francisco mignone - 12 etudes manuscript.pdf
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FLVIO APRO
OS FUNDAMENTOS DA INTERPRETAO MUSICAL: APLICABILIDADE NOS 12 ESTUDOS PARA VIOLO
DE FRANCISCO MIGNONE.
So Paulo 2004
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ERRATA Folha Linha Onde se l Leia-se
6 10, 19 Barbosa-Lima Barbosa Lima
11 3 trabalharemos trabalhamos 11 9 Barbosa Lima (1944), ao qual Barbosa Lima, ao qual
13 8-9 comentrios sobre as verses: comparaes sobre os resultados
comentrios sobre os resultados
16 30 adequada adequadas
26 3 transferida transferido
36 4-5 musical com teorias de outras disciplinas, aplicando
musical, aplicando
37 2 (notas) verso foi preparada com verso com
38 16 contrrias contraditrias
66 27 havia haviam 70 20 resolvida resolvido
78 19 CL PH
79 9 Mib Mi beml 81 1 produode produo de
88 1-2 (nota) funo a mo direita funo da direita
101 22-23 em um lugar-comum: uma simples Dominante
em uma simples Dominante
105 3 (nota) violonista para que violonista que
115 30 Martins Fontes, SP: 1993 So Paulo: Martins Fontes, 1993
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780.1 APRO, Flvio. A654f Os fundamentos da interpretao musical: aplicabilidade nos 12 Estudos para violo de Francisco Mignone. / Flvio Apro.
So Paulo, 2004. 121p + anexos. Dissertao (Mestrado em Msica) Instituto de Artes Universidade Estadual Paulista UNESP, 2004. Orientador: Prof. Dr. Gicomo Bartoloni. 1. Esttica musical 2. Hermenutica 3. Interpretao musical 4. Violo 5. Francisco Mignone
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FLVIO APRO
OS FUNDAMENTOS DA INTERPRETAO MUSICAL: APLICABILIDADE NOS 12 ESTUDOS PARA VIOLO
DE FRANCISCO MIGNONE.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Msica do Instituto de Artes da UNESP, como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre em Msica
ORIENTADOR: Prof. Dr. Gicomo Bartoloni
So Paulo
2004
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FLVIO APRO
Os fundamentos da interpretao musical: aplicabilidade
nos 12 Estudos para violo de Francisco Mignone
Dissertao de Mestrado
Requisito parcial para concluso do curso de Mestrado
Instituto de Artes da UNESP
rea de concentrao: Msica
Linha de pesquisa: Epistemologia e prxis do processo criativo
Aprovado em: _____________________
Banca Examinadora:
_____________________________ Prof. Dr. Gicomo Bartoloni
_____________________________ Prof. Dr. Paulo Augusto Castagna
_____________________________ Prof Dr Sonia Albano de Lima
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PARA LIZ RAMOS APRO, PELO APOIO
CONSTANTE NOS MOMENTOS DIFCEIS.
AGRADECIMENTOS
Agradeo colaborao de Alberto Tsuyoshi Ikeda, Ana Paula Rmoli de Oliveira,
Antonio Carlos Barbosa Lima, Dorota Machado Kerr, Edelton Gloeden, Gicomo Bartoloni,
Maria Helena Nery Garcez, Paulo Augusto Castagna, Sandra Neves Abdo, Sonia Albano de Lima
e Tische Puntoni.
Esta pesquisa foi possvel graas ao auxlio da CAPES, atravs da concesso de bolsa de
demanda social.
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RESUMO
Esta dissertao aborda alguns fundamentos tericos da interpretao musical e sua
aplicao nos 12 Estudos para violo de Francisco Mignone. A estrutura geral desta pesquisa est
desenvolvida em dois segmentos, sendo que o primeiro focaliza os fundamentos tericos sobre
interpretao musical, suas principais tendncias, a teoria da formatividade de Luigi Pareyson e
alguns conceitos complementares de Umberto Eco a propsito dos limites da interpretao.
No segundo, apresentamos uma reviso bibliogrfica do que j foi pesquisado sobre a
literatura violonstica do compositor, um panorama geral de sua produo violonstica na dcada
de 1970, alguns comentrios sobre a gnese dos 12 Estudos, aspectos documentais dos Estudos de
Mignone e consideraes gerais sobre as diferentes verses dessa obra.
Apresentamos tambm um modelo de aplicao dos conceitos tericos discutidos no
primeiro captulo, abordando as contribuies tcnicas desses Estudos, incluindo solues para
trechos problemticos e diretrizes interpretativas para essa obra.
As consideraes finais procuram responder aos questionamentos formulados na
introduo, porm de forma no conclusiva, por consideramos que o modelo de interpretao
apresentado apenas uma possibilidade entre muitas. Os anexos incluem uma Edio Aberta dos
12 Estudos de Mignone (fac-smile e urtext), entrevistas na ntegra, e um Cd contendo nossa
interpretao dos Estudos, como resultado prtico de uma pesquisa orientada pela sua conjugao
com a reflexo terica.
Palavras-chave: Esttica musical, hermenutica, interpretao musical, violo, Francisco
Mignone.
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ABSTRACT
This dissertation deals with the musical interpretation and discusses the practical
application of theoretical principles in Francisco Mignone's Twelve Studies for Guitar. The body
of this paper is structured in two sections. The first focuses on the theoretical foundations of the
musical interpretation, its main trends, Luigi Pareyson's "theory of formativity", as well as some
complementary concepts by Umberto Eco on the limits of interpretation.
The second section contains a bibliographic revision about researches on the Mignone's
guitar output, an overview of his compositions for guitar on the seventies, and commentaries
about the genesis of his Twelve Studies, philological aspects and general considerations about the
different versions of this work.
There is also a practical application of the concepts discussed in the first chapter,
presenting the didactic contributions of Mignone's Studies, including some solutions to difficult
passages and some interpretative suggestions for this work.
The final considerations are an attempt to answer the questions presented in the
introduction, but not in a conclusive way, since we consider that the model of interpretation
presented here is only one amongst many others. The annexes contain a Double Edition of
Mignone's Twelve Studies (the original version and our Urtext), complete interviews, and a CD
with our interpretation of this work, as a practical result of a research which was guided by the
theoretical reflection.
Keywords: Aesthetics, hermeneutics, musical interpretation, classical guitar, Francisco Mignone.
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LISTA DE ABREVIATURAS
No decorrer do texto, faremos constantes aluses s diferentes verses dos 12 Estudos de
Francisco Mignone. A fim de facilitar a localizao da verso, propomos as seguintes siglas:
BN: Verso Biblioteca Nacional. Trata-se do nico manuscrito de Francisco Mignone
localizado durante a pesquisa. possvel ainda a existncia de uma cpia feita pelo
compositor para a publicao nos Estados Unidos, mas no computaremos essa possibilidade.
H uma Edio Fac-smile da verso BN na seo Anexos.
CL: Verso Columbia. Verso publicada em 1973, contendo dedilhados e modificaes de
Antonio Carlos Barbosa Lima. Edio Prtica (hoje esgotada) editada pela Columbia Music
Company, em dois volumes.
FA: Verso Flvio Apro. Nossa pesquisa resultou numa verso bastante prxima original
(BN), contendo apenas as alteraes necessrias para a performance. Encontra-se reproduzida
em Edio Aberta, na forma de transparncias sobrepostas verso fac-smile BN, na seo
Anexos.
FZ: Verso Fbio Zanon. Consideramos que a execuo pblica realizada pelo violonista
Fbio Zanon, documentada em vdeo e fita cassete, representa uma verso a mais, em vista de
diferentes solues violonsticas.
PH: Verso Philips. Essa segunda verso de Barbosa Lima nos foi gentilmente cedida pelo
violonista. Trata-se da partitura impressa CL, contendo diversas anotaes pessoais para a
gravao realizada em 1978 para o selo Philips.
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SUMRIO INTRODUO 09 1. INTERPRETAO MUSICAL: REPRODUO OU RECRIAO? 15
1.1. Tendncias da interpretao musical 16 Aspectos histricos 18 Fidelidade 27 Liberdade 33
1.2. A teoria da formatividade na interpretao musical 38 Definio 41 Busca 42 Leitura e execuo 43 Multiplicidade 45 Equilbrio entre fidelidade e liberdade 47 Tradio 50 Riscos 52
1.3. Os limites da interpretao 54 2. APLICAO DA CONCEITUAO TERICA NOS 12 ESTUDOS PARA VIOLO DE FRANCISCO MIGNONE 58
2.1. Os 12 Estudos Para Violo 59 Introduzindo o objeto de estudo 59 Reviso bibliogrfica 60 A produo violonstica do compositor na dcada de 70 64 Caractersticas gerais 70 Comentrios sobre as verses 72
2.2. Aspectos tcnicos 79 Harmnicos duplos e triplos 81 Utilizao dos cinco dedos da mo direita 85 Aberturas de mo esquerda 86 Notas repetidas na mesma corda 87 Ligados entre duas cordas 87 Arpejos apoiados 88 Glissandos reposicionadores 89 Pestanas irregulares 89 Efeitos timbrsticos/imitativos 91
2.3. Propostas para Interpretao 92 3. CONSIDERAES FINAIS 112 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 115
Livros 115 Teses e dissertaes 117 Jornal 117 Artigos/entrevistas/correspondncias 117 Internet e correspondncias eletrnicas 118 Partituras 119 Encarte de long play/compact disc 119
BIBLIOGRAFIA BSICA 120 ANEXO A Edies Fac-smile e Aberta dos 12 Estudos para Violo de Francisco Mignone ANEXO B Texto-dedicatria de Francisco Mignone (1978) ANEXO C Entrevista com Antonio Carlos Barbosa Lima (10 fev. 2003) ANEXO D Correspondncia autgrafa de Monina Tvora (5 jul. 2003) ANEXO E Notas de programa de Fbio Zanon (mai. 2003) ANEXO F Depoimento de Lauro Gomes (8 out. 2003) ANEXO G Entrevista com Srgio Abreu (3 fev. 2004) ANEXO H CD com os 12 Estudos para Violo de Francisco Mignone, interpretados por Flvio Apro
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A verdadeira interpretao ocorre
quando se age com postura, tranqilidade e equilbrio.
