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Copyright © 2006 do autorTodos os direitos desta edição reservados àFUNDAÇÃO 0SW ALD0 CRUZ / EDITORA

ISBN: 85-7541-095-4

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Carlos Fernando Reis & Adriana Carvalho

Revisão, copidesque e normalização de originais Janaína de Souza silva

Biblioteca de Ciências da Saúde-Ciências da Saúde Distribuidora Curitiba de Papeis e Livros Ltda Epidemiologia criticaT e r m o . 22/2008 R e g i s t r o 452867R$26,77 11/01/2008 LICITAÇÃO

Catalogação-na-fonteCentro de Informação Científica e TecnológicaBiblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

B835e Breilh, Jaime

Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. /Jaime Breilh. Rio de Janeiro : Editora FIOCRUZ, 2006.

317p., graf.

1 .Epidemiologia. 2.Saúde pública. l.Título.

CDD - 20.ed. - 614.49

2006EDITORA FIOCRUZAv. Brasil, 4036 - sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 e-mail: [email protected] http://www.fiocruz.br/editora

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Bases para uma Epidemiologia Contra-Hegemônica

Uma característica própria do scr humano é a de ser um fabricante de utopias. O ideário de suas grandes metas é parte essencial de sua natureza consciente e de sua condição de espécie histórica.

No campo da ciência, o pensamento ‘portador de frutos’ só é produzido pelo que ‘pode ser’, com base no que ‘foi’, e não pelo que ‘é’ (Santos, 2000). Daí o fato de qualquer proposta científica, como a que se perfila nestas páginas, e por mais especializada que seja, ter de ser concebida no referencial de uma meta humanista, caso obedeça a uma adoção de identidade e a uma utopia de recriação de um ser humano mais justo, mais eqüitativo, mais sonhador e, portanto, mais saudável.

Entretanto, o impulso de um programa científico que assume esse tipo de desafios integrais insere-se, por força maior, numa realidade cheia de contradi­ções e de luta pelo poder - das quais depende, lamentavelmente, a situação de saúde de uma sociedade - que torna mais difícil chegar a esses caminhos mais justos e eficazes. Essa é uma questão que adquire agora uma vigência terrível, na nova era do sistema capitalista em que a eclosão violenta do terrorismo reativo, diante do fundamentalismo do mercado, ainda sustentado, apesar de seus fracassos estrepitosos, pelo mesmo poder que impulsiona uma ‘teologia monetarista desacreditada’ - como a chamou Krupman, ganhador do Prê­mio Nobel de economia -, marca o começo de uma outra fase do mundo, radicalmente polarizada.

Assim, é indubitável que, nos cenários em que trabalham os epidemiolo- gistas, há contradições importantes, e uma delas, que não é possível deixar de lado, é a oposição de duas grandes visões de mundo e seus problemas: o olhar hegemônico dos que concentram o poder e o olhar dos que promovem uma contra-hegemonia, para democratizar e para romper os grilhões. Os planos e intervenções de saúde encarnam justamente uma dessas visões de mundo.

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Foi Antonio Gramsci quem estabeleceu uma explicação incisiva da ‘hege­monia' como um elemento de subordinação social e da 'contra-hegemonia' como possibilidade de um bloco popular emancipador (Gramsci, 2000). A hege­monia foi explicada como forma de dominação de uma classe social sobre as demais, a qual não é simplesmente praticada mediante uma organização espe­cial da força, mas por meio do exercício de uma liderança moral e intelectual para cuja vigência essa classe dominante tem de transcender o referencial es­treito de seus interesses corporativos, e estabelecer compromissos, dentro de certos limites, com uma variedade de aliados. Assim se forma um bloco social que representa uma base de consentimento para uma certa ordem social, na qual a hegemonia é criada e recriada dentro de um conjunto de instituições, relações sociais e idéias (Pissomo, 1982). É inegável a importância dessa des­coberta e de suas conseqüências para o avanço da práxis em todos os campos, e especificamente no da saúde.

Ao mesmo tempo, contudo, uma interpretação parcial e esquemática da descoberta da hegemonia de Gramsci conspira contra sua plena utilidade, sobretudo quando ela é reduzida a um esquema bipolar de classes sociais, enquadradas “numa lista de ‘hegemônicos’, em contraposição a uma lista de ‘subalternos’":

Quando as complexas relações entre a hegemonia e a subalternidade são reduzidas a um simples jogo bipolar, minimiza-se a sutil distinção gramsciana entre dominação e hegemonia, e se descuida da ‘rede de intercâmbios, empréstimos e condicionamentos recíprocos' entre as culturas de diferentes classes, ou seja, das •formações intermediárias' destacadas porCirese. (García-Canclini, 1993:65)

É muito útil, para os projetos atuais de uma epidemiologia crítica, recor­dar que toda 'dominação' se fortalece à medida que se converte em hegemonia, como afirmaram o próprio Gramsci e alguns antropólogos em anos recentes. Os dominadores cuidam de algumas necessidades dos dominados e suscitam algumas respostas legitimadoras em alguns setores populares. No campo da saúde, ésse tipo de respostas legitimadoras continua a ocorrer, mesmo nos cenários em que a contra-reforma neoliberal deixou menos espaço para a nego­ciação oportunista efetuada pelos grupos dominantes.

O que deve ser compreendido, como explicou Maurice Godelier (1978), é que as relações de dominação e exploração, para se reproduzirem de forma duradoura, ‘devem apresentar-se como um intercâmbio, e um intercâmbio de serviços’ entre as classes. As classes hegemônicas tornam-se tais na medida em que incluem nas instituições, nos objetos e nas mensagens, em sua função e seu sentido, não apenas seus interesses setoriais, mas também a parcela das culturas populares que se revela útil e significativa para a maioria. Se não vemos o povo como uma massa submissa que sempre se deixa enganar, temos

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de admitir que sua dependência se deve, em parte, ao fato de ele encontrar na ação hegemônica algo de útil para suas necessidades. Por exemplo, os campo­neses recebem da cultura urbana de massa as informações necessárias para compreender e agir ‘corretamente’ em suas novas condições. Entenderemos melhor a televisão, nesse caso, como uma espécie de manual de urbanidade. Quando se trata de hegemonia, e não de simples dominação e coerção, o víncu­lo entre as classes apóia-se menos na violência de cima para baixo do que no contrato, numa ‘aliança em que hegemônicos e subalternos contratam entre si .serviços recíprocos’.

Da mesma forma que a velha epidemiologia funcionalista constituiu um instrumento de hegemonia, a nova epidemiologia crítica tem de ser concebida como um elemento de contra-hegemonia, para chegar ao estatuto de uma ativi­dade emancipadora.

Ao longo destas páginas, falamos da urgência de inscrever o esforço epis- temológico numa concepção emancipadora da práxis, e, para isso, é preciso esclarecer algumas categorias e relações fundamentais nas quais se enraíza uma parte substancial do pensamento epidemiológico e da saúde coletiva. São categorias que definem a ação e cuja interpretação depende de as olharmos pela perspectiva hegemônica ou pela contra-hegemónica.

AS TRÊS DERROTAS DOS DIREITOS HUMANOS E A REAFIRMAÇÃO DA NECESSIDADE EM SAÚDE

Os conceitos de ‘necessidade’, ‘desenvolvimento humano’ e ‘práxis’, bem como a formulação de um modelo epidemiológico que articule uma concep­ção de práxis histórica com os modos de ‘intervenção’, ‘investigação’ e ‘in­terpretação’ epidemiológicos, têm de fazer parte do grande modelo contra- hegemônico da epidemiologia crítica, inscrito no que denominamos de neo- humanismo popular.

Em termos históricos, a criatividade e a solidariedade que ansiamos por implementar são apenas potencialidades, que nem sempre poderão ser expres­sas e concretizadas. Elas se desenvolveram sem barreiras estruturais durante vários séculos, enquanto as sociedades se organizavam comunitariamente e se guiavam para a satisfação de necessidades coletivamente definidas, assim como para uma distribuição eqüitativa dos bens coletivos. Nessas épocas, o sujeito social atuava em função dos valores de uso, e a atividade coletiva orientava-se para a produção de bens que satisfizessem necessidades estabelecidas por con­venções coletivas; nem a divisão sexual do trabalho, nem as diferenças de gênero nem os contrastes étnicos provocavam então desigualdades importan­tes, porque a sociedade funcionava em busca do bem comum, o enriquecimen­to privado era impensável e, por isso, não existiam condições para a concen-

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tração de poder e para desigualdades extremas. Ao desarticular-se esse sujeito comunitário e surgirem os sujeitos privados, guiados pela ânsia de entesoura- mento mercantil, rompeu-se o direito à eqüidade - note-se que, neste ponto, não estamos falando de igualdade. A necessidade foi deslocada e em primeiro plano veio colocar-se o interesse de produzir para lucrar, com o que teve início a era da concentração de poder e do aparecimento da ineqüidade. Até então, haviam existido apenas a diversidade e desigualdades não significativas.

Essa transição da sociedade comunitária para a dos mercadores privados produziu a 'primeira grande derrota dos direitos humanos e da necessidade' como eixo da construção social. Desde então, o interesse centrou-se na produ­ção para o lucro, que passou a ser o eixo de organização de todas as ativida­des. Depois, uma ‘segunda grande derrota histórica dos direitos humanos e da necessidade', como princípio de definição social, deu-se com o surgimento do capitalismo da livre concorrência (século XVII) e, um pouco mais tarde, da grande indústria (em torno do século XVIII), alicerçado na descoberta de que o uso da força de trabalho possibilitava o aumento do valor, a extração de lucros do trabalho alheio e a acumulação dessa mais-valia. Nesse momento, mulhe­res e homens pobres do mundo perderam o direito à propriedade dos bens fundamentais da sociedade, industriais e financeiros, mas o sujeito coletivo - nessa ocasião, o sujeito trabalhador coletivo - se manteve em vigor e conse­guiu sustentar os direitos trabalhistas e sociais básicos que se consolidaram no pacto social subseqüente à Segunda Guerra Mundial.

A mulher proletária e de classe média, a partir de então, teve de lutar para que suas reivindicações de gênero não fossem dissolvidas nas reclamações gerais de classe, e aproveitou o clima reivindicativo e a mentalidade socialista da época para promover suas próprias reivindicações; com isso, consolidou-se e se diversificou o movimento feminista, que descortinou para o mundo a luta dos gêneros como uma linha nova e fundamental de emancipação. Os grupos étnicos - tendenciosamente denominados de ‘minorias’ pela ciência oficial - também iniciaram seu expediente de luta no mundo, cm momentos diferentes e com força variável. Os projetos de emancipação étnica, por sua ligação evidente com a pobreza, confundiram-se residualmente com os reclamos do proletariado mundial, embora, por sorte, tenham também preservado o fio condutor de suas reivindicações etnonacionais, o que, em muitos lugares, na atualidade, derivou numa força emancipadora, embora o capitalismo globalizado também tenha dado impulso a um novo etnocentrismo e a um fundamentalismo reativo.

Já nas décadas mais recentes, o processo de extrema concentração da ri­queza determinou a acumulação de uma superpopulação relativa, que rom­peu todas as proporções conhecidas até então. Não mais se tratou de um sim­ples exército industrial de reserva, porém de uma massa totalmente excluída do circuito primário da economia monopolista - uma massa marginalizada,

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expulsa para a informalidade no campo do trabalho, deslocada no plano terri­torial para os bairros miseráveis e os espaços mais deteriorados de campos e cidades, e cerceada, no campo cultural, numa cultura marginal e de resistên­cia, na qual não houve oxigênio para a construção de um pensamento emanci- pador. Assim, em meados da década de 1980, já chegado o capitalismo tardio ou pós-industrial, ocorreu 'a terceira derrota dos direitos humanos’ e da possi­bilidade de as classes subalternas concretizarem o sempre postergado projeto emancipador da modernidade. Foi uma derrota em que se combinou o retroces­so absoluto dos direitos económicos com níveis mínimos de sobrevivência, rompendo-se radicalmente o pacto do pós-guerra. Todavia, apesar de sua gra­vidade, o impacto econômico não foi a única destruição ou retrocesso sofrido, pois a globalização implicou não apenas o despojamento de nossa riqueza material e nossos recursos estratégicos, mas também uma contra-reforma jurí­dica, ideológica e cultural que procura neutralizar-nos espiritualmente, não só dissolvendo os espaços e territórios nacionais de reprodução de culturas pró­prias, mas dominando-nos mediante a implantação de uma cultura do egoís­mo e do consumo, com o que se procura acabar com a identidade dos povos e apagar, através do individualismo, qualquer vestígio de organização coletiva e de solidariedade. E tudo isso enquanto se criam severas limitações legais a qualquer forma de defesa dos direitos.

É no quadro desse retrocesso colossal que deve ser reavivada uma preo­cupação com os direitos humanos e a necessidade em todos os campos disci­plinares e, mais ainda, em campos como o da epidemiologia, direcionados para a defesa e a promoção da vida.

Reafirmação urgente da necessidade em saúde

A reflexão sobre a atividade da saúde coletiva e da epidemiologia, como instrumento de investigação, planejamento, monitoramento e controle das con­dições sanitárias e das ações e programas, não pode desvincular-se de várias ‘categorias’ fundamentais para definir os conteúdos e metas da ação. Uma delas, precisamente a que permite iniciar a análise estratégica, é a da ‘necessi­dade’. Mas a ‘necessidade em saúde’ é definida e usada de acordo com inter­pretações distintas de como e por que se dá a ’distribuição’ das formas de acesso e satisfação numa sociedade.

Atualmente, há um confronto entre duas ‘grandes correntes’ a propósito do tema da definição da necessidade: a) a necessidade humana como um valor relativo, que depende de opções individuais e das possibilidades de cada pes­soa e sua família para adquiri-las no mercado (corrente liberal); b) a necessi­dade como um processo determinante da vida, cuja realização constitui, por isso mesmo, um direito humano inalienável, ao qual se deve aceder através de

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uma distribuição eqüitativa e segura por parte de todos os membros de uma sociedade, a qual deve construir-se solidariamente em prol do máximo bem comum (corrente solidária). Essa distinção tem profunda influência em cam­pos como o da epidemiologia e de suas atividades de prevenção, pois, como veremos mais adiante, na seção dedicada à crítica da teoria do risco, uma definição incorreta da necessidade, ou inclinada para interesses unilaterais, conduz a um paradigma ineficaz da prevenção, na melhor das hipóteses, ou„a uma utilização contrária aos interesses sociais, na maioria das vezes.

Por isso, ao nos dispormos a construir um olhar alternativo para uma nova epidemiologia, é muito importante esclarecer essas acepções e direções possí­veis e tomar consciência de suas implicações. Surpreendentemente, a tese de atender à necessidade humana encontra-se tanto nos discursos dos setores mais retrogressivos, que apoiam a corrente liberal, quanto nas propostas alternativas das organizações sociais e núcleos científicos mais inovadores, que promovem a visão solidária. A experiência recente parece indicar que a aparente reivindica­ção das necessidades humanas, por parte dos setores hegemônicos, não passa de uma forma de substituir 'o direito' por uma acepção muito peculiar e convenien­te da necessidade, e assim preparar o terreno para sua mercantilização. Se o atendimento de saúde e os programas de prevenção já não são direitos inaliená­veis, mas 'necessidades' discricionárias, o poder tem a possibilidade de decidir quais necessidades deve incluir num pacote mínimo para os pobres, e quais deve deixar a cargo do mercado e do ‘livre’ arbítrio dos 'clientes'.

Em primeira instância, o debate contemporâneo sobre a ‘definição da ne­cessidade humana’ poderia ser assim delineado: para uns, todos os seres hu­manos têm as mesmas necessidades básicas - ‘teoria objetiva' -, enquanto, para outros, as necessidades são uma construção sociocultural - ‘teoria sub­jetiva' ou ‘relativismo’ (Doyal & Gough, 1991).

Não sendo analisada com maior cuidado, essa delimitação geral pode ge­rar confusão no campo teórico e técnico, sobretudo agora que a nova direita maneja o relativismo a seu favor, aduzindo que as necessidades são construí­das pelas diferentes populações, ou até pelos desejos individuais - para sus­tentar o empobrecimento neoliberal das necessidades -, e, como já foi dito, difunde a idéia de que as necessidades válidas devem ser definidas, em última instância, no mercado e no livre arbítrio individualista.

A discussão desse assunto ultrapassa os limites do presente trabalho, mas basta dizer aqui que o ‘processo de definição das necessidades' nos grupos humanos não é nem exclusivamente objetivo, em resposta a condicionamentos individuais imediatos, nem exclusivamente subjetivo, adquirido ou mediado por condicionamentos históricos, econômicos e culturais. Embora não seja nosso propósito desenvolver aqui uma discussão aprofundada dessa disjunção, ca­bem algumas considerações sucintas.

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Como vimos assinalando, o conhecimento da necessidade pode ser enfoca­do por perspectivas distintas. Há quem sustente que a necessidade não passa de um fenômeno objetivo da natureza, um ‘em si' que só pode refletir-se em nosso pensamento e ao qual se responde com a consecução de ‘satisfações', como um processo reflexo. Essa ‘teoria objetiva’ inscreve-se num enfoque po­sitivista que desconhece que toda necessidade objetiva contém elementos sub­jetivos, os quais, se apagados, deixam-nos uma abstração vazia e indetermi­nada. Inversamente, há quem afirme que a necessidade não passa de uma construção a partir de um esquema subjetivo a príori. Essa ‘teoria relativista’ inscreve-se num enfoque fenomenológico que desconhece que a necessidade construída só o pode ser em relação a uma necessidade concreta, isto é, que a necessidade construída traz a marca da necessidade básica objetiva, e que, além disso, só o pode ser em relação a definições socialmente construídas. Ou seja, elementos objetivos como a sede e a sensação de fome existem na nature­za humana desde antes, porém marcam e estão presentes nas necessidades que construímos com base nelas, individual e coletivamente (Breilh, 2000).

