ga b r i e l pa u l a r a s i l - anpuh-rs · e formal. na umbanda, ... rituais evitam e dispensam...

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11 GÊNERO E ORIGEM SOCIAL NA UMBANDA: UMA ANÀLISE DE DIFERENTES PERSPECTIVAS GABRIEL DE PAULA BRASIL SEDUC [email protected] Ao analisar os autores que serviram de sustentáculo a esta pesquisa, percebeu-se uma diferenciação em suas perspectivas. Porém em determinados momentos, apresentam linearidade na relação e interpretação de temas referentes a esses cultos. Desta maneira, ao trabalhar Lísias Negrão, Reginaldo Prandi e Yvonne Maggie, poder-se-á perceber dentro da Umbanda, assuntos com pouca difusão, que são a questão referente a gênero e origem social. Estudar a umbanda é se deparar com um assunto sublevado que desperta ao observador sua complexa diversidade. Neste contexto, é importante que deixemos sobressair que o poder da mulher nas religiões afro-brasileiras está relacionado à condição feminina de gerar filhos. Assim, a mulher congrega o duplo papel de dar à luz a filhos biológicos e também o de abrir caminhos para que, por meios dos homens (os filhos-de- santo), os deuses venham ao mundo. A mulher é considerada a dona do axé 1 nas religiões de origem nagô porque o seu papel é o de criar, de fecundar, de dar vida, o que lhes confere dignidade e respeitabilidade. Percebe-se que no meio afro-religioso, o processo excludente comum aos outros campos no decorrer dos tempos, desfaz-se e é onde mais uma vez a mulher destinada ao seu acolhimento ao “sagrado lar”, que era por excelência seu espaço, ganha destaque na religião. Perrot (2001, p. 180) afirma que “nem todo público é o político, nem todo público é masculino... nem todo privado é feminino.” Ou seja, há interfaces e fronteiras entre o masculino e o feminino e os espaços não são estanques. Da mesma forma, as ações e intervenções. Foucault (2006) mostra como as relações de sexo deram lugar a de aliança,que se baseava na relação entre os indivíduos, o qual foi superposto pelo dispositivo de sexualidade, que cria e difunde formas de domínio que penetram as intimidades e aprisionam os corpos, valorizando-os como objeto de saber e como elemento das relações de poder. 1 O mesmo que força vital (KREBS, 1988; PRANDI, 1996).

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GÊNERO E ORIGEM SOCIAL NA UMBANDA: UMA ANÀLISE DE DIFERENTES PERSPECTIVAS

Gabriel de Paula brasil

[email protected]

Ao analisar os autores que serviram de sustentáculo a esta pesquisa, percebeu-se uma diferenciação em suas perspectivas. Porém em determinados momentos, apresentam linearidade na relação e interpretação de temas referentes a esses cultos. Desta maneira, ao trabalhar Lísias Negrão, Reginaldo Prandi e Yvonne Maggie, poder-se-á perceber dentro da Umbanda, assuntos com pouca difusão, que são a questão referente a gênero e origem social.

Estudar a umbanda é se deparar com um assunto sublevado que desperta ao observador sua complexa diversidade. Neste contexto, é importante que deixemos sobressair que o poder da mulher nas religiões afro-brasileiras está relacionado à condição feminina de gerar filhos. Assim, a mulher congrega o duplo papel de dar à luz a filhos biológicos e também o de abrir caminhos para que, por meios dos homens (os filhos-de-santo), os deuses venham ao mundo. A mulher é considerada a dona do axé1nas religiões de origem nagô porque o seu papel é o de criar, de fecundar, de dar vida, o que lhes confere dignidade e respeitabilidade.

Percebe-se que no meio afro-religioso, o processo excludente comum aos outros campos no decorrer dos tempos, desfaz-se e é onde mais uma vez a mulher destinada ao seu acolhimento ao “sagrado lar”, que era por excelência seu espaço, ganha destaque na religião. Perrot (2001, p. 180) afirma que “nem todo público é o político, nem todo público é masculino... nem todo privado é feminino.” Ou seja, há interfaces e fronteiras entre o masculino e o feminino e os espaços não são estanques. Da mesma forma, as ações e intervenções.

Foucault (2006) mostra como as relações de sexo deram lugar a de aliança,que se baseava na relação entre os indivíduos, o qual foi superposto pelo dispositivo de sexualidade, que cria e difunde formas de domínio que penetram as intimidades e aprisionam os corpos, valorizando-os como objeto de saber e como elemento das relações de poder.

