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Filosofazer. Passo Fundo, n. 35, jul./dez. 2009. 151 O novo pensamento: Franz Rosenzweig Sérgio Trombetta * Franz Rosenzweig (Kasseel, 1886 – Frankfurt, 1929) representa a primeira crítica consistente e radical ao pensamento idealista-totalitário de Hegel e a consciência da necessidade de uma alternativa filosófica ca- paz de responder às inquietações existenciais da pessoa em sua experiên- cia singular neste mundo. O autor se confronta com o desmoronamento do pensamento categorial da essência com suas abstrações universali- zantes e busca um novo pensamento que contemple a experiência pesso- al em sua concretude. A filosofia do autor se caracteriza por uma crítica à filosofia tradicional e a recusa da crença habitual no caráter inteligível do Todo. O Novo Pensamento defende a experiência como o princípio e limite do conhecimento. A experiência é o solo de onde brota todo o nosso conhecimento. Trata-se de uma revolução total do pensamento. Um movimento intelectual que pretende pensar a dignidade humana a partir da singula- ridade e das experiências da pessoa com seus medos, angústias e inquie- tações frente à finitude. A experiência captada na concretude da existên- cia; a experiência do tempo e seu ritmo é o ponto de partida desse Novo Pensamento. A experiência corresponde ao pensamento que se dá no tempo: a experiência do real que se expressa em cada instante. Defende- -se a dignidade incondicional do indivíduo, do tempo presente com seu dinamismo contra a história atemporal. “Com esse novo pensamento, Rosenzweig visa a contrapor-se deli- beradamente ao pensamento da identidade e da essência. A redu- ção à identidade da essência é própria da filosofia grega, é o modo peculiar com que historicamente se produziu a abordagem do real. A razão filosófica que, desde o começo, manifestou-se como princípio de identidade identificante, princípio lógico, deve, por definição, renunciar a negar a estranheza, seja qual for o seu gê- nero. Assim, a essência é o pólo ontológico a que se mantém agar- * Professor de filosofia na Unisinos. Doutorando em filosofia na PUCRS

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Filosofazer. Passo Fundo, n. 35, jul./dez. 2009. 151

O novo pensamento: Franz Rosenzweig

Sérgio Trombetta*

Franz Rosenzweig (Kasseel, 1886 – Frankfurt, 1929) representa a primeira crítica consistente e radical ao pensamento idealista-totalitário de Hegel e a consciência da necessidade de uma alternativa filosófica ca-paz de responder às inquietações existenciais da pessoa em sua experiên-cia singular neste mundo. O autor se confronta com o desmoronamento do pensamento categorial da essência com suas abstrações universali-zantes e busca um novo pensamento que contemple a experiência pesso-al em sua concretude. A filosofia do autor se caracteriza por uma crítica à filosofia tradicional e a recusa da crença habitual no caráter inteligível do Todo. O Novo Pensamento defende a experiência como o princípio e limite do conhecimento. A experiência é o solo de onde brota todo o nosso conhecimento.

Trata-se de uma revolução total do pensamento. Um movimento intelectual que pretende pensar a dignidade humana a partir da singula-ridade e das experiências da pessoa com seus medos, angústias e inquie-tações frente à finitude. A experiência captada na concretude da existên-cia; a experiência do tempo e seu ritmo é o ponto de partida desse Novo Pensamento. A experiência corresponde ao pensamento que se dá no tempo: a experiência do real que se expressa em cada instante. Defende--se a dignidade incondicional do indivíduo, do tempo presente com seu dinamismo contra a história atemporal.

“Com esse novo pensamento, Rosenzweig visa a contrapor-se deli-beradamente ao pensamento da identidade e da essência. A redu-ção à identidade da essência é própria da filosofia grega, é o modo peculiar com que historicamente se produziu a abordagem do real. A razão filosófica que, desde o começo, manifestou-se como princípio de identidade identificante, princípio lógico, deve, por definição, renunciar a negar a estranheza, seja qual for o seu gê-nero. Assim, a essência é o pólo ontológico a que se mantém agar-

* Professor de filosofia na Unisinos. Doutorando em filosofia na PUCRS

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rado o princípio gnosiológico que a modernidade chamou de co-gito, eu, espírito. Essência é o conceito segundo o qual se ordena o mundo dos objetos; essência, o universal que abarca sob si todo o particular, uma vez que antecede todo o particular” (BACCA-RINI, 1988, p. 277).

