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FRAUDE À LEI EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA 1 I. INTRODUÇÃO: ETIMOLOGIA, NOÇÃO E ESTRUTURA DA FRAUDE À LEI Etimologicamente fraude deriva do latim fraus, fraudis (engano, má-fé, logro), entende-se geralmente como engano malicioso ou ação astuciosa, promovidos de má-fé, para ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever. Segundo Aurélio 2 : “fraude. (Do lat. Fraude.) S. f. 1. V. logro (2). 2. Abuso de confiança; ação praticada de má-fé. 3. Contrabando, clandestinidade. 4. Falsifica- ção, adulteração. (Sin. ger.: defraudação, fraudação, fraudulência.)” Nestas condições, a fraude traz consigo o sentido de “engano”, não como se evidencia no “dolo”, em que se mostra a manobra fraudulenta para induzir outrem à prática de ato, de que lhe possa advir prejuízo, mas o “engano oculto” para furta-se o fraudulento ao cumprimento do que é de sua obrigação ou para “logro de terceiros”. É a intenção de causar prejuízo a terceiros. Assim, a fraude sempre 3 se funda na prática de “ato lesivo” a interesses de ter- ceiros ou da coletividade, ou seja, em ato onde se evidencia a intenção de “frustrar-se” a pes- soa aos deveres obrigacionais ou legais. É por isso, indicativa de “lesão de interesses” individuais, ou “contravenção” de regra jurídica a que se está obrigado. O dolo é astúcia empregada contra aquele com quem se contrata. 1 Escrito por MARCUS VINICIUS LIMA FRANCO, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília e Advogado da União com atuação profissional na Procuradoria da União em Sergipe. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa . 2. ed. São Paulo: Nova Fron- teira, 1998. p. 810. 3 Vale registrar aqui aquilo que a doutrina denomina de simulação inocente, que é aquela que oculta um negócio que seja válido por um motivo até altruístico, ou seja, uma simulação que não encerra fim fraudulento, contrário à lei ou que vise causar prejuízo a terceiro.

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FRAUDE À LEI EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA1

I. INTRODUÇÃO: ETIMOLOGIA, NOÇÃO E ESTRUTURA DA FRAUDE À LEI

Etimologicamente fraude deriva do latim fraus, fraudis (engano, má-fé, logro),

entende-se geralmente como engano malicioso ou ação astuciosa, promovidos de má-fé, para

ocultação da verdade ou fuga ao cumprimento do dever.

Segundo Aurélio2:

“fraude. (Do lat. Fraude.) S. f. 1. V. logro (2). 2. Abuso de confiança;

ação praticada de má-fé. 3. Contrabando, clandestinidade. 4. Falsifica-

ção, adulteração. (Sin. ger.: defraudação, fraudação, fraudulência.)”

Nestas condições, a fraude traz consigo o sentido de “engano”, não como se

evidencia no “dolo”, em que se mostra a manobra fraudulenta para induzir outrem à prática de

ato, de que lhe possa advir prejuízo, mas o “engano oculto” para furta-se o fraudulento ao

cumprimento do que é de sua obrigação ou para “logro de terceiros”. É a intenção de causar

prejuízo a terceiros.

Assim, a fraude sempre3 se funda na prática de “ato lesivo” a interesses de ter-

ceiros ou da coletividade, ou seja, em ato onde se evidencia a intenção de “frustrar-se” a pes-

soa aos deveres obrigacionais ou legais.

É por isso, indicativa de “lesão de interesses” individuais, ou “contravenção”

de regra jurídica a que se está obrigado. O dolo é astúcia empregada contra aquele com quem

se contrata.

1 Escrito por MARCUS VINICIUS LIMA FRANCO, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília e Advogado da União com atuação profissional na Procuradoria da União em Sergipe. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Nova Fron-teira, 1998. p. 810. 3 Vale registrar aqui aquilo que a doutrina denomina de simulação inocente, que é aquela que oculta um negócio que seja válido por um motivo até altruístico, ou seja, uma simulação que não encerra fim fraudulento, contrário à lei ou que vise causar prejuízo a terceiro.

2

Segundo velha lição romana ao fraudulento, aquele que comete fraude, não a-

proveita o ato lesivo: nemini fraus sua patrocinari potest.

Além do sentido de “contravenção à lei”, notadamente fiscal, possui o signifi-

cado de “contrafação”, isto é, “reprodução imitada”, “adulteração”, “falsificação”, “inculca-

ção” de uma coisa por outra.

Aliás, em todas as expressões, está no seu sentido originário de “engano”, “má

fé” e “logro”, todos fundados na intenção de “trazer um prejuízo”, com o qual se locupletará o

“fraudulento” ou “fraudado”.

A fraude fiscal é a contravenção às leis tributárias ou regras fiscais, como obje-

tivo de fugirão pagamento do imposto devido.

Ressalte-se, nesse ponto, que a “fraude à lei tributária” não tem qualquer seme-

lhança com a “fraude tributária” tal como tratada em diversos artigos do Código Tributário

Nacional (149, VII; 150, § 4º, 154, parágrafo único), e na própria legislação criminal (art. 1º,

II e art. 2º, I da Lei nº 8.137/91). A fraude ou defraudação tributária implica necessariamente

violação grave e frontal de deveres tributários principais e acessórios, como falsificar docu-

mentos livros fiscais, “fazer caixa dois” etc. Nesse sentido, a fraude tributária ou defraudação

são típicos fenômenos da evasão de tributos através quase sempre de comportamentos crimi-

nosos. Muito diferente é a “fraude à lei tributária” (fraus legis) que a rigor não se configura

uma violação frontal ao ordenamento tributário, mas um procedimento sofisticado pelo qual se

busca evitar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária.

