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Fundação Perseu Abramo - Partido dos Trabalhadores maio de 2013 Classes Sociais no Brasil de Hoje 01

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Documento de pesquisa desenvolvida pela Fundação Perseu Abramo, vinculada ao Partido dos Trabalhadores, sobre o desenvolvimento brasileiro

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  • Fundao Perseu Abramo - Partido dos Trabalhadores

    mai

    o de 2

    013

    Classes Sociais no Brasil de Hoje

    01

  • Esta uma publicao da Fundao Perseu Abramo.

    Diretoria Executiva

    Presidente

    Marcio Pochmann

    Vice-Presidenta

    Iole Ilada

    Diretoras

    Ariane Leito, Ftima Cleide

    Diretores

    Artur Henrique, Joaquim Soriano

    Conselho Curador:

    Hamilton Pereira (presidente), Andr Singer, Eliezer Pacheco, Eli Piet, Emiliano Jos, Fernando

    Ferro, Flvio Jorge Rodrigues, Gilney Viana, Gleber Naime, Helena Abramo, Joo Motta, Jos

    Celestino Loureno, Maria Aparecida Perez, Maria Celeste de Souza da Silva, Nalu Faria, Nilmrio

    Miranda, Paulo Vannuchi, Pedro Eugnio, Raimunda Monteiro, Regina Novaes, Ricardo de Azevedo,

    Selma Rocha, Severine Macedo, Valmir Assuno

    Expediente

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    Apresentao, Rui Falco

    Debatendo classes e luta de classes no Brasil, Wladimir Pomar

    O PT e as classes sociais no Brasil: reflexes aps dez anos de lulismo, Josu Medeiros

    O fenmeno poltico do lulismo e a construo de uma nova classe social, Jean Tible

    A poltica da cultura e a cultura com poltica notas sobre novos atores e o debate

    acerca do vazio da cultura, Paulo Ramos

    Sumrio

  • FPA Discute

    O FPA Discute a mais nova publicao no Portal da Fundao Perseu Abramo, que ser organizada por temas relevantes, selecionados pela diretoria da Fundao. Para cada tema sero convidados autores e autoras, cujos textos sero publicados em forma de caderno no Portal da FPA, com possibilidade de manuteno do debate, de forma interativa.

    Autores e autoras que desejem encaminhar uma nova contribuio, ou um comentrio aos textos j publicados, podero faz-lo por email para [email protected]. Os textos e contribuies devero conter uma breve apresentao do autor(a) e telefone para contato, e devem ter formato de ensaio curto, com limite mximo de 40 mil caracteres.

    Para este primeiro FPA Discute acolhemos a sugesto do presidente nacional do PT, Rui Falco, que solicitou ao companheiro Wladimir Pomar um texto sobre classes sociais no Brasil de hoje, texto este originalmente publicado pela Secretaria de Relaes Internacionais do PT, em setembro de 2012.

    FPA Discute: Classes Sociais no Brasil de Hoje publica os textos do Wladimir Pomar, de Jean Tible, publicado originalmente em espanhol na revista Nueva Sociedad, e ainda um artigo indito de Josu Medeiros.

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    Apresentao As profundas transformaes pelas quais o Brasil vem passando na ltima dcada, particularmente na estrutura social, tm motivado anlises, estudos e publicaes voltadas para tentar explicar o fenmeno da chamada mobilidade social (horizontal e vertical), ou, como mais usual, da ascenso social. As mudanas promovidas pelos governos Lula e Dilma, com a elevao do poder de compra dos salrios particularmente do salrio mnimo; com a gerao de empregos formais; com os programas sociais de distribuio de renda em resumo, todas as polticas pblicas de incluso colocaram na ordem do dia a necessidade de se conhecer melhor a configurao da sociedade brasileira em seu conjunto. A elevao do padro de consumo de milhes de brasileiros (as), o ingresso no ensino superior de outros tantos, melhor qualificao profissional, abertura de oportunidades, novas aspiraes, novos valores teriam provocado o surgimento de uma nova classe mdia. Voz corrente entre jornalistas, socilogos, economistas e marqueteiros de eleio, a existncia desta nova classe questionada pelos que entendem ser equivocado pautar a anlise exclusivamente pelo nvel de rendimento e consumo, ou, ainda, por um simples tratamento estatstico da realidade. Seja como for, desde o incio do governo Lula o PT deixou de examinar, com mais ateno, o desenho das classes sociais, sua estrutura e contradies algo que fizera anteriormente, embora de forma superficial, em alguns encontros e congressos. Urge, agora, quando o PT vai completar 33 anos, e o modo petista de governar, dez anos presidindo o pas, atualizar o nosso conhecimento da realidade brasileira, a includa a estrutura de classes at para deixar mais ntido quem o PT representa e a quem se ope, tendo em vista a consecuo do nosso projeto. Como uma primeira contribuio, entre as muitas que esperamos difundir ao longo de uma discusso certamente complexa e polmica, nas instncias partidrias, nas pesquisas da Fundao Perseu Abramo e em outros fruns, apresentamos aqui o ensaio do companheiro Wladimir Pomar. Ao debate! Rui Falco Presidente nacional do PT Dezembro de 2012

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    Debatendo classes e luta de classes no Brasil Wladimir Pomar Em termos internacionais, o debate sobre as classes sociais voltou tona desde que foi desencadeado, a partir de Seattle, um movimento internacional de forte vis anti-capitalista, com desdobramentos diversos, incluindo a realizao dos fruns sociais mundiais e regionais. No Brasil, porm, o que despertou os estudiosos para o assunto foi a emergncia de um amplo setor da populao, antes afastada do mercado, que conquistou certo poder de compra, ao ser beneficiada pela criao de novos empregos, pela elevao do salrio mnimo e pelos programas de transferncia de renda do governo Lula. Essa emergncia conquistou status de assunto acadmico e miditico, a partir de agosto de 2008, com a publicao, pelo Centro de Polticas Sociais do Instituto de Economia da Fundao Getlio Vargas, de um estudo intitulado A Nova Classe Mdia (vide www.fgv.br/cps/classemedia), onde se afirma que a renda da chamada classe C das pesquisas mercadolgicas subira 22,8% de abril de 2004 a abril de 2008, enquanto a renda das classes A e B se elevara 33,6%. O socilogo Rud Ricci afirmou que a emergncia dessa nova classe mdia era o maior fenmeno sociolgico do Brasil, concordando explicitamente com o fato do estudo da FGV partir de duas perspectivas na classificao das classes. Uma perspectiva consiste na anlise das atitudes e expectativas das pessoas, baseada em George Katona, psiclogo behaviorista, para quem o combustvel seria o anseio de subir na vida, e o lubrificante seria o ambiente de trabalho e de negcios. Neste sentido, reconhecia que o ndice de Felicidade Futura (IFF) seria alto no Brasil. A segunda perspectiva na definio das classes seria seu potencial de consumo. O critrio utilizado no Brasil para verificar tal potencial tem sido o acesso e nmero de bens durveis (TV, rdio, lava roupa, geladeira e freezer, vdeo cassete ou DVD), banheiros, empregada domstica e nvel de instruo do chefe de famlia. Nesse sentido, desde 2002, a probabilidade de ascender da classe C para a classe A nunca teria sido to alta, e a de cair para a classe E nunca teria sido to baixa. Para Ricci, a classe C seria a classe central, abaixo da A e B e acima da D e E. Essa classe C, no Brasil, teria subido de 42% para 52% da populao, estando compreendida na faixa de renda entre R$ 1.064 e R$ 4.561 reais. Embora reconhea que os critrios internacionais sobre o limite superior mensal de classe mdia variem entre US$ 6 mil a US$ 300, Ricci se deu por satisfeito porque o limite superior da classe C brasileira estaria dentro de tais limites. Desconsiderou, portanto, a diferena entre renda nominal e renda real, que depende do custo de vida de cada pas. Segundo ele, o que importa compreender que grande parte dessa nova classe C emergente oriunda de famlias tradicionalmente pobres, que no possuem a mesma lgica, representao e imaginrio dos tradicionais formadores de opinio. Tais famlias leriam pouco, desconfiariam dos jornais e revistas e seriam muito pragmticas, isto , pouco filosficas ou ideologizadas.

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    Nessas condies, a compreenso desse fenmeno sociolgico brasileiro seria o tema mais importante deste incio do sculo para os socilogos. O economista Marcelo Neri, ento chefe do Centro de Polticas Sociais da FGV, tendo por base o estudo realizado por sua instituio, lanou o livro A Nova Classe Mdia: O Lado Brilhante da Base da Pirmide. Neri, que se tornou presidente do IPEA aps a sada de Marcio Pochmann, de opinio que a emergncia da nova classe C um fenmeno complexo, cujo entendimento recente. As estruturas da sociedade no seriam mais as mesmas, a desigualdade teria mudado e quem estaria subindo na vida no Brasil seriam as mulheres, os negros, os nordestinos, e as pessoas que vivem nas periferias e no campo. Essa classe C seria bastante heterognea, formada por pessoas que subiram na vida e que esperam continuar subindo. Seria uma classe positiva com relao ao seu futuro, mais at do que o futuro do prprio pas, com capacidade de exportar gente para a classe AB. Por suas estimativas, em 2014, mais de 74% da populao brasileira, nas regies Sul, Sudeste e Centro-Oeste, devero estar nas classes ABC. Tendo como grande smbolo o emprego com carteira assinada, essa nova classe mdia teria triplicado o consumo de produtos de turismo, dirias de hotis e passagens areas. E, desde 2003, seus produtos de maior consumo teriam sido os materiais de escritrio e artigos de comunicao e informtica, mostrando que sua grande demanda seriam os servios produtivos que permitam a seus membros continuarem subindo na vida. A partir de 2010, o grande divulgador da emergncia da nova classe mdia passou a ser a Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica (SAE/PR). A distribuio de renda no Brasil teria passado por transformaes extremamente marcantes na ltima dcada. Cerca de 15% da populao, ou 30 milhes de pessoas, que viviam em famlias com renda per capita abaixo de R$ 250, teriam passado a viver com rendimentos maiores. Em vista disso, as polticas pblicas no poderiam mais se limitar apenas s linhas de extrema pobreza e pobreza. Haveria um novo segmento a ser atendido, que chegaria a 54% da populao brasileira em 2012. Assim, para propor polticas que atendam realidade atual da classe mdia brasileira, seria necessrio defini-la com clareza. Foi o que procuraram fazer o ministro Moreira Franco e seu secretrio de Aes Estratgicas, Ricardo Paes de Barros, em artigo no Valor Econmico. Eles optaram por considerar trs segmentos de classe baixa, trs de classe mdia e dois de classe alta. Alm disso, tomaram em conta a existncia de pelo menos trs alternativas para definir tais classes. A primeira consistiria em observar como as famlias utilizam sua renda, buscando dividir a populao por semelhanas como consumidores, baseando-se no comportamento. A segunda consistiria em observar como a renda das famlias gerada, buscando similaridade nas oportunidades. A terceira consistiria em observar as famlias por suas perspectivas sobre o nvel futuro de renda, privilegiando uma repartio baseada na homogeneidade de anseios, receios e expectativas para o futuro.

