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A FORMAÇÃO DO PENSAMENTO OCIDENTAL - AULA 28 AULA 28 - 01/11/01 Luiz Fuganti Hoje eu pretendo fazer o seguinte: sintetizar, finalizando parcialmente Nietzsche. E estou com uma idéia de falarmos um pouco de Foucault na próxima aula; porque Foucault está um pouco abandonado e ele é muito importante. Poderíamos fazer uma coisa assim. Estou com uma dúvida no seguinte sentido: a minha idéia era dar a máquina de guerra com o Kleist na literatura; a questão de Hölderlin que envolve literatura também e a tragédia. Isso tudo eram intenções. Participante: fenomenologia? Fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, física quântica, biologia molecular... foi só um sonho, um projeto estapafúrdio em função do tempo que temos. E se eu optar por realizá-lo, vai ficar tudo muito eclético, tudo muito rápido e acho que não vamos crescer muito, não vai valer muito a pena. E Bergson – talvez eu ainda dê uma aula. Ao menos uma para darmos uma situada nele. Participante: ele é importante para o pensamento de Deleuze, não é? Ele é super importante. Podemos fazer o seguinte: dou uma aula a menos de Deleuze e dou uma de Bergson. Ou Bergson e Deleuze numa aula. Então a questão seria, hoje, atingirmos o ponto de bifurcação que faz com que o produto da cultura - tal como Nietzsche o vê, o interpreta na Genealogia da Moral – não seja o homem superior. O homem superior é um produto do niilismo e Nietzsche quer fazer uma autêntica crítica e uma autêntica transvaloração e transmutação do elemento genealógico da vontade de potência e de todos os valores; quer fazer essa diferença radical. Então o homem difere em natureza do que Nietzsche chama de super-homem; há uma diferença de natureza, não é que o homem vai ser ultrapassado e atingir o super-homem. É um diferencial, é uma outra postura. No fundo é uma mudança no mesmo lugar; ou - de uma outra forma um pouco ainda misteriosa, vamos ver isso melhor – destruindo o lugar, o lugar do homem que, no fundo, é o lugar de Deus. Nietzsche não quer simplesmente substituir o homem; ele quer acabar com o lugar do homem que, no fundo, é o lugar de Deus. 1

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AULA 1 - 29/03/01

PAGE 1A FORMAO DO PENSAMENTO OCIDENTAL - AULA 28

AULA 28 - 01/11/01

Luiz Fuganti

Hoje eu pretendo fazer o seguinte: sintetizar, finalizando parcialmente Nietzsche. E estou com uma idia de falarmos um pouco de Foucault na prxima aula; porque Foucault est um pouco abandonado e ele muito importante. Poderamos fazer uma coisa assim. Estou com uma dvida no seguinte sentido: a minha idia era dar a mquina de guerra com o Kleist na literatura; a questo de Hlderlin que envolve literatura tambm e a tragdia. Isso tudo eram intenes.

Participante: fenomenologia?

Fenomenologia, existencialismo, estruturalismo, fsica quntica, biologia molecular... foi s um sonho, um projeto estapafrdio em funo do tempo que temos. E se eu optar por realiz-lo, vai ficar tudo muito ecltico, tudo muito rpido e acho que no vamos crescer muito, no vai valer muito a pena. E Bergson talvez eu ainda d uma aula. Ao menos uma para darmos uma situada nele.

Participante: ele importante para o pensamento de Deleuze, no ?

Ele super importante. Podemos fazer o seguinte: dou uma aula a menos de Deleuze e dou uma de Bergson. Ou Bergson e Deleuze numa aula.

Ento a questo seria, hoje, atingirmos o ponto de bifurcao que faz com que o produto da cultura - tal como Nietzsche o v, o interpreta na Genealogia da Moral no seja o homem superior. O homem superior um produto do niilismo e Nietzsche quer fazer uma autntica crtica e uma autntica transvalorao e transmutao do elemento genealgico da vontade de potncia e de todos os valores; quer fazer essa diferena radical. Ento o homem difere em natureza do que Nietzsche chama de super-homem; h uma diferena de natureza, no que o homem vai ser ultrapassado e atingir o super-homem. um diferencial, uma outra postura. No fundo uma mudana no mesmo lugar; ou - de uma outra forma um pouco ainda misteriosa, vamos ver isso melhor destruindo o lugar, o lugar do homem que, no fundo, o lugar de Deus. Nietzsche no quer simplesmente substituir o homem; ele quer acabar com o lugar do homem que, no fundo, o lugar de Deus.

Ento hoje vamos ver essa histria e esse caminho: um o efeito ou o produto de devires reativos, e o outro seria o efeito ou o produto de devires ativos. Diz Nietzsche que ns no sabemos o que devir ativo, no sabemos o que sentir de modo ativo, perceber de modo ativo, pensar de modo ativo. Porque a terra foi tomada por devires reativos. Onde o homem passa, onde ele ocupa, onde ele se instala, no apenas ele que est ou que entra em devir reativo; toda a terra, so os vegetais, so os animais, so os elementos da natureza que o serve que entram em um devir reativo e, portanto, as foras ativas esto aprisionadas e submetidas a devires reativos.

Ento vamos fazer hoje uma distino entre foras - ou atividade e reao, que so funes ou qualidades da fora e devires, que j tm a ver com o elemento genealgico da vontade de potncia. porque as foras so abstradas em relao aos seus devires que no entendemos, que reduzimos a realidade aos seus efeitos, sua atualizao, e no apreendemos o plano virtual. A virtualidade est no campo da vontade; e no sabemos o que a afirmao porque o virtual simplesmente no tem existncia para ns. De fato o virtual no existe, mas ele real; e o homem reativo no apreende a realidade do virtual. Nietzsche no usa essa linguagem, o virtual, ele usa o termo afirmao. Ento afirmar algo que no tem a ver simplesmente com a atualizao de foras; afirmar toda uma condio, toda uma atmosfera, todo um modo que voc no apreende a no ser no jeito de ser, no jeito de existir. o modo de vida que faz com que a afirmao atravesse.

A afirmao, em Nietzsche, no afirmao de algum sobre alguma coisa; no atributo de alguma coisa, no propriedade de alguma coisa, no a faculdade de um sujeito que afirma algo de um objeto. A afirmao , em Nietzsche, o prprio ser. Em Nietzsche no existe o ser: o ser afirmao. No uma afirmao do ser: o prprio ser que j afirmao. Ento no h descolamento entre afirmao e ser. Ser afirmar.

Agora, como que essa histria falha? Como que a atividade genrica da cultura vai desembocar num produto falhado? No que ainda no atingiu o produto; j atingiu o produto esse produto so os homens superiores, so os homens europeus, os homens democratas, os iguais, os homens racionais que se apropriaram e se apoderaram dos valores divinos, das idias que estavam no outro mundo. Apoderaram-se disso e se desalienaram do divino: o homem superior j um homem dialtico, j um homem hegeliano. Eu vou desenvolver isso tudo, sei que est abstrato agora mas eu vou dizer exatamente o que isso.

Ento diz Nietzsche: esse produto da cultura, que deveria ser o indivduo livre e soberano, o homem superior. Ou, em outros termos, ele diz: de grega, a cultura se tornou alem; de romana, virou judaica ou crist; de renascentista, virou reformista; virou dialtica, virou humanista, virou democrtica, virou socialista. Ento Nietzsche quer entender porque as foras ativas - que necessariamente atravessam a natureza, atravessam os homens, atravessam tudo entram na aliana com o homem num devir necessariamente reativo. A Nietzsche se pergunta: ser que o homem reativo apenas um acidente na histria? Ou ser que ser homem necessariamente ser reativo?

Nietzsche chega a essa concluso: que a forma homem necessariamente uma forma reativa. No que estejamos fadados ao desaparecimento, nesse sentido. Diz Nietzsche que o essencial voc encontrar as foras em voc, ou no homem, que esto aprisionadas pela forma homem; essas foras que tm que ser liberadas e gerar uma outra maneira, um outro tipo que no mais o homem, com certeza no mais o homem. No o homem que evolui, que se desenvolve, que se supera; algo de outra natureza. Esse algo de outra natureza pode estar em ns ou nunca advir.

Ento o que Nietzsche diz? O homem essencialmente reativo e o que explica a essncia reativa do homem no so apenas as foras reativas que esto dominando em relao s foras ativas; no so apenas as foras reativas que se apoderaram das foras ativas. Mas o devir reativo. mais em baixo o problema. E o devir reativo que d a essncia reativa do homem. Mas no h devir reativo sem uma vontade de potncia; na vontade que a fora est em devir. No h devir sem a vontade; a vontade o prprio devir.

Mas no h devir reativo sem uma vontade negativa a vontade que nega, a vontade que tem a qualidade da negao ao invs da afirmao e que faz da negao no apenas uma maneira de ser, mas um poder de negar. Esse o problema: o poder de negar que gera um devir reativo no homem ou que define o niilismo.

O que niilismo, ento? J esboamos de modo resumido, mas hoje vamos desenvolver um pouco mais. Nihil no no ser. Nihil nada ou valor de nada. Valor de nada que a vida toma a partir de uma fico. No h outro fundamento na fico que no seja a crena em outro mundo, em valores superiores. o outro mundo ou o mundo supra-sensvel que a essncia de qualquer fico fico que desqualifica ou que deprecia a vida. Ento nihil ou niilismo uma negao ou uma nadificao da vida em funo de um outro mundo, do mundo supra-sensvel. O mundo da sensibilidade, o mundo do corpo, o mundo sensvel, no o mundo essencial, ele o mundo aparente; porque o mundo essencial o mundo supra-sensvel.

O niilismo faz exatamente isso: ele quer o outro mundo, ele quer o mundo supra-sensvel com todas as formas que o mundo supra-sensvel ganha - como Deus, o Bem, o Ideal, os valores superiores. So formas do mundo supra-sensvel ou formas do outro mundo. O valor superior vida inseparvel do seu efeito; o seu efeito que a vida inferior. ao mesmo tempo que voc diz que existem valores superiores vida e que voc desqualifica ou deprecia a prpria vida. Ento voc nega a essncia ou a realidade a este mundo, ao investir em valores superiores. Ao investir em valores superiores a vida inteira na Terra, ou toda a Terra, ou toda a natureza se torna irreal ou aparente. a vida em geral que se torna aparente na medida em que eu invisto os valores superiores. E a vida, em particular, se torna reativa. Esse o efeito.