Provrbio Chins
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INTRODUO
Grande parte dos instrumentistas que se deparam com a perspectiva de enfrentar uma ps-
graduao costumam lamentar o fato de ter de abandonar seus instrumentos, em vista das
exigncias que uma pesquisa demanda no mbito terico. Tal fato no ocorreu conosco, pois
exploramos esse territrio sem prejuzo recproco. Pelo contrrio, procuramos demonstrar as
vantagens colhidas no contrabalanceamento entre teoria e prtica. Por isso, esse trabalho percorre
uma via dupla ao se dedicar ao problema da interpretao musical e sua aplicao aos 12 Estudos
Para Violo, escritos em 1970 por Francisco Mignone.
Francisco Paulo Mignone (1897-1986) foi uma das figuras mais versteis do cenrio
musical brasileiro do sculo XX pela sua intensa atuao como compositor, regente, pianista e
professor. Embora sua produo para piano seja mais difundida, sua obra para violo no menos
importante. Seu primeiro interesse pelo violo, em 1953, resultou na composio de quatro
pequenas peas.1 Aps um longo perodo de entressafra violonstica, Mignone, aos 73 anos de
idade, retorna ao instrumento e compe o ciclo de Estudos, publicado em 1973 pela editora norte-
americana Columbia Music Company. Apesar de um certo impacto inicial, esse repertrio no
tem sido to prestigiado pelos violonistas brasileiros. A escolha deste repertrio como tema de
pesquisa e o tipo de abordagem escolhido decorreram de algumas experincias marcantes durante
nossa trajetria no aprendizado de msica. Passaremos a um breve relato de cada uma.
Nosso primeiro contato com os Estudos de Francisco Mignone remonta a 1986,
constituindo, portanto, uma certa experincia acumulada. Logo no incio de nossos estudos
musicais, tivemos uma natural preferncia por peas em forma de preldio e estudo, e em
particular, uma sintonia mais forte com a msica de compositores brasileiros. O primeiro autor
que nos despertou interesse profundo foi Heitor Villa-Lobos,2 e rapidamente comeamos a
estudar sua obra. Assim, quando tomamos contato com a obra para violo de Mignone, j 1 Modinha, Repinicando, Minueto Fantasia e Choro. 2 Por razes prticas, informaremos nesta dissertao apenas as datas de nascimento e morte de compositores menos conhecidos.
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possuamos uma certa expectativa em relao ao que j conhecamos do repertrio villalobiano. A
impresso inicial dos Estudos de Mignone foi um misto de decepo e xtase, j que no
correspondiam ao ideal de virtuosismo que tanto nos atraram em Villa-Lobos, mas continham
uma carga emocional mais profunda. Decidimos logo procurar as partituras e aprend-los sem
orientao de nossos professores, pois sabamos que estavam acima de nossas capacidades
tcnicas (para no dizer interpretativas).
Anos mais tarde, em 1993, empreendemos viagem ao Uruguai, a fim de ter aulas com a
lendria violonista argentina Monina Tvora (1921)3. Durante esse curso, travamos contato com
um tipo especial de abordagem interpretativa muito diferente daquela que conhecamos at ento.
A Sr. Tvora pertence tradicional escola romntica, na qual o intrprete reinvindica seu
privilgio de recriador das obras (dentro da linha interpretativa da liberdade, que ser analisada
no primeiro captulo). Como essa metodologia era diametralmente oposta orientao que
estvamos tendo naquela poca, o conflito foi inevitvel, prolongando-se durante vrios anos e,
de certa forma, ainda no completamente resolvido at o incio desta pesquisa. Portanto, nossa
prpria trajetria pessoal delineou o eixo condutor desta dissertao, sendo que o ponto de partida
consistiu em refletir sobre essas experincias como meio de penetrao ao universo interpretativo
dos Estudos de Mignone. Para tanto, formulamos duas perguntas-problema:
A execuo da msica erudita brasileira, em seu aspecto interpretativo, deve ser mais gingada
e criativa, conforme os preceitos de execuo da msica popular4?
Qual seria a abordagem interpretativa ideal para os 12 Estudos de Mignone? Uma execuo
que privilegie mais a fidelidade ao texto ou a liberdade do executante?
3 Nome artstico adotado pela violonista Adolfina Raitzin de Tvora. A Prof Tvora foi discpula do pianista Ricardo Vies e dos violonistas Domingos Prat e Andrs Segovia. Como professora, raramente aceitava alunos e foi responsvel pela formao de excelentes msicos, no apenas violonistas (Srgio e Eduardo Abreu; Srgio e Odair Assad), mas tambm de pianistas (Nelson Grner, Claudio Evelson), violinistas etc. Seu trabalho como musicista e didata ainda no reconhecido, merecendo pesquisa e documentao. 4 A msica popular, atualmente, possui diversas ramificaes, como folclrica, industrializada, regional, urbana, de consumo, instrumental. Referimo -nos, neste caso, mais prtica da msica popular instrumental.
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Todos esses questionamentos giravam em torno de nossa prpria trajetria musical e
propuseram um mtodo de investigao: a Hermenutica.5 Por razes metodolgicas, no
trabalhamos com hipteses a priori. Decidimos, assim, estabelecer enquanto objetivo dessa
pesquisa a proposta de uma nova experincia de abordagem interpretativa aos Estudos de
Mignone por meio da discusso e sntese das principais tendncias histrico-filosficas da
interpretao. Alm disso, procuramos explorar, a partir da hermenutica, a riqueza de
significados interpretativos dessa obra, bem como a soluo de problemas tcnicos especficos da
escrita de Mignone, o qual sabemos que no era violonista. Partimos do importante trabalho de
incentivo, publicao e gravao do violonista Antonio Carlos Barbosa Lima,6 ao qual
pretendemos somar uma experincia baseada numa dimenso mais profunda, tentando indicar
para quais direes essa obra aponta hoje, trs dcadas aps sua composio.
A fim de podermos solucionar de maneira satisfatria as perguntas formuladas, baseamo-
nos na teoria esttica de Luigi Pareyson e nos conceitos de lingstica de Umberto Eco, uma vez
que os livros sobre interpretao em msica no nos satisfizeram por limitarem-se a trazer
frmulas acabadas, enquanto que os autores mencionados trataram a interpretao em geral sob
bases mais epistemolgicas. Desse modo, foi possvel atender nossa necessidade de realizar
uma abordagem interdisciplinar e menos pontual, evitando assim, restringir o estudo de um tema
to rico em possibilidades. Mesmo assim, foi necessrio ignorar as articulaes scio-culturais
mais amplas, que certamente resultariam numa pesquisa especfica.
Alm do ineditismo do objeto de estudo, a relevncia social desta pesquisa sobre o
problema da interpretao nos Estudos de Mignone reside no fato de que o mtodo adotado se
revelou, ao longo da pesquisa, capaz de propor a constante renovao de interpretaes, ao
5 Mtodo de pesquisa fenomenolgica que tem como diretriz a interpretao de um fenmeno, promovendo uma leitura ampla do objeto investigado. Tal mtodo est sendo bastante valorizado na Semiologia e nas Artes, e tem sido uma preocupao recorrente dos msicos nos ltimos anos, tendo em vista o carter cada vez mais elitista que as artes vm assumindo (de forma acentuada na msica), ocasionando o afastamento do pblico. 6 Violonista brasileiro de consolidada carreira internacional, nascido em 1944. Hoje radicado em Porto Rico.
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contrrio da tendncia atual que consiste na massificao dos processos interpretativos e na
conseqente imitao de modelos consagrados (especialmente via CD).
O modelo aqui proposto no est isento de riscos, pois vai de encontro tendncia atual
dos trabalhos na rea de performance musical, que tem se dedicado quase que exclusivamente
anlise de obras. Preferimos, de maneira geral, discutir conceitos norteadores da interpretao, ao
invs de aspectos puramente tcnicos relacionados a problemas de anlise e execuo.
A dissertao est desenvolvida em dois captulos principais. O primeiro apresenta uma
discusso histrica e filosfica sobre as diferentes tendncias da interpretao musical, iniciando
com um panorama geral que se divide em duas correntes: conservadora (que defende a
interpretao fiel inteno do autor) e relativista (que prope uma abordagem mais livre e
baseada na emoo do executante), bem como contribuies de G.W.F. Hegel, E. Fubini e J.
Kerman.
Em seguida, apresentaremos os aspectos histricos da interpretao, baseados em textos
de S. Gandelman (do sculo IX ao XVIII), F. Dorian (sculos XVIII e XIX), H. Schonberg
(transio do sculo XIX ao XX), T.W. Adorno (primeira metade do sculo XX), E. Said
(segunda metade do sculo XX) e E. Fisk (atualidade). Depois, contraporemos algumas opinies
de autores da faco conservadora (H. Schenker, I. Stravinsky, S. Magnani, e H. Grosso) s do
grupo relativista (R. Donnington, R.C. Leite, G. Brelet, A. Cortot, H.G. Gadamer, M. Laboissiere
e J. Grier). O cerne da discusso trar os conceitos da teoria da formatividade de L. Pareyson, que
pretende revelar que os aspectos de fidelidade e liberdade interpretativa no so opostos, mas
complementares, dependendo exclusivamente da infinidade de possibilidades que um texto
contm; e da interpretao textual de U. Eco, que indica os limites de uma leitura baseada em
critrios de economia e pertinncia.
