freud e o esquecimento de schopenhauer

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461 Ao título de seu ensaio Para um Uso Marxiano de Wittgenstein , Rossi-Landi apôs uma pequena nota esclarecendo o uso que faz, ali, do termo marxiano. Este termo, diz ele, refere-se ao uso do aparato filosófico e metodológico de Marx (Rossi-Landi, 1985, p. 15), preferível ao termo marxista, mais famoso, que reserva para os desenvolvimentos posteriores que ocorreram sob a Øgide de seu nome e que atribuem ao próprio Marx uma espØcie de infalibilidade acerca de muitas questıes de importância enorme (Rossi-Landi, 1985, p. 15). Essas palavras me parecem adequadas para iniciar a resenha de um livro que trata da prØ-história da teoria de outro autor que, tal como Marx, como quis Foucault, Ø um dos pilares da nossa vida moderna: Freud. O livro chama-se Die Flucht ins Vergessen, título que pode ser traduzido como A Fuga para o Esquecimento, publicado em 1995 pela WBG - Wissenschaftliche Buchgesellschaft (Alemanha) e que nªo foi publicado no Brasil atØ hoje. Seu autor, o psicólogo suíço Marcel Zentner, informa no subtítulo que se trata de um estudo sobre o início da PsicanÆlise de Freud em Schopenhauer. JÆ na introduçªo percebemos que este Ø um livro freudiano, apropriando para esse termo o sentido, pouco comum entre nós, que Rossi-Landi dÆ a marxiano. Nªo Ø um livro freudista. Participa da mesma intençªo de pesquisa radical - que vai às raízes - do pai da PsicanÆlise, sem venerar a aura que lhe foi pespegada a partir de certo momento de sua vida e após sua morte, em razªo de seus escritos. Foi este o principal motivo que nos levou a fazer esta resenha comentada, mesmo após decorridos 6 anos de seu lançamento (voltaremos ao assunto ao final da resenha). Procedendo como de costume em publicaçıes acadŒmicas, Zentner cuidou de resumir cada capítulo na introduçªo do livro, facilitando grandemente a consulta aos assuntos Resenha Freud e o Esquecimento de Schopenhauer em Die Flucht ins Vergessen, de Marcel Zentner 1 Rui Rothe-Neves 2 Antonio Francisco das Neves Universidade Federal de Minas Gerais abordados. Portanto, nada melhor do que tais resumos para nos servir aqui de roteiro. Indo às raízes da PsicanÆlise, Zentner defende a tese de que, à exceçªo do viØs clínico, nada hÆ nos conceitos fundamentais da obra de Freud que antes jÆ nªo estivesse presente na obra do filósofo alemªo Arthur Schopenhauer. Ao defender esta tese, envolta em polŒmica desde hÆ muito, Zentner se volta contra uma afirmaçªo do próprio Freud, de que lera Schopenhauer muito tarde em sua vida (Freud, 1925/1995, p. 62). Para fazŒ-lo, Zentner apresenta informaçıes originais e inØditas. Parte delas Ø fruto de uma cuidadosa e sistemÆtica comparaçªo dos conceitos de Freud com os de Schopenhauer, utilizando para isso, pela primeira vez, manuscritos do filósofo que só se tornaram conhecidos recentemente. O mais interessante, no entanto, Ø que essa comparaçªo Ø feita à luz de outro tipo de informaçªo: documentos históricos que revelam as visitas de Schopenhauer, entªo egresso da Medicina, à ala psiquiÆtrica do hospital CharitØ de Berlim. Esses documentos foram objeto da tese de doutoramento de Zentner em História da Filosofia na Universidade de Zurique e constituem uma contribuiçªo verdadeiramente original para o estudo da história da psiquiatria alemª, da biografia e da filosofia de Schopenhauer. Das notas, fartas e bem cuidadas, depreende-se que a pesquisa histórica de Zentner foi possível graças a uma conjunçªo de fatores mais ou menos fortuitos que o pesquisador soube utilizar muito bem. Para começar, diz Zentner, na Øpoca em que Schopenhauer passou a freqüentar o hospital (1811), era chefe da psiquiatria do CharitØ o Dr. Ernst Horn, psiquiatra famoso. O Dr. Horn tinha uma certa obsessªo por detalhes. De tempos em tempos, mandava recontar todos os pacientes internados, anotando as datas de entrada, motivo e procedŒncia, num procedimento hoje corriqueiro. Em seu diÆrio, registrava inclusive a variaçªo de temperatura durante o dia. Chegou a providenciar que um artista desenhasse a bico-de-pena, um a um, o rosto de cada interno e, por esse motivo, remanesceu atØ os dias de hoje o retrato de um dos trŒs pacientes visitados por Schopenhauer. Dois desses pacientes deixaram anotaçıes escritas, publicadas por 1 Endereço para correspondŒncia: Departamento de Psicologia, FAFICH/ UFMG, Avenida Antonio Carlos, 6627, 31270-901, Belo Horizonte, MG. E- mail: [email protected] 2 Os autores agradecem ao Prof. Marcel Zentner, Universidade de Genebra, Suíça, por enviar comentÆrios e material de apoio. Psicologia: Reflexªo e Crítica, 2002, 15(2), pp. 461-464

