe quais são os ali-mentos saudáveis”, ressalta.

Já para Eliane Fialho, do Ins-tituto de Nutrição da UFRJ, a pes-soa deve conhecer as propriedades funcionais dos alimentos e procurar uma orientação nutricional. Para ela, se a pessoa comer muitas frutas, legumes e vegetais, fazendo uma dieta diversificada, vai desfrutar da alimentação funcional. “Não deixa de ser a nutrição antiga. Co-mer bem e também realizar exer-cício físico é mudar o estilo de vida. Tudo isso contribui para a redução do risco” conclui a professora.

Alimentos de farmácia?

gramas de resveratrol para uma mu-lher e dizer que ela não vai ter câncer”, pondera a pesquisadora.

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 24 Janeiro – Março 2010Mulher

Há 100 anos, o 8 de março era oficialmente instituído como o Dia Internacional da Mulher. Apesar dos avanços obtidos no último século, as desigualdades de gênero ainda persistem, tornando indispensáveis as políticas públicas para a promoção da igualdade entre homens e mulheres.

Aline Durães

A versão mais propa-gada sobre a origem do Dia Internacio-nal da Mulher é a que associa a data a

uma greve de operárias têxteis em Nova Iorque, ocorrida no dia 8 de março de 1857. Consta que, nesta data, as fun-cionárias ocuparam a fábrica para rei-vindicar a redução da carga horária de trabalho de 16 para 10 horas diárias. No episódio, as mulheres, que, apesar de trabalharem exaustivamente, recebiam cerca de um terço do salário dos ho-mens, foram trancadas em um galpão, onde houve um incêndio. Calcula-se que mais de 130 funcionárias tenham morrido no incidente. A partir de en-tão, mulheres de todo o mundo pas-saram a usar o 8 de março como um dia de reivindicação por direitos, como o voto feminino, por exemplo, e de de-

núncia contra a exploração e opressão femininas.

Mas foi apenas em 1910 que, duran-te a 2ª Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada na Di-namarca, o 8 de março foi oficialmente instituído como o Dia Internacional da Mulher e passou a ser mundialmente lembrado como uma data que prega a luta feminina por melhores condições de vida e de igualdade. “Essa data nos dá a oportunidade de refletir sobre as conquistas alcançadas e os desafios ain-da existentes. Diferentes instituições pú-blicas e privadas, conselhos e grupos de mulheres realizam, no dia 8, eventos que mobilizam a população, divulgam os serviços e publicizam o debate em torno dos temas da desigualdade de gênero e também encontros de avaliação e ba-lanço no campo das políticas públicas”, afirma Ludmila Fontenele, coordena-

dora do Núcleo de Saúde Reprodutiva e Trabalho Feminino da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ.

Cem anos se passaram desde a ofi-cialização do 8 de março. O sexo femi-nino obteve muitos avanços sociais e econômicos, mas a situação ainda está longe de ser a ideal. Hoje, as mulheres representam pouco mais da metade da população brasileira — 51,2% segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasi-leiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2003, constituem 42,7% da popula-ção economicamente ativa e estudam, em média, 8,4 anos. Algumas já gover-nam países, ocupam cadeiras importan-tes em grandes empresas e conseguem conciliar emprego com família. Mas a maior parte delas ainda carece de estru-tura para gozar de condições semelhan-tes às dos homens. Para se ter uma ideia, 15 milhões de lares brasileiros são che-

fiados por mulheres, mas apenas em 1,5 milhão dessas casas – uma em cada 10 – elas contam com a ajuda de um compa-nheiro para o sustento da família. As di-ferenças salariais em relação aos homens ainda persistem. A violência doméstica e o preconceito de gênero também.

Políticas públicasPara muitos especialistas, a névoa de

opressão que ainda paira sobre as cabe-ças femininas pode ser combatida com a adoção de políticas públicas específicas. Segundo eles, as desigualdades sociais entre homens e mulheres e as disparida-des existentes entre as próprias mulheres com relação à etnia, ao meio urbano ou rural e à faixa etária, merecem atenção redobrada do governo.

