função dos edificios corporativos

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arquitetura-capital a funcionalidade dos edifícios corporativos paulistas Isadora Guerreiro São Paulo, 2010

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  • 1. arquitetura-capital afuncionalidadedosedifcioscorporativospaulistas Isadora Guerreiro So Paulo, 2010

2. Isadora de Andrade Guerreiro Arquitetura-Capital: a funcionalidade dos edifcios corporativos paulistas Dissertao apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo rea de Concentrao: Projeto, Espao e Cultura Orientador: Vera Maria Pallamin So Paulo 2010 3. Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. e-mail: [email protected] AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. E-MAIL: [email protected] Guerreiro, Isadora de Andrade G934a Arquitetura-capital: a funcionalidade dos edifcios corporativos paulistas / Isadora de Andrade Guerreiro. --So Paulo, 2010. 256 p. : il. Dissertao (Mestrado - rea de Concentrao: Projeto, Espao e Cultura) FAUUSP. Orientadora: Vera Maria Pallamin 1.Edifcios de escritrio So Paulo (SP) 2.Mercado imobilirio So Paulo (SP) 3.Arquitetura moderna - Brasil 4.Globalizao 5.Mercado financeiro 6.Marxismo I.Ttulo CDU 725.23 4. Nome: GUERREIRO, Isadora de A. Ttulo: Arquitetura-Capital: a funcionalidade dos edifcios corporativos paulistas Dissertao apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo Aprovado em: Banca examinadora: Prof. Dr.: __________________________ Instituio: ________________________ Julgamento: ________________________ Assinatura: ________________________ Prof. Dr.: __________________________ Instituio: ________________________ Julgamento: ________________________ Assinatura: ________________________ Prof. Dr.: __________________________ Instituio: ________________________ Julgamento: ________________________ Assinatura: ________________________ 5. A forma, v Irma (In memoriam) O contedo, ao v Walter 6. Agradecimentos A todos aqueles que colocaram a mo na massa dentro da linha de produ- o desta dissertao. Primeiramente Vera, orientadora de verdade, que sempre faz meus ps voltarem terra e caminharem com algum rumo. Carmen, na revi- so e traduo, irm e companheira inesperada, surpreendeu em todos os sentidos obrigada! Ana Carol, velha de guerra, na diagramao: paixo e sensibilidade timos momentos para levar para a vida toda. Ao Gustavo, fiel escudeiro, que leu a qualificao e fez comentrios precisos e valiosos. Camila, que reservou um pouco da sua energia para me ajudar a construir uma crtica de arquitetura. Aos professores Jorge Grespan e Otlia Arantes, que participaram da banca de qualifica- o e contriburam decisivamente para a concluso do trabalho. A todos os entrevis- tados, que dispuseram seu tempo em prol da pesquisa acadmica - particularmente a Gianfranco, elo entre dois mundos. A todos os companheiros da Usina, junto aos quais a crtica, a prtica pro- fissional e a militncia esto sempre presentes, construindo cotidianamente as con- tradies necessrias e nem por isso menos angustiantes. Um abrao especial para a Leslie, que bravamente possibilitou que eu pudesse me ausentar para concluir este trabalho. Ao coletivo de estudos que se reuniu, trabalhou e terminou sempre de maneira apaixonada, em todos os sentidos, fundamental para a conformao te- rica e poltica deste trabalho: Carol, Guto, Danilo, Mari, Marcelo, Dina, Edu, Nath e Fabio. Ao grupo de estudos da FAU-Maranho, que est levantando o p do ca- saro e trazendo novas bases marxistas para a pesquisa da arquitetura e do urba- nismo. Um agradecimento especial para a Mariana Fix, que com seu trabalho abriu todo um campo de investigao urbana, fundamental para esta pesquisa. A algumas pessoas que, junto s demais citadas, direta ou indiretamente contriburam para a minha (trans)formao neste perodo: Bia, Pedro, Silvana, Pau- linha, Ana Maria. Aos meus pais, pois a culpa tem que ser de algum. E especialmente ao Fabio e Rosa, por toda a simplicidade, delicadeza e maravilha. O presente trabalho foi realizado com apoio institucional da Universidade de So Paulo e financeiro da FAPESP (2007 e 2008). 7. Resumo So Paulo presenciou, nas ltimas duas dcadas, o surgimento de gran- des edifcios comerciais que passaram a conformar uma paisagem que se tornou a imagem de exportao da cidade. O fenmeno no isolado: faz parte de um movimento de transformao no qual economia e espao urbano so agentes de um mesmo processo social, concatenado politicamente ao poder pblico, em vrias ins- tncias, e ao capital internacional. Sua origem se encontra na abertura da economia do pas na dcada de 1990, que marcou o aumento significativo da instalao em solo nacional de empresas multinacionais, que conformaram uma nova demanda por um espao diferenciado as lajes corporativas. Este movimento ganhou novas determinantes a partir dos anos 2000, quando foram criados vrios instrumentos econmicos e urbansticos que possi- bilitaram que o edifcio corporativo, antes entendido como ativo fixo, modificasse sua figura no ciclo de valorizao e passasse a atuar predominantemente enquanto capital na esfera da circulao. Acresce-se a isto o fato de que o mercado imobilirio nacional, a partir de 2005, passa por mudanas em sua forma de organizao e atu- ao, devido abertura de capital de significativas empresas do setor. Estes fatores conformam um cenrio no qual esta arquitetura ganha novos papis, principalmente no que concerne representao do capital. Neste aspecto, as determinantes locais se encontram com as mundiais, numa relao que deve sin- tetizar um alinhamento aparentemente sem entraves. O trabalho pretende analisar este encontro, neste campo da arquitetura, no intuito de entender, a partir das suas especificidades locais, as contradies que o cercam. Neste encontro, sero anali- sadas as funcionalidades da arquitetura paulista neste novo cenrio econmico. A cadeia local produtiva, de circulao e de uso do edifcio corporativo ser apre- sentada, mostrando-se as idiossincrasias, transformaes e dificuldades locais que definiro nossa relao com o mercado de capitais internacional. Palavras-chave 1. Edifcios de escritrio; 2. Mercado imobilirio So Paulo; 5. Arquite- tura contempornea brasileira paulista; 3. Globalizao; 4. Mercado financeiro; 5. Marxismo. 8. Abstract Sao Paulo witnessed, over the past two decades, the emergence of large commercial buildings that started to form a landscape that has become the citys image export. This phenomenon is not isolated: it is part of a movement of trans- formation in which economy and urban space are agents of the same social process, politically concatenated to the government, in several instances, and to internatio- nal capital. Its origin lies in the openness of the countrys economy in the 1990s, which marked a significant increase of multinational companies on national soil, which have made a new demand for a different space the corporate towers. This movement gained new determinants from the 2000s, when several urban and economic instruments were created and enabled the corporate building, before understood as a fixed asset, to modify its image in the cycle of valorization and begin to act predominantly as a capital in the sphere of circulation. Added to this is the fact that the national real state market, since 2005, undergoes through changes in its organizational and performance form, due to the IPO of significant companies in the sector. These factors have formed a scenario in which this architecture is gaining new roles, especially regarding the representation of capital. In this aspect, the lo- cal determinants meet global determinants, in a relationship that must synthesize an alignment apparently unhindered. This study aims to examine this encounter, in the field of architecture, in order to understand, based on its specific local con- ditions, the contradictions that surround it. In this encounter, it will be taken into consideration the features of paulista (original from the state of Sao Paulo) archi- tecture in this new economic scenario. The local chain of production, circulation and use of corporate buildings will appear, revealing the idiosyncrasies, changes and local difficulties that will define our relationship with the international capital market. Keywords 1. Office buildings; 2. Real state market Sao Paulo; 5. Brazilian contem- porary architecture paulista; 3. Globalization; 4. Financial market; 5. Marxism. 9. Lista de figuras, tabelas e grficos Figura 01 Chrysler Building, 1930 Figura 02 Empire State Building, 1931 Figura 03 Rockefeller Center, 1939 Figura 04 Seagran Building, 1958 Figura 05 Dancing Towers Abu Dhabi, Emirados rabes Unidos. FIgura 06 600m Tower Shangai, China. Projeto: Gensler. Figura 07 Empire Island Abu Dhabi, Emirados rabes Uinidos. Figura 08 Bahrain WTC. Golfo Prsico. Projeto: Atkins Figura 09 idem Figura 10 Reconstruo WTC-NY. Projeto: Foster. Figura 11 KPT Tower. Karachi, Paquisto. Projeto: Aedas. Figura 12 Ocean Heighs Dubai, Emirados rabes Unidos. Figura 13 Beach Road. Singapura. Projeto: Foster. Figura 14 Investment Concil Abu Dhabi, Emirados rabes Unidos. Figura 15 Qingping Highway Management, China. Projeto: Atkins. Figura 16 Jameson House, Canad. Projeto: Foster. Figura 17 Tameer Towers, Dubai, Emirados rabes Unidos. Figura 18 The Bow, Canad. Projeto: Foster. Grfico 1 Nmero de ofertas de ao em IPO no Brasil. Fonte: CVM www. cvm.gov.br acessado em abril 2010 Mapa 1 Localizao das Operaes Urbanas em So Paulo (existentes e em estudo). Fonte: PMSP. Tabela 1 Os CEPACs e as OU Faria Lima e gua Espraiada 1Trim. 2010. Quadro 1 Intervenes previstas pela Operao Urbana Faria Lima Figura 19 Convnio Escolar: escola pandia calogeras. Figura 20 Convnio Escolar: biblioteca no Tatuap. Figura 21 Convento de La Tourette. Le Corbusier. Figura 22 Museu Brasileiro de Escultura (MUBE) Figura 23 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) Figura 24 Ed. Parque Iguatemi 1971. Aflalo e Gasperini. Figura 25 Ed. Sede da IBM - 1974. Aflalo e Gasperini. Figura 26 Tribunal de Contas do Municpio - 1976. Aflalo e Gasperini. Figura 27 Ed. Sede da Tenenge 1974. Botti Rubin. Figura 28 Sede Controle Operacional Metr -1972. Aflalo e Gasperini. Figura 29 Ed. Sede da Nestl 1961. Botti Rubin. Figura 30 Ed. Barros Loureiro 1972. Aflalo e Gasperini. Figura 31 Ed. Plantar 1973. Botti Rubin. Figura 32 Ed. River Park 1986. Botti Rubin. Figura 33 Centro Empresarial Naes Unidas - 1989. Botti Rubin. 