E por que ela se torna reativa? Porque toda atividade ou afirmao da vida nela mesma no tolerada ou no suportada pela vontade de negar, pela vontade niilista. A vontade niilista no tolera outro tipo de vida, ela no aguentaria outro tipo de vida; ela s tolera o que passivo, o que reativo, o que fraco, o que impotente, o que est separado do que pode. Porque a atividade em si mesma seria irreal; a atividade s tem um sentido quando ela se submete aos valores superiores, s alturas platnicas ou ao Deus cristo, ao Deus judaico, aos monotesmos enfim, ao Bem. Essa atividade, ento, s vivel, s valorizada na medida em que ela est submetida ao ideal do valor superior. Ento ela necessariamente julgada.

Ento tambm ao mesmo tempo que a vontade de negar s tolera as foras reativas e tambm necessita dessas mesmas foras reativas para instaurar o seu poder; ela desenvolve o seu poder na medida em que as foras reativas so jogadas contra as prprias foras ativas. Enfim, a vida reativa atirada contra a vida ativa; ou seja, a vida reativa que faz com que a vida seja negada. Ou seja, depreciada. Ou seja, reduzida sua reatividade. A vontade de negar precisa da vida reativa para gerar um devir reativo em toda a Terra e em todos os homens atravs do ressentimento - desenvolvido atravs do tipo reativo, ressentimento que acusa (voc que age e que poderia deixar de agir, mas no o faz, mau; portanto eu, que no ajo e que poderia agir, sou bom). Ento essa acusao do tipo reativo em cima do tipo ativo o que aliado da vontade de negar: a vontade de negar joga a vida reativa contra a vida ativa.

E por subtrao das foras reativas ou dos tipos reativos em relao s foras ativas ou seja, as foras reativas deixam de ser agidas -, que as foras ativas ficam separadas do que elas podem. E as prprias foras reativas, ao estarem separadas do que podem, entram num devir reativo e se voltam contra elas mesmas. o nascimento da m conscincia.

Ento o ideal asctico, ou a vontade de negar, lana mo do ressentimento e da m conscincia ou, em uma palavra, do tipo reativo para jogar o tipo reativo exatamente contra o tipo ativo. E assim gerar o triunfo da vontade de potncia que nega, da vontade de potncia que quer o poder e, ao mesmo tempo, das foras reativas; as foras reativas s triunfam aliadas com a vontade de negar. No haveria triunfo das foras reativas sem a vontade de negar ou sem o devir reativo, em outras palavras.

Estamos aqui fazendo como se o tipo reativo fosse absolutamente separado da vontade negativa, mas no fundo tudo se passa no mesmo indivduo. s vezes mais num e menos em outro. O tipo de sacerdote muito mais uma vontade de negar do que uma fora reativa propriamente dita - ainda que ele esteja ali cheio de foras reativas, ou submeta a atividade a essa reatividade; mas o sacerdote mais representante, digamos assim, da vontade de negar ou do ideal asctico. E o tipo ressentido, o tipo da m conscincia, por exemplo, so mais ligados s foras, vida que se torna fraca, vida que se torna impotente. Mas, no fundo, h uma intimidade, h uma relao ntima entre a vontade de negar e as foras reativas ou os tipos reativos. Isso fundamental marcar porque daqui a pouco vamos fazer uma anlise de como que o niilismo vencido por ele mesmo, em funo de um desenvolvimento. Porque ele toma vrios aspectos na histria.

Ento niilismo, em um sentido primeiro, significa valor de nada que a vida toma ou a aparncia da vida, em prol de um mundo supra-sensvel ou de um outro mundo; ou seja, investimento na fico de um valor superior e negao da vida na sua essncia a vida tem apenas aparncia, a vida se torna uma grande irrealidade. Ento sempre por fico que voc nega alguma coisa: a fico de uma vontade no outro que pode se separar da sua fora e do seu efeito que aquele silogismo do cordeiro em relao ao lobo: voc que age, que poderia separar a sua ao do seu efeito, voc mau porque, no fundo, voc tem um substrato, voc tem uma vontade - ou seja, a fico de uma fora separada do que ela pode, gera o ressentimento; a fico de uma dvida que signo de culpa gera a m conscincia; e a fico de outro mundo, que superior, nega este mundo. sempre por fico que voc nega o outro, que voc nega a si mesmo e que voc nega este mundo.

Participante: em resumo, voc nega a vida.

Isso. Ento esse seria o primeiro sentido de niilismo. O segundo sentido o niilismo reativo. O que o niilismo reativo? Essa vida, agora reativa, fraca, impotente, miservel, pobre, infeliz, reage contra a vontade de negar; reage contra os valores superiores; reage contra o outro mundo; reage contra Deus. No necessita mais de Deus, no necessita mais de nenhum valor superior; agora ela quer apenas ficar com ela mesma. As foras reativas querem ficar com elas mesmas: sem a vontade de potncia, sem Deus, sem o chefe, sem uma testemunha, sem os valores superiores. Apenas valores humanos. Ento uma reao contra Deus. Mas a mesma vida - que fruto j da negao original da vontade de negar - que reage ou ressente contra os valores superiores. Esse seria o segundo sentido de niilismo.

Isso vai desembocar numa coisa ainda mais terrvel que a descoberta de que esses valores humanos, de que essas foras reativas que apreendem agora a realidade que elas so, no fundo a mesma aparncia gerada pela velha vontade de negar. Isso vai desembocar no chamado niilismo passivo ou no homem que no tem mais nenhuma vontade de preferncia um nada de vontade a uma vontade de nada, a uma vontade de outro mundo. Nada de vontade, nada de valores superiores, valores humanos; mas quando se percebe que os valores humanos so ilusrios, nada de valores nem divinos, nem humanos. Isso o que Nietzsche vai chamar de niilismo passivo.

Ento temos o niilismo negativo, o niilismo reativo e o niilismo passivo. Mas o niilismo ainda no est completo, ainda no chegou ao seu termo. Vai haver um ponto, um momento, em que a vontade de negar rompe a sua aliana com as foras reativas. E as foras reativas, rompendo a aliana com a vontade de negar, elas simplesmente no eliminam a vontade de negar; a vontade de negar agora vai se voltar contra as prprias foras reativas e vai destru-las. Vai desembocar naquilo que Nietzsche chama, no prlogo do Assim falou Zaratustra, no homem que quer morrer. Ou seja, a vontade nega a prpria fora reativa. Ento h uma autodestruio, um aniquilamento ativo; mas isso s possvel quando o ponto focal da vontade de potncia, no seu elemento genealgico, mudar de aspecto no for mais a vontade de negar ou a negao ficar a servio da prpria afirmao. a que comea a haver a transvalorao de todos os valores e uma autntica transmutao do prprio elemento genealgico.

Ento isso um resuminho, agora eu vou desenvolver um pouco mais essa questo.

Participante: como voc denominaria esse ltimo niilismo?

Niilismo ativo ou niilismo vencido por ele mesmo.

Participante: s pode vir como resultado desses outros trs, no ? No pode vir sem que essas outras desistncias tenham se dado.

Participante: eles funcionam em estgios.

, em estgios. Agora, esses estgios so inconscientes. Isso no significa que haja uma sucesso imaginria no tempo.

Participante: mas para que haja o niilismo ativo, necessariamente eu teria que ter passado pelos outros niilismos.

Olha, Cristo vai direto ao niilismo passivo. Cristo budista. O budismo est muito mais avanado, ele est no final j do processo niilista, porque ele no tem o elemento da acusao: ele no acusa o outro e nem acusa a si mesmo, ele no acusa.

Participante: ele vai direto no ativo.

o niilismo passivo, que vai desembocar no ativo, que vai desembocar no homem que quer morrer.

Participante: porque so graus de desistncia. Num primeiro momento um niilismo porque voc est mergulhado em tudo que nada e voc acredita nisso; depois contra isso outra desistncia e a investe no que voc tem aqui; depois voc nega at esse.

Porque voc v que esse no nada.

Participante: ou seja, uma terceira desistncia.

o eu. E a o que o eu? O eu no nada.

Participante: vai chegar no suicdio agora, no ?

Mas voc no tem fora para isso. Nem para se matar. isso que Nietzsche chama de o ltimo dos homens. O ltimo dos homens no consegue se matar; ele quer se afogar no mar, mas nem mar tem mais. O que o mar? O mar a vontade de potncia, o mar o virtual. Ele no encontra mais nem o virtual, ele no tem fora mais para nada porque, no fundo, a energia da fora ou a potncia da fora, vem da vontade. E ele no encontra. Ele o homem tedioso, o homem entediado. At que a vontade de nada vem e o invade de alguma forma ou de fora, ou nele mesmo emerge, e a o elimina.

Participante: ento esse niilismo ativo s pode acontecer quando essas outras desistncias se passaram. No que seja hierrquico, mas no d para entrar nele sem que j tenha passado por todas essas desistncias.

Sem dvida. Voc pode ir direto nele porque voc no chega nem a acusar, digamos assim.

Participante: vontade de nada, esse niilismo ativo, pode ser simplesmente no negar a morte.

Sim.

Participante: deixar morrer. No reagir contra alguma coisa que venha acabar com a vida dele.

Exato. uma vontade de um aniquilamento passivo. Morra passivamente: isso que o nada de vontade; no tem vontade para morrer, voc se extingue passivamente. Seria isso.

Participante: como se no existisse, nesse ltimo, nenhum objeto. Sobre a questo dos estigmas, das doenas, da depresso: uma das interpretaes sobre a depresso que a pessoa no entra em contato com seu desejo, ela vai destituindo o desejo. E tem esse nome, como doena mais contempornea, que a depresso.

o tdio. o nada de vontade.

Participante: exato. Voc pergunta o que voc quer?. No nem que eu no saiba, que eu no quero nada. diferente de no saber.

Participante: eu no quero querer.

Participante: eu no sei se eu no quero querer. eu no quero.

No tem nem querer a, mais. Voc some, voc entra em depresso mesmo. Eu no quero querer ainda vontade de nada, ainda eu no quero. Voc ainda quer no querer.

Participante: ento o que acontece? Como trabalhar isso, a vontade ou o desejo, quando voc pega o fluxo e no vincula isso a objetos? Quer dizer, voc vai trabalhando isso, desenvolvendo isso...

todo o segredo. o segredo do que Nietzsche chama de afirmao. E afirmao no algo que se passa num discurso (eu afirmo algo), no um sujeito que encontra uma propriedade ou um atributo e se autopredica ou que predica de algum alguma coisa. A afirmao o prprio ser que gera o devir, o prprio ser do devir. Mas isso j o final da aula.