Os principais projetos de âmbito na-cional no Brasil com o objetivo de esta-belecer as condições necessárias para a

Jefferson Nepomuceno

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 25Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

plena cidadania feminina são os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres. Criados em 2004 e 2006, as iniciativas são compostas por 198 ações que bus-cam, entre outras metas, equilibrar o po-der entre mulheres e homens em termos de ganhos econômicos, direitos legais, participação política e relações inter-pessoais. “Esses planos representam um grande avanço e são fruto do movimen-to de mulheres articulado à sociedade ci-vil. Precisamos investir em projetos para a positivação da cidadania feminina com base em ações preventivas, protoras e de fensivas”, opina Eliana Moura, professora da ESS-UFRJ e coordenadora do Centro de Referência de Mulheres da Maré Car-minha Rosa (CRMM-CR).

Para Eliana, a implementação e a ma-nutenção de uma política pública de qua-lidade requerem a participação social, o que, segundo a pesquisadora, fortalece a politização do debate. “Os movimentos sociais em geral, e os feministas em par-ticular, se organizam em torno de lutas e demandas específicas originadas pelas questões macro-societais. A criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e das secretarias executivas, a pactuação com os municípios do Plano de Políticas Públicas para as Mulheres e a ampliação das frentes de atenção com base no envolvimento de outras áreas es-tratégicas, dinamizando e potencializan-do o pacto federativo, parecem ser uma estratégia exitosa”, avalia a coordenadora do CRMM-CR.

Mulheres da MaréO estado do Rio de Janeiro conta

hoje com 21 centros de referência de mulheres. Esses projetos acolhem repre-sentantes do sexo feminino e fornecem a elas informações e reflexões que visam fortalecer a sua autonomia. Um deles é o Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa. Criado em 2000 e localizado na Vila do João, no Bairro da Maré, o CRMM-CR é, desde 2005, um projeto integrante do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas em Direitos Hu-manos (NEPP-DH) da UFRJ. O Centro oferece acompanhamento psicossocial e jurídico a mulheres da região e orienta nas desigualdades de gênero e em casos de violência doméstica. Realiza também ações de estímulo cultural e de capacita-ção para o trabalho, através de oficinas e cursos diversos.

Ao longo desse tempo, o CRMM-CR já realizou quase 6 mil atendimentos. “A particularidade deste projeto piloto re-

side no potencial de uma universidade pública desenvolver pesquisa, ensino e extensão de modo orgânico. A preocu-pação central mescla, entre outras coi-sas, formação profissional em diversos cursos e formação de quadros na área de direitos humanos e gênero intra e extra universidade. Investimos no acolhimen-to de cada mulher, reconhecendo a sua singularidade, buscando o entendimen-to da situação que ela nos apresenta para apoiarmos profissionalmente no seu movimento de reconhecer-se em situa-ção de violência, investindo na supera-ção da mesma”, explica Eliana Moura.

O CRMM-CR atende mulheres en-tre 16 e 80 anos, moradoras da Maré.

Guerreiras Algumas delas, de acordo com a coor-denadora do centro, se declaram vitimas de violência doméstica e outras chegam atrás de orientações variadas. Entre as quais, como denunciar o agressor, o que fazer quando se é vitima de violência, pensão alimentícia, guarda, separação e recuperação de documentos próprios e dos filhos.

Uma marca persistenteA cada 15 segundos, uma mulher

sofre agressão no Brasil. Socos, tapas, pontapés, ofensas verbais, violência se-xual. Atos que, não apenas simbolizam o extremo das desigualdades de gênero, como também constituem crimes, per-

petrados, na maior parte das vezes, por homens próximos às vítimas.

Também nessa esfera tem sido maior a atenção dada pelas políticas públicas. As ações desenvolvidas incluem o es-tabelecimento e o cumprimento de leis que garantam a punição e a responsabili-zação dos autores de violência através da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). A realização de campanhas educativas e a criação da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) são, na opinião de Ludmila Fontenele, duas das mais importantes iniciativas de prevenção e combate à violência. Para a pesquisado-ra, “o tema da violência doméstica e sexual vem, por um lado, alcançan-do a visibilidade necessária na im-plementação das políticas públicas, e por outro, deparando-se, no âm-bito do planejamento e organização dos serviços, com a complexidade ainda não dimensionada de culturas institucionais distintas, programas dife-renciados e atores sociais variados”.