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    Para eles, embora a classe mdia se diferencie da classe baixa e da classe alta por seu padro de consumo, mais balanceado entre necessidades e bens suprfluos, talvez sua diferena mais marcante esteja na perspectiva do futuro. Os pobres no veriam grandes chances de sarem da pobreza, enquanto os imediatamente acima da linha de pobreza temeriam voltar a ser pobres, adotando padres de consumo, inseres no mercado de trabalho e estratgias de sobrevivncia defensivas. Os que alcanaram nvel de renda bem acima da linha de pobreza se sentiriam seguros de que no mais voltariam a ser pobres e comeariam a buscar caminhos de ascenso social. Realizariam investimentos em sua qualificao no mundo do trabalho e no desenvolvimento de suas crianas, adolescentes e jovens. Para Franco e Barros, a linha divisria entre a busca pela sobrevivncia e a busca pela ascenso social surgiria, como ponto de incio para a classe mdia, quando uma famlia da classe baixa alcanasse uma renda per capita de R$ 291 (0,46 salrio mnimo). O ponto de incio para a classe alta aconteceria quando a renda familiar per capita alcanasse R$ 1.019 (1,6 salrio mnimo). Em 2012, o segmento chamado de baixa classe mdia uniria as famlias com renda per capita entre R$ 291 e R$ 441, ou 18% da populao brasileira. O segmento intermedirio reuniria as pessoas com renda per capita entre R$ 441 e R$ 641, ou 19% da populao brasileira. O segmento chamado de alta classe mdia somaria as famlias com renda per capita entre R$ 641 e os j definidos R$ 1.019, ou 17% da populao. A classe mdia, portanto, reuniria 54% da populao brasileira, enquanto a classe baixa comportaria 26% e a classe alta 20%. A nomeao de Marcelo Neri para a presidncia do IPEA certamente fortalece essa linha de pensamento e de ao da Secretaria de Assuntos Estratgicos, embora a tabela de renda utilizada pelo IBGE para 2012 (salrio mnimo em R$ 622) d um quadro mais complexo de valores, como pode ser visto abaixo, e estabelea limites diferentes para aquela transio proposta por Franco e Barros.

    Ou seja, para uma famlia com renda per capita at R$ 1.091, ela precisaria ter pelo menos 3 membros trabalhando para situar-se na faixa de renda inferior da classe C, ou ter 5 membros trabalhando para situar-se faixa de renda superior da classe C. Se levarmos em conta a assertiva da Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), de que as pessoas, em especial os pobres, declaram ao IBGE rendas superiores s que realmente auferem, alm do fato dos ricos jamais declararem suas rendas reais, nem mesmo para a Receita Federal, o

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    que levou aquela associao a adotar outros critrios de aferio de renda, as dvidas sobre os nmeros de Franco e Barros crescem. Apesar disso, os cientistas polticos Amaury de Souza e Bolvar Lamounier no se furtaram de debater o tema em seu livro A Classe Mdia Brasileira ambies, valores e projetos de sociedade. Segundo Lamounier, no ltimo quarto de sculo, a exemplo do que teria ocorrido em praticamente todos os pases emergentes, houve um intenso processo de mobilidade social vertical. No s a mobilidade individual, que constitua um campo tradicional de estudo dos socilogos, mas tambm a mobilidade estrutural, de toda uma camada, em decorrncia de processos econmicos poderosos, como a abertura das economias, uma fase de vigoroso crescimento da economia mundial e, no caso brasileiro, o controle da inflao e a consequente expanso do crdito. Enquanto os integrantes da classe mdia tradicional apenas almejavam reproduzir o status dos pais, num universo mais ou menos esttico, os da nova classe mdia teriam a ambio de subir na vida, viver melhor, consumir mais e, portanto, aprender e se qualificar a fim de gerar a renda consentnea com essa forma de viver. verdade que, em contraponto, Amaury de Souza perguntou se seriam sustentveis esses ndices de crescimento dessa nova classe mdia no Brasil. Para ele existiriam boas razes para pensar que ela se defrontaria com problemas bastante graves. Tanto assim que teria havido um receio generalizado, com a crise financeira de 2008, de que o mau momento poderia arrastar uma boa parte dessa nova classe C de volta linha de pobreza. Na verdade, na busca de brechas ou deficincias nas polticas que sustentam a incipiente melhoria das condies de vida de uma parcela da populao brasileira, Amaury de Souza se viu obrigado a reconhecer que estamos diante no de indivduos cuja renda cresceu, mas de indivduos que pertencem a classes ou fraes de classes sociais, cuja participao na distribuio social da riqueza depende muito mais dos problemas que afetam a classe ou a frao de classe como um todo, do que aos indivduos, tomados separadamente. Para Jess de Souza, por outro lado, o valor bsico da nova classe mdia seria a transmisso familiar da importncia do trabalho duro e continuado, mesmo em condies sociais muito adversas. Seria a tica do trabalho. De modo geral, a nova classe mdia adviria de famlia estruturada, com a incorporao de papis familiares tradicionais. At poucos anos atrs, depois de quitadas as contas do ms, essas pessoas no tinham um centavo sobrando para consumir mais do que os itens da cesta bsica. Hoje, colecionariam sapatos, teriam acesso tecnologia, frequentariam faculdades, comprariam o primeiro carro zero e construiriam a casa prpria. Graas a mudanas profundas na economia, que elevaram a renda dos brasileiros, essa camada da populao estaria crescendo cerca de 4% ao ano, tendo um aumento superior a 40% em sua renda familiar, nos ltimos sete anos, que injetou na economia mais R$ 100 bilhes desde 2002. O aumento de emprego e os reajustes nos salrios, ainda segundo Jess de Souza, teriam contribudo para o crescimento dessa nova classe mdia, a maior novidade econmica, social e

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    poltica do Brasil bem-sucedido dos ltimos anos, mas ainda pouco conhecida em virtude dos preconceitos em relao a ela, como em geral em relao aos setores populares no Brasil. Aspecto importante desses estudos, opinies e notcias sobre a nova classe C que ela no estaria restrita s reas urbanas. Teria surgido tambm, de acordo com o estudo Pobreza e a Nova Classe Mdia no Brasil Rural, coordenado por Marcelo Neri, uma nova classe C rural, cuja renda domiciliar variaria de R$ 1.126 a R$ 4.854 por ms, passando a dominar o cenrio ao expandir-se 72% desde 2003. Neri sustenta que esse estrato social somava 20,6%, em 2003, passando a 35,4% da populao rural em 2009, quando possua 9,1 milhes dos 25,7 milhes de habitantes rurais. Nessas condies, a reduo da desigualdade teria sido mais forte e mais rpida na rea rural, sobretudo nas regies mais pobres. O ex-ministro de Desenvolvimento Agrrio, Guilherme Cassel, tambm concordou como relevante a mudana de padro na reduo da desigualdade da rea rural, com a ascenso das classes D e E para uma classe C forte, mais homognea. Segundo Cassel e Neri, o movimento de ascenso social no campo deveria continuar, com a zona rural brasileira cumprindo a chamada Meta do Milnio, um conjunto de oito compromissos de avano social. Na reduo da extrema pobreza, cuja meta prev reduzir pela metade essa condio at 2015, o Brasil j teria atingido 43% do objetivo em seis anos, o avano sendo muito mais rpido nas reas rurais. A classe D ainda somaria 30,2% da populao rural e 23,6% dos habitantes urbanos, com a perspectiva de 7,8 milhes de brasileiros do campo se tornarem classe mdia em breve. O scio-diretor da empresa de pesquisa Data Popular, Renato Meirelles, afirmou que a forte mobilidade social no Brasil estaria provocando mudanas profundas no perfil dos jovens trabalhadores da classe C. Com nvel de escolaridade superior ao dos pais, eles ingressariam no mercado desempenhando funes menos tradicionais e que pagam salrios melhores, conforme estudo elaborado pelo instituto que dirige. A pesquisa comprovaria que cada ano de estudo at o ensino superior significa 15% a mais de rendimentos. Pela pesquisa, apenas 26% da atual gerao de pais pertencentes classe C concluram o ensino fundamental, contra 65% dos filhos. Na maioria das famlias de classe mdia brasileira, os pais ainda seriam mecnicos, pedreiros, empregadas domsticas, cozinheiras. Os filhos, vendedores de lojas, operadores de telemarketing, recepcionistas. De modo geral, nessas famlias quem comanda tem uma escolaridade baixa. Porm, seus filhos j esto seguindo outro rumo. 68% dos jovens da classe C estudaram mais que seus pais. Nas classes A e B esse percentual no passaria de 10%. Os dados revelariam a importncia que o estudo tem na vida dos futuros chefes de famlia da classe que mais cresce no pas. Hoje, o sonho de muitos desses jovens no apenas o carro zero e o celular de ltima gerao. O diploma de ensino superior e o MBA teriam se tornado mais importantes do que qualquer outro produto disponvel no mercado. Meirelles tambm sustenta que os jovens da classe C, mais educados e conectados, seriam os atuais formadores de opinio na