A primeira ruptura de Rosenzweig é com o pensamento político de Hegel, especialmente com sua filosofia da história, cuja verdade trágica pesava sobre os acontecimentos da guerra. Na ótica do autor, o Estado hegeliano é perpassado pela força, pela potência. No acontecer da histó-ria, a guerra, a violência entre os Estados é inevitável.

A lógica da identidade a partir da auto-suficiência da razão constrói o sistema da totalidade onde o que conta é o todo, a unidade, o universal. O projeto Idealista parte da concepção que a razão, o pensamento é ca-paz de abarcar toda a realidade e a racionalidade é dotada de uma força capaz de chegar ao núcleo, a essência do real não deixando nada de fora do conceito. Toda a realidade encontra-se sintetizada no conceito.

A grande intuição presente na filosofia de Rosenzweig é a de que na origem do pensamento nós temos a pluralidade, a diferença, a riqueza do singular. Em contraponto à razão única, Rosenzweig descobre uma razão plural. É a partir da pluralidade que o pensamento do autor pode ser compreendido. A realidade só é concebível enquanto pluralidade. Segundo Souza (2004, p. 63), o sentido da realidade se consubstancia, se assim se pode dizer, exatamente na multiplicidade de sentidos que a realidade desde sempre comporta; pensar seria: manter tal multiplicida-de de sentidos à vista – e viver seria levar tal multiplicidade de sentido efetivamente a sério.

Estas dimensões apontam para a impossibilidade de uma síntese ab-soluta. O real não é sintetizável em um conceito. O conceito não é sufi-cientemente forte para dizer o sentido da realidade. A síntese conceitual não é capaz de esgotar a profundidade da vida, a riqueza singular do real. A realidade em sua multiplicidade é maior que o conceito. O Dito não esgota o sentido do Dizer.

A História do Ocidente tem consistido, em suas linhas mais am-plas, na história dos processos utilizados para neutralizar o poder desagregador do Diferente; e a História da Filosofia ocidental tem sido, quase sempre, a maneira de favorecer e legitimar intelec-tualmente esta busca da neutralização. A esta busca de neutrali-

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zação chamamos totalização, e à construção dialética, imanente e com pretensão de auto-compreensão e auto-legitimação – em que convergem os resultados deste esforço de totalização – temos chamado de Totalidade. Com o Idealismo – especialmente com Hegel – a Totalidade se auto-compreende e se auto-legitima de forma acabada. A dialética é seu motor e sua vida, arte acabada de transmutação do Diferente no Mesmo (SOUZA, 1996, p. 18, 22).

Na Totalidade, o excesso do Absoluto, de Universalidade é de tal

intensidade que asfixia a existência singular da pessoa. No dinamismo do Mesmo a exterioridade é absorvida na unidade; a multiplicidade é sacrificada no altar do Uno. Para o extremo monismo idealista a verda-deira realidade de todos os seres individuais está contida no universal, em que todos os existentes particulares estão engolfados. O pensamento está convencido que é capaz de abarcar toda a realidade no conceito.

No Idealismo, o particular, a contingência são desprezados ou são um momento a ser superado. O que tem importância, valor é o Todo, o Universal, o Absoluto. O Absoluto se encarna no conceito. A realidade, o objeto perde sua vitalidade, seu dinamismo e se transforma em conceito. O que conta é a realidade do conceito. A pluralidade, a multiplicidade do real, a história singular de cada pessoa, dos povos desaparecem frente ao Universal. Tudo é submetido ao conceito. O que fica de fora do conceito não tem importância, é desprezado, é irrelevante. Nesta lógica, há povos, grupos que encarnam a racionalidade do Espírito Universal. Estes têm o direito a existir. Os que não alcançam esta condição podem ser aniquila-dos pela marcha racional da história. Nesta lógica justifica-se a violência e a guerra. Muitos povos são esmagados pelos que se consideram mais desenvolvidos.