Mas o conhecimento científico da necessidade humana não tem como pon­to de partida um elemento objetivo abstrato nem um esquema subjetivo abstra­to, e sim a atividade prática social de seres concretos, historicamente dados. Esse ‘enfoque praxiológico' evita fazer-nos cair em abstrações vazias, que re­duzem o conhecimento.

A construção da necessidade, como todo processo humano, é gerada a partir da ordem individual ou micro (gênese) e se reproduz a partir da ordem social ou macro (reprodução social) (Samaja, 1993). Na ordem individual pri­mam os processos fenotípicos básicos, isto é, as necessidades fisiológicas e psicológicas; em outras palavras, são as pessoas e as famílias, em seu co­tidiano, que determinam os movimentos detalhados do consumo, com suas preferências e de acordo com seus obstáculos (estilos possíveis e desejáveis de vida), mas tais estilos (preferências e obstáculos) não funcionam num vazio social, desenrolando-se em espaços sociais concretos, marcados nos condicio­namentos econômicos, culturais e políticos (modos de vida típicos) que. em cada classe social e de acordo com as relações étnicas e de gênero que as caracterizam, são viáveis e prováveis, também em relação às determinações sociais mais amplas (ver Figura 9, inspirada em Samaja).

As relações históricas em que vive o ser humano fazem com que seu fenó- tipo e seu psiquismo se modifiquem, e com isso mudam as necessidades bási­cas de ordem biológica e psíquica; em outras palavras, os processos históricos da ordem macrossocial implicam a construção de necessidades coletivas, ou a ‘dimensão coletiva das necessidades’ que depois se mantêm como padrões de reprodução social nos quais se enquadra a necessidade individual. O consumo de água e a resposta para realizá-lo, por exemplo, não é arbitrário, mas objeti-

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vamente determinado por um requisito fenotípico; entretanto, o quantum des­sa necessidade, assim como as modalidades de seu consumo, sua qualidade e as concepções que o reproduzem, varia de acordo com as circunstâncias e exigências de cada momento e lugar.

Figura 9 - A construção da necessidade

Portanto, se a construção das necessidades - incluídas as que se relacio­nam mais diretamente com a saúde - não é exclusivamente um fenômeno psi- cocultural individual, mas um processo histórico coletivo que abarca todas as dimensões da reprodução social, então não se pode adotar unicamente a clas­sificação axiológica das necessidades humanas, proposta à guisa de matriz (Max-Neef, Elizalde & Hopenhayn, 1986). Em vez disso, numa primeira instân­cia, seria preciso colocar as dimensões sociais da necessidade como critério de classificação e considerar que a epidemiologia deve responder com suas ações em cada um dos seguintes campos da necessidade:

• Necessidades humanas do processo de trabalho.• Necessidades humanas da vida de consumo e do cotidiano.• Necessidades humanas da vida organizacional.° Necessidades humanas da subjetividade, da consciência e da

vida cultural.° Necessidades humanas da relação com as condições naturais do

meio ambiente.

Esta classificação corresponde a demandas que não se realizam nem são respondidas apenas no plano individual ou a partir da perspectiva dos indiví-

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duos, e todas envolvem os requisitos básicos de serem processos: cooperativos e solidários; criativos; benéficos para a saúde física e mental; culturalmentc enriquecedores, por meio do fortalecimento dos povos e de suas culturas par­ticulares, bem como das conquistas culturais universais; adaptados às condi­ções de idade, gênero, atividade e meio; possibilitadores de uma participação criativa e autônoma das pessoas e de suas organizações na definição e desen­volvimento dos próprios direitos; que sejam bens cuja vigência ou aos quais o acesso não dependa da renda, da situação de classe, do gênero ou da etnicida- de; e que sejam os mais seguros, conforme o horizonte de visibilidade da ciên­cia num determinado momento (Breilh, 1995b).

Dessa maneira, enfocamos um nível de análise coletiva que atende às ne­cessidades reproduzidas por uma estrutura social, mesmo que estas tenham sido geradas com o concurso das necessidades básicas biopsicológicas. Isso não significa que não devamos atentar para as necessidades específicas dos indivíduos, mas que devemos organizar a lógica das respostas mais singulari­zadas no contexto do pensamento e da ação relacionados com o coletivo, e só depois entrar no nível micro.

Só faz sentido enunciarmos a necessidade no seio dos processos concretos de reprodução social quando entra-se diretamente numa matriz como a pro­posta por Max-Neef, Elizalde e Hopenhayn (1986), atomizam-se a visão e a análise no indivíduo, porque, embora as necessidades básicas sejam seme­lhantes no plano formal abstrato, no terreno concreto da vida social, ao contrá­rio, elas fazem parte de processos e determinações distintos, cujas especificida­des merecem enfoques diferenciados. Esse é um problema que não se resolve com a proposta dos autores de distinguir entre necessidade e satisfação - por exemplo, entre a ‘necessidade de proteção’ e o 'sistema satisfatório de saúde’ - porque as necessidades que os autores reconhecem, tais como a proteção, não se produzem nem existem como um fato natural espontâneo, mas são proces­sos em movimento, com características e modos de devir determinados pelas condições socioestruturais e pelos conflitos de interesses a que elas correspon­dem, com especificidades que, não sendo levadas em conta, conduzem a gra­ves erros de interpretação e de ação. Do mesmo modo, se é verdade que a ‘subsistência’, por exemplo, é uma necessidade essencial em qualquer socie­dade, falar dela no vazio, sem inserir essa análise nos processos históricos determinantes da reprodução social (processo de produção e consumo, que define a quota e a qualidade dos bens que cabem a cada grupo; processo de poder político no Estado, que condiciona a quota e a qualidade dos serviços prestados também por essa via etc.), equivale a criar uma abstração inútil, caso o que se almeje seja desencadear uma ação emancipadora; é como tirar do processo de subsistência a sua raiz e vê-lo incompleto, o que seria apenas funcionalmente útil e equivaleria a um modelo de ação cosmética, que repro-

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duziria as mesmas condições essenciais. Mais que isso, no entanto, uma ne­cessidade como a subsistência, que tem de ser solidária e digna para ser hu­mana, não é simplesmente uma necessidade, mas foi historicamente transfor­mada num direito que não pode ser submetido a nenhuma negociação, da mesma forma que os princípios não podem ser negociados.

Vistas as coisas dessa maneira, a ‘subsistência’ não começa como uma necessidade natural em si, que se reflete na busca de um elemento de satisfa­ção como a água e o alimento, mas é um processo que começa em sua forma de determinação histórica e se projeta nos processos de satisfação, como uma unidade dinâmica que a análise não deve quebrar em pedaços; fazer o inverso é um fracionamento positivista tão falacioso quanto a decomposição da reali­dade em fatores, para estudar de forma positivista as ‘causas' das doenças. O que efetivamente se pode fazer com as referidas categorias axiológicas (subsis­tência, proteção, afeto, entendimento, participação, lazer, criação, identidade, liberdade) é inseri-las no referencial dinâmico da reprodução social e nos pos­tulados solidários e socialmente construídos da ação.

Em síntese, os processos básicos subdividem-se em fisiológicos e da cons­ciência. Entre os primeiros surgem necessidades como o consumo alimentar adequado à atividade e ao meio ambiente, por exemplo, que se inclui entre as necessidades humanas universais ou básicas (Doyal & Gough, 1991). O mes­mo se pode dizer de uma necessidade básica como a de trabalhar num local sem estressores físicos e sem processos destrutivos. No primeiro caso, o da necessidade de alimento, embora esse processo seja realizado por indivíduos, em última instância, não obedece unicamente a uma liberdade ou uma opção individual - como afirmaria o liberalismo social de Sen -, mas é profundamen­te determinado pelo contexto social; do mesmo modo, pode-se dizer que no segundo caso, o do trabalho livre de estressores e processos destrutivos, é evidente que também isso não é produto de uma restrição ou uma agressão que condicione a necessidade de uma pessoa isolada, mas faz parte de um modo de vida que pertence a um conjunto social. As ‘necessidades fisiológicas básicas' têm de ser integradas como um referente a qualquer medição da qua­lidade de vida, que deve incluir, portanto, o grau de consumo adequado de valores de uso básicos, conforme a idade, o gênero e a atividade, em compo­nentes como alimentos, proteção em relação ao clima (vestuário e moradia), descanso ou repouso e exercício físico adequado, e restauração e manutenção da saúde. O acesso a tais necessidades básicas é ‘parte decisiva de um pacote integral de saúde’, como direito e aspiração legítima de todos os povos. Mas existem também 'necessidades básicas ligadas ao psiquismo' e a seu desenvol­vimento, as quais, na espécie humana, são necessidades de consciência parti­cularmente vinculadas ao aumento do consumo, tais como identidade, apren­dizagem, fruição de suportes afetivos e solidários, capacidade de interpretação

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crítica e ausência de cerceamentos do pensamento, recreação formativa e de reprodução da capacidade física e intelectual, participação consciente nas de­cisões que dão conteúdo e direção à vida humana, pautadas pela eqüidade. 'Também estas são necessidades básicas - as mais violadas pelas sociedades da desigualdade - que devem fazer parte de um pacote integrado de qualidade de vida, e têm de ser incorporadas a sua medição.’

Por isso, não compartilhamos da lógica desses autores, quando restrin­gem a análise à relação indutiva ‘necessidade -»■ elemento de satisfação’, como se estivéssemos tratando de uma relação linear, dada na dimensão individual do arbítrio singular e descontextualizada das formas coletivas de organização. Não é nos indivíduos que se explica e se realiza a ligação da necessidade com a forma de resposta social a ela, pois a estrutura coletiva determina os modos de criação e reprodução das necessidades, as formas de produção e circulação dos bens produzidos e, por conseguinte, as maneiras de satisfazer as necessi­dades. Assim, por exemplo, a ‘macdonaldização’ do consumo não é produto de gostos nascidos em muitas pessoas, mas produto da transformação de um padrão de consumo alimentar e lúdico nas sociedades do capitalismo monopo­lista urbano. Tampouco o consumo globalizado da Coca-Cola é resultado ex­clusivo de um 'elemento de satisfação', perfeitamente adequado a um fenótipo e a um estilo humano natural, mas sim produto de um processo complexo de construção comercial cultural de cenários e afinidades altamente compatíveis com a sociedade moderna, dentro do qual pode operar a atração poderosa de uma substância que contém elementos como a cocaína ou a cafeína em doses baixas. Muito menos são a perda de terreno do Dia de Finados e sua transmu­tação no Halloween, nas sociedades urbanas, uma resposta a uma condição psicocuitural inerente à 'natureza' humana, e sim a imposição de padrões lúdicos e comerciais respaldados pelo poder do dinheiro, pelo bombardeio da propaganda e pela imposição de novos sentidos, compatíveis com a ‘ameri- canização’ das coletividades urbanas.

Em todos os casos expostos, a estrutura produtiva é determinante, uma vez que estabelece os condicionamentos decisivos da construção de necessida­des e das maneiras de satisfazê-las. As necessidades são historicamente pro­duzidas, e não geradas por sujeitos isolados; são, essencialmente, um produto do movimento das opções individuais em meio ao movimento determinante do coletivo; e, o que é mais importante, a produção econômica dos bens e a distri­buição dos que são repartidos pelo Estado não são simples instrumentos a serviço da satisfação de necessidades preexistentes (Boltvinik, 1994), mas es­tão ligadas aos interesses das classes hegemônicas, que criam esses ‘elemen­tos de satisfação' de acordo com sua conveniência. É nesse contexto que se devem estudar as atribuições de valor e os comportamentos das coletividades em relação aos serviços públicos e privados de saúde, bem como aos dos

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profissionais e técnicos que hoje favorecem uma reforma de saúde regressiva, que vem modificando o perfil de desenvolvimento da epidemiologia institucional.

Com efeito, as abordagens liberais sobre a necessidade situam-na como um problema individual, ligado ao consumo e ao arbítrio pessoal, e, nos pla­nos retrógrados de reforma, isso adquire uma importância capital, porque é assim que os cidadãos e cidadãs deixam de ser ‘detentores de direitos' e se transformam em ‘clientes’. Formulada dessa maneira, a necessidade substitui o direito, e a distribuição insuficiente de serviços - que é ocasionada pela monopolização da riqueza, mas não é reconhecida como tal - passa a consti­tuir um recurso de sobrevivência, medido por técnicas múltiplas, como a da ‘linha de pobreza’ (limiar de renda/despesa mínima) ou a da ‘satisfação de necessidades básicas’ (lista mínima de elementos de satisfação de necessida­des básicas) às quais os clientes do mercado podem aceder (Desai, 1994).

Neste livro, ao discutirmos mais adiante os modelos de desenvolvimento humano que inspiram ou influenciam o planejamento e as propostas de refor­ma, procuraremos promover uma visão contrária, que enfoca a necessidade não em termos de bens e fatores de satisfação, mas como recursos indispensá­veis à humanização das dimensões da reprodução social, em primeiro lugar, e em seguida, na ordem micro, apoiaremos a recriação de propostas como a de Sen, que se expressou nos livros citados por nós, reinserindo sua análise numa estrutura de poder e ineqüidade, que é onde se explicam as desigualdades resultantes e onde se determinam as capacidades (capabilities) muito distintas que surgem nas diferentes classes sociais, grupos étnicos e de gênero, e que, com justa razão, preocupam o Prêmio Nobel bengalês. Nossa proposta para a ‘análise da necessidade na saúde’, portanto, funciona em dois movimentos: a inserção da análise na estrutura de poder e a inserção das intervenções na organização coletiva dos grupos subalternos na referida estrutura de poder. Em outras palavras, os determinantes da saúde operam nas dimensões dis­tintas da vida social (reprodução social), em todo o espectro de bens ma­teriais e espirituais a que cada grupo social tem acesso, de acordo com a qualidade de sua atividade profissional, de suas modalidades típicas de con­sumo e até de suas formas e relações organizacionais/políticas, culturais e ecológicas (Breilh, 1997c).

Uma vez analisada a definição da necessidade, é preciso, inevitavelmente, abordar o problema de sua 'distribuição', e nesse ponto, é absolutamente per­tinente resgatar o questionamento da tese de uma suposta capacidade distribu­tiva do mercado, subjacente a toda a construção teórica da doutrina neoliberal (Valenzuela, 1991). O mercado é não apenas um ótimo distribuidor dos bens e do acesso às necessidades, como também, por sua estrutura oligopolista, é o reprodutor acelerado de grandes abismos de ineqüidade.

As ações de que depende a atividade epidemiológica, como todo o conjun­to que pertence essencialmente ao campo da prevenção e da promoção, são

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sempre profundamente afetadas em toda sociedade em que se inicia um proces­so de privatização da saúde, porque as modificações que elas sofrem não são apenas pontuais, mas comprometem o conjunto do sistema de saúde, e porque isso implica ligar as decisões de saúde aos interesses empresariais e de análise de custo beneficio, em vez de inseri-las na lógica do custo-benefício da coletivi­dade e na dos direitos humanos e das necessidades inalienáveis, tema a que voltaremos mais adiante, ao abordarmos a crítica do paradigma de risco.

Quando a história humana abandonou a etapa coletivista em que se pro­duzia e se distribuía conforme a necessidade, para entrar em cheio nos diferen­tes períodos do produtivismo e da propriedade privada, a construção social da necessidade foi deslocada para segundo plano. O produtivismo possibilitou a monopolização do poder e significou a derrota da construção coletiva da vida social, a tal ponto que, na era moderna, o centro absoluto de toda a vida humana passou a girar primordialmente em torno da acumulação em todas as ordens, e da concentração dos bens materiais e culturais acumulados. No mundo hege­mônico, a acumulação é maior e igualmente monopolizada, enquanto no mun­do subalterno do capitalismo periférico o contraste é maior, porque os centros de acumulação se aproveitaram dos níveis ínfimos de vida para aumentar seus lucros; tanto num quanto noutro caso. entretanto, a acumulação consti­tui, agora mais do que nunca, um obstáculo insuperável diante de um projeto autêntico de reforma (Benítez, 2000).

A acumulação baseada na exploração do ser humano criou uma distância cada vez maior entre o que se produz e o que se distribui, entre a natureza e o ser humano, entre o saber e a consciência, entre a necessidade coletiva e a tecnologia, entre as possibilidades de comunicação e o que sabemos dos ou­tros, aspectos estes que guardam estreita relação, todos eles, com as condições de saúde. Assim, a acumulação e a racionalidade competitiva de hoje são uma barreira radical a qualquer tentativa de reforma, pois nos sufocam na miséria em meio à opulência, enchem-nos de saber científico, mas sem consciência, deixam-nos culturalmente incomunicáveis em meio à incomensurável capaci­dade da comunicação digital, e nos sufocam em epidemias - algumas das quais praticamente já haviam desaparecido - tudo isso em meio a uma tecno­logia cada vez mais evoluída, porém estruturalmente impedida de se voltar para o benefício coletivo (Breilh, 1998).

A história recente da América Latina determinou, nessa fase, uma expan­são acelerada do sistema capitalista, que agora aprofunda a essência do inte­resse privado, graças ao expurgo de certas ‘impurezas ou resíduos de lógica social ou solidária' que haviam conseguido persistir como produto das lutas do povo e das concessões do keynesianismo. Esse abismo entre a necessidade humana insatisfeita, por um lado, e a produção e o poder que a sustenta, por outro, atingiu sua expressão máxima no período neoliberal, cujo braço admi-

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nistrativo é o Fundo Monetário Internacional (FMI), junto com seu agente Finan­ceiro, o Banco Mundial (BM).

A reflexão sobre o conceito de necessidade introduz-nos em cheio no cam­po da discussão dos modelos de desenvolvimento humano em que deve inscre­ver-se, necessariamente, uma proposta epidemiológica alternativa; e, como esse é um vasto campo de análise, que ultrapassa os limites deste trabalho, cabe aqui apenas tentarmos uma delimitação introdutória.