43 43 43 44 64 66 66 69 69 70 70 70 70 72 72 73 73 73 100 107 108 109 144 145 147 147 147 148 148 148 157 158 158 158 158 159 162 10. Figura 34 Citicorp Center 1983. Aflalo e Gasperini. Figura 35 Ed. Naes Unidas 1987. Aflalo e Gasperini. Figura 36 Ed. Atrium VII 2000. Aflalo e Gasperini. Figura 37 Ed. Atrium IX 2004. Aflalo e Gasperini. Figura 38 Ed. FGV 2001. Botti Rubin.Ed. Figura 39 Ed. Sede da Engevix 2002. Botti Rubin. Mapa 2 Localizao Edifcios CENU, Eldorado Business Tower e Rochaver Figura 40 Ed. Eldorado Business Tower nos seus diversos ngulos Figura 41 Implantao do EBT, ao lado do Shopping Eldorado Figura 42 Vista externa a partir do EBT: Marginal Pinheiros e Jockey Figura 43 EBT: ponto de vista do pedestre na praa de entrada. Tabela 2 Empresas usurias do Edifcio Eldorado Business Tower. Figura 44 EBT: passarela elevada de ligao com Shopping Eldorado. Figura 45 Passarela: perspectiva do pedestre. Figura 46 Praa de entrada com espelho dgua. Figura 47 EBT em construo. Figura 48 Sequncia de montagem dos painis de fachada. Figura 49 Vista do espao interno do EBT. Figura 50 EBT: planta do trreo e pavimentos 1 a 3. Figura 51 Plantas dos pavimentos 4 a 10, 11, 12 e 13. Figura 52 Plantas dos pavimentos 14, 15 a 19, 20 e 21. Figura 53 Plantas dos pavimentos 23, 24, 25 a 31 e 32. Figura 54 Corte 1. Figura 55 Corte 2. Figura 56 Elevao 1: vista para a Marginal Pinheiros. Figura 57 Elevao 2: vista para o Shopping Eldorado. Figura 58 Elevao 3: vista lateral. Figura 59 Rochaver: maquete eletrnica do conjunto. Figura 60 Rochaver: projeto de implantao com paisagismo. Figura 61 Torres A e B, j concludas. Figura 62 Idem. Figura 63 Trreo. Figura 64 Hall de entrada: detalhe do pilar inclinado. Figura 65 Vista das torres com detalhe do paisagismo. Figura 66 Jardim do den. Figura 67 Paisagismo: espelho dgua. Figura 68 Detalhe. Figura 69 Cobertura: teto jardim. Tabela 3 Empresas usurias da Mable Tower do Rochaver. Figura 70 Vista a partir do pavimento tipo. Figura 71 Torres A e B: trreo e pavimento 2. 162 163 166 166 166 168 176 177 178 181 181 181 182 182 183 186 188 189 190 191 192 193 194 195 196 197 198 199 200 201 201 202 202 203 203 203 204 204 207 208 209 11. 17 Figura 72 Torres A e B: pavimentos 10, 11 e 18. Figura 73 Torres A e B: corte 1. Figura 74 Torres A e B: elevaes. Figura 75 Torres A e B: detalhe da fachada. Figura 76 Torre C: trreo e pavimento 2. Figura 77 Torre C: pavimentos 10, 20 e 32. Figura 78 Torre C: corte 1. Inclinao da fachada. Figura 79 Torre C: elevaes frontal e lateral. Figura 80 Torre D: planta pavimentos tipos. Primeiro e ltimo (2 e 7) Figura 81 Torre D: corte. Figura 82 Torre D: elevao 1. Figura 83 Torre D: elevao 2. Figura 84 Torre D: elevao 3. Os projetos do Eldorado Business Tower e do Rochaver Corporate To- wers foram gentilmente cedidos pelo escritrio Aflalo & Gasperini. As demais imagens foram retiradas da internet, com acesso pblico, com exceo das figuras 19 e 20, que so da Revista Habitat n5. As fontes das tabelas, grficos e mapas esto indicados individualmente. 210 211 212 213 214 215 216 217 218 219 220 221 222 12. 18 13. ..................................... ..................................... ..................................... ..................................... ..................................... Sumrio ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... Prlogo PARTE 1 Conjuntura Captulo 1 Introduo O Objeto Metodologia Captulo 2 Edifcios corporativos: a tipologia original 2.1 Antecedentes 2.2 Transformaes a partir da dcada de 1960 2.3 O capital fictcio 2.4 A arquitetura enquanto representao do fetiche-capital 2.5 O edifcio corporativo e seus usos PARTE 2 O ciclo de valorizao dos edifcios corporativos Captulo 3 Valorizao na circulao: as formas de financeirizao ligadas ao mercado imobilirio em So Paulo 3.1 O edifcio corporativo, o setor imobilirio e a financeirizao 3.1.1 Ativo fixo x ativo financeiro 3.1.2 Os Fundos de Investimento Imobilirio e os Certificados de Rec. Imobilirios 3.1.3 A abertura de capital das empresas do setor imobilirio no pas 3.2 O edifcio corporativo, a cidade e o poder pblico 3.2.1 As Operaes Urbanas Consorciadas e os CEPACs 3.2.2 A rede das chamadas cidades globais Captulo 4 A produo material dos edifcios corporativos 4.1 A materialidade dos edifcios corporativos 4.2 O trabalho dos escritrios de arquitetura envolvidos 21 27 30 37 43 43 50 56 64 73 81 84 85 88 94 103 104 110 115 115 124 ......... ......... ......... ......... ......... 14. PARTE 3 Projeto e contexto locais Captulo 5 As formas locais: as transformaes do moderno 5.1 A arquitetura moderna brasileira Paulistas e Cariocas 5.2 As contradies locais 5.3 A escola paulista enquanto mercadoria Captulo 6 Dois casos particulares 6.1 O Eldorado Business Tower 6.2 O Rochaver Corporate Towers PARTE 4 A formao do outro pelo capital Captulo 7 A forma do ornitorrinco 7.1 Uma nova configurao do mercado imobilirio brasileiro 7.2 A cpia imperfeita: funcionalidades locais 7.2.1 Por que se copia? 7.2.2 Para quem se copia? 7.2.3 Como se copia? Bibliografia 139 139 149 156 175 177 199 225 225 233 234 238 239 251 ......... ......... ......... ......... ......... ......... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... ....................... 15. 21 Prlogo Se uma decadente e tuberculosa amazona qualquer se pusesse durante meses, sem interrupo, no picadeiro de um circo, a dar voltas em crculo sobre um cavalo on- dulante, diante de um pblico incansvel, tangida por um chefe a vibrar implacvel seu chicote, com ela em cima do cavalo a soltar silvos, jogar beijos, rebolar as cadei- ras, e se essa brincadeira fosse continuada sob o ininterrupto fragor da orquestra e dos ventiladores, na direo de um futuro a se inaugurar cada vez mais cinzento, acompanhada por ondas de aplausos a decrescer e novamente crescer como autn- ticos martelos a vapor talvez um jovem espectador descesse ento correndo todos os degraus da longa escadaria, talvez ele gritasse em parem! por entre as fanfarras da sempre adequada orquestra. J que, no entanto, no assim uma bela dama, branca e vermelha, entra voando por entre os cortinados que orgulhosos lacaios abrem diante dela; o diretor, bus- cando sequioso seus olhos, resfolega em sua direo como um cozinho, ergue-a orgulhoso sobre o cavalo malhado, como se ela fosse sua neta predileta prestes a iniciar perigosa viagem: ele no consegue decidir-se a dar o sinal com o chicote; por fim, dominando-se, d o sinal com um estalo; boquiaberto corre ao lado do cavalo; segue com olhar penetrante os saltos da amazona; mal consegue conceber sua habilidade; procura aconselh-la com exclamaes inglesas; adverte furibundo aos palafreneiros que seguram os arcos para que prestem a mxima ateno; com as mos erguidas conclama, antes do grande salto mortal, que a orquestra faa siln- cio; e finalmente soergue a pequena do trmulo corcel, beija-a em ambas as faces e no lhe parece jamais suficiente qualquer ovao do pblico, enquanto ela mesma, nele apoiada, erguida na ponta dos ps e envolta em p, com os braos estendidos, a cabecinha inclinada para trs, procura partilhar sua felicidade com o circo inteiro j que isso assim, o espectador das galerias reclina o rosto no parapeito e, imerso na marcha triunfal como num sonho sombrio, chora sem saber. Franz Kafka Nas galerias (KAFKA: 1989, 109-110) 16. 22 Em 11 de setembro de 2001 o mundo parou para ver espetacularmente pela televiso os dois edifcios corporativos do World Trade Center em Nova Iorque serem atingidos por dois avies e depois desabarem. As Torres Gmeas, como eram chamados, faziam parte do carto postal da cidade: a representavam enquan- to imagem para o mundo. Esta imagem foi maculada naquele dia. Naquele ataque terrorista, uma mensagem ficava muito clara para os EUA e para todos: estamos em uma fase de desenvolvimento do capitalismo na qual o poder econmico das gran- des corporaes faz as vezes de poder poltico, e sua representao, nestes termos, no livre de um carter de responsabilidade social. No eram as empresas usu- rias do WTC-NY que estavam sendo atacadas: era o governo americano e sua po- ltica de expanso capitalista, que de forma direta no tinham relao alguma com o edifcio. No entanto, a representatividade da dominao mundial do pas estava, em parte, naquelas torres: elas sintetizavam a imbricao orgnica entre economia (capitalista) e poltica (liberal), carro-chefe utilizado estrategicamente pelos EUA na generalizao de seu poder. Era uma imagem de representao que era atacada, porm ali ficou muito claro que esta face de circulao imagtica tem um lastro ma- terial inexorvel: a morte de milhares de pessoas ficou como um marco deste fato. A escolha, neste trabalho, de analisar os edifcios corporativos presentes na realidade paulistana, vem da constatao exposta pelos terroristas no referi- do ataque de que, na fase de desenvolvimento do capitalismo que nos encontra- mos, economia e poltica no so momentos diversos, mas conformam uma nica realidade. A fora com que esta unio que no atual se d hoje vem de um fenmeno que aperfeioado pelo capitalismo: a generalizao do consenso e da naturalidade do sistema. Aps a queda do Muro de Berlim e avano do neolibe- ralismo, este cenrio consensual tomou formas ainda mais autoritrias, coroadas atravs da financeirizao do sistema. A arquitetura tem consolidado esta unio, atravs principalmente da conformao da representatividade do capital presente nos edifcios corporativos. A suposio de pesquisa de que a presena cada vez mais marcante des- ta tipologia em solo local com certeza traria elementos importantes para o enten- dimento da relao do pas com o sistema mundial econmica e politicamente. Alm disso, as maneiras especficas pelas quais a arquitetura atua como agente deste processo algo marcante e talvez aponte para importantes aspectos de recon- figurao da profisso. A tarefa empreendida seria ento buscar, a partir da arquite- tura, elementos de verdade do processo social em curso, na tentativa de descrever com maior proximidade a posio do pas no mesmo, a fim de se movimentar poltica e profissionalmente com mais clareza. No entanto, a anlise dessa arquitetura trouxe consigo dificuldades pr- prias. O ato de analisar um objeto que se relaciona com a criao artstica trazia uma questo fundamental: como abarc-lo se ele, embora se relacione, no arte? O objeto especfico deixava isso ainda mais em evidncia: produzido como mercado- 17. 