fundação bill & melinda internacional da pesquisa gates ... · fundação bill & melinda...

3
17 REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2016 m estudo realizado no Rio de Janeiro apontou, pela primeira vez, que a infecção intestinal por vermes está associada ao desenvolvimento da forma muco- sa da leishmaniose tegumentar, apre- sentação mais grave da doença. Liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), a pesquisa identificou que os casos deste tipo foram cerca de cinco vezes mais frequentes entre pacientes com Ascaris lumbricoides, parasito popularmente conhecido como lombriga, ou outras verminoses. Publicado na revista científica Acta Tropica, o trabalho mostrou também que os portadores de vermes intesti- nais demoraram em média o dobro do tempo para se curar. Além disso, os casos de má resposta ao tratamen- to, como persistência da doença após a terapia ou retorno dos sintomas após a cura, foram em torno de três vezes mais frequentes em pacientes com estas coinfecções. Segundo o coordenador do estu- do, Sergio Mendonça, pesquisador do PESQUISA U Maíra Menezes Laboratório de Imunoparasitologia do IOC, a leishmaniose mucosa causa le- sões destrutivas no nariz e na boca dos pacientes, além de ser mais resistente ao tratamento do que a apresentação cutânea da infecção, que atinge ape- nas a pele. “A leishmaniose mucosa ocorre geralmente em uma pequena porcentagem dos casos, mas é uma grande preocupação. A partir dos re- sultados deste estudo, podemos pen- sar que, se os pacientes estivessem livres de verminoses, eles poderiam ter uma evolução melhor da leishmanio- se”, afirma o infectologista. No Brasil, a leishmaniose tegumen- tar pode ser causada por sete espécies de parasitos do gênero Leishmania. Entre elas, a Leishmania braziliensis é a mais comum e a única encontrada no Rio de Janeiro. Além disso, enquanto algumas espécies provocam apenas a forma cutânea da doença, a L. brazili- ensis é o parasito mais frequentemen- te associado às lesões mucosas. Dados do Ministério da Saúde mostram que, de 2004 a 2013, o estado do Rio de Janeiro registrou 1.292 casos humanos de leishmaniose tegumentar, com 146 da apresentação mucosa, o que repre- senta 11% do total. Realizado em parceria com o Insti- tuto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) e a Secretaria Mu- nicipal de Saúde do Rio, o estudo ana- lisou registros de 109 pacientes com leishmaniose tegumentar atendidos entre 2004 e 2006. Entre eles, dez ti- nham a forma mucosa da doença, cor- respondendo a 9% dos casos. Ao todo, 15 estavam infectados por helmintos (os populares vermes, como lombriga e ancilóstomo) e, neste grupo, foi iden- tificada uma forte associação com a leishmaniose mucosa. A forma mais grave da doença atingiu 27% dos pa- cientes com verminoses. Já conside- rando apenas os indivíduos sem a coinfecção com verminoses, a preva- lência dessa apresentação foi bem me- nor, de apenas 6%. Após o início da terapia, os paci- entes com verminoses levaram o do- bro do tempo para se recuperar: em média, seis meses nos pacientes coin- fectados contra três meses nos demais

Upload: dinhbao

Post on 06-Mar-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

17R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 1 6

m estudo realizado noRio de Janeiro apontou,pela primeira vez, que ainfecção intestinal porvermes está associada

ao desenvolvimento da forma muco-sa da leishmaniose tegumentar, apre-sentação mais grave da doença.Liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz(IOC/Fiocruz), a pesquisa identificouque os casos deste tipo foram cercade cinco vezes mais frequentes entrepacientes com Ascaris lumbricoides,parasito popularmente conhecidocomo lombriga, ou outras verminoses.Publicado na revista científica ActaTropica, o trabalho mostrou tambémque os portadores de vermes intesti-nais demoraram em média o dobrodo tempo para se curar. Além disso,os casos de má resposta ao tratamen-to, como persistência da doença apósa terapia ou retorno dos sintomas apósa cura, foram em torno de três vezesmais frequentes em pacientes comestas coinfecções.

Segundo o coordenador do estu-do, Sergio Mendonça, pesquisador do

Projeto inovadorrecebe financiamentointernacional daFundação Bill & MelindaGatesPESQUISA

UMaíra Menezes

Laboratório de Imunoparasitologia doIOC, a leishmaniose mucosa causa le-sões destrutivas no nariz e na boca dospacientes, além de ser mais resistenteao tratamento do que a apresentaçãocutânea da infecção, que atinge ape-nas a pele. “A leishmaniose mucosaocorre geralmente em uma pequenaporcentagem dos casos, mas é umagrande preocupação. A partir dos re-sultados deste estudo, podemos pen-sar que, se os pacientes estivessemlivres de verminoses, eles poderiam teruma evolução melhor da leishmanio-se”, afirma o infectologista.