MODELOS DE DESENVOLVIMENTO HUMANO: CAMINHOS OPOSTOS PARA A EPIDEMIOLOGIA

As doutrinas sobre o desenvolvimento humano sempre foram um campo de debate inflamado, e não é de estranhar que, no período mais desumano da história, proliferem numerosas propostas e versões da teoria da necessidade e do desenvolvimento humano, com implicações distintas para a atividade da epidemiologia. Com o propósito de estabelecer uma tipologia básica, podería­mos distinguir duas tendências gerais, que, mais do que se encontrarem qui­micamente puras em nossas sociedades - sempre caracterizadas por sua com­plexidade e sincretismo -, estão presentes em forma desigual e combinada, mas respondendo a interesses sociais diferentes: a) modelos de desenvolvimen­to humano que partem de uma aceitação das condições estruturais, das regras do jogo e das concepções da sociedade capitalista, quer para modernizá-las e aprofundá-las, quer para imaginar a possibilidade de um capitalismo social ou benigno; b) modelos pensados a partir de uma perspectiva emancipadora, que se projeta, já como uma subversão das bases do poder - incluindo as formas de alta concentração da propriedade que sustentam o poder econômico -, de tal maneira que se possa concluir o projeto inacabado da modernidade, ou seja, como superação dessas bases, mediante a entrada numa era de libertação (pós- moderna?) em que desapareçam os componentes substantivos da modernidade capitalista (predomínio da razão científica e do pensamento iluminista; idéia de progresso e de acumulação ascendente; uniculturalismo; imposição de domínio sobre a natureza).

‘Os modelos de desenvolvimento humano do primeiro grupo’, que se ins­crevem numa defesa do sistema capitalista ou buscam sua reforma ou suavi- zação, assumem quatro posturas fundamentais:

• As que denominaremos de 'neoliberais' impulsionam a concentração monopolista, como elemento de vigor e força competitiva; propugnam pela desregulamentação completa e pela flexibilização da vida social, para que o mercado opere em sua plena capacidade como distribuidor; propugnam pela legalização de toda a informalidade, presumindo a pobreza como inevitável e merecedora de paliativos focalizados - como

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os subsídios à demanda de serviços ou os abonos de saúde ou educa­ção para os pobres paliativos estes que, de qualquer modo, são temporais, cobrem apenas níveis básicos de sobrevivência e recaem sobre os ombros dos consumidores médios e dos setores assalariados, mas não sobre os das empresas (Valenzuela, 1991).

° Os modelos 'empresariais modernos' que concentram o desenvolvi­mento em torno de condições facilitadoras do avanço moderno das pequenas, médias e grandes empresas, individuais ou associadas em cooperativas, e até de empreendimentos individuais ou familia­res, como unidades competitivas formalmente constituídas e ajusta­das a parâmetros modernos de gestão, os quais são apoiados ou regulados por programas de Estado (Coraggio, 1998).

° Os modelos pensados 'em torno do Estado' ou das políticas institucio­nais. Nesse grupo podemos destacar os modelos de 'gestão social ou neokeynesianos', centrados na reengenharia do Estado, mediante paradigmas de gestão de alta eficiência, que outorgam importância - pelo menos teórica - à gestão da frente social como elemento de governabilidade, mas incorporando princípios empresariais. Há tam­bém uma variante que poderíamos designar de ‘programa de desen­volvimento humano do PNUD', que concentra o interesse na modifi­cação pontual de alguns indicadores de acesso ao consumo básico educativo e de saúde, bem como de renda, que são perfeitamente compatíveis com as políticas de uma focalização social desvincula­da da economia (Breilh et al., 1997; Coraggio, 1999). Em certas oca­siões, a concessão de subsídios à demanda, que faz parte de alguns dos modelos anteriores, pode, por sua vez, destacar-se como mode­lo, e é conhecida como 'renda cidadã’, a qual pressupõe um reco­nhecimento dos chamados direitos de cidadania como caminho para aumentar a igualdade, desvinculando a renda do trabalho ou da produção de bens e serviços e garantindo acesso a uma cesta bási­ca pré-fixada, questão esta que, apesar de universal, pressupõe uma contradição com o mercado global, que penaliza as sociedades que reduzem a renda em decorrência da redistribuição (Coraggio, 1999).

• Os modelos de ‘economia privada coletiva' e também o do ‘libera­lismo social’ (Sen, 2000) e o do ‘desenvolvimento em escala huma­na’, os quais, por seu interesse para a construção de uma contra- alternativa emancipadora, analisaremos mais detidamente. Esses modelos enfocam, em especial, o que é possível fazer a partir da •sociedade civil', e reforçam estratégias destinadas a fortalecer a sociedade privada, o mercado local e nacional e um Estado mais democrático, que acompanhe esses processos, os interesses empre­sariais e de análise de custo/benefício.

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Trata-se de um conjunto de propostas que estabelecem uma ruptura parcial com a dominação do produtivismo e das políticas sociais que o secundam, e que se mostram favoráveis a teses redistributivas e humanas, embora não deixem de enraizar a análise na estrutura de poder; poderíamos chamá-las de ‘modelos de transição’.

Nesse grupo se incluem as propostas de ‘economia privada coletiva’, que articulam trabalhos independentes ligados ao mercado, mas potencializados por relações cooperativas e, em alguns casos, por vínculos solidários de raiz cultural ou religiosa, ou por movimentos de reivindicação específica, como os étnicos ou os de gênero. Essas propostas incluem, em primeiro lugar, os mode­los de ‘economia coletivista’, tais como os sistemas cooperativos ou mutuados solidários, sem fins lucrativos, orientados para a reprodução e a melhoria de seus associados. Ocasionalmente, eles assumem a forma de redes de microem- presas locais, orientadas para a produção ou a comercialização, o que lhes facilita o acesso ao crédito e à tecnologia. Uma variante próxima é a das ‘em­presas comunitárias’, as quais, diferentemente das anteriores, centram sua ação na comunidade ampliada, e não apenas nos associados, orientando-se para o benefício comunitário (aqui se incluem as associações de produção artesanal, as redes de permuta e as feiras de consumo popular). Também se destacam nesse grupo as experiências de ‘economia solidária’, muito ligadas à doutrina da opção cristã pelos pobres, e que vão além do sustento meramente econômico e se abrem para o trabalho voluntário e as doações, cuja validade é estabelecida em termos éticos. E, por último, faz parte dessa vertente o modelo da ‘empresa social’, que agrupa setores especiais e desprotegidos para lhes dar uma coesão produtiva, questionando o assistencialismo e visando não apenas à produção de mercadorias, mas também a um valor social agregado, sob a forma de comportamentos e instituições alternativos; para esse modelo, o mercado não é alicnante nem excludente, mas sim uma intersecção entre a empresa e o mercado, no que tange à assistência social (Coraggio, 1999).

Muitas das variações anteriormente descritas foram concebidas a partir da conflituosa década de 1970 - período estremecido por movimentos traba­lhistas e estudantis e por um intenso debate de alternativas - e foram influen­ciadas tanto pelo pensamento socialista da época quanto pelo chamado ‘socia­lismo liberal’, que desde então já acumulou avanços importantes no campo da ciência econômica, entre outros assuntos, em torno do questionamento do cres­cimento econômico como critério central e medida do desenvolvimento social. Começou-se a questionar a ‘ditadura do PIB’, como indicador onipresente e profusamente usado pelas entidades internacionais para formular suas estatís­ticas da pobreza. Esta última corrente teve em seu centro a doutrina da ‘liber­dade individual como compromisso social’, de Amartya Sen, inspirada no prin­cípio ético da liberdade individual, como um valor central dotado de uma

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dimensão positiva (a liberdade de fazer algo) - na qual o importante, acima de tudo, é a liberdade de preferência ou de escolha - e de uma dimensão negativa (o libertar-se de algo). O resgate da liberdade individual é fundamental para essa doutrina, visto que uma de suas metas primordiais é a superação das teses clássicas do utilitarismo (elaborado por Jeremy Bentham e desenvolvido por John Stuart Mill), para o qual o importante é obter a 'felicidade máxima do maior número de pessoas', alcançar o prazer ou bem-estar ('utilidade'), recha­çar a dor ou a infelicidade e realizar o chamado ‘ótimo de Pareto’, que procla­ma como estado ideal a situação em que é impossível aumentar a utilidade de um indivíduo sem diminuir a de outro, meta esta a que se chega com a preci­são do 'cálculo de utilidades'.38

A 'teoria da liberdade como compromisso social’ supera a racionalidade fria do crescimento econômico e da disponibilidade de renda, e incorpora as dimensões afetivas, morais e culturais que determinam a capacidade de as pes­soas funcionarem e procurarem fazer com que suas escolhas maximizem as utilidades (Sen, 1970, 1982, 1985). No caminho de sua construção teórica, o autor deparou, em primeiro lugar, com o problema de como definir a felicidade e o bem-estar, e, em segundo, com a necessidade de superar o utilitarismo clássico, unicamente preocupado com a soma das utilidades, mas não com sua distribuição desigual na sociedade. Para resolver esses dilemas, adotou a teoria da justiça de John Rawls39 e afirmou que a questão é distribuir de forma eqüitativa não apenas a renda e os recursos, mas também as capacidades e funções humanas fundamentais, ou seja, a capacidade de viver uma vida dig­na e sensata, mais do que de acumular bens (Saint-Upéry, 2000).

Em suma, o modelo de Sen desvia a atenção dos bens e recursos primários para as capacidades e liberdades, com o que o autor pretende desatar o nó da estreita ótica da desigualdade como diferença de recursos e possibilidades de acesso, a fim de considerá-la como resultado de outro tipo de determinantes (classe, gênero, capacidade física e até localização geográfica); para ele, por­tanto, a liberdade individual é um compromisso social. Trata-se de um enfoque que sem dúvida afeta as formas convencionais de medir a pobreza, que com isso deixam de se reduzir a indicadores de baixa renda e passam a incluir

38 Vista por essa óptica, entretanto, uma sociedade de opulentos e miseráveis pode encontrar-se no 'ótimo de Pareto', porque é impossível melhorar a vida dos miseráveis sem prejudicar os interesses materiais dos ricos.

39 John Rawls afirma que a questão é distribuir eqüitativamente o que ele chama de 'bens primários', cuja distribuição seria norteada por dois princípios básicos de justiça: todas as pessoas têm os mesmos direitos, num esquema de direitos e liberdades fundamentais, e o mesmo esquema é válido para todas; além disso, as desigualdades sociais só se justificam nos cargos mais altos, acessíveis a todos com igualdade de oportunidades, mas em posições a partir das quais se deve oferecer o máximo de benefício aos menos privilegiados.

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termos que caracterizam a insuficiência de liberdade, incompatível com uma existência satisfatória, e demonstram uma carência de capacidade (Sen, 2000). Dessa maneira, resgata-se a importância de reconhecer como aspec­to-chave do nível de vida a faculdade de transformar a renda e os bens em capacidade e liberdade.

O neo-utilitarismo de Sen desdobra-se, portanto, em três níveis de análise: o das capacidades, o dos modos de funcionamento e o dos bens. O meio físico e social, assim como as características pessoais, determinam as caracte­rísticas materiais e os bens necessários para garantir a capacidade de funci­onamento das pessoas, o que, por fim, e havendo um certo estado psíquico, determina a utilidade que elas alcançam. Em outras palavras, o que faz esse modelo neo-utilitário é inserir a mediação das capacidades, pois o modelo neoclássico simplesmente relaciona (no caso típico de um consumidor) a liber­dade de escolha e o funcionamento (consumo) da pessoa num certo estado psíquico (preferências), situando como única limitação os recursos disponí­veis, sem levar em conta as capacidades (Desai, 1994).

Sen insiste no fato de que a faculdade diferenciada das pessoas de trans­formar a renda e os bens em capacidade e liberdade depende de condições sociais que as políticas devem modificar, e assinala que, por exemplo, ‘a situação da saúde pública e do ambiente epidemiológico pode ter uma influên­cia profunda na relação entre a renda pessoal, por um lado, e a liberdade de desfrutar de boa saúde e vida longa, por outro, pois alguns dos países mais ricos, como os Estados Unidos, são muito atrasados nesse aspecto, e a liber­dade positiva de viver sem uma mortalidade prematura é um compromisso da sociedade (Sen, 2000).

Outra proposta transicional é o ‘modelo de desenvolvimento em escala humana' (Max-Neef, Elizalde & Hopenhaydn, 1986; Max-Neef, 1999), uma ofen­siva interessante contra o produtivismo e o instrumentalismo, embora não corte as amarras no que concerne a sua base estrutural - perspectiva muito próxima da de Sen. Ela propõe uma economia humanista que, segundo seus autores, implica, fundamentalmente, conseguir a transformação da pessoa- objeto em pessoa-sujeito, e a correspondente substituição dos ‘indicadores de crescimento quantitativo dos objetos' por ‘indicadores do crescimento quali­tativo dos sujeitos'. Esse modelo identifica a qualidade de vida como a possibi­lidade de as pessoas satisfazerem adequadamente seu sistema de necessidades, o qual, em essência, seria idêntico em todas as sociedades, diferindo apenas quanto aos elementos de satisfação correspondentes. Aqui, a chave está em decifrar a dialética entre necessidades, elementos de satisfação e bens econô­micos, mediante uma concepção da necessidade e da relação necessidade/ elemento de satisfação cujos aspectos insubsistentes já foram analisados numa seção anterior, e que os autores expõem na forma de uma ‘matriz de necessi­dades e elementos de satisfação’.

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As teorias que qualificamos de transicionais partem, em suma, de um postulado básico que centra o desenvolvimento nas pessoas, e é justamente aí que se enraízam a força e, ao mesmo tempo, a debilidade de sua proposta. Elas situam o cerne de seu interesse na dimensão humana e na proteção integral da qualidade de vida, e contestam que esta possa ser medida por uma divisão per capita do produto interno ou peia receita/despesa familiar média; isso é muito bom, mas elas isolam sua visão no individual, com o que cortam pela raiz a possibilidade de uma emancipação humana e social verdadeira.

MODELOS EMANCIPADORES PARA 0 DESENVOLVIMENTO HUMANO

A chave unificadora dos anseios de nossos setores, nós que defendemos o popular com um sentido democrático, é a 'vontade de emancipação', que significa a busca organizada e solidária de rompimento com todos os víncu­los materiais, políticos e culturais que criaram a concentração monopolista do poder na sociedade capitalista, bem como as bases para a propagação das epidemias antigas e modernas. A luta pela emancipação unifica todas as utopias construídas para libertar o ser humano da exploração econômica, da dominação política, do cerceamento da cultura e da subjetividade e das rela­ções ecológicas anti-humanas, tudo isso para possibilitar a libertação da vida e do pensamento, a vigência do bem comum e a construção de socieda­des mais saudáveis.

Os 'modelos de desenvolvimento humano do segundo grupo', que osten­tam uma intencionalidade emancipadora e uma independência do sistema ca­pitalista, podem decompor-se em três tipos de posturas principais: a) os que propõem a abertura de uma economia popular paralela ao sistema econômico capitalista; b) os modelos que propugnam pela superação radical das bases do poder econômico reprodutoras da ineqüidade; c) os que propõem a superação ou a libertação (pós-moderna?) não apenas das limitações da estrutura econô­mica do capitalismo, porém a superação dos fundamentos filosóficos, racio­nais e estruturais da era capitalista moderna.

As propostas desse tipo que hoje circulam nos partidos de esquerda e nos movimentos sociais não se ajustam com pureza à nomenclatura que aqui propo­mos com fins analíticos, mas se apoiam com maior ênfase nas linhas citadas.

Ao primeiro tipo de modelo daremos o nome de ‘economia popular parale­la', uma vez que afirma a necessidade de se iniciar a construção de uma econo­mia popular e de fazer essa construção a partir das bases da nova sociedade. Dentro dessa linha, destaca-se a proposta de ‘autocentração ou acumulação po­pular autocentrada e descentralizada' que foi defendida para as sociedades andinas (Schuldt, 1995). Esse modelo aposta num processo de acumulação po­pular geográfica e politicamente descentralizado, calcado num projeto político

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nacional de base regional que incorpore as massas heterogêneas no processo de tomada de decisões - nos níveis local, regional e nacional -, à medida que se configurem e se reforcem as bases econômicas dos segmentos populares, num processo de acumulação orientado para atender às ‘necessidades básicas’ e que, para isso, redefina os padrões de produção e consumo. Para atingir esse objetivo, propõe-se uma dinâmica de produção baseada na interação acordada de atividades ‘de’ e ‘para’ o mercado interno e no encadeamento de produtores de bens de massa simples e meios de produção que estejam a serviço deles, com base num pluralismo tecnológico que desloque para um lugar secundário a produção de bens e serviços de luxo. O eixo, portanto, é o aumento de uma capacidade e habilidade ‘pessoais’ que reforcem as comunidades e os sujeitos sociais (locais), caminhando, a partir daí, para o controle da acumulação nacional - um controle local da distribuição do excedente, do mercado, dos recursos naturais e das tecnologias. Trata-se de um modelo de desenvolvi­mento que tem a virtude de ser formulado como uma oposição à reprodução dependente, centrada nas exportações e nos bens de consumo de luxo, e cuja autocentração busca o desenvolvimento humano enfocado nas necessidades e no aumento dos direitos, capacidades e realizações próprios, sobretudo de comunidades locais e pequenos grupos, cujas identidades e sujeitos sociais se construiriam, com isso, ‘de baixo para cima’, aproveitando as experiências, os saberes e a ‘racionalidade oculta’ que seriam indispensáveis para se reto­mar o controle da acumulação. Tudo isso, é claro, com o apoio de um Estado nacional democrático, que contribua, a curto prazo, para o desenvolvimen­to dessa força produtiva doméstica e do mercado interno, e trabalhe, a lon­go prazo, em prol do redirecionamento do modelo exportador primário, sem desperdiçar os ‘nichos rentáveis’ do mercado mundial (Acosta, 1998; Acosta & Schuldt, 1999).