1 O mesmo que força vital (KREBS, 1988; PRANDI, 1996).

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Ao incidir sobre as pulsões, os desejos, as sensações e a natureza do prazer, o dispositivo faz surgir a ideia de “sexualidade”, até então inexistente. As relações de gênero, como relações de poder, são marcadas por hierarquias, obediências e desigualdades. Essas, presentes aos conflitos, tensões, negociações, alianças, seja através da manutenção dos poderes masculinos, seja na luta das mulheres pela ampliação e busca do poder. Uma estrutura marcada pela hierarquia, como é o caso da Umbanda, certamente deve refletir em si aspectos da ordem social que a comporta.

3.1 Entre a Cruz e a Encruzilhada Se Encontram Muitas Visões

A obra de Lísias Negrão analisada fora Entre a Cruz e a Encruzilhada – Formação do Campo Umbandista em São Paulo, nela o autor oferece-nos uma visão histórica da umbanda. Seu foco está na constituição do campo umbandista. No qual tenta revelar as relações internas que se estabelecem entre terreiros e seus freqüentadores. No decorrer da obra são explicitadas as tensões constitutivas da identidade umbandista, agora para buscar elementos que melhor descrevam este universo simbólico, o autor nos conduz aos terreiros.

A caracterização da composição social dos terreiros se faz mediante informações estatísticas, relatos, reconstruções de trajetórias de vida, transcrições de opiniões. Na perspectiva de Negrão, entre os “chefes de terreiros”, o predomínio é feminino, foco deste trabalho. A posição da figura feminina, localizada à margem pelo sexo e pela condição social. A cultura destes é entendida como a totalidade dos produtos do homem.

Só que o homem precisa ocultar a si mesmo o caráter construído da ordem social para que ela possa se reproduzir como ordem, evitando assim a anomia e o caos. Surge a religião como força poderosa que torna plausíveis e duradouras as construções sociais da realidade, eliminando a precariedade intrínseca destas ordens construídas. A religião inclui o construído numa ordem mais abrangente - sagrado - que legitima, justifica e explica as mazelas do cosmos construído (BERGER, 1985, p.07).

Através da descrição dos terreiros pode-se perceber não só desigualdades, mas também o compartilhar das crenças nas quais se aportam as rivalidades e mistificações, enfim, os conflitos inerentes a este mundo mítico. A Umbanda está hoje entre as experiências religiosas dispostas a obter furtivamente a atenção de todos, por seu ritmo e riqueza simbólica, um mundo que se quer ver racional e desencantado.

Na umbanda dos terreiros, são muito poucos os pais-de-santo que têm qualquer

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interesse secular (político, cultural) além do profissional. Analfabetos ou com baixo grau de instrução, a leitura de textos teológicos racionalizados é quase inexistente.

Apenas alguns deles em poucas tendas de classe média, dotados de maior nível de instrução formal, afeitos à reflexão abstrata, lêem e recomendam obras umbandistas e kardecistas, além é claro do seu saber ancestral. Em geral vivem imersos em seu mundo religioso. Sua realidade é a o trato com a religião, com os quais convivem no cotidiano das giras, dos trabalhos, das “demandas”.

O progresso material depende da cobrança, mas esta prática foge à ética da caridade. O problema é a compatibilização dos extremos. Como exercer plenamente a caridade, se a montagem e a manutenção dos terreiros é dispendiosa, exigindo recursos de que raramente pais e filhos-de-santo dispõem.

Pode-se perceber a preocupação da Umbanda quanto ao bem-estar financeiro de seus integrantes, visto sua grande maioria pertencer a camadas menos abastadas. Entre a sobrevivência e o cumprimento da missão oscilam os umbandistas tentando uma fórmula conciliatória entre ambos. Cobrar-se de pobres, de necessitados, continua sendo atitude moralmente insustentável. Só é admissível se a pessoa puder pagar e não lhe vá fazer falta. Tendo-se em vista que “A religião é o empreendimento humano pelo qual se estabelece o cosmos sagrado.” (BERGER, 1985,p. 38).

