frei luís de sousa

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Ler Frei Luís de Sousa (apontamentos) Almeida Garrett (breve biografia) Almeida Garrett nasceu a 4 de Fevereiro de 1799 no Porto e, quando se deram as segundas Invasões Francesas, partiu com a sua família para os Açores, onde inicia a sua formação literária. Em 1816, ingressa na Universidade de Coimbra para seguir estudos de Leis. Começa a interessar-se pelos ideais políticos do liberalismo, quando surge a revolução de 24 de Agosto de 1820 e o novo regime instituído. Entrega-se fervorosamente aos ideais, mas é obrigado a exilar-se em Inglaterra. Aí contactou com o romantismo inglês e escreveu os poemas “Camões” e “Dona Branca” que se tornaram obras instauradoras do Romantismo em Portugal. Em 1826, regressa a Portugal, mas sofre novas perseguições e volta ao exílio em Inglaterra e depois em França. Desembarca na praia do Mindelo em 1832, participando como soldado no Cerco do Porto. A vitória liberal de 1836 faz com que entre definitivamente na vida política, fundando um jornal e tornando-se parlamentar. Ficou a seu cargo a organização de um Teatro Nacional, projecto que concretizou com grande sucesso. Contribuiu ainda para o espólio de peças teatrais portuguesas com as suas próprias obras: Um Auto de Gil Vicente, Dona Filipa de Vilhena, o Alfageme de Santarém, Frei Luís de Sousa. Garrett decidiu mais tarde dedicar- se inteiramente à criação literária. Morreu aos 55 anos com uma vida intensa, deixando um contributo inquestionável para o panorama da literatura e da cultura portuguesas. Absolutismo O absolutismo régio estabeleceu-se na Europa a partir da segunda metade do século XV. Um pouco por toda a Europa Ocidental, as Coroas assumiram-se cada vez mais como detentoras únicas do poder. (...) O absolutismo no nosso país atingiu o auge no século XVIII. Com D. José, o intervencionismo da Coroa é total, levando o absolutismo às últimas consequências, raiando mesmo o despotismo integral e intolerante. O rei, cujo poder ilimitado se dizia provir de Deus, legislava como entendia. Esta prática fez-se sentir em todos os domínios da vida política, desde problemas de grande importância nacional e internacional a problemas da vida quotidiana das populações. Nem a Igreja escapava às garras deste poder. Só no período das Lutas Liberais (1820-1834) se iria pôr termo à monarquia absoluta em Portugal. Liberalismo Doutrina segundo a qual convém dar aos cidadãos as melhores garantias contra o arbítrio do governo, separando deste o poder legislativo e judiciário; Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora.

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Page 1: Frei Luís de Sousa

Ler Frei Luís de Sousa (apontamentos)

Almeida Garrett (breve biografia)

Almeida Garrett nasceu a 4 de Fevereiro de 1799 no Porto e, quando se deram as segundas Invasões Francesas, partiu com a sua família para os Açores, onde inicia a sua formação literária. Em 1816, ingressa na Universidade de Coimbra para seguir estudos de Leis. Começa a interessar-se pelos ideais políticos do liberalismo, quando surge a revolução de 24 de Agosto de 1820 e o novo regime instituído. Entrega-se fervorosamente aos ideais, mas é obrigado a exilar-se em Inglaterra. Aí contactou com o romantismo inglês e escreveu os poemas “Camões” e “Dona Branca” que se tornaram obras instauradoras do Romantismo em Portugal. Em 1826, regressa a Portugal, mas sofre novas perseguições e volta ao exílio em Inglaterra e depois em França. Desembarca na praia do Mindelo em 1832, participando como soldado no Cerco do Porto. A vitória liberal de 1836 faz com que entre definitivamente na vida política, fundando um jornal e tornando-se parlamentar. Ficou a seu cargo a organização de um Teatro Nacional, projecto que concretizou com grande sucesso. Contribuiu ainda para o espólio de peças teatrais portuguesas com as suas próprias obras: Um Auto de Gil Vicente, Dona Filipa de Vilhena, o Alfageme de Santarém, Frei Luís de Sousa. Garrett decidiu mais tarde dedicar-se inteiramente à criação literária. Morreu aos 55 anos com uma vida intensa, deixando um contributo inquestionável para o panorama da literatura e da cultura portuguesas.

Absolutismo

O absolutismo régio estabeleceu-se na Europa a partir da segunda metade do século XV. Um pouco por toda a Europa Ocidental, as Coroas assumiram-se cada vez mais como detentoras únicas do poder. (...) O absolutismo no nosso país atingiu o auge no século XVIII. Com D. José, o intervencionismo da Coroa é total, levando o absolutismo às últimas consequências, raiando mesmo o despotismo integral e intolerante. O rei, cujo poder ilimitado se dizia provir de Deus, legislava como entendia. Esta prática fez-se sentir em todos os domínios da vida política, desde problemas de grande importância nacional e internacional a problemas da vida quotidiana das populações.

Nem a Igreja escapava às garras deste poder. Só no período das Lutas Liberais (1820-1834) se iria pôr termo à monarquia absoluta em Portugal.

Liberalismo

Doutrina segundo a qual convém dar aos cidadãos as melhores garantias contra o arbítrio do governo, separando deste o poder legislativo e judiciário;

Dicionário de Língua Portuguesa, Porto Editora.

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O liberalismo começou a ganhar terreno em Portugal quando o regime absolutista do antigo regime entrou em crise. Esta crise prendia-se com a manutenção da preponderância social da nobreza; o exacerbado protagonismo da colónia brasileira relativamente à metrópole; e o carácter "sagrado" da realeza portuguesa.

In Infopédia

O Romantismo

O termo romantismo é de origem inglesa seiscentista (romantic) e deriva do substantivo francês romaunt, que designava os romances medievais de aventuras. No final do século XVIII, Letourneur e Rousseau, filósofo da revolução francesa, adoptaram este termo, fazendo a distinção entre “romantique” (romântico) e romanesque” (romance). A palavra rapidamente se difundiu pelas restantes culturas europeias, originando a oposição entre romântico e clássico. O Romantismo é um movimento literário e artístico que surgiu na cultura europeia nos finais do século XVIII, num contexto de grande insegurança e de necessidade de exaltação dos valores nacionais, devido às Invasões Francesas. A tentativa de hegemonia do poder napoleónico fez a Europa despertar para os valores nacionais e procurar a liberdade plena: política, religiosa, cultural e literária. Em Inglaterra, este movimento literário difundiu-se através de nomes como William Blake, William Wordsworth, Lord Byron ou o escocês Walter Scott. Em França, o Romantismo impôs-se no final da década de 1820 com Victor Hugo, Chateaubriand e o importante contributo de Madame de Staël. Na Alemanha, a publicação da peça dramática Sturm und Drang de Klinger e a incontornável obra de Goethe lançaram as bases deste movimento estético-literário. O ideário romântico teve expressão nas várias demonstrações artísticas, onde imperavam temas dramático-sentimentais: na poesia, no teatro, no romance histórico, na pintura (Delacroix, Goya e Constable), na escultura e na música (Shubert, Mendelssohn, Wagner e Chopin). Na arte romântica, a paisagem já não era um cenário, mas um meio de expressão. O Romantismo manifestou-se também na sociedade civil, dando eco aos ideais revolucionários burgueses que advogavam uma maior intervenção do povo no plano político. Ao exaltarem os valores populares e a cultura de raízes nacionais, os românticos colocaram a burguesia num estatuto privilegiado.

O Romantismo em Portugal Síntese dos principais acontecimentos O contexto em que o Romantismo surgiu em Portugal foi marcado por uma sucessão de acontecimentos muito importantes, que explicam o facto de esta corrente estético-literária ter chegado ao nosso país com cerca de 30 anos de

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atraso. Esses acontecimentos podem ser resumidos na seguinte linha cronológica:

Em 1807, na sequência das Invasões Francesas, a família real portuguesa embarcou para o Brasil, deixando Portugal sob o domínio britânico.

Devido ao descontentamento geral que se fazia sentir na metrópole, em 1820 ocorreu no Porto uma Revolta militar e civil, que tinha como objectivo expulsar os oficiais britânicos de Portugal e proclamar uma Constituição.

No entanto, em 1821, D. Miguel, que liderava um movimento denominado Vila-Francada, restaurou o governo absolutista e aboliu a Constituição. Em consequência, muitos liberais, como Garrett ou Herculano, foram obrigados a emigrar. Com a morte de D. João VI (em 1826), D. Miguel fez-se aclamar Rei segundo o antigo regime absolutista.

Entretanto, D. Pedro, que se opunha a seu irmão D. Miguel e defendia a causa liberal, regressou do Brasil e organizou nos Açores uma expedição militar que desembarcou na praia do Mindelo, avançando sobre o Porto.

Assim, em Maio de 1834, na convenção de Évora-Monte, os absolutistas renderam-se e D. Miguel partiu definitivamente para o exílio. No entanto, em 1842, um golpe de estado encabeçado por Costa Cabral dissolveu o governo, anulou a Constituição e restaurou a Carta. Instituiu-se um regime ditador, o Cabralismo.

A resposta não tardou e, em 1851, um golpe de estado liderado pelo Marechal Duque de Saldanha deu origem a um movimento que se insurgia contra a política cabralista: a Regeneração. Saldanha foi responsável por um percurso de progresso económico, sustentado pela doutrina económica de Fontes Pereira de Melo - o Fontismo - que apostava sobretudo na construção de caminhos-de-ferro. Os românticos portugueses Os primeiros românticos portugueses, Almeida Garrett e Alexandre Herculano, foram exilados políticos que conviveram de perto com as novas tendências europeias. Aliás, aquele que é considerado o poema introdutor do Romantismo em Portugal, o poema Camões de Almeida Garrett, reflecte essa situação de exílio, já que foi publicado em Paris, em 1825. No entanto, só após o regresso dos exilados a Portugal se verifica verdadeiramente o exercício de uma corrente estética diferente. Por isso, alguns estudiosos consideram que o Romantismo só se instituiu em Portugal em 1836, com a publicação de A Voz do Profeta de Alexandre Herculano. O Romantismo português atingiu a fase áurea entre 1840 e 1850, com a publicação de obras como Um Auto de Gil Vicente, O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett ou Eurico, o Presbítero de Alexandre Herculano. A partir do Romantismo, assistiu-se a um considerável desenvolvimento cultural do povo português: a cultura estendeu-se a outras classes sociais, deixando de ser apanágio da aristocracia. Este novo público emergente apreciava uma linguagem mais simples, clara e acessível e revelava interesse pela paisagem, pelo pitoresco, pelo sentimentalismo.