Essa aliana entre a vontade de nada ou a vontade de negar e as foras reativas, ou essa relao entre elas se chama piedade Nietzsche chama isso de piedade. A vontade de negar ou a vontade de nada a vontade de negar esse mundo, de negar a vida ativa e ir em direo a um nada, a um outro mundo. Eles no dizem o nada, eles dizem Deus, o Bem, o Ideal; Nietzsche d o nome logo, Nietzsche diz: o nada. Vontade de nada ou de negar nega o qu? Nega as foras ativas. Mas ama, de alguma maneira, ou tolera, suporta e precisa das foras reativas ou dos tipos reativos. Ento essa tolerncia ou esse amor, Nietzsche chama de piedade.

A piedade a tolerncias pelos graus mais baixos da vida, pela vida no grau quase zero, por uma vida que no ameace, por uma vida que no ativa. A vida ativa no precisa negar nada, ela afirma a sua diferena; por isso que a vontade de negar no pode tolerar a vida ativa. A vida ativa simplesmente faz com que a vontade de negar desaparea. A vontade de negar no se desenvolve sem a vida reativa. Ento essa aliana entre a vontade de negar ou a vontade de nada e as foras reativas essencial: as foras reativas no triunfariam sem a vontade de negar.

Imagine ns aqui, um bando de impotentes: somos impotentes, fracos, estamos ameaados e, ao mesmo tempo, no conseguimos reagir, apenas ressentimos. Tem a uma atividade imensa fora que o nosso pnico, que a nossa ameaa porque se essa atividade se mantiver, somos destrudos, somos aniquilados. O que queremos? Ainda queremos nos conservar, queremos sobreviver, queremos nos manter. E como fazemos? Negamos a atividade do outro porque o outro no se separa da sua ao. Negamos o outro. S que no consigo negar o outro com mais fora porque eu no sou mais forte, eu sou mais fraco. Ento o que eu fao? Eu me reno ao outro fraco, e a outro fraco, e formo um rebanho; e me subtraio ao das foras ativas.

O que faz a fora ativa? A fora ativa age a reao e precipita a ao. Eu roubo o solo da fora ativa porque eu sou fora reativa; eu roubo esse solo, eu no me submeto, eu no obedeo mais fora ativa, no me deixo ser agido. E me reno a outros que tambm no se deixam serem agidos. E formamos ns aqui uma acusao: eles, os maus. Isso ressentimento. Mas eu s acuso de modo a formalizar e ser eficaz atravs da fico de um outro mundo que me dada atravs da vontade de nada. Ento eu preciso dirigir a minha acusao, a minha formalizao de que o outro mau, fundado nessa fico; e isso quem me d a vontade de nada ou o sacerdote. Nietzsche diz: o sacerdote judaico. Depois daquela bela civilizao de nmades e at dos reis de Israel, vm os ascetas, vm os sacerdotes que geram esse tipo de ressentimento e que orientam o ressentimento.

Ento a fora reativa s triunfa se unindo, na subtrao (no na soma que ela fica mais forte, na subtrao), atravs da vontade de negar. Ou seja, no que eu nego dizendo que eu nego o outro; no que eu nego reagindo; eu no consigo reagir, eu no consigo me subtrair marca que o outro deixou em mim. Isso inconsciente. A marca se tornou sensvel em mim. A marca se torna consciente. Tudo se passa entre foras reativas. Ento a fora s vinga se ela se aliar com a vontade de negar. E, por outro lado, a vontade de negar s triunfa se as foras reativas se unirem e triunfarem junto. Ou seja, o triunfo de uma o triunfo da outra, e vice-versa. por isso que a vontade de negar s suporta a fora reativa e ao mesmo tempo ama a fora reativa porque atravs do tipo reativo que ela vai jogar a vida contra a vida, ou a vida reativa contra a vida ativa. isso que vai fazer a vontade de negar.

At o ponto em que no h mais o que negar, que a vida inteira na Terra se torna reativa. E quando ela se torna reativa, a fora ativa volta-se contra si mesma e a vai esculpindo a sua interioridade. E a o sacerdote cristo, que muda a direo do ressentimento ou da acusao no mais o outro, agora sou eu mesmo , vai dar forma a essa coisa que era apenas material, que era apenas em potncia, digamos assim, que era apenas latente. Assim como o sacerdote judaico vai dar forma ao ressentimento, que antes era s latente tambm. Ento essa formalizao sempre atravs de uma fico. O sacerdote cristo ento vai inventar a dvida ligada dor ou ao castigo: a dor vai ser um signo de castigo e de dvida, de expiao de dvida. Foi atravs da anlise da cultura, que fizemos na aula passada, que esclareci esse aspecto.

Ento a vontade de negar precisa do ressentimento e da m conscincia para que ela triunfe. O que a vontade de negar? A vontade de negar so as Igrejas, os Estados, os poderes que se destacam da prpria sociedade. isso que vontade de negar, no fundo. Onde h Estado, onde h Igreja, onde h uma instncia fora da sociedade que se apodere da sociedade e dos homens, isso se chama de vontade de negar ou vontade de nada. Que ao mesmo tempo acusa a vida, acusa o outro, acusa a si prprio, acusa o mundo e acredita em valor superior.

Agora, as foras reativas toleram cada vez menos esse Deus ou esses valores superiores, porque Deus no s uma testemunha, mas ele tambm um chefe. E as foras reativas, na medida em que triunfam, no precisam mais de Deus, no precisam mais do chefe. E toleram muito mal esse Deus bisbilhoteiro que v a impotncia e a misria das foras reativas; esse Deus que est em tudo, que onisciente, onipresente, onipotente, que v tudo, que pode tudo, que vigia tudo. A fora reativa no aguenta mais isso. Na figura do mais ignbil dos homens, no Assim falou Zaratustra, voc tem o assassinato de Deus. Deus tem vrias maneiras de morrer. A morte de Deus uma forma de Nietzsche que diverge das proposies especulativas: Deus existe ou no existe? Isso a teologia toda, uma parte da filosofia, que tem sempre esse problema ou, diria Nietzsche, esse falso problema; a existncia ou a no existncia de Deus um falso problema. Portanto, a soluo vai ser sempre falsa. Nietzsche diz: no fundo, essa proposio no analtica, sinttica. uma sntese da vontade de negar com o prprio tempo, uma sntese de Deus no tempo; Deus morre na histria.

Haveria cinco sentidos bsicos da morte de Deus. Nietzsche vai dar umas 15 ou 16 verses dessa morte de Deus, mas cinco sentidos essenciais se destacam, que vo nos fazer entender como que h o rompimento ou a ruptura entre a vontade de negar e as foras reativas.

Deus morre na figura do filho: agora uma anlise entre judasmo e cristianismo. Nietzsche diz: o Deus judaico era o Deus de um povo, era o Deus de uma nao, era o Deus de alguns. Isso tudo so foras que se apoderam do sentido ou que do um sentido a esse acontecimento, morte de Deus. Ento existem foras que do esse sentido, existem outras que do outro sentido. Ento vamos ver um sentido segundo certas foras. Ento, segundo a vontade de alguns sacerdotes judaicos e diz Nietzsche: esse o golpe de mestre deles -, separar o seu Deus que um Deus de um povo para que esse Deus se torne o Deus de todos, um Deus universal. E como isso feito? Atravs do assassinato, pelo Deus judaico, do seu filho. Ento Cristo morre na cruz na realidade condenado pelo prprio movimento do sacerdote judaico. Ento o filho morre ou o pai mata o filho. Isso um sentido. E o filho fica independente do pai.

Outro sentido: o filho mata o pai e renasce como Deus. O Deus judaico digamos que o Deus do dio, o Deus do ressentimento, o Deus bravo, o Deus que mete medo, o Deus carrancudo, o Deus violento. Esse Deus que renasce na figura do filho um Deus do amor, um Deus bondoso, um Deus no mais de um povo mas um Deus universal. Ento isso uma outra interpretao, um outro sentido que faz com que esse Deus fique independente do seu pai o filho se torna universal. Isso no Cristo, so as foras se apoderando da morte de Cristo. Porque Cristo mesmo budista, ele no nem uma coisa nem outra. Ainda estamos aqui no niilismo negativo.

Um outro sentido ainda, dentro do niilismo negativo: So Paulo se apodera da morte de Cristo e faz dessa morte algo que tem a ver com as foras reativas, algo que envolve as prprias foras reativas ou a dvida das foras reativas. Deus morreu por ns, Deus morreu pelos nossos pecados, Deus morreu pelas nossas dvidas, Deus que era o credor pagou as nossas dvidas. Um Deus louco que se prega na cruz para pagar a nossa dvida, que se tornou infinita e impagvel. Portanto, diz So Paulo, olhem esse Deus que morreu por ns, que morreu por vocs; ele morreu para nos salvar, para resgatar a nossa dvida impagvel no tinha mais como pagar essa dvida, quitar essa dvida. Ele se pregou na cruz e quitou a nossa dvida. Assim a dvida ficou mais profunda ainda, mais infinita ainda. Ento ns somos eternos devedores da morte da Cristo. E, mais do que isso, Cristo ressuscita. Cristo ressuscita e promete, a quem cr nele, a ressurreio tambm: a sobrevida para o tipo reativo. Ou seja, voc s salvo, voc s retorna, voc s ganha a vida eterna se voc aceitar a reatividade, o tipo reativo em voc; se voc aceitar a culpa em voc, se voc se ligar a esse Deus ainda mais profundamente, atravs da dor e do sofrimento que te unem a ele. Desse modo voc salvo. Ento esse o terceiro sentido niilista da morte de Deus, dado por So Paulo.

Esse Deus, diz So Paulo, morreu por amor dos homens; mas esse amor esconde algo muito importante. Porque o amor no o amor pela vida ativa, no o amor pela afirmao; o amor pela vida fraca, pela vida reativa, pela vida miservel, pela vida doente, pela vida fraca. esse o amor. Portanto esse amor esconde um dio mais fundamental, esconde um dio vida ativa, vida afirmativa. isso que esse amor esconde. isso que o amor cristo esconde; isso que a piedade e que a fraternidade crist escondem. Portanto, diz Nietzsche, nada de dialtica, nada de dizer que esse amor o oposto do dio. Onde a dialtica v oposies, diz Nietzsche, o genealogista v nuances, v diferenas, v uma srie de aspectos a serem avaliados, a serem pesados, a serem interpretados. preciso ver quem se apodera da morte de Deus e o que quer esse que se apodera da morte de Deus ao dar tal ou tal sentido morte de Deus. O que quer So Paulo? um ignbil, um dos mais ignbeis dos homens, com certeza. Esse . O homem do dio e que fundou a Igreja crist no h Igreja sem So Paulo. So Paulo a essncia do cristianismo.