O descompasso entre o ideal e a necessidade, entre o princípio e a prática, tem de ser superado. A originalidade da umbanda, sobretudo de seus terreiros de condição econômica inferior, é ter elaborado justificativas moralmente sustentáveis para fugir aos rigores do princípio da caridade kardecista por ela mesma incorporada. A reinterpretação se impõe: os valores não podem simplesmente ser transpostos para a prática, conduzindo a padrões efetivos que lhes sejam totalmente fiéis; a tradição negra, o peso do cotidiano e os interesses de pais-de-santo e clientes fazem-se sentir. Quanto à cobrança, não é o comércio religioso, em si mesmo, considerado condenável, pois é prática comum à maioria das religiões, inclusive ao catolicismo dominante. O mal está em cobrar de quem não tenha ou a quem venha faltar, ou então cobrar excessivamente, mesmo que o pagante tenha recursos. A demanda, até certo ponto, também é vista como legítima. Desfaz o mal feito contra inocentes e o faz retornar contra quem o provocou.

A umbanda, embora mantendo em parte seu encantamento e magia, tende a ter moralizadas suas crenças e práticas. Em um número restrito de seus terreiros, sobretudo de classes médias, prevalecem os princípios cristãos-kardecistas do “voltar-se a outra face” e de “fazer o bem sem olhar a quem”. Na maioria deles tais princípios são, no máximo, referências ideais presentes no discurso mas não na prática, sendo esta orientada pela concepção de justiça mencionada, consentânea com o tipo de realidade de onde

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ela emerge: individualista, com predomínio do interesse econômico, competitiva e conflitual.

Não é a umbanda, contudo, na medida em que permanece dentro de cosmovisão encantada e mágica, voltada à satisfação das necessidades e desejos individuais, como se poderia inferir a partir da análise clássica dos fenômenos mágico-religiosos. Por que “A religião é a ousada tentativa de conceber o universo inteiro como humanamente significativo.” (BERGER, 1985, p. 41).

A concepção religiosa predominante tenta obscurecer o caráter necessariamente mercantil das trocas religiosas e atribuir o castigo à vontade de Deus, aqui ou no além. No máximo, admite o castigo neste mundo à competência do Estado, de forma despersonalizada e formal. Na umbanda, a troca econômica é traço evidente e necessário, embora também obscurecida em alguns terreiros mais identificados às vigências religiosas. A prática do castigo aos ofensores pelos próprios ofendidos, mediante a utilização de recursos simbólicos, é peculiaridade sua, compartilhada com os demais cultos afro-brasileiros. Estamos, pois, distantes dos quadros de uma hegemonia moral que atrela os interesses individuais aos sociais e remete a justiça para além da competência das vítimas.

3.2 Quem É de Axé Diz Que É

Reginaldo Prandi em sua obra Herdeiras do Axé, descreve as religiões afro-brasileiras como sendo as mais populares no Brasil. O catolicismo tem sido historicamente a religião majoritária do Brasil, cabendo a outras fés o lugar de religiões minoritárias, mas nem por isso sem importância no quadro das religiões e da cultura, sobretudo no século atual. O quadro religioso no Brasil de hoje caracteriza-se por processo de conversão complexo e dinâmico, com a incorporação e mesmo criação de algumas novas religiões, às vezes com a passagem do converso por várias possibilidades de adesão.

Dessas religiões, a umbanda tem sido reiteradamente identificada como sendo a religião brasileira por excelência, pois, nascida no Brasil, ela resulta do encontro de tradições africanas, espíritas e católicas (CAMARGO, 1961). Como religião universal, isto é, dirigida a todos, a umbanda sempre procurou legitimar-se pelo apagamento de feições herdadas do candomblé, sua matriz negra, especialmente os traços referidos a modelos de comportamento e mentalidade que denotam a origem tribal e depois escrava, mantendo contudo estas marcas na constituição do panteão. Comparado ao do candomblé, seu processo de iniciação é muito mais simples e menos oneroso e seus rituais evitam e dispensam sacrifício de sangue.

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Logo após seu nascimento, a umbanda, ou qualquer que fosse a religião de matriz africana, eram religiões de negros e mulatos, confinadas, sobretudo na Bahia e Pernambuco, e de reduzidos grupos de descendentes de escravos cristalizados aqui e ali em distintas regiões do País. No decorrer dos tempos a partir dos anos 1960, passou a se oferecer como religião também para segmentos da população de origem não-africana.