23 ria, com funo bem definida, ele trazia uma realidade na maioria das vezes muito distante da artstica. O impasse estava colocado: como analisar uma mercadoria especial, que tem na sua forma um momento fundamental de sua existncia? A me- todologia trazida pelo campo das artes no era suficiente e, por outro lado, eram igualmente deficitrias aquelas que despiam o objeto deste aspecto. O campo pr- prio da arquitetura, em grande parte das vezes, faz escolhas frente s diversas faces apresentadas por ela: na maioria dos casos (viso dominante nas principais revistas internacionais), ela tratada como arte, e nesta revelando-se a conformao especfi- ca de determinados materiais e tecnologia. Pouco se discute a respeito do seu uso e quase nada a respeito de seu carter de mercadoria, fruto do processo de produo. A visada para o objeto apresentada neste trabalho busca, na medida do possvel, que todas estas faces do mesmo estejam no apenas presentes, mas se autoconformando num processo que acreditamos ser nico. Esta viso se apoia principalmente na teoria marxiana e nos autores que adotaram a dialtica como forma de entendimento da realidade entre eles, muitos relacionados direta ou indiretamente Escola de Frankfurt. Acreditamos que esta maneira de encarar o objeto aquela que mais se adequa, no caso, ao entendimento desta arquitetura. Por meio dela possvel que as vrias faces do objeto como uma constelao possam ter coeso interna e falarem ao observador a respeito do processo social em curso. Assim, buscamos elaborar um conjunto de procedimentos voltados elucidao da concretude deste objeto. No se trata, neste caso, de desvelar sua forma aparente, mas sim de, ao apontar suas diversas faces se relacionando de ma- neiras interligadas, definir a materialidade deste objeto arquitetnico em sua com- plexidade. Nesta, aparncia e essncia so faces diversas de uma mesma realidade, agindo no processo social enquanto tal. O aspecto superestrutural da arquitetura entendido como um dos agentes da realidade social, que, desta forma, se mo- vimenta de fato a partir de mistificaes. Estas, nesta perspectiva, no so um aspecto suprfluo e descartvel do entendimento do processo social: so funda- mentais, pois tambm atravs delas que ele se conforma. A especificidade desta conformao social interessa aqui, particularmente o lugar ocupado pelo Brasil na organizao sistmica. Na anlise local, teve particular importncia a escuta para as contradies que apareciam na observao de todo o processo descrito. Enquanto estas contradi- es eram entendidas como acidentais, o objeto no conseguia se apresentar como relevante. No entanto, quando estas contradies puderam aparecer em toda a sua fora, os resultados no tardaram, e algumas hipteses puderam ser levantadas ao final do trabalho assinalando a natureza especfica da dissertao. Este fato ressalta a urgncia da necessidade de um aprofundamento maior nas pesquisas relacionadas ao entendimento do pas na sua posio deslocada frente ao centro do sistema. Elas podem contribuir, de maneira incisiva, na atuao frente a esta reali- dade que se impe cada vez mais consensualmente e que tem uma maneira prpria 18. 24 de funcionamento em solo local. O entendimento dos mecanismos deste funciona- mento que passam inevitavelmente pela compreenso econmica da realidade so estratgicos para esta atuao, porm so apenas uma parte do processo. necessrio, de maneira conjunta, que as consequncias polticas do mesmo sejam mais aprofundadas para que uma atuao mais efetiva possa ocorrer. Deixamos este espao aberto e ansiamos por outras contribuies, sobretudo no campo da prxis, que felizmente no cabe nestas pginas. 19. PARTE 1 Conjuntura 20. 27 Captulo 1 Introduo Os antigos construram Valdrada beira de um lago com casas repletas de varan- das sobrepostas e com ruas suspensas sobre a gua desembocando em parapeitos balaustrados. Deste modo, o viajante ao chegar depara-se com duas cidades: uma perpendicular sobre o lago e a outra refletida de cabea para baixo. Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda, porque a cidade foi construda de tal modo que cada um de seus pontos fosse refletido por seu espe- lho, e a Valdrada na gua contm no somente todas as acanaladuras e relevos das fachadas que se elevam sobre o lago mas tambm o interior das salas com os tetos e os pavimentos, a perspectiva dos corredores, os espelhos dos armrios. Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus atos so simultaneamente aquele ato e sua imagem especular, que possui a especial dignidade das imagens, e essa conscincia impede-os de abandonar-se ao acaso e ao esquecimento mesmo que por um nico instante. Quando os amantes com os corpos nus rolam pele con- tra pele procura da posio mais prazerosa ou quando os assassinos enfiam a faca nas veias escuras do pescoo e quanto mais a lmina desliza entre os tendes mais o sangue escorre, o que importa no tanto o acasalamento ou o degolamento mas o acasalamento e o degolamento de suas imagens lmpidas e frias no espelho. s vezes o espelho aumenta o valor das coisas, s vezes anula. Nem tudo o que parece valer acima do espelho resiste a si prprio refletido no espelho. As duas cidades gmeas no so iguais, porque nada do que acontece em Valdrada sim- trico: para cada face ou gesto, h uma face ou gesto correspondente invertido ponto por ponto no espelho. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se nos olhos continuamente, mas sem se amar. Italo Calvino, As cidades e os olhos - I (Calvino: 2007, 53-54) Espelho: (etimologia) lat. speclum,i espelho, vulg.; cp. espculo; ver espec- e espelh-; f.hist. sXIII espello, sXIV espelho, sXV spelho (Dic. Houaiss) Espetculo: (etimologia) lat. spectaclum,i vista, aspecto, chamar a ateno pblica, jogos pblicos, espetculo, der. de spectre olhar, observar atentamente, contemplar; ver espec-; f.hist. 1548 spectaculo, 1567 espectaculo, a1595 expectaculo (Dic. Houaiss) Espec: antepositivo, de uma raiz i.-e. *spek- olhar com ateno, contemplar, observar, representada em lat. sob as f. spec, spic (por apofonia) e spect (com alongamento por t), (Dic. Houaiss) 21. 28 Enormes prismas de vidro, que se destacam no horizonte urbano como objetos conscientemente dispostos. So brilhantes como cristais, geometricamente compostos, seja em ngulos seja em forma redonda. Ao se aproximar, percebe-se que possvel entrar no objeto. A entrada permanentemente protegida por segu- ranas devidamente equipados, balco de identificao e catracas. Logo aps estas, portas metlicas, muitas. O piso de granito ou mrmore polido, em grande parte das vezes formando desenhos com coloraes diversas. As paredes so transparen- tes em vidro. O p-direito do ambiente muito alto, superando os sete metros. O espao bastante amplo e desocupado de pessoas e coisas com exceo das c- meras de vdeo certeiramente apontadas. Parece espao desperdiado, intil, pois no usado. Se o visitante est bem vestido, se identifica e aprovado, bastante bem recebido pelos diversos funcionrios que esto neste local. As portas se abrem automaticamente, aproximao do visitante, ou ento so espcies de prismas estrelados giratrios, onde apenas uma pessoa entra ou sai por vez. Atrs do alto balco e suas respectivas balconistas maquiadas atrs de telas e cmeras h um qua- dro enorme, com linhas, onde esto escritos nomes, sequenciados por nmeros, no por ordem alfabtica. No so de pessoas. Estes nomes muitas vezes se repetem nas linhas seguintes. A organizao parece aleatria. Algumas linhas esto vazias h nmeros sem nomes. Antes das catracas o espao parece pblico: pode-se andar e observar. At a porta de entrada, a distncia percorrida desde a rua est desimpedida. Algumas escadas, talvez algum jardim ou fonte de gua, acompanhados dos respectivos se- guranas, seus rdios e gravatas. O visitante pode ficar parado. No fazer nada. No por muito tempo: logo um segurana vem abord-lo questionando sobre sua atitude estranha, num lugar de livre acesso sem nada a fazer. No permitido fo- tografar. Se no h um bom motivo para utilizar as portas disponveis um afazer ou uma autorizao tambm seu uso vetado. O ambiente de constrangimen- to, principalmente pela presena ostensiva dos seguranas e balconistas, todos em seus uniformes, ligados comunicao central do grande objeto. Todos eles dizem estar apenas representando outrem, cumprindo ordens. No se sabe quem ou o que seja a comunicao central. Ou quem eles representam. Ali apenas se devem cumprir as regras dadas pelo rgo central. O visitante est sendo observado, e tem plena noo deste fato, embora no veja seus observadores. Embora o p-direito deste primeiro ambiente seja bastante alto, no sufi- ciente para justificar o tamanho do grande objeto visto externamente. Onde estaria o resto do seu corpo? Nada naquele espao indica que se esteja embaixo de uma grande massa. Ali s se v o balco e portas: a que o visitante entrou, e as outras, metlicas, que se abrem automaticamente de tempos em tempos. Esta abertura antecedida por uma leve campainha e iluminao de setas localizadas em cima das portas, apontando para cima e para baixo. De forma aparentemente aleatria, estas setas se iluminam, ora uma, ora outra. Ao lado das portas, uma pequena central 22. 29 de botes. Ao se aproximar destas portas, elas apenas abrem aps pressionar os botes. Dentro delas, apenas um espao minsculo, rodeado de espelhos. Se os bo- tes de fora j tinham nmeros, dentro no h nada a no ser uma televiso na qual passam imagens soltas, informaes rpidas. Se o boto externo era nico, dentro esto os nmeros outros botes. Algumas vezes h uma pessoa sentada na frente destes botes: ao falar para ela determinado nmero, esta o aperta. Apertando-o, a porta se fecha. Quando abre novamente, o espao de fora do cubculo no mais o mesmo de antes. Mas ainda no se esgotou o espao de entrada voltemos a ele. Ao lado da porta de entrada de pedestres, percebe-se outra entrada aber- ta, porm bem maior, com inclinao para o subsolo do objeto. Observa-se a entra- da e sada constante de veculos particulares daquele buraco. Os carros entram e as pessoas no saem sem eles. Ao se aproximar e descer pelo buraco, o visitante v que os carros so deixados logo no final daquela rampa, num balco diferente daquele do andar superior (um pouco mais simples). Neste balco novamente os procedi- mentos de identificao, catracas, passagem direta mediante algum gesto especfico passagem de carto de diversas maneiras, apresentao do dedo polegar a uma mquina brilhante etc. Neste ambiente, surge um novo funcionrio-representante que rapidamente troca de lugar com o motorista e sai dirigindo o seu carro para dentro daquele espao. O motorista segue em direo ao balco ou catraca. O am- biente bem diferente do anterior. Piso spero e escuro, pintado com indicaes de trnsito. Muitos pilares, nenhum revestimento. O p-direito extremamente baixo, e tubulaes coloridas passam junto ao teto. No h janelas. H poucas pessoas e muitos, muitos carros. Neste horrio eles esto todos parados, um ao lado do outro, em alguns momentos uns na frente de outros, impedindo sua passagem. Em outros horrios, uma grande quantidade deles sai ao mesmo tempo, causando trnsito dentro deste espao, antes de chegar novamente rua. Algumas das vagas tm sm- bolos que indicam que ali s podem estacionar veculos cujos condutores tenham alguma preferncia deficincia fsica ou eficincia hierrquica. Aps as catracas, novamente as portas metlicas, novamente se chega em um novo lugar. Ali, mais um balco com sua respectiva recepcionista. O p-direito sim- ples, porm os revestimentos indicam um ambiente to luxuoso e seguro quanto a entrada. A combinao do p-direito simples visto no lugar dos carros com as su- perfcies faustosas da entrada sem uso parece indicar um tipo diferente de estacio- namento. Ali esto estacionadas pessoas. Em vez das indicaes no piso, mesas que encerram pequenos cubculos com cadeiras giratrias e computadores. Cada pes- soa fica na frente de um computador chegam, sentam, e trabalham o dia todo na frente deles. H tambm telefones e outras mquinas. Voltamos a ter janelas. Elas agora so corridas, ao longo de toda a parede (so paredes ou janelas?). Percebe-se finalmente, ao olhar para o lado externo, onde se encontra: dentro do grande objeto, nas suas alturas. estranho pensar que agora voc o observador cujo observado no v. 23. 