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    famlia e na comunidade e que a nova classe mdia no deseja o estilo de vida das elites e prefere produtos que valorizam a sua origem. A atual linha de muitos dos programas e novelas das televises brasileiras refletem essas ideias e percepes sobre a ascenso social, ideias e percepes alimentadas pelos nmeros publicados nos mais diferentes meios de comunicao, repisando a ocorrncia da grande mobilidade social dos ltimos anos. Entre 2004 e 2010, 32 milhes de pessoas teriam ascendido categoria de classes mdias, aqui consideradas as classes de renda A, B e C, enquanto 19,3 milhes teriam sado da pobreza. Em 2009, Neri afirmou que 94,9 milhes de brasileiros comporiam a nova classe mdia, correspondendo a 50,5% da populao. Portanto, ela seria dominante do ponto de vista eleitoral e do ponto de vista econmico, detendo mais de 46% do poder de compra e superando os 44% das classes A e B e os 9,5% das classes D e E. Entre 2002 e 2010, os eleitores de nvel universitrio na classe C teriam saltado de 6 milhes para 9 milhes, devendo chegar a 11 milhes em 2014. Incluindo os eleitores com ensino mdio, a classe C ter 52 milhes de votantes em 2014. Em 2009, a classe C teria sido responsvel por 881 bilhes de reais dos gastos com consumo, a maior fatia do total dos 2,2 trilhes de reais do pas. S na rea de educao, com pagamento de escola, material escolar e livros, o consumo teria sido de 15,7 bilhes, quase nove vezes os gastos idnticos em 2002. Ainda de acordo com dados do Data Popular, a classe C seria responsvel por 78% do que comprado em supermercados, por 60% das mulheres que vo a sales de beleza, por 70% dos cartes de crdito no Brasil e por 80% das pessoas que acessam a internet. A nova classe mdia movimentaria R$ 273 bilhes na internet por ano somente com seu salrio e, se considerarmos o crdito disponvel a ela, esse montante dobraria. Com emprego garantido e mais renda, os brasileiros teriam migrado dos servios pblicos de educao e sade para as redes privadas. O objetivo seria conseguir um melhor atendimento, s que agora o setor privado que no consegue dar conta da demanda e manter a qualidade. O Brasil viveria um ciclo de crescimento e uma das conquistas mais desejadas seria um plano de sade. Em 2010, o nmero de usurios do sistema privado de sade teria crescido 9%, o dobro do crescimento mdio anual desde 2000. Segundo a Anahp, hoje 24% dos brasileiros so atendidos na rede particular. A migrao de pessoas do setor pblico para o privado que ocorre na rea de sade tambm se daria na educao. Em 2003, 11% dos alunos matriculados nos ensinos fundamental e mdio frequentariam escolas privadas. Esse percentual estaria hoje em 16%, devendo chegar a 20% em cinco anos. A essas vozes que proclamam a emergncia de uma nova classe mdia, incluindo a maior parte da populao brasileira, se contrapem outras, como a de Jorge Cludio Ribeiro, que aparece no site da Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia. Ribeiro afirma que o conceito de classe mdia no se resume ao nvel de renda. As classes sociais seriam definidas por outros critrios, como a sua forma de ver o mundo, sua cosmoviso, sua atitude perante a vida, suas memrias, sua histria. Esses fatores, um pouco mais qualitativos, no teriam sido pesquisados.

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    Portanto, essa nova classe mdia seria nova, mas no seria mdia, pelo menos do jeito como se conhecia a classe mdia convencional, que desenvolvia e estimulava o esforo pessoal, que tinha um mundo amplo, tinha escolaridade tradicional na famlia. Para Ribeiro, a nova classe mdia se restringiria a fatores ainda referentes situao anterior. Ela teria mais renda, mas continuaria espiritualmente a mesma. Pode fazer mais o que j fazia antes, mas no houve ainda uma ruptura muito pronunciada. Seriam pessoas que fizeram um esforo pessoal gigantesco, mas que valorizariam apenas as realidades mais prximas de si. Podemos dizer que todas estas anlises so influenciadas, consciente ou inconscientemente, por duas concepes. De um lado, o paradigma norte-americano, segundo o qual a suposta estabilidade econmico-social dos EUA resultou da existncia e preponderncia de uma forte classe mdia, uma maioria silenciosa que determinaria tanto o xito quanto o rumo poltico centrista da sociedade americana, em dcadas anteriores. Os adeptos desta linha de interpretao vo ressaltar os aspectos poltico-ideolgicos e o consumismo dos setores emergentes, que os aproximariam de um comportamento padro, esperado. Outra concepo deita razes no imaginrio social da suposta classe mdia tradicional, sedimentada por um padro superior de renda e de educao, embora sem propriedade de meios de produo e obrigada a trabalhar como assalariada. Ao aceitar a classificao por renda, e no pela relao com a propriedade dos meios de produo, aquela suposta classe mdia tradicional se considera agredida ao ver os setores sociais emergentes serem classificados na mesma categoria. E reclama a adoo de critrios diferenciadores. Num caso ou noutro, anlises que partem do nvel de renda acabam tendo que responder a questes poltico-ideolgicas bastante complexas, que as diferenas de renda so incapazes de explicar. Nos remetendo para estudos que abordam o tema de outra forma. o caso de Mrcio Pochmann. Numa linha divergente, tanto de Ricci, Neri, Lamounier, Amaury de Souza, Meirelles, Jess de Souza, Franco e Barros, quanto de Ribeiro, aparece o livro Uma nova classe mdia? de Mrcio Pochmann, que foi presidente do Ipea. Num estudo detalhado dos empregos gerados entre 2000 e 2010, que chegaram a 21 milhes, ele mostra que mais de 19 milhes, ou seja, 95% do total, estiveram relacionados a postos de trabalho cujos salrios eram inferiores a 1,5 salrio mnimo. E, ao contrrio de Franco e Barros, Pochmann no aceita a sugesto de que R$ 291 per capita sejam piso sequer de pobre. Portanto, embora ainda restrito ao critrio de renda, ele coloca em dvida que tais rendas classifiquem algum como classe mdia. Ele tambm mostra que, em 2009, a composio ocupacional da populao economicamente ativa do Brasil compreendia 11% com renda no declarada, 47,8% com renda at 1,5 salrio mnimo, 25% com renda entre 1,5 e 3 salrios mnimos, 9% com renda entre 3 e 5 salrios mnimos e 7,2% com renda acima de 5 salrios mnimos. Se somarmos a renda no declarada, em geral de trabalhadores terceirizados de baixa remunerao, com a renda de at 1,5 salrio mnimo, teramos 58,8% ainda na faixa de renda E do IBGE. E, se considerarmos que 3 salrios mnimos

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    ainda permanecem na faixa de renda D do mesmo instituto, no total teremos cerca de 83% da populao brasileira vivendo abaixo da chamada classe C de renda. Pochmann tambm mostra que o crescimento das rendas do trabalho (basicamente salrios), que haviam sido reduzidas em 9% entre os anos 1994 e 2002, cresceram 10,3% entre 2004 e 2010. Por outro lado, as rendas da propriedade (lucros, juros, renda fundiria, aluguis), que haviam crescido 12,3% entre 1994 e 2002, caram 12,8% entre 2004 e 2010. Embora esses nmeros paream promissores na reduo das desigualdades, a participao da propriedade nas rendas do PIB cresceu de 4%, em 1995, para 14% em 2009. Em outras palavras, a tendncia predominante do crescimento econmico no sistema capitalista consiste em elevar a lucratividade e, portanto, a concentrao de riqueza no polo da propriedade. Em tais condies, se no tivesse havido um esforo continuado do governo, atravs da elevao do salrio mnimo e dos programas de transferncia de renda, aquela desigualdade entre as rendas da propriedade e do trabalho seriam ainda maiores. Pochmann no aceita, portanto, que o aumento das rendas dos pobres tenha significado a formao de uma nova classe mdia. Utilizando-se do nmero de empregados domsticos, um dos critrios para definir o poder de consumo da classe mdia, Pochmann mostra que apenas 12% das famlias brasileiras, ou cerca de 6 milhes de famlias, englobando no mximo 24 milhes de pessoas, possuem um a dois empregados domsticos. Isto , tm condies de renda para empregar at dois empregados domsticos, tornando-se assalariados que empregam assalariados. Nessas condies, na melhor das hipteses, o que se poderia chamar de classe mdia brasileira deve girar em torno desse montante. No deixa de ser paradoxal que parte dessa camada de 24 milhes de brasileiros no tenha propriedade de meios de produo, seja assalariada, empregue outro assalariado para ajudar na reproduo de sua fora de trabalho e, com isso, se sinta parte da classe mdia. Ou que, com o crescimento econmico e a gerao de empregos, uma parte desses assalariados, empregados por outros assalariados, tenha se transformado em assalariada do capital e, por isso, seja considerada nova classe mdia, por uns, enquanto outros no aceitem tal classificao. O que, no final das contas, apenas confirma os limites do critrio de renda para a definio de classe. Por outro lado, Pochmann tambm mostra que 600 mil famlias, ou algo em torno de 2,4 milhes de pessoas, tm renda com poder de empregar 20 ou mais empregados, um breve indicador do fosso existente entre a alta classe proprietria e as classes mdia e baixa. Assim, utilizando-se apenas dos critrios de renda e poder de consumo, Pochmann acaba colocando em xeque no s a existncia de uma nova classe mdia, mas tambm dos critrios que definem a antiga classe mdia, ao mesmo tempo que aponta como um dos motivos de toda a publicidade em torno desse assunto a promoo de planos privados de sade e de educao, e do consumismo. E reitera que as caractersticas do baixo salrio se mantm, e se mantero, enquanto a fora de trabalho sobrante for uma necessidade indispensvel ao capitalismo brasileiro. Todo esse debate em torno de uma possvel nova classe mdia tem o mrito de trazer novamente tona a discusso sobre as classes sociais, discusso que estava enfurnada em caixas relativamente hermticas.