Também faz parte dessa linha o modelo de ‘economia popular’ que se autodefine como ‘não economicista’, e que desloca seu foco de interesse da acumulação para a reprodução ampliada da vida humana, subordinando a acumulação à satisfação das necessidades básicas de todos, para colocar a produção como meio e a reprodução como sentido, o que equivale, para seu autor, a situar os equilíbrios psicossociais acima dos equilíbrios macroeconômicos (Coraggio, 1998, 1999). A estratégia proposta para alcançar seus objetivos é a construção de um subsistema de economia popular centrado nas unidades domésticas de trabalhadores do campo e da cidade, formais e informais, braçais e intelectuais, nos moldes de um programa aberto que não se encerra na vinculação nem na desvinculação da economia capitalista domi­nante. A chave desse modelo estaria em dar um salto para alcançar a solidari­edade orgânica entre os diferentes elementos e atividades populares, o que pressupõe fortalecer a interdependência entre as unidades domésticas e as comu­nidades através de um intercâmbio reiterado, mediado pelo mercado ou por

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relações diretamente sociais. Ele escolhe a unidade doméstica porque seu objetivo último é uma reprodução ampliada da vida que não se reduza aos níveis básicos da necessidade, mas seja uma busca de qualidade na vida sem limites intrínsecos, e também porque o recurso principal dessa unidade é o fundo de trabalho de seus membros.

É evidente a influência dos modelos que antes chamamos de transicionais nessas duas últimas propostas, que buscam uma guinada emancipadora e democrática para a economia.

Entretanto, o traço que mais preocupa é que talvez seja muito arriscado propor a possibilidade de uma separação viável entre a economia empresarial monopolista, a economia pública e a economia popular, e construir um processo de reforma profunda, com uma opção emancipatória, quando continuam intac­tos os elementos-chave da estrutura de poder e hegemonia, e quando se parece querer deixar a construção política entregue a esse tipo de construção espontâ­nea, ‘de baixo para cima’, de redes comunitárias e cidadãos democráticos.

Daí a necessidade de dar mais alguns passos à frente e propor um ‘modelo de emancipação humana popular' (Breilh, 1995a, 1999b; Hidalgo, 2000) que articule algumas das contribuições anteriormente delineadas, porém numa vi­são integradora que as insira num processo de libertação econômica do siste­ma de propriedade monopolista; que integre na construção de baixo para cima um poder popular multicultural, veiculado num bloco popular contra-hegemô- nico, a fim de transformar não só a estrutura do poder econômico, mas tam­bém o sistema de poder político, desmantelando o Estado atual para dissolver o poder vigente e viabilizar o desenvolvimento da democracia; e que, por fim, integre o avanço do multiculturalismo e a incorporação de todos os saberes na edificação de uma nação em que caibam todos os projetos populares - tecendo uma trama de estreita comunicação entre esses projetos - gerados a partir da luta dos partidos e movimentos sociais, desde os movimentos étnicos e de gênero, mas institucionalizando os processos de descentralização profunda, de desburocratização e de dissolução de todas as estruturas clientelistas.

POSSIBILIDADES DA EPIDEMIOLOGIA NO MODELO HUMANO POPULAR

Ao longo deste livro, questionamos por vários ângulos o projeto hegemô­nico de reforma da saúde. Partindo de uma perspectiva realista, mas cheia de otimismo, cremos na possibilidade histórica de erigir um projeto alternativo que seja a confluência de todas as ações contra-hegemônicas geradas a partir do bloco popular. A verdade é que muitos posicionamentos que consideramos errados na saúde coletiva não são, necessariamente, produto de um retrocesso consciente a posturas francamente conservadoras, nem tampouco, pior ainda, de um questionamento da idéia de defender uma construção alternativa da

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saúde, mas resultam do cerco de hegemonia, persuasão e até chantagem, vez por outra, montado pelo BiM e seus apêndices institucionais, e apoiado no crescimento de ciências sociais neoconservadoras, que se multiplicam em pro­gramas funcionalistas de pós-graduação que desarticulam qualquer análise referente às raízes estruturais dos problemas. Tudo isso reveste o discurso da reforma de uma terminologia aparentemente inovadora, mas impulsionadora de mudanças meramente formais, as quais, no caso das políticas de saúde traçadas pela reforma da Colômbia, por exemplo, só conseguiram elevar as contribuições, aumentar as exigências possibilitadoras do direito à saúde e elevar os limites etários para a concessão de pensões, ao mesmo tempo redu­zindo os benefícios, de tal forma que agora as pessoas contribuem mais para receber menos (Redondo & Guzmán, 1999).

Temos de começar a chamar as coisas por seus nomes e a olhar o caminho da reforma com outros olhos, mais abertos e críticos, mais atentos às arestas e aos contrapesos que nos foram impostos pelo pensamento hegemônico. Deve­mos inserir toda a análise no cenário atual dos países do mundo periférico e, dentro dessa linha, temos de voltar atrás e examinar as propostas da nova epidemiologia, sem perder a lembrança de nossa luta, mas reconhecendo que nosso paradigma enriqueceu-se notavelmente.

O trabalho epistemológico realizado permitiu-nos formular avanços im­portantes e, nos anos mais recentes de maturidade do processo, de (re)construção teórica, começamos a compreender que ainda não estava cla­ro o objeto da epidemiologia, e foi nessa linha que se propuseram reflexões de enorme transcendência. Creio que a pressão atual nos faz reconhecer que teremos não apenas de trabalhar na construção do objeto, mas de reformar profundamente o campo de ação; é também urgente ‘trabalharmos na cons­trução do sujeito da epidemiologia’.

Tão sério é esse desafio de construção de uma nova subjetividade para os povos subordinados do mundo, que ele se tornou flagrante nos eventos cruciais que definiram seu futuro nos últimos anos: as mobilizações maciças de repúdio ao neoliberalismo que terminaram em revoltas contundentes - como no caso do Equador, em várias oportunidades, e no da Argentina, em nossos dias -, mas que, uma vez derrotados os governantes neoliberais e revogado seu mandato pela vontade geral, não resultaram em nada, ante a ausência de um projeto emancipatório compartilhado e unitário e de uma organização ou bloco revolucionário que desse continuidade ao impulso re­novador das populações mobilizadas. Os mesmos grupos monopolistas que agrediram nossa qualidade de vida, mediante a exploração, a corrupção e a entrega de nossos recursos estratégicos, são os que voltaram habilmente a tomar as rédeas do poder.

Uma explicação completa e rigorosa dessa derrota ou esterilização da von­tade popular ultrapassa as possibilidades deste trabalho; queremos apenas

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destacar que, em qualquer análise dessa problemática, é preciso levar muito a sério um fato histórico que tem muito a ver com o tema da construção do sujeito coletivo: os ciclos de dominação e de ludíbrio da vontade popular são produto, em larga medida, de havermos esquecido ou rechaçado o pensamento revolucionário, de termos caído na armadilha que nos ofereceram, de relegar­mos a riqueza das doutrinas emancipadoras, e de havermos acreditado no conto do vigário.

Na falta de uma ideologia revolucionária, e tendo permitido o desmantela­mento e a desqualificação de nossas organizações e agremiações pelo poder, nossas populações ficaram aprisionadas na imobilidade, ou em mobilizações maciças sem bússola nem sustentabilidade. Foi isso que Gramsci quis impli­car quando analisou, em seus Cadernos, o papel conservador da chamada sociedade civil, quando ela funciona como um conjunto de fortificações da opinião pública ligadas ao Estado dominante, ou manipuladas por seus agen­tes. Foi também o que quis expressar Agustín Cueva, quando apontou o exem­plo da sociedade civil dos Estados Unidos como a mais mobilizada e, ao mes­mo tempo, a mais conservadora. Portanto, a história nos está apresentando a conta por termos arquivado as idéias de transformação profunda da sociedade e a crítica aos fundamentos estruturais da ineqüidade que, a partir do século XIX, foram forjadas nos dois lados do Atlântico, tanto no sul quanto no norte, e que relegamos ao esquecimento, justificando essa imensa operação autodes- trutiva pelo fracasso do socialismo real europeu e pelos componentes episte- mológicos superáveis de doutrinas como o marxismo, que se equivocou em muitos assuntos, mas acertou onde realmente importa.

Nas ciências sociais e na epidemiologia, essa orfandade de ideais utópicos verdadeiramente emancipadores se fez sentir, e nos forçou a uma etapa confu­sa, ziguezagueante ou até regressiva do pensamento, em muitos casos, a qual se prestou às acomodações e ao servilismo intelectuais.

É por esse motivo que sustentamos enfaticamente que a consolidação de um projeto humanista popular - do qual tanto depende uma epidemiologia crítica - passa pela recuperação seletiva das melhores idéias das doutrinas emancipadoras, assim como pela recuperação, também seletiva, das melhores idéias em prol da humanização da sociedade geradas a partir dos espaços não acadêmicos e dos saberes dos outros. Esse processo de recuperação certamen­te não será fruto de um grupo de iluminados, nem tampouco de qualquer tipo de elite. Seguindo Gramsci, cremos que esse processo será fruto do encontro das massas organizadas de postura renovadora e dos intelectuais orgânicos com os interesses estratégicos desses povos. E o que é válido para a dimensão geral da construção do projeto neo-humanista popular é igualmente válido para os espaços especializados de construção, como a epidemiologia e seu objeto/conceito/campo (Gramsci, 2000).

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Quanto à recuperação do saber dos outros, há muito trabalho a fazer em nossa disciplina. Se formos coerentes com o desafio do segundo corte episte- mológico do reencontro da ciência com o senso comum e os outros saberes (Santos, 1995), o pensamento epidemiológico deverá incorporar uma parcela maior desses 'outros saberes', e não se centrar exclusivamente na linha acadê­mica ‘ocidental’, por mais importante que ela possa ser. Só assim a epidemio- logia poderá recuperar sua capacidade de também contribuir para a crítica dos modelos de gestão, arejando o campo de análise através do rompimento da camisa-de-força do enfoque do risco.

É em relação a tudo isso que ganha um novo sentido o trabalho de renova­ção teórica, metodológica e técnica da epidemiologia, ao ser articulado com um modelo integrado de desenvolvimento humano e ao incorporar toda a ri­queza da atual mudança de paradigmas e da assimilação do pensamento hu­mano com um sentido multicultural. Propõe-se aqui a articulação conceituai e prática do modelo de desenvolvimento com o modelo de intervenção e investi­gação na epidemiologia.

No campo sumamente condicionado do que é feito nas instituições oficiais sob a égide da chamada ‘epidemiologia nos serviços’, há muito mais a fazer do que apenas desenvolver uma ‘vigilância epidemiológica’ rotineira e burocratiza­da, pois, se a idéia de saúde coletiva é mais do que o somatório problemático dos casos atendidos ou ‘de risco’, então, ao abrirmos o conceito de serviço para a íntegra do desenvolvimento humano, encontramos diversos campos de aplicação no planejamento participativo das ações em todos os campos de de­senvolvimento da necessidade social de saúde que descrevemos antes - consti­tuindo-se ele numa ferramenta de planejamento estratégico, de monitoramento participativo dos processos críticos da saúde, de concepção de mecanismos de controle e avaliação social e de reconstrução dos sistemas de informação, a fim de superar a desvirtuação do conhecimento por informações mal cons­truídas, embora amplamente divulgadas, passo este que é necessário para pensarmos no desenvolvimento humano e da epidemiologia a partir de uma perspectiva emancipadora (Breilh, 1999e).

O cenário histórico da América Latina facilitou um reagrupamento das forças de resistência dos povos e determinou a conseqüente recomposição de sua luta. Agora fitamos o desafio de reagrupar democraticamente o ta­lento que existe em nossos países no campo da saúde coletiva, resgatando a memória do movimento que começou a ser desmantelado devido ao terná­rio do BM, e recuperando criticamente a riqueza do pensamento que come­çou a ser seqüestrado e desconstruído pelo neofuncionalismo da saúde pú­blica internacional e oficial.

A segurança humana integral, o problema da igualdade necessária e trí­plice de acesso e participação - social, étnica e de gênero -, a conquista do direito universal a serviços e programas da mais alta qualidade, o estímulo

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urgente a um processo de humanização e proteção da vida em todas as suas dimensões - de trabalho, de consumo, de reprodução cultural e subjetiva, de promoção e defesa de uma ecologia saudável e de implementação de uma construção multicultural das formas e sentidos da organização -, todos es­ses são pontos nodais da nova política pela qual lutou o movimento da medi­cina social latino-americana desde seu nascimento, na década de 1970, e desde seu aparecimento formal no Congresso de Ouro Preto, em 1985, e que agora, graças à alquimia de um punhado de tecnocratas submissos, apaga­ram-se das agendas, ou foram nelas transformados em simples elementos de uma confusa retórica neofuncionalista.

Com base na perspectiva social que inspira nossa proposta, é importante resgatar essa linha emancipadora e levar ao desenvolvimento de um projeto de reforma alternativo, que já não se encarna nas instâncias que o apoiaram nas duas décadas anteriores, mas se expressa na agenda ampliada do debate social das assembléias e congressos dos povos, que têm formulado saídas verdadeiramente inéditas para a armadilha em que caiu a América Latina. Fazê-lo significa instituir uma separação entre a abordagem da reforma e a lógica funcional e regressiva que se apoderou dos foros e centros de estudo hegemonizados pela doutrina do BM, bem como de todas as agências de coo­peração que acabaram por se submeter à visão deste. Em outras palavras, é preciso arejar os espaços de debate da reforma e revelar a lógica que está por trás do súbito interesse institucional por esse tema, o qual, noutras épocas, foi marginalizado do ideário oficial e debatido unicamente nas publicações da literatura contra-hegemónica.

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Da Epidemiologia Linear à Epidemiologia Dialética

É patente a atual notoriedade do conceito de ‘risco', como categoria a ser usada na descrição científica da saúde, não só porque os mais destacados epidemiologistas críticos da América Latina insistem na utilização dessa cate­goria como elemento importante de seus modelos interpretativos, mas também pelo fato de que livros recentes empregam-na para caracterizar a sociedade em seu conjunto como ‘sociedade de risco’ (Beck, 1998), querendo com isso dizer ‘sociedade de destruição generalizada'.

Nessas circunstâncias, a verdade é que não fica muito claro se o desenvol­vimento histórico do conjunto de concepções e operações que cercam a catego­ria de ‘risco’ constitui apenas um ‘modelo de pensamento epidemiológico sobre o risco', ou se, ao contrário, dado o seu grau de expansão e influência, conver­teu-se numa grande ‘matriz disciplinar’ da epidemiologia, delimitando o cam­po e abarcando todo o sistema de valores, crenças, construções simbólicas e modelos que ocorrem em nossa ciência. Para os objetivos deste livro, presumi­remos esta segunda acepção e a designaremos por ‘paradigma do risco’, enten- dendo-se que um paradigma menor pode incluir-se noutro mais amplo, como é, neste caso, o paradigma da visão causal positivista.

A epidemiologia crítica latino-americana vem trabalhando desde a década passada na análise desse 'paradigma do risco’, estudando o surgimento e a transformação da categoria ‘risco’ como eixo principal do discurso da epide­miologia em sua relação com as práticas médico-sanitárias.

Uma vez reconhecida a emergência desse paradigma como um traço ca­racterístico da consolidação da epidemiologia em seu conjunto (Almeida-Filho, 1992c), voltou-se o olhar para a análise da história das idéias epidemiológi- cas, buscando uma interpretação da origem do citado paradigma e de suas acepções atuais. Já anteriormente, Rosen havia explicado, em sua clássica

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História da Saúde Pública, de que maneira primou, nos séculos XVI e XVII, a teoria da ‘constituição epidêmica', que deu primazia à constelação de estados climáticos e locais ligados à morbidez da época, e também a teoria do contá­gio, desde então referida à idéia difusa das ‘sementes químicas' ou ‘leveduras’ que se supunha provocarem a doença (Rosen, 1994). Mas o desenvolvimento da observação científica possibilitou a constituição disciplinar da epidemiolo- gia, mediante um processo que Ayres (1997) sintetizou em seu valioso ensaio.

O período constitutivo da epidemiologia ocorreu entre 1872, com o nasci­mento da Associação Norte-americana de Saúde Pública e o início dos anos da Grande Depressão, em 1929. O nascimento da American Public Health Associa­tion foi produto da influência do pensamento humanitário, como reação ao projeto socialmente despreocupado do liberalismo industrial que se seguiu à Guerra da Secessão. Nesse período, o sanitarismo norte-americano moveu-se entre três correntes.- ‘ambientalista’, articulada com a Universidade de Harvard e a preocupação de cientistas, como William Sedgwick, com o saneamento do ‘meio externo'; ‘sociopoiítica’, vinculada à Universidade de Columbia, a trabalhos como os de Winslow e às propostas de reforma legislativa e mudança dos modos de vida; e uma corrente ‘biomédica’, ligada à Universidade Johns Hopkins e à influência de cientistas como o biomédico Henry Welch, inspirado na higiene científica alemã, que propugnava a ênfase biológico-experimental, a aplicação da biometria e os modelos estatísticos mais rigorosos, ao que vieram somar-se a corrente pedagógica do flexnerismo e a influência da Fundação Rockefeller, que resultou na criação da Escola de Higiene e Saúde Pública. Esse ‘modelo Hopkins’ acabou por se impor. O grande modelo inspirador dessa corrente foi o alemão Pettenkofer, que reivindicava a higiene como ciência experimental e usava o conceito de ‘meio’ como ferramenta para pensar sobre o ‘contágio’.