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O segundo captulo inicia-se com uma reviso bibliogrfica das contribuies de autores
que escreveram sobre a produo violonstica de Mignone, incluindo trabalhos de A.C. Barbosa
Lima, N. Dudeque, F.T. Barbeitas, J.P. Borges, A. Soares, E. Gloeden, F. Zanon e F. Apro. Em
seguida, efetuamos uma tentativa de reconstruo histrica da experincia do compositor com o
violo, desde a juventude, passando por suas amizades com diversos violonistas, um perodo de
rejeio pelo instrumento entre as dcadas de 50 e 70, o interesse pelo instrumento a partir da
colaborao de Barbosa Lima, o processo de composio dos 12 Estudos, a divulgao de sua
obra para violo. Esse bloco finaliza com comentrios sobre os resultados de diferentes verses
dos Estudos de Mignone, incluindo apreciaes sobre essas alteraes.
A segunda parte desse captulo focaliza os aspectos didticos dos Estudos em suas
contribuies tcnicas: harmnicos duplos e triplos, utilizao dos cinco dedos da mo direita,
aberturas de mo esquerda, notas repetidas na mesma corda, ligados em duas cordas, arpejos
apoiados, glissandos reposicionadores, pestanas irregulares, efeitos timbrsticos/imitativos. A
pesquisa encerra-se com uma anlise de carter hermenutico de cada um dos Estudos, indicando
traos nacionalistas, influncias de obras de outros compositores, bem como explanaes a
respeito dos subttulos. As consideraes finais da dissertao procuram revelar como as teorias
discutidas no primeiro captulo influram no resultado prtico em sua aplicao aos Estudos de
Mignone (e vice-versa).
Aps relacionar as referncias bibliogrficas, incluiremos alguns itens anexos:
Partitura de duas verses sobrepostas dos 12 Estudos de Mignone, dispostos no sistema
Edio Aberta (verso original em edio fac-similar e nossa verso, que foi inspirada na
idia do Urtext, contendo apenas as interpolaes e correes necessrias e sem dedilhados),
Comentrios de Mignone includos na contracapa do Lp Barbosa Lima interpreta 12 Estudos
Francisco Mignone,
Entrevista com Antonio Carlos Barbosa-Lima,
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Notas de programa da estria da integral dos Estudos de Mignone, por Fbio Zanon,
Reproduo de uma correspondncia de Monina Tvora sobre Mignone,
Depoimento de Lauro Gomes sobre Mignone,
Entrevista com Srgio Abreu sobre os 12 Estudos de Mignone,
Nossa verso dos 12 Estudos de Mignone registrada em CD.
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CAPTULO 1
INTERPRETAO MUSICAL: REPRODUO OU RECRIAO?
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Captulo 1: Interpretao musical: reproduo ou recriao?
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1.1. TENDNCIAS DA INTERPRETAO MUSICAL
Sempre houve, ao longo da Histria da Msica, uma dicotomia no que se refere prtica
interpretativa, que discute os direitos e os deveres do executante enquanto ponte entre
compositor e o pblico. Seu papel o de mero reprodutor ou de ativo recriador? Dependendo da
concepo de cada autor, encontramos os mais diversos termos para essa classificao:
Conservadores X Progressistas Clssicos X Romnticos Idealismo X Relativismo Objetivos X Subjetivos
Uniformidade X Diversidade Tcnico X Psicolgico
Mecanicismo X Humanismo Razo X Emoo
Passivos X Arbitrarismo Apolneos X Dionisacos
Yin X Yang
O filsofo alemo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, em suas famosas lies de Esttica
proferidas em Heidelberg e Berlim entre 1820 e 1829 (HEGEL, 1993), parece ter sido um dos
primeiros a detectar que os modos de execuo musical se orientavam em duas direes, qual
seja, na primeira, o intrprete se identificava apenas com a expresso j contida na obra e, na
segunda, ele se encarregava no apenas dessa expresso, mas tambm de si prprio.
Para explicar o primeiro tipo de interpretao, Hegel estabelece uma comparao com a
declamao da poesia pica, a qual, para ele, possui maior valor na medida em que se evidencie
menos a expressividade declamatria; e, para o segundo tipo, exemplifica com a pera italiana, na
qual so bem-vindas as intervenes do cantor em forma de ornamentos e improvisos vocais
(HEGEL, 1993, p.527).
Sua analogia com a arte musical estabelecida, portanto, com base no tipo de obra a ser
executada. Quanto mais objetiva a composio musical, mais passiva dever ser a reproduo, e,
inversamente, quando a obra revelar a liberdade e o arbtrio do compositor, tornam-se adequadas
a ousadia, a virtuosidade e a genialidade do intrprete, que,
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Captulo 1: Interpretao musical: reproduo ou recriao?
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... em vez de se limitar simples execuo, pode atingir um ponto em que [...] comea a compor, a preencher lacunas, a aprofundar o que lhe parece demasiado superficial [...], enfim, a dar a impresso de um esforo independente e de um trabalho criador (HEGEL, 1993, p.527).
Enrico Fubini (1971), em seu tratado de Esttica, dedica um captulo exclusivo a essa
questo. Para esse autor,
O problema era to antigo como a prpria msica, ou quase to antigo; no entanto, somente com o Romantismo ficou patente e de forma ntida, quando a concepo das artes como criao absoluta por um lado e a apario do virtuosismo por outro colocaram em cena o contraste latente entre a personalidade do criador e a do executante, entre as pretenses de carter absoluto no plano criativo do compositor e as pretenses do intrprete, figura esta, a partir de ento, indispensvel e dotada cada vez mais de relevo social (FUBINI, 1971, p.379, traduo nossa).7
Percebemos, portanto, que o intrprete stricto sensu (aquele que apenas executante e no
compositor) comea a se destacar como fenmeno a partir do incio do Romantismo.
interessante destacar o relato de Fubini acerca das acaloradas discusses ocorridas
durante a dcada de 1930 nas colunas da revista Rassegna Musicale. As vises antagnicas dos
colunistas a respeito da misso do msico intrprete sintetizaram bem a problemtica a que nos
propomos nesta pesquisa. Para os mais conservadores, a execuo existe apenas por razes
prticas e para garantir a comunicao de uma obra e conserv-la no tempo, sendo que sua
posio identifica o executante com a figura do tcnico, obediente e submisso executor de ordens
(FUBINI, 1971, p.380). Para os progressistas, a interpretao se identifica com a atividade do
esprito e possui uma misso criativa, na qual o texto constitui, ao mesmo tempo, o ponto de
partida e o limite que se ope atividade do esprito, que se desenvolve ao superar e resolver o
obstculo em questo (FUBINI, 1971, p.381).
Joseph Kerman (1987) expe as relaes entre a pesquisa musicolgica e as prticas
interpretativas, ressaltando o fato de que o advento das chamadas performances histricas8 foi
7 Na traduo espanhola: El problema era tan viejo como la propia msica, o casi tan viejo; sin embargo, solamente con el Romanticismo se hizo patente de forma evidente, cuando la concepcin del arte como creacin absoluta por un lado y la aparicin del virtuosismo por otro pusieron sobre el tapete el contraste latente entre la personalidad del creador y la del ejecutante, entre las pretensiones de carcter absoluto en el plano creativo del compositor y las pretensiones del intrprete, figura esta, a partir de entonces, indispensable y dotada cada vez de mayor relieve social. 8 Kerman defende a idia de que toda performance histrica, no apenas a de msica antigas, incluindo tambm as prticas dos sculos XVIII, XIX, XX e contemporneas.
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Captulo 1: Interpretao musical: reproduo ou recriao?
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impulsionado pelas pesquisas da dcada de 50 (especialmente na Inglaterra e Holanda). Os
especialistas do ps-guerra, por estarem imersos no positivismo, determinaram regras precisas de
execuo, ajustando a prtica musical metodologia praticada na poca. Os textos crticos
publicados nos Estados Unidos impulsionaram essa influncia mtua, e a prtica de msica antiga
absorveu o conceito positivista de autenticidade, o que resultou na reconstruo de sistemas de
afinaes, instrumentos, ornamentao etc. (KERMAN, 1987, p.261-268).
Mas as preocupaes referentes interpretao musical viriam ainda a conhecer outras
perspectivas tericas na dcada seguinte, como a da anlise aplicada execuo. Esta tendncia
angariou certa respeitabilidade devido dificuldade dos grandes artistas em expressar, tanto
verbalmente quanto na escrita, as diversas nuances de suas performances.9 Edward Cone (1968)
foi um dos mais influentes tericos dessa linha, que privilegiou a sistematizao de uma prtica
interpretativa baseada na anlise, com o propsito de guiar o intrprete na tarefa de salientar os
aspectos estruturais em sua execuo (como, por exemplo, a dosagem dos pesos nas cadncias
harmnicas). O problema acarretado por essa tendncia foi o de que no apenas a execuo, mas
tambm o processo analtico, passaram a ser cada vez mais padronizados, resultando no conceito
de unicidade na interpretao. Isso gerou conseqncias, pois a performance histrica comeou a
ficar normativa e dogmtica, em oposio idia de interpretao cada vez mais individual e
desacreditada.
ASPECTOS HISTRICOS
Procuramos, nesse estudo sobre interpretao musical, apresentar um panorama mais
amplo do que o normalmente observado, com o fito de percebermos como as diferentes
tendncias interpretativas se justificam histrica e filosoficamente. Nosso escopo foi meramente 9 Os livros escritos por autoridades como Alfred Cortot (1986), Joseph Hofmann (1976) ou Arthur Schnabel (1988) no so muito esclarecedores sobre suas prprias concepes artsticas, restando o recurso mais eficaz de ouvir suas prprias gravaes para compreend-las (KERMAN, 1987, p.276).