Muito ainda há de se caminhar para extinguir a violência de gênero. Ludmi-la lembra que, para a mulher vítima de agressão, seja ela de que natureza for, muitas vezes é difícil se desvincular da situação opressora. Na maior parte do tempo, a vítima tem medo de novas agressões e de represálias, de perder a guarda dos filhos, de romper com seus laços familiares. A esperança de o agres-sor mudar seu comportamento e a de-pendência financeira são outros agra-vantes. Além disso, não raro, as mulhe-res, quando buscam ajuda externa, não são compreendidas em sua totalidade pelos profissionais em questão. “A difi-culdade que os profissionais têm em es-tabelecer um vínculo capaz de permitir a identificação e o registro das situações de violência, associada à fragilidade na for-mação profissional dirigida à prevenção da violência, é observada em diferentes pesquisas. Por outro lado, a necessidade de respostas institucionais efetivas coloca desafios para a formação profissional e para a permanente qualificação no âm-bito dos serviços. Nesse sentido, medidas como a inclusão das temáticas de gênero, raça, direitos humanos e violência de gê-nero, de maneira articulada, na formação, tanto na graduação como pós-gradua-ção, de profissionais das diferentes áreas de políticas públicas, a possibilidade de participação em pesquisas e a supervisão dos serviços são estratégias fundamen-tais na mudança das posturas e das prá-ticas profissionais”, ressalta a professora.

ainda no século XXII

Saúde: o tabagismo como questão de gênero

Pode não parecer, mas as desigualdades de gênero influenciam também nos vícios e na saúde da mulher. Uma pesquisa, realizada por Regina Simões,

professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc), e Márcia Trotta, in-tegrante da equipe do Núcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo (NETT), do Instituto de Doenças do Tórax (IDT), ambos da UFRJ, associa as crescentes exigências e a sobrecarga de trabalho – doméstico e remunerado – que as mulheres vêm suportando na contemporaneidade ao aumento do tabagismo feminino.

Elas começam a fumar cada vez mais cedo, com uma frequência mais intensa e enfrentam maiores dificuldades para largar o vício. “A par das conquistas

realizadas pelas mulheres no que diz respeito ao acesso à escolarização, à pro-fissionalização e ao trabalho remunerado, a uma maior liberdade sexual e um relativo controle sobre a fecundidade, além das possibilidades de autorrealiza-ção profissional para uma pequena parcela da população feminina, a maioria das mulheres, em todas as sociedades ocidentais, vem arcando com demandas crescentes no que diz respeito aos encargos familiares, tanto no que diz respeito ao sustento dos filhos quanto aos cuidados da casa, da prole, da família, dos idosos e de doentes. Esta injusta ‘divisão sexual do trabalho’ é agravada pela atual conjuntura mundial de aumento do desemprego masculino, o que co-loca sobre os ombros das mulheres também a responsabilidade pela sobre-vivência econômica familiar. Como o tabagismo não estaria relacionado a essas imensas demandas e tensões?”, indaga Regina Simões.

Márcia Trotta acredita que a busca pelo ideal de beleza propagado pela grande mídia é outro fator que contribui para o aumento da incidência

do uso de cigarros entre as mulheres. “O culto à beleza e a exposição do cor-po podem gerar estresse psicológico e exacerbar as preocupações femininas com o peso, o que tende a aumentar o uso dos métodos de controle de peso, como o fumo. A propalada busca pelo ideal de beleza, pelo ‘elixir da juven-tude’ leva, em alguns casos, à perda do bom senso”, afirma a pesquisadora.

Empurradas para terem corpos perfeitos, as mulheres, segundo Trotta, quando afastadas dos padrões sociais dominantes de beleza, são rigoro-

samente julgadas e autojulgadas. E o grupo mais insatisfeito com a própria aparência são os adolescentes entre 12 e 19 anos. “É nesse grupo também que o cigarro é mais usado como uma forma de dieta, provavelmente tomando como ponto central de suas vidas a busca obsessiva pelo ideal estético de beleza e magreza. Como os jovens são imediatistas, não conseguem avaliar adequada-mente as consequências de suas escolhas para a sua saúde no futuro”, conclui Márcia Trotta.