Um aspecto da fraude à lei muito interessante, e que respalda sua constitucio-

nalidade e de sua adequação também às regras interpretativas do CTN, é o seguinte: através

do procedimento de declaração de fraude à lei tributária, o que equivale à declaração de que o

contribuinte dissimulou a ocorrência do fato gerador através de atos ou negócios jurídicos, não

se procura corrigir falhas da lei, que deveria ter gravado expressamente determinados atos mas

por imperícia ou imperfeição redacional não o fez. Não é isso. Se o problema ocorre com a lei,

que efetivamente gravou menos manifestações de capacidade contributiva de que poderia ter

feito, e o individuo ou a empresa se aproveitaram desta “lacuna”, então não há que se falar em

fraude alguma, não há que se falar em comportamento dissimulado.

3

A fraude à lei supõe que o problema não está na lei, a qual cumpriu o seu papel

satisfatoriamente: o problema está é na atuação fraudulenta do sujeito passivo (lembrando

mais uma vez que nem todas as atuações que buscam exclusivamente economias fiscais são

ipso facto fraudulentas). Assim, a técnica da fraude à lei tributária não é uma solução à imper-

feições da lei, mas um instrumento excepcional que resulta necessário para assegurar a plena

aplicação da lei tributária, por mais perfeita que seja.

Pertinente trazer à colação a lição do eminente Ministro Moreira Alves4, que

esclarece que:

No direito romano já se fazia a distinção entre os atos contra legem e os atos

in frudem legis, embora nem sempre os textos romanos sigam essa distinção.

Quando se estuda o problema da interpretação das leis, distinguem-se os verba

legis da mens legis (e não da mens legislatoris). As verba legis são as palavras

de lei, e a mens legis é o espírito da lei, ou seja, aquilo que suas palavras pre-

tenderam exprimir .

Daí, na interpretação da lei examina-se, num primeiro estágio (o da interpreta-

ção gramatical ou literal), os verba legis, ou seja, as palavras da lei, e num se-

gundo estágio (o da interpretação lógica), a mens legis (o espírito da lei).

A mesma distinção é de fazer-se aqui, porque no problema da fraude à lei o

que ocorre justamente é isto: observa-se a letra da lei, mas para se alcançar um

fim contrário ao espírito da lei. Emprego a palavra lei no sentido amplo, para

traduzir norma jurídica, pois, embora sejam raros os exemplos, é possível in-

clusive ocorrer fraude ao costume.

Quando o ato vai contra as palavras e o espírito da lei, é ele contra legem,

contrário à lei, em que há a violação direta da lei.

Já quando o ato preserva a letra da lei, mas ofende o espírito dela, o ato é de

fraude à lei. É possível, para praticar-se fraude à lei, que haja a utilização de

4

um ato só ou de um complexo de atos. De um ato só, temos vários exemplos.

Darei o célebre exemplo de uma Constituição Imperial do Imperador Constan-

tino, que estabeleceu que todas as doações de valor superior a 500 sólidos pre-

cisariam observar o instituto da insinuatio apud acta, ou seja, deviam ser ce-

lebradas por escrito e registradas em arquivo público. Então o que se fazia pa-

ra não se observar essas formalidades era, ao invés de doar para a mesma pes-

soa 500 sólidos, celebrar seis doações cada uma de 100 sólidos. Com isso ob-

servavam-se estritamente as palavras da lei: não havia, considerando-se esse

fracionamento, doação de mais de 500 sólidos. Desrespeitava-se, porém, o es-

pírito da lei, que era justamente o de que toda doação que ultrapassasse o valor

de 500 sólidos teria de observar aquelas formalidades.

Por vezes, há necessidade de uma conjugação de atos. Temos, por exemplo, o

caso e pessoas interpostas para o fim de fraudar à lei. Funcionário público não

pode comprar em leilão bem público, então um amigo dele compra em leilão

não para ficar com ele, mas com a finalidade posterior de revender esse bem

para aquele funcionário público. Conseqüentemente, as palavras da lei foram

observadas: ele não comprou em leilão, e sim, de terceiro, mas o espírito da lei

foi violado. Assim, temos aqui um complexo de negócios jurídicos que em si

mesmos são válidos, mas pela sua reunião passa a ser em fraude à lei. Obser-

vam os verba legis, mas ferem a mens legis ou a sententia legis.

Temos, portanto, que a fraude à lei é uma espécie de gênero violação à lei.

Quando é contra legem, há violação direta: quando é in fraudem legis, temos

violação indireta.

Também nesses casos se trata de ato ou negócio jurídico querido ou de com-

plexo de atos ou negócios jurídicos queridos, havendo coincidência entre a

vontade e a sua manifestação, ao contrário do eu ocorre na simulação.

Quanto aos elementos de fraude à lei há duas posições doutrinárias: uma que

considera que a fraude à lei é sempre objetiva; basta que haja a violação indi-

reta para que, objetivamente, ocorra a fraude à lei. A outra é a subjetiva: a de a

violação indireta, que é o objetivo da fraude à lei, decorrer de elemento subje-

tivo, ou seja, a intenção de fraudar a lei.

4 ALVES, José Carlos Moreira. As figuras correlatas da elisão fiscal. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003. p.

5

A teoria objetiva é a mais seguida, porque, pela teoria subjetiva, é preciso que

o individuo conheça a lei que está violando, para saber que está infringindo

essa lei. Aí, há a dificuldade decorrente do princípio geral de que a ninguém é

dado desconhecer a lei. Por essa presunção absoluta, ou melhor, por essa fic-

ção, porque não há, obviamente, ninguém que possa conhecer todas as leis que

existem no país, todos se têm como conhecedores da lei, o que implica que se

cairá sempre, em última análise, na teoria objetiva, porque o elemento subjeti-

vo existirá por essa presunção.

II. DISTINÇÃO DA FRAUDE À LEI DE FIGURAS AFINS, TAIS COMO ABUSO DE

DIREITO, ABUSO DE FORMA, SIMULAÇÃO E DISSIMULAÇÃO.

As doutrinas brasileira e estrangeira demonstram que o conceito de elisão tri-

butária está relacionado ao emprego de formas jurídicas anormais, atípicas, inadequadas a sua

finalidade usual, artificiais, na realização do fato imponível. É tradicional a referência à ma-

nipulação ou à adaptação do fato imponível como instrumento para atingir vantagem tributá-

ria. Diante deste fato, cabe a descrição das modalidades utilizadas na obtenção destas vanta-

gens fiscais.