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Captulo 1: Interpretao musical: reproduo ou recriao?
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uma tentativa de resolvermos um conflito pessoal em relao interpretao musical, o que nos
levou a recorrer a outros nveis de conhecimento (Histria e Filosofia) para solucionar questes
que no estavam sendo satisfatoriamente respondidas em nossa rea. importante salientar que
nosso ponto de vista o musical, e que nos servimos dessas disciplinas externas a fim de buscar
subsdios para anlise, sem pretenses de sermos filsofos ou historiadores.
Iniciamos o levantamento histrico com Salomea Gandelman (1995), que expressa o
problema da dicotomia entre uniformidade e diversidade na execuo musical sob o aspecto
histrico-social. Partindo da pergunta-problema quais os fatores propiciadores de uniformidade e
diversidade?, a pesquisadora destaca que, ao contrrio do que muitos pensam, a interpretao
musical no um processo apenas intuitivo, mas tambm de intensa reflexo e decises de
complexidade filosfica. Em sua forma mais geral, o problema da interpretao tem sido uma
preocupao cada vez mais recorrente da Esttica nas ltimas dcadas (GANDELMAN, 1995).
Na segunda parte de seu texto, Gandelman delineia alguns momentos-chave com o
propsito de esclarecer como se desdobraram as diferentes tendncias interpretativas ao longo da
Histria. Para ela, a discusso do papel do intrprete como mero executante ou parceiro criador
relativamente recente na Histria da Msica. A base prpria dessa oscilao decorre da gradativa
evoluo da escrita musical ocidental:
No sculo IX houve a fixao das alturas em pautas;
Nos sculos XII e XIII foi introduzida a mensurao das duraes;
No sculo XVI, apareceram as primeiras indicaes de intensidade, andamento, articulao e
fraseado;
No Barroco, Claudio Monteverdi (1567-1643) contribuiu delimitando a instrumentao em
suas obras;
Entre os sculos XVII e XVIII, a Escola de Mannheim inaugurou o conceito de gradaes
dinmicas.
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Segundo a autora, algumas das qualidades essenciais que caracterizam uma interpretao,
como o timbre, a cor e o carter, so quase inexistentes na escrita musical. Diante desse quadro, o
intrprete possui poucas opes no que se refere execuo da msica anterior a 1600, que s
pode ser compensada apoiando-se em pesquisas na tradio oral e nas convenes de poca.
J na abordagem da msica Barroca, especialmente na realizao dos baixos cifrados,
permitida maior liberdade ao intrprete, mas por outro lado, indicaes como as de Franois
Couperin (1668-1733), que formulou um quadro detalhado das ornamentaes em seu tratado de
execuo ao teclado, demonstra uma preocupao maior em controlar a performance, pelo menos
no estilo francs. A partir de 1750, j no mais possvel falar em tradies perdidas, visto que
as informaes nas partituras de Haydn, Mozart e Beethoven j so suficientemente detalhadas.
A brilhante inveno de Thomas Edison, o fongrafo, permitiu que, a partir do ano de
1877 em diante, houvesse registros mais acurados sobre as prticas e estilos da performance
musical: desde a voz de Brahms at os maneirismos dos instrumentistas. Toda tentativa de se
comprovar a prtica musical anterior a essa inveno constitui um exerccio puramente hipottico,
sem possibilidade de verificao emprica.
Gandelman finaliza seu artigo demonstrando que um dos erros mais comuns em
interpretao (muitas vezes inevitvel) a atitude de olhar uma obra do passado atravs de lentes
modernas, pois os receptores costumam observar os perodos histricos segundo sua percepo
cultural construda, projetando nela sua viso de mundo (GANDELMAN, 1995). A sada,
segundo essa pesquisadora, consiste em definir, dentro de um amplo campo de possibilidades
(musicolgico, esttico, tcnico), o equilbrio entre o compositor, a obra e sua prpria viso:
O prprio de cada interpretao enunciar um ponto de vista particular, que atualiza momentaneamente uma virtualidade da obra, sem, no entanto, excluir outras atualizaes possveis [...]. A interpretao revela, pois, a personalidade do intrprete, ao mesmo tempo que visa desvelar a verdade da obra. Nesse sentido, toda verdadeira interpretao se define tanto pela parte de criao pessoal e de recursos expressivos que nela insere o intrprete, quanto pela fidelidade literal ao texto interpretado - observao de parmetros precisos da notao, de traos estilsticos e de suas convenes. , contudo, de um equilbrio mais ou menos bem sucedido entre essas duas direes que depende o valor e a fora de impacto de uma interpretao (GANDELMAN, 1995, itlico nosso).
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Um dos autores que se debruaram sobre a questo histrica da interpretao musical foi
Frederick Dorian. Sua proposta de focalizar a histria da msica do ponto de vista dos intrpretes
foi, metodologicamente falando, original para a poca (dcada de 30). O autor inicia sua pesquisa
delimitando a questo interpretativa em duas categorias: Subjetividade aquela que reflete a
individualidade do intrprete, e Objetividade atitude de lealdade incondicional ao roteiro
musical (DORIAN, 1942, p.26). Afirma que nunca houve soluo definitiva a essa dicotomia,
uma vez que as diferentes argumentaes de cada faco so contnuas na Histria da Msica,
somando-se ao fato de que cada ser humano demonstra um impulso natural diferenciado em
relao mesma partitura, pois cada intrprete possui uma diferente formao, educao, cultura
e experincias humanas e artsticas (DORIAN, 1942, p.27). O autor recomenda alguns caminhos
para guiar o intrprete em sua tarefa:
Entender a linguagem;
Conhecer as pocas, os estilos e as tradies;
Apreender a essncia por trs dos smbolos escritos (DORIAN, 1942, p.31).
Esse autor recomenda que as partituras mais modernas, que trazem detalhes suficientes
para garantir a autenticidade interpretativa, demandam uma realizao mais objetiva, enquanto os
textos musicais mais antigos, com menos detalhes, esto inevitavelmente destinados a uma
realizao mais subjetiva (DORIAN, 1942, p.28).
A razo que explica essa diferena, segundo Dorian, que, no passado, os compositores
normalmente eram seus prprios intrpretes e suas partituras continham apenas as informaes
estritamente necessrias realizao, ao passo que os autores modernos deixaram de confiar em
seus intrpretes, destacando a complexidade acarretada no embate entre os egos dos cultuados
intrpretes e as diferentes convices de cada compositor (DORIAN, 1942, p.29).
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O pesquisador destaca que o relevo social dos intrpretes vem sendo exarcebado nos
ltimos quatrocentos anos, chegando ao ponto de no ser mais Wagner quem receba os elogios
por Tristo e Isolda, mas sim os cantores (DORIAN, 1942, p.23).
Ao analisar o padro interpretativo do Romantismo, Dorian destaca que a nfase subjetiva
no se restringe apenas ao sculo XIX, considerando-a um fenmeno atemporal:
O estilo performtico da ars nova, a valorizao das palavras do poeta no Renascimento, assim como as fantasias do Barroco, devem ser consideradas romnticas. Mesmo os clssicos tocavam romanticamente em determinadas condies artsticas (DORIAN, 1942, p.217, traduo nossa).10
O retorno objetividade clssica durante o Romantismo foi conseqncia da escrita
musical cada vez mais precisa de compositores como Verdi, que restringiu a improvisao ao
escrever todas as coloraturas, e Wagner, cujo conceito de arte total eliminou o espao para a
fantasia do intrprete (DORIAN, 1942, p.220).
Esse autor destaca ainda a coexistncia de duas linhas interpretativas durante o
Romantismo alemo: o grupo de Leizpig, defensor dos ideais clssicos, e o grupo de Weimar, de
estilo altamente romntico e expressivo. As crticas eram recprocas, sendo que o grupo
conservador (cujo ideal era o de preservar a tradio clssica baseada na perfeita simetria,
proporo e elegncia de execuo) desprezava o romanticismo, manifesto tanto na msica
programtica11 quanto nos arroubos expressivos dos virtuoses (que muitas vezes tambm se
prestavam a oferecer descries programticas ao pblico em seus recitais).
Talvez o nico msico que conseguiu conciliar esses extremos tenha sido Frdric
Chopin, cujos relatos de sua execuo demonstram o equilbrio entre as duas tendncias. Para ele,
Liszt carregava demais na expresso, enquanto J. B. Cramer (1771-1858) nem sequer a atingia,
pois tocava apenas corretamente. Possivelmente a obra do mestre polons seja tambm um dos
casos mais contundentes de equvocos interpretativos, tendo em vista a preferncia do 10 No original: The performing style of the ars nova, the stressing of the poets words in the Renaissance, as well as the fantasies of the Baroque, must be considered romantic. Even the Classicists played quite romantically under certain artistic conditions. 11 Dorian afirma, inclusive, que o famoso ciclo de Canes sem Palavras de Felix Mendelssohn foi uma reao artstica de um representante conservador aos excessos do grupo contrrio (DORIAN, 1942, p.232).
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compositor em tocar em pianos pequenos e para pouco pblico, valorizando mais a qualidade e a
delicadeza do som do que a exibio virtuosstica. Estamos acostumados a ouvir a obra de Chopin
executada de maneira grandiosa e brilhante, ao passo que ele prprio sempre manifestou desejo
contrrio, ao qual Dorian estabelece a seguinte analogia:
A ternura e a melanclica gentileza do toque de Chopin, ao serem transferidas de uma sala pequena para um grande teatro, sofrem um drstico ajuste de efeitos amplificados como uma pequena figura projetada em um telo (DORIAN, 1942, p.236, traduo nossa).12
Outro recurso interpretativo geralmente mal compreendido na execuo de Chopin o uso
do tempo rubato, que para ele tinha uma funo mais estrutural (no sentido de suavizar
modulaes fortes) do que sentimental. O uso licencioso desse recurso acabou vulgarizando sua
msica.