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Relação da teoria freudiana com a leitura de Schopenhauer

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    Ao ttulo de seu ensaio Para um Uso Marxiano deWittgenstein, Rossi-Landi aps uma pequena notaesclarecendo o uso que faz, ali, do termo marxiano.Este termo, diz ele, refere-se ao uso do aparato filosficoe metodolgico de Marx (Rossi-Landi, 1985, p. 15),prefervel ao termo marxista, mais famoso, que reservapara os desenvolvimentos posteriores que ocorreramsob a gide de seu nome e que atribuem ao prprioMarx uma espcie de infalibilidade acerca de muitasquestes de importncia enorme (Rossi-Landi, 1985, p.15). Essas palavras me parecem adequadas para iniciar aresenha de um livro que trata da pr-histria da teoria deoutro autor que, tal como Marx, como quis Foucault, um dos pilares da nossa vida moderna: Freud.

    O livro chama-se Die Flucht ins Vergessen, ttulo quepode ser traduzido como A Fuga para o Esquecimento,publicado em 1995 pela WBG - WissenschaftlicheBuchgesellschaft (Alemanha) e que no foi publicado noBrasil at hoje. Seu autor, o psiclogo suo MarcelZentner, informa no subttulo que se trata de um estudosobre o incio da Psicanlise de Freud em Schopenhauer.J na introduo percebemos que este um livrofreudiano, apropriando para esse termo o sentido,pouco comum entre ns, que Rossi-Landi d amarxiano. No um livro freudista. Participa damesma inteno de pesquisa radical - que vai s razes -do pai da Psicanlise, sem venerar a aura que lhe foipespegada a partir de certo momento de sua vida e apssua morte, em razo de seus escritos. Foi este o principalmotivo que nos levou a fazer esta resenha comentada,mesmo aps decorridos 6 anos de seu lanamento(voltaremos ao assunto ao final da resenha). Procedendocomo de costume em publicaes acadmicas, Zentnercuidou de resumir cada captulo na introduo do livro,facilitando grandemente a consulta aos assuntos

    Resenha

    Freud e o Esquecimento de Schopenhauer emDie Flucht ins Vergessen, de Marcel Zentner 1

    Rui Rothe-Neves 2

    Antonio Francisco das NevesUniversidade Federal de Minas Gerais

    abordados. Portanto, nada melhor do que tais resumospara nos servir aqui de roteiro.

    Indo s razes da Psicanlise, Zentner defende a tesede que, exceo do vis clnico, nada h nos conceitosfundamentais da obra de Freud que antes j no estivessepresente na obra do filsofo alemo Arthur Schopenhauer.Ao defender esta tese, envolta em polmica desde h muito,Zentner se volta contra uma afirmao do prprio Freud,de que lera Schopenhauer muito tarde em sua vida (Freud,1925/1995, p. 62). Para faz-lo, Zentner apresentainformaes originais e inditas. Parte delas fruto deuma cuidadosa e sistemtica comparao dos conceitosde Freud com os de Schopenhauer, utilizando para isso,pela primeira vez, manuscritos do filsofo que s setornaram conhecidos recentemente. O mais interessante,no entanto, que essa comparao feita luz de outrotipo de informao: documentos histricos que revelamas visitas de Schopenhauer, ento egresso da Medicina, ala psiquitrica do hospital Charit de Berlim. Essesdocumentos foram objeto da tese de doutoramento deZentner em Histria da Filosofia na Universidade deZurique e constituem uma contribuio verdadeiramenteoriginal para o estudo da histria da psiquiatria alem, dabiografia e da filosofia de Schopenhauer.