Participante: por que essa histria pegou tanto?

A vida se tornou reativa na Terra, e a vida reativa precisa de fico para vencer a vida ativa.

Participante: mas qual a vantagem?

Vantagem para o tipo reativo que precisa se conservar. Ele ainda quer viver, ele ainda quer se agarrar vida mesmo que reativa, mesmo que miservel, mesmo que doente; ele ainda quer viver. E ele s sobrevive se ele no deixar que a fora ativa o destrua. No que ela queira; s pelo fato de ela agir ela j provoca estragos incrveis nas foras reativas. Tudo por fico tambm. Tudo se passa entre foras reativas.

Participante: mas por que essa fora ativa no atua?

a questo da afirmao. Onde est a afirmao? Sem afirmao a fora ativa no devm, no h devir ativo. A afirmao a condio e o princpio da vida ativa.

Participante: tem um livro da Clarice Lispector, A hora da esperana. Ela fala assim: tudo comeou com um sim, com uma afirmao (afirmao por minha conta). Uma molcula encontra com a outra e diz sim e a a vida se faz. Esse livro brbaro.

O quarto sentido da morte de Deus: o homem se descobre como o assassino de Deus. Isso j estava implcito na interpretao de So Paulo. O cristianismo j ateu na origem, os cristos mataram Deus, ns matamos Deus, ns botamos Cristo na cruz, ns somos os mais ignbeis dos homens. Isso significa, ao mesmo tempo, que nos pomos no lugar dele no precisamos mais dele. Isso j uma outra via, a via reativa mesmo; eu reajo a ele, eu no quero saber mais dele, eu me ponho no lugar dele. No s me ponho no lugar dele: eu o mato, mas no o lugar e vou ocupar o lugar ainda quente. Morreu, eu j me instalo l no deixo nem esfriar a cadeira. E no preciso mais dos seus valores, eu tenho agora os meus prprios valores.

E quais so os meus valores? Os valores que sobraram como vida aparente, como vida ilusria, como um melhoramento moral, digamos assim; porque eu, enquanto fora reativa, enquanto tipo reativo, queria melhorar o mundo, queria eliminar o caos, o acaso que me ameaava, e queria ficar apenas com o acaso pacfico e domstico, reativo, no fundo. Ento eu fico com a idia de evoluo, de adaptao, de progresso e de felicidade. A idia de felicidade aquela idia onde eu no sou perturbado, eu no sou incomodado, onde no h de fato nenhuma atividade.

Melhor que isso: eu me apodero, eu monto um sistema utilitrio que tira vantagem da prpria atividade; eu submeto todas as foras ativas e todos os devires ativos a essa minha necessidade de felicidade. Eu quero me prover, eu quero prever, eu quero me alimentar, eu quero ser amado; alis, eu quero ser alimentado, eu quero ser amado, eu quero ser provido e eu quero que haja uma precauo, de evitar que o pior venha. Ento eu monto um sistema de poder e um sistema econmico, evidentemente: o capitalismo inteiro montado em cima disso. Ento eu tenho condies de me apropriar de uma coisa que me era negada, porque essa realidade era uma aparncia; mas agora que eu sou o assassino de Deus, que eu reajo a aquele mundo como uma fico aquilo era uma fico -, eu acredito que isso aqui no aparncia, isso aqui uma realidade. Ento eu vivo uma realidade e eu quero me apropriar ou me reapropriar daquilo que era propriedade de Deus.

s lembrar do modelo platnico: o modelo platnico tem uma qualidade em primeiro lugar a qualidade de Deus em primeiro lugar; eu s tenho em segundo, em terceiro, em quarto, em quinto lugar. Eu no tenho o ser. Agora o assassino de Deus diz que tem o ser nele Kant, evidentemente, e Hegel. O que Hegel faz? Hegel diz que o homem alienado, que o homem est separado do infinito porque o infinito um universal abstrato e o homem apenas um ser finito. A questo do Hegel atingir a liberdade ou o absoluto atravs da reapropriao do infinito. assim que ele se desaliena. E ele faz do universal abstrato um universal concreto, uma propriedade do homem: ele se apropria das idias que antes eram de Deus, das idias divinas, e agora so idias humanas. Ento aquela realidade que era de outro mundo agora vem para o homem. Ento Hegel inventa uma antropologia cheia de teologia; uma cincia humana que se serve de uma cincia divina, dos valores divinos que agora so propriedades do homem. assim que o homem se desaliena.

E isso que Marx queria inverter, como se a dialtica estivesse de cabea para baixo. No h dialtica de cabea para baixo e dialtica direita, em p: toda dialtica , necessariamente, de cabea para baixo, inclusive a materialista. uma viso absolutamente equivocada do que seria realidade em ns - agora, tipos reativos. H uma evoluo no idealismo alemo que diz o seguinte (e vejam que estou no quarto sentido da morte de Deus, que o niilismo reativo): o ideal humanista ou antropolgico, o homem no lugar de Deus, se reapropriar, ento, desses valores divinos nada de valores divinos, s valores humanos. E os valores humanos so apropriados atravs de uma concretude do universal.

Hegel inventa l a sua teologia e a sua antropologia que, em seguida, ser denunciada por Bauer e por Feuerbach e, em seguida, por Skinner. Bauer vai dizer que o homem hegeliano no um homem livre; essas apropriaes hegelianas no so suficientemente humanas, ainda so abstratas, ainda so teolgicas; e que o homem precisa atingir uma relao prpria com esses valores humanos. A espcie humana, com os seus valores humanos. Feuerbach vai dizer que a espcie ou o homem no so livres ainda porque no so proprietrios: eles precisam se apropriar das propriedades que antes eram divinas, dos valores que antes eram divinos, dos sentidos que antes eram divinos.

E Skinner vai dizer o seguinte: eu s sou proprietrio quando eu no sou mais uma espcie ou no sou mais o homem em geral, eu sou um eu. Skinner vai substituir a questo que j era socrtica e platnica o que alguma coisa por uma questo do sofista ou nietzscheana, que quem. Ao invs de o que , quem. Ento Skinner diz: quem esse homem que se apodera das propriedades ou dos valores que antes eram divinos e agora so humanos? Skinner diz: esse quem o eu, o eu em mim que se apodera ou se apropria desses valores. E esse eu o nico, a nica realidade; existe um livro de Skinner chamado O nico e a sua propriedade. O que ocorre? Ocorre que Skinner no consegue se livrar da dialtica e ele vai entender que essas propriedades do eu no so nada porque o prprio eu um nada. Skinner leva a dialtica na sua finalizao, no seu acabamento; quer dizer, a que desemboca o hegelianismo, a que desemboca o niilismo. O niilismo desemboca no no tem mais Deus; no tem mais nem o homem nem valores humanos, porque o homem no fundo um eu, o nico que restou, e esse nico ilusrio. Ento fica esse eu com o seu nada. Skinner que descobre ou que revela, ento, o produto do niilismo que era a mesma fora reativa, o mesmo tipo reativo que foi necessrio para que a vontade de negar triunfasse, para que um Deus triunfasse, para que o Estado triunfasse. E esse tipo, mesmo com a morte de Deus, no se tornou ativo, no se tornou afirmativo, no se tornou mais real; a prpria vida dele, que era uma aparncia, continuou sendo uma aparncia.

Esse tipo reativo, que o mais ignbil dos homens, necessariamente desemboca no ltimo homem. O ltimo homem o homem que no quer nem valores divinos nem valores humanos, mas nada de valor. Nem vontade de nada, mas um nada de vontade. Esse homem o que representa agora o niilismo passivo; o resultado do desenlace niilista vai desembocar necessariamente nesse homem. Ento o homem superior de Kant, de Hegel, do idealismo alemo, mesmo de um certo movimento francs ou ingls, no fundo esse nada, essa aparncia; isso que eles chamam de realidade.

Esse homem no encontrou o sentido da afirmao, ele no soube encontrar o sentido de afirmar. Ele confunde afirmar com carregar. Ele, antes, se deixava carregar pelos valores superiores: o peso de Deus, o peso do ideal, o peso dos valores do outro mundo, que faziam da sua vida uma aparncia dolorosa, dolorida, um homem sofredor; e que tanto mais se ligava a Deus quanto mais sofria e mais pesado ficava. Era o esprito de gravidade sobrecarregado por um Deus. Agora, esse homem que matou Deus no precisa mais desse Deus para que o carregue: ele prprio carrega porque ele s recolhe o que ele chama de realidade. Mas o que a realidade? J o produto do prprio negativo. E por que isso? Como que ele vai sentir essa realidade, como que ele apreende, como que ele interpreta, como que ele conhece essa realidade? Como que ele sente essa realidade? Atravs das suas prprias foras reativas. O que as suas foras suportam? Como ele se sente vivo? Como os seus msculos fazem ginstica e carregam? Ento ele confunde o suportar com a realidade: suportar sinnimo de realidade. Ento esse homem continua sendo camelo, continua sendo o burro que carrega mas agora ele prprio se carrega. Ele no encontrou o sim vida, ele no disse sim atividade, ele no disse sim afirmao; porque esse sim o deixaria leve um sim de criao, no precisa carregar nada. Ele encontrou o sim do burro.

Mesmo o sim do burro um mistrio para ele, segue sendo um mistrio, evidentemente, porque o sim do burro, quando ele diz sim a isso, a Schopenhauer. Schopenhauer diz: o mundo como o vu de Maia, o mundo como vontade e representao. Vontade de representar, vontade de iluso, vontade de aparncia: a vontade quer uma aparncia, quer uma iluso, quer um nada. A vontade se nega na prpria efetuao, ela se nega no nada, ela se nega na iluso, ela se nega na aparncia. E desemboca, novamente, num nada de vontade. Ento so vrias anlises a que tm sempre o mesmo resultado, sempre o mesmo processo. super rigoroso. Isso se passa em qualquer inconsciente.

O que voc tem a? Voc tem uma ruptura entre a vontade de negar e as foras reativas: as foras reativas no precisam mais de Deus ou da vontade de negar. Agora, Kant que diz: a lei que funda o Bem e no o Bem que funda a lei. A lei o prprio sujeito legislador; o sujeito legislador autnomo e livre quanto mais solda o seu desejo, a sua vontade, prpria lei. o imperativo categrico de Kant desenvolvido por Hegel, por Bauer, Feuerbach, Skinner. O idealismo alemo desemboca nisso a.