Ao comentar o papel do intrprete no sculo XX, Dorian critica as conseqncias das
facilidades tecnolgicas (desde o uso do microfone at a popularizao do repertrio pelo disco)
que acarretaram interpretaes enlatadas, inibindo a variedade de execues e fixando tradies
que se tornam referncias interpretativas padronizadas (DORIAN, 1942, p.336 et seq.).
A virada histrica definitiva da interpretao no sculo XX foi bem traada pelo crtico
norte-americano Harold Schonberg, autor de um livro que relata a histria dos pianistas famosos
desde a poca da dinastia Bach at, pelo menos, a primeira metade do sculo XX.13 Schonberg
ilustra as caractersticas interpretativas dos mestres do piano a partir de fontes como testemunhos,
crticas e gravaes histricas (excetuando-se os registros em rolo de piano, que para ele no eram
confiveis), proporcionando descries vivas e altamente detalhistas dos traos interpretativos de
cada intrprete. Destacamos que, na viso desse crtico, a interpretao moderna (aquela que
preza pela fidelidade) inicia-se com Ferrucio Busoni, considerado o primeiro dos grandes
12 No original: On the way from the private home to the large hall, Chopins tenderness the malancholic gentleness of his touch, are bound to be drastically adjusted to augmented effects like a small picture projected on a larger screen. 13 Em edies posteriores, o autor estendeu essa cronologia at o presente.
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pianistas modernos de uma nova gerao, seguido por Sergei Rachmaninoff e Josef Hofmann
(SCHONBERG, 1969, p.355).
Para Schonberg, Hofmann foi quem mais combateu os excessos sentimentalistas do
Romantismo, com o fito de renovar a execuo adotando novos parmetros interpretativos
baseados na atitude mais objetiva possvel, na qual o intrprete j possui trabalho suficiente ao
tocar as notas conforme escritas, sem adicionar nada (SCHONBERG, 1969, p.356). No entanto,
essa objetividade no poderia ficar totalmente imune ao peso da tradio, e o prprio Hofmann
demonstrou conscincia e equilbrio sobre esse aspecto:
Geralmente ouvimos dizer que o estudo demasiado objetivo de uma pea compromete o individualismo de sua leitura. [...] Se dez executantes estudarem a mesma obra com o mesmo grau de exatido e objetividade, resultar que cada um executar completamente diferente dos outros nove, embora cada um reivindique sua leitura como a nica correta. Isso porque cada um expressar o que, de acordo com seus conhecimentos, absorveu mentalmente e em seu temperamento. Da razo instintiva que constitui a diferena entre dez concepes, cada um a ter formado inconscientemente durante o processo, e talvez tambm depois dele. Pois justamente essa razo formada inconscientemente que constitui a legtima individualidade e a qual, por si prpria, ir permitir a fuso verdadeira entre o pensamento do compositor e o do intrprete (HOFMANN, 1976, p.53-54, traduo nossa ).14
Schonberg atesta que, de fato, o equilbrio de Hofmann no reside apenas na concepo,
mas tambm em sua execuo, que demonstra uma perfeita combinao entre pureza clssica e
elegncia romntica:
Um forte elemento clssico era representado na pureza de sua abordagem pianstica. E suas interpretaes, romnticas, mas no exageradas, possuam a medida do classicismo. (SCHONBERG, 1969, p.364).
14 No original: It is sometimes said that the too objective study of a piece may impair the individuality of its rendition. Have no fear of that! If ten players stdy the same piece with the same high degree of exactness and objectivity depend on it: each one will still play it quite differently from the nine others, though each one may think his rendition the only correct one. For each one will express what, according to his lights, he has mentally and temperamentally absorbed. Of the distinctive feature which constitutes the difference in the ten conceptions each one will have been unconscious while it formed itself, and perhaps also afterward. But it is just this unconsciously formed feature which constitutes legitimate individuality and which alone will admit of a real fusion of the composers and interpreters thought.
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De qualquer modo, o desenvolvimento da concepo interpretativa no sculo XX iria fazer
a balana pender mais para o lado objetivo, em decorrncia de mudanas sociais, tais como a
Revoluo Industrial, a inveno do fongrafo e o aperfeioamento dos instrumentos musicais,
dentre outras.
Theodor Wiesengrund Adorno, filsofo da escola de Frankfurt, publicou em 1938 um
ensaio filosfico sobre a questo do fetichismo em msica15 e a conseqente regresso da
audio. Em sua anlise, destaca o mito do intrprete heri como uma das conseqncias do
processo de banalizao da msica e da indstria cultural.16 Naquela poca, o ideal esttico
vigente era o da interpretao excessivamente objetiva e racional, a qual o filsofo apelidou como
barbrie da perfeio, classificando-a como um novo fetiche (a crtica aqui est endereada ao
maestro Arturo Toscanini):
... imponente e brilhante, que funciona sem falha e sem lacunas [...] A interpretao perfeita e sem defeito, caracterstica do novo estilo, conserva a obra s expensas do preo da sua coisificao definitiva. Apresenta-a como algo j pronto e acabado desde as primeiras notas; a execuo soa exatamente como se fosse sua prpria gravao no disco (ADORNO, 1999, p.86).
possvel crer que esse modismo interpretativo incomodava Adorno, que chegou a
afirmar que a fixao conservadora da interpretao de uma obra leva sua destruio, pois sua
unidade se realiza na espontaneidade e sacrificada pela fixao (ADORNO, 1999, p.86-87).
O fenmeno da interpretao no sculo XX classificado pelo crtico literrio palestino
Edward Said como uma situao extrema, a qual se assemelha a um evento atltico por despertar
a ateno e a admirao de seus espectadores (SAID, 1991, p.28).
Esse autor afirma que houve um divrcio entre compositores e intrpretes, que se
incumbiram de especialidades extremas, alm do distanciamento com o pblico, cada vez mais
segmentado e passivo. Para ele, os concertos passaram a representar um ritual social alienante.
15 Para Adorno, o fetichismo se constitui a partir de uma distoro da realidade na msica, em que h a alienao da obra em favor de elementos menos importantes, tais como a voz dos cantores, as roupas usadas por um determinado intrprete etc. 16 Outro termo cunhado por Adorno que significa, em poucas palavras, a explorao, com fins comerciais e econmicos, de bens considerados culturais (tanto os genunos quanto os criados para essa finalidade).
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O problema do alto virtuosismo, que comea a se manifestar no sculo XIX com as figuras
de N. Paganini e F. Liszt, gerou tambm um relativo rebaixamento da prioridade do texto
musical, transferido agora para o performer. As transcries de peras ou peas orquestrais para
instrumentos domsticos, antes destinadas ao deleite dos amadores, passaram a ser de
competncia exclusiva dos virtuoses, devido ao aumento do grau de dificuldade na elaborao
dessas partituras.
No sculo XX, esse problema se transfere para a indstria fonogrfica, pois a tecnologia
atual tem sido utilizada no intuito de mascarar o lado humano (e, portanto, falvel) da execuo do
virtuose moderno, ao qual se permite at correes de gravaes ao vivo. Alm do fato da
tecnologia atuar como relevante elemento transformador na interpretao, Said aponta outras
razes sociolgicas que distanciaram o performer do compositor e do pblico:
A msica moderna passou a ser trabalhada a partir de uma linguagem altamente racional (o
dodecafonismo, por exemplo), aumentando assim o apelo comercial da performance para
manter a produo cultural em andamento (isso explica tambm porque o repertrio dos
intrpretes do sculo XX se concentrou mais na msica do passado);
A msica erudita se isolou em seu prprio territrio, deixando de se comunicar com os
crculos intelectuais, problema acentuado pelas especialidades acadmicas que tambm no se
relacionam entre si: musicologia, teoria e anlise, etnomusicologia e composio;
A no-discursividade da msica acabou transformando-a em uma atividade hermtica,
reservada apenas para os iniciados, e o virtuose passa a ser visto como uma espcie de
mdium de alguma mensagem divina.17
O incio do sculo XXI est sendo marcado por uma mudana gradual de mentalidade dos
intrpretes musicais pelo menos o que indica nossa percepo enquanto intrpretes.
17 Esse distanciamento da sociedade tem sido revertido nos ltimos anos atravs de uma nova tendncia: os cursos de formao de platia, que demonstram claramente a situao limite que a atividade musical gerou com seu auto-enclausuramento.
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Observemos o ideal esttico de Eliot Fisk, famoso violonista contemporneo que relatou, em
entrevista, que:
H dois tipos de artistas: um deles pinta a Mona Lisa em sua casa, vai ao palco e mostra a tela acabada para o pblico. Algumas vezes at gostaria de ser este tipo de artista, mas infelizmente estou condenado ao temperamento daquele outro tipo de artista: o que vai ao palco com uma tela em branco e a pinta na frente do pblico. Para mim, este tipo de corda-bamba o que caracteriza uma apresentao ao vivo. [...] Se ainda possuo algo a oferecer como intrprete, certamente est baseado nesta maneira espontnea e quase improvisada de tocar (FISK, 1999, p.44).
Tal declarao parece constituir um indcio que reflete a atual tendncia de se revalorizar o
aspecto criativo e uma maior humanizao da performance, em resposta ao prejuzo acarretado
pelos valores do sculo XX, baseados num modelo padronizado de pretensa fidelidade
incondicional.