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    Ribeiro, embora tenha destacado apenas os fatores subjetivos da classe mdia tradicional, lembrou que a renda no pode ser o nico critrio de definio de uma classe social. Pochmann, ao fazer distino entre o mundo do trabalho e o mundo da propriedade tambm colocou em pauta a necessidade de considerar outros fatores, alm da renda, do poder de consumo e do behaviorismo, na definio das classes sociais. No parece haver dvidas de que a elevao dos ndices de emprego e de renda das classes baixas, segundo a classificao de Franco e Barros, est promovendo mudanas na economia brasileira e na mobilidade das classes sociais do pas. Lamounier, sem poder refutar essa realidade, prefere inserir tais mudanas num contexto global favorvel e como resultado das polticas neoliberais, embora tenha se visto obrigado a usar uma linguagem cifrada. Neri, ao concordar com a emergncia e constante ampliao de uma nova classe C rural, que se teria se expandido em 72% desde 2003, passando a 35,4% da populao rural em 2009, s faltou acrescentar que no h mais qualquer motivo para se falar em reforma agrria ou assentamentos de sem terra. Bastaria continuar com tal expanso para resolver o problema agrrio e a seguridade alimentar do povo brasileiro. Em geral, os promotores da nova classe mdia pretendem convencer a todos que, sendo a maioria, tal classe merece prioridade nas polticas governamentais, algo que fica patente no texto de Franco e Barros. Dessa forma, as implicaes relacionadas com a possvel emergncia de uma nova classe mdia so, por si ss, suficientemente fortes para justificar a necessidade de uma anlise atualizada da estrutura de classes sociais existentes no Brasil, incluindo sua mobilidade histrica e sua posio na sociedade, as relaes e problemas internos de cada uma, e as relaes de cada classe com as demais classes e com as instituies polticas. Vejamos como evoluiu a estrutura de classes da sociedade brasileira, ao longo do sculo passado. A emergncia histrica dos conceitos de classe social Pelo menos desde os anos 1920, seja sob o impacto das greves operrias, que colocaram no cenrio de vrias cidades brasileiras o proletariado como um novo ator social, seja pela emergncia do movimento tenentista, que exprimia as aspiraes democrticas radicais das camadas mdias das populaes urbanas, seja ainda pelas notcias que falavam da revoluo maximalista, que havia colocado o operariado no poder da antiga Rssia tsarista, o debate sobre a diviso da sociedade em classes passou a fazer parte da pauta de debate de diversas correntes polticas. Esse debate seguiu caminhos inusitados. Os grandes proprietrios fundirios no se reconheciam como classe latifundiria, mas como classe produtiva agrcola, enquanto os industriais no se reconheciam como burguesia, mas como classe produtiva industrial. Uma parte dos latifundirios, a exemplo do presidente Washington Luiz, no reconhecia os trabalhadores industriais como uma classe social e considerava que qualquer manifestao deles no passava de caso de polcia. Por outro lado, uma expressiva parcela dos latifundirios gachos no s reconhecia a existncia de uma nova classe trabalhadora fabril, mas supunha indispensvel trat-la de forma adequada, combinando represses localizadas a um processo de concesses e

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    acomodaes, que evitassem qualquer tipo de levante comunista no Brasil. Os comunistas, por seu turno, tambm seguiram um caminho tortuoso na anlise de classes da sociedade brasileira, em certa medida porque estavam muito influenciados pelo exemplo da revoluo russa e combinavam mtodos de anlise positivistas e marxistas relacionados com outras sociedades. Tornou-se comum, entre eles, considerar a classe operria apenas aquela frao da classe dos trabalhadores assalariados que trabalhavam na indstria. Os trabalhadores assalariados que trabalhavam no comrcio, nos servios, e mesmo na produo agrcola, ficavam num limbo social indeterminado. A burguesia, por outro lado, era vista como um corpo unificado, s vezes integrando a classe dos latifundirios, s vezes separada dela, mas subordinada. Mais tarde, influenciados pelos processos revolucionrios das colnias, e tambm pela crescente penetrao do capital estrangeiro na economia brasileira, os comunistas estabeleceram uma diviso entre a burguesia estrangeira e a burguesia nacional, muitas vezes dando a esta o status de revolucionria, em contraposio tanto burguesia estrangeira imperialista, quanto ao latifndio feudal ou semifeudal. J nas classes mdias, os comunistas integravam tanto os trabalhadores assalariados de mdia e alta renda, quanto os pequenos industriais e comerciais e o campesinato, embora colocassem o campesinato num pedestal especial. Esse quadro das classes sociais desenhado pelas comunistas foi, de certo modo, o centro de todo o debate que se desenvolveu a respeito at os anos 1980. No entanto, as mudanas estruturais ocorridas no Brasil durante os anos 1960 e 1970 haviam transformado a maior parte da classe dos latifundirios, esvaziado o campesinato, aumentado a quantidade de trabalhadores assalariados na indstria, no comrcio, nos servios e na agricultura, e criado uma fora industrial de reserva anormal nas grandes e mdias cidades. Foi com esse novo quadro que se defrontaram os trabalhadores metalrgicos, mecnicos e de material eltrico do estado de So Paulo, em janeiro de 1979, quando realizaram seu IX Congresso. Na tese ento aprovada, que foi o ponto de partida para a fundao do Partido dos Trabalhadores, eles reconheceram formalmente a existncia das classes sociais e de suas lutas ao afirmarem que enquanto estiver sob qualquer tipo de governo de patres, a luta por melhores salrios, por condies dignas de vida e de trabalho, justas a quem constri todas as riquezas que existem neste pas, estar colocada na ordem do dia a luta poltica e a necessidade da conquista do poder poltico. Ao chamar os trabalhadores a construrem o seu partido, a tese afirmou a necessidade de que tal partido seja de todos os trabalhadores da cidade e do campo, sem patres. Em outras palavras, a tese reconheceu apenas a dualidade conflituosa entre trabalhadores e patres. Entre os trabalhadores, no fez distino entre os que eram totalmente desprovidos da propriedade de meios de produo e os que possuam alguns meios de produo. E, entre os patres, no fez distino entre os que eram apenas capitalistas e aqueles patres que eram, ao mesmo tempo, tambm trabalhadores.

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    A Carta de Princpios do PT, de 1 de maio de 1979, faz meno ao operariado, setores proletarizados, patres, trabalhadores e a uma composio social essencialmente contraditria, onde se congregam industriais e operrios, fazendeiros e pees, comerciantes e comercirios, enfim, classes sociais cujos interesses so incompatveis. Apesar disso, durante vrios anos, o senso comum dentro do PT que no Brasil existiriam apenas duas classes, a dos patres e a dos trabalhadores. Em documentos posteriores, formulados durante seus Encontros, o PT comeou a fazer referncia a setores burgueses, temores da burguesia, e ao poder das classes dominantes. Em 1986, o 4 Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores afirmou que os problemas postos pelo processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, cujo estgio, formao das classes sociais e grau de luta entre elas apresentam as condies necessrias para as lutas que permitam um acmulo de foras e ampliem o espao democrtico, embora a existncia de milhes de pequenos produtores e pequenos proprietrios no permita estatizar ou coletivizar imediatamente seus meios de produo. Em outras palavras, o Encontro reconheceu a necessidade de distinguir a existncia de uma classe intermediria de milhes de pequenos produtores e pequenos proprietrios de meios de produo, que s se engajariam numa luta de transformao da sociedade se seus direitos de propriedade fossem respeitados. Essa necessidade foi reiterada no 5 Encontro, em 1987, que reafirmou um possvel consenso de que a burguesia era a inimiga principal, mas voltou a reconhecer que muitos colocavam no campo da burguesia os pequenos e microempresrios e mesmo as camadas assalariadas que no trabalhavam diretamente na produo fabril ou agrcola. O 5 Encontro tambm sustentou que, ao tomarem a classe burguesa como inimiga estratgica, muitos militantes opunham-se ao aproveitamento das contradies momentneas entre os diversos setores da burguesia. Colocavam-se contra qualquer aliana poltica, ttica ou pontual, com algum desses setores. Em outras palavras, o Encontro afirmou que a burguesia no deveria ser vista como um bloco homogneo, mas sim como um bloco formado por diferentes fraes, cujos interesses particulares geravam contradies entre elas e as dividiam na disputa social e poltica. Por outro lado, quando o Encontro formulou que apenas uma aliana de classe, dos trabalhadores assalariados com as camadas mdias e com o campo, teria condies de se contrapor dominao burguesa no Brasil, ele na verdade tambm se contraps possibilidade de aliana com fraes da burguesia para derrotar a frao hegemnica. Por isso, o Encontro rejeitou tambm a formulao de uma alternativa nacional e democrtica, porque o nacional, nessa formulao, indicava a participao da burguesia nessa aliana de classes. Apesar do avano na anlise das classes realmente existentes, utilizar aberta e explicitamente as contradies entre as fraes burguesas ainda estava fora da estratgia e da ttica do PT. E quando se tornasse parte, o faria de maneira no mnimo polmica.

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    No seu 6 Encontro, realizado no curso da campanha presidencial de 1989, o PT constatou que, enquanto a burguesia estava fragmentada na busca por diferentes sadas para a crise e formas de enfrentar a candidatura Lula, os trabalhadores j haviam construdo um instrumento capaz de disputar a hegemonia com os partidos burgueses. Porm, durante a campanha eleitoral de 1989, o PT se deu conta da existncia dos marginalizados, chamados por Collor de descamisados, e que Frei Beto mais tarde cunhou como pobretariado, que constituam uma vasta camada social, com caractersticas to prprias e especficas, que deveriam ser encarados praticamente como uma classe social. Uma anlise crtica mais profunda da campanha eleitoral de 1989 teria permitido delinear com mais clareza os diversos interesses de classe em jogo, e chegar a uma definio mais aproximada da estrutura de classes realmente existente. No entanto, a essa altura, o partido j vinha sendo atropelado pelas transformaes econmicas, sociais e polticas que o capitalismo dos pases avanados impunha ao mundo e sociedade brasileira. Nessas condies, ganhou foros de verdade a suposio de que a fragmentao da classe trabalhadora, gerada pelo desemprego tecnolgico, era um fenmeno universal, no restrito aos pases capitalistas avanados. A ideia da morte do proletariado, juntamente com a ideia de um mundo de sociedades ps-industriais, passou a fazer parte do senso comum de amplos setores do partido. Muitos intelectuais petistas sequer se deram conta de que estvamos diante da desindustrializao dos pases desenvolvidos, cujas corporaes industriais, na busca de elevao de sua lucratividade, transferiam suas plantas produtivas para pases agrrios de fora de trabalho mais barata, matando a classe operria de seus pases de origem, mas recriando-a em outros pases. Sequer se aperceberam que o ps-industrialismo no passava de uma justificativa para a segmentao produtiva internacional e, no Brasil, embarcaram na canoa furada da submisso neoliberal. O programa de reformas na China e o fim da Unio Sovitica foram encarados como mais uma comprovao da inevitabilidade do ps-industrialismo e do fim da classe operria, contribuindo ainda mais para o abandono da anlise de classes no Brasil. Foi nessas condies que amplos setores da esquerda adotaram o conceito de excludos sociais, cunhado por Robert Owen para as camadas dos expropriados ingleses dos sculos anteriores revoluo industrial, relegando o conceito de classe trabalhadora, sem levar em conta que no Brasil as foras produtivas e, portanto, as foras de trabalho assalariado, ainda tinham um grande espao para desenvolver-se, desde que o pas no seguisse o receiturio neoliberal. O I Congresso do PT, realizado em 1991, avaliou que o novo padro de desenvolvimento tecnolgico capitalista desarticulava o ncleo do trabalho operrio na indstria, fragmentava a classe trabalhadora, gerando desemprego tecnolgico e estabelecendo novos paradigmas para a luta sindical e poltica. O 11 Encontro, por sua vez, constatou que a implementao do projeto neoliberal por Fernando Henrique atingia em cheio o padro de vida das classes mdias e levava falncia setores da mdia burguesia.