    Das notas, fartas e bem cuidadas, depreende-se que apesquisa histrica de Zentner foi possvel graas a umaconjuno de fatores mais ou menos fortuitos que opesquisador soube utilizar muito bem. Para comear, dizZentner, na poca em que Schopenhauer passou afreqentar o hospital (1811), era chefe da psiquiatria doCharit o Dr. Ernst Horn, psiquiatra famoso. O Dr. Horntinha uma certa obsesso por detalhes. De tempos emtempos, mandava recontar todos os pacientes internados,anotando as datas de entrada, motivo e procedncia, numprocedimento hoje corriqueiro. Em seu dirio, registravainclusive a variao de temperatura durante o dia. Chegoua providenciar que um artista desenhasse a bico-de-pena,um a um, o rosto de cada interno e, por esse motivo,remanesceu at os dias de hoje o retrato de um dos trspacientes visitados por Schopenhauer. Dois dessespacientes deixaram anotaes escritas, publicadas por

    1 Endereo para correspondncia: Departamento de Psicologia, FAFICH/UFMG, Avenida Antonio Carlos, 6627, 31270-901, Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] Os autores agradecem ao Prof. Marcel Zentner, Universidade de Genebra,Sua, por enviar comentrios e material de apoio.

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    Zentner. Todas essas informaes foram preservadas nosarquivos do Hospital ou nos de Schopenhauer epermaneceram inditas at que Zentner se debruassesobre elas.

    Baseado no cotejo dos escritos dos prprios internose dos rascunhos produzidos por Schopenhauer naquelapoca, Zentner demonstrou que so daquele perodo muitasdas idias que aparecero dispersas na mais importante obrade Schopenhauer, O mundo como vontade erepresentao (doravante referida como o O mundo)3 .A principal dentre essas idias a de que a loucura causadapela necessidade de esquecer experincias dolorosas. Essateoria da loucura que surge do esquecimento permaneceuadormecida durante os anos em que Schopenhauerredigiu sua tese de doutoramento, publicada em 1813 para reaparecer em O mundo em 1819, sem nunca serdevidamente sistematizada. Fundamental que ela derivouda vivncia emprica de Schopenhauer em encontrosregulares com pacientes internos, em uma poca em que,na Alemanha, doena psquica era considerada conseqnciade pecados e os psiquiatras extraam seus conhecimentossobre essas doenas mentais das especulaes filosficas eteolgicas (Zentner, 1995, p. IX). O primeiro captulo dolivro de Zentner , ento, dedicado a recontar esta histria.

    O segundo captulo traz uma apresentao da teoriade Schopenhauer sobre a loucura. Esta apresentao sebaseia em O mundo e em dois opsculos publicadosmais recentemente, Handschriftliches Nachlass (que pode sertraduzido como Manuscritos do Esplio) e Vorlesungen(Prelees), que permitem acompanhar o surgimento dasua teoria da loucura antes da forma que tomou na obraprincipal. Aqui, o objetivo do autor colocar sob a lupa ateoria clnica que Schopenhauer desenvolveu a partir de suasobservaes (Zentner, 1995, p. 47). curioso notar comoo cerne da teoria schopenhaueriana da loucura j ocupadopor um mecanismo psquico de excluso de memriasindesejadas. Para esse mecanismo, Schopenhauer (s.d., 1941,1974) utiliza o termo amnsia (Amnesie), enquanto Freudpreferir encar-lo como um processo, um mecanismoativo, denominando-o desalojamento, represso, recalque(Verdrngung).

    Desse modo, em relao com o fenmeno da Verdrngung, jencontramos descritos em Schopenhauer uma teoria doconflito, os mecanismos de deslocamento (Verschiebung) e deformao substitutiva (Ersatzbildung) tanto quanto aconcepo de um benefcio primrio da doena, e da resistncia.(Zentner, 1995, p. XIV)

    Aps essa comparao sistemtica, Zentner acrescentaainda alguns comentrios acerca da causalidade nica deambas as teorias e sobre algumas concepes modernas arespeito da etiologia multideterminada das psiconeuroses.