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Garrett e o Romantismo

Apesar da educação clássica de que beneficiou, Garrett sofreu fortes influências românticas durante as suas estadas em Inglaterra e França (Lord Byron, Walter Scott, Victor Hugo…). Foi com a publicação do poema Camões que Garrett deu origem ao Movimento Romântico em Portugal. Este poema tem como base a história de Camões que tal como Garrett é um expatriado que sofre com o estado da nação. O grande projecto de Garrett era criar uma literatura nacional, procurando aliar a literatura culta com a popular. Para a concretização deste projecto, contribui em grande parte a restauração do teatro. Com o Romantismo, o teatro português sofreu um impulso decisivo ao serem criados por Garrett o Teatro Nacional e o Conservatório Real e incentivada a ideia de criação de um reportório que reflectisse as raízes nacionais. O homem romântico vai explorar o que nele há de mais pessoal e íntimo. Exaltam-se os sentidos e tudo o que é provocado pelo impulso é permitido. Há um verdadeiro culto do “eu” interior em que o individualismo prevalece numa reacção ao racionalismo clássico. Em termos estéticos, o entusiasmo do autor romântico dirige-se para a paisagem agreste e virgem, na sua desordem natural. Da mesma forma, não idealiza o ser humano na sua perfeição, mas encara-o na sua realidade física e comportamental. O artista vê-se impossibilitado de realizar o sonho do “eu” e cai em profunda tristeza, solidão e frustração. A poesia fica ligada à vida cívica e torna-se acessível ao povo. Há uma exaltação de tudo o que é nacional e popular. Há um grande interesse dos românticos pelas origens e, por isso, retornam à Idade Média e cultivam os seus valores. O Romantismo é igualmente marcado pela independência criativa cultivada por Lord Byron que pretende mostrar um estilo de vida boémio e nocturno. Esta independência reflecte-se na recusa das formas poéticas, recorrendo ao verso livre e branco. Valorização do “eu”

- intimismo - Sentimentalimo - Egocentrismo Inovação estética

- “Locus horrendus” - Homem na sua realidade total - Pessimismo

Consciência histórica - Democratização - Nacionalismo - Culto da Idade Média Independência criativa - Byronismo - Liberdade de criação

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O teatro romântico O teatro romântico distingue-se do teatro clássico, não só pela selecção dos temas que privilegiam a história nacional, mas sobretudo pela liberdade da acção e pela naturalidade dos diálogos. O teatro romântico serve-se da prosa e da linguagem corrente, coerente com o grau de sabedoria da personagem, normalmente, de origem simples. As personagens do drama romântico são pessoas reais, por vezes, de origem humilde, cujos pensamentos e sentimentos conhecemos com grande naturalidade. Estas são capazes do mesmo sentido trágico que a nobreza e a sua sensibilidade é demonstrada de modo exacerbado. O nacionalismo é outra das características principais do Romantismo. Linguagem Prosa e linguagem corrente - marcas de oralidade; - vocabulário simples, coerente com a personagem. Personagens Personagem real - demonstração de sentimentos; - forte sensibilidade; - personagens do povo. Nacionalismo

Frei Luís de Sousa

Categorias do texto dramático Texto dramático vs espectáculo teatral Frei Luís de Sousa foi criado com a intenção de ser representado, logo trata-se de um texto dramático. O texto dramático, escrito pelo dramaturgo, destina-se a ser representado, tornando-se, desta forma, texto teatral ou peça de teatro. No entanto, é importante não confundir texto dramático com a sua transformação em teatro como espectáculo (representação). Na passagem do texto para a representação estão envolvidos aspectos como a encenação, a entoação, a mímica e a expressão corporal, a caracterização das personagens, o cenário, etc. Para levar a cabo a representação de um texto dramático é indispensável conjugar esforços de diversos profissionais, como o encenador, o cenógrafo, o aderecista, os técnicos de luz e som, o maquinista de cena, o contra-regra, os actores, entre outros. O encenador coordena as etapas da representação, dirige a peça e ocupa-se da selecção dos actores e dos técnicos. Cabe ao cenógrafo estudar o espaço e orientar a execução do cenário. Este profissional desenha as maquetas e plantas, de modo a conseguir retratar o ambiente onde

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se desenrola a acção dramática. O aderecista auxilia o cenógrafo, pois é ele quem escolhe os elementos que ornamentam o palco, bem como alguns recursos necessários à caracterização das personagens. O técnico de som instala os microfones e opera a mesa de mistura durante o espectáculo, é ele quem regula o som de acordo com as condições acústicas da sala, de modo a que o público possa ouvir o que os actores dizem. O técnico de luz tem a seu cargo o desenho das luzes de acordo com as características do espaço a iluminar e identifica o tipo e a quantidade de material necessário, é também responsável pela iluminação durante o espectáculo. Finalmente, quando todos os profissionais estão a postos e os espectadores sentados nos seus lugares dá-se início ao espectáculo.

Elementos do texto dramático Acção a) Estrutura externa: - acto - cada uma das partes em que se divide uma peça; - cena - divisão de um acto através da entrada ou saída de personagens. A obra Frei luís de Sousa divide-se em três actos. O número de cenas varia em cada um dos três actos: Acto I – 12 cenas Acto II – 15 cenas Acto III – 12 cenas b) Estrutura interna: - exposição - apresentação das personagens e da própria acção;

- conflito - desenvolvimento dos acontecimentos que compõem a acção –

(peripécias, momentos de expectativa, momentos de retardamento, climax); - desenlace - conclusão da acção. Personagens - Principal ou protagonista - desempenha o papel de maior importância. - Secundária - desempenha um papel de menor relevo em relação ao protagonista. - Figurante - desempenha um papel meramente decorativo. Espaço - Representado - local onde se passa a acção. - Da representação - espaço onde decorre a representação da peça.

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Tempo - Representado - tempo em que acção decorre. - Da representação - aquele que é sempre presente, mesmo que o tempo do texto dramático seja passado Tipos de discurso

Texto principal - composto pelas falas das personagens que comunicam directamente, umas com as outras, contando elas próprias a história.

O discurso dramático pode surgir através: - do diálogo - quando as personagens falam entre si; - do monólogo - quando uma personagem fala consigo própria; - dos apartes - falas das personagens que se destinam a ser ouvidas apenas pelo público.

Didascálias - indicações cénicas, informações do dramaturgo sobre gestos, entoação, movimentação e nome das personagens. Estas indicações constituem o texto secundário que surge integrado no texto principal.

Fontes literárias “Memória ao Conservatório Real” é uma introdução à peça Frei Luís de Sousa, lida em conferência ao Conservatório Real de Lisboa a 6 de Maio de 1843. Neste texto, Garrett tece inúmeras considerações sobre a literatura, o teatro e a função do artista na sociedade, o que contribui para melhor conhecermos o pensamento e os objectivos do escritor. Frei Luís de Sousa Escritor português, nascido em 1555, de origem nobre, de nome Manuel de Sousa Coutinho, Cavaleiro da Ordem de Malta, esteve cativo em Argel, onde segundo algumas fontes terá conhecido Cervantes. Ao regressar casou com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal que morrera ou ficara cativo na Batalha de Alcácer-Quibir. Manuel Coutinho tem uma filha deste casamento, que morre jovem. Mais tarde, ambos os cônjuges resolvem ingressar na Ordem Dominicana, assumindo Manuel de Sousa o nome de Frei Luís de Sousa. Dedica-se à escrita no convento e redige uma obra “Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires” de carácter autobiográfico, que mais tarde veio inspirar Garrett. No texto “Memória ao Conservatório Real”, o autor esclarece quais foram as fontes literárias que utilizou para compor a peça “Frei Luís de Sousa”. O seu interesse pela figura de Frei Luís de Sousa começou quando o autor assistia a

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uma comédia espanhola sobre esta mesma personagem. Mais tarde, ao contactar com o texto “Memória do Sr. Bispo de Viseu D. Francisco Alexandre Lobo” apercebeu-se do grande potencial dramático da história em questão e resolveu reler a narrativa de Frei António da Encarnação. Por fim, ao ler um relatório sobre a peça “O cativo de Fez” de Silva Abranches, também inspirada na figura de Frei Luís de Sousa, decidiu tratar o assunto ele mesmo e de modo totalmente diferente. Após um aturado estudo de contextualização histórica, surge uma das obras mais paradigmáticas do teatro português, “Frei Luís de Sousa”.

Classificação literária da obra

Segundo o texto "Memória ao Conservatório Real", Garrett considera a obra “Frei Luís de Sousa” - tendo em conta o conteúdo – uma tragédia. - tendo em conta a forma – um drama As opções de Garrett

Em termos de linguagem: - recusa da utilização do verso: "(...) posto que eu não creia no verso como língua dramática possível (...)" - defesa da utilização da prosa: "(...) repugnava-me também pôr na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa (...)"

Em termos de assunto: - poucas situações; - poucas personagens; - atitudes simples. Definição do tipo de acção em “Frei Luís de Sousa”: "Nenhuma acção mais dramática, mais trágica do que esta (...)"

Contextualização da obra

O estudo do homem é o estudo deste século

Como executar? - Coligir os factos do homem. A quem compete executar? - Ao sábio. Como executar? - Comparar os factos do homem, achar a lei de suas séries.

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A quem compete executar? - Ao filósofo, ao político. Como executar? - Revestir os factos do homem das formas mais populares. - Derramar assim pelas nações um ensino fácil, uma instrução intelectual e moral. Surpreender os ânimos e os corações da multidão, no meio dos próprios passatempos. A quem compete executar? - ao literato, ao poeta.

Romantismo como a época literária do romance e do drama Este excerto permite contextualizar a obra “Frei Luís de Sousa” no período literário do Romantismo, visto que é reforçada a necessidade de educar o povo, mostrando-lhes as nossas raízes populares e tornando a cultura acessível, característica muito comum nos românticos, nomeadamente em Garrett, conhecido também como pedagogo. As notas do autor O carácter pedagógico da escrita de Garrett verifica-se na peça Frei Luís de Sousa. Para além de todas as características típicas de um texto dramático, esta peça possui notas do autor que pretendem instruir, mais do que elucidar, trata-se de mais uma característica do Romantismo. Repara: «Destes antigos familiares das casas ilustres, ou que viviam à lei de nobreza, ainda na minha infância conheci alguns representantes. Nas províncias, e principalmente nas do Norte, até o começo deste século, o escudeiro não era um criado, era um companheiro muitas vezes nem inferior em nobreza, e só dependente pela fortuna. Foi o último vestígio do pouco que havia de patriarcal nos hábitos feudais. O escudeiro é uma figura característica no quadro dos costumes portugueses, enquanto os houve; e hoje mais interessante, depois que se apagou toda a fisionomia nacional com as modas e usos estranhos, nem sempre mais elegantes que os nossos». (A. Garrett) «Não é de invenção minha este argumento que convence tão fortemente o bom do aio velho, e que me lisonjeio de ser uma das coisas mais características e originais que o observador não vulgar encontrará talvez nesta composição. Tirei-o de um precioso tesouro donde tenho havido quási tudo o que em meus escritos literários tem tido a fortuna de ser mais aplaudido. O tesoiro são as reminiscências da minha infância, e o estudo que incessantemente tenho feito da linguagem, do sentir, do pensar e do crer do nosso povo, que é o mais poético e espirituoso povo da Europa.(…)‖ (A. Garrett) «É o antiquado de fareis, que Maria aqui imprega com graciosa afectação, para falar em estilo de donzela romanesca, dando ordens ao seu escudeiro. Ponho isto aqui, porque sei que me notaram o arcaísmo como impróprio do tempo; era-o com efeito no século XVII em que aí estamos, se não fora trazido assim.» (A. Garrett)

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«Os Lusíadas eram decerto então no princípio do século dezassete um livro da moda e que devia andar sobre o bufete de todas as damas elegantes. Hoje está provado que só no primeiro ano da sua publicação se fizeram em Lisboa duas edições, que por sua grande similhança confundiram muito tempo os críticos e bibliófilos. Até o ano de 1613, época da separação de Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena, as edições dos Lusíadas eram já nove, desde a primeira, de 1572, até à do referido ano de 1613, que é a dos célebres comentários de Manuel Correia, feita por Pedro Craesbeck. Das Rimas contam-se três edições do mesmo período; a quarta fez-se no seguinte ano de 1614. Dois autos tinham, saído na colecção do Prestes». (A. Garrett) «De todos os retratos de D. Sebastião que sei existirem, creio que o mais autêntico é o que está, ou estava, pelo menos até 1828, em Angra, na Ilha Terceira, no palácio do Governo, que antigamente fora Colégio dos Jesuítas. É tradição ter sido para ali mandado por el-rei mesmo em sua vida. Muitas vezes contemplei longamente aquele retrato na minha mocidade, e por ele é feita a descrição que pus na boca de Maria.» (A. Garrett)

Frei Luís de Sousa - Acto I (sebastianismo)

Excerto do Canto III d' Os Lusíadas, episódio de Inês de Castro 120 Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruto, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus formosos olhos nunca enxuto, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas.

121

Do teu Príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus formosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam, De dia, em pensamentos que voavam; E quanto, enfim, cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria.