A análise de institutos de direito privado tem correlação direta com a interpre-

tação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, introduzido pela Lei

Complementar nº 104, de 2001.

As figuras que aqui serão abordadas se referem a algo que se prende à utiliza-

ção de meios aparentes para ocultar aquilo que realmente as partes contratantes desejam, ou,

então, à utilização de vias indiretas em vez de se utilizarem diretas para alcançarem os fins

intentados. São elas o negócio jurídico simulado e dissimulado, o abuso de forma e de direito

e, por fim, o negócio jurídico em fraude à lei, o grande objeto desse nosso despretensioso es-

tudo.

A diferença entre a chamada “economia de impostos” e a evasão reside na lici-

tude ou ilicitude dos procedimentos ou dos instrumentos adotados pelo indivíduo; por isso e

17-19.

6

que se fala em evasão legal e evasão ilegal de tributo. Análoga é a lição de Ives Gandra da

Silva Martins5 e Antônio Roberto Sampaio Dória6, ao afirmarem que a distinção básica entre

elisão (ou economia de impostos) e evasão está na licitude ou ilicitude dos meios empregados

pelo indivíduo.

Não se discute, é claro, que a fraude ou o artifício para mascarar ou dissimular

o fato gerador são espécies do gênero evasão fiscal. Se alguém rasura documentos fiscais, ou

registra fatos inverídicos, “notas ou recibos frios”, a ilicitude é evidente.

Mas, certamente, há mecanismos menos grosseiros de ocultar ou dissimular os

fatos, manipulando esquemas formais não coincidentes com a realidade dos fatos.

O problema resvala, em última análise, para a apreciação do fato concreto (fato

real) e de sua correspondência com o modelo abstrato (forma) utilizado. Se a forma não refle-

tir o fato concreto, ela deve ser desqualificada.

A simulação se traduz pela falta de correspondência entre o negócio que as

partes realmente estão praticando e aquele que elas formalizam. As partes querem, por exem-

plo, realizar uma compra e venda, mas formalizam (simulam) uma doação, ocultando o paga-

mento do preço. Ou, ao contrário, querem este contrato, e formalizam o de compra e venda,

devolvendo-se (de modo oculto) o preço formalmente pago. Em outras palavras, o negócio

jurídico simulado é aquele que cria uma aparência querida pelas partes. É uma aparência que

se cria, com a finalidade de apenas criá-la, sem se querer ocultar algo que realmente se deseja

(simulação absoluta), ou então se cria essa aparência para ocultar o que realmente se deseja

(simulação relativa).

Na sempre atual doutrina de Clóvis Bevilacqua7, a simulação ocorre se e quan-

do há “uma declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso do ostensiva-

mente indicado”. De acordo com o conceito normativo de simulação, esta ocorre sempre que

presentes declarações falsas ou documentos falsos. O negócio simulado é o que tem uma apa-

5 MARTINS, Ives Gandra da. Elisão e evasão fiscal, in caderno de Pesquisas Tributárias nº 13, São Paulo: Rese-nha Tributária, 1998. p. 118. 6 DÓRIA, Roberto Sampaio. Elisão e evasão fiscal. 2. ed. São Paulo: José Buushatsky, 1977. p. 58 7 BEVILACQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 225.

7

rência contrária à realidade, ou porque não existe em absoluto ou porque é diferente da sua

aparência. No negócio simulado, o defeito pode recair sobre a existência do negócio, sobre a

sua natureza, ou sobre as partes, as pessoas contratantes.

A doutrina costuma distinguir entre simulação absoluta e relativa. No primeiro

caso, o ato é inexistente, não inválido, enquanto que na simulação relativa o ato é mentiroso

quanto ao seu conteúdo.

Vejamos os exemplos de simulação absoluta e relativa citados por Moreira

Alves8:

... ocorrendo uma revolução, e havendo a perspectiva de confisco dos bens dos

anti-revolucionários, um deles celebrar simuladamente – simulação absoluta –

contrato de compra e venda com um amigo que não corre esse risco por ser

partidário da revolução, tornando-se este aparentemente proprietário da coisa,

e não correndo, portanto o risco de tê-la confiscada. Criou-se a aparência sem

que se oculte por baixo dela um negócio jurídico que é realmente desejado.

... quando o marido, não podendo fazer doação à sua concubina, simula com-

pra e venda, pois não recebe o preço, para que essa compra e venda, na reali-

dade, oculte uma doação – simulação relativa.

Para que haja a simulação é preciso que exista: a) divergência entre a vontade

interna e a vontade manifestada; b) a necessidade que o acordo simulatório ocorra entre as

partes; e c) objetivo de enganar terceiros estranhos a esse ato simulado.

A simulação e a dissimulação são defeitos do negócio jurídico que objetivam

burlar a lei ou prejudicar terceiros, procurando alguma vantagem econômica. Apesar de

possuírem a mesma finalidade e representarem uma realidade falsa, têm aplicações distintas

e significados próprios.

8 ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit., p. 12-13.

8

Simular significa aparentar algo que não existe enquanto que dissimular signi-

fica esconder algo que existe. Na simulação encontramos apenas um componente irreal que

se esgota em si mesmo, visando o ato a ser apresentado ao mundo, enquanto que na dissi-

mulação existe um componente irreal para ocultar um componente real, visando um ato a

ser escondido. Não há como confundir simulação com dissimulação, que também é chama-

da de simulação relativa pela doutrina.

Desta forma, precisa é a definição trazida pela Lei Complementar nº 104

quando alude a desconsiderar atos que visem "dissimular" a ocorrência de fato gerador ou

natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.

Neste sentido Ricardo Mariz de Oliveira9 pontifica:

Com efeito, este dispositivo manda desconsiderar os atos ou negócios que

aparentem perante o mundo exterior uma realidade falsa, porque a realidade

verdadeira, que se constitui no fato gerador e/ou nos elementos constitutivos

da obrigação tributária, está ofuscada pelos atos ou negócios dissimulatórios.