O trato com a origem daquele que a freqüenta é percebida na relação com o cliente. As religiões afro-brasileiras atendem a uma grande demanda por serviços mágico-religiosos de uma larga clientela que não necessariamente toma parte em qualquer aspecto das atividades do culto. Os clientes procuram a mãe ou pai-de-santo para o jogo de búzios, um oráculo, através do qual, problemas são desvendados e oferendas são prescritas para sua solução. Por ser a umbanda é uma religião basicamente livre de dogmas, e bastante receptiva, veio a se constituir como uma alternativa sacral importante para diferentes segmentos sociais que vivem numa sociedade como a nossa. De todo modo, o desprendimento de suas de amarras étnicas originais a transformou numa religião para todos, ainda permitindo a oferta de serviços mágicos para uma população fora do grupo de culto, que está habituada a compor, com base em muitos fragmentos de origens diferentes, formas privadas, às vezes até pessoais.

No decorrer da leitura percebeu-se que sempre fazia referência a indivíduos de classe média que usam experimentar códigos com os quais não mantêm vínculos e compromissos duradouros, e que o fazem por sua livre escolha, podendo contar com um repertório tanto mais variado quanto possível.

A homossexualidade, sobretudo a masculina, enfrentada como tabu para algumas religiões é tratada de forma simples. Demonstrando que este não necessita desempenhar um papel social para ser aceito, como em outras para diferenciá-los desenvolveram padrões de conduta que o identificasse facilmente: para ser homossexual era preciso mostrar-se homossexual. Pois nenhuma instituição social no Brasil, afora as religiões africanistas, jamais aceitou o homossexual como uma categoria que não precisa necessariamente esconder-se, anulando-o enquanto tal. Berger (1985) fala da necessidade do homem de estabelecer continuamente uma relação com o mundo e com seu corpo. Produzir a si mesmo num mundo. O mundo humano é a cultura (produtos materiais e não-materiais do homem). As estruturas da cultura são precárias e destinadas a mudar.

Esta aceitação de um grupo, tachado como problemático por outras instituições, religiosas ou não, também demonstra a aceitação que a umbanda tem deste mundo, mesmo quando, no extremo, trata-se do mundo da rua, do cais do porto, dos meretrícios e portas de cadeia. Ou seja, as camadas subjugadas da sociedade. Vale ressaltar que

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“Toda sociedade humana é um empreendimento de construção do mundo”(BERGER, 1985, p. 15).

O que faz da umbanda uma religião tão singular é o fato de que todos os seus adeptos devem, no decorrer do seu desenvolvimento mediúnico, exercer necessariamente algum tipo de cargo sacerdotal. E qualquer que seja o cargo sacerdotal ocupado, ninguém precisa esconder ou disfarçar suas preferências sexuais.

É sem dúvida uma religião para a metrópole, mas somente para uma parte dela, como é destino das outras religiões hoje. A umbanda, tal como existe hoje nos grandes centros urbanos do Brasil, é capaz de oferecer a seus seguidores algo diferente daquilo que a religião dos orixás, podia certamente propiciar, quando sua presença significava para o escravo a ligação afetiva e mágica ao mundo africano do qual fora arrancado pela escravidão. A religião foi o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação.

A religião legitima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado realissimum, que por definição está além das contingências dos sentidos humanos e da atividade humana. (BERGER, p. 45).

Quando o candomblé se organizou no Nordeste, no século 19, ele permitia ao iniciado a reconstrução simbólica, através do terreiro, da sua comunidade tribal africana perdida. Primeiro ele é o elo com o mundo original. Ele representava, assim, o mecanismo através do qual o negro africano e brasileiro podia distanciar-se culturalmente do mundo dominado pelo opressor branco. O negro podia contar com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido vivo pela vida religiosa dos terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria.

Quando a umbanda, cria tônus, encaminhando-se a ser uma religião palpável, afrouxa-se seu foco nas diferenças raciais, mantendo-se apenas seu significado essencial de mecanismo de resistência cultural, embora continue a municiar esse mecanismo a muitas populações negras que vivem de certo modo econômica e culturalmente isoladas. As novas condições de vida na sociedade brasileira industrializada fazem mudar o sentido sociológico da umbanda.

Se até poucas décadas atrás ele significava uma reação à segregação racial numa sociedade tradicional, em que as estruturas sociais tinham mais o aspecto de estamentos que de classes, agora ele tem o sentido de escolha intencional: alguém adere a umbanda não pelo fato de ser negro, mas porque sente que a umbanda pode fazer com que o

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cotidiano se torne melhor, mais sereno, porque então talvez se possa ser mais feliz, não importa se é branco ou negro. Evidentemente, embora o processo de escolha religiosa possa ter conseqüências sociais significativas para a sociedade como um todo.A umbanda não discrimina o bandido, a adúltera, o travesti e todo tipo de rejeitado social. Porém, no momento em que a umbanda libera o indivíduo, ela também libera o mundo, pois “o indivíduo se torna aquilo que os outros o consideram quando tratam com ele”. (BERGER, 1985, p. 29).