Ento acusar Nietzsche de no conhecer a dialtica ou conhecer pouco Hegel uma coisa estpida, porque Nietzsche se refere direto a esse tal de homem superior, dialtica, negao, falsa afirmao a todos os processos que a dialtica cultua como sendo a representao do movimento, do desenvolvimento, do esprito objetivo, da prpria histria. Nietzsche diz: sem dvida, isso tudo real; real como o produto do negativo, como produto do niilismo.

A vontade de negar negada pelo ressentimento e pela m conscincia das foras reativas. O que o ressentimento, no mais ignbil dos homens, o assassino de Deus? Ele no quer mais um chefe, ele no quer mais um pastor, ele quer um s rebanho a revoluo francesa: um s rebanho sem Estado, sem rei, sem tirano. a vontade geral, vontade democrtica. Ento o ressentimento contra Deus; aquele ressentimento usado por Deus ou pela vontade de negar - para que triunfasse o seu poder e as prprias foras reativas -, agora as foras reativas vo contra ele. Esse o ressentimento, o rancor. E o remorso e a vergonha, que a m conscincia do mais ignbil dos homens. Porque Deus ainda perscruta os seus mais recnditos segredinhos sujos, a sua mais podre e miservel subjetividade. No h labirinto onde Deus no esteja e no veja. Ento esse bisbilhoteiro tem que morrer.

Mas quem acredita nessa morte? Nietzsche no acredita. Nietzsche diz: mataram Deus, deixaram o lugar, botaram o homem reativo no lugar de Deus. O homem reativo agora descobre que ele um nada, ento no quer mais nem valores divinos, nem humanos; nada de valores, nada de vontade. Antes um aniquilamento passivo, uma morte lenta e sem esforo nenhum. muito penoso querer alguma coisa, muito dolorido, esse homem no aguenta mais nada, no quer mais nada.

O que aconteceu com a vontade? A vontade no sumiu, a vontade no desapareceu.

Participante: ela irrompe a? Ou ela pode, ainda assim, no irromper?

No eterno retorno necessariamente ela irrompe. Ento a questo o eterno retorno ligado ao niilismo. O niilismo na roda do eterno retorno negado por ele mesmo. A questo ligar a vontade ao retornar. S retorna o que afirma, o que nega expulso. O eterno retorno seletivo. absolutamente rigoroso, rigorosssimo. uma lgica implacvel. Voc no necessita de nenhuma fico, de nenhum Deus, de nenhuma racionalidade, de nenhuma moral; s pensar. A natureza se pensa.

Participante: quando o homem no quer, quando chega nessa condio de sequer querer, uma condio reativa?

uma condio passiva.

Participante: no reativa?

Bom, no querer o que, no ? Se voc no quer esse mundo e nem a si mesmo; quer dizer, voc no tem nem o querer, mais ele desaparece em voc. Isso o passivo, j j o niilismo passivo. O niilismo reativo quando voc reage contra os valores superiores.

Participante: ainda h uma fora para estar jogando em alguma coisa.

Exato. a afronta, o embate, a luta isso que o reativo, o niilismo reativo. Agora, o passivo no tem mais fora.

Participante: no momento do passivo, possvel que possa irromper a atividade?

Sim. A que vem o que Deleuze chama de ponto focal: o ponto da mudana de elemento. Que elemento esse?

Participante: a vontade sempre existe, a vontade nunca desaparece.

No tem como desaparecer. O poder quer fazer com que acreditemos que o virtual no existe. Ele diz que o virtual a minha memria ou o meu projeto; o virtual o possvel, como fez Aristteles. Ele quer fazer com que acreditemos isso. Mas o virtual, independente de qualquer fora reativa apesar de ns real; ele no existe porque no o apreendemos na sensibilidade a no ser na expresso sensvel, ele se torna sensvel.

Participante: ele no supra-sensvel.

Ele mais infra-sensvel do que supra-sensvel. Ele imanente. o prprio ser da vontade. A vontade isso, a vontade virtual; a fora que atual. Mas no existe fora sem vontade, porque a vontade a prpria relao da fora. Onde est a relao? Voc no pega a relao, a relao virtual. isso que a vontade. por isso que a vontade no quer um objeto fora dela; ela j a prpria relao. Ou ento o que Deleuze diz no Anti-dipo: o desejo no tem objeto; o objeto do desejo o prprio fluxo.

Participante: o que voc consegue pegar j o efeito.

J o efeito. Voc s pega o efeito, exatamente. Agora, conhecemos a vontade atravs da vontade de negar. engraado isso.

Participante: a vontade de negar est presente na conscincia. Toda aquela estrutura que voc desenvolveu na aula passada.

Perfeito. E a conscincia conhece o mundo. Mas o que ela conhece? Ela conhece o que paralisa, ela conhece a marca, ela conhece o fixo. isso. Cristalizou. Mas isso j efeito da negao, e a negao qualidade da vontade. por isso que voc conhece a vontade no niilismo. E Nietzsche diz: preciso ento no conhecer a vontade, mas apreender a sua essncia, o seu prprio ser. Ser a prpria vontade. E ser a prpria vontade j implica uma transmutao. Isso um sentido de transmutao.

Eu estou no ponto focal, na mudana de elemento e de valor. Ou seja, eu no troco de valores porque todo valor existente at hoje produto do negativo. Ento eu no vou simplesmente substituir os valores; esses valores necessariamente so destrudos, eles desaparecem. E por que eles desaparecem? Porque o elemento da vontade no mais o elemento que nega; no o poder da negao que se pe no lugar ou a reao que se pe no lugar da prpria negao. No mais isso. o elemento da afirmao. O elemento da afirmao j est em outro lugar, ele inventa outro lugar, ele uma topologia de superfcie, digamos assim, para usar uma linguagem estica.

E, na medida em que ele habita outro lugar, que o lugar no existe a priori a ele o lugar j efeito da sua expresso -, ele cria valores novos. No s ele faz a transmutao de elemento no mais o elemento de uma vontade negativa, agora o elemento de uma vontade afirmativa, o elemento diferencial que afirma -, mas ele faz tambm a transvalorao. Ou seja, ele cria valores; ele no muda de valores. uma autntica metamorfose e no uma transformao dialtica hegeliana, no um desenvolvimento do homem que superado, que se supera, em funo de uma linearidade da histria, de um desdobramento do esprito absoluto. No isso.

Participante: voc pode falar um pouquinho sobre a metamorfose e a transformao?

A transformao como se fosse o seguinte: vamos supor, voc transforma o dio do sacerdote judaico no amor do sacerdote cristo. Hegel diz que h uma transmutao, uma evoluo do esprito absoluto. E o dio seria a anttese do amor; o amor seria a tese, o dio a anti-tese. Sempre uma relao de opostos e de contraditrios eles se contradizem e um nega o outro. Assim como a flor nega a folha o dialtico diz isso. Voc tem a folha, em seguida vem a flor que nega a folha. Quer dizer, um falso movimento, uma fico, uma generalizao. Por que? Porque onde tem diferena, o dialtico v oposio, ele v anttese. E quem v anttese, quem v oposio? s o tipo reativo. do ponto de vista reativo que voc v oposio. A dialtica completamente reativa, no h dialtica ativa. Marx se enganou redondamente nesse sentido ainda que a obra de Marx seja super interessante, tenha um potencial revolucionrio fantstico numa srie de coisas; mas sob o ponto de vista da dialtica materialista, uma recodificao.

Marx, assim como Freud, sobrecodifica os cdigos que j estavam falidos e d uma nova vida a esses cdigos. Nesse sentido Marx reacionrio e Freud reacionrio. Revitaliza o velho, d uma nova vida. Marx diz o que? Skinner viu bem que esse eu, que tinha uma propriedade, era um eu ilusrio; mas o eu de Skinner um eu abstrato, um eu pequeno-burgus. Precisamos situar o eu pequeno-burgus individualista de Skinner no eu coletivo, no eu histrico, no eu concreto. isso que Marx faz. E ele diz: assim esse eu vai se reapropriar dos valores humanos e dos valores divinos; esse eu vai se desalienar e vai ser livre de modo concreto. Vai ter uma liberdade em cima da propriedade, ele vai se reapropriar, literalmente. Ento a sequncia do ressentimento. E a luta de classes est a para nos mostrar isso. por isso que Nietzsche diz: esse tipo de socialismo um socialismo completamente reativo.

Participante: at aqui todos os valores so negativos. O que entra no lugar dos valores, ento?

O elemento genealgico. O elemento aquele elemento diferencial que gera o valor do prprio valor. o quem, e o que quer esse quem. Esse quem sempre uma vontade, sempre Dionsio, sempre algo que quer, sempre um querer. E o querer avalia - ou seja, ele d uma certa importncia, um certo peso e ao mesmo tempo uma direo, um sentido. Sentido e valor. o querer que faz isso, o desejo que faz isso. Ento esse desejo que a gnese do valor. O valor no anterior vida, no existe valor em si, no existe valor superior vida; a vida no pode ser julgada por causa disso. a vida que avalia, ela que gera, ela que cria valores. Ento quando eu habito esse elemento genealgico que o desejo, que a vontade de potncia, que o querer -, esse elemento cria valores, necessariamente.

Participante: no deixa de existir valor.

Nunca. Gera o valor. Porque sempre existe uma orientao, uma afirmao, um peso.

Participante: a questo como voc fixa o valor em valores pr-estabelecidos, um valor que atribui...

... realidade a voc mesmo, que julga a voc mesmo.

Participante: ento melhor enfocar o desejo do que o valor.

o que Kafka descobriu no Processo, quando ele desmontou a mquina judiciria atual.

Participante: e qual a diferena entre valor e sentido?

O sentido sempre de uma fora. Existe o valor do valor e o sentido do sentido. O sentido do sentido se ativo ou se reativo; voc vai encontrar sempre o ativo ou o reativo. O ativo completamente plural, mltiplo; e o reativo que v dualidade, o que v oposio no ativo. Ento se diz assim: ento isso dualidade em Nietzsche?. No dualidade, porque o ativo j plural; o reativo que v o ativo como oposio, como uma coisa dual, dicotmica. Isso do ponto de vista da fora. Ento o sentido a direo atual da fora; voc vai interpretar um fenmeno como um sintoma de uma fora que est se apoderando dele. Essa fora d o sentido para o fenmeno ou para o sintoma: atravs da apreenso da fora que eu interpreto o sentido. E sempre uma pluralidade de foras que se apoderam do fenmeno. O sintoma sintoma sempre de uma pluralidade de foras que esto ali habitando aquela coisa.