Sendo assim, como os atos ou negócios dissimulatórios encobrem o fato real,

incumbe à autoridade administrativa desconsiderá-los para desvendar a ver-

dade, isto é, para trazer a verdade material às luzes claras.

Dissimulação ou simulação relativa é a expressão mais correta a ser usada para

conferir a lei o intuito desejado. Em matéria tributária, mesmo que tratemos de simulação

absoluta, ou simulação propriamente dita, estaremos diante de simulação relativa.

9 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Reinterpretando a norma antielisão do parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, nº 76. p. 97

9

Mesmo que o contribuinte simule um ato absolutamente inexistente (simula-

ção absoluta), v.g. ágio de subscrição de capital, ainda assim, para efeitos tributários, estare-

mos diante de uma dissimulação. No exemplo mencionado há a simulação de um ato inexis-

tente que não encobre qualquer outro ato, portanto simulação absoluta, mas que afeta os ele-

mentos constitutivos da obrigação tributária cujo objeto é o imposto de renda. Neste caso,

pode-se notar que há um ato dissimulatório da realidade porque, embora sendo um ato falso

que não encubra outro ato real no âmbito privado, no âmbito tributário encobre a realidade

representada pela materialidade do fato gerador realmente existente. Portanto, na órbita tribu-

tária a simulação da órbita privada é recebida como dissimulação por encobrir a base de cál-

culo de tributo, no caso, de imposto de renda. O que ocorre é a "relativização" dos atos ou

negócios jurídicos particulares em relação ao Fisco.

Na verdade, o termo “dissimulação”, em uma das suas acepções, corresponde-

ria à figura da simulação. Como o CTN utiliza ambos os termos em diversos dos seus artigos,

o melhor entendimento é aquele segundo o qual o sentido de “dissimular” previsto pelo pará-

grafo único do artigo 116 do referido Código abrange o “simular”, mas possui abrangência

maior que este.

A teoria do abuso de forma está calcada na utilização de forma jurídica "atí-

pica" ou "não comum" para realização de negócio jurídico visando menor incidência fiscal.

Esta teoria, originalmente adotada pelo código alemão, nasce da interpretação

econômica do direito tributário, onde é possível identificar quatro requisitos para a caracteri-

zação do abuso de formas jurídicas: i) adoção de uma forma jurídica não correspondente ao

resultado econômico perseguido; ii) obtenção, através da elisão, de um resultado econômico

substancialmente idêntico ao que se obteria com a forma jurídica prevista na lei tributária; iii)

irrelevância das desvantagens jurídicas da forma elisiva em comparação com a forma jurídica

prevista na lei tributária iv) intenção de elidir imposto.

10

Em suma, o abuso de forma poderia ser traduzido como a utilização de forma

jurídica não correspondente ao resultado econômico desejado.

Para Ives Gandra Martins10 o abuso de formas não encontra acolhida no direito

brasileiro face à inexistência de normas legais que levem a sua aplicação.

Gilberto Ulhoa Canto11 esclarece com propriedade a aplicação da teoria do

abuso de forma:

O desacerto da teoria do abuso de formas de direito privado parece evidente.

Se as formas são de direito privado e elas não são legitimadas pelas normas

desse ramo do direito, então estaremos diante de um caso comum de ilegali-

dade ou nulidade, pura e simples. Mas, se face ao direito privado tais formas

são legítimas, não vemos como se possa acusar alguém de estar cometendo

abuso destas formas apenas para efeitos legais. Se o legislador tributário não

quiser que as formas de direito privado que forem lícitas e legais em face das

normas deste ramo do direito produzam os efeitos que os agentes poderiam

ter em vista quando a eles recorrem, o que ele tem a fazer é, simplesmente,

dizer que para fins especificamente tributários os atos que segundo o direito

privado seriam lícitos e eficazes serão tratados como se fossem atos de natu-

reza idêntica a um modelo predeterminado; ou poderia, ainda, o legislador

tributário definir, para fins especificamente fiscais, determinados institutos

originados do direito privado de modo substancialmente distinto daquele pelo

qual estão definidos nesse departamento do Direito.

Desta feita, o abuso de forma está intrinsecamente relacionado com os efeitos

econômicos do ato praticado e como a intenção do agente. Se a forma utilizada está em desa-

certo com as normas de direito privado, estamos diante de uma ilegalidade e, portanto, haverá

10 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, nº 36, 2001. p. 231. 11 MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Elisão e evasão fiscal, in caderno de Pesquisas Tributárias nº 13, São Paulo: Resenha Tributária, 1998. p. 16-17.

11

evasão fiscal; se a forma utilizada for legal, cabe ao direito tributário regular as situações em

que as condutas serão consideradas não lícitas para efeitos fiscais.

Vale lembrar que o abuso de forma é citado na exposição de motivos da Lei

Complementar nº 104 como procedimento a ser combatido pela referida lei, apesar de não

constar expressamente no corpo do texto legal.

O abuso de Direito está intimamente ligado à idéia segundo a qual não há di-

reito ilimitado, e a distinção entre o direito, e a forma pela qual é este exercitado, revela-se de

notável importância para a caracterização do abuso do direito, e em conseqüência, permite o

estabelecimento de limites para o planejamento tributário, a partir dos quais a conduta desti-

nada a evitar, ou reduzir o tributo, caracteriza “fraude fiscal”.

Repita-se que a distinção entre o planejamento tributário e a fraude consiste em

que no primeiro a conduta é licita, enquanto na fraude fiscal a conduta é ilícita. Não apenas

perante o Direito Tributário, mas no próprio âmbito do Direito Civil ou Comercial.

Como tal pode ser considerado o uso de fórmulas anômalas, absolutamente

inusuais, cuja validade não pode ser razoavelmente sustentada mesmo no âmbito do Direito

em que está situada a figura jurídica então deformada.