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    Ou seja, as resolues partidrias adotadas no incio dos anos 1990 insistiam em lugares-comuns, no superando os esforos positivos de anlise da formao social brasileira e suas classes sociais, feitos em encontros anteriores do PT. Ao contrrio, as resolues citadas contriburam para o abandono da preocupao com o tema, e a uma busca em torno de novos paradigmas de luta, dissociados das classes. Paralelamente a isso, de forma aparentemente paradoxal, o PT avanou em conquistas tticas sucessivas durante a segunda metade dos anos 1990, em grande medida em virtude das divises entre as diversas fraes da burguesia e da pequena burguesia, diante da destruio neoliberal e em contraste com a industrializao dos pases asiticos e com a transferncia do eixo econmico do Atlntico para o Sudeste do Pacfico. Essas divises, em especial na burguesia, se tornaram especialmente evidentes aps a crise financeira e econmica de 1998-99, colocando o PT como nica alternativa vivel de superao do caminho neoliberal. A ampliao do leque de alianas do PT tornou-se no s vivel, como desejada pelos tais aliados, o que consistia uma novidade em relao ao que ocorria com a esquerda comunista nos anos 1950, que clamava por alianas com uma burguesia que lhe repudiava. No entanto, por falta de um conhecimento consistente das classes e fraes de classe em disputa, e tambm devido a algumas opes estratgicas e programticas equivocadas, o PT no governo passou a enfrentar crescentes dificuldades para administrar os interesses dspares nas alianas com setores da burguesia e da pequena burguesia. A retomada do crescimento econmico, associada a programas de transferncia de renda e elevao do salrio mnimo, fizeram reemergir uma nova classe trabalhadora assalariada, tanto industrial, quanto comercial e de servios, e pusesse mostra a presena de uma classe trabalhadora assalariada rural. A classe operria no havia morrido, e o Brasil apresentava um vasto mercado para a reindustrializao e para o desenvolvimento econmico e social, acompanhando a corrente dos pases em desenvolvimento da sia, da frica e da Amrica Latina, na contracorrente dos Estados Unidos e da Europa. O reconhecimento dessa nova situao, em que parte do exrcito industrial de reserva, pobretariado ou excludos, se transformou em classe trabalhadora assalariada, proletariado, podendo se tornar uma classe consciente de seus prprios interesses, passa a ser um problema econmico, social e poltico para todas as classes e fraes de classe presentes na sociedade brasileira. E um problema ainda mais vital diante do fato do PT e outros partidos de esquerda estarem no governo central. Nesse sentido, a discusso em torno da existncia de uma nova classe mdia uma das expresses da disputa ideolgica e poltica em torno desse ressurgimento da classe trabalhadora como fora social e do que isso pode representar na luta econmica, social e poltica brasileira. Apesar de suas contradies internas, a burguesia compreendeu rapidamente que estava diante de um desafio de mltiplas facetas e tomou a iniciativa de pautar a discusso a partir de seus

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    prprios interesses, que vo bem alm da venda de mercadorias, seguros e planos de sade. Ao insistir na tese de que se trata de uma nova classe mdia, o que a burguesia pretende que no se comportem como trabalhadores, em particular como os trabalhadores se comportaram durante os anos 1980. Os diferentes conceitos de classe social Para analisar a estrutura de classes na sociedade brasileira essencial estabelecer alguns critrios para a definio das classes sociais. O que inclui consider-las uma criao histrica antiga, em especial porque muitos estudiosos que tratam do assunto as consideram uma classificao estritamente marxista. A classificao dos seres humanos conforme sua posio na diviso social da propriedade e no processo produtivo surgiu no escravismo antigo, como parte das constituies legais das sociedades humanas em formao. Embora excluindo as principais foras de trabalho, os escravos, por serem considerados simples instrumentos de trabalho, mesmo falantes, essa classificao sempre tomou como critrio bsico a propriedade, ou as relaes de produo. Senhores, aristocratas, patrcios, chatrias, brmanes, lordes, ou qualquer outra denominao dos diversos povos em que o sistema escravista era dominante, eram aqueles que detinham a propriedade do solo e dos principais meios produtivos, incluindo gado e escravos, e a correspondente riqueza em bens fixos e mobilirios. Comerciantes, camponeses e artesos, tambm sob diferentes denominaes, existiam como classe naquelas sociedades escravistas em que parte dos homens livres possua a propriedade de pequenas parcelas de terra e de instrumentos de trabalho, incluindo alguns escravos. Eram proprietrios de meios produtivos secundrios que, pelo menos por um tempo considervel, no lhes permitiu amealhar riqueza suficiente para ombrear-se com os aristocratas. Plebeus, demos, pobres, ou outras denominaes, constituam a classe dos homens livres sem qualquer propriedade de meios de produo. Vivendo em sociedades em que o trabalho era abominado como algo prprio de animais falantes, viam-se constrangidos a caar, trabalhar como lavradores em terras comunais, ou como proletrios (segundo o termo romano) nas fbricas imperiais de armamentos, ou a engajar-se no exrcito, em troca de soldo. Quando ganharam fora social, estes setores jogaram-se na luta para obter que as riquezas produzidas pelo trabalho escravo tambm fossem distribudas entre eles, de modo que no precisassem submeter-se vergonha do trabalho. No caso dos plebeus romanos, s colocaram a reforma agrria em sua pauta de luta quando o escravismo j entrara em decadncia. Embora a maioria dos livros sobre a histria no d muita ateno ao estudo dessas estruturas de classes da antiguidade, eles no podem se furtar de explicit-las porque a luta de classes entre a plebe no-proprietria e a aristocracia proprietria promoveu alguns dos conflitos e acontecimentos histricos mais importantes daquele perodo, paradoxalmente muito mais transformadoras do que as rebelies dos escravos. Algo idntico ocorreu no perodo feudal dos povos europeus e asiticos, em que os nobres eram aqueles que tinham a propriedade ou posse fundiria de praticamente todas as terras, os feudos.

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    A classe camponesa (aqui includos os ex-escravos) tinha passado a pertencer s parcelas que cultivavam nos feudos, mas tambm se tornado proprietria de seus meios de produo agrcola e artesanal. O desenvolvimento da produo agrcola e pecuria, assim como da indstria artesanal camponesa, criando excedentes, incrementou o comrcio e fez ressurgir a classe mercantil, muito ativa durante o escravismo, mas estranha autarquia feudal por algum tempo. Reinos, monarquias, sultanatos, imprios, ou outras denominaes dadas aos Estados feudais, diante da existncia real das classes subalternas, tiveram que reconhecer legalmente como classes, ao lado da nobreza fundiria (que podia ser militar, eclesistica e burocrtica), aos camponeses e aos comerciantes ou mercadores, assim como a existncia de cidades, comunas ou burgos, fora dos limites territoriais feudais. Embora a maior parte dos livros de Histria tambm d pouca ateno a essa estrutura social do feudalismo, nem sempre consegue omitir os eventos histricos que opuseram a classe dos comerciantes classe nobre, nem o fato de que a classe mercantil, medida que enriqueceu e conquistou poder econmico, muitas vezes se aproveitou das contradies entre as monarquias e os senhores feudais para submeter estes a seus prprios interesses, como aconteceu na revoluo de Avis, em Portugal, e na Repblica de Cromwell, na Inglaterra, antes de se transformar em classe capitalista dominante. A maioria dos livros de Histria trata extensivamente do surgimento do capitalismo e da burguesia, e reconhece o surgimento de classes sociais a partir de ento. No entanto, como afirmamos acima, muitos desconhecem ou rejeitam a existncia e transformao das classes a partir do surgimento da propriedade privada e do escravismo. Como impossvel desconhecer as divises sociais das formaes histricas anteriores, a maior parte dos historiadores adota a teoria da mobilidade, segundo a qual antes das classes do capitalismo, existiam os estamentos feudais, e antes deste as castas, ao invs de considerar estamentos e castas como fraes especficas de determinadas classes sociais. Os economistas clssicos, como Adam Smith e David Ricardo, em sua tentativa de explicar as novas formas produtivas capitalistas, mantiveram a diviso da propriedade como base para a anlise da classificao social. Adam Smith chegou a afirmar que a riqueza no tinha origem no mercantilismo, mas no trabalho, contrariando os interesses do clero e da nobreza, que desprezavam o trabalho. Alm disso, defendeu que, para o trabalhador ter um pensamento mais gil e dar conta do processo produtivo, seria necessrio investir em educao bsica para todos. Em outras palavras, defendeu que a educao bsica era de interesse dos proprietrios capitalistas. Segundo Smith e Ricardo, a nova modalidade de produo se confrontava com trs classes de atores: a) a dos proprietrios territoriais, que vivia da renda fundiria, materializada na forma de trabalho (corveia), produtos (parcela da produo), ou dinheiro (aluguis); b) a dos proprietrios capitalistas, que viviam de lucros, de juros e aluguis; e c) a dos que no possuam propriedades capazes de gerar rendas, lucros, juros e aluguis, mas possuam fora de trabalho.