30 Do lado de fora se estende uma ampla paisagem urbana. Prdios, casas, ruas, rios, pessoas, praas. Padres diferentes de ocupao. Est tudo ali aos seus ps. A paisagem, que no faz parte daquele lugar, parece engrandec-lo. Ela do- minada por ele, para lhe servir de cho. Ali de cima ela parece bem domesticada, enquadrada, limpa. Parece at silenciosa, pois as janelas so paredes transparentes. Percebe-se que o ar artificial. Se fosse um quadro, a paisagem? Talvez no servisse ao que veio. O real aparece, finalmente, porm como imagem dominada, fixa. 1.1. O objeto O aparecimento de edifcios corporativos marcantes na paisagem e os- tensivos no estilo um fenmeno relativamente recente na cidade de So Paulo. Acompanhando-os, a verticalizao dos prdios de apartamentos, cada vez mais luxuosos e personalizados, mostra-se como tendncia de desenvolvimento dos bairros mais valorizados, principalmente no vetor sudoeste da cidade. Estas ten- dncias, pautadas pelo mercado imobilirio e em larga medida incentivadas ati- vamente pelo poder pblico, tornaram-se as maneiras dominantes de crescimento urbano na cidade legal. E, com o aquecimento do mercado imobilirio, o valor da terra urbana aumenta, deixando o seu acesso cada vez mais restrito. As consequ- ncias deste processo ficam latentes: populao pobre expulsa e uma segregao espacial que chega a ter requintes de violncia social. As tendncias de valorizao e segregao espacial do setor sudoeste no so fenmenos novos, pelo contrrio, fazem parte da histria da cidade. O que novo a forma como tem se consolidado. Esta nova forma data da dcada de 1990 (tendo pouco mais de 15 anos), e tem como principal caracterstica a promoo ativa e consciente de uma paisagem que se quer globalizada, rica e ostensiva. Os edifcios corporativos so os principais agentes espaciais da transfor- mao material desta paisagem. Sua primeira forma, o edifcio comercial em altura, aparece como tipologia isolada e marcante no tecido urbano de So Paulo na dca- da de 1920, com o Edifcio Sampaio Moreira (1924, na Rua Lbero Badar). Em estilo ecltico, com projeto de Samuel das Neves e Christiano Stockler das Neves1 , este edifcio de apenas 14 andares foi criticado pelo excesso de altura (GERODETTI: 1999). A partir de ento, os edifcios em altura, principalmente de uso comercial, co- meam a se destacar um atrs do outro, acompanhando e dando cara ao desenvol- vimento industrial da cidade. O uso comercial, nestes edifcios, assemelha-se aos pequenos edifcios de salas comerciais de hoje: com os pavimentos todos divididos em salas de diferentes tamanhos, feitas para o uso de pequenas empresas, profissio- nais liberais, usos institucionais etc. A forma de propriedade destes espaos podia variar, do aluguel propriedade privada, sendo esta preponderante. J em 1929 1. Fundador, em 1947, da primeira escola de arquitetura da cidade, no Colgio Mackenzie. Mais detalhes, ver Captulo 5. 24. 31 inaugurado (apenas com 14 andares) aquele que foi o maior edifcio da Amrica Latina, o Edifcio Martinelli, com 1.267 dependncias entre o uso residencial e co- mercial, com 30 andares concludos em 1934. Em seguida, outros dois cones da pai- sagem paulistana: o Edifcio do Mappin (1939, 14 andares) e j na dcada de 1940 o Edifcio Altino Arantes (mais conhecido como Edifcio do Banespa, inaugurado em 1947, com 35 andares em estrutura de concreto a maior do mundo naquele momento). Estes ltimos foram construdos como sedes de seus proprietrios, em- prestando s respectivas marcas um carter imagtico e de participao na histria da cidade de grande longevidade prova disso que ambas as empresas foram compradas por outras, mas os edifcios permanecem sendo chamados e relaciona- dos s marcas anteriores. Esta tipologia, como demonstram os exemplos destes edifcios predeces- sores, se subdivide em dois grandes grupos, com caractersticas diversas. O primei- ro, ligado ao uso comercial de pequenas propores, permanecer at os dias de hoje, sofrendo modificaes estticas e projetuais que acompanham o desenvolvi- mento arquitetnico. No entanto, sua funo seja como espao de uso, seja como mercadoria permanece praticamente a mesma, se modificando apenas a relao entre o usurio e a propriedade do seu espao de trabalho: este usurio, que antes era o proprietrio do local, passa a alugar de outrem. Porm, sendo extremamente subdividido internamente, o edifcio entendido como forma de renda para o pe- queno investidor, que compra uma sala para alugar atravs de um contrato entre particulares no qual no interfere o condomnio. Ou seja, o edifcio como um todo no est, na maioria das vezes, nas mos de um nico investidor, mas de vrios. O construtor, portanto, o construiu para a venda. O aluguel se d de maneira secund- ria. Tanto a insero urbana quanto a tcnica construtiva dos edifcios deste grupo so bastante limitadas. Urbanisticamente, estes edifcios procuram sempre aproveitar ao mximo a regulamentao do zoneamento local (recuos, altura, sub- solo etc.), independente do resultado de insero na cidade. Assim, esto voltados para o mximo de rendimento direto possvel, ou seja, maior quantidade de sa- las para a venda. Raramente h comrcio no trreo, que acaba se resumindo, na maioria das vezes, entrada do estacionamento e recepo, com fechamento do lote no seu limite com a rua. necessrio, antes de entrar no lote, ainda na rua, se identificar, pois o porto permanece quase sempre fechado. Neste sentido, a inser- o urbana se parece muito com os condomnios residenciais disposio que se espelha internamente, na quantidade e relao de condminos. Construtivamente, a lgica do maior ganho para o construtor permanece. Como se trata a priori de uma mercadoria para a venda, pode-se entender o edifcio como fonte principalmente de lucros advindos da sua construo. As rendas dos aluguis outra forma de rendimento possvel desta mercadoria so decorrncias que podem ou no ocor- rer, em maior ou menor escala dependendo do edifcio (mais uma vez, uma lgica 25. 32 parecida com a dos edifcios residenciais). Assim, sua construo no leva, predo- minantemente, este fator em considerao. Em decorrncia, as tcnicas construtivas so aquelas que mais possam incrementar os lucros do construtor. As estruturas so mais pesadas, ocorrendo inclusive a alvenaria estrutural revestida de vidro ou alumnio para disfarar. So tcnicas que utilizam grande quantidade de mo de obra, com materiais mais baratos. As aberturas (janelas), pelo programa mesmo do edifcio (vrios escritrios pequenos), so numerosas e individualizadas, com dife- renas entre reas molhadas e sociais. Esta caracterstica pode ou no aparecer na fachada: na maioria das vezes, para que o edifcio se parea mais com os do segundo grupo (que descreveremos em seguida), os revestimentos externos desenham a fachada sem considerar exatamente as aberturas e fechamentos reais, dando maior continuidade a eles. A aparncia externa de caixilhos corridos, fachada livre etc., caractersticas estas que no refletem o espao interno. So projetos, afinal, de porte mediano, que envolvem uma quantidade de recursos possvel para as construtoras e investidores locais, que podem contratar escritrios de arquitetura diversos, sem uma qualificao e tradio muito grandes para tanto. A qualidade arquitetnica, portanto, no das melhores, sendo estes edifcios normalmente caracterizados como simples mercadorias comerciais, de gosto quase sempre duvidoso2 . O segundo grupo da tipologia dos edifcios comerciais, no qual se inclui o Edifcio do Banespa, so de edifcios de grandes propores, quase sempre sedes de grandes empresas. Diferenciaremos este segundo grupo denominando estes edif- cios de Corporativos, por se tratar de uma tipologia ligada s corporaes. Historica- mente, eles foram construdos com capital prprio das empresas que os utilizariam como sede. Estes edifcios podiam ser considerados capital constante da empresa (aquela parte do capital adiantado pelo capitalista que se resume em trabalho morto, ou seja, anteriormente trabalhado e que se apresenta na produo imediata como material de base para a produo, a includos o espao de trabalho, as mquinas, a matria-prima etc.). Ainda como capital constante, estes edifcios eram a parte do capital que pode ser entendida como fixa, ou seja, como meio de produo, no soma seu valor total na mercadoria produzida, a no ser como desgaste, diferen- te da matria-prima, que inteiramente transformada na produo e acrescenta seu valor mercadoria final (MARX: 1983). Assim, estes edifcios faziam parte do capital da empresa, do seu patrimnio, como ativo fixo3 . Esta tipologia, o Edifcio Corporativo, aquela que nos ocuparemos neste trabalho, e veremos no segundo captulo como esta caracterstica da sua constituio enquanto ativo fixo se mo- difica historicamente. 2. Existem excees a esta descrio, realizadas por arquitetos importantes e construtores com viso diferenciada, porm so produes escassas e que no tem expressividade para caracterizar a tipologia enquanto mdia. 3. Ativo, aqui, pode ser entendido como uma parte do patrimnio, ou capital, da empresa. Fixo pelo fato de ser congelado, ou seja, deixar de funcionar como valor que retorna produo e que, portanto, participa da valorizao do capital. Ele retirado da circulao, e contabilizado pela empresa como uma parte de seus ativos que permanece sempre o mesmo, entesourado. 26. 33 O programa destes edifcios bastante diverso do grupo anterior. Trata-se de uma grande empresa, com muitos funcionrios e atividades diversas e, portan- to, a escala aqui significa uma mudana qualitativa significativa. Diferentemente da pequena empresa, que tem uma organizao e, portanto, uma estrutura hierr- quica claramente identificvel (inclusive se pode reconhecer pessoalmente o dono, ou os donos), na grande empresa isso no possvel. Os trabalhadores, aqui, no reconhecem mais o representante do capital, pois este est diludo na estrutura, que parece se movimentar sozinha. Esta caracterstica se reflete tanto na planta do pavi- mento tipo quanto na insero urbana, nas tcnicas construtivas, nos trabalhadores envolvidos, enfim, na forma mesma do objeto. Trata-se de um fenmeno diferencia- do, que tem se destacado cada vez mais na paisagem e conformando-a segundo sua prpria lgica. Embora o Edifcio do Banespa, primeiro exemplar paulistano desta tipolo- gia, seja datado do final da dcada de 1940, a produo da mesma no foi contnua a partir de ento. necessria uma soma de recursos muito grande para a cons- truo de edifcios como estes e, com economia instvel e mercado fechado para o capital externo, rarssimas empresas nacionais poderiam fazer isso. Na dcada de 1950 cresce o centro da cidade de So Paulo atravs, principalmente, de edifcios comerciais stricto sensu, que comeam a tomar tambm a Av. Paulista, porm com um porte ainda pequeno se comparado ao Banespo. apenas na dcada de 1960 e principalmente na de 1970 que a tipologia ganha novos exemplares4 , de empresas internacionais (como a Nestl e a IBM) que passam a ter sedes locais, bancos etc. Nesta poca, os edifcios comerciais, no corporativos, ganham tambm dimenso diferenciada, em alguns casos se aproximando dos corporativos com a ocupao de mdias empresas. Porm a partir da dcada de 1980, e principalmente na de 1990, que esta tipologia ganha uma escala de insero urbana diferenciada em So Paulo, confor- mando grandes reas e se tornando um fenmeno urbano que deixa de ser isolado (na materialidade de seus parcos exemplares) para se tornar socialmente relevante, conectando diversos setores da economia, da poltica e da cultura. A sua presena se tornou incisiva principalmente nos centros financeiros da metrpole: de maneira ainda relativamente isolada no centro da cidade, marcante na regio da Av. Paulis- ta, j conformando um sistema na Av. Faria Lima e, por fim, de maneira violenta, reconfigurando completamente o tecido e a representao urbanos na regio da Av. Lus Carlos Berrini. Esta presena urbana diferenciada, e indica algo a respeito da configurao econmico-social do pas. Compreendendo que o edifcio corporativo carrega consigo uma configurao de relao com o capital diferenciada seja en- quanto mercadoria, local de trabalho ou situao urbana parece ser importante o aprofundamento do entendimento sobre este fenmeno quando se busca a melhor caracterizao da situao brasileira no cenrio global. 