Na nossa sociedade das grandes metrópoles, se a construção de sentidos depende cada vez mais do desejo de grupos e indivíduos que podem escolher esta ou aquela religião, ou fragmentos delas, a relevância dos temas religiosos igualmente pode ser atribuída de acordo com preferências privadas.

A umbanda pode também significar a possibilidade daquele que é pobre e socialmente marginalizado ter o seu deus pessoal que ele alimenta, veste e ao qual dá vida para que possa ser honrado e homenageado por toda uma comunidade de culto. Chartier recomenda que se parta dos códigos, e não das classes sociais, para apreender assim a diversidade de apropriações dos códigos (CHARTIER, 2002, p. 66-67; 69).

Por tudo isto se diz que as religiões afro-brasileiras, são religiões de liberação da personalidade, pois não faz parte nem de seu ideário nem de suas práticas rituais o acobertamento e aniquilamento das paixões humanas de toda natureza, por mais recônditas que sejam elas.

Na luta de homens e mulheres que procuram a Umbanda para a realização de seus anseios, são em geral de classes sociais médias-baixas e pobres, quase sempre de pouca escolaridade e reduzida informação, e para quem as mudanças sociais têm trazido alguma vantagem real na qualidade de suas vidas.Viver em sociedade é viver no sob a ameaça do caos e desagregação. Viver no mundo é esforçar-se para integrar-se na ordem.

3.3 Nas Entrelinhas da Guerra do Orixá

A temática da obra analisada são os conflitos internos concernentes aos membros do terreiro de Umbanda “Tenda Espírita Caboclo Serra Negra”, localizado em um bairro periférico da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1972. Os objetivos de Yvonne Maggie ao iniciar a etnografia do terreiro, foram sua descrição física, seus principais rituais, a composição da clientela e dos médiuns e o relato sobre sua história. A autora procurou localizar-se na etnografia como observador – participante da vida do terreiro, buscando

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assim, uma pesquisa em que dados de relevância não fossem esquecidos. Por se tratar de um estude de caso, percebeu-se no decorrer da obra, a descrição de maneira simples, articulada e sucinta.

O grupo de médiuns era composto inicialmente por quatorze pessoas, todas ligadas a Mãe-de-santo M.ª Aparecida, que antes da abertura do terreiro dava consultas nas casas das pessoas do bairro e nas dos próprios médiuns. Com o afastamento de M.ª Aparecida quatro pessoas voltaram para os terreiros de origem, mas com a chegada do Pai-de-santo, sete novos médiuns entraram. Contabilizando três fases relativas a composição de médiuns. Assim como Pedro, que era pedreiro em uma escola, os médiuns tinham profissões variadas, dentre as quais, boy, camelô, universitário, datilógrafo, vendedor, confeiteiro, manicure, enfermeira, etc.

Os freqüentadores do terreiro, ou seja, a clientela era formada em sua maioria por pessoas do bairro, cujas profissões também eram das mais variadas. Familiares e amigos dos médiuns compunham o quadro de participantes, assim como pessoas de posição social mais elevada, como uma dona-de-casa de Copacabana e um comerciante português. Podemos desta forma, analisar que “o “saber” socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a ordem social.” (BERGER, 1985, p. 42), é visualizado no condizente ao fato de não importar o status social para ter acesso a esta religião. Leia-se acesso como sendo o saber necessário ao culto, não é necessária instrução, apenas boa vontade.

Nesta obra notou-se um equilíbrio quanto a gênero, porém, percebeu-se durante a análise quatro individualidades no terreiro estudado. Esta análise vem a discorrer sobre o início e o desenvolvimento de conflitos internos que levaram ao fim tendo como preocupação principal entender o cotidiano desse terreiro – suas crises e conflitos.

No caso desse terreiro, a crise se iniciou devido a atividade dos médiuns de abandoná-lo e, juntamente com outros, darem início a um novo terreiro. Crise estendida com a loucura da Mãe-de-santo e com a luta pela sucessão, através do conflito entre Pai-de-santo e Presidente.