Jefferson Nepomuceno

Mulher

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 26 Janeiro – Março 2010

soas, abrigá-las num hospício e cuidar dos alienados do ponto de vista médico. Esse é um grande passo na história da Psiquiatria”, afirma a museóloga Maria de Lourdes Parreiras Horta, pesquisado-ra do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ.

Maria de Lourdes está produzindo uma pesquisa de pós-doutorado no âmbito do PACC intitulada “O impe-rador, os doutores e os loucos: uma arqueologia de sentidos no Palácio da Praia Vermelha – UFRJ”. Ex-diretora do Museu Imperial de Petrópolis, que serviu de residência oficial do imperador e sua família, a museólo-ga afirma que existem vários pontos de aproximação entre os dois prédios históricos. Ambos foram projetados pelos mesmos engenheiros: José Ma-ria Jacinto Rebelo e Joaquim Cândido Guillobel. “Minha primeira pergunta é saber por que o palácio feito para receber alienados e doentes mentais é dez vezes maior que o palácio feito para o imperador na mesma época?”, informa a pesquisadora.

Ciência x filantropia Um dos principais formuladores

da ideia de criação de um hospital destinado para doentes mentais foi José Clemente Pereira, na ocasião provedor da Santa Casa de Misericór-dia e homem influente no Império. Nas primeiras décadas, o hospício era mantido pela Santa Casa. Os doentes ficavam sob os cuidados das irmãs de caridade, pois a Medicina Mental no Brasil estava apenas dando seus pri-meiros passos. A presença da filantro-pia e o caráter religioso do tratamento explicam a localização privilegiada da capela São Pedro de Alcântara, na parte central do 2º andar do palácio. “É quase o coração daquele edifício, marcando o tom da caridade. O hos-pício era uma ação de caridade da Santa Casa”, afirma Maria de Lourdes.

Nos primeiros anos, a maior par-te do corpo médico que atendia aos alienados era formada por clínicos. O reconhecimento da Psiquiatria como ramo da Medicina especializa-da ocorreria somente no fim do Im-pério. A primeira disciplina de doen-ças nervosas e mentais na Faculdade de Medicina surgiu em 1881. Cinco anos depois, o médico Teixeira Bran-dão, considerado o primeiro alienista brasileiro, assumiu a direção do Hos-pício Pedro II, desvinculando a insti-tuição da Santa Casa. Com a instaura-

“Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apre-ensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assober-bam, de quando em quando dou sinais de loucura, deliro. (...) Estou seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São João Batista, que é próximo”.

O relato acima consta no livro Diá-rio do Hospício – O cemitério dos vivos (Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1993), escrito por Afonso Henriques de Lima Barreto em uma de suas passagens como paciente do Hos-pital Nacional dos Alienados. Ao fazer o registro literário do próprio drama, o conhecido jornalista e escritor, inter-nado duas vezes naquele hospício com diagnóstico de alcoolismo, no início do século XX, contribuiu para uma melhor compreensão acerca da história do atual Palácio Universitário da Praia Vermelha. Voltado para atividades acadêmicas, o prédio monumental da UFRJ, com seus longos corredores e amplas salas de aula, foi projetado originalmente para fins te-rapêuticos, servindo de cenário, durante quase um século, para o tratamento de “alienados”, alcoólatras e doentes men-tais.

Dez anos de obrasO decreto autorizando a construção

de um palácio para abrigar pacientes com algum tipo de distúrbio nervoso foi um dos atos simbólicos que marcou a inauguração do reinado de Dom Pedro II. O documento que dispõe sobre a cria-ção do prédio foi assinado em julho de 1841, na Semana de Coroação do jovem imperador, então com 14 anos. As obras duraram mais de 10 anos. O Hospício Pedro II, inaugurado somente em 1852 entre a ponta da enseada de Botafogo e a pequena Praia da Saudade (atualmen-te Praia Vermelha), impressionava pela decoração, suntuosidade dos salões e beleza do estilo neoclássico. Além da dimensão arquitetônica, a fundação do “palácio dos loucos” representou o início da história da Psiquiatria no Brasil.