122

De outras belas senhoras e Princesas Os desejados tálamos enjeita, Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas Quando um gesto suave te sujeita.

Page 11: Frei Luís de Sousa

Vendo estas namoradas estranhezas, O velho pai sesudo, que respeita O murmurar do povo e a fantasia Do filho, que casar-se não queria,

123

Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho que tem preso, Crendo co sangue só da morte indina Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina Que pôde sustentar o grande peso Do furor Mauro, fosse alevantada Contra ua fraca dama delicada?

124

Traziam-a os horríficos algozes Ante o Rei, já movido a piedade; Mas o povo, com falsas e ferozes Razões, à morte crua o persuade. Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudade Do seu Príncipe e filhos, que deixava, Que mais que a própria morte a magoava,

125

Pera o céu cristalino alevantando, Com lágrimas, os olhos piedosos (Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Um dos duros ministros rigorosos); E depois nos mininos atentando, Que tão queridos tinha e tão mimosos, Cuja orfindade como mãe temia, Pera o avô cruel assim dizia:

“MADALENA (repetindo maquinalmente e devagar o que acaba de ler) Naquele ingano d’alma ledo e cego que a fortuna não deixa durar muito…(1) Com paz e alegria d’alma… um ingano, um ingano de poucos instantes que seja… deve de ser a felicidade suprema neste mundo. E que importa que o não deixe durar muito a fortuna? Viveu-se, pode-se morrer. Mas eu!… (Pausa) . Oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que eu vivo… este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. Oh! que amor, que felicidade… que desgraça a minha! (Torna a descair em profunda meditação; silêncio breve).‖

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A obra Frei Luís de Sousa inicia-se com dois versos retirados do episódio de Inês de Castro d' Os Lusíadas. A personagem D. Madalena comenta os versos que lê, fazendo referência a um “ingano”: Uma felicidade aparente. A aproximação que Garrett faz entre Inês de Castro e Dona Madalena indicia logo no início da obra um fim trágico. No excerto acima, as interjeições e a pontuação evidenciam um sentimento de inquietação, típico do Romantismo. As expressões sublinhadas (formadas por uma sucessão de palavras, gradação) revelam a intensificação do estado de espírito de D. Madalena. Ambas as expressões gradativas contribuem para realçar o crescendo de emoções da personagem. Neste excerto do monólogo de D. Madalena, o “mas” (conjunção coordenativa adversativa) revela uma alteração no seu estado emocional. D. Madalena vive em desassossego, porque teme perder a felicidade que alcançou. As lembranças do passado provocam em D. Madalena um grande sofrimento e isso é visível na pausa que ela faz no monólogo e nas expressões de desespero que se vão seguindo.

Dona madalena casou pela primeira vez com D. João de Portugal, um nobre cavaleiro. Seu marido partiu numa jornada para África, lutou lado a lado com D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir e desapareceu tal como o rei. Durante 7 anos procuraram-no, mas em vão. D. Madalena voltou a casar com Manuel de Sousa Coutinho e teve uma filha, Maria. O aio Telmo Pais foi um fiel servidor de D. João de Portugal e tem dúvidas em relação à morte de D. João de Portugal: "MADALENA (...) Sabeis como chorei a sua perda, como respeitei a sua memória, como durante sete anos, incrédula a tantas provas e testemunhos da sua morte, o fiz procurar por essas costas de Berberia, (...) Tudo inútil; e a ninguém mais ficou resto de dúvida… TELMO — Senão a mim. (...) TELMO (gravemente) (...) Não me esqueceu uma letra daquelas palavras; e eu sei que homem era meu amo para as escrever em vão: — «vivo ou morto, Madalena, hei-de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste mundo». — Não era assim que dizia? (...) "

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A crença de Telmo no regresso do seu amo era vista como um agouro por D. Madalena que passou a ver a figura de D. João de Portugal com um fantasma. Telmo desempenha assim o papel tradicional que o coro assumia nas tragédias gregas, anunciando o mal que viria sem intervir na acção. Os dois amos vistos por Telmo: D. João de Portugal – ―…que têmpera d’alma era aquela…‖ Manuel de Sousa Coutinho – ―…honrado fidalgo, bom português…‖; ―…nunca há-de

ser aquele espelho de cavalaria e gentileza…‖; ―…que não sei latim como meu senhor…‖; ―…fidalgo de tanto primor e de tão boa linhagem…‖

Telmo, apesar de todo o respeito que guarda a D. Madalena e ao seu segundo marido, continua leal ao seu primeiro amo, desejando o seu regresso e não acreditando na sua morte.

A crença no regresso de D. Sebastião assusta duas das personagens desta peça: D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho. O medo na crença do regresso de D. Sebastião reside na probabilidade do regresso de D. João de Portugal. O rei D. Sebastião nasceu em 1554 e ficou conhecido pelos seus grandes feitos heróicos. Acabou por morrer em 1578, combatendo na batalha de Alcácer Quibir, onde lutava pela expansão territorial. Como era solteiro e não tinha filhos, o seu desaparecimento provocou uma crise dinástica que veio originar a aclamação de Filipe II de Espanha como rei de Portugal. A notícia da morte do rei português, mal aceite pelos populares, deu azo ao nascimento de um mito, o mito sebastianista que se baseia na crença do regresso daquele que salvará a pátria e lhe restituirá a sua glória. Expressões que contribuem para a caracterização de Maria, presentes nas falas de D. Madalena e de Telmo: ―…está uma senhora…‖; ―…pobre menina!‖; ―um

anjo…‖; ―uma viveza, um espírto!‖; ―…que coração!‖; ―…está sempre a querer saber…‖; ―…delgadinha…‖

Telmo considera Maria merecedora de uma situação mais digna, porque é fruto de um casamento que ele considera ilegítimo Tendo em conta o texto, podemos concluir que Madalena considera que a sua filha necessita de moderar a sua curiosidade. Maria apresenta características tipicamente românticas de menina-anjo, delicada e de extrema bondade. A sua perspicácia assusta Madalena, na medida em que a sua filha se aproxima cada vez mais da verdade. Maria é uma personagem idealizada: - a ingenuidade, a pureza, a meiguice, o abandono, …, próprios duma alma infantil, e a inteligência, a experiência, a cultura, a intuição, características de um espírito adulto, confluem numa personagem pouco real, só entendida à luz do desvelo que Garrett votava a sua filha Maria Adelaide e à condição social que, para a mesma, resultara da morte prematura da mãe; - protótipo da menina-anjo, tão do agrado dos românticos, Maria é demasiado angélica para ser verdadeira;

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- a sua dimensão psicológica resulta, por isso, contraditória, ao revelar comportamentos, simultaneamente, de criança e de adulto. Alguns traços caracterizadores de Maria: - ternura - culto sebastianista - dom de sibila (dom da profecia) - cultura - coragem, ingenuidade e pureza - tuberculosa ―MARIA — Não é isso, não é isso; é que vos tenho lido nos olhos… Oh, que eu leio nos olhos, leio, leio!… e nas estrelas do céu também, e sei cousas… MADALENA — Que estás a dizer, filha, que estás a dizer? que desvarios! Uma menina do teu juízo, temente a Deus… não te quero ouvir falar assim. Ora vamos: anda cá, Maria, conta-me do teu jardim, das tuas flores. Que flores tens tu agora? O que são estas? (Pegando nas que ela traz na mão.) MARIA (abrindo a mão e deixando-as cair no regaço da mãe) — Murchou tudo… tudo estragado da calma… Estas são papoulas que fazem dormir; colhi-as para as meter debaixo do meu cabeçal esta noite; quero-a dormir de um sono, não quero sonhar, que me faz ver cousas… lindas às vezes, mas tão extraordinárias e confusas…‖

As expressões textuais a negrito remetem para o carácter divinatório de Maria. O carácter divinatório e visionário de Maria é demonstrado por uma série de indícios trágicos por si revelados, não só relacionados consigo própria, mas também com as restantes personagens.

Frei Luís de Sousa - Acto I (elementos simbólicos)

Cenas V e VI do Acto I Num texto dramático a passagem de uma cena para a outra ocorre quando entra ou sai uma personagem. Frei Jorge traz uma notícia que provoca inquietação nas personagens: os governadores decidem instalar-se na casa de Manuel de Sousa Coutinho. Na cena VIII, desenrola-se uma conversa exaltada entre D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho, onde as opiniões divergem.

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D. Madalena demonstra muito receio em regressar a casa do seu primeiro marido, deixando perceber um certo sentimento de culpa por ter amado D. Manuel, enquanto era casada com D. João. D. Madalena é uma personagem que se caracteriza pelas suas paixões exaltadas, pelos seus receios e premonições, pela sua fragilidade e pelo seu desejo de fugir ao destino. Estas características fazem dela uma personagem romântica.

O romantismo nas personagens de Frei Luís de Sousa

Características românticas

Personagens

Desejo de liberdade ansiando quebrar todas as correntes que prendem a liberdade do eu.

Madalena, Maria, Manuel de Sousa Coutinho

Pessimismo, melancolia, desespero, terror, angústia de existir, superstição, sentimentos obsessivos e de culpa, premonições.

D. Madalena

Evasão ou fuga para mundos imaginários, sonho, devaneio.

Madalena, Maria, Telmo

Nacionalismo, culto da ideologia patriótica, coragem.

Manuel de Sousa Coutinho

Defesa da Pátria e da justiça. Irreverência humana. Protótipo de mulher-anjo fragilizada.

Maria

Manuel de Sousa Coutinho utiliza alguns argumentos para convencer D. Madalena a ir para casa do seu antigo marido: ―MANUEL Rezaremos por alma de D. João de Portugal nessa devota capela que é parte da sua casa; e não hajas medo que nos venha perseguir neste mundo aquela santa alma que está no céu, e que em tão santa batalha, pelejando por seu Deus e por seu rei, acabou mártir às mãos dos infiéis. Vamos, D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem vindes, senhora… e não me tires, querida mulher, com vãs quimeras de crianças, a tranquilidade do espírito e a força do coração, que as preciso inteiras nesta hora.‖

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Há uma mudança de tratamento de vós, que ele usa para apelar ao seu estatuto social, para tu, que demonstra a proximidade afectiva entre marido e mulher. Manuel de Sousa Coutinho, ao incendiar a sua própria casa, diz: "- Ilumino a

minha casa para receber os muito poderosos e excelentes senhores governadores

destes reinos...(...)", utilizando a ironia. "MANUEL — Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?"

Tendo em conta a frase sublinhada no texto, percebe-se que Manuel de Sousa Coutinho, em tom de fatalidade, parece preparar o seu próprio destino. Manuel de Sousa Coutinho decide incendiar a sua casa num acto patriótico. Ao destruir a sua própria casa, Manuel de Sousa Coutinho encontra um modo de responder à afronta dos governadores, representantes da coroa espanhola que decidiram instalar-se no seu palácio. A obra “Frei Luís de Sousa” apresenta vários elementos carregados de simbologia. Garrett dá-nos indicações sobre o espaço, logo no início do primeiro acto, através de uma didascália. A acção inicia-se numa sala ampla. São feitas referências à luminosidade, assim como a diversos elementos coloridos que representam uma certa alegria e até felicidade vividas naquela casa. Um outro elemento simbólico presente na sala é o retrato de Manuel de Sousa Coutinho que assume grande importância ao ser destruído pelo fogo, indiciando uma desgraça. O elemento fogo simboliza a destruição que vem impor uma mudança espacial que vai influenciar o destino de todas as personagens. A simbologia dos números encontra-se também muito presente nesta obra. A referência ao número 13, a idade de Maria, não augura sorte. O número 7, como os sete anos em busca de D. João de Portugal, e o seu múltiplo, 14, como os anos do segundo casamento de D. Madalena simbolizam um fim de ciclo, por um lado, e, por outro, o destino e a fatalidade.