4. O aprofundamento deste sumrio histrico, com alguns exemplos, foi desenvolvido no quinto captulo. 27. 34 Urbanisticamente, o edifcio corporativo se relaciona com a cidade de ma- neira mais enftica do que o edifcio comercial. Colabora para isso o fato de que a representao das grandes empresas fator determinante na valorizao de seu capital atualmente5 . O edifcio corporativo funciona, neste aspecto, como presena urbana, face pblica de seus usurios. necessrio, portanto, que a imagem do edi- fcio na cidade seja o espelho da colocao mundial das empresas que o utilizam. Da sua imponncia, altura, revestimentos aparentemente luxuosos etc. Na sua re- lao imediata com a rua, este edifcio pretende ser uma parte da cidade: o lote aberto, pode-se caminhar dentro dele e muitas vezes h a proposio explcita que se faa isso, atravs de trreos comerciais, jardins pblicos, conexes virias pe- donais ou at mesmo veiculares. A entrada no corpo do edifcio propriamente dito livre (normalmente com portas automticas), e s h constrio com identificao na entrada para os elevadores. Embora parea pblico, aberto e livre, toda a rea vigiada e de propriedade privada. Construtivamente, ele requer tecnologia diferenciada das tcnicas mais tradicionais. Diferente da alvenaria estrutural que necessita mo de obra espe- cializada e quase artesanal ou da estrutura em concreto simples, de pequenos vos entre pilares, fechados externamente com alvenaria simples depois revestida, esta tipologia requer alguma sofisticao, pois sua estrutura (cada vez mais) central com grandes vos e fachada que encobre a estrutura perimetral. O pano de laje tem grandes dimenses, sem pilares, quase sempre com piso elevado para a passagem das redes (infraestrutura e comunicao). A disposio dos ambientes internamente flexvel, se adequando ao cliente e as suas mudanas. H especifi- cidades programticas que levam maior especializao seja das equipes de traba- lho, seja dos projetistas: heliponto, grandes estacionamentos, subsolos profundos, ar-condicionado central, redes de informao especiais, elevadores inteligentes, fachadas pr-fabricadas etc. Em relao sua arquitetura, o edifcio corporativo, como qualquer ti- pologia, tem exemplares diferenciados: se, por um lado, h a chamada escola paulista6 , tambm em So Paulo que a chamada modernizao conservadora (SCHWARZ: 1978-1999-2007) se desenvolveu a largos passos. No parece surpre- ender seus habitantes a coexistncia na paisagem urbana de edifcios neoclssicos, de exemplares da arquitetura de autor (como a de Ruy Ohtake) e edifcios que trazem em suas linhas reminiscncias do moderno, se alinhando com os expoentes da arquitetura internacional. criado um cenrio nico (com raras excees em outras capitais do pas) no qual a miscigenao e reproduo de estilos so o trao caracterstico. Este estudo se deter nos exemplares nos quais possvel observar a fi- liao ao moderno. Este recorte tem como pressuposto que a anlise deste obje- 5. Veremos esta questo em maior detalhe ao longo do trabalho. 6. Caracterizaremos com maior detalhe esta escola no quinto captulo. 28. 35 to especfico, pela sua dimenso histrica associada formao local e nacional, carrega consigo elementos contraditrios importantes para o objetivo do trabalho. Esses elementos conformam um objeto complexo no qual, acreditamos, seja poss- vel visualizar algo a respeito da nossa condio sob o capital hoje. Neste sentido, um objeto que, nestes termos, assume relevncia, algo que outros exemplares no alcanariam. Trata-se, enfim, da anlise de uma arquitetura bem recortada e que pou- cos escritrios de arquitetura do pas fazem atualmente principalmente por conta do porte necessrio. Particularmente, como tambm nos interessa fazer um estudo comparativo de pocas diversas, este arcabouo diminui ainda mais, pois so pou- cos os escritrios que perpassaram os ltimos 40 anos com as mesmas pessoas na equipe. Alm disso, rever a trajetria histrica da linha moderna da escola pau- lista no seu atual desdobramento de mercado importante no entendimento da especificidade da insero do capital na periferia do sistema. Escolhemos dois escri- trios, praticamente os nicos que se encaixam nestas especificaes, para analisar sua produo dentro da tipologia de edifcios comerciais: Botti Rubin7 e Aflalo & Gasperini8 . Ambos os escritrios tm vasta produo arquitetnica desde a dcada de 1960, em diversas tipologias. Sua filiao claramente moderna, principalmente nos projetos iniciais, que compuseram em parte o chamado brutalismo paulista9 . No entanto, chama a ateno particularmente a produo destes dois escritrios na rea da tipologia comercial: nos sites10 dos mesmos, nos quais esto listados apenas os principais projetos, h 41 edifcios comerciais realizados em So Paulo pelo escritrio Aflalo & Gasperini, e 26 pelo Botti Rubin. Dentre estes projetos, al- guns se destacam definitivamente na paisagem urbana, particularmente o Centro Empresarial Naes Unidas, do Botti Rubin (projeto de 1989, construo de 1991, com 13.790,00 m) e, do Aflalo & Gasperini, prdios marcantes como a Sede da IBM (1974), e mais recentemente a Torre Eldorado e o Rochaver (ainda em construo). Os dois escritrios so considerados, hoje, os principais projetistas de edifcios co- merciais em So Paulo. Para a anlise dos projetos especficos, deve-se levar em considerao que os edifcios comerciais de mdio porte j se assemelham, em alguns aspectos, aos 7. A Botti Rubin inicia suas atividades em 1956, com a associao dos arquitetos Alberto Botti e Marc Rubin. Ambos continuam at o presente momento como diretores do escritrio. 8. O escritrio Aflalo & Gasperini nasce em 1962, a partir do concurso da UIA para o edifcio da Peugeot em Buenos Aires, no qual o escritrio ganhou o primeiro prmio. Neste concurso se associam o arquiteto Gian Carlo Gasperini e os arquitetos associados Plnio Croce e Roberto Aflalo. Com o falecimento de Croce (1984) e Aflalo (1992), entram para a sociedade os arquitetos Roberto Aflalo Filho e Luiz Felipe Aflalo Herman. Segundo reportagem no Jornal O Estado de S. Paulo (Os senhores dos grandes prdios, 29 de outubro de 2009), o escritrio j produziu 1.222 prdios (entre as diversas tipologias, a maioria em So Paulo), num total de 5,7 milhes de metros quadrados. 9. Mais detalhes deste movimento no quinto captulo. 10. www.aflaloegasperini.com.br e www.bottirubin.com.br, acessados em 9 de junho de 2010. 29. 36 corporativos: sua fachada procura ocultar as divises internas (que ainda existem) e o lote pouco mais aberto (porm ainda predominantemente sem rea comer- cial). Em alguns momentos recorreremos a elementos que so mais evidentes em edifcios deste porte, sem que isso prejudique a anlise. Os edifcios especficos que iremos trabalhar sero apresentados principalmente na Parte 3, porm aparece- ro, enquanto uma forma determinada historicamente, ao longo de todo o trabalho. Iniciaremos, no segundo captulo, apresentando esta forma dos edifcios corporativos de maneira histrica, tomando seu modelo original. Como ela aparece e quais as suas determinaes enquanto parte do processo de reproduo do ca- pital. A partir da, descreveremos as mudanas ocorridas com o marco do final da dcada de 1960, que atingiram todo o mundo ocidental. A tipologia dos edifcios corporativos, como parte destas transformaes, muda de figura: sua posio como agente do processo de valorizao acarreta mudanas tambm na sua forma e na sua utilidade especfica para o sistema. Com a transformao dos seus usos, a arquitetura ganha novos papis. A Parte 2 tem como foco, j no contexto paulistano, a caracterizao do ciclo de valorizao dos edifcios corporativos entendido como material primrio da sua forma. Primeiramente, veremos no terceiro captulo que ela uma forma do capital relacionada ao urbano muito especfica e importante na reconfigurao da cidade a partir do marco da abertura de mercado do pas nos anos 1990. Atravs dela possvel analisar o processo pelo qual o Brasil, a partir da sua principal capi- tal produtiva, se submeteu globalizao e ao neoliberalismo, e as consequncias disso no urbano sem esquecer que, inclusive, este faz parte ativa da estratgia de insero da lgica de reproduo do capital na sua fase desenvolvida. As maneiras especficas de circulao desta mercadoria estaro sendo determinadas momento no qual, veremos, ela funciona como capital. Assim, o terceiro captulo procurar definir o edifcio corporativo enquanto mercadoria especial relacionada ao urbano e valorizao do capital elementos fundamentais, pois determinam sua existncia. O quarto captulo se deter na materializao do edifcio, focada prin- cipalmente em dois aspectos: sua constituio enquanto obra civil que organiza determinado espao til a considerados as tcnicas, os materiais e o programa arquitetnico e, no campo projetual, o trabalho dos arquitetos que se detm na elaborao de tal objeto. Com esta panormica, poderemos buscar nos processos mais relacionados produo do objeto em questo: se no neste momento que a mercadoria proporciona os principais ganhos, ele fundamental como formador de valor e do mais-valor, base para a reproduo do capital que ganha outros con- tornos na circulao11 . Veremos como estes aspectos, colocados em segundo plano quando se analisa o fenmeno j em circulao, so de extrema relevncia para o entendimento dos processos que o estruturam. 11. A especificidade da valorizao tambm na circulao, e no apenas na produo, um pro- cesso ligado s formas desenvolvidas do capital fictcio, que sero descritas no segundo captulo. 30. 