O abuso de direito pode ser definido, portanto, como sendo o exercício egoísti-

co, normal do direito, sem motivos legítimos, com excessos intencionais ou voluntários, dolo-

sos ou culposos, nocivos a outrem, contrário ao critério econômico e social do direito em ge-

ral.

O certo é que no mundo atual, pós era liberal, o abuso de direito é contrário à

tendência socializante do direito, na sua vontade de sempre o direto, qualquer que seja, aten-

der à sua função social.

Moreira Alves12 nos ensina que:

12 ALVES, José Carlos Moreira. Op. cit., p. 19-20.

12

O Código Civil pretérito não tinha nenhum dispositivo expresso e direto rela-

tivo ao abuso de direito. Os autores, em geral, sustentam a sua acolhida por

parte do Código Civil pela circunstância de que o art. 160, inciso I, ao dizer

que não constitui ato ilícito o exercício regular de um direito reconhecido, da-

va a entender que o exercício irregular, portanto, abusivo, de um direito reco-

nhecido é abuso de direito. Conseqüentemente, tal Código Civil adotou, con-

trário senso, a figura do abuso de direito como ato ilícito.

O novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) considera abu-

so de direito como ato ilícito, assim o caracterizando no art. 187, que se en-

contra no capítulo concernente aos atos ilícitos: “Comete ato ilícito o titular de

um direito que, ao exercê-lo, excede manifestadamente os limites impostos

pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

O novel Código utiliza-se aí, inclusive, de um conceito que encontra emprego

bastante amplo nele como cláusula geral, que é o conceito de boa-fé objetiva,

que não se confunde com aquela boa-fé subjetiva que nada mais é do que a ig-

norância de não se estar ferindo direito alheio ou pelo menos a convicção de

que não se estar ferindo direito alheio. A boa-fé objetiva é a boa –fé normati-

va, ou seja, aquela boa-fé que implica a observância e certos deveres que não

são expressos nos atos jurídicos, mas que são secundários ou instrumentais.

Por exemplo: nas tratativas para a celebração de um contrato, e, portanto, an-

tes da celebração deste, já há o dever de sigilo com relação ao conhecimento

de fatos, por causa dessas tratativas, que digam respeito à outra parte e que

possam causar-lhe prejuízo.

O novo Código Civil, portanto, não só conceitua, como caracteriza expressa-

mente essa figura como sendo ato ilícito, sofrendo, conseqüentemente, seu au-

tor as sanções decorrentes dos atos ilícitos.

Ricardo Lobo Torres13 traz um exemplo brasileiro discutido no antigo Tribunal

Federal de Recursos onde, sob a veste de abuso de forma jurídica, os sócios da Grendene cria-

ram 8 sociedades de pequeno porte com o objetivo de manipular o preço das mercadorias a-

proveitando-se da diferença no regime tributário do tributo federal. O Tribunal desconsiderou

13 TORRES, Ricardo Lobo. Normas gerais antielisivas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003. p. 116.

13

o fracionamento da empresa para efeitos de pagamento do imposto de renda, embora não ti-

vesse desconstituído os atos jurídicos. Abaixo o acórdão do TFR:

LEGITIMIDADE DA ATUAÇÃO DO FISCO, EM FACE DOS ELEMEM-

TOS CONSTANTES DOS AUTOS. CONSTITUÍDAS FORAM, NO MES-

MO DIA, DE UMA SÓ VEZ, PELAS MESMAS PESSOAS FÍSICAS, TO-

DAS SÓCIAS DA AUTORA, 8 (OITO) SOCIEDADES COMO OBJETIVO

DE EXPLORAR COMERCIALMENTE, NO ATACADO E NO VAREJO,

CALÇADOS E OUTROS PRODUTOS MANUFATURADOS EM PLÁTI-

CO, NO MERCADO INTERNO E NO INTERNACIONAL.

TAIS SOCIEDADES, EM DECORRÊNCIA DE SUAS CARACTERÍSTI-

CAS DE PEQUENO PORTE, ESTAVAM ENQUADRADAS NO REGIME

TRIBUTÁRIO DE APURAÇÃO DE RESULTADOS COM BASE NO LU-

CRO PRESUMIDO, QUANDO SUA FORNECEDORA ÚNICA, A AUTO-

RA, PAGAVA O TRIBUTO DE CONFORMIDADE COM O LUCRO RE-

AL. RECONHECE-SE À RECORRENTE, APENAS O DIREITO DE COM-

PENSAÇÃO DO IMPOSTO DE RENDA PAGO PELAS ALUDIDAS EM-

PRESAS. REFORMA PRCIAL DA SENTENÇA.14

Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é desdobramento da interpre-

tação econômica do direito tributário. O abuso de direito considera ilícita a conduta do con-

tribuinte que pratica negócios jurídicos visando exclusivamente a economia de imposto, ten-

do como fundamento o uso imoral do direito. O intérprete aplicaria uma regra moral própria,

convertendo-a numa regra jurídica a incidir em cada caso. Para cada situação existirá uma

regra moral específica. Seu campo de incidência é o plano da moral, o que rejeita o princípio

da legalidade e o valor da segurança jurídica.

A maioria da doutrina nacional rejeita a teoria do abuso de direito. Segundo

Ives Gandra Martins15 o "o abuso de direito esbarra de forma incontornável – antes de qual-

quer outro aspecto jurídico – na ausência de previsão legal conferindo à fiscalização autori-

14 APELAÇÃO Cível nº 115.478-RS, Ac. da 6ª Turma do Tribunal Federal de Recursos, de 18.2.87, Rel. Minis-tro Américo Luz. Revista do Tribunal Federal de Recursos 146: 217, 1987. 15 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, nº 36, 2001. p. 235.

14

dade para ultrapassar o limite da estrita legalidade, buscando outros elementos e subsídios

para afirmar ou não a validade jurídica, ainda que sob o prisma tributário, de cada opera-

ção individualizada.”

Alfredo Augusto Becker, citado por César A. Guimarães Pereira16, questiona

se é possível haver mau uso do direito sem que este se confunda com ilegalidade ou ilicitude.