Yvonne Maggie faz uma análise simbólica do considerando os diferentes níveis sociais e experiências de seus participantes, conseqüência de sua localização num centro urbano. Essa diferença está presente em muitos, para não se dizer em todos, os terreiros, que atualmente são chamados de terreiros urbanizados. Devendo lembrar que:

[...] primeiramente, as operações de recorte e de classificação que produzem as configurações múltiplas graças às quais a realidade é percebida, construída, representada; em seguida, os signos que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma identidade própria de estar no mundo, a

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significar simbolicamente um estatuto, uma ordem, um poder; enfim, as formas institucionalizadas através das quais ‘representantes’ encarnam de modo visível, ‘presentificam’, a coerência de uma dada comunidade, a força de uma identidade, ou a permanência de um poder (CHARTIER, 2002, p. 169).

Porém, as limitações do termo “terreiro”, tornam-se difícil pelo fato citado anteriormente: a diversidade social de seus participantes, por isso se faz necessário o uso de termos subjetivos, da sociedade mais ampla, como a noção de estratificação social, para se entender a posição de cada indivíduo no drama, pois indivíduos de classes diferentes. Portanto, o terreiro “[...] é o ponto de encontro dos homens, e, também, o local onde se dá o encontro dos homens com os deuses” (MAGGIE, 1975, p. 131).

Essa negação da “estrutura dominante” ocorre também entre os sexos, ou seja, homens podem receber entidades femininas, e mulheres, entidades masculinas. A oposição homem – mulher não se dá como na vida social mais ampla: ela passa a ser diluída e a possessão salienta o caráter andrógino dos possuídos, cada médium recebendo tanto figuras masculinas quanto figuras femininas. Com os Orixás, que não dão consultas, são os espíritos que estão posicionados no patamar mais elevado dessa organização, essa inversão se faz de maneira oposta, isto é, seres “elevados”/prestigiados “baixam” em indivíduos de classes sociais baixas, revertendo esse status. Pode-se então compreender que:

[...] o terreiro pode ser visto como um sistema simbólico que representa determinados aspectos da sociedade brasileira. Essa seria vista como uma sociedade hierarquizada e, através desse mecanismo de inversão, as figuras marginais ou pessoas que ocupam posições mais baixas na estratificação social são transformadas em deuses especialmente atuantes. Ao lado disso, os médiuns que faziam parte de camadas mais baixas na sociedade mais ampla transformavam-se, pela possessão, em figuras prestigiadas por essa sociedade [...] (MAGGIE, 1975, p. 137 - 138).

Essa inversão de status também se faz presente na organização hierárquica de terreiro, pois, normalmente, assim como no campo estudado, o pai-de-santo, apesar de pertencer a uma classe social baixa na sociedade, no terreiro é sua a posição mais elevada, pois ele tinha o domínio das ‘Leis do Santo’, tendo, assim, um maior poder.

A relação entre Filhos e Pais ou Mães-de-santo não era uma relação estática e através da Demanda redefiniam-se os dois pólos e sua função. Manipulando a Demanda, manipulavam-se as relações entre esses pólos e, nesse sentido, a Demanda foi funcional para a constante redefinição dessas posições e do poder no terreiro (MAGGIE, 1975, p. 90).

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Tratar da religião afro-brasileira, em especial da Umbanda, é muito difícil, pois apesar desta ser a legítima religião brasileira, é a mais discriminada por ter sido tida como uma religião típica das regiões pobres e, consequentemente, ser comum entre pessoas marginalizadas (MAGGIE, 1975; NEGRÃO, 1996; SANGIRARDI JR, 1988). Isso foi uma das razões da perseguição que esta religião sofreu na década de 1930 e que resultou com o fechamento e “desaparecimento”, temporário, de muitos terreiros.Os principais conflitos internos do terreiro ocorreram devido a concorrência por status, de dois integrantes importantes do grupo, de um lado o pai-de-santo Pedro, e de outro, o Presidente Mário, cada qual com uma lógica própria de legitimação de poder.

É sabida a diferença entre monopólios religiosos e grupos religiosos que lutam em uma competição plural, por maior visibilidade. Em uma sociedade plural, o problema se transforma em construir e manter sub-sociedades para servirem de estrutura de plausibilidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, as religiões afro-brasileiras espelham muito as condições históricas de sua formação: religiões de subalternos (primeiro os escravos, depois os negros livres marginalizados, mais tarde os pobres urbanos) que se formam também como religiões subalternas, isto é, no mínimo, religiões tributárias do catolicismo, que até hoje, em grande medida, aparece como a religião que dá identidade aos seguidores dos cultos afro-brasileiros.