Alm das foras, existe a vontade que a prpria relao entre as foras. A vontade avalia, ela d o valor. E o valor do valor. O valor do valor se negativo ou se afirmativo. Ou seja, o valor do valor so as qualidades da vontade de potncia. O sentido do sentido so as qualidades das foras. O valor do valor da vontade de potncia; e o sentido do sentido, ou o significado do sentido, seria a qualidade das foras. Mas do ponto de vista ativo e afirmativo, tudo plural, no h dualidade; do ponto de vista reativo e negativo, tudo pesadamente monista e dualista. por isso que Nietzsche no dialtico; porque a afirmao mais importante que a negao.

O que afirmao em Nietzsche? Afirmao em Nietzsche no uma maneira de ser, ela o ser de todas as maneiras de ser. Ela o prprio ser. No o ser que afirmado em Nietzsche; o ser afirmao. o devir que afirmado. Mas o devir, nele mesmo, j uma afirmao; o devir j tem o ser nele, j tem a afirmao nele. No h outro ser que no o devir. Ele j uma afirmao. Mas existe a dupla afirmao, a afirmao da afirmao. O devir Dionsio e o ser do devir Ariadne, a dupla afirmao. O devir a primeira afirmao; o ser do devir a dupla afirmao. O Uno do Mltiplo, a necessidade do acaso, o ser do devir, j so a dupla afirmao. O Uno, a necessidade e o ser so, em Nietzsche, o retornar. O retornar o nico Mesmo, a nica identidade, o nico ser, a nica necessidade do acaso, o nico Uno do Mltiplo, o nico ser do devir. o retornar. Ento o prprio retornar afirmao.

Mas esse retornar retorno de que? Retorno da prpria diferena. E o que so as diferenas? Se retorna a diferena, retorna sempre diferente do que era, nunca retorna o Mesmo. O nico Mesmo o prprio retornar, mas no o que retorna. isso que a maioria dos nietzscheanos no entende. O nico Mesmo o retornar, o nico Mesmo para todas as diferenas. isso que o ser unvoco, isso que a univocidade do ser: um nico sentido para todas as diferenas. Que sentido esse? o retornar.

Participante: o conceito de autopoiese.Porque na afirmao do devir que a realidade se produz. isso que o tipo reativo no apreende. isso que o ser de Hegel, de Bauer, de Feuerbach, de Skinner, de Marx, no apreende. por isso que eles desembocam no nada, no niilismo, no homem reativo, no homem passivo e at no homem que quer morrer. Por que? Porque no sabe mais onde est a realidade. Lacan disse isso h poucos anos atrs: o real impossvel. Por que impossvel? impossvel para o tipo reativo.

Participante: inventar impossvel.

Inventar impossvel. Porque Nietzsche diz: real? Crie o real, ele no existe! O real criado, ele produzido. Ento, ns perdemos o sentido da produo, o sentido da experimentao, o sentido da criao. por isso que a arte volta com toda a potncia. Porque a arte no moral; a arte esttica, ela no moraliza o acaso, ela no moraliza o devir, ela no moraliza as multiplicidades. A arte afirma o que vem - afirma o devir como ser do devir; afirma o Mltiplo ou a multiplicidade como o Uno, o ser unvoco dessa multiplicidade; e afirma o acaso como necessrio, a necessidade do acaso. Tudo se d no acaso como um jogo, tudo se d no devir como uma dana e tudo se d na vida como uma afirmao. por isso que a alegria inseparvel de quem sabe jogar, de quem sabe danar e de quem sabe afirmar. Necessariamente voc afirma, voc tem pensamento lgico na afirmao e voc tem a alegria tica, a alegria do modo de ser implicado nisso. O eterno retorno no mais apenas um pensamento, o eterno retorno agora o prprio ser. por isso que autopoitico: ele produz realidade.

E isso que falta o tempo inteiro a ns. isso que Deleuze diz para Toni Negri: falta-nos acreditar no mundo; levar a noo de crena, como Hume faz, para o mundo. Acreditar no mundo no no outro mundo ou em valores divinos ou humanos ou em nada de valores. Acreditar em algo que eu no posso pegar porque ele no existe, mas ele real. apreender o virtual: no virtual que est a criao, que est a vida, que est a potncia, que est a afirmao, que est o pensamento. E ns confundimos virtual com possibilidade, com memria e com projeto. No nem memria nem projeto; a enrascada do tempo que a iluso de conscincia produz em ns que fixa o devir em um comeo e em um fim, que d bom senso ao devir. Mas o devir no tem bom senso, ele catico, ele acaso, ele pluralidade pura.

Saber afirmar o catico, saber afirmar o acaso, saber afirmar as multiplicidades diferenciais o grande segredo. Nietzsche diz que o homem superior no burro apenas porque diz sim aos produtos do negativo e se deixa carregar ou ele prprio se carrega; ele burro tambm porque no sabe dizer no. E o no o efeito de uma afirmao. H um duplo no na afirmao.

Participante: ele um simulacro de afirmao.

Ele um simulacro de afirmao e uma iluso de afirmao. Tudo simulacro para Nietzsche. Eu estava dizendo que a arte a nica sada porque a arte a mais alta potncia de falso. E Nietzsche no acredita na verdade ou numa fixao de algum valor. Nietzsche sabe que toda vontade e toda fora cria sentido e valor, ou maneiras de ser; e no h uma maneira que seja mais verdadeira que a outra. No h ponto referencial que avalie uma em relao outra. Nietzsche avalia assim: o que pode a sua maneira de ser? O que pode a sua verdade? Se ela no pode ser negada, ela pode alguma coisa; se ela pode ser negada, ela merece s-lo, ela vai desaparecer, ela no passa na roda do eterno retorno. Por que ela pode ser negada? Porque ela no soube afirmar. Encontrar a afirmao encontrar a eternidade em voc. ser implacvel, atingir o plano de imanncia. o segredo da afirmao.

Ento o eterno retorno ou o retornar no tem nenhum sentido se no for aliado vontade de potncia. Se voc no aliar vontade de potncia, eterno retorno e as foras, voc vai interpretar a fora como sendo uma diferena micro, menor; um eu diminudo ao infinito. A diferena no se aloja em lugar nenhum, a diferena eternamente diferencial porque uma fora atravessada por uma vontade de potncia que retorna. Ento a diferena fabricada.

Neste sentido, tudo pode se tornar devir ativo. A questo como gerar devires ativos. Esse nosso problema tico, esse nosso combate: fazer com que o virtual seja algo realmente presente, apesar de no existente. Ele continua sendo no existente. Mas o homem submetido incapaz de saber que o virtual real. Ele no consegue apreender porque ele tem medo de afirmar o acaso, de afirmar, de afirmar o caos, de afirmar a pluralidade, de afirmar os mltiplos sentidos ao mesmo tempo e as coexistncias. Ele precisa de uma direo, ele precisa afirmar um sentido de cada vez, segundo uma origem e uma finalidade. o homem do bom senso, o homem medroso, o homem covarde. Ento a que eu j fracasso necessariamente a vida, porque a vida necessariamente reativa. Eu estou na negao j a porque eu no soube afirmar.

O que a afirmao? Afirmao criar uma atmosfera; o palco onde necessariamente os deuses vo se encarnar. saber, ento, gerar aliados, criar elementos, fornecer algo para a paisagem e no chupar a paisagem, no recortar a paisagem, no ver s o que bom, o que me serve, o que mau, o que me nocivo; o que til e o que nocivo: essa a postura moral. Aquele que cria aceita tudo que est e ainda d mais alguma coisa, ele gera mais; ele realmente participa, ele contribui, ele generoso. Ele realmente solidrio isso solidariedade. Solidariedade s existe para os fortes, o fraco nunca solidrio, ele no pode ser solidrio.

Participante: quando voc falou do virtual eu me lembrei da histria do Bergson da semana passada. Podemos pensar o virtual no sentido de trazer o futuro para o presente?

Isso. o passado e o futuro ao mesmo tempo. a sntese do tempo. aquele passar que envolve futuro e passado ao mesmo tempo, a prpria sntese do devir ou sntese do tempo ou sntese do eterno retornar. Esse que o virtual. Ento a questo fazer do eterno retorno um retorno no do Mesmo mas de uma vontade que inventa, que gera, que cria cria sentidos atravs da fora ou gera um devir ativo para as foras, e cria valores ou maneiras de ser. Nesse sentido, a afirmao gera negaes, ela gera no mais negaes como o poder do negativo, mas negaes como maneiras de ser da prpria afirmao. No fundo, a negao apenas uma das infinitas maneiras de ser da prpria afirmao. A afirmao tem infinitas maneiras afirmativas e tem uma maneira negativa. A negao sempre um efeito secundrio e um efeito de agressividade que no tem nada a ver com o ressentimento ou com a violncia do ressentimento, com a guerra do ressentimento, com o dio, com o rancor. O ser afirmativo necessariamente agressivo; no porque ele quer ser agressivo, mas porque no h criao que no destitua valores estabelecidos. simplesmente por isso. Mas ele no visa a destruio dos valores estabelecidos isso por efeito, consequncia. E, ao mesmo tempo, no h criao que no se subtraia s condies negativas da histria. Toda histria uma condio negativa do devir, porque a histria o que est feito, o que est pronto. E o devir sempre o que novo, o que indito, o que devm, o que emerge, o que cria, o que modifica. E a histria o que j est feito, o que j est pronto. por isso que a histria sempre uma condio negativa.

Voc pode interpretar a histria como uma atividade histrica. Alis, aqui h um esclarecimento a fazer: a atividade genrica da cultura desviada, na histria, pelas foras reativas e pela vontade de negar; e a atividade genrica gera uma iluso, um simulacro de afirmao. No que no haja atividade, atividade sempre h; mas atividade independente da vontade de potncia uma viso abstrata. isso que o Estado, que o capitalista, que todo o ser que tem interesse na atividade, fala sempre: a atividade est em tudo. Mas no h atividade seno da fora ativa. Por outro lado, no h atividade da fora ativa que no entre em um devir reativo, na medida em que est nesse rebanho humano. Ento a atividade uma atividade submetida ao devir reativo.

Ento voc tem homens fortes, belos, jovens, cheios de sade, de fora, de potncia, de desejo, de alegria, e o devir deles triste, o devir deles reativo, o devir deles negativo, o devir deles a degenerescncia ou a decadncia no tempo. Porque o tempo o tempo histrico, o tempo das foras reativas, o tempo da vontade de negar. No o tempo aliado da afirmao. por isso que vemos as pessoas lutando contra a morte, lutando contra a decadncia, lutando contra o envelhecimento, ao invs de fazer do tempo um aliado e se tornar um bruxo, como diz a Rita Lee. Eu a ouvi ontem na Rdio Rock; ela sendo entrevistada e dizendo assim: eu sou da turma do deixa cair e o meu antdoto ser bruxa. E ela disse isso mesmo, ela usou essas palavras: fazer do tempo um aliado. Exatamente o que vivemos falando aqui sempre: o tempo como aliado e no o tempo como inimigo.