O que é desprezado pelo Idealismo: a singularidade, o concreto, o tempo presente se tornam os fundamentos do Novo Pensamento. É jus-tamente o que fica fora do conceito que a filosofia deve tomar como seu ponto de partida, pois estas dimensões representam a verdadeira reali-dade, enfim, a vida. Para Rosenzweig, a riqueza do singular, da multipli-cidade não se deixa aprisionar nos labirintos construídos pela deusa Ra-zão em seu desejo de recolher, unificar toda a realidade em um conceito abstrato. O conceito pretende abarcar todas as experiências da vida. No entanto, a filosofia não consegue exorcizar nossos medos. A síntese abso-luta não é capaz de remover a experiência dramática da pessoa com suas

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angústias e sofrimentos. A filosofia Idealista não reconhece a angústia da pessoa e o caráter dramático da existência, suas fragilidades. Frente ao medo da morte toda filosofia é insuficiente e a Totalidade não se totaliza. O eu de carne e osso resiste ao sistema; o eu empírico com suas experi-ências concretas de vida escapa a toda totalização. A verdade da pessoa é estranha, exterior a toda ordem conceitual. Rosenzweig sentencia: “Após ela [a filosofia] haver recolhido tudo em si [...] o ser humano descobre que ele... ainda está aqui... Eu, pó e cinzas, eu ainda estou aqui” (apud SOUZA, 1999, p. 21).

Para Rosenzweig, a realidade é constituída de sentido antes da de-finição, da síntese produzida pela razão, da explicação dada pelo cogito. Não é necessário a realidade ser pensada, sintetizada para ter um senti-do. Estamos frente a desarticulação ser (a realidade) é pensar (a essência da realidade). Impossibilidade do pensamento recolher a riqueza do real em uma unidade conceitual. A filosofia tradicional identifica pensar e ser. Rosenzweig pretende apontar para aquilo que não necessita ser pen-sado para ser. “Pretende-se que cada realidade seja deixada a si mesma, repouse em seu próprio peso, sem classificações sintéticas que culminam em violências intelectuais. As coisas são o que são, antes de serem reu-nidas em uma síntese intelectual classificatória e hierárquica” (SOUZA, 2004, p. 71, 78).

No Novo Pensamento o que conta mesmo é a singularidade. O todo não é mais conteúdo do sistema nem sinônimo de verdade. Em Rosen-zweig o Todo é destroçado. Cada parte é um Todo. O Todo está rompi-do; cada fragmento é um todo para si. A Totalidade, a essência é a não verdade, é a negação da realidade em sua multiplicidade, pois a filosofia da essência exige a redução de uma coisa, a outra (oposta a ela). O parti-cular, a multiplicidade desaparece no dinamismo do universal.

É a desagregação do Todo, da Totalidade fechada, da filosofia da es-sência que permite ao pensamento suportar, conviver com a pluralidade, com o que resiste às lógicas totalizantes. A partir da implosão do Todo fechado e da impossibilidade da Unidade do real, o pensamento volta--se para a originalidade da realidade plural, ao singular. O Novo Pensa-mento eleva a multiplicidade acima da unidade; a contingência acima da necessidade. A atenção volta-se para a pluralidade, a particularidade, a contingência. Em lugar da busca pelo universal e necessário se valoriza a vida concreta, o instante. A verdade nasce em cada acontecimento, em cada vivência. O olhar filosófico busca o ser humano inteiro com seu

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tempo de vida, suas experiências, seu rosto, seus sofrimentos. “É com fatos – e não com teorias – que Rosenzweig se debaterá ao longo de toda sua curta vida” (SOUZA, 1999, p. 50-51). A experiência, a existência sin-gular deve ser o ponto de partida do nosso filosofar. O pensamento da essência, a Totalidade substitui o indivíduo singular pelo homem em ge-ral, não prestando atenção a pessoa e sua experiência singular de vida. O humano desaparece, evapora no seio do Todo. O Novo Pensamento faz da experiência pessoal, da existência temporal/concreta o ponto inicial da filosofia. Antes de ser pensamento, o ser humano é um corpo singular – no mundo. Portanto, para ser autêntica e escapar das armadilhas do Idealismo, a filosofia deve radicar-se na experiência pessoal.