No Brasil, a leishmaniose tegumen-tar pode ser causada por sete espéciesde parasitos do gênero Leishmania.Entre elas, a Leishmania braziliensis éa mais comum e a única encontradano Rio de Janeiro. Além disso, enquantoalgumas espécies provocam apenas aforma cutânea da doença, a L. brazili-ensis é o parasito mais frequentemen-te associado às lesões mucosas. Dadosdo Ministério da Saúde mostram que,de 2004 a 2013, o estado do Rio deJaneiro registrou 1.292 casos humanos

de leishmaniose tegumentar, com 146da apresentação mucosa, o que repre-senta 11% do total.

Realizado em parceria com o Insti-tuto Nacional de Infectologia EvandroChagas (INI/Fiocruz) e a Secretaria Mu-nicipal de Saúde do Rio, o estudo ana-lisou registros de 109 pacientes comleishmaniose tegumentar atendidosentre 2004 e 2006. Entre eles, dez ti-nham a forma mucosa da doença, cor-respondendo a 9% dos casos. Ao todo,15 estavam infectados por helmintos(os populares vermes, como lombrigae ancilóstomo) e, neste grupo, foi iden-tificada uma forte associação com aleishmaniose mucosa. A forma maisgrave da doença atingiu 27% dos pa-cientes com verminoses. Já conside-rando apenas os indivíduos sem acoinfecção com verminoses, a preva-lência dessa apresentação foi bem me-nor, de apenas 6%.

Após o início da terapia, os paci-entes com verminoses levaram o do-bro do tempo para se recuperar: emmédia, seis meses nos pacientes coin-fectados contra três meses nos demais

R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 1 618

pacientes. Da mesma forma, os casosconsiderados de má resposta ao trata-mento – incluindo falhas terapêuticas,com lesões permanecendo três me-ses após o início da medicação, eocorrência de recaídas após a cica-trização das feridas – somaram 43%no grupo coinfectado por vermes con-tra apenas 13% no restante dos pa-cientes. Nos casos em que não houvecura após o primeiro tratamento, no-vos ciclos de administração de remé-dios foram realizados, até alcançar acicatrização das lesões.

De acordo com Mendonça, umestudo realizado na Bahia já tinhaapontado que as verminoses podem

ter consequências negativas na evo-lução da leishmaniose cutânea, masesta é a primeira vez em que a rela-ção com o desenvolvimento da for-ma mucosa da doença é identificada.Além disso, o trabalho investiga a co-infecção em um grupo de pacientescom perfil diferente do analisado noestado do Nordeste. “Na Bahia, foramavaliados pacientes de uma comuni-dade rural e 80% tinham infecção porhelmintos. Já no Rio de Janeiro encon-tramos principalmente indivíduos deáreas urbanas. Como esperado, o per-centual de parasitoses intestinais foimenor, mas ainda assim identificamosque aproximadamente 15% dos paci-

entes estavam coinfectados por hel-mintos”, explica ele.

O coordenador da pesquisa avaliaque o impacto das verminoses sobreo sistema imune dos pacientes podeser uma das causas para as alteraçõesobservadas no estudo. Essa hipóteseé reforçada pela comparação entre es-tes pacientes e outro grupo com ou-tros tipos de parasitoses intestinais, quenão eram causadas por vermes. Entre14 indivíduos coinfectados com pro-tozoários, como ameba e giárdia, nãofoi verificada qualquer alteração naevolução da leishmaniose, diferente-mente do que aconteceu nos pacien-tes coinfectados com vermes.

Imag

em:

Jeff

erso

n M

end

es/IO

C

19R E V I S T A D E M A N G U I N H O S | M A I O D E 2 0 1 6

”A infecção por helmintos desen-cadeia um tipo de reação imunológi-ca que é efetiva para conter essesparasitos, mas tem efeito negativo emoutras doenças, tais como as causa-das por micróbios intracelulares,como a Leishmania ou o bacilo datuberculose. Alguns estudos apontamque a helmintíase pode, por exem-plo, reduzir a resposta do organismoa vacinas, afetando a eficácia dosimunizantes”, relata o infectologista.