37 Considerados estes elementos, a Parte 3 buscar esclarecer o fenmeno nos seus exemplos localizados. Para tanto, no quinto captulo ser apresentada a lo- calizao histrica do iderio arquitetnico que baliza a materialidade destes edif- cios. Sero retomadas as origens do modernismo paulistano suas especificidades e idiossincrasias para depois se entender as suas transformaes e adequaes ao capitalismo at a situao presente. Neste nterim, a produo em edifcios corpo- rativos dos j citados escritrios de arquitetura ser delimitada e analisada. Para finalizar a compreenso do objeto, descreveremos em detalhe, no sexto captulo, dois exemplos de edifcios que conformam cada um uma especificidade do cenrio at ento apresentado: o primeiro, o Eldorado Business Tower, de ideao e concre- tizao via capital local; e o segundo, o Rochaver Corporate Towers, com predo- minncia do capital estrangeiro. Ambos foram projetados pelo escritrio Aflalo & Gasperini. A anlise destes dois casos especficos ser importante quando os com- paramos com o exemplo do Centro Empresarial Naes Unidas (CENU), analisado por Mariana Fix (FIX: 2007) e entendido pela autora como edifcio emblemtico do que consideramos a primeira fase de insero de uma nova lgica de funciona- mento do capital imobilirio no pas. No stimo captulo, na Parte 4, o edifcio corporativo e todas as suas determinaes j apresentadas sero material para a compreenso do modo especfico de existncia do pas na sua verso paulistana sob o capital globalizado atual- mente. Veremos como, a partir da materialidade da nossa produo e das maneiras pelas quais a inserimos nas redes de circulao internacional, constitumos uma especificidade dentro do sistema global que deve ser melhor caracterizada para que possamos produzir dentro dela tendo em vista suas contradies e, portanto, suas potencialidades. 1.2. Metodologia Para que se possa entender este objeto luz da situao atual brasileira sob o capitalismo, necessrio abord-lo de maneira sistemtica, porm comple- xa. So diversas camadas de compreenso sobrepostas, que se articulam e comple- mentam. Para que estas camadas sejam coerentes e, na sua articulao, possam dar corpo ao objeto tal qual pede a anlise de arquitetura, buscamos o conceito de forma desenvolvido por Theodor W. Adorno para o campo das artes. importante, antes de tudo, marcar a diferena do objeto arquitetnico para o artstico: realizada enquanto mercadoria e espao de uso, com determinada funo, a obra de arquitetura no arte stricto sensu. A complexidade dos elementos que a determinam tornam a sua anlise bastante trabalhosa, e muitas vezes falha por desconsiderao ou privilgio de algum destes elementos. O conceito de forma de Adorno parece se aproximar mais do que outros desta complexidade deman- dada pelo objeto, ainda que voltado para a arte, pois um conceito que indica um 31. 38 mtodo de anlise no qual possvel a insero de outros elementos estranhos arte. Segundo nossa apreciao, a anlise da forma, no objeto arquitetnico, poderia ser entendida como um processo de concreo: construo de aproximaes suces- sivas, dos vrios elementos e faces que a compem, como camadas sobrepostas que re-significam e ampliam as outras. Atravs deste trabalho de aproximao, o objeto se torna cada vez mais concreto e, portanto, mais complexo, tendo na forma a sntese deste processo. O conceito de forma em Adorno se aproxima desta ideia de concreo do objeto, porm voltada estritamente ao objeto artstico, que tem caractersticas prprias e diferentes da arquitetura. No entanto, a estrutura do con- ceito se aproxima muito e, tomados alguns cuidados, pode ser usado como base, e depois ampliado principalmente para abarcar a noo de funcionalidade intrn- seca arquitetura. Tal qual observado por Adorno na sua Teoria Esttica (ADORNO: 1982), a forma unidade sinttica que, na sua totalidade, est para alm da composio dos materiais. Atravs do entendimento desta forma, e da sua relao com os ma- teriais que a conformam, portanto, seria possvel alcanar um contedo de verdade atravs do objeto, que tambm histrico. Para uma melhor compreenso destes conceitos, necessria a definio de material para o autor. O material, em Adorno, tudo aquilo que formado (ADORNO: 1982, 170), ou seja, delimitado sob a forma. Segundo o autor: O material aquilo com que lidam os artistas: o que a eles se apresenta em palavras, cores, sons at s combinaes de todos os tipos, at aos procedimentos tcnicos na sua totalidade; nessa medida, podem tambm as formas transformar-se em material; portanto, tudo o que a elas se apresenta e a cujo respeito podem decidir. (ADORNO: 1982, 170). O conceito de material tal qual descrito pelo autor leva a consequncias importantes no estudo da forma. ele que define a historicidade da mesma e a rela- tividade da autonomia da arte. Segundo Adorno, a escolha do material, a utilizao e a limitao na sua aplicao, so um aspecto essencial da produo (ADORNO: 1982, 170. Grifos acrescidos). E, alm disso, o material tambm no um mate- rial natural, mesmo se aos artistas se apresenta como tal, mas inteiramente histrico (ADORNO: 1982, 170. Grifos acrescidos). neste sentido que a forma entendida pelo filsofo como contedo sedimentado ou, como esclarece Verlaine Freitas, cada obra simultaneamente um momento histrico e toda a histria nela sedimentada (FREITAS: 2006, 45). Interessa-nos aqui ressaltar o estatuto histrico do material, elemento im- portante quando se fala em arquitetura. Para Adorno, o conceito de material o que mais satisfaz distino mediatizada12 (ADORNO: 1982, 169) entre forma e 12. Verlaine Freitas (FREITAS: 2006) traduz o termo mediatizada apresentado na verso brasi- leira da Teoria Esttica como mediada, no sentido de mediao entre elementos, o que nos parece de mais fcil compreenso e ser utilizado adiante. 32. 39 contedo. Isso significa que, para o autor, necessrio que a relao entre estes dois termos seja considerada de maneira dialtica: ao mesmo tempo em que h imbri- cao entre eles, a sua distino tambm fundamental, da a ideia de distino me- diada. Nas suas palavras: Contra a diviso pedante da arte em forma e contedo, preciso insistir na sua unidade e, contra a concepo sentimental da sua indiferena na obra de arte, insistir no fato de a sua diferena subsistir no mesmo tempo na mediao (ADORNO: 1982, 169). Segundo Verlaine Freitas: Apesar de o material tender mais para o lado do contedo, no coincide com ele. Mesmo que se considerem todos os elementos materiais em uma obra, essa totalidade no perfaz aquilo que seria o contedo do artefato enquanto obra de arte, uma vez que a unidade da forma, que ultrapassa a mera sntese dos particulares, necessariamente refrata a entrada dos elementos na obra, que adquirem uma existncia segunda em virtude dessa refrao. A forma uma zmediao necessria do contedo: O momen- to conteudal da arte moderna tira sua fora do fato de que os procedimentos mais progressistas da produo material e de sua organizao no se limitam ao domnio em que apareceram imediatamente (...) (ADORNO: 1982, 47), ou seja, so modifica- dos, refratados esteticamente. (...) A objetivao da obra de arte no se confunde com seu material, (...) mas constitui, pelo contrrio, a resultante do jogo de foras vigente na obra, aparentada com o carter de coisa enquanto sntese. (...) Pois, tanto quanto as obras de arte so obras, surgem como coisas em si mesmas, objetivadas em virtude de sua prpria lei formal (ADORNO: 1982, 118-9). (FREITAS: 2006, 37-38). A forma seria, portanto, mediada pelo contedo, e este por aquela, sen- do impossvel sua indistino, mas ao mesmo tempo necessria sua diferenciao como elementos opostos no processo dialtico. Para a anlise da arquitetura, o conceito de material exposto por Adorno torna-se fundamental como embasamento. Srgio Ferro o utiliza nos seus textos13 , dando especial ateno ao trabalho humano e sua historicidade como material da forma arquitetnica. Acompanhando este mtodo de crtica, pode-se abarcar na formalizao da arquitetura dando centralidade a elementos antes considerados perifricos anlise seu processo de financiamento, produo, viabilidade urba- nstica, realizao enquanto mercadoria, trabalho nos diferentes nveis, materiais fsicos, tcnicas, at a mais usual conformao espacial, visibilidade urbana, funcio- nalidade etc. Tudo isso e ainda outros elementos (materiais), a partir deste entendi- mento, passam a ser importantes na tentativa de ver, atravs do objeto arquitetni- co ora analisado, um contedo de verdade sobre a nossa existncia sob o capital hoje, no Brasil. Neste ponto de vista, este objeto se complexifica e pode, atravs da forma, ser ndice de um processo social em curso historicamente. A partir destes pressupostos, forma arquitetnica e forma social esto im- bricadas. Nestes termos, o entendimento do processo poltico-econmico em mar- 13. A noo de material em Srgio Ferro se inicia em Adorno principalmente no contedo social e histrico do conceito e depois ganha outros contornos, apropriando-se, entre outros, do traba- lho de Charles Sanders Peirce na semitica. Agradeo, neste alerta, a Profa. Otlia Arantes e seus comentrios na banca de qualificao. 33. 40 cha, orquestrado pelo capital, passa a fazer parte da anlise arquitetnica como um dos seus elementos constitutivos, como material, eminentemente histrico. Desta maneira, o processo poltico-econmico con-formado pelo objeto arquitetnico, que por sua vez interno ao mesmo. Nestes termos, a forma capital interessa, e par- ticularmente sua conformao na semiperiferia do capitalismo. A principal hiptese a de que existe uma relao no apenas de mime- tismo entre cultura e sistema econmico14 , como quer Harvey, ou de dominncia cultural do sistema15 , conforme Jameson, mas, sem descartar estas perspectivas, de que h uma relao complexa entre a arquitetura e a reestruturao urbana que ela promove e a lgica de reproduo do capital. Esta relao complexa pois a arquitetura, nestes termos, assume um papel central no mecanismo de reproduo: mercadoria, mas tambm elemento pelo qual gira (e gera) capital fictcio, numa lgica na qual, usando de seus atributos materiais, os resolve em um campo sim- blico e imaterial que, por sua vez, realimenta o sistema. A mercadoria, segundo Marx, um momento da metamorfose do capital, ou seja, faz parte do mecanismo de valorizao do valor. Mas a mercadoria na qual se objetiva a arquitetura no apenas momento da metamorfose do capital: tambm motor do processo de re- produo ao possibilitar, atravs de sua materialidade enquanto mercadoria, todo um campo de ligaes complexas entre ideologia, cultura e capital fictcio seja em renda ou em juros. Faz parte, assim, da formao da lgica do sistema (como diz Jameson) enquanto sujeito e objeto como produto acabado passivo s constries do capital, como elemento ativo na formao da ordem simblica, e como elemento de base para a circulao de certo capital fictcio. Apartir desta hiptese, forma, espao e reproduo do capital fazem parte de uma mesma lgica. Veremos no captulo seguinte como esta lgica se configu- rou historicamente, a partir do seu modelo original, externo ao pas. Depois disso, restar esclarecer os mecanismos que as inter-relacionam, particularmente no caso brasileiro. Para tanto, no terceiro captulo se descrever as formas pelas quais a arquitetura dos edifcios corporativos e a construo da cidade que eles promovem tm participado da tendncia financeirizao do capital em So Paulo (material de sua forma, hoje), o que delimitar o objeto no campo de sua constituio enquanto mercadoria, isca de valorizao urbana, entre outros. Depois, no quarto captulo, buscaremos sua constituio fsica fatores que tambm o determinam enquanto 14. (...) a nfase na efemeridade, na colagem, na fragmentao e na disperso do pensamento filosfico e social mimetiza as condies da acumulao flexvel. (HARVEY: 2006, 272) 15. Segundo In Camargo Costa e Maria Elisa Cevasco, no prefcio do livro de Fredric Jameson Ps-Modernismo A Lgica Cultural do Capitalismo Tardio (JAMESON: 2004): Nessa nova verso expandida e atualizada do velho mundo do capital, no mais se trata de ver a cultura como expresso relativamente autnoma da organizao social, mas sim de entender que nesse novo estgio a lgica do sistema cultural, ou para falar como Walter Cohen, Jameson no procura res- ponder questo de qual a lgica cultural especfica ao capitalismo tardio, mas sim demonstrar que o cultural, mais especificamente o ps-modernismo, que a lgica deste novo estgio. (In: JAMESON: 2004, 5) 34. 