    No terceiro captulo, o autor compara as concepesfilosficas gerais de Schopenhauer e de Freud sobre anatureza humana. O ncleo do captulo formado peladiscusso dos conceitos de vontade (Wille) e intelecto(Intelekt) e seus papis na teoria de Schopenhauer,contrapostos aos de id (Es) e ego (Ich), na teoria de Freud.Em ambos os pensadores, tais conceitos remontam distino, tradicional na filosofia alem, entre dois aspectosda alma ou conscincia. Tanto Schopenhauer quantoFreud consideram seu aspecto racional subordinado aovolitivo, ao contrrio de outros, para quem o volitivo conseqncia do juzo. Zentner compara os autoresbastante didaticamente, dispondo os conceitos e seuspredicados lado a lado em uma tabela. S ento seroesclarecidas, em exemplos bem escolhidos, as antecipaesde Schopenhauer com relao dinmica descrita porFreud entre ego e id (Zentner, 1995, p. XV).

    Zentner dedica o quarto captulo a desmontar a tese,freqentemente mencionada na literatura, a de que ahiptese freudiana da pulso de morte (Todestrieb) radicaem Schopenhauer. Ele parte da comparao de umaspecto especfico da teoria de ambos os autores, o papeldos impulsos. Em primeiro lugar, apresenta a doutrinadas pulses de Freud (as verses anteriores e areformulao de 1914) em comparao com a metafsicada vontade de Schopenhauer. Tanto para Freud quantoanteriormente para Schopenhauer os impulsos podemser tomados como a matriz original, que permitiriacompreender processos psquicos, sociais e culturais. Emsegundo lugar, Zentner considera os paralelos que h, naobra dos dois autores, das dependncias entre carter edestino, de cuja anlise considera Freud um pioneiro.

    Enquanto o fundador da Psicanlise vislumbra no domnioda pulso de morte uma fonte fundamental do mal e dosofrimento, Schopenhauer v na negao da vontade para avida, muito ao contrrio, o mais alto objetivo moral e oacesso para uma felicidade que, alis, no deste mundo.(Zentner, 1995, p. 131)

    Ao abordar o tema do pessimismo no quinto captulo,Zentner, baseado numa distino conceitual, mostra que ele concebido tanto por Schopenhauer quanto por Freudcomo do tipo hedonstico-psicolgico, maisacentuadamente. Esse pessimismo se baseia na premissa,de ambos os pensadores, de que o prazer (Lust) ou ser

    3 Em portugus h pelo menos duas verses parciais (Schopenhauer,1941; 1974) e uma integral (Schopenhauer, s.d.) de O Mundo de modoque optamos por abreviar o ttulo; da edio integral no consta data depublicao, que a editora nos informou ser 1987.

    Rui Rothe-Neves & Antonio Francisco das Neves

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    feliz (Glcklichsein) no um fenmeno positivo, masnegativo, que se alimenta antes de tudo da libertao de umdesprazer (Unlust). (Zentner, 1995, p. XVI). Ao leitorfamiliarizado com a formao de palavras em alemo,no escapam os detalhes etimolgicos desse comentriode Zentner. O termo Lust, geralmente traduzido porprazer, assume tambm as acepes de desejo, gozo evontade de alguma coisa; j Unlust, desprazer, podesignificar ainda repugnncia e falta de vontade. Estapalavra formada, como se observa, pelo prefixo denegao Un- e a palavra Lust. Como, para ambos ospensadores, na constelao de conceitos j explicitada antes,o prazer desempenha importante papel de fio condutor doindivduo, o desprazer (Unlust) no apenas falta, mas umafora reversa. assim que Zentner nos mostra o carterprodutivo do pessimismo de Schopenhauer, compartilhadopor Freud. Para terminar, Zentner ainda chama a atenopara o pouco ou nada conhecido otimismo deSchopenhauer, o que no deixa de ser surpreendente.