Pettenkofer ligou a economia físico-química do organismo individual à economia do meio. Sua posição situou-se entre os extremos do contagionismo e do anticontagionismo, sustentando que, para que ocorresse o produto ‘Z’ de um veneno como o da cólera, era indispensável que se juntassem o fator ‘x’ do germe e o chamado fator *y’, que seria o substrato de tempo e espaço capaz de conferir aos agentes sua manifestação epidêmica. Winslow modificou essafórmula, enunciando-a como uma relação: A(alta2.... ax) - B(b,,b2.....bx) = C,onde A é o poder do germe; a,,a2....ax são os fatores variados que aumentam atransmissibilidade; e b,,b2.....bx são os diversos fatores que aumentam aresistência do hospedeiro. Nessa etapa, os procedimentos matemáticos tiveram um lugar subalterno. Com o tempo, entretanto, a ênfase deslocou-se para ‘x’ e se afastou do fator *y’ e das preocupações com o ‘meio’. O conceito de ‘risco’ foi substituindo o de meio, embora, nessa década de 1920, ainda ocupasse um lugar marginal. Na referida etapa, a idéia de risco estava ligada às de ‘ameaça’ ou ‘perigo’, mas não às de probabilidade e acaso; naquele momento, não interessava a idéia de gradação. Esteve implícito, nessa fase, o resgate do

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conceito sydenhamiano de ‘constituição epidêmica’, embora o conceito de risco desempenhasse um papel periférico e de caráter basicamente descritivo.

Surgiu em seguida, segundo Ayres, a etapa da ‘epidemiologia da expo­sição’ (1930-1945). O período de depressão iniciado em 1929 esfacelou o sonho norte-americano e foi de crise social (a época do ‘New Deal’), claman­do-se então pela centralização e pela intervenção do Estado. O conceito de ‘exposição’ apareceu nas décadas de 1930 e 1940, e o conceito de risco adquiriu para ele um destaque maior e uma dimensão analítica: o risco, nesse caso. referia-se às condições de susceptibilidade individual que de­terminavam o comportamento epidêmico das doenças infecciosas; o risco já não qualificava uma condição populacional, mas indicava uma relação entre fenômenos individuais e coletivos.

Veio finalmente a terceira etapa da epidemiologia do risco (1946-1965). Só depois da Segunda Guerra Mundial - etapa do preventivismo do pós-guerra - é que o conceito de risco pôde alcançar a plenitude de seu desenvolvimento e uma centralidade plena na disciplina, como parte de uma concepção tecnicista e de quantificação. Passou a designar as probabilidades de susceptibilidade atribuíveis a qualquer indivíduo de um grupo particularizado, de acordo com seu grau de exposição a agentes de interesse técnico ou científico.

Importantes saltos conceituais caracterizaram então as diferentes for­mas de incorporação do conceito de risco na conformação da epidemiologia moderna. As práticas sanitárias do fim do século XVIII haviam facilitado os primeiros sistemas de classificação demográfica da morbidez, surgidos no alvorecer do capitalismo da Grande Indústria, época na qual foi despertado o interesse pela quantificação dos fenômenos ligados à força de trabalho e aos fenômenos socioeconômicos correlatos. Essa foi uma etapa em que a demo­grafia e a econometria começaram a se articular com os inventários de mor- bidade/mortalidade e estabeleceram a relação dos fenômenos econômicos e sociais com os eventos do adoecimento e da morte. Depois, em meados do século XIX, quando os processos do âmbito público da vida passaram a ser vistos como um espaço de facilitação ‘extra-orgânico’, ou ‘meio externo’ - no qual ocorriam as causas dos fenômenos orgânicos do ‘meio interno’ -, aban­donou-se o enfoque das relações gerais entre o biológico, o político e o econô­mico, e o olhar da epidemiologia voltou-se para a ‘mecânica de meio interno/ meio externo’ para a qual Canguilhem havia chamado a atenção (Ayres, 1997).

Nesse momento, a idéia mais concreta e observável ou ‘visível' de ‘trans­missão’ colocou-se no centro do saber epidemiológico, substituindo a vaga noção de contágio, referida a um medo impreciso e mais ligada aos sentidos do tato e do olfato (Czeresnia, 1996). E somente em meados do século XX é que se impôs a nova racionalidade do causalismo de base biológica, e então a idéia naturalista dos fenômenos epidêmicos foi substituída pela idéia probabilística da causalidade, traduzida na ‘idéia de risco’ (Almeida-Filho, 1989, 1992c).

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A partir desse momento, surgiu o ‘paradigma do risco’, que identifica o possível com o provável, o populacional com o amostrai e o populacional com o individual. Inscreveram-se assim uma forma de reducionismo e um caminho de constituição formal da cientificidade da epidemiologia que desfizeram os vínculos entre os fenômenos epidemiológicos e os processos mais gerais.

No decorrer deste capítulo, passaremos em revista alguns detalhes e refle­xões críticas sobre esse argumento crucial, mas a partir de uma perspectiva um pouco diferente. No centro de nossas ponderações colocaremos a idéia de que, para o pensamento crítico, o ‘risco’ é uma idéia infeliz ou, pelo menos, limitante, que nos pode atrelar a uma visão unilateral; é uma categoria que não possui o sentido progressista que alguns autores lhe atribuem, mas está profundamente marcada pelos princípios do positivismo. De qualquer modo, e apesar do que foi dito e escrito sobre o paradigma do risco, é nossa opinião que ainda é necessário nos aprofundarmos nesse tema, pois há cada vez mais indícios de que ele constitui um obstáculo epistemológico e prático. Em suma, nossa tese é que não se trata de avançar em direção a uma epistemologia do risco, mas, ao contrário, rumo à sua superação.

A TEORIA DOS FATORES DE RISCO COMO OBSTÁCULO DA EPIDEMIOLOGIA

O trabalho clássico e fundamentador da teoria do risco, em sua versão mais instrumental, é “O conceito de risco na assistência sanitária" (Backett, Davies & Petros-Barvazian, 1984). Sua concepção e seus argumentos técnicos acabaram por se impor, já se vão duas décadas, no pensamento epidemiológi- co empírico contemporâneo.

A tese central da citada teoria é que, em cada sociedade, existem comuni­dades, famílias e indivíduos com maior probabilidade de sofrer transtornos, doenças ou problemas, e que, por conseguinte, são mais vulneráveis. Quando os autores explicam essa vulnerabilidade, atribuem-na a características essen­cialmente individuais (biológicas, genéticas, ambientais, psicossociais etc.) que interagem entre si. É uma tese de clara orientação empirista, que incorpora como elemento interpretativo central a contingência ou probabilidade. Um exem­plo mostrado pelo próprio texto, para explicar seu embasamento teórico, é o de uma grávida com hipertensão arterial, o que acarretaria o risco de complica­ções obstétricas. A hipertensão da gravidez aparece como um dado de origem individual, ao qual é possível associar outras probabilidades igualmente nas­cidas do individual. Com esse exemplo, os autores fecham seu ciclo lógico, dizendo que o risco dessa mulher e de seu filho, convenientemente medido, expressa sua necessidade. É um fechamento do campo analítico em que os fatos aparecem descontextualizados.

A teoria também reconhece os chamados riscos coletivos, comunitários, a exemplo da malária numa dada região, mas a doença aparece como uma entida­de com vida própria, desprovida de uma explicação e interpretação integradas.

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A ‘hipótese de trabalho’ em que se baseia o conceito de risco seria assim formulada: quanto mais exatas forem as medições do risco, mais claramente se avaliará a necessidade de ajuda e melhor (ou mais eficaz) será a resposta. Com o argumento de que seria preciso fazer uma discriminação positiva, no sentido de dar maior assistência às necessidades com probabilidade mais alta - ou seja, partindo de uma quantificação ou qualificação da prioridade confor­me a probabilidade -, o critério de priorização final seria: a maior necessidade é o indicador, e a percentagem mais alta de variância também é explicada. A epidemiologia se tornaria mais quantitativa, mais exata e mais científica, se­gundo a lógica dos autores.

O modelo descrito reifica nos chamados fatores de risco’ as ‘causas’ que a ação deve combater e recomenda que as respostas sejam graduadas de acordo com a contingência quantificada desses fatores (ver Gráfico 1):

Gráfico 1 - Exemplo - curva hipotética de riscos nas mães

R da população

risco grau mais risco muitonulo freqüente elevado(a) (b) (0

> - 0 tema do livro: como saber quais constituem a, b e c

Portanto, o fator de risco seria a característica individual das pessoas que as ’associa' a sofrerem um processo qualquer. E isso pode ser um elo numa cadeia de associações.

A associação causal entre o fator de risco e o resultado seria estudada por:

a) peso estatístico do fator;b) relação dose-resposta;c) especificação da relação;d) relação temporal;e) plausibilidade biológica.

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Antes de deixarmos assentados alguns questionamentos teóricos, sirva­mo-nos de um exemplo da recente resposta que se antepôs ao paradigma do risco, para depois formularmos conceitualmente nossas ressalvas.

Um livro importante, recentemente publicado por uma das mais prestigio­sas universidades norte-americanas, estabelece a incapacidade do 'paradigma do risco’ para enfrentar a proteção ecológica no tocante aos compostos clora­dos e, de modo geral, às substâncias químicas bioacumulativas - que são praticamente a totalidade (Thornton, 2000).

Segundo o autor, a lógica paradigmática de enfrentar os fatores um a um, admitindo sua descarga se e quando eles ultrapassarem um 'nível aceitável' de contaminação, parte da falsa premissa de que os organismos, inclusive os dos seres humanos, podem assimilar sem problemas um certo ‘grau ou nível do fator’, com efeitos supostamente mínimos ou desprezíveis. Ou seja, a teoria dos fatores de risco trabalha com conceitos quantitativos, como 'níveis' e ‘limi­ares’ de segurança.

Para estabelecer seus limiares aceitáveis ou de tolerância, o paradigma do risco contempla o uso de índices ponderados quantitativos, a partir dos quais se estabelecem os limites de descarga permitidos. Isso é feito por um processo ‘fator a fator'. É com base nesses critérios do paradigma que as indústrias, no caso do exemplo fornecido, são obrigadas a implementar mecanismos termi­nais de controle {end-qf-the-pipe control devices) que captem os poluentes e os transportem para outro lugar.

Thorton estabelece quatro tipos de motivos para o fracasso do paradigma do risco.

Em primeiro lugar, essa abordagem do risco é uma abordagem terminal (isnd-of-the-pipe), que invoca a ação já na fase final, depois que os poluentes foram utilizados e estão por ser descarregados. Esse procedimento fracassa por quatro motivos: a) quando o produto em si contém as substâncias quími­cas, os mecanismos terminais de controle não têm serventia; b) o que os meca­nismos de controle fazem é simplesmente tirar os poluentes de um local e transpô-los para outro; c) as técnicas implícitas nos equipamentos de controle deterioram-se e se perdem; d) os mecanismos de controle são concebidos para filtrar os produtos até certo ponto, porque, para uma filtração ou extração perfeitas, os custos seriam altíssimos.

Em segundo lugar, os conceitos de ‘capacidade de assimilação’ e ‘descar­ga aceitável’, que são os pilares do paradigma do risco, não servem para fatores como as substâncias químicas que persistem ou se bioacumulam. Mais adiante, veremos que não se trata apenas disso.

Em terceiro lugar, o conceito de ‘ponderação do risco’, outra ferramenta- chave do paradigma do risco, não serve para sistemas complexos como os dos organismos que vivem em ecossistemas, porque; a) não se dispõe da maior parte das informações fundamentais para a ação preventiva-, b) as técnicas de medição disponíveis são grosseiras, de modo que o caráter inócuo de um limi­

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ar estabelecido é muito duvidoso; c) sabe-se muito pouco sobre como funcio­nam os organismos em seus ecossistemas, de modo que é pouco o que se pode realmente prever sobre o impacto de uma substância tóxica nesse contexto; d) houve muitas surpresas com respeito a substâncias declaradas ‘seguras’ quanto a um certo efeito, mas que depois se descobriu terem outros.

Por último, a quarta e poderosa razão - que se aproxima mais de nossa linha de pensamento - é que, na melhor das hipóteses, o paradigma do risco foi concebido para manejar ‘fatores’ bem definidos, localizados e de curto prazo de ação, mas agir com essa lógica não impede que se dêem processos acumulati- vos generalizados. Uma vez que ocorram os impactos generalizados, os siste­mas não estão orientados nem capacitados para enfrentá-los.

Em vista dos fracassos enunciados, o autor propõe um paradigma alterna­tivo, que denomina ‘paradigma ecológico’, o qual presume como ponto de par­tida o reconhecimento dos limites da ciência, porque a toxicologia, a epidemi- ologia e a ecologia fornecem-nos chaves importantes para a ação, mas não estão em condições de predizer ou diagnosticar os verdadeiros impactos dos processos destrutivos. A única prática eticamente válida é a que se baseia no ‘princípio da precaução’, que consiste em evitar qualquer prática que tenha um potencial destrutivo, inclusive aquelas em que a ciência não dispõe de uma comprovação do impacto. Além disso, porém, o princípio citado deve ser complementado pelos de ‘descarga zero’ (eliminação de e intolerância a subs­tâncias que se bioacumulem), ‘produção limpa' (reelaboração de produtos e processos, para que eles fiquem livres de tóxicos) e ‘reversão do pagante’ (o ônus econômico da demonstração da inocuidade de um produto ou substância deve recair sobre o produtor, e não sobre a coletividade).

A crítica feita no exemplo anterior enfoca uma visão crítica do paradigma do risco frente ao manejo de problemas de saúde derivados da contaminação, porém há muito mais a dizer a esse respeito.

Castiel contribuiu para uma crítica da categoria de risco a partir da semi­ótica, utilizando a idéia de ‘quadrado semiótico’ (semiotic square), desenvolvi­da pela semiótica moderna e aplicada por Samaja à idéia de saúde (Castiel, 1999). Nessa operação lógica, primeiro se estabelece o termo ‘saudável’ ou ’sadio' {healthy), e depois se busca seu inverso, que seria o ‘enfermo’ ou ‘doen­te’ {diseased), mas também se depara com a contradição, que seria o ‘não- saudável’ {non-healthy). Ora, aplicando as relações lógicas, podemos asseve­rar que o não saudável não corresponde exatamente ao enfermo, pois há situ­ações de vida em que as pessoas não estão doentes, mas se encontram em condições destrutivas; seriam pessoas não saudáveis, ainda que não necessa­riamente enfermas. Desse modo, o autor chega à conclusão de que existe um estado de ‘pré-enfermidade’ e de que haveria uma epidemia dessas 'pré-enfer-

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midades’.40 Essa é uma elaboração de sumo interesse para o problema que nos ocupa, porque aponta na direção de presumirmos, como parte do processo de adoecimcnto, as referidas condições destrutivas, que só podemos separar em­piricamente da doença, e insinua a idéia de processo, do qual essas condições de ‘pré-enfermidade’ fariam parte.

Castiel cita Pierce para questionar o reducionismo da epidemiologia do risco (risk-ologic epidemiology)-. o descuido com a compreensão dos processos econômicos, sociais e culturais, que faz recair numa visão reduzida; o re­ducionismo biofisiológico; a dependência da biomedicina; a falta de uma teo­rização rigorosa sobre a causação da doença; o pensamento dicotômico sobre a saúde (doente/não doente); a massa de fatores de risco; a confusão entre associações empíricas e causalidade; o dogmatismo sobre a validade de certos desenhos epidemiológicos e a repetição excessiva dos estudos; com tudo isso, esse tipo de enfoque utiliza mal os recursos limitados, culpabiliza as vítimas, produz uma distorção das políticas referentes aos estilos de vida, descontextu- aliza os comportamentos ‘arriscados’, quase nunca pondera a contribuição de processos genéticos e sociais, e pode até recomendar intervenções perigosas (Castiel, 1999).

Para além do indubitável avanço epistemológico, ético e político trazido por subsídios como os que foram descritos, é possível formular outros ques­tionamentos profundos da lógica do risco.

CRÍTICA DO PARADIGMA DO RISCO A PARTIR DO MODELO PRAXIOLÓGICO

A teoria do risco partilha, em primeiro lugar, de todos os questionamentos que fizemos ao ‘causalismo’ no Capítulo 3, e sobre os quais não voltaremos a insistir aqui, uma vez que ele é uma variação da concepção em exame.41 Mas cabe mencionar, neste ponto, que a citada teoria faz cortes ainda maiores no corpus da causalidade, para se constituir numa variação do causalismo que está estreitamente ligada ao funcionalismo e à manipulação cosmética de ‘fa­tores’ da realidade, a fim de introduzir paliativos, de reduzir os índices epide­miológicos a níveis toleráveis, num esquema de governabilidade.

Como já se disse, com toda a lucidez, 'a prevenção baseada na epidemiolo­gia dos fatores de risco é regida por um tipo de lógica segundo a qual a tempe­

40 À qual vem somar-se a existência de uma verdadeira epidemia de doenças construídas e estados adictivos, que se iigam, inclusive, a excessos por condutas de prevenção exageradas.

41 O causalismo erige a relação de causa e efeito em princípio organizador de toda a realidade, presumindo as causas como forças externas aos objetos e estabelecendo pressupostos que. segundo Almeida-Filho (2000), implicam um mundo desconexo ou cindido em 'causas' e 'efeitos', uma realidade em que as partes, alienadas de qualquer totalidade, ligam-se apenas linearmente, e na qual todo fluxo é visto a partir da lógica formal das conjunções.

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ratura de uma moradia é reduzida mediante a colocação do termômetro dentro de um cubo de gelo' (Kuhn).

A categoria do ‘risco’, como já foi dito, tem merecido uma atenção conside­rável no campo da cpidemiologia (Almeida-Filho, 1992c; Breilh, 1994; Ayres, 1997; Castiel, 1999), em campos afins, como o da saúde ocupacional (Freitas & Gómez, 1997), e até no campo geral da sociologia (Beck, 1998), mas persiste a necessidade de uma crítica profunda, seja para controverter certas avalia­ções histórico-epistemológicas, seja para complementá-las, porém, de qual­quer modo, na tarefa de expor o paradigma do risco como um instrumento estratégico do causalismo positivista, claramente orientado para a instrumen­talização de um programa de saúde ligado à governabilidade.

O paradigma do risco, como toda formalização positivista, tem algumas características, que são:

° esvaziamento do conteúdo histórico; reificação de 'fatores';0 ausência de explicação dos processos generativos, ou reducionis-

mo probabilístico;0 nivelamento ontológico, metodológico e praxiológico, no plano em­

pírico, de fatores associados e manipuláveis;° ambigüidade interpretativa.