Frei Luís de Sousa - Acto II (indícios de tragédia)

A importância dos retratos Os retratos da casa, para onde se mudou a família de Manuel de Sousa Coutinho, exercem um certo fascínio sobre Maria: D.Sebastião - "(...) a ousadia reflectida que está naqueles olhos rasgados, no apertar

daquela boca!…(...)"

Camões - "(...) aquele teu amigo com quem tu andaste lá pela Índia, nessa terra de

prodígios e bizarrias, por onde ele ia… como é? ah, sim…Nua mão sempre a espada e noutra a pena."

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D. João de Portugal - "Aquele aspecto tão triste, aquela expressão de melancolia

tão profunda… aquelas barbas tão negras e cerradas… e aquela mão que descansa na espada, como quem não tem outro arrimo, nem outro amor nesta vida… (...) "

(enumeração)

A escolha destes três retratos, por parte de Garrett, tem uma intencionalidade subjacente:

A escolha do retrato de Camões demonstra um gosto pela exaltação nacional, tipicamente romântico, visível em Os Lusíadas.

A escolha do retrato de D. João de Portugal remete para o mito sebastianista.

A escolha do retrato de D. Sebastião tem como objectivo representar a ideia do sebastianismo latente da época.

O reconhecimento "MANUEL (sorrindo) — Se tu sabes tudo, Maria, minha Maria! (amimando-a.) Mas não sabias ainda agora de quem era aquele retrato… MARIA — Sabia. MANUEL — Ah, você sabia e estava fingindo? MARIA (gravemente) — Fingir, não, meu pai. A verdade… é que eu sabia de um saber cá de dentro; ninguém mo tinha dito; e eu queria ficar certa. MANUEL — Então adivinhas, feiticeira. (Beija-a na testa.) Telmo, ide ver se chamais meu irmão; dizei-lhe que estou aqui.‖

Neste excerto da Cena II, Manuel de Sousa Coutinho refere o carácter divinatório de Maria, (sublinhado).

No excerto que se segue da Cena III faz-se uma alusão, por parte das duas personagens, a um provérbio: “O hábito não faz o monge”. ―MANUEL — Ora ouve cá, filha. Tu tens uma grande propensão para achar maravilhas e mistérios nas coisas mais naturais e singelas. E Deus intregou tudo à nossa razão, menos os segredos de sua natureza inefável, os de seu amor e de sua justiça e misericórdia para connosco. Esses são os pontos sublimes e incompreensíveis da nossa fé! Esses crêem-se; tudo o mais examina-se. Mas vamos: (sorrindo) não dirão que sou da Ordem dos Pregadores? Há-de ser destas paredes, é unção da casa: que isto é quási um convento aqui, Maria… Para frades de S. Domingos não nos falta senão o hábito… MARIA — Que não faz o monge… MANUEL — Assim é, querida filha! (…)‖

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O Provérbio O provérbio, sendo uma máxima característica da sabedoria popular, funciona como uma marca do Romantismo, onde se exalta tudo o que é nacional e popular. Este provérbio surge neste contexto com uma intencionalidade, uma vez que ele permite antever o destino final de Manuel Sousa Coutinho, que virá a abraçar a vida religiosa como Frei Luís de Sousa. No diálogo entre pai e filha (cena II e III) ocorre uma revelação: Maria identifica o retrato de D. João de Portugal como sendo o do primeiro marido de sua mãe. Manuel de Sousa Coutinho explica à filha, sem receios, que, embora ambos lamentem o triste destino de D. João, a sua morte permitiu a vida de Maria, sua querida filha.

Indícios de tragédia Intensificação dramática Nas cenas V, VI e VII há uma variação do estado emocional de D. Madalena que confere um grande dramatismo às cenas.

Restabelecimento da calma ―Estou boa já, não tenho nada…‖, ―As tristezas

acabaram…‖ Retoma do terror "- Sexta-feira! (aterrada) Ai que é sexta-feira!",

―Logo hoje!...‖, ―— Oh, Maria, Maria… também tu me queres deixar! Também tu me

desamparas… e hoje!" Terror "— Cuidados!… Eu não tenho já cuidados. Tenho

este medo, este horror de ficar só… de vir a achar-me só no mundo."

Manuel de Sousa Coutinho nega o paralelo entre a situação da Irmã Joana e a deles. ―MANUEL — (…) Olha a condessa de Vimioso, esta Joana de Castro, que a nossa Maria tanto deseja conhecer… Olha se ela faria esses prantos, quando disse o último adeus ao marido… MADALENA — Vivos ambos… sem ofensa um do outro, querendo-se, estimando-se… e separar-se cada um para sua cova! Verem-se com a mortalha já vestida e… vivos, sãos… depois de tantos anos de amor… e convivência… condenarem-se a morrer longe um do outro, sós, sós! E quem sabe se nessa tremenda hora… arrependidos!… JORGE — Não o permitirá Deus assim… oh, não. Que horrível coisa seria! MANUEL — Não permite, não. Mas não pensemos mais neles: estão intregues a Deus… (Pausa.) E que temos nós com isso? A nossa situação é tão diferente… (Pausa.) Em todas nos pode ele abençoar. Adeus, Madalena, adeus! Até logo. Maria já lá vai no cais a esta hora… Adeus! Jorge, não a deixes. (Abraçam-se: Madalena vai até fora da porta com ele).

A necessidade de Manuel de Sousa Coutinho diferenciar as duas situações comparadas, a da irmã Joana e a deles mesmos, sugere o seu receio: indício daquele que será o destino final desta família.

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O monólogo de Frei Jorge A figura de Frei Jorge assume uma certa importância, nestas cenas, por se encontrar só. "CENA IX JORGE (só) — Eu faço por estar alegre, e queria vê-los contentes a eles… mas não sei já que diga do estado em que vejo minha cunhada, a filha… Até meu irmão o desconheço! A todos parece que o coração lhes adivinha desgraça… E eu quási que também já se me pega o mal. Deus seja connosco!"

Exemplo de serenidade e bom senso, Frei Jorge vem confirmar e anunciar o fim trágico, assumindo aqui o papel de coro. O coro aparece nas tragédias gregas com a função de comentar o enredo das peças e anunciar o desenlace das mesmas sem nunca participar na acção. A sexta-feira A sexta-feira assume para D. madalena um carácter funesto. D. Madalena casa-se com D. João de Portugal numa sexta-feira. Numa sexta-feira, D. madalena conhece Manuel de Sousa Coutinho e de imediato se apaixona por ele, apesar de ainda estar casada com D. João. Mortificada pela culpa, vê esse dia como se fosse o dia do início da sua desgraça. D. João, juntamente com D. Sebastião, desaparece na Batalha de Alcácer Quibir que se trava numa sexta-feira de 1578. Esse desaparecimento veio permitir o amor de D. Madalena por Manuel de Sousa Coutinho. Manuel de Sousa Coutinho, já casado com D. Madalena, resolve incendiar a sua própria casa, obrigando-a a regressar à casa de seu primeiro marido e aí ficar mais perto do passado. Tudo isto a uma sexta-feira. O terror de ficar só numa sexta-feira na casa de seu antigo marido ainda mais se acentua, contribuindo para o evoluir dramático das cenas que preparam o clímax. Nesse mesmo dia, sexta-feira, surge alguém inesperado.

O Romeiro As falas do Romeiro dão-nos indícios de quem ele efectivamente é: "— Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo." - Chegada de África. "(...) morei lá vinte anos cumpridos." - Permanência demorada. "(...)Oh! eu não merecia estar onde estive: bem vedes que não soube morrer lá." -

Estada forçada e amargurada em África. "— A minha família… Já não tenho família." - Perda da sua família.

Todas as informações reveladas pelo Romeiro coincidem com as circunstâncias trágicas do desaparecimento de D. João, indiciando que se trata da mesma pessoa. As didascálias que acompanham as falas de D. Madalena (acto II, cena XIV e XV) permitem reforçar o evoluir dramático da situação: (Com um grito espantoso); (Espavorida); (Na maior ansiedade); (Aterrada).

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As reacções de D. Madalena confirmam um estado inicial de terror relativamente contido, seguido de uma extrema ansiedade, e uma reacção um pouco mais descontrolada, culminando por fim num grito de extremo sofrimento. O Romeiro, durante o seu longo discurso, lança inúmeras invectivas num sentido de condenação: ―(…) Os mais chegados, os que eu me importava achar…

contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela (…); ―Pedi-lhe vós perdão a Ele, que vos não faltara de quê.‖; ―Deus lho perdoará, se puder!‖; ―(…) sofrei, que ele também sofreu muito.‖

Romeiro ou D. João de Portugal sente-se atraiçoado, porque sua mulher não esperou pelo seu regresso, daí as falas amarguradas e condenatórias. ―ROMEIRO — Hoje há-de ser. Há três dias que não durmo nem descanso nem pousei esta cabeça nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje, para vos dar meu recado… e morrer depois… ainda que morresse depois; porque jurei… faz hoje um ano… quando me libertaram, dei juramento sobre a pedra santa do Sepulcro de Cristo…‖

O advérbio de predicado, “hoje”, com valor temporal destacado refere-se a um dia recorrentemente evocado nas cenas anteriores: sexta-feira. "O advérbio "hoje" vai ser repetido vinte e quatro vezes até ao fim do acto. É uma espécie de refrão - voz coral que previne o espectador da data em que irão justificar-se os permanentes temores de Madalena." D. João escolheu a sexta-feira para aparecer à sua esposa, confirma-se mais uma vez o valor funesto que este dia assume nesta peça. O retrato de D. João, que até à cena XIV funcionara como um meio de evocação do passado, serve, agora como um meio de reconhecimento. No momento do clímax, Romeiro revela quem é, sem se revelar propriamente, utilizando o pronome indefinido “ninguém”.

Uma família destruída ―MANUEL DE SOUSA sentado num tamborete ao pé da mesa, o rosto inclinado sobre o peito, os braços caídos e em completa prostração de espírito e corpo; num tamborete do outro lado, JORGE, meio incostado para a mesa, com as mãos postas e os olhos pregados no irmão:"

Esta didascália que introduz o Acto III, mostra-nos que, nesta altura, Manuel de Sousa Coutinho e seu irmão já sabem do regresso de D. João de Portugal. Estas indicações cénicas revelam-nos o estado de choque de Manuel de Sousa Coutinho e a inquietação de seu irmão. Ao descobrirem que D. João se encontra vivo, Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena pensam de imediato na sua filha.

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"MADALENA — Minha filha, minha filha, minha filha!… (Em tom cavo e profundo.) Estou… estás… perdidas, desonradas… infames! (Com outro grito do coração.) Oh! minha filha, minha filha!… (Foge espavorida e neste gritar.)" "MANUEL — Oh, minha filha, minha filha! (Silêncio longo.) (...)Uma filha bela, pura, adorada, sobre cuja cabeça — oh, porque não é na minha! — vai cair essa desonra, toda a ignomínia, todo o opróbrio que a injustiça do mundo (...)"

Fruto de um casamento ilegítimo, uma vez que D. João se encontra vivo, Maria torna-se uma grande preocupação para os pais.

Observando o diálogo de Manuel de Sousa Coutinho com Frei Jorge, nota-se uma mudança de discurso em relação aos actos anteriores:

Características visíveis na personagem Manuel de Sousa Coutinho até ao fim do Acto Segundo: coragem, sentido prático, tranquilidade de espírito.

Características de Manuel de Sousa Coutinho visíveis no início do Terceiro Acto: exasperação, visão trágica, tendência para o exagero, inquietação de espírito.

Depois da revelação que D. João de Portugal não morreu, os traços característicos de Manuel Sousa Coutinho alteram-se, vindo a assumir um carácter marcadamente romântico.