Quando a Umbanda e outras religiões afro-brasileiras eram comuns apenas a grupos negros isolados (mais ou menos até 40 ou 50 anos atrás), contrapunha-se ao catolicismo, além de ser a face voltada para o mundo branco exterior, dominante eameaçador, era ele também o elemento que, tendo o sincretismo como instrumento operador, rompia com esse isolamento sócio-cultural para fazer de todos, mais que negros, participantes de uma identidade nacional: ser brasileiro.

Porém quando as religiões afro-brasileiras romperam com os impedimentos de cor, geografia e origem, produzindo-se novas modalidades de caráter universalizado, agora tornara-se religião para todos, independente de cor e geografia, ainda que estes todos sejam majoritariamente os pobres, a persistência do sincretismo católico passou a indicar uma dependência estrutural dessas religiões para com as fontes axiológicas mais gerais referidas à sociedade brasileira.

Ainda que o catolicismo que diz o que é certo e o que é errado quando se trata

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de se pensar a relação com o outro, na umbanda o que se internaliza é a questão do bem-estar de espirito. Quando se busca, contudo, romper momentaneamente com o código do que é certo e errado, as religiões afro-brasileiras não têm nenhuma objeção a apresentar, desde que se preservem as prerrogativas das divindades. Mas a ruptura só pode ser momentânea e em casos particulares, mesmo porque qualquer ruptura definitiva acarretaria uma separação não somente no âmbito da religião, mas no domínio mais geral da vida em sociedade.

A religião serve para manter a realidade daquele mundo socialmente construído. Seu poder legitimante também tem a dimensão de integração em um nomos compreensivo das situações marginais em que a realidade é posta em dúvida. A religião mantém a realidade legitimando as situações marginais em termos de realidade sagrada.

A sociedade é produto da atividade humana coletiva, que se confronta com o indivíduo como uma realidade objetiva. O indivíduo passa por uma progressiva interiorização desta realidade, ela exige sua cooperação para que a realidade seja progressivamente construída. O homem é, em essência, social. A sociedade é resultado da cultura e condição necessária dela. Sagrado é entendido como qualidade do poder misterioso e temeroso que se acredita residir em certos objetos naturais ou artificiais da experiência. É distinto do homem, mas refere-se a ele. Seu antônimo é o profano - ausência do caráter sagrado. O indivíduo apreende a objetividade do mundo social como uma realidade externa, que não é prontamente receptiva aos seus desejos. “A objetivação implica a produção de um mundo social real externo aos indivíduos que o habitam; a interiorização implica que esse mesmo mundo social terá o status de realidade no âmbito da consciência desses indivíduos”. (BERGER, 1985, p. 95)

A duplicação da consciência realizada pela interiorização do mundo social acarreta a separação, o congelamento ou a oposição de uma parte da consciência, acarreta a auto-objetivação. Tem como resultado um confronto interno entre componentes socializados e não-socializados do eu, e um confronto externo entre a sociedade e o indivíduo.

A umbanda oferece símbolos e sentidos hoje muito valorizados pela música, literatura, artes em geral, os quais podem ser fartamente usados pela clientela na composição dessa visão de mundo caleidoscópica, sem nenhum compromisso religioso. O cliente de classe média que vai as sessões para jogar búzios e fazer ebós é o bricoleur que também tem procurado muitas outras fontes não racionais de sentido para a vida e de cura para males de toda natureza. Certamente o candomblé deste cliente é bem diferente do candomblé do iniciado, mas nenhum deles contradiz o sentido do outro.

É uma religião que afirma o mundo, reorganiza seus valores e também reveste de estima muitas das coisa que outras religiões consideram más: por exemplo, o dinheiro, os

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prazeres (inclusive os da carne), o sucesso, a dominação e o poder. O iniciado não tem que internalizar valores diferentes daqueles do mundo em que ele vive. Ele aprende os ritos que tornam a vida neste mundo mais fácil e segura, mundo pleno de possibilidades de bem-estar e prazer. Nessa procura, é fundamental que o iniciado confie cegamente em sua mãe-de-santo. Guiado por ela, este fiel aprende, ano após ano, a repetir cada uma das fórmula iniciáticas necessárias à manipulação da força sagrada da natureza, o axé.