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    Essa terceira classe podia vender sua fora de trabalho, por determinado tempo, em troca de salrio, aos proprietrios territoriais, para lavrar e cultivar a terra e colher a safra, e/ou aos proprietrios capitalistas, para movimentar as ferramentas e mquinas e processar as matrias primas para produzir bens de uso. Assim, tanto Smith quanto Ricardo, alm de admitirem a existncia das classes sociais, consideravam que essas classes se encontravam em relao de colaborao e luta constante. Assim, da mesma forma que, no escravismo, os senhores fundirios dependiam da existncia dos escravos como fora produtiva, para manter-se como classe e, no feudalismo, os senhores feudais dependiam dos servos como fora produtiva, para manter-se como classe, no capitalismo os donos do capital dependem dos proletrios, como fora produtiva, para manter-se como classe. No existem classes solitrias, desvinculadas das demais, muitas vezes inclusive daquelas que esto em processo de desaparecimento, tanto em oposio quanto em colaborao. Os proprietrios capitalistas dependiam dos proprietrios fundirios para construir suas instalaes fabris, mas se opunham a eles pela sistemtica tentativa de elevarem o valor das terras e a renda cobrada. E os trabalhadores assalariados dependiam de ambos ofertarem condies de trabalho, mas se opunham a eles porque o salrio recebido pela venda de sua fora de trabalho mal dava para repor suas foras fsicas. Karl Marx adotou o mesmo critrio histrico de classificao das classes e da relao de cooperao e luta entre elas, conforme aceita por aqueles economistas clssicos. Porm, ao contrrio deles, estabeleceu que, do mesmo modo que a burguesia mercantil fora a classe que, em luta contra os senhores feudais, os superara e os liquidara como classe, o proletariado era a classe que mais fortemente se opunha ao capitalismo e estava fadada a super-lo e liquidar no apenas a burguesia, mas tambm a si prprio, como classes. Embora esta tese de Marx gere uma polmica intensa, seu critrio bsico para a diferenciao entre as classes, isto , a relao com a propriedade ou, em outras palavras, a posio que cada indivduo ou grupo de indivduos ocupa no processo produtivo e de troca, se mostrou a mais apropriada para a anlise da estrutura de classes das sociedades. Para Marx, no capitalismo as duas classes fundamentais seriam a classe capitalista, ou burguesa, proprietria do capital (dinheiro vivo e dinheiro materializado em meios de produo e comercializao) e a classe dos trabalhadores assalariados, ou proletrios, expropriados da propriedade de meios de produo, mas proprietrios de fora de trabalho (fora cujo valor deveria corresponder ao que seu proprietrio necessita para se reproduzir como trabalhador). A constatao dessa bipolaridade no modo de produo capitalista no significa que Marx exclua a existncia de outras classes nas formaes sociais capitalistas, em virtude do desenvolvimento histrico de cada uma. O processo histrico que levou ao predomnio do modo de produo capitalista em cada sociedade determinada, muitas vezes se deu com a manuteno subordinada de outros modos de produo, dando peculiaridades prprias a cada formao social.

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    Isso explica porque o capitalismo na Inglaterra, Frana, Estados Unidos, Alemanha, Japo e nos demais pases do mundo em que predominante, no seja exatamente igual em toda parte, embora suas leis gerais sejam as mesmas. medida que o capitalismo se tornou o modo predominante, inclusive absorvendo os proprietrios fundirios como uma frao de sua classe, a antiga transparncia legal sobre a diviso e a luta de classes foi sendo substituda por um esforo constante para realar a igualdade, a fraternidade e a liberdade social entre os homens, com suas derivaes, como a igualdade de oportunidades, a liberdade de escolha, a possibilidade de ascenso econmica e social etc. A diviso e a luta de classes seriam no uma criao histrica de longa durao, mas uma anlise social deformada, surgida a partir de Marx, o que muitos marxistas historicamente desinformados chegam a aceitar acriticamente. O que leva muitos deles a proclamarem a necessidade de estimular a luta de classes, como se essa luta fosse algo criado fora da sociedade, que devesse ser introduzida por revolucionrios iluminados. No entanto, como a desigualdade, a competio e a falsa liberdade fazem parte da realidade cotidiana, saltando aos olhos, a negao pura das classes e da luta de classes transformou-se numa nulidade. Fez-se necessrio tornar mais complexas as classificaes analticas, colocando em dvida a eficcia do estudo da estrutura de classes conforme proposto pela classificao histrica, pelos economistas clssicos e pelo marxismo. Neste contexto surgem e se desenvolvem os mtodos de anlise por estratificao, por renda e por poder de consumo, ao mesmo tempo em que o mtodo de anlise pela diviso social do trabalho, ou pela diviso relacionada propriedade passou a ser considerada estreita e incapaz de abarcar todos os aspectos que assemelhavam ou diferenciavam as classes sociais. A igualdade de oportunidades se transformou no tema preferido para explicar a mobilidade e a ascenso social. H uma suposio generalizada de que a mobilidade social seria uma caracterstica exclusiva da moderna sociedade capitalista. As antigas sociedades de castas e medievais no ofereceriam qualquer possibilidade de ascenso de classes inferiores a classes superiores. Somente as sociedades ocidentais modernas possibilitariam tal mobilidade, como consequncia da maior ou menor facilidade de acesso a servios de educao, transportes, segurana pblica, sade, habitao etc., que podem ou no ser de responsabilidade do Estado. Portanto, de um lado, essa suposio desdenha o fato histrico de que escravos turcos puderam se tornar chefes de dinastias dominantes no Egito, Prsia e ndia, e que servos medievais puderam se transformar em comerciantes no Japo, Inglaterra, Frana e outras regies. De outro, a mobilidade social moderna explicada como consequncia de acesso a servios, e no como mudanas na propriedade. Na teoria da mobilidade, as classes no se transformariam, seriam os indivduos que mudariam de status. Max Weber se destacou ao preferir utilizar o conceito de estratificao das classes sociais. Na estratificao social, a diferenciao entre as classes deve ser realizada conforme as caractersticas

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    similares apresentadas pelos agrupamentos de indivduos. Por exemplo, negros, brancos, catlicos, protestantes, homens, mulheres, pobres e ricos so agrupamentos que apresentam caractersticas similares, podendo ser classificados como classes. Alm disso, o juzo de valor que os indivduos tm em relao aos outros e a forma como se posicionam nas respectivas classes, dependeriam do poder, da riqueza, do prestgio, da educao e de alguns outros fatores, que determinam as desigualdades dentro de cada classe. Em outras palavras, a propriedade no desempenharia qualquer papel na diviso social, j que algo que estaria disposio de todos. A Sociologia, a Antropologia e outras cincias sociais em geral consideram trs tipos principais de estratificao social: a) a estratificao econmica, baseada na renda ou posse de bens materiais, dividindo a sociedade entre ricos, mdios e pobres; b) a estratificao poltica, dividindo a sociedade entre grupos que tm e grupos que no tm poder; e c) a estratificao profissional, dividindo a sociedade pelo grau de importncia atribudo a cada grupo profissional. Em outras palavras, a estratificao expressa desigualdades, mas nega ou esconde que isto esteja relacionado posio ante a propriedade. Bem vistas as coisas, a renda est relacionada distribuio da renda gerada pelo sistema produtivo da sociedade e posio de cada classe nesse sistema. No sistema capitalista, os burgueses so ricos no apenas porque herdaram fortunas, mas porque transformaram tais fortunas em capital, que no seno a relao social entre trabalho morto e trabalho vivo, entre dinheiro acumulado e fora de trabalho capaz de valoriz-lo. Por outro lado, o sistema capitalista, na busca constante de elevar sua lucratividade, transformou o dinheiro acumulado numa fonte de gerao de mais dinheiro atravs do prprio dinheiro, criando uma frao rentista que nega a forma principal de gerao do lucro atravs da produo, tornando o sistema muito mais instvel. No capitalismo, o poder poltico est subordinado tanto ao poder econmico, quanto fora social e poltica de cada classe. E as profisses dependem da diviso social do trabalho promovida pelo desenvolvimento tcnico e cientfico da produo. Nesse sentido, o Critrio de Classificao da Associao Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) adequado, at certo ponto, para medir a distribuio da riqueza social e indicar como tal riqueza acumulada, ou no, pelas diversas classes sociais. No entanto, ela est longe de poder indicar claramente como a populao brasileira est dividida em classes socioeconmicas. Sua classificao mede o poder aquisitivo das pessoas, avaliando os bens da famlia e o grau de escolaridade do chefe da casa. Os itens possudos pela famlia, como quantidade de banheiros na casa, TVs em cores, rdios, geladeiras e freezers, automveis, videocassetes ou DVDs, mquinas de lavar e empregados mensalistas so pontuados e sua soma definiria a que classe a famlia pertence, do ponto de vista da distribuio da riqueza produzida. Por esse critrio, os estratos de classificao das classes seriam 8: A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E. J o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE e a Fundao Getlio Vargas pretendem definir as classes sociais a partir, exclusivamente, de cinco faixas de renda, tendo por base o

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    nmero de salrios mnimos. O mesmo pretende o Dieese, mas trabalhando com 7 faixas de salrios mnimos, indo da faixa inferior a um salrio mnimo at a faixa superior a 20 salrios mnimos. Alguns outros institutos e consultorias privadas utilizam valores nominais de renda mensal, a menor abaixo de R$ 200 e a maior acima de R$ 14.400. Uma das distores das pesquisas com base nesses critrios que elas no conseguem medir a renda, nem o montante de bens das classes proprietrias, embora o indicador do nmero de empregados domsticos possa dar alguma pista. Outra lacuna a ausncia do que compe a renda declarada. Salrios? Lucros? Juros? Renda territorial? Aluguis? O qu? Em outras palavras, as faixas de renda e o nmero de bens possudos podem indicar o poder de consumo e dar alguma pista sobre a classe social correspondente, mas no so indicadores seguros de classificao socioeconmica. Partindo do pressuposto que, numa formao social, existe no apenas o binmio das classes fundamentais, mas tambm outros binmios de classes em transio, um erro comum na anlise das classes consiste em tomar cada classe de um binmio separadamente, sem ao mesmo tempo analisar seu outro polo, e as demais classes em interao. H especialistas estudando o mundo do trabalho, sem ao mesmo tempo estudar o mundo proprietrio especfico. Como h estudiosos analisando as mudanas do mundo proprietrio e do mundo do trabalho dos pases avanados, supondo que as mudanas que ocorrem nesses pases so exatamente as mesmas que ocorrem no Brasil e nos pases em desenvolvimento. Outro erro comum no estudo das classes sociais consiste em no ir a fundo nas diferenciaes dentro de cada uma delas. Em inmeros textos acadmicos e polticos, a burguesia aparece como algo monoltico, sem distines e contradies internas relativamente profundas. E as confuses sobre as diferenciaes internas na classe dos trabalhadores assalariados, e sobre o papel que cada uma de suas fraes pode desempenhar, tambm so extensas. Como tambm so extensas as confuses em torno da mobilidade, das transformaes das classes e da persistncia de classes antigas, aparentemente fora do lugar, e das classes de trnsito, intermedirias ou mdias, que coexistem com as classes fundamentais. Portanto, se quisermos esclarecer esses assuntos, s nos resta a opo de estudar o processo real de vida e de ao dos indivduos e das classes de nossa poca e nas fronteiras em que atuam, em confronto com o que sabemos da vida e da ao dos indivduos e das classes de pocas anteriores. Evoluo da estrutura de classes na sociedade brasileira Ao ter incio a colonizao europeia, logo depois de 1500, no territrio que depois veio a ser chamado de Brasil, aqui habitavam inmeras hordas e tribos indgenas, cuja populao estimada era de mais de 6 milhes de indivduos, espalhados desde a bacia amaznica, ao Norte, at os pampas, ao Sul. A maior parte dessa populao encontrava-se dispersa pelo litoral, havendo a suposio de que a migrao original se deu atravs da bacia amaznica e, depois, pelo litoral no rumo sul. Mas h muitos indcios de povoaes indgenas no interior, anteriores poca da descoberta.