A 'ambigüidade' assinalada refere-se ao fato de que o modelo interpretati- vo recorta eventos de fácil identificação empírica, focalmente passíveis de pre­venção, aos quais outorga uma centralidade conceituai e prática, apesar de se tratar apenas de processos terminais. Se o situarmos no modelo contemporâ­neo de Rothman e Greenland (1998), um fator de risco será aquele que mostra uma alta prevalência de seu complemento causal.12 A causa suficiente seria aquela que acarreta um mecanismo causal completo, isto é, aquela que reúne um conjunto mínimo de condições para desencadear a doença.

O conceito de 'risco' centraliza etimologicamente a idéia de contingência dos eventos causais considerados essencialmente ‘prováveis’. Mas a rigidez da idéia de contingência não permite distinguir que, na geração das condições de saúde, alguns processos atuam de forma estrutural ou permanente, outros atuam de modo diário, embora não permanente, e outros, ainda, são de caráter eventual. No caso ilustrativo sobre a epidemiologia da intoxicação que encerra este capítulo, vemos a importância de distinguir na análise epidemiológica, por exemplo, os padrões de exposição eventual, os de exposição crônica e os de exposição permanente ou invariável, que preferimos designar por 'imposição'.

12 Nessa terminologia, o ’complemento causal' é condição necessária e suficiente para que um fator produza enfermidade. Um fator aparece como tendo alto poder de efeito quando seu complemento causal é comum. Inversamente, um fator com um complemento causal raro aparece como tendo um efeito débil.

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No quadro de referência do paradigma do risco, todos os processos a que se alude com a designação de riscos seriam apenas ‘provavelmente’ destruti­vos; sua nocividade seria apenas contingente. E com isso se acaba por admitir que, numa sociedade como a nossa, na qual a desigualdade se reproduz estru­turalmente, e na qual existe uma subjugação do humano ao produtivo e ao mercantil, haveria margem para a plena reprodução da saúde - ou, pelo me­nos, para se ter esperança dessa possibilidade -, já que os riscos nela atuantes seriam apenas prováveis, ou seja, seriam variáveis que poderíamos dominar com o simples controle da variação de cada uma delas em níveis toleráveis. O paradigma do risco, desse modo, enquadra-nos num mundo atomizado, no qual os fatores de risco são variáveis, e sua variação é contingente; nenhum deles faria parte de algo permanente nem teria na permanência uma de suas qualidades, pois, nesse caso, deixaria de ser um ‘risco’ para se converter num feito destrutivo. Em suma, nesse tipo de concepções, o contingente substitui o determinado, em vez de se considerar o contingente e o regular como pólos de um movimento dialético.

Se, por exemplo, aplicássemos a doutrina do risco a um processo de saú­de ocorrido num cenário produtivo de exploração monopolista e rigorosa lógi­ca da produtividade, como é a atual agroindústria de flores cultivadas para exportação, e se examinássemos, com esse referencial interpretativo, o que seriam os 'riscos do trabalhador’, estaríamos implicando que processos como a triplicação das exigências de trabalho, a fim de suprir a demanda aumentada em milhões de unidades de ‘flores perfeitas' para exportação, constituem ape­nas um ‘risco’ para a saúde, um dado de caráter eventual, quando, na verdade, essa característica de tal atividade nada tem de eventual, porque é um proces­so inscrito na própria estrutura dessa forma de produção. Implicaríamos igual­mente, por exemplo, que a remuneração da força de trabalho abaixo dc seu valor de reprodução em condições saudáveis é um ‘risco para a saúde', em vez de reconhecê-la como uma forma econômica permanente, que faz parte do modo de vida deteriorante dos trabalhadores. Em síntese, estaríamos convertendo em 'riscos' ou ‘eventualidades’ aquilo que constitui processos destrutivos de caráter permanente, e também estaríamos desvinculando esses ‘riscos’ do todo que os reproduz e os explica.

Da mesma forma, usando a alquimia da teoria dos riscos no caso dos exemplos já enunciados, estaríamos convertendo processos como a sobrecarga de exigências do trabalho, ou como a remuneração abaixo de seu valor, em ‘riscos’, ou seja, em fatos ‘externos' à própria vida dos trabalhadores, e que só podem agredi-los ocasionalmente, quando, na verdade, eles são inerentes ao modo de vida dessa população trabalhadora e são, por conseguinte, uma parte orgânica de seu sistema de reprodução social.

Por fim, e continuando com os processos de nosso exemplo, estaríamos implicando uma concepção epidemiológica de relação linear - de causa e efei­to - entre os citados ‘riscos’ e as variáveis relacionadas com a saúde, com o

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que reduziríamos a explicação a uma contingência ou a uma associação empí­rica demonstrável, quando, na realidade, trata-se de processos que, desmem­brados do movimento global do modo de vida que é sua explicação básica, são automaticamente reificados em entidades desconexas e abstratas (ou fatores de risco), as quais, com isso, perdem suas relações generativas.

A esse tipo de conclusões e críticas chegaram investigadores de diversos campos. Tal como constatamos no exemplo anteriormente exposto da investi­gação ecológica das substâncias químicas bioacumuláveis, chegamos a estas conclusões a partir da epidemiologia. As falácias do paradigma do risco que enunciamos, ao nos referirmos à ecologia dos produtos químicos, tornam a se apresentar quando analisamos epidemiologicamente os processos do modo de vida, os processos laborais, os da vida de consumo cotidiano e os de relações políticas, culturais e ecológicas caracterizadas por uma profunda ineqüidade e discriminação social, bem como pelas incqüidades de gênero e etnoculturais. E, por estarem baseados na ineqüidade, estes são processos restritos a formas de remuneração injustas e infestados de estressores, de sobrecargas físicas e de exposição a perigos, todos os quais seriam interpretados pelo paradigma que aqui questionamos como ‘fatores de risco’, ou seja, como fragmentos con­tingentes de provável destrutividade, cujos efeitos poderíamos apenas atenuar ou controlar, em vez de organizarmos nossas ações para eliminá-los, mudando a própria estrutura ou a lógica essencial que os gera. Formulando isto nos termos de uma contraposição de visões, o ‘paradigma do risco’ vem a ser o paradigma do poder e da adaptação funcional de uma vida estruturalmente insalubre, ao passo que o paradigma dialético da epidemiologia crítica se constrói como uma visão contra-hegemônica que pretende modificar as bases mesmas da vida social, tornando-a estruturalmentc propícia ao desenvolvimento da saúde coletiva e individual.

A construção de um modelo de riscos, portanto, não passa de um processo de mistificação que esconde a permanência da destrutividade do conjunto e descontextualiza seus componentes.

As premissas estabelecidas nos parágrafos anteriores fazem cair por terra os conceitos de ‘limiar’ e 'nível permissível', assim como o de ‘contingência de risco’. Nos centros laborais concretos em que desenvolvemos nossa atividade, nós, os epidemiologistas, quase sempre deparamos com empresários que de­fendem a contingência e a possibilidade de conservar limiares seguros, justi­ficando a persistência dos salários em níveis inferiores ao valor da força de trabalho c, por fim, argumentando a favor de limiares e condições ‘possí­veis’ no arcabouço de um esquema de rentabilidade, enquanto os investiga­dores e a população afetada os denunciamos como processos destrutivos, que apontam para necessidades permanentes de proteção da vida cujo não atendimento cria grandes problemas de saúde. Trata-se de duas visões que traduzem não apenas abordagens conceituais distintas, mas também inte­resses históricos distintos.

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Além disso, como conseqüência lógica de sua concepção empirista e sua estrutura formai associativa, o paradigma do risco, com seu modelo de aná­lise, reduz a realidade a um único plano - o dos fenômenos empíricos - e, dentro desse arcabouço unidimensional, dá prioridade a ‘fatores causais' dis­tintos, de acordo com o critério probabilístico, quando, na realidade, essa prioridade só poderia ser dada numa abordagem integrada, que analisasse as condições objetivas e subjetivas da população como um espaço social, com toda a sua complexidade.

A lógica do ‘paradigma do risco’ é vertical, com uma racionalidade centra­da no presente fatorial, um presente desvinculado dos processos históricos de gênese (passado) e de emancipação (utopia), razão por que é uma teoria de enorme utilidade para os modelos de gestão neoliberal e para a manipulação da hegemonia na saúde. Ela é a base de uma epidemiologia sem memória e sem sonhos de emancipação, presa à ditadura de um presente cuja persistência é conseguida mediante mudanças de forma que chamamos de mudanças cos­méticas, as quais deixam intacta a estrutura insalubre.

Esses são motivos mais do que suficientes para nos empenharmos numa crítica profunda de tal teoria, a partir da óptica da emancipação e da constru­ção de uma contra-hegemonia.

Pertence também à crítica do paradigma do risco o problema da superação da negatividade do enfoque da saúde como ausência de doença, que já discuti­mos na introdução deste livro, e do correspondente desconhecimento do caráter dialético e multidimensional da saúde, sobretudo no que diz respeito à con­tradição permanente entre os processos destrutivos e os processos protetores, que explica a gênese das condições de saúde e de sua reprodução, ponto este que abordaremos a seguir.

Processos protetores e destrutivos

O desafio central da epidemiologia crítica é tornar-se um instrumento do desenvolvimento humano e desarticular o molde empirista. Uma tarefa-chave nessa direção é olhar a saúde em sua íntegra e como processo, para o que é indispensável superar tanto a visão unidimensional da antiga epidemiologia quanto sua visão fragmentada e estática dos ‘fatores’. A epidemiologia tem de abordar esse espaço com outro olhar e resgatar a dimensão temporal histórica, que não é a simples sucessão de imagens em vários tempos.

Precisamente por sua estrutura lógica, que vê a realidade como atomiza- da e estática, ou seja, centrada num presente eterno, é que o paradigma do risco é um instrumento buscado pela gestão funcionalista. Sair desse presen­te linear e cristalizado em associações — com suas conjunções constantes — só é possível mediante uma ruptura epistemológica que incorpore a comple­xidade e o movimento, a realidade como processo, com um passado (base

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histórica) e uma idéia instrumental de futuro (utopia) articulados com uma concepção clara do modelo humano.

O afastamento da idéia de ‘fator’, em prol da idéia de ‘processo’, leva à ruptura com o princípio da identidade e à incorporação do princípio do movi­mento, recaindo essa mudança, em larga medida, no reconhecimento da natu­reza contraditória dos fenômenos da realidade.

As formas de devir que determinam a saúde desenvolvem-se mediante um conjunto de 'processos'. Tais processos adquirem uma projeção distinta na saúde conforme os condicionamentos sociais de cada espaço e tempo, ou seja, de acordo com as relações sociais em que se desenrolam - condições que po­dem ser de construção da eqüidade, manutenção e aperfeiçoamento, ou que, ao contrário, podem tornar-se elementos de ineqüidade, privação e deteriora­ção. Portanto, os processos em que se desenvolvem a sociedade e os modos de vida grupais adquirem propriedades protetoras/benéficas (saudáveis) ou des- trutivas/deteriorantes (insalubres). Quando um processo se torna benéfico, ele se converte num favorecedor das defesas e suportes e estimula uma direciona- lidade favorável à vida humana, individual ou coletiva, e, nesse caso, nós o chamamos de ‘processo protetor’ ou benéfico, ao passo que, quando se torna um elemento destrutivo e provoca privação ou deterioração da vida humana, individual ou coletiva, nós o chamamos de ‘processo destrutivo’. Entende-se que um processo pode corresponder a diferentes dimensões e campos da repro­dução social e pode, além disso, tornar-se protetor ou destrutivo, conforme as condições históricas em que se desenvolva a coletividade correspondente.

Os processos epidemiologicamente ativos desenvolvem-se no seio de uma formação social e são marcados pelas possibilidades reais de cada modo de vida e suas relações, mas se materializam no movimento concreto de um estilo de vida. Não se trata de que haja processos protetores e destrutivos separada­mente, mas de que, em seu desenvolvimento concreto, os processos da repro­dução social adquirem facetas e formas protetoras ou facetas e formas destru­tivas, conforme sua operação desencadeie mecanismos deste ou daquele tipo nos genótipos e fenótipos humanos do grupo envolvido. Outrossim, a operação num ou noutro sentido pode ter um caráter permanente, e não se modificar enquanto o modo de vida não sofrer uma transformação profunda, ou pode ter um caráter contingente ou até intermitente, quando há momentos em que sua projeção tem uma ou outra natureza. Os processos, segundo sua im­portância na definição do caráter da vida e seu peso no modo de vida cor­respondente, podem provocar alterações de maior ou menor significação no desenvolvimento epidemiológico.

O processo de trabalho, por exemplo, por ser um processo que afeta consi­deravelmente o padrão de vida, tem um impacto apreciável na configuração do modo de vida e, quando adquire facetas ou formas destrutivas, costuma pro­vocar mudanças negativas profundas na saúde, ao passo que, por outro lado,

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esse mesmo processo de trabalho desencadeia conseqüências protetoras im­portantes, mesmo quando se desenvolve em condições destrutivas. Isso equi­vale a dizer que um processo pode desencadear eventos dos dois tipos, simultaneamente. O processo de trabalho ilustra o caráter contraditório da vida social em relação à saúde: num caso hipotético, embora possa ser mal remunerado e se realizar em condições estressantes, com sobrecarga da postura física e exposição crônica a substâncias tóxicas (facetas destrutivas), contribui simultaneamente, como qualquer trabalho, para a organização do tempo, a aprendizagem, a construção de um sentido para a vida e para a obtenção de um valor de mudança da força de trabalho (facetas protetoras).

Quais das facetas se expressam com mais força, ou se tornam mais osten­sivas no perfil epidemiológico, depende do modo de vida e da lógica que opera na formação social correspondente. Sempre existe esse movimento de prote- ção/destruição num determinado grupo, isto é, sempre estão em marcha os momentos de proteção ou destruição da reprodução social, mas o fato de eles se expressarem numa ou noutra direção, num dado grupo e num dado momen­to, depende do caráter ou da lógica com que funciona a reprodução social.

A investigação epidemiológica deve destacar alguns processos do perfil epi­demiológico como sendo de maior importância estratégica para a ação, quer no sentido de evitar ou contrapor-se aos processos ou facetas destrutivos (preven­ção), quer no sentido de fomentar os processos ou facetas protetores (promoção da saúde); a esses processos, selecionados por sua importância para a interven­ção e por sua capacidade de desencadear conseqüências significativas e susten­táveis no modo de vida, podemos dar o nome de ‘processos críticos’. Como em toda contradição, o fato de um ou outro pólo não se fazer notar, ou não ser empiricamente observável, não significa que ele não exista, mas apenas que, nesse momento do desenvolvimento, encontra-se atenuado ou dominado. Esse tipo de constatações, nós, epidemiologistas, o fazemos a todo momento, seja quando enfrentamos nosso trabalho nos campos da epidemiologia trabalhista, seja quando o fazemos no terreno dos problemas do consumo, ou também quan­do se trata de processos ecológicos.

Não se deve esquecer que, diferentemente da prevenção etiológica (como no caso das vacinações ou da educação preventiva individual), a prevenção epidemiológica profunda não necessariamente atua com pessoas, porém com processos, e, quando mudamos um processo, ainda que não tenhamos visto nem tocado numa única pessoa, criamos mudanças e impactos de enorme transcendência para a saúde. A influência da lógica clínica ou assistencial faz com que, muitas vezes, não se atente para essas ações de maior transcendên­cia, ou se invisibilizem os aspectos mais importantes da saúde, aqueles que têm um impacto destrutivo ou protetor importante, ou seja, faz com que os aspectos que continuam a ser determinantes-chave da saúde não sejam leva-

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dos em conta, por se olhar a realidade num único plano e por não se aprender a descobrir os processos gerativos subjacentes.

A epidemiologia empírica e o paradigma dos fatores de risco, ao reduzi­rem a realidade ao plano empírico, ao deterem o movimento e ao fracionarem essa realidade, ficam inaptos a conhecer o movimento da determinação e a ligação dos processos com a vida social em seu conjunto, e tanto uma limita­ção quanto a outra têm conseqüências importantes na atividade epidemiológi- ca. O fato de não se permitir a compreensão da gênese dos processos e de se ficar reduzido aos fenômenos 'terminais' é um grave obstáculo, como vimos na epidemiologia ecológica; o fato de não se articularem diagnósticos que integrem as determinações da saúde leva a uma lógica de focalização que contradiz uma visão da saúde coletiva como âmbito emancipador.

A categoria do 'perfil epidemiológico’, desenvolvida em nossos trabalhos anteriores (Breilh, 1979, 1997a), consiste, em larga medida, num recurso para sistematizar, de acordo com as múltiplas dimensões da reprodução so­cial, os processos protetores e destrutivos que participam da definição da forma de devir da saúde.

Nas versões originais de nossa formulação epidemiológica (Breilh, 1979), optamos por designar essas dimensões protetoras e destrutivas dos processos por 'valores' e 'contravalores', respectivamente, para implicar a ligação entre o caráter benéfico ou destrutivo dos processos e sua qualidade como valores de uso (bens que atendem à necessidade humana) ou sua negação, ligação esta que deposita uma ênfase especial na dependência dessas características em relação à economia política da reprodução social.

Neste ponto, convém ainda reforçar a compreensão do protetor e do des­trutivo, mas, acima de tudo, deve-se fazer um esforço metodológico de opera- cionalização dessa renovação dialética.

No campo das propostas alternativas de planejamento de saúde, demos impulso à articulação da epidemiologia crítica com o planejamento estraté­gico e, nesse terreno, a categoria de ‘processo crítico"13 é de grande utilida­de (Breilh, 2000).

REFLEXÕES SOBRE A CATEGORIA 'EXPOSIÇÃO'

O questionamento das bases teóricas e metodológicas da epidemiologia empírica, e principalmente do recorte reducionista que leva a dar completa preeminência às conjunções constantes (associações empíricas mais estáveis), 43

43 Objeto dinâmico de transformação de uma questão de saúde, definida ou materializada na confluência de um território ou espaço social - dimensões destacadas do perfil epidemiológico, aplicadas a grupos sociais importantes. Tudo isso implicando o enfoque preeminente de alguns processos particulares.