    No sexto captulo, Zentner se dedica a investigar aespinhosa questo de como se explicam todos essesparalelos entre Freud e Schopenhauer. Este captulo especialmente importante luz da afirmativa do pensadorvienense, de que seu contato com Schopenhauer s tenhase dado muito mais tarde na histria da Psicanlise. Comoescreveu Freud:

    Mesmo quando me afastei da observao, evitei cuidadosamentequalquer contato com a filosofia propriamente dita.(...). O altograu em que a Psicanlise coincide com a filosofia deSchopenhauer ele no somente afirma o domnio dasemoes e a suprema importncia da sexualidade, mas tambmestava at mesmo cnscio do mecanismo da represso nodeve ser remetida minha familiaridade com seus ensinamentos.Li Schopenhauer muito tarde em minha vida. (Freud, 1925/1995, p. 62)

    Deixando o tom filosfico dos captulos anteriores,Zentner volta pesquisa histrica, de que j se serviramuito bem no primeiro captulo. O autor rene indcios,partindo principalmente da biografia e da correspondnciade Freud, de que no teria sido possvel a este ter passadosem qualquer contato com as idias de Schopenhauer,muito populares poca. Zentner nos apresenta a histriacultural a partir de uma lista de suas apresentaes,palestras e discusses de um grupo de alunos que seautodenominou Clube de Leitura dos Estudantes Alemesde Viena, do qual Freud participou entre os anos de 1873-1878. As atividades do clube, em geral poucoconsideradas pelos bigrafos de Freud, hoje podem serconhecidas graas ao trabalho de William McGrath. Os

    principais autores debatidos pelo Clube eram Schopenhauer,cujas obras na virada do sculo alcanaram a marca de 180mil exemplares vendidos, o jovem e schopenhauerianoNietzsche e Richard Wagner (Zentner, 1995, p. XI). Almdas atividades culturais do Clube de Leitura, Zentner discutea obra de Theodor Meynert, que, apoiado emSchopenhauer, projetara um modelo dualista da psique.Como se sabe, Meynert foi professor de Freud.

    No stimo captulo, Zentner faz uma apreciao crticaconcentrando-se, em sua primeira parte, nos paralelosentre Freud e Schopenhauer. A grande popularidade deSchopenhauer ao final do sculo XIX no foi toa: eleintroduziu uma mudana de aspecto na compreenso danatureza humana. No plano terico, para Zentner, afaanha de Freud consistiu amplamente em vestir asinovaes de Schopenhauer com uma terminologiaarredondada, correspondente ao esprito positivista dapoca (Zentner, 1995, p. XVII). Ele tambm veio aoencontro de uma nova gerao na medida em que teriadiludo o pessimismo de Schopenhauer. O argumento, vriasvezes repetido, de que Freud teria emprestado um slidofundamento emprico s especulaes de Schopenhauer, talcomo este o fizera com relao a seus precursoresfilosficos, demonstra-se, para Zentner, insustentvel numaobservao mais rigorosa.

    Na segunda parte da apreciao final, o autor questiona,com base no novo material bibliogrfico do trabalho, aimagem clich de Schopenhauer, em que ele aparece comoum misantropo hostil vida. O engajamento deSchopenhauer em favor dos pacientes do Charit, aocontrrio, faz dele algum capaz de sincera participao nosofrimento alheio. No se pode negar que, depois daqueleperodo, o comportamento de Schopenhauer tenha sidodeterminante para a construo de sua imagem. Zentner(1995), no entanto, sustenta que no passaram sem rastrosprofundos pela alma do jovem Schopenhauer o fato desua me t-lo rejeitado e o suicdio de seu pai, que ocorreramem momentos decisivos de seu processo dedesenvolvimento. Por fim, na ltima seo, Zentner volta-senovamente para a importncia do encontro de Schopenhauercom a psiquiatria do Charit de Berlim.

    Como dissemos no incio, este livro tem uma qualidadeintrnseca, que nos imps resenh-lo mesmo depois dedecorrido tanto tempo da sua publicao. Uma leituracuidadosa nos sugere, ao contrrio do que possa parecer primeira vista, que o autor no denigre Freud, mas relevaa contribuio original de Schopenhauer. Zentner nosmostra que estes grandes pensadores no so antagnicose incompatveis, mas, muito mais, complementares.