Determinantessociais

Considerando que as verminoses eas leishmanioses fazem parte do grupode doenças negligenciadas, a existên-cia da coinfecção não é considerada sur-preendente. Segundo a OrganizaçãoMundial da Saúde (OMS), essas enfer-midades atingem principalmente popu-lações pobres, que vivem em locais semsaneamento básico e em proximidadecom vetores e animais. Além disso, po-deriam ser controladas com medidas desaúde pública, mas permanecem comoum grave problema, afetando cerca de1 bilhão de pessoas em 149 países –um sexto da população mundial.

”Quando falamos em doenças ne-gligenciadas, na verdade estamos fa-lando de populações negligenciadas,que não têm poder ou visibilidade. Es-sas pessoas vivem expostas a váriostipos de doenças. É comum que essasinfecções se combinem, com resulta-do negativo”, afirma Mendonça.

Importânciada prevenção

O pesquisador ressalta que o de-senvolvimento da leishmaniose mu-cosa está ligado a diversos fatores eé importante atuar contra aquelesque podem ser evitados. “Sabemosque algumas espécies de Leishma-nia são mais propensas a causar qua-dros mais graves e, dentro de uma

mesma espécie, existem cepas maisvirulentas. Por outro lado, cada pa-ciente tem características próprias deresposta imune, que impactam nes-se processo”, esclarece.

Em relação às verminoses, um en-saio clínico mostrou que tratar a helmintí-ase após o aparecimento da leishmaniosecutânea não reduz o efeito negativo so-bre a evolução da doença. “Isso podeacontecer porque a fase inicial da infec-ção por Leishmania é muito importantepara determinar a apresentação clínicado paciente”, destaca Mendonça. No en-tanto, a prevenção da infecção por ver-mes intestinais pode contribuir para evitaro desenvolvimento da forma clínica maisgrave da infecção por L. braziliensis e paramelhorar a resposta ao tratamento.

Pacientes com verminoses podemnão apresentar sintomas, mas as mani-festações mais comuns são dor abdomi-nal, diarreia, náuseas e falta de apetite.Dependendo da duração e da intensida-de da infecção, essas parasitoses tam-bém podem gerar anemia e atraso dodesenvolvimento em crianças. Uma vezque os vermes são liberados nas fezesdos indivíduos infectados, as condiçõesde saneamento, os hábitos de higiene –especialmente a lavagem das mãos – eo tratamento dos pacientes para vermi-noses são os principais fatores para inter-romper a disseminação dessas doenças.

A leishmaniosetegumentar

Os parasitos do gênero Leishmaniasão transmitidos para os pacientes pelapicada de diversas espécies de pequenosinsetos chamados de flebotomíneos e po-pularmente conhecidos como mosquitos-palha. Estes vetores são infectados aosugar o sangue de animais que atuamcomo reservatórios do parasito, o que in-clui diversas espécies de roedores, mar-supiais, edentados e canídeos silvestres.Entretanto, diferentemente do que ocor-re na leishmaniose visceral, não existecomprovação de que os cães domésticostenham participação fundamental nesseciclo como fonte de infecção para o ve-

tor. A leishmaniose tegumentar é trans-mitida em florestas, regiões rurais ou áre-as periurbanas, nas quais habitações sãoconstruídas próximo de matas.

A infecção cutânea se manifesta pormeio de lesões na pele, geralmente emformato de úlceras. Mesmo sem trata-mento, estas feridas tendem a evoluirpara a cura em um prazo que pode du-rar desde alguns meses até poucos anos.A forma mucosa da doença pode se de-senvolver concomitantemente, após o sur-gimento das lesões cutâneas ou mesmoapós a cura destas. Com caráter poten-cialmente destrutivo, as lesões afetamas mucosas das vias áreas superiores. Ospacientes apresentam sintomas comoobstrução e sangramento nasal, elimi-nação de crostas, dificuldade e dor paraengolir, rouquidão e tosse.

Considerando o preconceito existen-te em relação à doença, vale destacarque a leishmaniose tegumentar não étransmitida diretamente de uma pessoapara a outra e não há risco de contágiopelo contato com as lesões. Em todos oscasos, o tratamento da infecção é feitocom medicamentos específicos, capazesde atuar sobre o parasito Leishmania. Amedicação é fornecida gratuitamentepelo Sistema Único de Saúde (SUS). Asmedidas de prevenção incluem o uso derepelentes e mosquiteiros nas áreas comtransmissão da doença. A limpeza dequintais e terrenos tambémé recomendada para re-duzir os criadouros dovetor, assim como odescarte adequado dolixo orgânico com oobjetivo de reduzir aaproximação de ani-mais que podemser reservatóriosdo parasito.