A filosofia tradicional não se limitava a transpor o verdadeiro ser do homem para uma essência geral, que é a mesma para todos os homens particulares, mas também asseverava que a meta da vida humana está contida na manifestação dessa ideia geral do ser humano. O Novo Pensamento protesta contra semelhante derro-gação da dignidade do indivíduo. Atribui valor ao homem indivi-dualmente, não apenas originalidade de ser, mas valor primordial; mantém que o valor da vida do indivíduo se encontra nesta vida, e não em um princípio geral que o transcenda (GUTTMANN, 2003, p. 398).

A verdade não é mais o todo em sua unidade absoluta, mas a ver-dade singular, o pluralismo de sentido que marca a riqueza do real. A posição assumida por Rozenzweig no Novo Pensamento é de

[...] oposição ao curso filosófico tradicional de Tales até Hegel, na medida em que toda esta linha se baseia no pressuposto da unida-de do mundo e de sua derivação de um princípio único, o de todo ser, cujo correlato é o pressuposto da unidade de pensamento e de seu poder de apreender, em todas as manifestações do ser, a sua essência. Contra este essencialismo e monismo, construído sobre a tríade Deus, mundo e homem, na qual é reconhecida a supremacia de um e os outros são deduzidos deste fundamento, Rosenzweig ar-gumenta que o pensamento pode descrever e analisar cada um dos três elementos, que se lhe apresentam na experiência, mas nada pode acrescentar à sua essência. Isto significa que os três elementos são dados ao pensamento e que ele, ao reconhecê-los como tais, reconhece o caráter independente da existência, à qual não pode gerar, mas apenas entender como existente à parte, que o precede e de que é um dos elementos (GUINSBURG, 1070, p. 507-508).

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Ao longo da história, o ser humano alimentou o desejo de explicar todas as coisas, trazer tudo a luz do conceito. Não se aceita a realida-de como ela se apresenta. Pretende-se dizer o que a coisa é; a essência. Pretende-se encontrar uma essência capaz de abarcar o Todo. A riqueza do real, com sua multiplicidade, é reduzida a um conceito. “A filosofia nasce da vontade de chegar à arché, e esta arché não pode estar na coisas mesmas – alvo dos enganos e ilusões dos sentidos – mas naquilo que a racionalidade é capaz de, em penetrando, desnudar para si mesma: a essência da realidade” (SOUZA, 2003, p. 66).

Para Rosenzweig, à pergunta sobre a essência existem apenas res-postas tautológicas. Deus só é divino; o homem, só humano; o mundo, só mundano e, por mais profundamente que se cave, em cada um sempre só se encontrará a mesma coisa. A filosofia se recusa a aceitar o mundo como mundo, Deus como Deus, o homem como homem. No seu esforço de reduzir a essência de uma coisa à essência de uma outra, a filosofia continua a elaborar todas as permutações possíveis. De um ponto de vis-ta geral, este esforço caracterizou as três épocas da filosofia europeia: a antiguidade cosmológica – tudo é explicado a partir do mundo; a Idade Média – Deus é a causa de tudo; e a nossa era moderna antropológica – tudo é explicado pela subjetividade do sujeito.

Desde o tempo de Tales, que considerava a água o princípio do ser, até Hegel, que via no Espírito a única realidade verdadeira, ninguém desafiou essa assunção, o que implica deduzir deste princípio todos os modos de ser. A filosofia mantém que essa concepção é evidente por si, que os três elementos que deparamos na experiência – Deus, o mundo e o homem – têm uma essên-cia, sendo um deles essencial e os outros dois vistos como suas manifestações. A filosofia apenas pergunta qual dos três é o ser essencial e quais são derivados dele. A filosofia antiga e muitas tendências do ulterior naturalismo derivam geralmente Deus e o homem do mundo; a teologia na Idade Média e o misticismo em geral derivam o homem e o mundo de Deus; e o moderno idea-lismo assenta Deus e o mundo na consciência – e, portanto, em última instância, no homem (GUTTMANN, 2003, p. 396-397).