Romeiro e Telmo "TELMO (em grande ansiedade) — Senhor, senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo! É que vós não sabeis… D. João, meu senhor, meu amo, meu filho, vós não sabeis… ROMEIRO — O quê? TELMO — Que há aqui um anjo…(...) "

Telmo, quando fala de um anjo, refere-se a Maria. Telmo sente-se dividido afectivamente entre D. João e Maria. O diálogo entre o Romeiro e Telmo revela a necessidade do primeiro em saber se D. Madalena encetara todos os esforços para o encontrar. D. João procurou a vingança contra D. Madalena sem reflectir se esta o tinha realmente atraiçoado. Certificando-se junto de Telmo, que esta tinha feito tudo para o encontrar, arrepende-se e procura emendar todo o mal que lhe causou. A temática do regresso sempre foi muito recorrente na literatura: Na Odisseia, Ulisses, ao regressar a casa ao fim de muito anos, duvida da fidelidade de sua mulher, Penélope, e certifica-se dela antes de revelar a sua identidade.

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A tomada do hábito D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho encontram uma solução, em relação ao regresso de D. João, numa vida conventual e reclusa. Apesar do extremo sofrimento da separação, Manuel de Sousa Coutinho mostra-se de certa forma conformado. D. Madalena, por seu lado, resiste a esta solução, tal é o seu amor por Manuel de Sousa Coutinho e pela sua filha. Esta solução de morte para o mundo é tipicamente romântica. O fim Maria aparece nesta cena querendo impedir o inevitável. Ela representa a luta de uma filha pelos pais que recusa o destino escolhido pelos dois. Manifestando o seu sentido visionário, esta frágil figura revela que sempre pressentira a desgraça. Nos seus sonhos, Maria via uma figura terrível que a assombrava. Este indício trágico é concretizado ao reconhecer no Romeiro a figura que tanto temia. Maria acaba por morrer em grande sofrimento, assumindo esta morte um carácter romântico.

Acção dramática

Frei Luís de Sousa conta o drama que se abate sobre a família de Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena. As apreensões e pressentimentos de Madalena de que a paz e a felicidade familiar possam estar em perigo tornam-se gradualmente numa realidade. O incêndio no final do Acto I permite uma mutação dos acontecimentos e precipita a tensão dramática. E no palácio que fora de D. João de Portugal, a acção atinge o seu clímax, quer pelas recordações de imagens e de vivências, quer pela possibilidade que dá ao Romeiro de reconhecer a sua antiga casa e de se identificar a Frei Jorge.

O Acto I inicia-se com Madalena a repetir os versos d'Os Lusíadas:

"Naquele engano d'alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito…"

As reflexões que se seguem transmitem, de forma explícita um presságio da desgraça que irá acontecer. Obedecendo à lógica do teatro clássico desenvolve a intriga de forma a que tudo culmine num desfecho dramático, cheio de intensidade: morte física de Maria e a morte para o mundo de Manuel e Madalena.

Drama clássico, drama romântico?

É possível encontrar quase todos os elementos da tragédia em “Frei Luís de Sousa”. A hybris é o desafio, o crime do excesso e do ultraje. D. Madalena não

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comete um crime propriamente dito. Sabemos, no entanto, que o crime existiu pela confissão que ela faz a Frei Jorge de que ainda em vida de D. João de Portugal amou Manuel de Sousa, apesar de guardar fidelidade ao marido. O crime estava no seu coração, na sua mente, embora não fosse tão explícito como nos clássicos.

Manuel de Sousa Coutinho também comete a sua hybris ao incendiar o palácio para não receber os governadores. A hybris manifesta-se em muitas outras atitudes das personagens.

O conflito, que nasce da hybris, desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos que modifica a acção e conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca a catástrofe. O desencadear da acção dá-nos conta do sofrimento (páthos) que se intensifica (climax) e conduz ao desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, através dos sentimentos de terror e de piedade, para purificar as paixões (catarse). A reflexão catártica é também dada pelas palavras do Prior, quando na última fala afirma: "Meus irmãos, Deus aflige neste mundo àqueles que ama. A coroa da

glória não se dá senão no céu".

Tal como na tragédia clássica, também o fatalismo é uma presença constante. O destino acompanha todos os momentos da vida das personagens, apresentando-se como um força que as arrasta de forma cega para a desgraça. É ele que não deixa que a felicidade daquela família possa durar muito.

Garrett, recorrendo a muitos elementos da tragédia clássica, constrói um drama romântico, definido pela valorização dos sentimentos humanos das personagens; pela tentativa de racionalmente negar a crença no destino, mas psicologicamente deixar-se afectar por pressentimentos e acreditar no sebastianismo; pelo uso da prosa em substituição do verso e pela utilização de uma linguagem coloquial, mais próxima da realidade, vivida pelas personagens; sem preocupações excessivas com algumas regras, como a presença do coro ou a obediência perfeita à lei das três unidades (acção, tempo e espaço).

O tempo dramático A acção decorre no ano de 1599, durante o domínio filipino, 21 anos após a batalha de Alcácer-Quibir. Segundo as falas de D. Madalena, D. João desapareceu na Batalha de Alcácer Quibir que ocorreu em 1578. Durante sete anos procurou-se por ele (1578+7=1585), sobre esses sete anos mais catorze se passaram (1585+14=1599), possibilitando, assim, a localização da acção em 1599:

"A que se apega esta vossa credulidade de sete… e hoje mais catorze… vinte

e un anos?", pergunta D. Madalena a Telmo (Acto I, cena 11).

"Vivemos seguros, em paz e felizes… há catorze anos" (1, cena 11).

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"Faz hoje anos que… que casei a primeira vez, faz anos que se perdeu el-rei D. Sebastião, e faz anos também que… vi pela primeira vez a Manuel de

Sousa", afirma D. Madalena (Il. cena X).

Tal facto é também confirmado pelo Romeiro:

"Morei lá vinte anos cumpridos" (…) "faz hoje um ano… quando me libertaram", diz o Romeiro (Il. cena XIV).

Segundo as falas de Maria no início do segundo acto, passaram-se oito dias desde o incêndio. Tendo em conta o desenrolar da peça a partir deste momento, conclui-se que a acção decorre durante nove dias. Sabendo que a Batalha de Alcácer Quibir se deu a 4 de Agosto de 1578, que o Romeiro regressa nesse mesmo dia (passados vinte anos) a 4 de Agosto de 1599 e que já se tinham passado oito dias, podemos concluir que a acção desta peça começou a 28 de Julho de 1599 (oito dias antes) e terminou a 5 de Agosto de 1599 (mais um dia), na madrugada em que Madalena e Manuel de Sousa Coutinho ingressam na vida religiosa, tendo uma duração de nove dias. Ao longo de toda a obra, há, portanto, inúmeras referências cronológicas que nos permitem situá-la num determinado período histórico - o século XVI: - o casamento de D. Madalena com D. João de Portugal antes de 1578; - o desaparecimento de D. João de Portugal a 4 de Agosto de 1578, na Batalha de Alcácer Quibir; - a busca de D. João por D. Madalena durante sete anos (de 1578 a 1585); - o casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa Coutinho, em 1585; - o nascimento de Maria de Noronha, fruto dessa união, um ano mais tarde. Assim, é possível situar a acção desta peça em 1599, pois sabemos que D. João regressa 14 anos após o segundo casamento de D. Madalena e 21 anos depois do seu desaparecimento na Batalha de Alcácer Quibir. Mais concretamente, a acção de Frei Luís de Sousa desenrola-se entre os dias 28 de Julho e 5 de Agosto de 1599, portanto durante pouco mais de uma semana. É de salientar que a acção começa a uma sexta-feira (28 de Julho) e o segundo acto decorre novamente a uma sexta-feira (dia 4 de Agosto).

A sexta-feira assume um importante simbolismo na obra, estando conotada com a tragédia. Vários eventos ocorrem a uma sexta-feira:

D. Madalena casa-se com D. João de Portugal;

D. Madalena conhece Manuel de Sousa Coutinho;

Manuel de Sousa Coutinho incendeia o seu palácio;

D. João desaparece na Batalha de Alcácer Quibir;

D. João regressa encoberto na figura do Romeiro. Apesar de Garrett não respeitar as regras rígidas da unidade de tempo clássica (a acção deveria decorrer em 24 horas), a estruturação do tempo assenta na concentração e no afunilamento progressivo. 1.º dia, 28 de Julho de 1599, sexta-feira, fim da tarde – 1.º acto

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Passa uma semana, de 29 de Julho a 3 de Agosto. 8.º dia, 4 de Agosto de 1599, sexta-feira, tarde – 2.º acto 4-5 de Agosto de 1599, alta noite – 3.º acto A acção reporta-se ao final do século XVI, embora a descrição do cenário do Acto I se refira à "elegância" portuguesa dos princípios do século XVII.

O texto é, porém, escrito no século XIX, acontecendo a primeira representação em 1843.

Lei das três unidades da tragédia clássica

A tragédia clássica obedece a uma estrutura fixa na medida em que a acção é só uma, decorre num só dia e num só espaço. A acção de Frei Luís de Sousa não respeita esta lei porque a acção decorre durante nove dias e em vários espaços.

Simbologia do número 9 O número nove procura simbolizar a passagem para um outro nível de existência, neste caso representa a passagem de uma vida mundana para uma vida religiosa.

Concentração dramática

Antes de 1578 (casamento de D. Madalena com D. João)

De 1578 a 1585 (procura de D. João por D. Madalena)

De 1585 a 1599 (D. Madalena casa-se com Manuel de Sousa Coutinho e têm uma filha)

De 1598 a 1599 (D. João é libertado e regressa)

De 28 de Julho a 4 de Agosto (estada da família de Manuel de Sousa Coutinho na casa de D. João)

4 de Agosto (Chegada do Romeiro - Clímax)

5 de Agosto (Incursão dos esposos na vida religiosa) Podemos verificar pela natureza trágica da obra uma certa tendência para a concentração temporal. De períodos de tempo relativamente prolongados, passa-se a períodos mais curtos de dias e horas.

Tempo histórico e tempo psicológico O tempo histórico diz respeito às informações que situam uma obra numa determinada época. O tempo psicológico refere-se aos sentimentos das personagens perante a passagem do tempo. Frei Luís de Sousa é perpassado por algumas referências históricas, das quais se destacam:

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a Batalha de Alcácer Quibir;

a conjuntura nacional, após a perda da independência de Portugal e consequente anexação a Espanha;

as alusões a Camões, feitas por D. Madalena e Telmo;

as referências a Bernardim Ribeiro, feitas por Maria;

o mito sebastianista, cuja génese se encontra enraizada na época histórica aqui retratada. O tempo psicológico é o tempo interior das personagens; a forma como estas sentem a passagem do tempo. Em Frei Luís de Sousa, as personagens vivem, antecipadamente, um clima de medo, devido aos presságios de desgraça que as invadem. À medida que os seus receios e ansiedades aumentam e que o seu sofrimento se agudiza, as personagens tornam-se gradualmente mais frágeis. Encontramos evidências do tempo psicológico sobretudo em D. Madalena – ―Tenho este medo, este horror de ficar só... de vir a achar-me só no mundo!‖ - e em Maria: ―a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de

alguma desgraça inesperada, mas certa (...)‖, ―E há... oh! Há grande desgraça a cair sobre meu pai decerto! E sobre minha mãe também, que é o mesmo.‖

Por vezes, o tempo psicológico parece coincidir com o tempo dramático; exemplo disso são as palavras de D. Madalena, que faz várias alusões ao terror pela sexta-feira e refere repetidamente o advérbio adjunto de tempo “hoje”, anunciador de desgraça, fatalidade e solidão.

Espaço Espaço Físico A primeira característica da estruturação do espaço em Frei Luís de Sousa é a concentração. Os espaços desta peça são em número reduzido, sendo que a mudança de acto implica a alteração de cenário.