FIDELIDADE
Apesar de esse ter sido o ideal esttico-interpretativo vigente em quase todo o decorrer do
sculo XX, poucos tericos empenharam-se na tarefa de defender tal conservadorismo. Ao longo
dos textos que sero apresentados neste segmento, ser possvel perceber algumas contradies
internas nos discursos dos autores que defendem esse posicionamento.
Um dos tericos mais radicais nessa direo foi o alemo Heinrich Schenker, que
elaborava, pouco antes de seu falecimento, um livro dedicado ao problema da interpretao
musical (SCHENKER, 2000). Os fragmentos de seus escritos foram organizados e editados, o que
nos permite uma viso, ainda que parcial, do unilateralismo de sua posio em relao misso
do intrprete, como podemos observar no contundente pargrafo inicial:
Basicamente, uma composio no necessita de uma execuo para existir. Assim como um som imaginado parece real em nossa mente, a leitura de uma partitura suficiente para comprovar a existncia de uma composio. A realizao mecnica de uma obra de arte pode, desse modo, ser considerada suprflua (SCHENKER, 2000, p.3, traduo nossa18).
18 Na traduo inglesa: Basically, a composition does not require a performance in order to exist. Just as an imagined sound appears real in the maind, the reading of a score is sufficient to prove the existence of the composition. The mechanical realization of the work of art can thus be considered superfluous.
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O radicalismo da busca idealizada pela fidelidade obra e a conseqente servilidade do
intrprete fizeram com que esse autor determinasse que qualquer elemento estranho (qualidade do
instrumento, humor do executante, condies acsticas, problemas tcnicos etc.) representa uma
ameaa integridade de uma composio. Para assegur-la, Schenker ressalta a necessidade dos
executantes serem tambm compositores, pois somente estes ltimos conseguem captar a
trajetria percorrida pelo autor durante a fase de criao. Ao afirmar a certeza de que a
abordagem de Chopin era melhor que a de Carl Tausig (SCHENKER, 2003, p.4), Schenker
reivindica aos compositores o prestgio normalmente concedido aos intrpretes19 e lamenta o fato
da performance, naquela poca, ter tomado um rumo que no correspondia verdadeira
reproduo, afinal, o interesse do pblico voltava-se cada vez menos obra e mais figura do
virtuose. O que o autor entende como verdadeira reproduo a expresso da vontade do
compositor pela leitura estrita da partitura, na qual o executante deve sacrificar-se para aderir
precisamente ao texto impresso (SCHENKER, 2003, p.5).
Esse terico considera um equvoco ler nas entrelinhas de um texto musical, refutando o
consenso geral acerca da insuficincia da escrita musical: mesmo que o compositor no possa
escrever a orientao completa da execuo de uma pea, ele indica o efeito geral desejado. Por
isso, apenas as partituras diplomaticamente acuradas oferecem a possibilidade de tal fidelidade.20
Em suma, Schenker representa o pice da contra-interpretao, defendendo a idia geral
de que as obras musicais possuem vida prpria e que a performance deve priorizar apenas o que
est dentro dela, sem qualquer adio de elementos exteriores (como a personalidade do
intrprete), em claro combate aos excessos romnticos. Nesse discurso altamente terico,
possvel imaginar que a msica dispensa a colaborao de um intrprete.
19 sabido que uma deduo baseada em premissas falsas pode levar a resultados aparentemente verdadeiros. Porm, neste caso, no podemos estabelecer qualquer comparao com intrpretes que no deixaram registros sonoros (sem mencionar a questionvel validade da comparao fora do mbito pessoal). 20 Ressaltamos, porm, que a edio de Schenker da Sonata Op.106 de Beethoven, que contm uma conhecida dubiedade em relao a um determinado trecho (antes da re-exposio), foi baseada em uma escolha pessoal do editor, o que no necessariamente reflete a verdadeira inteno do compositor.
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No Brasil, a partir de 1920, os modernistas brasileiros propagavam suas reflexes
didticas sobre arte em geral em peridicos especializados (como Klaxon e Ariel). Nessas
publicaes, Mrio de Andrade e Antonio de S Pereira escreveram diversos artigos sobre
famosos intrpretes brasileiros daquela poca, como Souza Lima, Guiomar Novaes e Magdalena
Tagliaferro.
Mrio de Andrade defendia o conceito de que a interpretao mais atual (para os
parmetros modernistas daquela poca) era aquela discreta, contida, evitando os lances histricos
proporcionados pelo o mito do intrprete como deidade romntica21 (ANDRADE apud
WISNIK, 1983, p.109). No entanto, parecia tambm indicar que existe uma dosagem correta de
acordo com cada repertrio (mais rigorosa para o Classicismo e Modernismo, mais emotiva para
o Barroco e Romantismo),22 conforme se depreende da leitura de suas crticas. Exemplificaremos
tal conjectura citando uma delas:
Era um fremir orgistico, um baralhamento dionisaco espantoso. Como compreender Chopin assim? No era Chopin. Mas era Magdalena Tagliaferro num dos seus entusiasmos festivos delirantes que tanto participam do prazer como da dor. Incrvel! (ANDRADE apud WISNIK, 1983, p.113-114).
O pesquisador contemporneo Jos Miguel Wisnik (que levantou as informaes que
estamos utilizando sobre os modernistas) atribuiu um carter contraditrio s crticas de Mrio,
afirmando que este se deixou levar pelo poder mgico da interpretao, em contradio com seus
postulados formalistas enunciados em outras partes (WISNIK, 1983, p.112). Wisnik coloca a
questo dos opostos interpretativos como um problema de maior ou menor grau de desfigurao
da obra por parte do intrprete, quando o ideal seria atingir a menor taxa de defasagem entre
cdigo e mensagem na relao autor-obra-intrprete-auditor (WISNIK, 1983, p.108).
O compositor Igor Stravinsky tambm discutiu a questo da interpretao musical. Seu
discurso sensato e constitui o que poderamos classificar como fidelidade moderada. Ele
defende a tese de que o intrprete um tradutor, cujo requisito principal uma 21 O fenmeno da deidade romntica originou-se como resultado de uma confluncia de aspectos sociais do sculo XIX, como a valorizao do gnio, a consolidao da tcnica instrumental, a tradio da msica escrita etc. 22 Praticamente a mesma soluo apresentada por Hegel.
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tcnica impecvel e perfeita, somada conscincia da lei que lhe imposta pela obra que est
executando (STRAVINSKY, 1996, p.115).
O compositor russo ressalta tambm o problema da limitao da notao musical, e que a
tarefa do intrprete23 transmitir a msica, sabendo encontrar os elementos ocultos (ler nas
entrelinhas) que escapam a uma notao mais precisa por mais escrupulosa que ela seja. Sua
concepo de execuo fiel implica na estreita realizao de um desejo explcito, que no deve
conter nada alm do que fora ordenado pelo autor, condenando, assim, o exibicionismo de certos
solistas (STRAVINSKY, 1996, p.112).24
Para ele, a tradio romntica legou diversos vcios, como os subttulos, que representam
um convite s tentativas de deformao literria. E tambm o mito do maestro, cujo poder e
competncia so inquestionveis, a ponto de alguns afirmarem que esto regendo sua 5 ou sua
7 em vez de atribu-las a seu compositor.25
Existe, para Stravinsky, uma responsabilidade tica envolvida nesse processo, j que a
traduo (leia-se transposio sonora) de uma obra no significa recomposio. Mincias
interpretativas (como a diferenciao entre dinmicas como piano, pianssimo, pianissssimo) so
tambm tidas, por ele, como nuances irrelevantes, que s vezes prejudicam a preciso rtmica na
execuo, recomendando a abordagem mais direta, objetiva, sempre em conformidade com a
vontade do compositor.
O livro de Esttica do maestro talo-brasileiro Srgio Magnani (1996) inclui um captulo
exclusivo sobre interpretao musical. Embora seus conceitos tericos tenham estreita conexo
com a Esttica de Benedetto Croce (cf. CROCE, 1997) e com o lado mais impessoal da execuo
23 Vale ressaltar que Stravinsky estabelece uma diferena entre executante e intrprete: Todo intrprete [...] um executante. O inverso no verdadeiro (STRAVINSKY, 1996, p.113). Dessa diferena, h equvocos situados entre a obra e o ouvinte, que pode ser impedido de ouvir uma transmisso fiel. Para ele, o intrprete aquele que consegue encontrar, em sua performance, a liberdade no rigor. 24 Stravinsky afirma que a expresso do intrprete uma questo de etiqueta, chamando a ateno para os excessos de movimentos corporais que no correspondem ao jogo dos sons. 25 Consideramos que tais afirmaes pretendem dar a idia de um estgio final e mais evoludo de desenvolvimento da interpretao de uma obra (que se revelaria pobre, portanto). Se assim fosse, no faria nenhum sentido uma carreira de intrprete (infelizmente, muitos pensam dessa maneira).
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musical, importante destacarmos os pontos principais de sua tese. Sua viso etimolgica do
termo interpretar26 est relacionada variante interpetras, que significa entre as pedras,
denotando:
"o ato de descobrir e comunicar os significados que podem estar ocultos por detrs de uma srie de significantes fundamentais, assim como o adivinho reconhece, nas configuraes das pedrinhas, das borras de caf ou das cartas do baralho, os sinais do destino marcando os eventos futuros" (MAGNANI, 1996, p.61).
Os problemas, segundo Magnani, comeam na discusso do papel que o intrprete deve
exercer como mediador entre a criao e fruio. Como delimitar as fronteiras de sua atividade?