O homem do ressentimento v o tempo sempre como inimigo, ele se ressente do tempo. a primeira coisa, o primeiro segredo: o medo da morte. por isso que ele nega o acaso, que ele nega o devir: porque ele tem medo de tudo, ele o medroso por excelncia, o cago por excelncia.

Ento a atividade genrica genrica porque ela no est ligada vontade de potncia; quando voc liga a atividade vontade e voc muda o elemento da vontade, h uma transmutao a mudana do elemento diferencial, que agora afirmativo. A atividade se alia com esse elemento diferencial afirmativo; se ela afirmada, ela gera um devir ativo, ela gera devires ativos. Ento toda a questo essa. Nietzsche diz: no que no tenha havido devires ativos na histria. A ele cita mesmo: de grega a cultura se torna alem; ou de dionisaca a arte se torna uma dialtica do homem do conhecimento, uma dialtica socrtica ou de Eurpides; Roma dominada pela Judia; a Renascena eliminada pela Reforma; e por a vai.

Quer dizer, existem sempre devires ativos na histria que so contra a histria sempre so contra a histria. o que Nietzsche chama de intempestivo. contra a histria porque, necessariamente, inatual. Ou melhor, ele diz exatamente isso: contra o presente, redimindo o passado em benefcio, em prol assim o espero de um tempo por vir. O tempo por vir o devir ativo, o porvir mesmo, o prprio devir ativo. E o devir ativo, necessariamente, no presente, mas real; a sim o futuro que voc traz aqui e agora. Mas onde est o futuro? O futuro est exatamente na relao; e a relao catica, plural, mltipla. Ento quando eu afirmo a pluralidade, o catico, o acaso da relao, eu estou no devir. No fundo, no difcil, no fundo muito simples, bem simples.

Participante: no fcil.

No fcil porque o tempo inteiro somos solicitados a nos endividarmos. a dvida que nos rouba o territrio, que nos rouba a superfcie, que nos rouba a virtualidade. a dvida que faz isso. a dvida que diz assim: olhe, voc deve, portanto esse seu futuro j est fisgado; o seu futuro pagar os juros de uma dvida.

Participante: ento no tem futuro.

No tem futuro, te roubaram o futuro. Rouba o territrio o tempo inteiro. O capitalismo vive disso. E agora pior, porque ns vivemos numa sociedade de controle. Ele no se exerce mais sobre indivduos e massas, como era o poder disciplinar do incio do sistema capitalista; ele se exerce sobre dividuaes do indivduo. O indivduo se tornou dividual, o indivduo divduo so fragmentos, so processos que nos atravessam, so fluxos, so ondas e partculas de ondas com uma cifra que modula. No mais o molde, a modulao no tempo, a modulao no devir. Ento o seu devir necessariamente reativo porque ele est sendo modulado pela axiomtica. A axiomtica sempre abstrata; e quando ela abstrata, ela separa a vontade do que ela pode e a fora do que ela pode.

Participante: o caminho virtual que eu tenho a percorrer no futuro, os fluxos a serem percorridos no futuro, esto to determinados e to reduzidos que eu perco a capacidade de prometer.

Exatamente. E no importa mais isso; importa que voc seja capaz de rolar a sua dvida. a moratria ilimitada, voc rola a sua dvida. Rolar a dvida no exceo, regra a regra de todo o sistema atual da sociedade de controle. O poder de controle esse.

Participante: agora me lembra a histria do Kafka, do Processo. Era a questo de ele se implicar no naquelas armadilhas, mas ele se implica no prprio processo; ele desdobra isso, ele vai adquirindo cultura. Ele est se apropriando. No que o futuro est l, j est aqui.

O que acontece no tipo reativo? Os seus nervos, a sua sensibilidade, j so um peso o peso com o qual a realidade avaliada. Ento ele se sente real pelo prprio peso. Isso a incapacidade de gerar real. E por que ele incapaz? Porque ele est endividado. Ele recebeu realidade de alguma outra entidade no caso o dinheiro, o crdito. Mas o crdito que ele recebe sempre insuficiente e, no mximo, ele paga juros e rola o principal da dvida. s vezes ele rola at os juros, mas voc no pode rolar muitos juros.

Veja a Argentina, a: todo mundo sabe que vai ter moratria, mas eles esto espremendo ao mximo; quando tiver moratria mesmo, a outro nocaute. A submete por mais um sculo: a vida inteira dos argentinos gerando. por isso que ns, brasileiros, se a sociedade fosse realmente ativa e apreendesse o processo, iramos saber que a nossa dvida pblica de 680 bilhes de dlares. Foi o que esse governo fez. Diz Deleuze: no h nenhuma democracia, nenhum humanismo, nenhum tipo de direito humano que no esteja atolado at a goela, at o talo com a gerao de bolses de misria. Voc v as universidades a agora: fazendo greve, 70 dias j lutando para ter um miservel salrio, um aumentozinho de salrio miservel, estpido, numa sociedade onde o adestramento das foras reativas a coisa mais essencial que existe. O educador tem que ser um adestrador de foras reativas, ele tem que gerar atividade em ns, ensinar como se tornar ativo, se tornar afirmativo isso que seria o papel do educador. O educador tem que ser a coisa mais valorizada do mundo. Um governo que se diz intelectual, gente do mais alto gabarito, aplaudidssimo na Frana agora, esquerdssima esquerda civilizada. Essa coisa absurda. Tem um Malan, funcionrio do FMI, que comanda tudo; e o Cavallo, na Argentina, no cai porque funcionrio do FMI. O cara demitiu o ministrio inteiro e no demitiu o Cavallo. Um governo que no tem poder nenhum. Onde est o poder dele? Est no FMI.

O capitalismo gera dvida; se voc no tem, ele te deixa endividado. Raul Seixas tinha nos dado uma idia, j: vamos alugar o Brasil, ns no vamos pagar nada. S que no somos donos do Brasil, o Brasil j deve de nascena, uma dvida existencial, uma dvida infinita, no tem como. Ento voc v os pataxs no sul na Bahia: aquilo um escndalo, um absurdo.

Participante: a cultura, de grega, virou alem. Como o ativo e o reativo a?

Os gregos inventaram uma sociedade fora dos cdigos tribais, que ainda era uma atividade genrica e o indivduo era submetido ao coletivo alis, nem existia indivduo e fora do Estado desptico. Eles inventaram na imanncia das relaes; ao problematizar as relaes eles criaram valores e modos de auto-regulao. Ento a cidade-estado deles no era ainda um Estado transcendente ainda que em seguida tenha se tornado transcendente, mas na origem no era. O que os sofistas ensinavam? Que no tem verdade, que a arte de superfcie, sentido de oportunidade, a ocasio do tempo, atmosfera, o palco, o jeito de se relacionar e efetuar as foras e as potncias. Eles ensinavam voc a pensar o tempo e o lugar como elemento que coexistia com os outros elementos. Ento os gregos inventaram relaes mltiplas de fora e regras de passagem para que tivessem um destino nico. Esse destino nico era problematizado; no tinha a sabedoria a priori dos sacerdotes, no tinha Deus, no tinha o dspota e nem a sabedoria mtica inconsciente que auto-regula o mundo selvagem. Eles criaram um modo atravs do pensamento que problematiza o devir. Ou seja, os gregos tinham o sentido da afirmao, eles encontraram a imanncia.

Depois da Idade Mdia, a Renascena reencontra isso tambm. Mas a vem a Reforma...

Participante: o trabalho do logos sobre o devir, pensar sobre isso.

Logos discurso. A linguagem apenas o veculo do pensamento. Mas o pensamento no tem nada a ver com o logos. O logos o modo, a mquina de expresso que voc tem para gerar devires ativos ou reativos.

Participante: o lance quais as foras que sustentavam a palavra.

Isso. Quem est por trs? Quais as foras? O que quer essa fora, o que quer essa vontade. a questo nietzscheana. Nietzsche inventou um mtodo que substitui a outra pergunta do significante desptico, inventada por Scrates e por Plato, e que tem inspirao no dspota divino dos Estados brbaros, que era o que ? ou o que significa? a verdade, a essncia, o objeto geral, o universal. Nietzsche diz: quem? E o que quer esse quem? A, ao perguntar o que o Belo, o sofista diz para Scrates: quem? Quem Belo? Mas quem no remete a um simples exemplo no mundo como Scrates acusava, Scrates ironizava - no estou me referindo a nenhum exemplo no mundo. O quem remetia a quais foras que fazem uma realidade bela? De que ponto de vista a realidade bela? De que lugar? Como ver o mais nobre, o mais belo, o mais elevado, o mais leve, o mais alegre? Descubra o elemento, o ngulo, a posio, o sentido isso que o sofista Hpias dizia para Scrates. E isso que foi esmagado atravs da dialtica socrtica.

Ento havia um devir ativo l entre os sofistas. Plato misturava o sofista com velho, jovem, com embusteiro, como se o sofista no valesse nada. Nietzsche redescobre isso, diz: o real, ou a vontade de potncia, a mais alta potncia do falso. Mais alta potncia do falso descobrir o sentido, o valor, a maneira de ser naquele tempo, naquele espao, com aqueles elementos. sempre nica, sempre singular. Ento essa maneira, se nica, no pode remeter a outra, no pode ser comparada, no pode ser verdadeira ou falsa, ela o que . Ela aquilo. Ento ela anterior a esse julgamento de verdadeiro ou falso. por isso que Nietzsche diz: a mais alta potncia do falso. Tudo falso, tudo criao, tudo maneira de ser. No h a referncia onde eu tenha que me projetar ou introjetar.

Participante: ento o fluxo, ou a fora, na verdade... a questo no est na forma. Quando entramos no fluxo, inventamos formas.

Isso. A questo no est na forma. A forma a condio negativa. por isso que histria condio negativa. A forma a figurao no corpo e a formalizao no discurso. isso que a condio negativa. Ento voc pode at usar isso como um simulacro, at imitar se voc est mais fraco mas j outra fora que vai dar uma enrabada naquilo depois. Ento essa que a questo, voc gerar um efeito de simulao. Isso que o simulacro. por isso que Plato odiava simulacro. Porque o sofista gerava esse efeito de semelhana ou de identidade. J a arte das mscaras, a potncia dionisaca. Dionsio falando j, Dionsio inteiro; Dionsio se mascara e se traveste das mais variadas maneiras e so infinitas.