A verdade é que estes três primeiros e últimos objetos de todo filo-sofar são como cebolas, e, descascando-as até o último fiapo, não se en-contrará nada além de camada sobre camada, e nunca algo inteiramente

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diferente. Só o pensar é que é encurralado dentro de um labirinto através do poder alienador da palavrinha “é”, que substitui uma coisa pela outra. Mas a experiência, não importa quão fundo consiga chegar, encontra-rá apenas o humano no homem, o mundano no mundo, e o divino em Deus. E encontrará o divino somente em Deus, o mundano somente no mundo e o humano somente no homem. A indagação quanto à essência das coisas nada pode produzir exceto respostas tautológicas. Escave cada vez mais fundo, e Deus continuará sendo apenas divino, o homem ape-nas humano e o mundo apenas mundano.

Se a filosofia tradicional pensa o universal abstrato, Rosenzweig quer resgatar o valor do singular, da experiência.

A individualidade pode apresentar uma forma plural; para o “eu” existe apenas o singular. O ego, na sua orgulhosa condição de “eu”, também determina seu destino, que é a solidão. As relações entre os homens sempre permanescem na esfera da existência do mundo, mas entre um eu e o outro não há ponte. Cada eu está só na medida em que é um ego (GUTTMANN, 2003, p. 407).

A filosofia da essência é marcada pela lógica da identidade ou a fi-losofia do Mesmo. O novo pensamento leva em conta a diferença, a plu-ralidade e a experiência singular de cada pessoa com a temporalidade do acontecimento. Valoriza-se o individual com suas experiências ante o geral abstrato. O ser humano é pensado na plenitude de seu ser. Ro-senzweig Valoriza as experiências do cotidiano, os acontecimentos do dia a dia; resgate-se o mundo da vida com todas as suas experiências e vivências.

Em lugar do pensar solitário, do pensamento sem tempo entra em cena o falar, o diálogo que leva a sério o tempo e o outro. A diferença en-tre o pensamento velho e o novo, entre pensamento lógico e gramatical, não consiste no exprimir-se em voz alta ou baixa, mas na necessidade do outro ou, o que é o mesmo, no levar a sério o tempo; aqui, pensar significa pensar para ninguém (e, se soar melhor para alguém, em vez de ninguém se pode colocar também todos, a famosa coletividade), quando falar significa, pelo contrário, falar a alguém, e esse alguém é sempre muito preciso e não tem apenas orelhas, como a coletividade, mas tam-bém uma boca. Saímos do isolamento do sujeito abstrato e entramos na correlação dialógica, no encontro em que a escuta é atenção à voz trans-

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cendente que interpela. Não sei de antemão, o que outra pessoa me dirá, porque nem mesmo eu sei o que eu próprio vou dizer. Nem mesmo sei se vou dizer alguma coisa. Talvez o outro diga as primeiras palavras, pois numa conversação real é o que geralmente acontece.

O pensar da essência ou o velho pensamento é intemporal e quer ser intemporal. O Novo Pensamento valoriza o tempo. Tudo o que fazemos pressupõe o tempo. Não há diálogo independente do tempo. O falar é algo ligado ao tempo. É o tempo que sustenta o diálogo. Sem tempo não é possível haver diálogo. A temporalidade sustenta a conversação; sem o tempo a conversação não existe. Segundo Rosenzweig, a diferença entre o velho e o novo pensamento não consiste em falar alto ou baixo, mas em necessitar do outro ou o que dá no mesmo, em levar a sério o tempo

Não se pode iniciar uma conversação pelo seu final, ou uma guerra com um tratado de paz ou a vida com a morte. Querendo ou não, ativa ou passivamente, deve-se esperar o tempo dado; não se pode saltar um só momento. A cada instante, o conhecimento está atado àquele exato instante e não pode tornar seu passado não-passado, ou seu futuro não--futuro. O falar está ligado ao tempo e é nutrido pelo tempo. Necessitar do tempo significa que não nos podemos antecipar, que precisamos es-perar por tudo, que aquilo que é nosso depende do que é do outro.

A diferença entre o pensamento velho e o novo, o lógico e o gra-matical, não reside no fato de que um é silente e o outro é audível, mas no fato de que o segundo necessita de outra pessoa e leva a sério o tempo, na verdade, estas duas coisas são idênticas. Na ve-lha filosofia, pensar significa pensar para ninguém mais e falar a ninguém mais (e aqui, se preferis, podeis substituir ninguém por todos ou pelo bem conhecido todo mundo). Mas falar significa falar a alguém e pensar para alguém. E este alguém é sempre bem definido, e tem não só ouvidos, como todo o mundo, mas tam-bém uma boca (GUINSBURG, 1970, p. 515).