“A decisão de criação desse hospício me parece uma declaração de civilização. Não existe a Psiquiatria nesse momento, mas uma primeira tese passa a vigorar: existe a doença mental e o poder público agora quer tratar dignamente essas pes-

“Palácio dos loucos”um marco da psiquiatria

Marcio Castilho

Corredor do andar térreo do Palácio Universitário, antigo Hospício Pedro II, onde hoje funciona o Fórum de Ciência e Cultura (FCC), com azulejos originais.

Bira Soares

Pesquisa de pós-doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea

(PACC) resgata memória do Palácio da Praia Vermelha,

projetado originalmente para o tratamento de

“alienados”, alcoólatras e doentes mentais. A

primeira fase do trabalho deverá ser concluída até

julho de 2010.

Patrimônio

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Janeiro – Março 2010Janeiro – Março 2010 27Janeiro – Março 2010 UFRJJornal da

Precioso baú de prontuáriosO Pavilhão de Observação ou Pavilhão de Admissão, construído

em 1893 nos fundos do Palácio da Praia Vermelha, funcionava como unidade de triagem dos doentes que chegavam com algum tipo de transtorno mental. A maior parte dos prontuários dos pacientes pode ser encontrada no acervo da Biblioteca Professor João Ferreira da Silva Filho, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ. “Os pacientes ficavam 15 dias no pavilhão. Depois desse prazo, recebiam alta ou eram encaminhados para o Hospício Nacional dos Alienados. Se houvesse necessidade de mais estudos, o paciente ficava além dos 15 dias”, explica Cátia Mathias, responsável pela biblioteca.

Segundo ela, existem no acervo cerca de 600 livros, cada um com até 150 prontuários. Alguns pesquisadores já conhecem esse precioso baú que guarda parte da memória da psiquiatria brasileira. Estão catalogadas fichas de pacientes que passaram pelo pavilhão entre 1896 e 1950. O mais famoso deles é o de Lima Barreto, que teve duas entradas na unidade: a primeira em 18/08/1914, quando tinha 33 anos, e a segunda em 25/12/1919. Alcoólatra, o escritor era tratado com purgativo e ópio, terapêutica comum na época. O espaço onde ficam armazenados os prontuários ainda não está estruturado. Cátia Mathias encaminhou projeto para a higienização do acervo, troca de capas antigas e aquisição de estantes. Dos cerca de 600 livros de prontuários, 120 já receberam nova encadernação.

A realidade atualO Instituto de Psiquiatria tem hoje 108 pacientes internados. Segundo

a direção do instituto, o ambulatório de adultos presta cerca de cinco mil atendimentos por mês, o geriátrico, 1,5 mil por mês e o infantil, 700 por mês. A unidade mantém ainda 90 pacientes no hospital-dia e 30 no hospital-dia para idosos. Embora integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS), o hospital universitário conta com um orçamento fixo. Mas nem sempre foi assim. De acordo com Maria Tavares Cavalcanti, vice-diretora clínica do Instituto, historicamente os hospícios sempre receberam grande demanda de pacientes por falta de políticas sociais.

“A questão social e a questão psiquiátrica sempre caminharam muito juntas. Somos geralmente convocados para resolver determinadas questões que não são psiquiátricas. Quando não existem políticas sociais bem desenvolvidas, o problema acaba caindo na conta da psiquiatria”, explica Maria Tavares.

ção da República, o lugar foi rebatizado, em 1890, com o nome de Hospital Nacional dos Alienados (HNA).

Para Maria Tavares Caval-canti, chefe do Departamento de Psi-quiatria da Faculdade de Medicina e vice-diretora clínica do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a laicização no atendimento aos doentes mentais, com a substituição das irmãs de ca-ridade por profissionais da área, foi uma conquista de Teixeira Brandão. “A Medicina brigou para entrar no hospício e tornar o atendimento uma atividade mais científica”, comple-menta a professora.