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deve projetar-se também numa crítica da categoria da ‘exposição’, pedra angu­lar do pensamento empírico da causalidade.

Na epidemiologia empírico-analítica, incorpora-se, sem nenhuma restri­ção, a categoria da ‘exposição’, que tem no verbo ‘expor’ duas acepções etimo­lógicas: ‘dispor uma coisa para que receba a ação de um agente ou influência’; ‘arriscar, pôr uma coisa numa contingência’.

Em cada uma dessas acepções, destacam-se, respectivamente, os concei­tos de ‘ação externa’ e de ‘arriscar', que constituem, a nosso ver, as pontes semânticas para o paradigma do risco e a concepção causalista.

Com efeito, a ação de ‘expor’ é válida quanto às ações externas, implicando uma relação externa de um ‘fator’ que atua ‘de fora para dentro'. Com essa catego­ria, é possível descrever ações externas como, por exemplo, a ação de uma causa suficiente sobre um destinatário. A exposição de um trabalhador de culturas em estufa a resíduos tóxicos de um pesticida é, à primeira vista, exclusivamente a relação de uma substância tóxica externa com o organismo do trabalhador expos­to, mas não devemos esquecer que essa ligação de causa e efeito é apenas uma das muitas formas de ligação ou relação dos processos nesse cenário, c que esse vínculo de exposição não é isolado, nem sucede por uma simples contingência, mas está inscrito num padrão de intoxicação que, por sua vez, adquire sua forma e sua contundência epidemiológica no seio de um modo de vida grupai.

No paradigma empírico, essas outras categorias não fazem falta para marcar a relação, porque, por definição, o paradigma só leva em conta as relações associativas e causais. Todavia, quando se parte do paradigma da epidemiologia crítica (realismo dialético), esse conceito se mostra pelo que é: uma camisa-de-força rígida e reducionista, que impede a expressão das rela­ções não conjuntivas e das formas não contingentes.

Os processos destrutivos não são necessariamente externos, nem no nível individual, nem no nível coletivo; sua materialidade destrutiva nem sempre é exercida como uma noxa ou um agressor vindos de fora, mas é produto do modo de devir contraditório, intrínseco ou ‘interno’, no qual as contradições podem agir sem requerer mediações ou momentos de externalidade. Em outras palavras, se o modo de conhecimento, isto é, o modo de ‘descrever para conhe­cer’, não começa segmentando pessoas e meios ‘expostos’ e ‘fatores’, mas articula explicações integradas, em cujo movimento é possível estabelecer entidades empíricas, é possível compreender as relações ‘internas’ do conjun­to e situar em seu bojo o movimento dessas entidades empíricas. No caso do exemplo citado, a relação entre a substância tóxica e os trabalhadores não é uma externalidade, mas uma relação inerente ao modo de vida e aos padrões típicos de exposição, em cujo movimento, aí sim, a investigação pode reco­nhecer associações formais.

Uma segunda restrição que aparece ao analisarmos criticamente a catego­ria ‘exposição’ é que, quando não desarticulamos algumas possibilidades, ela

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pode reduzir nosso espectro de análise ao que nos é apresentado como contin­gência. Não apenas somos ‘ex’postos aos processos, como também eles nos são ‘im'postos. Ou seja, embora existam processos destrutivos que o indivíduo se arrisca a sofrer como um problema contingente, isto é, como uma condição que se pode dar ou não - mesma crítica que podemos fazer à categoria do ‘risco’-, existem, em contrapartida, modos de devir (formas de determinação) que não nos ‘ex’poem como a uma eventualidade, mas nos são ‘im’postos cm caráter permanente; nesses casos - que, aliás, são a maioria esmagadora das situações epidemiológicas -, não existe contingência absoluta; não se trata, por conseguinte, de saber se há uma intercorrência de tal ou qual evento isola­do, ou ‘risco’, que desencadeia o processo destrutivo com um certo grau de liberdade probabilística, pois falamos aqui de um grau ‘zero’ de liberdade, ou, melhor dizendo, de processos destrutivos permanentes, ou que, se não são absolutamente permanentes, pelo menos manifestam contingências des­prezíveis. Daí resulta a necessidade de distinguir entre a exposição, como um processo ‘ocasional’, ‘crônico’ ou diário, e a exposição (neste caso, mais caberia dizer ‘im‘posição) como um processo permanente, contínuo ou inerente ao modo de devir.

A distinção entre essas formas de ‘ex’posição, ou melhor, entre as for­mas de exposição ocasional e crônica e a ‘inVposição (ou exposição perma­nente ou intrínseca), é importante, porque permite separar os processos con­tingentes e tem um grau de probabilidade dos processos que são inerentes ao modo de vida e atuam de forma invariável, e que, por conseguinte, têm zero graus de liberdade. Estes últimos, para serem modificados - ou melhor, eli­minados - como determinantes epidemiológicos, requerem uma transforma­ção do modo de vida, porque os ajustes ou reformas superficiais não põem fim a seu impacto.

Voltando ao exemplo da floricultura em fazendas de produção e exporta­ção de flores, devemos separar esses diferentes mecanismos de exposição. A exposição ocasional a um pesticida, através de um mecanismo não ligado ao modo de vida de um grupo - isto é, a um padrão de trabalho ou de consumo -, nem tampouco a um estilo de vida cotidiano, é aquela que pode ocorrer, por exemplo, quando um vendedor ambulante se expõe, ao se aproximar casual­mente de uma fazenda que esteja sendo fumigada. A exposição crônica é aque­la que adquire um padrão repetitivo, por estar inscrita num modo de vida grupai, ou seja, ela implica regularidade e cotidianidade - é o caso da floricul- tora que se expõe a um conjunto de pesticidas toda vez que entra na estufa, diariamente, para realizar suas tarefas de cultivo. E, por fim, a imposição, ou exposição intrínseca ou permanente, reflete-se, por exemplo, no padecimento das conseqüências de um salário inferior ao valor de reprodução da força de trabalho e na ampliação obrigatória da jornada de trabalho necessária, o que constitui uma característica estrutural que está na base de um modo de vida

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grupai e do sistema correspondente de contratação de trabalhadores, e acarreta todo um cortejo permanente de processos destrutivos que deterioram a vida dos integrantes do grupo, tais como a desnutrição, o déficit de repouso, a falta de recreação e exercícios adequados às tarefas, a impossibilidade de maior aperfeiçoamento físico e intelectual etc. Esse tipo de modo de vida acarreta uma forma de reprodução social insalubre, e suas condições configuram um verdadeiro padrão, que inclui ainda outros problemas que ocasionam uma alta vulnerabilidade epidemiológica. tais como a falta de controle sobre o processo produtivo.

Por tudo que vimos argumentando, podemos compreender que, no para­digma do risco, a concepção unilateral da ‘exposição' desempenha um papel decisivo para completar uma visão reducionista. Também é possível deduzir que este questionamento da preeminência das idéias de 'risco' e ‘exposição’ não significa que não possam existir 'riscos' e ‘exposições’ no decorrer da vida - do mesmo modo que também existem causas. Outra coisa muito diferente, no entanto, é elevar essas idéias ao stacus de princípio explicativo de toda a epidemiologia, ou, pelo menos, de sua parte substancial.

Determ inação epidem iológica e ineqüidade

As condições da vida são coletivamente produzidas, e nesse mesmo processo de produção geram-se as relações sociais e de poder que determinam a distribuição do sistema de bens dos quais depende a reprodução social. A produção dos processos para a vida (protetores e destrutivos) determina, por sua vez, a forma de distribuição que eles assumem, a quota de bem-estar a que os grupos podem aceder, ou a quota de sofrimento de que eles padecem em função das carências ou contravalores de tais processos. É por isso que o conhecimento epidemiológico, para compreender os processos geradores da saúde - os que se produzem nos locais de trabalho, na esfera do consumo, nos espaços organizacionais e políticos, no campo da vida cultural e nas relações ecológicas -, tem, necessariamente, de levar em consideração as relações socioestruturais.

Existe em cada formação social uma diversidade de grupos que mantêm relações entre si, as quais são determinantes de seus modos de vida. No seio dos modos de vida grupais ocorrem estilos de vida singulares ou individuais.'14

<4 Vieira (1999) vê essas relações do ponto de vista de Bourdieu, que as enfoca como interações dos indivíduos em meio à tríade ‘espaço social - campo - habitus', e observa as relações entre as posições dos indivíduos no espaço social e as interações com outros indivíduos que parti­cipam de um mesmo campo de interações de seus estilos de vida, que seriam produto de seu habitus. O habitus seria um princípio gerador de práticas objetivamente reconhecíveis e, ao mesmo tempo, um sistema de segregação dessas práticas, e é com base nessas duas caracte­rísticas que se constituiria o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida.

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São as ‘relações de poder’ que discriminam os grandes contrastes entre os modos e estilos de vida dos grupos situados nos pólos sociais de uma socieda­de, bem como a capacidade de produção e negociação que têm os grupos para a reprodução de sua vida em determinadas condições.

Para estudar a distribuição dos modos e estilos de vida (realmente existen­tes), que tanta importância tem para a epidemiologia, uma característica nodal d a de ‘incqüidade’, que será explicada mais adiante. E, para a compreensão cabal desta, é necessário abordar as características de ‘diversidade' e ‘desi­gualdade’, não só pela necessidade cognitiva de esclarecer seus significados distintos, mas também porque elas são elementos inter-relacionados.

As sociedades não eqüitativas são aquelas em que existe um processo de distribuição desigual do poder - não só do poder que controla a propriedade e o uso das riquezas materiais, mas do poder requerido para definir e expandir a identidade, os projetos e as aspirações a utopias.

A epidemiologia crítica é uma disciplina que se define como contra-hege- mônica, o que significa que coloca seu arsenal conceituai e prático a serviço dos ‘sem-poder’, que posiciona esse arsenal de maneira a lutar contra a ineqüi- dade, e que se coloca a serviço do fortalecimento ou ‘capacitação' (empower- menty5 da subjetividade dos subalternos e explorados, bem como dos planos, formas organizacionais e culturais que atendem a seus anseios históricos.

O que queremos situar com a imagem dos ’sem-poder' é o estado predomi­nante de subordinação ou de poder inferior que afeta a maior parte de um grupo - de classe, étnico e de gênero - e que impede sua dominação sobre a propriedade dos bens e riquezas, das formas de convocação da coletividade, em seu conjunto, para os interesses próprios, da possibilidade real de moldar a cultura e as formas de subjetividade, do manejo do saber e. como conseqüên- cia, do acesso autárquico ao bem-estar e à liberdade plenos.

A opção da epidemiologia crítica pelos sem-poder não é apenas um ato político sanitário, mas é também um ato epistemológico. O ponto de vista dos sem-poder tem maior penetração na realidade, uma vez que, como dizía­mos há muitos anos, eles precisam utilizar no máximo grau possível a capa­cidade de autoconhecimento de sua sociedade, a fim de transformar uma situação que os afeta (Breilh, 1979).

Em vários trabalhos anteriores, formulamos propostas de interpretação de categorias indispensáveis para o conhecimento epidemiológico, como as de diversidade, ineqüidade, desigualdade e diferença, bem como uma interpreta­ção da maneira como estas se desenvolvem no âmbito de uma estrutura de poder na qual convergem as situações de classe, de gênero e etnonacionais (Breilh, 1996, 1999e).

,s No original, empoderamiento, termo que também se usa em português •empoderamento'. Mas também o termo pode ser empregado no sentido de ‘formação técnica' (Nota da Revisão Técnica).

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A ‘diversidade' dos atributos humanos, naturais e sociais dos diferentes grupos de uma sociedade é uma característica consubstanciai da vida humana, e nos ajuda a explicar o modo de devir ou a gênese da variação de característi­cas. Ela se materializa em processos como os de diferenciação de gênero, étnicos e culturais. Os diferentes gêneros, etnicidades e grupos etários que fazem parte da diversidade surgem de diferenças biológicas, como o sexo, a raça e a idade biológica, em torno das quais se dão construções culturais e de poder.

Numa sociedade eqüitativa, o diverso frutifica como uma característica enriquecedora e se constitui numa potência favorável, porque as relações entre gêneros, interétnicas e interetárias são solidárias e cooperadoras, uma vez que não há uma estrutura de poder que as rompa e que se alimente de sua ruptura. Em outras palavras, o caráter heterogêneo da realidade e de seu movimento é um princípio que faz parte da essência humana, na qual os vínculos e as determinações recíprocas entre os grupos ocorrem por força da interdependên­cia e porque, embora exista a diversidade, existem também concatenações pro­fundas, que explicam o princípio da unidade entre os processos humanos soci­ais. A diversidade e a unidade se movem e se inter-relacionam dinamicamente.

Entretanto, quando aparece historicamente a ‘ineqüidade’, ou seja, a apro­priação do poder e sua concentração em determinadas classes, em um dos gêneros e em algumas etnias, ao invés de ser fonte do avanço humano, a diver­sidade passa a ser um veículo de exploração e subordinação.

A ineqüidade não se refere à injustiça na repartição e no acesso, mas ao processo intrínseco que a gera. A ineqüidade alude ao caráter e ao modo de devir de uma sociedade que determinam a repartição e o acesso desiguais (desigualdade social) que são sua conseqüência. Esta distinção é importan­tíssima, porque, se nossa análise estratégica se mantivesse no nível da desi­gualdade, reduziríamos ou desviaríamos nosso olhar para os efeitos, ao in­vés de enfocar seus determinantes.

A desigualdade, como fica explicado, é uma expressão observável, típica e grupai da ineqüidade. Ela expressa um contraste - de uma característica ou medida - produzido pela ineqüidade. É o caso da desigualdade salarial entre classes sociais ou entre gêneros, que corresponde à ineqüidade no processo de produção e distribuição econômica, ou o caso da desigualdade de acesso a um serviço de saúde apropriado, entre as referidas classes, entre grupos etno- nacionais ou entre homens e mulheres, que corresponde à ineqüidade do mercado ou do comportamento distributivo do Estado. Portanto, a categoria da ‘desi­gualdade’ é a expressão observável de uma ineqüidade social.

A ‘ineqüidade’46 é uma categoria analítica que dá conta da essência do problema, ao passo que a 'desigualdade' é uma evidência empírica que se

46 Na realidade, a categoria ‘ineqüidade' é um anglicismo [equivalente a inequity), visto que em castelhano existe apenas iniquidad [iniqüidade], que corresponde à ‘injustiça' ou ‘desigualda­de’. O anglicismo é adotado, entretanto, por ser um termo de ampla utilização e central no debate contemporâneo.

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torna ostensiva nos conjuntos estatísticos, e para cuja compreensão adequada é preciso desvendar a ineqüidade que a produz. A desigualdade é uma injustiça ou iniqüidade (com ‘i’) no acesso, uma exclusão produzida com respeito à fruição, uma disparidade na qualidade de vida, ao passo que a ineqüidade (com ‘e') é a falta de eqüidade, ou seja, é a característica inerente a uma sociedade que impede o bem comum e instaura a inviabilidade de uma distribuição humana que outorgue a cada um conforme sua necessidade, e lhe permita contribuir plenamente conforme sua capacidade (ver Quadro 8).

Por outro lado, à parte seu uso geral, designamos como ‘diferença' o pro­duto conjunto da diversidade e da ineqüidade, que, por sua vez, participa da gênese da ineqüidade e da desigualdade e se expressa no âmbito da vida indi­vidual e biológica. No caso do estudo comparativo da vida e da saúde entre os gêneros, é importante compreender que as diferenças observáveis que chegam a se registrar são produto da combinação de uma configuração distinta do genótipo com o fenótipo, que se desenvolve nas pessoas e em seu corpo, bem como das formas de deterioração experimentadas.

Quadro 8 - Categorias básicas para a distribuição de condições epidemiológicas em tipos opostos de contexto social

CONTEXTO (Oposição básica)

PROCESSO GENÉTICO (Modo de devir)

EXPRESSÃO

Particular Individual

SOLIDÁRIO DIVERSIDADE IGUALDADE

(Em meioà diversidade)

DIFERENÇAS Configuração diferente das melhores potencialidades do geno-fenótipo

CONCENTRADOR (Acumulação de poder)

INEQÜIDADE DESIGUALDADE DIFERENÇAS por deterioração desigual

Existem diferenças de gênero para processos semelhantes - a regulação da hemoglobina sangüínea e os conseqüentes níveis de anemia entre homens e mulheres -, assim como existem diferenças de gênero entre processos distintos nos corpos com geno-fenótipos diferentes, como ocorre com as do aparelho reprodutor. Cada fenótipo tem suas vantagens e desvantagens.

A incorporação das categorias de ‘gênero’ e ‘etnicidade’ tem-nos permitido aperfeiçoar a investigação do perfil epidemiológico e tomar consciência de que não só existem contrastes substanciais entre os modos e estilos de vida dos membros de diferentes classes sociais, como também as modalidades de dete­

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rioração, as vulnerabilidades e as formas de resposta ou atitude frente à ação são muito distintas entre os gêneros e entre os grupos etnoculturais.

Pois bem, cada uma dessas categorias pode ser desmembrada em subcate­gorias das quais a investigação epidemiológica pode lançar mão, para se apro­fundar nas determinações correspondentes.

A classe social, o gênero e a etnicidade nacional têm o mesmo status h ierárqu ico ?

A saúde coletiva latino-americana trabalhou intensamente a categoria da classe social como instrumento da análise epidemiológica, produzindo escri­tos de enorme valor, aplicados a diversos contextos.'17 Nós mesmos a utiliza­mos como insumo em nossa proposta original do ‘perfil epidemiológico de classe'. Todavia, nos últimos anos, nossa investigação levou-nos a articular uma proposta um pouco diferente, que, sem relegar a categoria da ‘classe social’, incorpora as de ‘etnicidade’ e ‘gênero’ como campos que, juntamente com a classe social, explicam a estrutura das relações de poder de uma socie­dade das quais depende a distribuição epidemiológica.