Participante: de dizer estou em todo lugar e de se multiplicar, e tal.

Ele sucessivo e simultneo ao mesmo tempo. E ele tem o dom da ubiqidade. Ao mesmo tempo ele alegre, ele leve, ele danarino, ele jogador, ele mascarado. Ele tudo isso. Todo o contrrio do Deus cristo que pesado, que triste, que carrega. Ou da dialtica hegeliana: o trabalho do negativo, srio. Aqui no: a mais bela irresponsabilidade, alegre, danarina, leve.

Participante: isso porque a afirmao dele afirmao das diferenas.

Isso. S pode ser isso. necessrio, no tem outro jeito de ser. por isso que impossvel ver Nietzsche como um homem triste, no tem como apesar de todo o sofrimento dele. Ele diz: eu fui crucificado, ele at assina O crucificado; apesar de tudo que ele se ferrou, se fodeu literalmente, apesar de tudo ele diz: eu vejo alegria em tudo, eu vejo alegria na luz, na cor. A arte redime tudo, a arte redime qualquer sofrimento, a arte o sentido alegre do trgico. No tem tristeza na tragdia. Quem v tristeza no trgico o tipo reativo. Por isso que esse filme que vimos a nesses dias lamentvel, um filme piedoso: olhamos aquele Nietzsche l, temos piedade do Nietzsche. difcil. O devir ali reativo; ainda que se passem algumas atividades, algumas afirmaes, mas o geral reativo. No um julgamento, mas o que passa; estimula isso, estimula a piedade.

Participante: ser que o homem o tipo reativo?

Ele porque ele tem o devir reativo; o devir que a essncia do tipo reativo do homem. Ento voc no entende o tipo reativo se voc no jog-lo no tempo, no processo, no devir. o devir, o tempo, o processo que d a essncia do tipo. Ento por isso que o homem essencialmente reativo: porque o homem nasce da fico de Deus. No existiria homem sem essa fico, sem a fico do outro mundo; o homem produto disso. O homem essa forma, o homem agora se apoderou dela, ele introjetou, dizendo: esse eu a nica realidade. Mas esse eu j efeito dessa fico de outro mundo. por isso que o homem essencialmente reativo: porque esse outro mundo nega esse aqui de baixo; ento ele no consegue se livrar dessa negao matando Deus, simplesmente, ou no querendo mais Deus, mais chefe, mais Estado, mais pastor, e dizendo que a lei est nele como faz Kant com seu imperativo categrico. Ele no se torna mais livre, mais ativo e mais afirmativo por causa disso. Ele no se torna senhor porque ele matou o seu senhor: ele continua sendo escravo. por isso que Nietzsche diz: o devir do homem reativo.

Acontece que o homem o que? Quem esse homem? Esse homem o produto do negativo. Mas haveriam foras ativas no homem? Com certeza. Foras ativas no homem. Ento vamos liberar as nossas foras ativas. Destrua o reativo em voc e libere o ativo. por isso que existe uma ambiguidade a nesses kamikazes: ao destruir um monte de foras reativas ali, voc libera uma atividade, sem dvida, voc libera uma condio. S que voc destri. Ento h o aniquilamento: o aniquilamento ainda est dentro do niilismo.

Participante: uma destruio ou uma metamorfose? Quando voc fala destri as foras reativas...

No fundo uma metamorfose. uma destruio das formas de poder ou dos tipos reativos que constituem rebanhos, poderes, Estados, sabedorias, todos esses estratos. Isso destrudo.

Participante: isso uma dissoluo. As formas se dissolvem.

Perfeito. E a gera um devir ativo das foras reativas.

Participante: porque seno traa destruio-construo.

Como se aquilo fosse uma substncia do mal, no ? Mas com tudo que eu falei, no tem como interpretar assim.

Participante: o devir reativo apesar do homem?

Sempre. No fundo, tudo ativo e tudo afirmativo na natureza. S que os poderes ou as formas reativas, os tipos reativos do a iluso de que essa atividade no existe, que a nica atividade a atividade da reao. Confunde-se atividade com reao. Ento quando voc reage, quando voc faz grandes movimentos, estardalhao, o sujeito olha para voc e diz um cara ativo. E atividade no tem nada a ver com isso. Atividade at silenciosa. Diz Nietzsche: os acontecimentos que realmente movem o mundo so imperceptveis e andam com passos de pomba. Demora um tempo para serem percebidos. A morte de Deus ainda est esperando outros sentidos; um acontecimento grandioso, barulhento, mas existem sentidos silenciosos ainda, moleculares.

Participante: se a natureza per se ativa, afirmativa da vida, e o homem um ser que est na natureza, ele seria o tipo reativo presente na natureza.

Isso. E que faz com que a natureza entre num devir reativo. O homem a doena de pele da Terra, diz Nietzsche. Agora, isso no significa que o homem, como fora, esteja condenado; o homem como forma.

Participante: que volta na questo de que a forma um efeito. A forma homem um efeito de um devir reativo; o devir reativo existe apesar do homem?

O devir reativo existe quando um ser incapaz de estar em devir. H uma virtualidade do prprio devir reativo; quando ele se atualiza? Diz Nietzsche, em relao ao homem do ressentimento: quando a faculdade do esquecimento no funciona, quando essa faculdade de amortecimento em relao ao real no funciona. quando as impresses da excitao viram marcas na superfcie e a superfcie j marcada codifica todo o devir; ento no h devir que passe atravs de uma marca que no se torne devir reativo. A reao ou a reatividade sempre quando a figurao domina, a forma domina, o figurativo domina, o que fixa domina. uma iluso de tempo. Ento, no fundo, existe uma iluso no prprio plano de imanncia; essa iluso faz com que percamos exatamente a afirmao. Perdemos o que no existe mas que sempre foi real e continua sendo real; perdemos isso. Isso que a superfcie metafsica, isso talvez o que os esticos queiram dizer com aion que passado e futuro ao mesmo tempo e nunca presente. Mas real. Insiste num futuro e subsiste em um passado ao mesmo tempo, mas no se atualiza nunca. E no pode se atualizar, porque se se atualizar fixa o devir, fixa a excitao, gera a marca. por isso que o aion to importante. Voc tem que ter as duas leituras simultneas no tempo. ter o sentido do fluxo, estar montado no fluxo.

Nietzsche diz o seguinte alis, isso foi uma coisa em que eu insisti pouco: saber rir. No s saber danar, saber jogar, saber afirmar, mas isso tudo saber rir. O que saber rir? saber rir inclusive das nossas desgraas. Se voc jogou mal uma vez, no v levar isso muito a srio; mas o homem ressentido leva tudo muito a srio. Leva a srio e se ofende facilmente. Tudo di, tudo fere. o cu de chumbo que Nietzsche fala. Ento, quando o cara muito srio, no tem humor... o signo humor ou ironia. O humor o mais inocente dos assassinos; porque o riso que dissolve qualquer marca, o riso dissolve tudo e nos libera do nosso peso. No s os outros, mas ns. No o mau riso que as comdias veiculam em 99% das peas de teatro que tem por a, ou at de filmes; no esse riso. Esse o riso deboche em cima de uma claudicao de uma vida frgil, que est em devir ativo ou afirmativo; claudica e a h um riso em cima disso. Esse um mau riso, esse o riso do ressentimento, isso uma ironia. O humor no, o humor o riso em cima das foras reativas que querem se apoderar de mim e com o riso elas simplesmente so eliminadas, sem eu acus-las. s no levar a srio, ser irresponsvel.

Participante: a ironia boicote puro.

um embate dialtico, contra.

Participante: voc suga a ateno, de onde a tua ateno poderia estar alimentando o devir.

Nesses dias tivemos um evento. Veio um mgico que era um mgico zen. Eu nem sabia o que era um mgico zen. Mas eu achei incrvel a capacidade que ele tem de desviar a ateno; e a nossa ateno totalmente consciente, atualizada, ela est no atual e num movimento de tempo, ela tem uma certa frequncia perceptiva. Enquanto ele desviava a ateno, o que mais importava se passava de modo imperceptvel. Essa era a mgica dele, essa a magia zen. Ou seja, assim tambm que somos capturados; porque onde a coisa se passa de fato, onde o devir se passa, no estamos. E existe um texto literrio que chama A fera na selva, do Henry James: um acontecimento que o cara quer viver, ele busca isso, e vive isso como sendo o futuro, como em vias de acontecer, e a coisa est se passando e ele no apreende; quando se passou no tem mais como voltar, j foi. Ele perdeu o acontecimento.

O Kafka tem um enunciado que diz assim: a lei te apanha quando voc a busca, e te deixa ir quando voc a abandona. Ou seja, deixe de acreditar em fico e entre em devir. No acredite no dipo, no acredite nessas coisas tolas. a crena no mundo que no fundo no crena, o virtual que real mas que no apreendemos porque no pensamos. E pensar no pensar com o crebro ou com o discurso. No algo que afirma de algo: a prpria afirmao que est ali. O que a afirmao? uma pura presena no existente. O pensar o puro virtual: ele no existe mas real. Algo est se passando e eu no estou apreendendo porque ele est ali... Nunca consciente, no pode ser consciente.

Participante: aprender o virtual o que ? por sensao, por outro canal?

o segredo da afirmao: saber afirmar dizer passe o que se passar, venha o problema que vier, venha o pior dos males, e seja bem vindo. Quando voc atingir isso no no discurso, no no crebro, mas na postura de vida mesmo, quando isso for um ser em voc, voc pensa. o pensamento pensando em voc, a o pensamento se apodera de voc. No um sujeito que pensa: pensamento sem sujeito sempre. O inconsciente isso, o inconsciente atividade ainda que haja inconsciente reativo tambm. As marcas um inconsciente que deve ficar recalcado, reativo; para que a superfcie e o devir no seja solapado. No fundo, quando voc est no virtual e no pensamento cessa a dicotomia entre consciente e inconsciente, no importa mais, porque voc j est no fluxo. O tomo consciente ou inconsciente? A molcula pensa, a partcula pensa. Diz Nietzsche: as iluses e as confuses comeam quando a vida se torna orgnica, mas na vida inorgnica, a percepo precisa, absolutamente precisa. A vida orgnica que gera um conjunto que j apreende a imagem invertida como sendo a causa quando, na realidade, um efeito. O efeito conjunto vira causa numa viso ilusria de conscincia. Ento, na nossa conscincia, pensamos que pensamos, ou achamos que a conscincia a causa, porque temos essa ateno global.

Falta o ltimo e quinto sentido. Eu dei trs sentidos do niilismo negativo, estou dando um sentido do niilismo reativo e vou dar um sentido do niilismo passivo.