Higiene e vigilânciaSe a construção da Praia Verme-

lha se aproxima em termos arqui-tetônicos da residência da família imperial na região serrana do Rio, a funcionalidade dos espaços era com-pletamente diferente. Segundo Maria de Lourdes, a parte superior do pré-dio provavelmente era ocupada pelos médicos. Nesse pavimento, as salas ti-nham decoração de estuque, com pin-turas murais sofisticadas. Os pátios internos, planejados nos moldes de manicômios franceses, eram utiliza-dos para o banho de sol dos internos, a maioria deles escravos libertos e imigrantes portugueses e italianos de baixa renda. Enquanto caminhavam, eram permanentemente vigiados pe-las galerias situadas no andar de cima. Os azulejos que ainda podem ser ob-servados nos corredores também ti-nham uma função específica, como explica a pesquisadora: “havia relatos de doentes imundos nos corredores. Os azulejos eram mais fáceis de lavar com jatos de água. A noção de higiene explica essa decoração de azulejos”.

Em seu “Diário do Hospício”, Lima Barreto descreve o ambiente que encontrou no período em que esteve internado ao lado de “negros roceiros (...), copeiros, cocheiros, mo-ços de cavalariça, trabalhadores bra-çais”. As recordações do autor fazem referência aos cuidados com a higiene e aos dispositivos de controle social: “O hospício é bem construído e, pelo tempo em que o edificaram, com bem acentuados cuidados higiênicos. As salas são claras, os quartos amplos, de acordo com a sua capacidade e destino, tudo bem arejado, com o ar azul dessa linda enseada de Botafogo que nos consola na sua imarcescível beleza, quando a olhamos levemente enrugada pelo terral, através das gra-des do manicômio, quando amanhe-cemos lembrando que não sabemos sonhar mais”.

Loucos geniais As oficinas terapêuticas repre-

sentavam avanços no tratamento dos doentes mentais. Essas atividades ocupacionais ganharam força princi-

palmente na gestão do médico Julia-no Moreira, que assumiu a direção do HNA em 1903. Ele desenvolveu uma série de atividades com o objetivo de tirar os pacientes da ociosidade. Atra-vés do trabalho, acreditava na recupe-ração e ressocialização dos internos.

“As oficinas fabricavam cami-sas, calças, chapéus, roupas para os doentes. Havia uma produtivida-de econômica interessante, com a participação dos pacientes, que contri-buiu para a manutenção desse hospital. Numa dessas terapias, eles desfiavam pano para virar estopa, que era uma coisa muito usada na época”, informa Maria de Lourdes. A pesquisadora ten-tará identificar a participação do artista Artur Bispo do Rosário no ateliê de es-topa. “A técnica através da qual produ-ziu sua expressão artística foi desfiando tecido e rebordando. É uma terapia que vai gerar uma linguagem artística”, ex-plica Maria de Lourdes.

Registros históricos apontam que Bispo do Rosário foi internado em 1938 com diagnóstico de esquizofrenia grave. Após uma rápida passagem no Palácio da Praia Vermelha, foi trans-ferido para a Colônia Juliano Moreira, no bairro da Taquara, em Jacarepaguá, onde produziu praticamente toda a sua obra. Os trabalhos do artista plástico fo-ram reconhecidos internacionalmente.

Outros talentos foram revelados graças ao trabalho da médica Nise da Silveira, que começou a carreira no HNA na década de 1930. A psiquiatra chegou a morar num dos quartos do hospital na Praia Vermelha, quando foi presa por sua participação política no contexto do Levante Comunista de 1935. Quando assumiu posteriormente a chefia do Setor de Terapia Ocupacio-nal do Hospital Pedro II, em Enge-nho de Dentro (atualmente chama-do Instituto Nise da Silveira), ela procurou explorar as imagens do inconsciente como manifestação ar-tística. As oficinas auxiliavam no trata-mento dos pacientes.

Prontuário da segunda internação de Lima Barreto.

Acervo com os prontuários dos pacientes.

Marco Fernandes

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Janeiro – Março 2010UFRJJornal da 28

Os versos acima são do samba-enredo de 1978 da Estação Primeira de Mangueira. Res-

gatando o passado, o enredo presta ho-menagens a Marcelino José Claudino, ou como era mais conhecido, Maçu da Mangueira.

Alto, forte, brigão e arruacei-ro, Mestre Marcelino saiu de Santa Cruz, Zona

Oeste do Rio de Janei-ro, onde era guarda-

costa de fazendei-ro, para ganhar as ruas cariocas, fazendo o que

mais gostava: gin-gar, freqüentar as rodas de dança, de ma-xixe e de candomblé. Eram os primeiros passos do mestre na cadência do mundo do samba.