Primeiro acto Decorre no palácio de Manuel de Sousa Coutinho, em Almada, numa sala ampla e decorada de forma rica e luxuosa, ―câmara antiga, ornada com todo o

luxo e caprichosa elegância dos princípios do século XVII". Este espaço caracteriza-se pela luminosidade, pela abertura ao exterior (através das grandes janelas rasgadas), pelas sugestões cromáticas e pela liberdade de movimentos, o que espelha a felicidade daquela família, que será, apenas aparente. O retrato de Manuel de Sousa Coutinho que está nesta sala é um elemento simbólico: ao ser devorado pelas chamas que consomem o palácio, funciona como indício de desgraça.

Segundo acto Passa-se ―no palácio que fora de D. João de Portugal, em Almada, salão antigo,

decorado num gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de família…‖. Aqui o retrato de Manuel de Sousa Coutinho é substituído pelos retratos de D. João de Portugal, de D. Sebastião e de Camões. O retrato de D. João funciona como

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anunciador de uma fatalidade iminente: Maria e D. Madalena fitam-no como que fascinadas e no final deste acto torna-se o meio de reconhecimento do Romeiro. No salão deste palácio, a vontade própria das personagens desvanece, a abertura dá lugar ao fechamento e as portas cobertas de reposteiros fazem o mundo exterior desaparecer. As evocações do passado e a melancolia prenunciam a desgraça fatal.

Terceiro acto Desenrola-se na parte baixa do palácio de D. João de Portugal, cuja porta comunica com a capela da Senhora da Piedade. O espaço perde abertura e luz e ganha frieza e escuridão, tornando-se mais restrito e austero (―é um casarão

vasto sem ornato algum‖). Este espaço denuncia o fim das preocupações materiais. Os bens do mundo são abandonados. Podemos concluir que o afunilamento gradual do espaço em Frei Luís de Sousa anda a par com o avolumar da tragédia. Espaço Psicológico As coordenadas do espaço psicológico da obra são delimitadas pelos sonhos proféticos e devaneios de Maria, assim como por diversos monólogos: - o monólogo de D. Madalena, que reflecte sobre uns versos d’ Os Lusíadas, dando conta das preocupações constantes em que vive (cena I, acto I); - o monólogo de Manuel de Sousa Coutinho, quando decide incendiar o seu palácio (cena XI, acto I); - as reflexões ponderadas de Frei Jorge, que parece antever a desgraça que se vai abater sobre a família de seu irmão (cena IX, acto II); - o monólogo de Telmo, que revela verdadeiramente o seu conflito interior no final da peça (cena IV, acto III).

Espaço Social Existem várias indicações que contribuem para a integração das personagens numa classe social elevada - a nobreza: D. Madalena tem o epíteto dona, que só se dava no século XVII às senhoras da aristocracia (D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem vindes, senhora); Manuel de Sousa Coutinho é cavaleiro de Malta, uma ordem religiosa unicamente para nobres; D. João de Portugal pertence à família de Vimioso e Maria, a dona bela, tem sangue dos Vilhenas e dos Sousas. O espaço social é também delimitado pela crítica que o autor dirige à opressão social causada pelo domínio filipino e ao preconceito que recai sobre a ilegitimidade (problema que afectou a própria filha de Garrett). A Atmosfera Há ao longo da intriga dramática uma atmosfera psicológica do sebastianismo com a crença no regresso do monarca desaparecido e a crença no regresso da liberdade. Telmo Pais é quem melhor alimenta estas crenças, mas Maria mostra-se a sua melhor seguidora. Percebe-se também uma atmosfera de superstição, nomeadamente desenvolvida em redor de D Madalena.

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Personagens

D. Madalena de Vilhena é a primeira personagem que aparece na obra, mas pode afirmar-se que toda a família tem um relevo significativo. São as relações entre esposos, pais e filha, o criado e os seus amos ou mesmo o apoio de Frei Jorge que estão em causa. Um drama abate-se sobre esta família e enquanto Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena se refugiam na vida religiosa, Maria morre como vítima inocente.

D. Madalena tinha 17 anos, quando D. João de Portugal desapareceu na batalha de Alcácer-Quibir. Procurou-o durante sete anos. Casou em segundas núpcias com Manuel de Sousa Coutinho com quem vive há catorze. Tem agora 38 anos (17 + 21). Mulher bela, de carácter nobre, vive uma felicidade efémera, pressentindo a desventura e a tragédia. Racionalmente, não acredita no mito sebastianista que Ihe pode trazer D. João de Portugal, mas teme a possibilidade da sua vinda. E é com medo que a encontramos a reflectir sobre os versos de Camões e a pressentir que a sobrevivência de D. João destrua a sua felicidade e a sua família. No imaginário de D. Madalena, a apreensão torna-se pressentimento, dor e angústia. E este terror vê-se ainda mais claramente aquando da necessidade de voltar para a habitação onde viveu com D. João de Portugal. D. Madalena vive aterrorizada com o «fantasma» do seu primeiro marido, mas no momento em que o tem, fisicamente, diante de si, e apesar das inúmeras coincidências, é incapaz de o reconhecer.

Trata-se de uma mulher bem-nascida, da família dos Vilhenas, em que os sentimentos dominam a razão:

- «Não é uma figura típica da época clássica, em que vive, em oposição ao que

acontece com Manuel de Sousa. Toda a ordem abstracta de valores encontra nela uma ressonância pouco profunda, todo o idealismo generoso se empobrece dentro dos limites de um seu conceito prático, objectivo, pessoal de felicidade imediata, toda a espécie de transcendência choca, numa zona muito íntima da sua personalidade,

com uma aspiração vitalista de realização humana e terrena.» - Luís Amaro de Oliveira, Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, Realização Didáctica;

- o sentimento do amor à Pátria é praticamente inexistente: considera a atitude dos governadores espanhóis como uma ofensa pessoal;

- para ela, é inaceitável que o sentimento do amor de Deus possa conduzir ao sacrifício do amor humano, não compreendendo, nem aceitando a atitude da condessa de Vimioso que abandonou o casamento para entrar em votos: isto explica que, até ao limite, tente dissuadir o marido da tomada do hábito, só se resignando, quando tem a certeza de que ele já foi;

- apesar de se não duvidar do seu amor de mãe, é nela mais forte o amor de mulher, ao contrário do que acontece com Manuel de Sousa Coutinho, que se mostra muito mais preocupado com a filha do que com a mulher;

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- a consciência da sua condição social mantém a sua dignidade, mas tal não a impediu de ter amado Manuel de Sousa ainda em vida de D. João de Portugal e de ter casado sem a prova material da morte do seu marido;

- supersticiosa.

D. Madalena é uma personagem dominada por pressentimentos, amores e terrores ("Mas eu!... (...) o estado em que eu vivo... este medo, estes contínuos

terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento (...)" ) - que a fazem viver em permanente desassossego, pânico e infelicidade - "Pathos" - devido à dúvida quanto à existência do primeiro marido, alimentada pela convicção de Telmo Pais nesse sentido. Tal desassossego tem como base o facto de se sentir culpada por ter amado Manuel de Sousa Coutinho ainda durante o seu primeiro casamento - "Hybris" - ("Conto. Este amor - que hoje está santificado e

bendito no Céu, porque Manuel de Sousa é meu marido - começou com um crime, porque eu amei-o assim que o vi... e quando o vi - hoje, hoje... foi em tal dia como hoje! - D. João de Portugal ainda era vivo. O pecado estava-me no coração; a boca não o disse... os olhos não sei o que fizeram; mas dentro d'alma eu já tinha outra imagem senão a do amante... já não guardava a meu marido, a meu bom... a meu generoso marido... senão a grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quase

que mais deve a si do que ao seu esposo.") e é agudizado pela dúvida que lhe atormenta o espírito ("Dúvida de fiel servidor, esperança de leal amigo, meu bom

Temo! que diz com vosso coração, mas que tem atormentado o meu..."). É uma personagem completamente dominada pelo Destino e pelo fatalismo e impotente contra ambos. Podemos registar como exemplos, a tentativa de salvar o retrato do marido, parecendo prever o que daí adviria ("Ai, e o retrato de

meu marido!... Salvem-me aquele retrato."); e a constatação do dia de sexta-feira, dia em que o marido e a filha a deixam sozinha, que é um dia repleto de lembranças de outros acontecimentos ("Logo hoje!... Este dia de hoje é o pior... se

fosse amanhã, se fosse passado hoje"); "Oh, Maria, Maria... também tu me queres

deixar! - também tu me desamparas... e hoje!"). A sua personalidade fraca, sensível e influenciável leva-a a não conseguir resistir à realidade dos factos, quando D. João de Portugal regressa, fazendo-a tomar consciência da relação ilegítima que vive. Porém, D. Madalena, por não querer admitir o testemunho físico, real do seu pecado, ou por total ingenuidade, não reconhece imediatamente D. João de Portugal disfarçado de Romeiro ("Santa vida levastes,

bom romeiro. / Sempre há parentes, amigos... / Haverá tão má gente... e tão vil, que

tal faça?"). O regresso de D. João de Portugal vem sendo anunciado ao longo de toda a peça pelos presságios de Telmo Pais e pelo pavor de D. Madalena. D. Madalena renuncia posteriormente à vida mundana, dando entrada num convento (morte psicológica) - Catástrofe. Esta heroína vive muito para si, muito dentro dos seus problemas pessoais, não revela outros interesses que não os relacionados com a sua felicidade e, por extensão, a da sua família, transmitindo Garrett, deste modo, o ambiente social do início do século XVII.

Manuel de Sousa Coutinho (mais tarde Frei Luís de Sousa) é um nobre e honrado fidalgo, cavaleiro de Malta, que queima o seu próprio palácio para não receber os governadores. Embora apresente a razão a dominar os

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sentimentos, por vezes, estes sobrepõem-se, quando se preocupa com a doença da filha. É um bom pai e um bom marido.

No acto I, assume uma atitude condizente com um espírito clássico, deixando transparecer uma serenidade e um equilíbrio próprios de uma razão que domina os sentimentos e que se manifesta num discurso expositivo e numa linguagem cuidada e erudita:

- é patriota, corajoso e decidido;

- não sente ciúmes pelo passado de Madalena;

No acto III, evidencia uma postura acentuadamente romântica: a dor, após a chegada do Romeiro, parece ofuscar-lhe a razão, tal é a forma como exterioriza os seus sentimentos, fazendo-o de uma forma um tanto violenta, descontrolada e, por vezes, até contraditória (a razão leva-o a desejar a morte da filha e o amor impele-o a contrariar a razão e a suplicar desesperadamente pela sua vida).

Esta personagem, do ponto de vista psicológico, evolui de uma personalidade de tipo clássico (actos I e II) para uma personalidade de tipo romântico (acto III).

Manuel de Sousa Coutinho terá o mesmo destino que sua esposa – morte psicológica – Catástrofe -, não devido à fraqueza de carácter, mas por constatar a ilegitimidade da sua presença naquele casamento, naquela família (―Fui eu o autor de tudo isto, o autor da minha desgraça e da sua desonra deles…‖); ele que sempre zelou pela integridade, mesmo sofrendo, não deixou de tomar as decisões que lhe pareceram certas e adequadas a determinada situação (incêndio do seu palácio e decisão de professar). Com a chegada do Romeiro (D. João de Portugal, que é o dono daquela casa, o marido da sua mulher), Manuel de Sousa Coutinho retirou-se da vida (―Para nós já não há senão estas

mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca) e a sepultura de um claustro.‖). Manuel de Sousa Coutinho menospreza os receios de sua esposa quanto a mudarem-se para o palácio de D. João, apelidando-os de “vãs quimeras de crianças” e “caprichos” e não evidencia, ao longo da peça, qualquer temor ou constrangimento, no entanto, submete-se ao Destino; ele que se mostrou ao longo da peça ser capaz de desafiar (“Hybris” – incendeia o seu palácio para não dar alojamento aos governadores) e de se impor (dá ordens, é activo, não se deixa influenciar pelo pânico da esposa), parecendo-lhe livre nas suas resoluções, está, contudo, a contribuir drasticamente para a fatalidade, o Fado que sobre ele – o português, o marido, o pai – caiu (juntamente com a sua família). A par de tal dinamismo, Manuel revela-se ingénuo e pouco perspicaz no menosprezo para com as inquietações de sua esposa (―Madalena! / Oh!

