fsp2005-golpe branco, golpe preto e corrupção

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  • 7/29/2019 FSP2005-Golpe branco, golpe preto e corrupo

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    Resposta sima pergunta sobre a relevncia da reforma poltica para o

    problema da corrupo

    Golpe branco, golpe preto e corrupo

    Fbio Wanderley Reis

    Seria certamente uma iluso contar com que a manipulao de

    mecanismos como os envolvidos nas regras que se discutem a propsito da

    reforma poltica permitisse, por si s, a soluo cabal dos nossos problemas. A

    ilustrao talvez mais clara da precariedade de um normativismo idealista setem com a interpretao recente da Justia Eleitoral que resultou na

    implantao da absurda verticalizao, buscando criar por decreto as

    supostas virtudes da poltica ideolgica. Mas impossvel pretender retirar

    do reconhecimento disso a razo para abdicar do esforo de construo

    institucional, que fatalmente envolve certo artificialismo legislativo posto em

    prtica nas constries da conjuntura, ainda que referido ao futuro e visando

    impregnao do prprio contexto mais duradouro que enquadra e condiciona

    as aes do dia-a-dia.

    Tivemos h pouco, na imprensa, Wanderley G. dos Santos (que, alis,

    se tem oposto idia de reformas) a denunciar como golpe branco o

    processo poltico que se desenvolve na crise atual. Todos sabemos, imagino, o

    que seria um golpe preto (ou vermelho, em ateno a certa correo

    poltica): seria aquele em que, na velha imagem, os tanques fossem para as

    ruas e atropelassem as regras vigentes. Mas o que ser um golpe branco?

    Aquele que se faa de acordo com as regras? Se as regras forem observadas,

    como num eventual processo de impeachment adequadamente baseado nas

    normas legais pertinentes, por definio no haver golpe.

    Da no se segue que qualquer norma que se ache em vigor seja boa, e

    talvez se pudesse mesmo dizer que golpe branco seria aquele que se valesse da

    manipulao de normas suficientemente ruins para permiti-la. De todo modo,

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    se tivermos muita instabilidade ou turbulncia (ou se, por exemplo, o remdio

    extremo do impeachment se transformar, como disse algum, em banal arroz

    de festa), deve-se supor justamente que as normas no so boas, e que outras

    normas provavelmente permitiro enquadrar melhor, e de forma mais infensa

    a crises, o jogo poltico real. Pondere-se a respeito o contraste entre as normasparlamentaristas, que possibilitam o processamento institucionalmente sereno

    da substituio da chefia do governo em diferentes circunstncias, e a cintura

    dura que alguns apontam no presidencialismo, no qual, fora dos momentos

    eleitorais prefixados, s se remove um chefe de governo mediante traumtico

    processo criminal. Como quer que se avalie a questo de se haver boas razes

    para remover o chefe enquanto no houver crime (e o incentivo eventualmente

    trazido a que se apontem crimes do chefe...), ou os mritos gerais de um e

    outro sistema, isso obviamente fornece argumentos, por um aspecto relevante,para o esforo de reforma que vise implantao do parlamentarismo.

    Mas outros temas em debate quanto reforma poltica tocam mais

    diretamente a questo da corrupo do que o tema complicado do sistema de

    governo. Na crise que agora presenciamos, evidente a contribuio negativa

    e corruptora trazida por um sistema poltico-partidrio e eleitoral que leva a

    extremos a fluidez dos vnculos entre os partidos e seus supostos membros,

    incentivando a prevalncia, a cada momento, do clculo orientado pelo

    interesse individual sobre consideraes referidas ao partido ou a razes de

    lealdade partidria. Naturalmente, no o caso de acolher a contraposio

    corrente entre a vida econmica e privada, onde os interesses so vistos como

    legtimos, e a idealizao da poltica como a busca altrusta e nobre do bem

    pblico idealizao que, condenada fatalmente a frustrar-se, d origem

    inverso em que todos vem na poltica o espao do vcio e da corrupo

    generalizada. Os interesses tm papel central e legtimo tambm na poltica, e

    as funes dos partidos incluem a de agregao e viabilizao dos interesses

    ao lado da de vocalizao ou afirmao de identidades e valores.

    Isso no torna aceitvel, contudo, que o necessrio equilbrio se rompa e

    a presena dos interesses se destempere na simples compra e venda de

    passes e apoios. E, ainda que o fundamento decisivo da consistncia dos

    partidos tenha de vir, em ltima anlise, de eleitores que se tornem capazes de

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    envolvimento sofisticado e atento com o processo poltico e das identificaes

    partidrias que nasam da, no h razo para renunciar a experimentar com

    legislao favorvel fidelidade partidria, ou com clusulas de barreira,

    regras sobre coligaes, adequada combinao de princpios majoritrios e

    proporcionais, listas partidrias... E, muito especialmente, com formasapropriadas de financiamento pblico das campanhas, seja qual for a

    dificuldade de encontr-las e coloc-las em prtica. Alm do aspecto

    normativo de que, ao contrrio do direito de voto, o direito de ser votado est

    longe de ser assegurado igualitariamente, bem claro que os recursos de

    campanha so o ponto crucial do jogo de compra e venda e da articulao

    escusa entre o pblico e o privado.

    Folha de S.Paulo, 18/6/2005

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