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    Enquanto as hordas vagavam na busca de campos de coleta e de caa, j existiam tribos que combinavam a caa e a coleta com o cultivo de roas de mandioca e milho. Ou mesmo tribos que, sendo coletoras e caadoras, haviam iniciado um processo de sedentarismo pela abundncia de peixes e crustceos, seja em algumas regies da Amaznia, seja em vrios pontos do litoral Atlntico. Nessas tribos j havia se consolidado uma diviso sexual do trabalho, os homens sendo responsveis e tendo a posse dos instrumentos de caa, pesca e coleta, enquanto as mulheres eram responsveis pela organizao da casa e tinham a posse dos utenslios de guarda e de preparao dos alimentos, assim como do mobilirio da casa (redes, banquetas etc.). Todas as atividades em cada uma dessas divises do trabalho eram comunitrias, e a distribuio dos resultados tambm era realizada comunitariamente, indicando que elas viviam no comunismo primitivo. Sua evoluo ocorria lentamente, seja porque o territrio no apresentava animais domesticveis de porte, capazes de fornecer leite e carne (o que levou algumas tribos a praticarem o canibalismo, como forma de atender s necessidades de protena), nem uma variedade ampla de cereais. Tambm no haviam evoludo nas tcnicas de plantio, praticando a coivara e a rotao de reas florestais, nem nas tcnicas de irrigao e de aproveitamento pleno do milho e da mandioca, as nicas plantas que cultivavam. Convm lembrar que nesse mesmo perodo, tanto os incas, quanto os astecas, j praticavam cultivos irrigados e aproveitavam o milho para a produo de diferentes alimentos. Desse modo, a organizao tribal ainda evolua por seleo natural, pelo processo de ramificao a partir de certo aumento da populao. As novas tribos recebiam novos nomes, enquanto o tronco original conservava o nome primitivo. Eventualmente, tribos oriundas do mesmo tronco guerreavam entre si pelo domnio de campos de caa e de coleta. Os prisioneiros de guerra podiam ser transformados em alimento, se a tribo vencedora praticasse o canibalismo, serem simplesmente eliminados, ou serem incorporados tribo por algum motivo cultural. No havia qualquer hiptese de que algum prisioneiro indgena fosse transformado em escravo. Gonalves Dias, apesar de seu romantismo, bastante realista ao tratar do sistema de vida nativista brasileiro. Esse processo de evoluo foi truncado pela descoberta e invaso do territrio pelos portugueses. No incio, na ausncia de metais preciosos, ou de um projeto imediato de explorao do territrio, os portugueses praticaram o escambo de quinquilharias e ferramentas, que fabricavam em seu artesanato, em troca de toras de pau-brasil, que os indgenas derrubavam e carregavam at as naus lusas. No entanto, esse escambo era inconstante, porque os indgenas ainda no tinham formado qualquer tipo de sistema produtivo interessado em criar excedentes e operavam segundo o sistema do estritamente necessrio. Depois, quando os portugueses comearam a implantao das plantations de cana, que s poderiam ter sucesso com o emprego de foras de trabalho escravas, encontraram forte resistncia dos indgenas, que preferiam morrer a serem transformados em escravos. O escravismo colonial teve que ter por base a fora de trabalho africana, cujas tribos j haviam evoludo, ou estavam em processo de evoluo, para o patriarcado e para o escravismo. Alm disso, transportada para um ambiente que lhe era estranho, essa fora de trabalho tinha menos

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    chances de fugir e resistir. Embora os portugueses continuassem buscando prear indgenas e transform-los em escravos, essa prtica teve maiores efeitos como forma de extermnio do que como forma de acrescentar novas foras de trabalho s plantations. Paralelamente a esse processo escravocrata colonial, no Norte e no extremo Sul Brasil se instalou um modo de produo aparentemente comunitrio, o das redues indgenas, coordenado por misses catlicas, tanto jesuticas quanto franciscanas e de outras congregaes. Estas conseguiram, pelo menos at 1750, a proibio formal da escravizao de indgenas, colocando vrias tribos sob sua proteo. Em troca dessa proteo e da distribuio aparentemente igualitria do que era produzido pelos indgenas, as redues, em especial as da Provncia do Maranho e Gro-Par, tornaram-se grandes exportadoras de especiarias amaznicas, conformando uma sociedade hbrida, na qual os maiores descontentes eram os colonos portugueses, proibidos de trabalhar pelas instrues rgias e, ao mesmo tempo, desprovidos de escravos. Desse modo, em substituio ao comunismo primitivo esparso antes existente sobre o territrio, foi se formando uma sociedade que tinha por base a propriedade privada fundiria (sesmarias), onde foras de trabalho escravo produziam cana nos eitos e acar nos engenhos. As primeiras expresses de organizao estatal, as capitanias hereditrias, mostraram-se rapidamente ineficientes, sendo substitudas por governadorias gerais, que respondiam diretamente ao reino portugus, e por cmaras municipais, que congregavam os homens bons, os senhores de escravos, na governana local. Paralelamente a isso, o gado importado para moer engenhos e transportar cargas foi conquistando os campos do serto ocidental e dos pampas sulinos, dando ensejo ao surgimento de um sistema pecurio que se diferenciava do sistema agrcola escravista por ter, como fora de trabalho, homens livres que se colocavam sob a proteo de fazendeiros e se obrigavam a pagar a partilha do gado que cuidavam, e a pagar o cambo, isto , trabalhar alguns dias da semana nas feitorias do fazendeiro, um sistema aparentado corveia medieval. Esse sistema era quase autossuficiente, produzindo quase tudo que necessitava para sua reproduo ampliada. A descoberta das minas de ouro e diamantes nas Matas Gerais, no final do sculo 17, paralelamente crise de lucratividade das plantations e engenhos de acar, em virtude da concorrncia dos plantadores antilhanos, subverteu profundamente os processos produtivos do territrio e tambm da metrpole. As minas demandavam escravos, ferramentas, alimentos, tropas de transporte, bens de consumo diversos, alm de se transformarem em polos de atrao de massas humanas. A coroa portuguesa teve que proibir a emigrao para o Brasil, pois correu o risco de perder a maior parte de sua fora de trabalho para as minas brasileiras. Os senhores de escravos e de engenhos do Nordeste desciam em comitivas de parentes e escravos para explorar as minas. Traficantes de escravos intensificaram a preao africana e indgena brasileira, estimulando o desenvolvimento de portos e estradas por onde pudessem subir do litoral para as Gerais, de modo a suprir as demandas de um sistema mineiro no qual as peas escravas duravam no mximo cinco anos. As fazendas de gado, equinos e muares entraram no comrcio de suas tropas, abrindo estradas por onde trafegavam no rumo das minas, tanto a partir dos pampas, quanto das barrancas do So Francisco. Homens livres de diferentes origens assentaram-se como posseiros em terras do vale do Paraba e de outros cursos dgua para

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    produzir alimentos vegetais. Surgiram vilas onde se assentaram comerciantes, artesos e outros especialistas demandados pela crescente vida urbana. O comrcio, antes restrito rota monopolista colnia-metrpole, desdobrou-se por vrias regies do territrio colonial. O sculo 18 assiste, ao mesmo tempo, s primeiras manifestaes da conformao dos brasileiros como um povo diferente do povo portugus, e da paulatina formao de uma classe latifundiria escravista, em contraposio aos homens livres divididos em inmeras profisses e atividades. Mas a verdadeira conformao da classe latifundiria escravista s vai ocorrer no sculo 19, quando a coroa portuguesa se v obrigada a fugir para o Brasil e estabelece sua nova sede no Rio de Janeiro. Os quarenta anos posteriores assistem s revoltas que iriam no s demonstrar a existncia de homens livres plebeus, como os farrapos, balaios e cabanos, mas principalmente a conformao dos latifundirios escravistas como uma classe capaz de se articular nacionalmente para garantir seus interesses, inclusive negociando a independncia da antiga colnia. No por acaso, assim, que a Lei Agrria de 1850 probe a posse de terras por pessoas no qualificadas para tanto. Que, aproveitando-se da demanda europeia por caf, ainda prolonga o escravismo por mais de quarenta anos, numa poca em que esse modo de produo perdera sua capacidade econmica e em que o capitalismo j o abominava como obstculo formao de mercados compradores de produtos industriais. E que, na falncia do escravismo, mantenha a propriedade monopolista da terra e transforme seus ex-escravos em foras produtivas atravs de diferentes formas de agregao e servido consentida, na qual os servos no pertenciam terra, mas se encontravam amarrados ao latifndio por diversas obrigaes informais. No incio do sculo 20, a estrutura social brasileira tem no seu topo a classe latifundiria, com suas fraes cafeeira, pecuria e canavieira como as principais. Em contraposio a classe latifundiria, h uma relativamente vasta classe de camponeses, constituindo a maior parte da populao, na condio de meeiros, terceiros, foreiros, isto , agregados aos latifndios, e tambm de posseiros dispersos por vrias regies do pas. Nas vilas j se encontra uma burguesia comercial, tributria dos latifundirios, enquanto nas cidades maiores a burguesia comercial tem certa independncia, mas fundamentalmente intermediria entre a burguesia industrial estrangeira e o latifndio comprador. Para essa classe burguesa mercantil j trabalha um proletariado disperso, formado por uma parte minimamente letrada e uma parte analfabeta, em geral de ex-escravos. Ao mesmo tempo, as novas demandas sociais fazem com que membros das famlias latifundirias se tornem mdicos, advogados e engenheiros, conformando uma burguesia de servios com os ps na propriedade fundiria. O artesanato, o comrcio e os servios, tanto privados como pblicos, tambm abrem janelas para a ascenso de membros das famlias assalariadas urbanas, conformando tanto uma pequena burguesia proprietria de meios de produo, quanto um setor assalariado de salrios mais elevados, cujo padro de vida pode ser equivalente aos dos pequenos proprietrios de meios de produo.