Essa proposta comporta um bom número de dificuldades e incompreen­sões e, por isso, é perpassada pela polêmica entre as diferentes perspectivas que procuram dar primazia a uma de três categorias de análise como fonte principal de ineqüidade: a classe social, o gênero e a situação étnica. À guisa de ilustração, e incorrendo numa certa simplificação do problema, poderíamos dizer que, nos cenários políticos da esquerda convencional, a centralidade fica­ria com a oposição entre classes situadas em pontos opostos do sistema de propriedade; nos espaços de luta étnica, o centro se situaria no tema do poder étnico e das relações correspondentes de subordinação; e nos campos da luta feminista, ganham primazia a perspectiva e o paradigma do gênero, como ex­plicação das ineqüidades básicas de nossa sociedade.

11 Depois dos primeiros subsídios provenientes da demografia crítica e da investigação da mor­talidade diferencial, como os de Hugo Behm e Rosero, na Costa Rica; dos estudos sobre a mortalidade hospitalar diferencial feitos por Celis e Nava, no México; dos trabalhos teóricos sobre as classes sociais e os modos de reprodução social, de Wim Dierckxsens (Costa Rica); das contribuições epidemiológicas iniciais de Cristina Laurell ("Morbidez de dois povos mexi­canos") e de Vãsco Uribe (Colômbia); e da contribuição pioneira deste autor para a redefinição da categoria de ‘classe social’ e para suas primeiras operacionalizações com vistas â investi­gação (vários estudos do Centro de Estudos e Assessoria em Saúde - Ceas -, no Equador) - todos surgidos na década de 1970 -, começaram a se acumular, na década posterior, outras contribuições importantes, como as de Jiménez e Minujín e Bronfman-Tuirán, no México, as de García, na Colômbia, as de Bloch-Belmartino-Troncoso e Torrado, na Argentina, e várias do Ceas, no Equador, que aperfeiçoaram, em seus contextos de investigação, as operacionalizações necessárias para uma concepção não empirista da estratificação social.

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Na prática, as coisas não são tão simples, pois nenhuma dessas fontes de ineqüidade se desenvolve no isolamento; mas a verdade é que as ênfases unila­terais criaram um certo grau de confusão e um enfrentamento estéril, tanto no plano acadêmico quanto no político. Expusemos em outro trabalho uma argu­mentação mais detalhada sobre essa polêmica (Breilh, 1996), mas cabe expor aqui alguns argumentos que mantêm uma estreita relação com a tão necessária reformulação da distribuição epidemiológica e com os procedimentos de estrati­ficação populacional que a epidemiologia crítica deve operacionalizar.

O primeiro contraste exibido por nossa formulação, em relação a outras interpretações do assunto, é que os três processos de ineqüidade - classe, gênero e etnicidade - guardam entre si unidade e movimento, sem com isso implicar, de maneira alguma, que as categorias anteriormente enunciadas os­tentem o mesmo status hierárquico no conhecimento de nossa realidade. Esta tese é importante para objetar à fragmentação inadequada das análises con­vencionais que manejam tais categorias separadamente, desmembrando ele­mentos que compõem a unidade de uma estrutura de poder, e que, embora impliquem formas diversas de concentração e dominação, conservam uma es­treita intcr-relação em seu movimento (Breilh, 1979, 1996).

Um aspecto fundamental para nos aproximarmos dessa problemática, que constitui como que um ponto de partida da análise, é distinguir ‘ineqüidade’ - o processo que possibilita a concentração de poder - de ‘desigualdade’ - uma manifestação empírica da ineqüidade, uma simples resultante. Lamentavel­mente, muitos estudos sobre o gênero e epidemiológicos são estudos sobre a desigualdade resultante, mas desvinculados da análise da ineqüidade gerado­ra. Por isso, devemos conscientizar-nos de que uma investigação da desigual­dade, sem uma análise da ineqüidade, recai no mesmo erro de reduzir a reali­dade ao plano empírico ou fenomênico, sem ligá-la ao plano dos processos generativos ou determinantes.

Em segundo lugar, as três fontes de ineqüidade - classe, etnicidade e gêne­ro - não são processos desvinculados. Isso porque, primeiro, os três processos compartilham uma mesma raiz germinativa, que é a acumulação e concentra­ção de poder’, c segundo, porque os mecanismos de reprodução social dos três tipos de ineqüidade se inter-relacionam. Da mesma forma que a ineqüidade de gênero produz efeitos de injustiça para as próprias mulheres, ela alimenta, ao mesmo tempo, relações subordinadoras que contribuem para reproduzir as outras duas formas de concentração do poder, e introduz nas mais variadas formas do cotidiano um campo de adaptação e aceitação da ineqüidade como um modo natural de viver. Da mesma forma, a concentração da propriedade da riqueza, que determina e mantém as classes sociais, é, em última instância, uma concentração do poder de dominar, e dominar não é só uma questão de

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despojar os subordinados dos bens e da riqueza, mas requer, para se susten­tar, ser sempre um processo de hegemonia e aceitação do domínio, mecanis­mo este do qual participam as relações culturais de dominação de gênero e étnicas. O jogo entre exploração e hegemonia descoberto por Gramsci é que nos permite compreender essa interdependência entre as três fontes de ineqüi- dade. Em outras palavras, a dominação não é apenas classista, mas compõe uma estrutura de poder que é perpassada e reproduzida tanto pelas relações de apropriação e expropriação econômicas quanto por relações de subordina­ção étnica e de gênero.

Esta nossa abordagem coincide também com a de várias lutadoras do movimento feminista. A afro-norte-americana Patrícia Hill Collins (1991) deno­minou ‘matriz de dominação’ essa estrutura de poder e de ineqüidade tríplice, e, embora essa autora não explique as bases de tal união entre o econômico, o cultural e o político, compartilhamos seu anseio de observar os ‘níveis’, segundo ela, em que a dominação se reproduz - o das histórias pessoais de vida, o das relações comunitárias e o das instituições gerais do sistema social -, e assim, embora partindo de outro tipo de categorização, essa pensadora do movimento feminista também descobre a necessidade de articular os citados níveis e formas de reprodução da dominação social, destacando que não so­mente o poder se estrutura de cima para baixo, mas que também há espaço para a construção de um contrapoder - um movimento que, em termos gra- mscianos, seria chamado de contra-hegemonia. O fato de essa autora situar a citada construção contra a corrente como um fenômeno individual, e não da ordem coletiva, não diminui a concordância de seu trabalho com nossa linha de investigação.

A fonte originária de toda ineqüidade, como dissemos, é a apropriação do poder: a apropriação privada da riqueza, que deu origem às classes sociais; a apropriação patriarcal do poder e a apropriação do poder por parte de grupos étnicos historicamente situados em vantagem estratégica.

Durante alguns anos, houve confusão nas ciências sociais e na investiga­ção histórica sobre os processos proeminentes e precedentes na construção do poder. Parte dessa confusão deveu-se ao desconhecimento dos planos da análi­se que devem ser diferenciados: a ordem histórica (cronológica) em que se dão os eventos e a ordem ou hierarquia na determinação social deles. Analisando essa diferença, podemos aperceber-nos de que fenômenos como a apropriação de gênero e sua conseqüência, a dominação patriarcal como processo ampla­mente instituído, foram anteriores às outras duas formas de subordinação, e, por sua vez, a apropriação do poder por certos grupos étnicos precedeu histo­ricamente a formação ampliada de classes sociais. Mas essa ordem histórica não implica uma primazia ou uma hierarquia maior na determinação dos modos

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de vida de tais fenômenos mais antigos sobre o processo econômico da con­centração do poder. Isso ocorre, em primeiro lugar, porque, para que houvesse acumulação de poder, inclusive acumulação de gênero ou étnica, foi preciso que se desse a matéria básica, embora não suficiente, de tal concentração de poder, que é a ‘apropriação do excedente econômico acumulado’.'18 Em segun­do lugar, porém, a ordem histórica anteriormente descrita não implica prima­zia ou stacus separado na determinação, pois a história tem demonstrado que os processos culturais e as formas de poder simbólico não se estruturam sepa­radamente com respeito às formas de dominação económica.

O poder econômico expressa-se numa estrutura de classes. Ainda que, para ser construída, a etapa classista da história tenha precisado passar por fenômenos de gênero, como a divisão sexual do trabalho, ou pela domi­nação étnica, através da guerra, a verdade é que o que permitiu sua conso­lidação efetiva foram a economia privada e a apropriação econômica por parte dos grupos que passaram a constituir as classes dominantes. Essa estrutura reproduz-se diretamente através da institucionalização de um sis­tema de propriedade, mas, para ser legitimada, precisa de condições de gênero e dominação cultural propícias. O poder patriarcal (de gênero) re­produz-se mediante a tradução de um poder econômico e político em poder simbólico, e o mesmo acontece com o poder étnico. Não pode haver poder de gênero ou poder étnico que se apoie exclusivamente em elementos sim­bólicos ou relações culturais, mas tem de haver, de permeio, a concentra­ção econômica e a dominação política.

Aliás, podemos ilustrar com um exemplo esse tipo de relações, na re­gião de Otavalo, na Sierra Norte do Equador, onde coabitam, com relações interétnicas, desde a época colonial, os índios ‘otavalenos’ e os mestiços. Até umas três décadas atrás, o controle da posse da terra c do comércio por parte dos mestiços determinava sua dominação das populações indígenas, uma dominação que se expressava numa estrutura de classes em que a burguesia e a pequena burguesia eram quase exclusivamente mestiças, ao passo que os índios constituíam a força de trabalho, submetida a relações salariais ou de subassalariamento. Nessa época, o domínio dos aparelhos políticos e culturais do Estado e do governo local por parte dos mestiços era completo. Mas, quando as relações de propriedade se inverteram e sur­giu uma burguesia indígena, que entesourou bens graças ao comércio, pas­sando a controlar a posse da terra, bem como um ou outro segmento da indústria, o comércio e as propriedades urbanas, começou a haver uma mudança radical nas relações de poder político e cultural da região. Ou

48 Sabemos que a apropriação do trabalho social anterior acumulado pode dar-se pelo entesouramento de uma riqueza material ostensiva ou pela acumulação do trabalho anterior no saber, mas se dá, basicamente, pela primeira dessas duas causas.

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seja, entre o poder econômico e o poder simbólico (em termos de Bourdieu) existe um movimento dialético, e esse movimento também se expressa entre a estrutura de classes e as relações de poder étnico ou de gênero. O poder econômico concentra-se em algumas classes sociais e se expressa numa estrutura de classes, mas a dominação econômica requer relações culturais e uma estrutura simbólica adequadas, que viabilizem a hegemonia. Na or­dem individual, essas relações nem sempre se tornam visíveis e, muitas vezes, aparecem sob a máscara de relações culturais.

Do ponto de vista da epidemiologia e do conhecimento da determinação da reprodução social e da saúde, não se trata, portanto, de ‘escolher’ uma categoria central e tomar partido da ‘classe’, do ‘gênero’ ou da ‘etnicidade’ como categoria privilegiada no sistema de análise, mas de entender seu rico movimento e suas relações dialéticas como parte de uma estrutura de poder.

Além disso, não se deve confundir a centralidade na análise com a hie­rarquia na determinação. Segundo nossa perspectiva, a base ontológica pri­mordial de qualquer poder é a acumulação de riqueza, como já explicamos, mas, quando se estuda a epidemiologia dos gêneros, a categoria especifica- dora é o ‘gênero'; quando se procura conhecer os processos epidemiológicos ligados ao etnonacional e cultural, a categoria especificadora que se destaca na análise é a ‘etnicidade’; quando se trava conhecimento com os processos particulares da saúde do adolescente, a categoria especificadora proeminente é a ‘idade’. Nada disso significa, entretanto, que o gênero, no primeiro caso, a etnicidade, no segundo, e a idade, no terceiro, sejam exclusivos nem princi­pais na explicação do movimento dessas populações específicas, porque elas em si não configuram um grupo fechado às relações com o conjunto da soci­edade, e porque a compreensão dos processos culturais, do saber e dos mo­dos de vida não pode ser alcançada sem que eles sejam concatenados com os processos do conjunto e com a base econômica, que são os que regem a reprodução social. Por esse mesmo caráter dialético, as relações de gênero ou étnicas nunca são um simples reflexo da estrutura, pois mantêm com respeito a esta uma relativa autonomia e, além disso, têm a capacidade de induzir mudanças nessa totalidade (Breilh, 1996).

Este último argumento remete-nos a um ponto já comentado - o do movi­mento em sentido inverso e concatenado que a análise dialética nos permite reconhecer entre a gênese e a reprodução que vão do particular ao geral (ver Quadro 9, no tocante ao tema que nos ocupa).

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Quadro 9 - Domínios da estrutura do poder determinantes da distribuição epidemiológica

DOMÍNIO DETERMINAÇÕES

MODO DE GÊNESE MODO DE REPRODUÇÃO

GÊNERO

. Processo sociobiológico de formação da sexualidade

. Processo econômico de divisão sexual do trabalho e apropriação do excedente (poder econômico)

. Processo político: acumulação de poder

. Processo cultural: relações e construções dominantes na vida sexual

. Relações econômicas de base

. Processos ideológicos e capacidade de reprodução do poder simbólico

. Processos políticos

ETNIA

. Processo sociobiológico de divisão racial

. Processo econômico de divisão étnica do trabalho e apropriação (poder econômico)

. Processo político: localização estratégica e acumulação de poder

• Processo cultural: relações e construções dominantes sobre as características e o papel das raças

. Relações econômicas de base

. Processos ideológicos e capacidade de reprodução do poder simbólico

. Processos políticos

C IASSE

. Processo econômico estrutural de inserção no aparelho produtivo, controle da propriedade, formação de relações sociais de produção e acesso a uma parcela da distribuição social

. Estrutura da propriedade

. Processos ideológicos e capacidade de reprodução do poder simbólico

• Processos políticos

Nessa medida, e como já explicamos, as ordens macro e micro entram em jogo nesse movimento. A lógica produtiva de uma formação social permite e facilita o desenvolvimento de modos de vida grupais, e no seio destes surgem estilos de vida cotidianos das pessoas e suas famílias. Essa lógica produtiva desenvolve-se frente a uma estrutura étnica. Quando sucede haver um espaço social em que existe exclusivamente um grupo étnico, o problema é, essencial­mente, um problema econômico e de subordinação de gênero, mas quando existe uma estrutura étnica que implica uma luta pelo poder, ou um movimen­to contra-hegemónico por parte de um grupo étnico contra o grupo dominante, o problema econômico e até o de gênero têm de passar pela mediação das relações interétnicas. Do mesmo modo, quando há, numa formação social,

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uma estrutura patriarcal, as relações econômicas e étnicas também se constroem diante dessas demandas de poder de gênero, ainda mais quando surge um processo contestador de empoderamento dos gêneros. Seja como for, entra em ação esse rico movimento das relações de classe, de gênero e étnicas. É claro que tais relações formam padrões distintos, conforme as combinações entre as diferentes situações de classe social, de gênero e étnicas, questão esta que mostra grande complexidade nas sociedades em que a estrutura de classes é complexa, em que são matizadas as relações interétnicas e em que a luta de gênero encontra-se num estado de desenvolvimento desigual.

Por último, é claro que os espaços onde se produz e se reproduz o poder em geral e os poderes patriarcal e étnico, especificamente, tanto abarcam a prática produtiva quanto a prática social doméstica e cotidiana e a prática de gestão coletiva. Numa sociedade concreta, existem relações específicas entre essas modalidades de práticas, relações estas cujo conteúdo, sentido e possibi­lidade são determinados, em grande medida, pelas relações de classe que de­terminam os modos de vida e, por meio destes, as condições epistêmicas do saber, como vimos antes. Por isso, uma análise epidemiológica do gênero ou da determinação étnica que seja feita à margem das relações de classe está condenada a ser incompleta e tendenciosa. De igual maneira, porém, uma vi­são de classe que não reconheça as determinações específicas de gênero e etni- cidade, e que as dissolva em simples relações económico-políticas, implica também distorção e reducionismo.

A opressão de uma operária (categoria estrutural econômica), de uma ne­gra, hispana ou índia (categoria nacional étnica), ou de uma muçulmana, cató­lica, budista ou lésbica - ou homossexual, neste último caso - (categoria cultu­ral) não é emoldurada apenas por uma relação machista, mas pelas condições de poder em que se desenvolve e se reproduz essa relação entre os gêneros.

A proposta conceituai que desenvolvemos neste capítulo tem implicações decisivas para o trabalho de investigação e para o planejamento de ações.

Pleiteamos uma nova forma de trabalhar a análise da distribuição epide­miológica e das formas de estratificação derivadas. A idéia central seria que, no plano fenomênico, a epidemiologia constata e contrasta desigualdades liga­das à determinação da qualidade de vida e da saúde, mas essas operações empíricas devem articular-se com a análise da estrutura de ineqüidade que as explica, a fim de gerar interpretações e resultados que impliquem um processo emancipador integral; caso contrário, a epidemiologia reconheceria apenas contrastes superficiais e secundários, que só inspiram operações cosméticas e medidas funcionalistas, com as quais não se altera nem o sistema social, nem a determinação epidemiológica em seu conjunto.

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'letiva mais do que questões e reflexões: pelo viés da epidemiologia, ta nova crítica, articulando o campo da ciência com a realidade política de considerar seus aspectos éticos mediadores. Dessa forma, busca ma epidemiologia referenciada na própria sociedade, através de ações ■mónicas, num lastro que vai dos sindicatos de trabalhadores às s no interior do próprio Estado, passando por todos os ciedade civil em que vicejem espaços democráticos, "para poder enfrentar italista que se recria e se respalda a partir do próprio Estado, como ie concentra e canaliza, nos planos jurídico e adm inistrativo : uma sociedade”.

aberes que passa pela integração cultural de um "bloco social de o" com o conhecimento científico acadêmico constrói uma epidemiologia -'adora dos modos de produção da vida.

e de Serviços de Referência e Ambiente da