    Somam-se a isto ainda outros fatos que merecem algunscomentrios. Como nos disse seu autor, o livro permanece

    Freud e o Esquecimento de Schopenhauer em Die Flucht ins Vergessen, de Marcel Zentner

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    sem tradues, existindo apenas em alemo mas umaverso italiana est sendo ultimada (M. Zentner, comunicaopessoal, 04/03/2001) e para o leitor de lngua portuguesaestamos preparando uma traduo. Por enquanto, asinformaes inditas que Zentner traz compreenso dasobras de Freud e, sobretudo, de Schopenhauer, permanecemrestritas ao pblico de leitores do alemo. Mesmo nesseambiente, o livro foi apenas brevemente resenhado emjornais suos e na revista psicanaltica Psyche (Vol. 3, 1998).Comentrios mais longos recebeu apenas dois, umenfocando seus mritos histricos (Iannaco, 1998) e outro,sobre a paternidade do conceito de Verdrngung (Gdde,1998), j aps 3 anos de sua publicao. Se considerarmosque a vida de um livro se inicia, de fato, quando seu teorestimula as discusses na rea em que se insere, este livropermanece quase indito.

    Uma pena. Muito da pesquisa brasileira na realimtrofe entre Filosofia e Psicanlise ainda dever sebeneficiar das informaes de Zentner (1995), sobretudoem conexo com interpretaes j existentes do desejoem Schopenhauer (Ex.: Brum, 1998). Afirmamos queDie Flucht ins Vergessen no um livro freudista e,exatamente por isso, sua leitura parece-nos utilssima parailuminar nossa compreenso sobre alguns aspectos daobra de Freud. Como disse Ornston Jr. (1999, p. 141):

    Freud era um cientista. Entre outras coisas, isso significa ques vezes ele ficava confuso e no conseguia enxergar atravsdos pressupostos de seus contemporneos; que ele era, comfreqncia, impreciso ou inconsistente; e que teve sua cota de

    rematados enganos. Infelizmente, qualquer tentativa dedesenvolver uma perspectiva histrica sobre Freud ainda encarada por alguns ou como ataque pessoal ou como umatentativa de desacreditar suas duradouras realizaes.

    Referncias

    Brum, J. T. (1998). O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco.

    Freud, S. (1995). Um estudo autobiogrfico (C. M. Oiticica, Trad.). Em J.Strachey (Org.), Obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 20,pp.15-72). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1925)

    Gdde, G. (1998). Freud, Schopenhauer und die Entdeckung der Verdrngung. Psyche, 52, 143-175.

    Iannaco, F. A. (1998). Schopenhauer e i pazienti della Charit di Berlino(1812-1813). Il sogno della farfalla Rivista di Psichiatria e Psicoterapia, 4, 17-34.

    Ornston Jr., D. G. (Org.) (1999). Traduzindo Freud (C. Serra, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.

    Rossi-Landi, F. (1985). A linguagem como trabalho e como mercado: Uma teoria daproduo e da alienao lingsticas (A. F. Bernardini, Trad.). So Paulo:DIFEL.

    Schopenhauer, A. (s.d.). O mundo como vontade e representao (M. F. S Correia,Trad.). Porto: Rs.

    Schopenhauer, A. (1941). O mundo como vontade e representao. (H. Barbuy,Trad.). So Paulo: Edies e Publicaes Brasil.

    Schopenhauer, A. (1974). O mundo como vontade e representao (W. L. Maar,Trad). So Paulo: Abril.

    Zentner, M. (1995). Die Flucht ins Vergessen: Die Anfnge der Psychoanalyse Freudsbei Schopenhauer. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

    Recebido: 19/06/2001Revisado: 10/10/2001

    Aceite final: 15/11/2001

    Sobre os autoresRui Rothe-Neves Doutor em Lingstica Aplicada pela FALE-UFMG, Professor do Departamentode Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.Antonio Francisco das Neves participou de seminrios de psicanlise no Crculo Psicanaltico deMinas Gerais - CPMG; cursaatualmente a disciplina A Construo do Sujeito, FUNDEP/UFMG.

    Rui Rothe-Neves & Antonio Francisco das Neves

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2002, 15(2), pp. 461-464