Querida mulher minha, parece que vou eu agora embarcar num galeão para a Índia…

Ora vamos;‖), ao mesmo tempo que esta sua atitude toma um cariz irónico para o espectador (―E o presente, esse é meu, meu só, todo meu (…)‖), uma vez que Manuel de Sousa Coutinho não se apercebe que, de facto, o seu presente, a sua vida inclui necessariamente D. Madalena e, à vida desta, está inerente a presença de D. João de Portugal: Manuel de Sousa Coutinho mostrou-se

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determinado em separar o passado do presente, mas foi irremediavelmente condenado por este (―(…) arrastei na minha queda, que lancei nesse abismo de

vergonha (…)‖). Manuel de Sousa Coutinho ao refugiar-se num convento, que lhe proporciona o isolamento necessário à escrita, encarna o mito romântico do escritor.

Maria de Noronha tem 13 anos, é uma menina bela, pura, terna, corajosa, ingénua, culta, mas frágil, tem tuberculose, e acredita com fervor que D. Sebastião regressará (culto sebastianista). Tem uma grande curiosidade e espírito idealista. Ao pressentir a hipótese de ser filha ilegítima sofre moralmente. Será ela a vítima sacrificada no drama.

Trata-se de uma personagem idealizada:

- a ingenuidade, a pureza, a meiguice, o abandono, próprios duma alma infantil, e a inteligência, a experiência, a cultura, a intuição, características de um espírito adulto, confluem numa personagem pouco real, só entendida à luz do desvelo que Garrett votava a sua filha Maria Adelaide e à condição social que, para a mesma, resultara da morte prematura da mãe;

- protótipo da mulher-anjo, tão do agrado dos românticos, Maria é demasiado angélica para ser verdadeira;

- a sua dimensão psicológica resulta, por isso, contraditória, ao revelar comportamentos, simultaneamente, de criança e de adulto.

Maria, débil fisicamente, desde cedo nos deixa antever, que o seu desenvolvimento precoce, a nível psicológico, a faz sofrer (―E eu agora é que

faço de forte e assisada, que zombo de agouros e de sinas… para animar, coitada!... que aqui entre nós, Telmo, nunca tive tanta fé neles. Creio, oh, se creio! Que são avisos que Deus nos manda para nos preparar. – E há… oh! Há grande desgraça a cair sobre meu pai… decerto! E sobre minha mãe também, que é o mesmo.‖; ―Mãe, mãe, eu bem o sabia… nunca to disse, mas sabia-o;‖; ―É a voz de meu pai! Meu pai

que chegou. / Pois oiço eu muito claro‖) e que a sua fraca saúde agudiza esse sofrimento – “Pathos” – (―Que febre que ela tem hoje, meu Deus! Queimam-lhe as

mãos… e aquelas rosetas nas faces…‖; ― Naquele corpo tão franzino‖, tão delgado, que mais sangue há-de haver? – Quando ontem a arranquei de ao pá da mãe e a levava nos braços, não mo lançou todo às golfafdas aqui no peito? (Mostra um lenço

branco todo manchado de sangue.).‖ Maria reforça o sebastianismo de Telmo pelo seu entendimento profético, fazendo com que o passado esteja sempre presente; é adulta nas sua preocupações relativas às injustiças sociais (―Coitado do povo! – Que mais valem as vidas deles? Em pestes e desgraças assim, eu entendia, se governasse, que o serviço de Deus e do rei me mandava ficar, até à última, onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com remédios e

amparo aos necessitados.‖) e pela cultura (―Menina e moça me levaram da casa de

meus pai‖ – é o princípio daquele livro tão bonito que a minha mãe diz que não

entende: entendo-o eu.‖). Maria é a prova clara e concreta da situação ilegítima de seus pais, a prova do crime por eles cometido e, como tal, não sobrevive – por um lado por ver a decisão de renúncia ao mundo tomada por ambos, que

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adora, não conseguindo resistir ao seu sofrimento (―Esperai: aqui não morre

ninguém sem mim. (…) Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha? (…) Mate-me, mate-me, se quer, mas deixem-me este pai, esta mãe,

que são meus‖); por outro lado, por perceber precocemente o pecado da sua existência (morte física) – Catástrofe – (―Essa filha é filha do crime e do pecado!...‖

Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize que não sou‖; ―Minha mãe, meu pai, cobri-me bem estas faces, que morro de vergonha… (esconde o rosto no seio da mãe) morro, morro… de vergonha… (Cai e fica morta no chão. Manuel de

Sousa e Madalena prostram-se ao pé do cadáver da filha)‖. Maria é a mulher-anjo bom, é o modelo de mulher romântica.

Telmo Pais, o velho criado, confidente privilegiado, define-se pela lealdade e fidelidade. Não quer magoar nem pretende a desgraça da família de D. Madalena e Manuel. Mas como crê no mito sebastianista, acredita que D. João de Portugal há-de regressar. No fim, acaba por trair um pouco a lealdade de escudeiro pelo amor que o une à filha daquele casal, D. Maria de Noronha. Representa um pouco o papel de coro da tragédia grega, com os seus diálogos, os seus agoiros ou os seus apartes. Telmo Pais, amo e criado de D. João de Portugal, era o seu maior amigo, e nenhuma criatura sofreu tanto como ele o seu desaparecimento; opôs-se quanto pôde a que a sua viúva casasse segunda vez e não lhe pôde perdoar a infidelidade para com o amo, cuja morte se recusou sempre a aceitar. O resto dos seus dias é consagrado ao culto do desaparecido, a quem levanta no seu coração um altar. E lentamente os dias vão passando, a imagem de D. João vai-se-lhe entranhando na alma, tornando-se com o tempo talvez mais rígida, mais nítida, mais adorada. O tempo só fazia aumentar a adoração. Mas deste casamento abominado nascera uma criança. Quis o destino que Telmo também fosse o amo dela, e o seu coração cresceu com este novo amor. Mas pode Telmo continuar a não acreditar na morte de seu amo? Porque se ele é vivo e voltar, que será feito da sua menina? Órfã e desgraçada é o que ela será, segundo a moral da época. Durante muito tempo Telmo não chega a ter consciência clara desta contradição. No momento culminante, o pobre Telmo Pais descobre que no fundo da alma desejava que D. João tivesse continuado morto. O seu reaparecimento transtorna-lhe a sua verdadeira vida. E Garrett leva o drama desta personagem às suas consequências últimas, porque é ele - a mandado de D. João, é verdade, mas com uma satisfação secreta e cheia de remorsos -, é ele quem vai à última hora espalhar que o Romeiro é um impostor. É ele, afinal, e isto é que é terrível, quem vai matar definitivamente seu amo, ele, o único que não tinha acreditado na sua morte e que fizera votos pelo seu regresso, o único que pode testemunhar a sua vida.

Telmo Pais, o fiel servidor de seus amos, primeiramente D. João de Portugal, agora de Manuel de Sousa Coutinho e família, é a personificação dos presságios, agouros que assolam aquela família, ao manter-se convicto, ao fim de vinte e um anos, da existência do seu primeiro amo (―Madalena (assustada) –

Está bom: não entremos com os teus agouros e profecias do costume: são sempre de aterrar… Deixemo-nos de futuros…‖; ―E és tu o que andas continuamente e quase por acinte, a sustentar essa quimera, a levantar esse fantasma (…) esses contínuos agouros, em que andas sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa

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família…‖; carta deixada por D. João em cujas palavras assenta um dos pilares da credulidade de Telmo). Telmo culpa Madalena pelo seu segundo casamento (―Oh minha senhora, minha senhora! Mas essa coisa em que vos apartastes dos meus

conselhos…‖), embora esta tivesse dedicado sete anos a buscas infrutíferas. Ama Maria apesar de ser o resultado de uma ligação que ele considerou adúltera (“ (…) ao princípio era uma criança que eu não podia… - é a verdade, não a

podia ver: já sabereis porquê; mas vê-la, era ver… Deus me perdoe!... nem eu sei… E daí começou-me a crescer, a olhar para mim com aqueles olhos… a fazer-me tais meiguices, e a fazer-se-me um anjo tal de formosura e de bondade, que – vedes-me

aqui agora, que lhe quero mais do que seu pai.‖) e é leal a Manuel de Sousa Coutinho a quem respeita e venera (―Manuel de Sousa… o senhor Manuel de

Sousa Coutinho é guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom português…‖; ―A minha vida que ele queira é sua. E a minha pena, toda a minha pena é que o não conheci, que o

não estimei sempre no que ele valia.‖). Telmo Pais é a personagem que condensa em si próprio o passado (ligação de D. João de Portugal), o presente (fidelidade à família de D. Madalena) e o futuro (antevisão dos acontecimentos que se vieram a concretizar). Note-se ainda que Telmo é já idoso, tal como velho está o ciclo de felicidade de D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho, uma vez que irá terminar em breve. Telmo é também, por deformação, servil, amigo e inimigo, comprovando a sua verdadeira personalidade com o regresso do antigo amo. Telmo equipara-se, ainda, ao coro das tragédias na medida em que comenta, ajuíza (― (…) tenho cá uma coisa que me diz que antes de muito se

há-de ver quem é que é que quer mais à nossa menina nesta casa.‖; ―Terá…‖ – põe em dúvida a morte de D. João, ) e vaticina (―Às palavras, às formais palavras

daquela carta escrita na própria madrugada do dia da batalha, e entregue a Frei Jorge,

que vo-la trouxe. – ―vivo ou morto‖ – rezava ela – ―vivo ou morto…‖ Não me esqueceu uma letra daquelas palavras: e eu sei que homem era meu amo para as escrever em vão: ―vivo ou morto, Madalena, hei-de ver-vos pelo menos ainda

uma vez neste mundo.‖; ―Mas não se ia sem aparecer também ao seu aio velho.‖

O Romeiro apresenta-se como um peregrino, mas é o próprio D. João de Portugal. Os vinte anos de cativeiro transformaram-no e já nem a mulher o reconhece. D. João, de espectro invisível na imaginação das personagens, vai lentamente adquirindo contornos até se tornar na figura do Romeiro que se identifica como "Ninguém". O seu fantasma paira sobre a felicidade daquele lar como uma ameaça trágica. E o sonho torna-se realidade.

Casado com D. Madalena, mas desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir, revela-se como:

- Uma existência abstracta (uma espécie de fantasma omnipresente) até à cena XII do acto II, inclusive, permanecendo em cena através dos receios evocativos de Madalena, da crença de Telmo em relação ao seu regresso e do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, o mesmo pode acontecer em relação a D. João de Portugal);

- Uma existência concreta a partir da cena XIII do acto II:

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- regressa a Portugal ao fim de 21 anos, depois de ter passado 20 em cativeiro, em África e na Ásia, surgindo na figura do Romeiro (mesmo assim, a sua identidade só é revelada no final do acto II);

- procura interferir voluntariamente na acção dramática, tentando impedir, com a cumplicidade de Telmo, a entrada em hábito de Madalena e de Manuel de Sousa;

- acaba por assistir à morte de Maria e à tomada de hábito dos ex-cônjuges.

O Romeiro ou D. João de Portugal é a personagem sempre presente ao longo da peça, apesar de primar pela ausência. Toma diversas formas: personagem apenas referida; personagem simbólica, onírica, presente nos agouros de D. Madalena, ligada ao sebastianismo, às suspeitas de Maria e esperanças de Telmo e personagem “disfarce”, responsável pela Peripécia e Anagnórise / Reconhecimento, num espaço e tempo da representação e como motor e desfecho do conflito dramático: a morte de Maria (morte física), Manuel de Sousa e D. Madalena (morte psicológica). Apesar de D. João de Portugal ter determinado esta Catástrofe, fê-lo inconscientemente em consequência de pretender reaver a sua posição na sua casa e na sua família; de notar o seu elevado carácter pela renúncia ao seu lugar, uma vez constatados os inúmeros esforços empreendidos por sua esposa, a quem agora não quer punir, transferindo tal sofrimento para si próprio (―Agora é preciso remediar o mal feito.

Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel. (…) dize-lhe que falaste com o romeiro, que o examinaste, que o convenceste de falso e de impostor… dize o que quiseres, mas salva-a a ela da vergonha (…)‖; ―Vai, vai; vê se ainda é tempo: salva-os, salva-os,

que ainda podes…‖)

Frei Jorge Coutinho, irmão de Manuel de Sousa, amigo da família e confidente nas horas de angústia, ouve a confissão angustiada de D. Madalena. Vai ter um papel importante na identificação do Romeiro, que na sua presença indicará o quadro de D. João de Portugal.

Frei Jorge é a figura mediadora, apaziguadora (recomenda prudência a Manuel de Sousa Coutinho quando este comunica a decisão de sair de casa), aparecendo quando a acção dramática sofre alterações, por exemplo, quando o Romeiro chega. Revela-se prudente e reflectido, tranquilizando D. Madalena, ansiosa pelo regresso de Lisboa de Manuel de Sousa Coutinho; fazendo-lhe companhia na fatídica sexta-feira para que Maria possa acompanhar o pai a Lisboa e visitar o Convento do Sacramento. Como sacerdote pode ser confidente de D. Madalena e depois de Manuel de Sousa Coutinho, seu irmão. Pressente o desenlace trágico. Tal como se nota no seu monólogo do Acto II que funciona como prenúncio da tragédia: "A todos parece que o coração lhe

adivinha desgraça... E eu quase que também já se me pega o mal. Deus seja connosco!"

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Linguagem e estilo

Frei luís de Sousa é antes de mais um texto dramático e, por isso mesmo, utiliza o diálogo e o monólogo. Estas técnicas discursivas apresentam características específicas resultantes da sua natureza coloquial e oral. Deste modo, é possível verificar a qualidade linguística e estilística utilizadas por Garrett. Os registos de língua presentes nesta peça são o familiar e o cuidado. Em termos lexicais, verifica-se a utilização recorrente de palavras conotadas com emoções, repetições frequentes (como a do advérbio hoje), interjeições e locuções interjectivas e uma concentração a nível frásico que é o caso de – ninguém - onde se substitui um período por uma palavra. No que diz respeito à sintaxe, verifica-se um grande número de frases inacabadas e concentradas, devido às hesitações deixadas pelo discurso emotivo das personagens. Em termos de prosódia, a entoação, as pausas e o ritmo fornecidos pelas didascálias reforçam a intensidade dramática e emotiva. No que diz respeito à pontuação (exclamações, interrogações, reticências), esta acompanha o discurso emotivo das personagens, reforçando-o pela natureza expressiva. É possível verificar também no discurso de cada personagem especificidades que estão de acordo com as características de cada uma.

Frei Luís de Sousa - ideologia romântica Elementos da tragédia clássica Podemos encontrar em Frei Luís de Sousa alguns elementos da tragédia clássica: Hybris, Pathos, Peripéteia, Anagnórisis, Clímax e Katastrophé.

Desafio (hybris)

– o desafio ao destino (consciente ou inconsciente) perpetrado por D. Madalena ao apaixonar-se por Manuel de Sousa Coutinho, sendo ainda casada com D. João de Portugal, e ao casar-se com ele, sendo o seu marido ainda vivo.

- Manuel de Sousa Coutinho incendeia a sua própria casa, desafiando a vontade dos governadores.

Sentimento (Pathos)

- O extremo sofrimento visível ao longo de toda a obra nas várias personagens.

Alteração (Peripécia)

- A alteração da ordem, da felicidade conjugal e familiar em que viviam as personagens, provocada pela chegada de um elemento perturbador – o Romeiro.

Reconhecimento (Anagnórisis)

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- O reconhecimento do Romeiro como sendo D. João de Portugal.

Cimax

- A notícia que D. João de Portugal está vivo provoca o momento de maior intensidade dramática desta peça, o seu clímax.

Destruição (Katastrophé)

- O desfecho trágico da acção resulta na destruição de toda a família, quer pela tomada do hábito pelos esposos, quer pela morte de Maria.

Elementos do drama romântico

Frei Luís de Sousa, segundo a definição do próprio autor, trata-se de um drama, na medida em que é a melhor forma para exprimir o estado de uma sociedade. Para isso, fez uso da prosa e tratou, segundo ele, um assunto moderno. Esta peça apresenta muitas características típicas da época do autor, tendo como influência o Romantismo.

Drama ou Tragédia

No texto “Memória ao Conservatório Real”, Garrett refere que, apesar de se contentar com o título de drama para a sua obra, esta apresenta características do antigo género trágico (―Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama: só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há--de ficar pertencendo sempre ao antigo género trágico.‖). Ora a tragédia clássica centra a sua acção num conflito entre os Homens e os deuses: à arrogância do ser humano em ansiar pela liberdade, os deuses respondem com um castigo que se traduz na catástrofe. Por outro lado, o drama romântico assenta no real, que resulta da combinação do sublime e do grotesco; o drama espelha a realidade social num dado momento e retrata o Homem não como vítima do destino e dos deuses, mas como ser responsável pelos seus próprios actos e paixões.

Características da tragédia clássica presentes em Frei Luís de Sousa - Existência de um número reduzido de personagens. - Personagens pertencentes a estratos sociais elevados. - Condensação do tempo em que a acção decorre.

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- Existência de poucos espaços. - Acção sintética, isto é, existe um número reduzido de acções a convergir para a acção trágica. - Reminiscência do coro da tragédia clássica em Frei Jorge e Telmo Pais. - Existência de momentos que retardam o desenlace trágico. - Ambiente trágico marcado por uma solenidade clássica. - Presença de elementos da tragédia clássica como:

ananké (destino) - responsável pela ausência e cativeiro de D. João de Portugal durante vinte e um anos e pela mudança da família de Manuel de Sousa Coutinho para o palácio de D. João de Portugal;

hybris (desafio) – presente essencialmente no casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa Coutinho, sem a confirmação da morte do seu primeiro marido, e no incêndio do palácio de Manuel de Sousa Coutinho pelo próprio; agón (conflito) – manifesta-se a nível psicológico nos conflitos interiores e dilemas vividos por Telmo e por D. Madalena;

anagnórisis (reconhecimento) – momento de identificação do Romeiro como D. João de Portugal;

peripéteia (peripécia) – aparecimento de D. João de Portugal e suas consequências imediatas – ilegitimidade do casamento de D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho, ilegitimidade da sua filha, morte espiritual do casal;

clímax (a tensão emocional vai aumentando gradualmente até ao momento de maior tensão emocional) – final do segundo acto, com o reconhecimento do Romeiro;

pathos (sofrimento) – sofrimento das diversas personagens devido às incertezas que as assolam, aos sentimentos de culpa (no caso de D. Madalena) e à dissolução da família;

katastrophé (catástrofe) – morte de Maria, separação e morte espiritual do casal, desgosto de Telmo e consciencialização de D. João de que já não faz parte do mundo daqueles que amou;

cathársis (purificação) – renúncia ao prazer mundano pelo casal, que se refugia num convento, e ascensão de Maria ao espaço celeste, devido à sua inocência.

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Características do drama romântico presentes em Frei Luís de Sousa:

- o texto escrito em prosa; - a crítica social aos preconceitos que vitimam inocentes (como Maria); - a situação real que subjaz à acção da peça, o que reitera a preocupação de Garrett com a verdade e realidade dos acontecimentos; - o Homem como alvo de atenção analítica; - a exaltação dos valores patrióticos e nacionais (sobretudo através de Manuel de Sousa Coutinho); - as superstições e agouros populares que retratam a cultura portuguesa; - a religião cristã como um consolo; - o realismo psicológico que caracteriza a transformação dos sentimentos de Telmo, dividido entre o amor a D. João e a D. Maria de Noronha; - a projecção da experiência pessoal do autor, que possuía uma filha ilegítima de Adelaide Pastor Deville, por quem se apaixonara ainda casado com Luísa Midosi; - a morte de Maria em palco; - o não cumprimento da lei das três unidades da tragédia (unidade de acção, de espaço e de tempo).

Assim, encontramos em Frei Luís de Sousa:

Factos verídicos

- A figura de Frei Luís de Sousa baseia-se numa personalidade histórica, Manuel de Sousa Coutinho.

Desrespeito da lei das três unidades

- Garrett optou por não respeitar a lei das três unidades da tragédia clássica, na qual uma só acção devia passar-se num só dia e num só espaço.

Exaltação dos valores nacionais

- Referência a um autor que exaltou os feitos portugueses (Luís de Camões).

- Manuel de Sousa Coutinho incendeia a sua própria casa num acto patriótico de desafio aos representantes do domínio espanhol.

Ideologia cristã

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- Apresentação do caminho religioso como solução para a impossibilidade de D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho continuarem casados.

Valorização dos sentimentos do Homem

- Exploração da dimensão psicológica das personagens.

Morte de Maria em palco

- Podemos depreender que Maria morre de tuberculose. No entanto, Garrett procura dar-lhe um desfecho tipicamente romântico, sugerindo que esta morre de sofrimento.

Procura de comunicação com o público

- Garrett procurou instruir o povo através do drama, tal como defendeu em “Memória ao Conservatório Real”.

Frei Luís de Sousa – a intenção pedagógica Renovação social A preocupação com a realidade circundante, leva os escritores românticos a tentar a renovação social através das suas próprias obras. A intenção pedagógica de Garrett com este drama vem precisamente nesse sentido. É tipicamente romântica a ideia de confronto da sociedade com o indivíduo. Em Frei Luís de Sousa, esta ideia está presente no confronto entre o preconceito social e os sentimentos destas personagens. No que diz respeito aos valores exaltados, Garrett demonstra, através desta peça, a importância atribuída à religião, dando um fim cristão às personagens. A coragem e a honra que surgem associadas ao modo de ser português revelam o patriotismo e nacionalismo típicos da ideologia liberal. Uma marca romântica muito explorada ao longo da obra são as atitudes de certa forma exacerbadas de determinadas personagens, pela concentração no drama psicológico e pela hiperbolização dos sentimentos. A exaltação de todos estes valores foi um processo usado por Garrett com a intenção de educar o seu público e assim tornar-se num agente de mudança.

Mensagem anti-sebastianista

Pode verificar-se a intenção pedagógica de Garrett pelo modo como este aborda o sebastianismo nesta obra. Neste sentido, faz uso das figuras de Maria e Telmo para representar a crença exagerada no mito sebastianista. Ao atribuir ao regresso de um companheiro de D. Sebastião consequências funestas, ele pretende mostrar que este apego ao passado representa estagnação e não é favorável para o avanço de uma civilização. O desejo de mudança, a necessidade de intervenção e a responsabilidade em criar uma nova sociedade

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são características profundamente liberais e sustentadas totalmente por Garrett na sua introdução a esta obra, “Memória ao Conservatório Real”.

Paralelo entre a peça Frei Luís de Sousa e a vida de Garrett

Frei Luís de Sousa

- Casamento de D. Madalena com D. João de Portugal (infeliz no amor)

- Separação de D. Madalena de seu marido (seu desaparecimento)

- Segundo casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa Coutinho (feliz no amor)

- Nascimento de Maria

Desenlace

- Regresso de D. João de Portugal – ilegitimidade de Maria

Garrett

- Casamento de Garrett com Luísa Midosi (infeliz no amor)

- Separação de Garrett de Luísa Midosi

- Relação amorosa de Garrett com Adelaide Pastor (feliz no amor)

- Nascimento de Maria Adelaide

Desenlace

- Morte de Adelaide Pastor – ilegitimidade de Maria Adelaide

Prof. Maria Filomena Ruivo Ferreira