Qual o alcance de sua leitura? Ele deve ler nas entrelinhas? Para responder a essas questes, o
autor traa um breve percurso histrico da evoluo da escrita musical, desde os neumas do canto
gregoriano at as indicaes literrias que acompanham partituras mais recentes (com doura,
sentimento etc.), constatando a insuficincia da escrita para expressar determinados elementos
intuitivos, tais como as gradaes de articulao, dinmica, aggica e rubato:
"Eis aqui as entrelinhas em que o intrprete deve ler, para que se lhe torne possvel a comunicao da mensagem esttica, dentro dos limites de uma aproximao ideal verdade hipottica da obra" (MAGNANI, 1996, p.64, itlico nosso).
No podemos deixar de ressaltar que, at este ponto do texto, Magnani parece defender a
interpretao mais livre, pois ainda aponta os problemas inerentes ao compositor-intrprete, que
para ele:
Nem sempre um bom executante, ao contrrio das dedues de Schenker, acima
comentadas;
Possui dificuldade em manter o distanciamento esttico, supervalorizando o aspecto geral em
detrimento dos detalhes;
Passa a ser intrprete, pelo fato de que a obra assume vida prpria aps sua elaborao,
deixando de ser sua criao para se tornar uma obra de seu repertrio (MAGNANI, 1996,
p.64-65).
26 O Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa traz a etimologia interpretatio onis, que, em sentido musical, refere-se ao aspecto pessoal na execuo musical (HOUAISS, 2001, p.1636).
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A virada no discurso ocorre quando o autor enumera os requisitos para o bom intrprete:
cultura (um bom preparo filolgico e conhecimento estilstico), sensibilidade (a tarefa do
intrprete em moldar sua personalidade do autor) e tradio (que no pode ser ignorada e nem
acatada cegamente, pois ela tanto pode revelar o esprito de uma obra quanto um peso morto). Em
relao questo da renncia da personalidade do executante, acrescenta que:
"O grande intrprete o que sabe desaparecer diante da obra [...] o intrprete no pode entregar-se de corpo e alma emoo; muito pelo contrrio, deve manter-se lcido na emoo, lembrando-se sempre de sua funo de veculo mdium na comunicao emotiva" (MAGNANI, 1996, p.66).
Para esse autor, portanto, qualquer acrscimo pessoal por parte do intrprete constitui
apenas um relativo mrito, em vista de que se trata sempre de um elemento subsidirio ao texto
musical.
Um caso interessante de defesa da inteno do compositor por parte do intrprete fica por
conta da dissertao de mestrado de Hideraldo Luiz Grosso (1997), que pesquisou os Preldios
para piano do compositor brasileiro Almeida Prado, que tambm supervisionou esse trabalho.
Grosso discute a interpretao musical, deixando claro desde o incio que a misso do performer
a de simples comunicador da inteno do compositor da obra, em atitude submissa e alheia a sua
prpria personalidade:
De fato, quando interpretamos seja um texto musical ou mesmo um texto literrio, procuramos conhecer quais as intenses (sic) expressivas do compositor ou escritor, que idias sua obra pretende comunicar. (GROSSO, 1997, p.23).
No caso especfico dessa pesquisa, pressupe-se que a inteno do autor pode
efetivamente ser analisada e discutida em vista de que o compositor encontra-se vivo e foi
coadjuvante desse processo, o que no possvel no caso de compositores falecidos, o que de
certo modo poderia at mesmo invalidar sua conceituao terica.
De qualquer modo, Grosso apresenta-nos o sentido semitico do ato tradutrio que media
o signo e a realizao acstica, efetivado apenas pelo intrprete, que reproduz com maior ou
menor preciso as idias originais do compositor (GROSSO, 1997, p.24). Em seguida, discute a
relao texto e intrprete, ressaltando a importncia da fidelidade ao texto como nica alternativa
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para uma efetiva aproximao com o sentido atribudo pelo criador. E mesmo que o autor tenha
pertencido a uma poca e cultura remotas, a misso do executante a de resgatar os aspectos da
obra que foram afetados pela contemporaneidade (GROSSO, 1997, p.25).
Grosso procura tambm delinear uma evoluo histrica em que o ponto de
desenvolvimento mais avanado sempre o atual, pois, para ele, o perfil do intrprete profissional
moderno privilegia o texto original como veculo suficiente elaborao de uma interpretao,
desde que suas contribuies pessoais resguardem a obra e no a desfigure. (GROSSO, 1997,
p.32). No que se refere participao do intrprete, h uma certa condescendncia no conceito
desenvolvido por esse pesquisador, desde que ela, no entanto, no comprometa o sentido
original da obra.
Podemos depreender, a partir da leitura dos textos de todos esses autores, que a
personalidade do intrprete constitui um problema a ser eliminado ou, pelo menos, restringido.
Conforme verificaremos no prximo segmento, os autores da faco contrria justificaro, de
forma igualmente consistente, que o papel do intrprete fundamental na atividade musical,
constituindo um choque de argumentos dialticos.
LIBERDADE
O verbete Interpretation do dicionrio musical Groves assinado pelo musiclogo Robert
Donnington, que define interpretao enquanto:
O elemento necessrio na msica devido diferena entre notao (que preserva o registro da msica) e execuo (a qual transforma a prpria experincia musical numa existncia renovada) (DONNINGTON, 1980, p.276, traduo nossa). 27
O autor parece defender a liberdade do intrprete, conforme depreendemos da seguinte
colocao:
27 No original: That element in music made necessary by the difference between notation (which preserves a record of the music) and performance (which brings the musical experience itself into renewed existence).
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Devido ao fato de que a atividade artstica inclui uma expresso do artista atravs de sua prpria personalidade, a necessidade de interpretao envolve uma fuso de pessoas em uma nica experincia musical. O compositor imprime sua marca em sua msica; mas o intrprete no um bom msico se no possuir algo de seu contribuindo para trazer a mera notao para a prtica ativa, e isso ele pode fazer com tal empatia a ponto de ampliar a inspirao do compositor em vez de neg-la (DONNINGTON, 1980, p.276, traduo nossa).28
Esse autor recomenda ao intrprete uma combinao entre intuio apoiada por uma boa
base tcnica e conhecimento suficiente do estilo da msica executada, bem como os detalhes
inerentes prtica de sua poca.
Para o fsico e msico Rogrio Cezar de Cerqueira Leite, a disputa de espao entre
compositor e intrprete um padro histrico recorrente, responsvel no apenas pela diversidade
na execuo, mas tambm pela prpria evoluo da linguagem musical.29 Apesar do fato da
improvisao em msica ser bem mais justificvel do que em outras artes, h sempre um grupo de
conservadores dispostos a podar qualquer tentativa de criao expressiva:
Hoje a crtica internacional, sempre reacionria em nome de uma falsa autenticidade, condena o intrprete e exalta o executante, ou seja, aquele que no se envolve e nada agrega de si prprio obra que apresenta ao pblico. A msica deve ser tocada como est escrita, dizem, embora no ignorem que, por mais que se aperfeioe a notao musical, havendo intrpretes, haver improvisao e, conseqentemente, renovao, inveno (CERQUEIRA LEITE, 2003, p.14).
O livro Linterprtation cratrice (1951), em dois volumes, da musicloga francesa Gisle
Brelet tido como uma das obras de referncia em termos de fundamentao terica para
interpretao musical. Baseando-se na fenomenologia da percepo de Maurice Merleau-Ponty,
Brelet apresenta um minucioso estudo, no qual apresenta conceitos que induzem a interpretaes
fortes e marcantes, em vista de sua plena convico filosfica de que o virtuose o nico msico
verdadeiro.
28 No original: Since artistic activity includes na expression by the artist of his own personality, the necessity for interpretation involves a blend of persons in a single musical experience. The composer sets his stamp on his music; but the interpreter is no good musician if he has notsomething of his own to contribute in bringing mere notation to active performance, and this he may do with such empathy that he amplifies and does not negate the composers inspiration. 29 O autor ilustra diversas transformaes de estrutura musical ao longo da histria, provenientes da fixao da escrita pelos compositores e inovaes decorrentes das improvisaes dos intrpretes: do canto gregoriano ao organum (devido aos melismas adicionais dos cantores), da escrita a duas vozes polifonia livre (graas s improvisaes em movimentos contrrios), e as notaes de tempo, ritmo e dinmicas que pretendiam disciplinar os intrpretes no Barroco, os quais introduziram novos recursos, como a ornamentao e as cadenzas dos concertos.
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Para Brelet, a msica uma forma de experincia temporal e existe apenas no momento de
sua execuo. O compositor apenas oferece possibilidades, confiando ao intrprete a misso de
atualizar sua msica de diversas maneiras. Apesar dessa realizao poder ser efetuada
internamente e em silncio, apenas o virtuose que consegue extrair o significado mais completo
e abrangente possvel de cada detalhe da partitura. Segundo a pesquisadora, os intrpretes no
devem se esforar para recriar o efeito original de uma obra, ou respeitar as intenes do
compositor, em vista da diferena entre fidelidade histrica e esttica.
O pianista francs Alfred Cortot pode ser considerado um exemplo prtico da teoria de
Brelet. Suas aulas pblicas e execues em disco constituem bons registros da tradio romntica.
Para esse artista, a questo mais importante para o intrprete a busca do sentimento inerente a
cada obra, como se ele fosse mensageiro das emoes do compositor, que j conta com essa
evocao (CORTOT, 1986, p.16).
Essa busca de sentimentos deve ser realizada at mesmo nas obras clssicas, chamadas de
msica pura pelos tericos contrrios a essa viso e que reivindicam uma execuo rigorosa.
Vale ressaltar a recomendao de Cortot em relao tcnica, que sempre deve estar a servio da
interpretao:
"O nico meio [...] de aperfeioar a tcnica instrumental submet-la estreitamente preocupao da interpretao potica. Assim, a tcnica se diversifica, tornando-se flexvel e confere execuo esses matizes variados" (CORTOT, 1986, p.17).