Sendo uma regra moral, o abuso de direito entrega ao intérprete o poder de converter uma

regra moral em regra jurídica, sendo que o intérprete não detém poder de legislar.

O novo Código Civil suplantou tal questão pelo seu art. 187, quando prevê que

o titular de um direito comete ato ilícito ao exercê-lo de modo manifestamente excedente aos

limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Des-

ta forma, o legislador caracterizou o abuso de direito como ato ilícito. A sua prática com a

finalidade de economia de tributos configura evasão tributária, em função da ilicitude, não

estando afeta a elisão tributária, que pressupõe a utilização de atos lícitos.

Assim com o abuso de forma, o abuso de direito é mencionado na exposição de

motivos da Lei Complementar nº 104, como sendo objeto de combate pela referida lei, mas

não integra o seu texto legal.

Uma figura jurídica conexa à simulação, ao abuso de forma e ao abuso de direi-

to é a fraude à lei (frau legis). Aquele que defrauda não contradiz o teor verbal da lei, antes

atém-se respeitosamente à sua letra, mas, na realidade, vem a frustrar o fim a que objetivava o

princípio jurídico. Há uma enorme diferença entre negócio jurídico simulado e o negocio jurí-

dico praticado em fraude à lei. Naquele o negócio é apenas aparente, enquanto este é querido

ostensivamente pela partes com o objetivo de iludir a lei e conseguir o fim proibido por cami-

nho indireto.

Exemplo clássico de fraude à lei nos é dado, novamente, por Ricardo Lobo

Torres17, nos seguintes termos:

16 PEREIRA, César A. Guimarães. Elisão e função administrativa. São Paulo: Dialética, 2001. p. 70. 17 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., p. 115.

15

Para pagar menos imposto determinada pessoa, ao revés de vender o bem,

preferiu fazer contrato de locação, de tal forma que no prazo previsto os alu-

guéis chegariam aproximadamente ao mesmo valor da venda, sujeitando-se a

imposto menor; ao adquirente era garantida a preferência para a aquisição do

bem por preço determinado ao fim do contrato. Quer dizer: o ato praticado era

lícito, mas se utilizou para qualificar o negócio uma norma de cobertura que

não lhe era adequada. Houve o desencontro entre a intentio facti e a intentio

júris.

Marcos Bernardes de Mello18, afirma que é perfeitamente possível distinguir o

ato in fraudem legis do ato simulado. Diz ele:

O ter a simulação, em alguns casos, a finalidade de infringir preceito legal não

a torna semelhante à fraude à lei. Primeiro porque esse dado não é essencial à

simulação. No mais das vezes o ato simulado de destina a prejudicar direitos

subjetivados de terceiros. Na fraude à lei a sua característica substancial é,

precisamente, a infração da norma jurídica por meios indiretos. Depois, o ou-

tro elemento fundamental para distinguir o ato in fraudem legis do ato simula-

do consiste em que na simulação os atos não são verdadeiros, embora se des-

tinem a violar a lei. Realmente, na simulação os atos praticados ou são aparen-

tes ou são mentirosos.

No ato in fraudem legis nada é aparente. Tudo o que aparece é querido, espe-

cialmente o resultado. Como demonstramos acima (2.3.3), os atos em si, con-

siderados isoladamente, são válidos e eficazes. A invalidade é produto da in-

fração à lei, que se consuma com a conjunção dos diversos atos através da

qual o fim proibido ou imposto é alcançado ou evitado.

Como se vê não é fácil distinguir entre simulação e fraude à lei. O elemento

comum entre elas é a ilicitude que contamina a validade dos atos ou negócios jurídicos e não

podem aparelhar qualquer conduta elisiva.

III. CABIMENTO DA FIGURA DE FRAUDE À LEI NA MATÉRIA TRIBUTÁRIA,

ESPECIALMENTE TENDO EM VISTA O NOVO CÓDIGO CIVIL.

18 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 156-157.

16

Para responder a esta indagação precisamos, antes de enunciarmos a nossa mo-

desta opinião, nos socorrer das ponderações feitas pela doutrina brasileira. Pela firmeza e luci-

dez com que defendem os seus pontos de vista e, principalmente, por terem respostas diferen-

tes à indagação título desse item, escolhemos expor os pensamentos dos professores Alberto

Xavier e Marco Aurelio Greco.

Alberto Xavier adota, como fundamento chave da sua doutrina, a denominação

de “negócio jurídico menos oneroso”19 para qualificar os atos jurídicos praticados pelos parti-

culares como propósito de não pagar ou pagar menos impostos.

Para ele a elisão tributária pode ocorrer na generalidade dos tributos, não ape-

nas naqueles cujas hipóteses de incidência descrevem atos jurídicos, já que mesmo nestes há

interferência de atos jurídicos na configuração do fato imponível. Pode-se dar tanto em rela-

ção ao pressuposto (hipótese) quanto à estatuição (mandamento) da norma tributária. Pode

ocorrer em todos os aspectos da norma tributária em que exista tipificação.

Assim, Xavier não aceita a tese de que os negócios fiscalmente menos onerosos

pudessem ser qualificados como negócios em fraude à lei.

A teoria da fraude à lei, para ele, seria inaceitável porquanto apenas normas

preceptivas ou proibitivas poderiam ser objeto de fraude. Embora a norma tributária seja in-

derrogável pela vontade das partes, não proíbe a realização de nenhum fim nem torna obriga-

tória a adoção de certas formas para a realização de determinados fins. A norma tributária

incide (ou seja, qualifica fatos e faz nascer os deveres jurídicos previstos em seu mandamento)

desde que ocorra o fato jurídico descrito no seu pressuposto. A prática do negócio fiscalmente

menos oneroso faz com que não se realize o fato descrito no pressuposto e, portanto, não se-

jam desencadeadas as determinações do mandamento. A norma tributária não seria, assim,

suscetível de fraude à lei.

Inclui o exame da fraude à lei na perspectiva mais ampla das nulidades no di-

reito tributário brasileiro.