41 mercadoria, porm mais estreitamente ligados a sua materialidade. Ainda neste captulo, atentando-se crtica de Srgio Ferro, ser analisado o trabalho dos ar- quitetos envolvidos na produo destes edifcios. Todos estes materiais talvez no completem a forma deste objeto arquitetnico (at porque ela sempre est para alm da soma dos materiais), mas pretendem aumentar sua complexidade e fazer com que ele possa falar a respeito da nossa condio atual. 35. 43 Captulo 2 Edifcios corporativos: a tipologia original Redefinindo o que possvel, atravs do poder do design Nota de abertura do site da Gensler1 2.1 Antecedentes Antes de entrar no objeto especfico de anlise, localizado em So Paulo, importante, a ttulo de comparao at mesmo para se entender as suas especifi- cidades , que seja apresentada a tipologia de edifcios corporativos tal qual se de- senvolve atualmente nos locais onde h investimento de grande capital nos pases centrais e em pases de grande especulao financeira e crescimento econmico. Em seguida ficaro claras as diferenas em relao ao objeto especfico, realizado em solo nacional. Como, no entanto, esta tipologia surge no centro do sistema, tendo com ele uma relao de simbiose constante, necessria aqui a viso para o mode- lo original e para sua forma desenvolvida globalmente. Alm disso, um elemento importante de anlise o fato desta tipologia ser a face da arquitetura internacional no pas, logo, a maneira especfica como ela aporta aqui e suas diferenas so fun- damentais. 1. Maior escritrio de arquitetura do mundo em 2008, segundo a Revista Building Design em sua edio de Janeiro do mesmo ano, de acordo com o nmero de arquitetos empregados. A Gensler possua naquele momento 1.216 arquitetos em seu quadro de funcionrios. Figuras 1, 2 e 3 Chrysler Building (1930), Empire State Building (1931), Rockefeller Center (1939) 36. 44 O edifcio corporativo nasce como tipologia na primeira metade do sculo XX, ps-Primeira Guerra, tendo como sede natal os EUA, principalmente a cidade de Nova Iorque e em seguida Chicago. Naquele momento os EUA se consolida- vam como grande economia capitalista (que se tornaria hegemnica em seguida), e transformavam o espao urbano de Nova Iorque. Diferente da cidade industrial clssica cidade capitalista este centro urbano, a partir das ideias de Frederick Winslow Taylor publicadas na primeira dcada do sculo (conhecidas como o siste- ma Taylorista), passa a ser a grande sede das empresas do pas, e o edifcio corpora- tivo substitui a fbrica como espao de produo. A tipologia, de carter simblico importante, ganha alturas inimaginveis numa competio frentica que a linha de frente da engenharia na poca. A partir do incio da dcada de 30, estes edif- cios passam a ser arranha-cus com a construo do Chrysler Building em 1930, de William Van Alen, do Empire State Building em 1931, de Gregory Johnson, e o Ro- ckefeller Center em 1939, de Raymond Hood. A partir da dcada de 50, a tipologia ganha fora de manifesto com o alto modernismo do International Style na figura do Seagran Building, de 1958, de Mies van der Rohe. O importante de se captar nesta origem da tipologia que ela est associa- da diretamente s necessidades do capital, at mesmo no que diz respeito questo simblica. Historicamente, os edifcios corporativos foram produzidos como uma arquitetura do dinheiro2 , no sentido de serem a materializao em uma mercadoria predominantemente de carter simblico de determinada soma de dinheiro de grandes propores. Ou ainda: esta seria a arquitetura que o dinheiro acumulado constri. No entanto, as determinaes desta arquitetura foram mudando, acom- panhando de perto suas funes em transformao junto ao capital. Segundo Srgio Ferro: 2. O termo me foi sugerido pela Profa. Otlia Arantes na banca de qualificao. Figura 4Seagran Building (1958) 37. 45 Do comeo. Na afirmao de uso e senso comum, o objeto arquitetnico, assim como a p ou a arma, um utenslio. Afirmao pelo menos destoante: sem m-f, todos pressentimos que o uso hoje no muito mais do que a contrafao de uso e funciona- lidade, ex-noes perdidas em desencontros. A palavra utenslio s aparece aqui por transferncia. Porque, na verdade, a figura que transita outra: o objeto arquitetnico, assim como a p ou a arma, fabricado, circula e consumido, antes de mais nada, como mercadoria (FERRO: 2006, 105). Para o autor, que desenvolve esta questo em pormenores na sua obra, a arquitetura deve ser entendida como mercadoria, como fruto de um processo produtivo. Sua razo de ser, no capitalismo, aquela da mercadoria no processo de valorizao do capital. Assim, segundo ele: Todo e qualquer objeto arquitetni- co, entre ns, um dos resultados do processo de valorizao do capital (FERRO: 2006, 106. Grifo acrescido). O papel do arquiteto, neste quadro, seria o de fazer esta forma-mercadoria se realizar enquanto tal, e da a importncia do desenho: A fun- o fundamental do desenho de arquitetura hoje possibilitar a forma mercadoria do objeto arquitetnico que sem ele no seria atingida (em condies no margi- nais) (FERRO: 2006, 107). Retomando o argumento, esta arquitetura-mercadoria, no caso particular, os edifcios corporativos, seriam a transubstanciao do dinheiro (acumulado em grande quantidade) no processo de valorizao, e sua funo no mesmo aquela de colocar em funcionamento uma determinada quantidade de trabalho na sua produo. No entanto, embora este carter de mercadoria de fato existisse historica- mente e continue existindo no caso dos edifcios corporativos, ele no era o ca- rter predominante, sua razo de ser, para o capitalista. Primeiramente, como sede, sua funo principal era interna ao processo de trabalho3 : como espao de uso, como cho de fbrica, dos trabalhadores ligados aos servios (seja na parte administrati- va das empresas, seja como prestadores de servio). Como lcus de produo, seu aspecto simblico sempre foi importante como representao da empresa, s que, primeiramente, este elemento no era internalizado no processo de valorizao. Assim, o edifcio corporativo era entendido pelo capitalista que o construiu como: 1. ativo fixo4 ; 2. espao de trabalho ou meio de trabalho; 3. meio de representao simblica e urbana. Predominantemente, o edifcio funciona, nestes termos, para o capital como valor de uso (ainda que, como mercadoria, ele carregue o duplo car- ter valor e valor de troca no atravs desta forma que ele est operando para o processo de valorizao). 3. A mercadoria-arquitetura como foi ressaltado na citao de Srgio Ferro, seria um resultado do processo produtivo, necessrio para a valorizao do capital. Assim, ainda que fazendo parte do processo de valorizao, ela no seria parte do processo de trabalho, mas um resultado do mesmo. 4. Ativo pois, para a contabilidade da empresa, o edifcio permanece como propriedade, par- te, do capital inicial. Ou seja, ele no entendido como gasto, dvida, e sim como parte do capital da empresa, dinheiro transformado temporariamente em mercadoria. Fixo pois imobi- lizado, entesourado. 38. 46 Segundo Marx: No que concerne ao valor de uso, de imediato, seu contedo particular, sua determina- o ulterior, completamente indiferente para a determinao conceitual da mercado- ria. O artigo que devia ser mercadoria e, portanto, portador de valor de troca, deveria satisfazer alguma necessidade social e, em consequncia, possuir alguma propriedade til. Isso tudo (Voil tout). O mesmo no ocorre com o valor de uso das mercadorias que operam no processo de produo. Em virtude na natureza do processo de trabalho, os meios de produo se dividem, primeiramente, em objeto de trabalho e meios de tra- balho, ou, mais precisamente, em matria prima, por um lado, e instrumentos, materiais auxiliares etc., por outro. Trata-se de determinaes formais do valor de uso que emanam da prpria natureza do processo de trabalho, e desse modo, em relao aos meios de produo o valor de uso recebe nova determinao. A determinao formal do valor de uso converte-se aqui em algo essencial para o desenvolvimento da relao econmica, da categoria econmica (MARX: 1978, 10-11. Grifos originais). Dentro do processo produtivo (ou processo de trabalho), os meios de pro- duo (objeto de trabalho e meio de trabalho figura econmica predominante dos edifcios corporativos na sua primeira fase) vo sofrer transformaes especficas. Interessa aqui que, como participante ativo do processo de trabalho e, portanto, do processo de valorizao, os meios de trabalho funcionam, dentro do processo pro- dutivo, como capital. Segundo Marx: As mercadorias que o capitalista comprou para consumi-las como meios de produo no processo produtivo (processo de trabalho), so propriedade sua. Efetivamente, no so mais do que seu dinheiro transformado em mercadorias e, da mesma forma, modo de existncia de seu capital quando este era dinheiro5 ; inclusive, de maneira ainda mais intensa, posto que existem sob a figura em que funcionam realmente como capital, isto , como meios criadores de valor, valorizadores do valor, ou seja, para aument-lo. Tais meios de produo so, portanto, capital (MARX: 1978, 13. Grifos originais). Da a especificidade dos edifcios corporativos e, ao mesmo tempo, sua importncia como objeto de anlise do capitalismo na sua insero local. Ele pode ser entendido como arquitetura do dinheiro no sentido quase literal de ser uma transubstanciao da forma dinheiro. Pode tambm ser entendido como mercadoria: na abstrao do seu valor de uso ulterior ao processo produtivo, como produto, re- sultado de tal processo. Porm nenhuma destas duas maneiras de entendimento do objeto dentro do processo de valorizao sem o qual ele deixa de existir o enten- de predominantemente como capital. Talvez porque esta tipologia seja uma das poucas em que esta determinao a mais decisiva. Olhar para ela olhar diretamente para o capital. Esta caracterstica, pelo seu carter pouco contraditrio, faz com que o objeto parea desinteressante, pouco elucidativo. O que o torna importante nesta anlise, no entanto, a sua insero numa economia na qual a relao com o processo de desenvolvimento do capital contraditria. Assim, se o movimento de transformao do funcionamento da tipologia enquanto capital muda no centro do 5. Mais uma vez: por isso a designao de ativo fixo. (Nota nossa) 39. 