A dignidade humana em Rosenzweig passa pela valorização das ex-periências singulares e pela valorização do tempo, pois a pessoa é tempo. Nossa existência se dá no tempo. Tudo o que fazemos pressupõe, necessi-ta do tempo. “É o tempo que permite a ética, e, sem tempo, não há ética” (SOUZA, 2004, p. 76). A temporalidade é dimensão constituinte da rea-lidade. As nossas experiências são possíveis a partir do tempo. “As coisas não acontecem “no” tempo; é o tempo que acontece, e esse acontecer

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significa o acontecer das coisas” (SOUZA, 2004, p. 78). A essência nada quer saber do tempo. Seu pensamento é atemporal ou é uma tempora-lidade marcada pela eternidade. O Novo Pensamento valoriza o tempo oportuno, o instante presente, pois não podemos fazer nada sem contar com o tempo. Nada acontece fora do tempo.

A racionalidade não se opõe ao tempo, mas é uma expressão dele. O tempo não é alguma derivação da racionalidade, seja enquanto medida do movimento, seja enquanto categoria a priori, seja em sua dimensão subjetiva ou objetiva – mas, sim, o tempo é o que sustém algo como a possibilidade de inteligibilidade do real – real que é nada menos e nada mais que o tempo que efetivamente decorre (SOUZA, 2004, p. 80).

Todo o esforço filosófico de Rosenzweig consiste em tentar dizer o tempo no seu momento rico da experiência de cada ser humano; pensar o tempo e seu instante presente que é o momento onde tudo se decide. O outro é expectativa de justiça; é tempo a espera de atitude ética, de reco-nhecimento de sua dignidade. Pensar a dignidade a partir da racionali-dade plural que no tempo oportuno busca a justiça para si e para o outro, é fazer de cada momento uma oportunidade para avançar na conquista de uma justiça mais justa. O tempo certo está aí. “No fundo, e antes de tudo, está a realidade da vida, vida que é tempo e que somente pode ser vivida no tempo. E viver no tempo significa exatamente: levar a sério o tempo do Outro, ou seja, amar” (SOUZA, 1999, p. 124).

O Novo Pensamento pretende despertar para a experiência do tem-po como dimensão constitutiva do nosso existir. O tempo e a experiên-cia da temporalidade constituem elementos inseparáveis da vida huma-na. Eles pertencem ao núcleo de nossa experiência vital.

Rosenzweig é o artífice maior de uma passagem: da lógica do Mes-mo à realidade do Outro – do estático, em si mesmo auto-referido e auto-formulado, ao humanamente temporalizado. Esta é a me-dula de sua obra: quando fala em entendimento sadio e doente, não tem em vista mais do que isso: da doença da solidão original do ser feito fórmula à saúde do ser que só “é” em relação com o Outro, ou seja, a saúde que relativiza definitivamente a ontologia e alarga a possibilidade real de um encontro real. Vida: este é o mundo cuja construção Rosenzweig propôs; que não seja, apesar de tudo, tarde demais para que se possa, finalmente, assumi-la em todas as suas conseqüências possíveis (SOUZA, 1999, p. 139).

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Referências bibliográficas

BACCARINI, Emílio. O novo pensamento como narração da experiência de Deus. In: PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (org.). Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998.

ROSENZWEIG, Franz. El nuevo pensamiento. Madrid: Visor, 1989.

GUINSBURG, J. O judeu e a modernidade: súmula do pensamento judeu. São Paulo: Perspectiva, 1970.

GUTTMANN, Julius. A filosofia do judaísmo: a história da filosofia judaica desde os tempos bíblicos até Franz Rosenzweig. São Paulo: Perspectiva, 2003.

SOUZA, Ricardo Timm de. Totalidade & desagregação: sobre as fronteiras do pensamento e sua alternativas. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.

______. Existência em decisão: uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig. São Paulo: Perspectiva, 1999.

______. Razões plurais: itinerários da racionalidade no século XX: Adorno, Bérgson, Derrida, Levinas, Rosenzweig. Porto Alegre: Edipucrs, 2004.