19 XAVIER. Alberto P. A evasão fiscal legítima – o negócio jurídico indireto em Direito Fiscal. Revista de Direi-to Público. São Paulo: RT, nº 23. p. 12.

17

O fundamento legal para concepção acerca do tema está na sua interpretação

do art. 118 do CTN, que suprime a competência administrativa para conhecer defeitos dos

atos jurídicos. A administração tributária não detém competência para reconhecer a nulidade

ou a anulabilidade de atos jurídicos, devendo promover o lançamento com abstração desses

defeitos (apenas lhes sendo dado conhecer da inexistência jurídica do ato).

A fundamentação teórica dessa concepção consiste no princípio da capacidade

contributiva, que determina “a prioridade do conceito de eficácia sobre o de validade”, tor-

nando cabível a tributação de atos nulos que tenham sido executados. A aparência supera a

realidade no lançamento, até que a verdade material venha a ser declarada pelo Poder Judiciá-

rio. A fraude à lei, tanto quanto qualquer outro defeito dos atos jurídicos, somente pode ser

tomada em conta pela administração tributária após declaração eficaz do Poder Judiciário.

A doutrina de Marco Aurelio Greco centra-se, ao nosso ver, na distinção entre

elisão tributária eficaz e a elisão tributária ineficaz. A prática de negócio fiscalmente menos

oneroso caracterizado por simulação não configura elisão tributária eficaz. Esta é a que se

exterioriza através de negócios jurídicos indiretos. Sugere modificação no pensamento brasi-

leiro sobre a economia de tributos e o planejamento fiscal.

Chama atenção para o fato de que a nova ordem constitucional instituída em

1988 agregou novos valores que condicionaram o exercício do direito de auto-organização.

Esse direito não mais envolve apenas a idéia de esfera de liberdade resultante

de condutas possíveis não descritas como pressuposto de nenhum efeito tributário, construída

com base na reserva absoluta de lei como forma de bloqueio da ação do Estado. Essa concep-

ção é típica da noção de Estado de Direito. Com a Constituição de 1988, o Brasil passou a

configurar Estado Democrático de Direito, incorporando valores do Estado Social20.

Por isso, o direito de auto-organização (concebido sobre os valores propriedade

e segurança) terá seu exercício condicionado pelos valores igualdade, solidariedade e justiça21.

20 GRECO, Marco Aurelio. Planejamento fiscal e abuso de direito. Estudos sobre o imposto de renda. São Paulo: Resenha Tributária, 1994. p. 94/95. 21 GRECO, Marco Aurelio. Ob. cit., p. 96.

18

Sob essas premissas, conclui que será abusivo o exercício do direito de auto-organização

quando seu uso ou o seu resultado deixar de atender a esses novos valores trazidos pela Carta

Magna de 1988.

A estrutura de sua doutrina está na idéia de finalidade exclusiva de reduzir ou

impedir a tributação. A auto-organização com finalidade exclusiva de obter vantagem tributá-

ria configura abuso de direito. O fisco pode recusar-se a reconhecer os seus efeitos fiscais,

mesmo sem que isso implique a decretação da ilicitude da operação.

O professor Greco, em magnífica obra publicada pela Editora Dialética22, afir-

ma ser possível o cabimento da fraude à lei em matéria tributária, vejamos, in verbis:

Dirão alguns que o raciocínio acima exposto estaria comprometido, pois as

figuras do abuso do direito e da fraude à lei em matéria tributária não têm a-

plicação no direito brasileiro, enquanto não sobrevier lei expressa neste senti-

do, pois o princípio da legalidade assim determinaria.

Neste ponto é preciso proceder a alguns esclarecimentos.

Primeiro, é preciso distinguir abuso de direito e fraude à lei por definição le-

gal, de abuso de direito e fraude à lei, identificados a partir de características

fáticas de atos ou negócios praticados.

Estas figuras “por definição legal” podem existir desde que o legislador as

enumere segundo entender pertinente. Para tanto, pode utilizar a técnica de e-

ditar dispositivo pelo qual “consideram-se abusivas ...”, ou “consideram-se em

fraude à lei ...” tais ou quais condutas. Nesta hipótese, as condutas enumeradas

necessariamente configurarão abuso ou fraude à lei. Nesta primeira categoria,

não há dúvida que a existência de lei é indispensável para tipificá-los.

Porém, não é esta a única forma pela qual podem estar configuradas tais figu-

ras. Elas podem existir independentemente de tipificação legal e prévia, por

corresponderem a distorções instauradas a partir de conduta realizadas.

22 GRECO, Marco Aurelio. Constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). O planejamento tributário e a Lei complementar nº 104. São Paulo: Dialética, 2001. p. 196-199.

19

Realmente, abuso de direito e fraude à lei são também categorias teóricas, cuja

verificação se dá em função de realidades concretas, vale dizer, algo efetiva-

mente ocorrido no plano dos fatos.

O exame dos fatos e a busca de sua interpretação, para fins de enquadramento

nas normas jurídicas, integra a experiência jurídica como um todo, tanto quan-

to a análise e interpretação das leis. Transitar no plano dos fatos é tão relevan-

te quanto analisar as previsões abstratas do Direito. A realidade jurídica não é

feita apenas de leis; compõe-se também de fatos aos quais as leis devem se a-

plicar.

Desta ótica, abuso de direito e fraude à lei são figuras voltadas às qualidades

que cercam determinados fatos, atos ou condutas realizadas, que lhes dão certa

conformação à vista das previsões legais. Afirmar que houve abuso ou que o

comportamento de alguém se deu em fraude à lei, não significa ampliar ou

modificar o sentido e o alcance da lei tributária. Significa, apenas, identificar,

nos fatos ocorridos, a hipótese legal, neutralizando o “excesso” ou afastando a

“cobertura” que se pretendeu utilizar, para tentar escapar da incidência da lei.