47 sistema, suas adequaes locais nos indicam algo a respeito do nosso prprio papel no processo de reproduo global. Ainda no modelo internacional, importante especificar algumas decor- rncias de seu entendimento enquanto capital, e seu desenvolvimento histrico. Segundo Marx: (...) A figura de que se reveste o capital no processo de trabalho, enquanto valor de uso, decompe-se: primeiro, em meios de produo, conceitualmente diferenciados, mas interdependentes6 ; segundo, em diferenciao conceitual, derivada da natureza o pro- cesso de trabalho, entre as condies objetivas de trabalho (os meios de produo) e as condies subjetivas de trabalho, a capacidade ativa e orientada a uma finalidade de trabalho, isto , o prprio trabalho. Terceiro, no obstante, vendo-se o conjunto do pro- cesso, o valor de uso do capital apresenta-se aqui como processo produtor de valor de uso, processo no qual os meios de produo, com vistas a esta determinao especfica, operam como meios de produo da capacidade de trabalho especfica que atua em con- formidade a um fim e corresponde a sua natureza determinada. Em outras palavras: o processo completo de trabalho, como tal, na interao viva de seus momentos objetivos e subjetivos, apresenta-se como a figura total do valor de uso, isto , [como] a figura real do capital no processo de produo (MARX: 1978, 12. Grifos originais). No momento em que os meios de produo so entendidos como capital, e entram no processo de trabalho atravs da sua aquisio pelo capitalista no nos- so caso, os edifcios so colocados em funcionamento pelo capital ocorre um mo- vimento na esfera aparente no qual parece que o capital (ou o edifcio), como coisa, que se autovaloriza. Os meios de produo, que s se tornam capital na medida em que so confrontados com o trabalho vivo7 durante o processo produtivo, acabam aparecendo como sugadores da capacidade de trabalho8 . Assim, os edifcios cor- porativos entendidos como meio de produo, como capital aparecem, j nesta sua primeira forma, como fetiche. Alm disso, se apresenta como forma natural e eterna, necessria ao trabalho vivo: Dado que a figura real, ou a figura dos valores de uso objetivos que compem o ca- pital, seu substrato material, necessariamente a figura dos meios de produo (...) que servem para a produo de novos produtos; e que, alm disso, no processo de circulao esses valores de uso existem j (no mercado) sob a forma de mercadorias portanto, em mos do capitalista como possuidor de mercadorias antes de operarem no processo de trabalho de acordo com seu destino especfico (...), levando conclu- so de que todos os meios de produo, potencialmente (dinamei), e na medida em que funcionem como meios de produo, so realmente (actu), capital; portanto, o capital elemento necessrio ao processo de trabalho humano em geral, abstrao feita de toda sua forma histrica; o capital algo eterno e condicionado pela natureza do trabalho 6. Marx se refere aos meios de trabalho (instrumentos de trabalho) e objeto de trabalho (matria prima). 7.trabalho vivo o termo que Marx utiliza para diferenciar o trabalho imediato do processo produtivo, que gera mais-valia e transforma matria-prima, daquele j morto, acumulado nas mercadorias acabadas. 8. Os meios de produo aparecem unicamente como absorventes da maior quantidade possvel de trabalho vivo (MARX: 1978, 19). 40. 48 humano. Igualmente, chega-se concluso de que, como o processo de produo do capital em geral processo de trabalho, assim, o processo de trabalho em todas as formas sociais necessariamente processo de trabalho do capital. O capital visto, desse modo, como coisa, que no processo de produo desempenha certo papel prprio de uma coisa, adequado a sua condio de coisa (MARX: 1978, 12-13. Grifos originais). Assim, o edifcio corporativo, na sua primeira fase de desenvolvimento, entendido como meio de trabalho, tem determinaes especficas. Primeiro: ele j construdo como capital, porm funciona enquanto tal dentro do processo produtivo, na figura de valor de uso do meio de produo. Nesta determinao, sua outra funo, a de ser meio de representao, funciona, de maneira interdependente, como fetiche do dinheiro, representante do valor, do trabalho. O edifcio corporativo, nestes termos, como o dinheiro, aparece como dotado de valor por si s: As mercadorias encontram, sem nenhuma colaborao sua, sua prpria figura de valor pronta, como ouro e prata, tais como saem das entranhas da terra, so imedia- tamente a encarnao direta de todo o trabalho humano. Da a magia do dinheiro [poderamos dizer: dos edifcios corporativos]. A conduta meramente atomstica dos homens em seu processo de produo social e, portanto, a figura reificada de suas prprias condies de produo que independente de seu controle e de sua ao consciente individual, se manifestam inicialmente no fato de que seus produtos de trabalho assumem em geral a forma mercadoria. O enigma do fetiche do dinheiro , portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria, tornado visvel e ofuscante (MARX: 1983, 84-85). A arquitetura opera em todas estas esferas: nas propriedades de meio de trabalho, valor de uso, ou seja, o entendimento do edifcio enquanto mquina, ins- trumento de trabalho, ela que vai desenhar todas as suas especificaes; junto a este aspecto, e inseparvel dele, tambm ela que vai modelar o edifcio como meio de representao, como fetiche da mercadoria. E a forma especfica deste fetiche, li- gado ainda esfera da produo, ser historicamente uma forma segundo a qual a tectnica, principalmente ligada s estruturas do edifcio e verdade dos materiais, o elemento unificador da obra. Desta feita, o edifcio se apresenta como fator de produo, ainda que o fetiche da mercadoria j esteja operando. O fato, porm, de estar presente, indica a proximidade da produo, a possibilidade desta ser revela- da. A partir da dcada de 1950, estas caractersticas dos edifcios corporativos os levaram a ser a tipologia de frente do International Style, desenvolvimento do alto modernismo. Com ele, as caractersticas de edifcio-mquina ganham fora com estruturas aparentes, fachadas livres e espaos flexveis. A arquitetura como agente da produo do edifcio como meio de repre- sentao foi que configurou a forma esttica especfica do fetiche da mercadoria. Se- gundo Marx: Paralelo forma direta do tesouro, ocorre sua forma esttica, a posse de mercadorias de ouro e prata (MARX: 1986a, 113). Num primeiro momento, portanto, est posta a necessidade de dar forma esttica riqueza material como smbolo de poder (comando sobre o trabalho alheio). uma das fases de transubs- 41. 49 tanciao da forma mercadoria retirada do processo de reproduo do capital: o entesourar dinheiro se mostra socialmente atravs da imagem do capital mercado- ria, feito material e ao mesmo tempo simblico. Esta sua caracterstica especfica (ser algo material e signo) se relaciona diretamente com sua origem: o dinheiro (signo do valor) entesourado virando imagem (reificao). Esta imagem, aqui, ain- da, material: a face externa e ofuscante das mercadorias sob sua propriedade, exibidas socialmente. J , no entanto, fetiche: coisificao do valor, trabalho hu- mano empilhado e enlatado, pronto para a exposio. Neste primeiro momento de aparecimento histrico do objeto, portanto, temos apenas dinheiro e suas determi- naes, transubstanciado em mercadorias entesouradas que servem basicamente como imagem de poder. Segundo Srgio Ferro, usando um exemplo paulistano, mas que nos ser- ve aqui: (...) no Morumbi, por exemplo, o fazer sua casa significa aplicar capital. E, ao invs do mnimo indispensvel, a construo contm o maior acmulo de elementos supr- fluos compatveis com o funcionamento e a sanidade mental. Os materiais, a mo de obra especializada e a tcnica no mais constituem limitaes, ao contrrio, se o deus capital existe, tudo permitido, tudo e todos esto disponveis (FERRO: 2006, 67). O autor cita Marx, segundo o qual o luxo entra nos custos de representao do capital (MARX: 1984, 173): (...) A manso [poderia-se dizer: o edifcio corporativo] torna-se objeto de uso sun- turio. O uso sunturio diferenciador de classe, j que o objeto luxuoso a materiali- zao da riqueza. A fartura de materiais requintados, a complexa equipe mobilizada j mesmo durante a obra, expe o poder do proprietrio. A obra concluda, sua aparncia, sua dimenso e cuidado prosseguem revelando-o (FERRO: 2006, 70. Grifo acrescido). Assim, o mundo no qual o capital impe sua lgica vive estruturado na esfera aparente, que ao mesmo tempo vela e revela esta lgica: vela ao fazer desa- parecer os nexos de origem das suas formas, tornando-as sem contedo; e revela ao fazer da aparncia elemento central na sua reproduo, usando o fetiche como motor. Nesta revelao, a aparncia essncia: por uma reviravolta traioeira, a mscara mostra mais do que esconde: mostrando-se, revela, j que revela a mscara que a face oculta do sistema (FERRO: 2006, 130). Este mecanismo de entesourar e exibir seu capital no edifcio corporativo como smbolo de poder funcionaria bem para o capitalista se sua possibilidade de ganho fosse infinita, porm no . Voltando a Marx: O impulso para entesourar por natureza sem limite. Qualitativamente ou segundo a sua forma, o dinheiro ilimitado, isto , representante geral da riqueza material, pois pode trocar-se diretamente por qualquer mercadoria. Porm, ao mesmo tempo, toda a soma efetiva de dinheiro quantitativamente limitada, portanto tambm apenas meio de compra de eficcia limitada. Essa contradio entre a limitao quantitativa e o carter qualitativamente ilimitado do dinheiro impulsiona o entesourador ao trabalho de Ssifo da acumulao (MARX: 1983, 113). 42. 50 2.2 Transformaes a partir da dcada de 1960 Como elemento interno ao processo de valorizao, o edifcio corporativo teve esta sua forma original modificada junto ao desenvolvimento do capitalismo a partir da dcada de 1960, com o incio do perodo da globalizao. O capitalismo um sistema econmico que tem como base estrutural a reproduo ampliada do capital. Este, identificado como valor que se valoriza, depende continuamente de novas formas e meios de expanso. Nestas condies, a dita globalizao do capi- tal um movimento intrnseco ao capitalismo desde suas origens, indicando uma tendncia a sua generalizao como forma de organizao econmico-poltica do mundo um caminho que envolve violncia em todos os nveis. No entanto, o ter- mo globalizao tem sido usado e discutido mais recentemente como uma forma especfica de expanso do capital, que envolve no apenas a conquista de novos mercados, mas toda uma configurao mundial apta a sua lgica social, poltica, cultural. Alm disso, este movimento depende de uma possibilidade do prprio capital circular em esfera global sem baixar as taxas de acumulao: isso significa que as formas de reproduo devem se transformar para alcanar a flexibilidade necessria a este novo perodo de expanso. Assim, a globalizao pode ser caracterizada como um conjunto de me- didas que permitem a generalizao em escala mundial do capitalismo: o regime neoliberal, a acumulao flexvel (que acompanha a financeirizao do capital), a tendncia maior desigualdade social e, ainda, a cultura homogeneizadora do es- petculo, entre outros aspectos. Todos estes elementos, em vrios nveis da existn- cia social, formam uma totalidade de dominao do capital na qual cada um tem importncia estratgica. H um certo consenso entre os pesquisadores em localizar o final da d- cada de 1960 e incio da de 70 como o incio deste processo de transformao do padro de acumulao do capital, que se desenvolve durante as dcadas de 1980 e 90, chegando hoje num perodo de maturao. Neste perodo oc