O pianista condena a atitude contrria, que ele chama de arte do enfeite e qual declara
guerra, afirmando que a alma fica ausente na perfeio dos floreados (CORTOT, 1986, p.17).
No se deve, todavia, concluir apressadamente que tais recomendaes de Cortot orientem-se
exclusivamente pela pura intuio, ao contrrio: o mestre francs exigia de seus alunos uma
pesquisa sistemtica, para se estabelecer um plano-modelo da obra executada, incluindo diversos
itens que vo desde nome, sobrenome, local e datas de nascimento e morte do autor, at a anlise
harmnica, influncias, analogias e filiaes estilsticas do compositor. Cortot, no entanto, adverte
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sobre a seduo que uma anlise pode exercer sobre o estudante, argumentando que uma fria
dissecao da obra no leva a lugar algum, sendo necessrio estabelecer um vnculo entre o
sentimento da forma, o trabalho analtico e a emoo (CORTOT, 1986, p.20).30
A pesquisadora brasileira Marlia Laboissire procurou subsidiar a rea musical ao aplicar
conceitos interdisciplinares na interpretao musical. Os textos dessa autora (LABOISSIRE,
1998; 2000) oferecem uma idia do papel recriador que o intrprete musical deve assumir,
partindo da noo da multiplicidade de sentidos do discurso musical e da conseqente cadeia de
relaes na conscincia do intrprete, nos diversos nveis de experincia: primeiridade,
secundidade e terceiridade (todos interconectados e no isolados).
Laboissire destaca tambm o aspecto da incompletude do cdigo musical, o que
necessariamente acarreta no metaforismo interpretativo, ao lado da relao entre contexto scio-
cultural e ideolgico e o posicionamento pessoal (sensibilidade do intrprete) enquanto elementos
j considerados pelo compositor durante a elaborao de sua obra. Para ela, a obra sempre traz um
espao que preenchido pelo imaginrio do intrprete (LABOISSIRE, 1998, p.312).
Assim, a soma dos inevitveis fatores de desvio, levantados pela pesquisadora, aponta
para um universo ilimitado de diferentes percepes, compreenses, transformaes,
organizaes. Ou seja, uma leitura que sempre se dirige alm do texto, portadora da marca
pessoal do intrprete e sempre aberta (LABOISSIRE, 1998, p.310).
Suas concluses evidenciam-se em seu texto mais recente (2002), em que a autora procura
responder questo referente busca do intrprete pela fidelidade ou recriao na execuo. Para
ela, a interpretao atividade essencialmente recriadora, na medida em que no h possibilidade
de se recuperar a origem (ou a essncia) de uma obra:
A partir do reconhecimento de que h pelo menos um outro autor a habitar o texto musical no processo interpretativo, acaba-se por desmistificar o tradicional esforo de fidelidade absoluta ao original (LABOISSIRE, 2002, p.109).
30 Levando-se em considerao que a anlise continua orientando diversos trabalhos acadmicos at hoje, no podemos deixar de ressaltar um certo carter proftico em Cortot (cujas idias aqui reproduzidas datam da primeira metade do sculo XX).
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Pelo fato de que o executante no escapa das condies deterministas de sua existncia,
tais como tempo, formao, cultura, ideologia, psicologia, momento histrico etc., sua mediao
est sempre sujeita a uma atividade mais criativa e produtora e menos conservadora e protetora.
James Grier (1996) destaca a relao estreita entre as atividades mediadoras do performer
e do editor, pois ambos materializam a realidade de uma obra, com a diferena de que o primeiro
a sonoriza e o segundo a fixa num texto impresso. O autor defende a idia de que o editor e o
intrprete sempre acabam intervindo de alguma forma sobre o texto original, cujo prprio
conceito falso, pois assim como no h duas interpretaes coincidentes, no existem duas
edies idnticas de uma mesma obra.
Quanto questo da inteno do autor, Grier demonstra a diferena entre Texto
(mensagem da obra) e Documento (suporte material do texto) e lana a questo: Onde se situa
uma obra musical? O autor sugere que ela o resultado da somatria de colaboraes entre a
inteno do autor e do intrprete, na qual a partitura funciona apenas como mediadora. A prpria
inteno do autor pode ser por vezes extremamente questionvel, quando, por exemplo, ela se
constitui num interesse comercial.31 Grier questiona se possvel separar razoavelmente as
intenes artsticas e comerciais (GRIER, 1996, p.18).
Em suma, os argumentos so suficientemente fortes em ambos os lados dessa questo,
constituindo um impasse no qual as teses intermedirias entre ambos os extremos no se
justificam filosoficamente com a rgida convico com que fizeram Schenker e Brelet. Conforme
constataremos em seguida, a maioria das justificativas e restries das faces filosficas
contrrias constituem falsos dilemas.
As concepes apresentadas podem representar uma mera questo de relatividade, pois h
um forte aspecto subjetivo em jogo, onde praticamente impossvel mensurar at que ponto o
31 Como, por exemplo, nas duas verses da obra orquestral Overture, Scherzo & Finale de R. Schumann, que realizou uma segunda verso com vistas a um maior pblico. Isso sem mencionar que, na Histria da Msica, h diversos casos de compositores que destruram algumas de suas obras (P.I. Tchaikowsky, Leo Brouwer), que foram posteriormente recuperadas e publicadas. Nestes casos, a inteno do autor era a de que jamais fossem ouvidas.
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intrprete expressa uma obra com fidelidade ou a si mesmo, conforme nos ensina a filosofia
oriental:
No Universo das Formas, tudo atua no nvel dos antagnicos, como homem/mulher, quente/frio, duro/macio etc. [...] Os conceitos YIN e YANG devem ser utilizados em uma forma dinmica, sendo apenas termos de um referencial para distino, controle e harmonizao do organismo do Mundo. Por exemplo: a gua YANG em relao ao gelo, mas YIN em relao ao vapor. (JYH-CHERNG, 1998, p.48).
O que pode constituir arbitrariedade para alguns pode ser considerado fidelidade por
outros. algo que depende de um referencial relativo e mvel.
1.2. A TEORIA DA FORMATIVIDADE NA INTERPRETAO MUSICAL
O filsofo italiano Luigi Pareyson32 prope um modelo geral de Esttica, cujos conceitos
aplicam-se a todas as artes, inclusive a msica. Este segmento discorrer sobre a filosofia
pareysoniana da interpretao, ressaltando sua especificidade em relao s teorias apresentadas
no item precedente. Tentaremos esclarecer os fundamentos filosficos de sua anlise, a fim de
apresentar uma soluo s concepes contraditrias de interpretao musical.
De acordo com o Dicionrio de Filosofia de Nicola Abbagno (1999, p.368-374), a histria
da filosofia da arte (Esttica) costuma ser dividida em trs domnios principais:
A relao entre Arte e Natureza,
A relao entre Arte e Homem,
As funes da arte.
32 Luigi Pareyson (1918-1991) nasceu no Valle dAosta, extremo norte da Itlia. Foi professor de Filosofia nas Universidades de Turim e Pavia. Membro de diversas instituies filosficas e comisses para as edies crticas das obras de Fichte e de Schelling. Fundador e editor de revistas e colees sobre arte, como a Rivista di Estetica (1956-84) e de importantes colees filosficas, como a Biblioteca di Filosofia (Mursia). Em seus escritos, preocupou-se com a discusso do existencialismo, interpretando-o como dissoluo do hegelianismo e prosseguindo-o na direo de um personalismo ontolgico. Interpretou, com renovadas perspectivas historiogrficas, o idealismo clssico alemo e elaborou uma Esttica completa conhecida como teoria da formatividade", publicando Estetica: teoria della formativit (1954), I problemi dell`estetica (1966), dentre outros. Props uma filosofia da interpretao em Verit e interpretazione (1971), aprofundando-a, posteriormente, no sentido de uma filosofia da liberdade. Seu pensamento tem exercido grande repercusso na Itlia, notadamente nos trabalhos de Umberto Eco e Gianni Vattimo (ex-discpulos do filsofo em Turim), e tem sido adotada academicamente em vrias reas de concentrao (especialmente na literatura e nas artes visuais). Apesar de seu nome ser pouco conhecido no Brasil, contamos com pesquisadores que se dedicam divulgao de sua obra e aplicao de sua teoria, como Joo Ricardo Moderno (UERJ), Maria Helena Nery Garcez (USP) e Sandra Abdo (UFMG).
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Dentro da primeira categoria, possvel distinguir diferentes concepes, que estabelecem
a relao arte-natureza enquanto dependentes, independentes ou condicionadas. Assim, temos a
arte como:
Imitao, ou seja, dependente da natureza ou da realidade social, defendida desde os clssicos
gregos at os marxistas (Adorno, Luckcs);
Criao, que prioriza a inventividade do homem como algo independente da natureza
(presente no idealismo de Schelling, Hegel, Croce);
Construo, em que a arte posicionada no encontro entre natureza e homem (conforme o
conceitos de arte em Kant, Schiller, Valry). dentro desta subdiviso que Abbagno situa o
sistema terico de Pareyson.
A teoria da formatividade est exposta em duas obras fundamentais desse autor: Esttica:
teoria da formatividade e Os problemas da Esttica. Na primeira, h uma sistematizao dessa
teoria, enquanto, na segunda, a teoria aplicada com a finalidade de se resolver questes
polmicas sobre Esttica. O neologismo formatividade, apesar da pouca elegncia, uma
tentativa de se diferenciar sua teoria do formalismo, evitando, dessa forma, evocar a
contraposio entre forma e contedo, alm de evidenciar o aspecto dinmico da obra de arte
enquanto resultante de um processo que combina, simulta