E seus passos começaram no Morro da Mangueira – na época ainda em formação e que logo se tornou um caso

de amor incondicional – pas-sando pela Praça Onze, local onde acon-teciam os desfiles da época. “No balança,

Maçu da Mangueira“Trago para este carnaval, um passado de grande valor. Quantas saudades do famoso Marcelino. Foi um grande mestre- sala, desde os tempos de menino. Brigão e arruaceiro, era o grande destaque do bloco dos arengueiros.”

Rafaela Pereira

na Praça Onze ele se tornou o rei das pernadas. Era um ambiente violento, onde um deveria ser derrubado pelo outro. E Maçu nunca caiu para nin-guém, era muito forte e um exímio ca-

poeirista”, revela Gramático Júnior, autor do livro Maçu da Mangueira. O primeiro mestre-sala do samba.

Os ArengueirosCom sua fama de arruaceiro, Maçu

e sua turma não eram aceitos nos blocos de família. Assim, por volta de 1923, cria-ram o Bloco dos Arengueiros, embrião da Estação Primeira de Mangueira. E nessa turma estavam pessoas como Cartola, Carlos Cachaça e Saturnino.

De acordo com Gramático, Marcelino era o responsável por garantir a estabili-dade do bloco e não deixar que os foliões das outras agremiações roubassem o seu estandarte. Era o começo do trabalho de Maçu como porta-estandarte. Mais tarde, quando a verde-e-rosa foi criada e ganha-va as ruas, Maçu optou por unir a força de quem segura o pavilhão da escola com a delicadeza feminina.

Nascendo assim o casal de mestre-sala e porta-bandeira bailando pelo mundo das escolas de samba. “Quando a Mangueira fez o primeiro desfile, em 1929, ele teve essa ideia. Chamou uma prima para levar o estandarte e ele seguia protegendo, tanto a dama quanto a ban-deira. Ele foi o pai dessa figura alegórica

que nós vemos hoje nos desfiles”, conta Gramático.

Segundo Helenise Guimarães, vice-diretora da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ, a migração do casal para a es-cola de samba vai ganhando contorno e proporção maior. “É quase sagrado. Para se diferenciar do restante da escola, eles dançam um bailado que imita o francês. A porta-bandeira é como se fosse a gran-de dama ostentando o maior símbolo da escola. E o mestre-sala vai ao lado, to-mando conta e cortejando. Como um ato de amor. Eles são um espetáculo den-tro do espetáculo”, analisa Guimarães.

Maçu: general do sambaA atuação de Maçu na escola não

foi apenas como mestre-sala. Gramáti-co Júnior lembra que ele já foi carnava-lesco e presidente. “Não teve ninguém que tenha presidido a Mangueira mais tempo do que ele. Isso oficialmente, por-que extraoficialmente ele acabava sendo chamado em diversas situações. Era tão temido e respeitado que acabavam en-tregando a ele várias responsabilidades”, explica o escritor.

Porém, aquele que já havia sido o general do samba da verde-e-rosa, nos últimos tempos de vida trabalhava to-mando conta dos banheiros masculinos. “Ele recusou vários cargos sempre dan-do como resposta a mudança no perfil do público. Para ele, o público agora era muito intelectual e ele achava que não tinha condições de parlamentar com a mesma intelectualidade que as pessoas que iriam abordá-lo. Assim, lá pelos idos de 1972, os freqüentadores da es-cola não sabiam que aquele negro alto que ficava na porta do banheiro entre-gando papel, foi o homem que mais tempo permaneceu como presidente da Mangueira e que tinha criado a figura do mestre-sala e da porta-bandeira e que era um dos responsáveis pela exis-tência da escola”, recorda Gramático Junior.

O amor de Maçu pelo samba du-rou até a sua morte, em maio de 1973. Mas ele deixou suas sementes pela ci-dade. Iuri, seu bisneto, é mestre-sala da Mangueira do Amanhã, escola de samba mirim da Mangueira. E Ubira-jara Claudino, seu neto, é o primeiro mestre-sala da Imperatriz. Todos se-guindo o que o Mestre Marcelino ensi-nou e tratou de deixar no sangue: bailar e proteger o pavilhão de uma escola.

Persona