Neste segundo plano, estas categorias são aplicáveis ao Direito Tributário

independente de lei expressa que as preveja. De um lado, porque não interfe-

rem com a legalidade e a tipicidade, posto que situadas no plano dos fatos e

não da norma; de outro lado, porque são categorias gerais do Direito. O abuso

é o corolário do uso regular do direito, pois há décadas já se afastou a visão

individualista de que um direito comporta qualquer tipo de uso, inclusive o

excessivo ou que distorça seu perfil objetivo. A fraude à lei é decorrência da

legalidade e da imperatividade do ordenamento positivo, como um todo, e da

norma jurídica específica. Lei existe para ser seguida e não contornada ou

“driblada”.

A meu ver, é ínsita ao ordenamento positivo a possibilidade de existirem me-

canismos que possam neutralizar as condutas que contornem as normas jurídi-

cas, frustrem sua incidência, esvaziem sua eficácia, naquilo que a experiência

jurídica conhece por fraude á lei ou abuso de direito. A imperatividade e a efi-

cácia do ordenamento supõem a existência de mecanismos que as assegurem;

são o espelho das suas próprias previsões. Portanto, a meu ver, estas figuras

20

não dependem de “outra lei” prevendo seu cabimento. Ao contrário, são de-

corrência da legalidade, pois esta só tem sentido desde que o ordenamento te-

nha sua eficácia, imperatividade e aplicabilidade asseguradas.

Porém, ainda que houvesse tal necessidade, ela estaria atendida pelo parágrafo

único do artigo 116. Realmente, ao qualificar o efeito ou resultado (dissimula-

ção) o dispositivo abrangeu todos os meios que podem levar à sua configura-

ção; vale dizer, inclusive abuso de direito e fraude à lei.

Além disso, não se pode perder de vista o sentido ético que permeia a aplica-

ção de medidas visando neutralizar as figuras do abuso de direito e da fraude à

lei. Assim como se exige da Administração Pública a moralidade da sua ação

(CF/88, artigo 37, caput), também exige-se do cidadão lisura de conduta. Mo-

ralidade e lisura de conduta são princípios que se aplicam a todas as pessoas e

não apenas à Administração Pública.

Neste sentido, é muito importante recente decisão da 2ª Turma do Supremo

Tribunal Federal, relatada pelo Min. Celso de Mello, na qual o tema do abuso

do direito (naquele caso concreto, direito de recorrer) vem atrelado a um prin-

cípio ético-jurídico subjacente e resvala para um juízo sobre a probidade da

conduta. Ou seja, não é apenas uma questão de imperatividade e eficácia do

ordenamento positivo, mas abrange, inclusive, um aspecto de ordem moral e

ética.

Em suma, a meu ver, a aplicação das figuras do abuso do direito e da fraude à

lei em matéria tributária, no ordenamento positivo brasileiro, pode ocorrer in-

dependente de lei expressa que as autorize, pois elas são decorrência da lega-

lidade e da imperatividade do ordenamento. Ainda que fosse indispensável

uma lei autorizando a aplicação de tais categorias, este requisito estaria aten-

dido pelo parágrafo único do artigo 116 aqui comentado. (grifamos)

Postas as abalizadas opiniões da doutrina, aqui representadas pela doutrina do

professores Alberto Xavier e Marco Aurelio Greco, podemos fazer as considerações abaixo e,

ao final, concluir, nos seguintes termos:

21

Considerando que o vínculo entre direito tributário (como direito de superpo-

sição) e outros ramos do direito (especialmente do direito privado) é evidente, principalmente

tendo em vista que estes também qualificam os fatos colhidos na norma tributária;

Considerando que os institutos de direito privado têm plena relação com a in-

terpretação do parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, criado pela Lei

Complementar nº 104, de 2001;

Considerando que a caracterização do que seja a dissimulação a que alude o

dispositivo retro citado passa, necessariamente, pelo estudo dos negócios jurídicos;

Considerando que a partir da edição da Lei Complementar mencionada a auto-

ridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a fina-

lidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos

constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos estabelecidos em lei ordi-

nária;

Considerando que as figuras de direito privado, estudadas resumidamente nes-

te singelo trabalho, se referem a algo que se prende à utilização de meios aparentes para ocul-

tar aquilo que realmente se deseja, ou, então, à utilização de vias indiretas em vez de se utili-

zarem vias diretas para alcançar os fins desejados;

Considerando a constitucionalidade da LC nº 104/2001, a possibilidade e a

conveniência das normas antielisivas, que equilibram a legalidade com a capacidade contri-

butiva, especialmente por estarmos num Estado democrático de direito que visa construir

uma sociedade livre, justa e solidária;

Considerando que o novo Código Civil estabelece que:

22

Art. 421 – a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da fun-

ção social do contrato;

Aqui fica claro que a liberdade de contratar (fundada na autonomia da vonta-

de, consistindo no poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo

de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica)

não é absoluta, pois está limitada não só pela supremacia da ordem pública, que veda con-

venção que lhe seja contrária e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contratantes

está subordinada ao interesse coletivo, mas também pela função social do contrato, que o

condiciona ao atendimento do bem comum e dos fins sociais. Consagrado está o princípio da

socialidade23.

Art. 422 – os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do con-

trato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé;

Art. 167 – é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimu-

lou, se válido for na substância e na forma;

Art. 169 – o negócio jurídico nulo não é suscetível de conformação, nem con-

valesce pelo decurso do tempo;

Art. 186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou impru-

dência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,

comete ato ilícito;

23 DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 8. ed. Atual. de acordo como novo Código Civil. (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). São Paulo: Saraiva, 2002. p. 305.

23

Art. 187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que ao exercê-lo,

excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,

pela boa-fé ou pelos bons costumes;

Art. 166, inciso III e IV – é nulo o negócio jurídico quando o motivo determi-

nante, comum a ambas as partes, for ilícito e tiver por objetivo fraudar lei im-

perativa;

Considerando que a lei tributária é uma lei imperativa;

Forçoso é concluir, após todas as considerações expendidas, que a figura da

fraude à lei é plenamente aplicável à matéria tributária, nos termos e limites positivados pelo

Código Tributário Nacional (art. 116, parágrafo único) e pelo atual Código Civil.