A umbanda não perdeu totalmente suas raízes africanas, mas sofreu um processo de aculturação, no qual se inseriram nuances de outras vertentes religiosas, com isso espraiou-se por todas a regiões do País, sem limites de classe, raça, cor. Mas não interferiu na identidade do candomblé, do qual se descolou, conquistando sua autonomia.

E assim conectar o passado ao presente, permitindo assim “a perpetuação de algumas manifestações culturais coletivas que viriam a tornar marcas inconfundíveis de brasilidade” (SCHUMAHER, 2007, p.107).

A Umbanda é isso um rito extremamente influenciado pelas transformações históricas pelas quais passou o país. A cada novo movimento respondendo com lógica e praticidade, reafirmando suas práticas. Percebendo uma gama diferente para que se reconheça um pouco mais do Brasil.

Nesse microcosmo da cultura brasileira, se teve a pretensão de ajudar a esclarecer a ritualística desmistificando-a, e contribuir para que essa religião do povo e seu conhecimento ancestral possam ser aceitos e legitimados. Apropriando-se dessa sabedoria, que pode nos ajudar a superar as dificuldades pelas quais passamos. Preterindo a difusão dessas manifestações na sociedade, propiciando a identidade de um grupo religioso que seja mais bem conhecido, podendo ser acompanhado e difundido. O encontro entre o universo religioso cristão, as inúmeras práticas religiosas indígenas, as religiosidades africanas e demais origens formadoras de campos de religiosidade, apresenta nuances construídas ao longo da história da umbanda.

Mais do que precisar correspondências, o importante é enfatizar que as crenças que circulam sobre essas manifestações devem estar diretamente relacionadas ao respeito da sociedade brasileira para com elas.

A Umbanda é uma prática ritualística sincrética que galga o simples reconhecimento. Este singelo rito cultiva a emoção, aliviando as aflições do cotidiano com respostas que confortam envoltas numa atmosfera sagrada, provocando fascínio aos espectadores, respeitando a todos quantos a elas se acheguem, independente de sua condição social e individual, que são atraídas por estarem à procura de soluções para seus problemas de ordem afetiva, terapêutica, econômica e espiritual.Parafraseando a antropóloga Yvonne

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Maggie, “A crença na feitiçaria é uma instituição legitimada no imaginário social.” (MAGGIE,1992), ou seja, graças a este ritual, o passado esta presente a nós.os silêncios das mulheres e suas rupturas nem sempre visíveis. Evidentemente, a irrupção de uma presença e de uma fala femininas em locais que lhes eram até então proibidos, ou pouco familiares, é uma inovação do século XIX que muda o horizonte sonoro. Subsistem, no entanto, muitas zonas mudas e, no que se refere ao passado, um oceano de silêncio, ligado à partilha desigual dos traços, da memória e, ainda mais, da História, este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento (PERROT, 2005, p. 9).

Sendo assim, a carência de uma religião menos elitizada que abrangesse as camadas mais baixas da sociedade, resultou no nascimento da umbanda, tratada em uma perspectiva histórica, visto a necessidade de preservar a cultura e a religiosidade de povos que influenciaram a criação deste culto. Nesta abordagem, pode-se então averiguar a possibilidade de perpetuar o legado ancestral da cultura brasileira, dentro de uma religião sincrética.

Se for necessário que se construam mundos, é muito difícil mantê-los em funcionamento. A sociedade é parte e parcela da cultura não material. Ela estrutura as relações do homem com seu semelhante. É um produto humano. Mesmo assim, “as mulheres souberam apoderar-se dos espaços que lhes eram deixados ou confiados para alargar a sua influência até as portas do poder” (PERROT,1991, p.503).

Tentou-se com este trabalho tratar de um assunto “excluído” socialmente, e que só conseguiu despertar um interesse acadêmico nos últimos anos, porém ainda de forma insipiente. Por esta razão o estudo do gênero nestas obras precisou a importância desta perspectiva.

REFERÊNCIAS

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CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. (Trad.: Patrícia Chittoni Ramos). Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. 17ª ed. Rio deJaneiro, Graal, 2006.

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KREBS, Carlos Galvão. Estudos do Batuque, Porto Alegre: IGTF, 1988.

MAGGIE, Yvonne. Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

__________. O medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.

NEGRAO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1996.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001

PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do axé: sociologia das religiões afro-brasileiras. São Paulo, Hucitec. 1996

SANGIRARDI JR. Deuses da África e do Brasil, Candomblé e Umbanda, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988

SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico Vital. Mulheres negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007