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    So essas classes que, nos anos 1920, assistiram aos investimentos de latifundirios e de burgueses comerciais para substituir vrios produtos, antes importados, principalmente tecidos, por produtos fabricados em unidades produtivas no Brasil, dando surgimento tanto a uma burguesia industrial, quanto a um proletariado industrial, ambos incipientes. E, mais rapidamente do que se pensava, ambas trouxeram luz suas contradies nas greves ocorridas entre 1917 e 1920. Rapidez que se deveu, em grande parte, ao fato dos operrios contratados serem originrios de migraes de pases industrializados, j com alguma experincia de trabalho e de luta fabril. Nos anos posteriores, em especial aps 1930, tanto a burguesia industrial quanto o proletariado industrial ganharam maior musculatura, tornando-se atores ativos da vida brasileira, embora a classe latifundiria continuasse no comando da vida econmica e poltica nacional. Por tudo isso, no tem sentido a suposio bastante difundida no Brasil, constando inclusive do Wikipedia, de que, embora as classes sociais sejam uma instituio literariamente conhecida h muito, elas s teriam comeado a ter presena em nosso pas a partir dos anos 1950; e ainda que, a partir do boom de crescimento econmico dessa dcada, que teria se prolongado at os anos 1980, teria sido criado algo at ento indito na histria do pas, uma classe mdia brasileira. Essas suposies a-histricas se devem, em parte, a uma discusso acadmica que s supe a existncia de classes sociais quando esses agrupamentos humanos possuem conscincia de constiturem realmente uma classe, ou aquilo que denominam de classe-para-si. Segundo tal viso, os grandes proprietrios territoriais, ou latifundirios, que exerceram o escravismo nas plantaes de cana e, depois, nas plantaes de caf, embora se considerassem os homens bons que podiam participar das cmaras municipais e, depois, das transaes da corte, dos partidos liberal e conservador, e do parlamento imperial, no teriam sido uma classe social porque os escravos tambm no teriam constitudo uma classe. Os comerciantes que comandavam as exportaes e importaes nas relaes com a metrpole e, a partir de 1808, com a Inglaterra e outras naes, embora tenham participado ativamente de alguns acontecimentos de repercusso histrica, como a balaiada e a cabanagem, tambm no teriam chegado a constituir uma classe porque seus escravos e empregados livres tambm no constituiriam classes sociais prprias. Os latifundirios, que deixaram de ser escravistas e passaram a utilizar o trabalho dos ex-escravos como camponeses agregados, embora dominassem as polticas provinciais e participassem ativamente do parlamento e da diviso do poder republicano, tambm no teriam se formado como classe porque os camponeses no formariam uma classe, apesar de seus repentinos movimentos de rebeldia, uns sob manto religioso, como Canudos, Contestado e Pau de Colher, outros como banditismo rural, a exemplo do cangao. O mesmo teria ocorrido com os comerciantes e os industriais tradicionais, com seus assalariados urbanos, e com a crescente camada de funcionrios de servios pblicos e privados, que aceleraram a urbanizao, a partir da segunda dcada do sculo 20 e durante os anos 1930 e 1940.

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    Segundo a viso acima referida, que desconsidera a classe-em-si e s considera a classe-para-si, a formao das classes sociais teria se dado a partir dos anos 1950, com a formao de trs classes sociais no pas: uma classe mais abastada, uma classe mdia e uma classe baixa. A classe mais abastada seria composta de quatro grupos sociais distintos: 1) os que dirigem diretamente a maquinaria capitalista do pas: grandes empresrios, grandes banqueiros, grandes acionistas, grandes fazendeiros, grandes industriais etc.; 2) os que gravitam em torno desse ncleo principal: diretores, assessores e gerentes de grandes empresas e indstrias em geral, e tambm de donos de empresas que assessoram as maiores; 3) os altos funcionrios do Estado brasileiro: juzes, desembargadores, funcionrios bem situados dentro dos trs poderes, presidentes de empresas estatais, promotores, polticos, professores universitrios bem graduados, funcionrios estatais eleitos, militares de alto escalo etc.; 4) os que sobrevivem dos gastos dos quatro grupos, ou seja, aqueles que prestam servios indiretamente ou atendem diretamente a classe mais abastada, e pelo seu ganho, pertencem a ela. Tendo suas variaes, como profissionais liberais bem qualificados ou que ocupam funes polticas e/ou de direo. Composto ainda por mdicos, advogados, engenheiros e arquitetos conceituados, proprietrios de bares chiques, de clubes, de academias caras, de colgios particulares, de cursos de lnguas conceituados, de construtoras famosas e tradicionais, especialistas etc. Haveria excees, em vista da existncia de famlias nobres (elite tradicional, ilustres, que detinham grande fortuna antigamente), e tambm outras que tambm so relativamente antigas, ilustres e que detiveram grandes fortunas antigamente, mas que no so to tradicionais (antigas) e ilustres quanto as famlias nobres. As pessoas que pertenceriam a este grupo, embora no tenham um ganho mensal altssimo como os empresrios e executivos de sucesso, viveriam na classe alta, teriam um status social elevado e, normalmente, participariam de associaes elitistas. A classe mdia seria constituda por cinco grupos distintos: 1) os trabalhadores que prestam servios diretamente aos grupos mais ricos: cozinheiros-chefes, pilotos e motoristas bem qualificados, vendedores de lojas mais caras, empregadas domsticas mais qualificadas, professores doutorados de colgios e universidades particulares e de cursinhos, seguranas bem qualificados etc.; 2) os profissionais com ensino superior empregados em funes medianas em empresas: chefes em geral, analistas, engenheiros recm formados, plantonistas de clnicas particulares, professores sem doutorado do colegial de colgios privados etc.; 3) os profissionais com ensino superior, funcionrios pblicos em empregos bem situados: mdicos do sistema pblico, advogados e funcionrios concursados;

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    4) os funcionrios de escritrio mais qualificados, de empresas ou do governo: diretores e supervisores de colgios e escolas pblicas, bancrios de postos intermedirios, delegados de polcia em incio de carreira, enfermeiras experientes etc.; 5) os trabalhadores manuais de maior qualificao e os operrios especializados de indstrias pblicas e privadas: mecnicos, eletricistas e encanadores de competncia e renome, metalrgicos, fresadores, instrumentistas, inspetores de qualidade, torneiros mecnicos etc. As classes baixas, por seu turno, seriam formadas por cinco grupos distintos: 1) os que prestam servios a baixos preos s classes mdias: empregadas domsticas pouco qualificadas, cozinheiros pouco qualificados, garons, vendedores de lojas baratas, cabeleireiros mal pagos, pedreiros etc.; 2) os trabalhadores industriais menos (ou no) qualificados: outros operadores industriais; 3) os funcionrios no qualificados de escritrios: aqueles que prestam servios aos que trabalham dentro dos escritrios, tais como os office e motoboys e faxineiros; 4) os funcionrios no qualificados do Estado, como os faxineiros, limpadores de rua, merendeiras, jardineiros de praas pblicas etc.; 5) os trabalhadores rurais de pequenas propriedades familiares. Fora da distribuio de classes acima se encontrariam aqueles que esto desempregados ou aqueles que no possuiriam terras, j que ambos no possuiriam renda. A rigor, essa classificao tem por critrio exclusivo a renda, dela no fazendo parte a riqueza e a propriedade, a no ser ocasionalmente. Em consequncia, a desigualdade social, uma das mais marcantes caractersticas da sociedade brasileira, teria que decorrer exclusivamente do controle da renda disponvel que, no contexto do sistema capitalista, faz parte da distribuio. Mas se tomarmos por base da diviso social o critrio da propriedade dos meios de produo, podemos reconfigurar os atores sociais acima em pelo menos trs grandes classes sociais: 1) Classe proprietria capitalista: proprietrios territoriais rurais, proprietrios territoriais urbanos, proprietrios industriais, proprietrios de bancos e instituies financeiras, proprietrios de sistemas comerciais e de servios, proprietrios agrcolas e rentistas. Nesta classe, que os marxistas e algumas outras correntes de pensamento chamam burguesia, esto includos fundamentalmente os donos da maquinaria capitalista do pas, isto , grandes e mdios empresrios agrcolas e pecurios, banqueiros, acionistas, industriais, comerciantes e de servios. Donos de grandes escritrios de advocacia, hospitais, clnicas, escolas, prdios de aluguel, redes de bares, restaurantes, supermercados, assim como grande nmero de aes, certamente so empresrios capitalistas. Por outro lado, diretores, assessores e gerentes de grandes e mdias empresas capitalistas, altos funcionrios do Estado, juzes, desembargadores, presidentes de empresas estatais, promotores,

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    polticos, professores universitrios bem graduados, militares de alto escalo, mdicos, advogados, engenheiros, arquitetos e outros profissionais liberais, embora profissionalmente recebam salrios, podem ser capitalistas e fazer parte da burguesia se tiverem a propriedade de grandes e mdios meios de produo, no todo ou em parte. Famlias ou pessoas descendentes de elites tradicionais, que detinham fortunas, podem pertencer a essa classe se tiverem aplicado sua fortuna como capital, isto , em meios de produo e fora de trabalho para a reproduo ampliada ou continuada do capital. Se no mais tiverem fortuna a ser transformada em capital, certamente no pertencem a essa classe, embora at possam pensar e agir como se a ela pertencessem. 2) Classe de proprietrios de meios de produo com capacidade de contratar poucos ou nenhum trabalhador, que trabalham com seus prprios meios de produo ou se assalariam como forma de complementar seus meios de produo: micros e pequenos agricultores proprietrios ou posseiros de pequenas parcelas, micros e pequenos industriais e comerciantes, micros e pequenos empresrios de servios, micros e pequenos rentistas. Do ponto de vista profissional, nessa classe, que os marxistas chamam de pequena burguesia, e outras correntes de pensamento chamam de classe mdia, poderiam estar includos mdicos, advogados, engenheiros, arquitetos, professores, agrnomos, mecnicos, eletricistas, barbeiros, chefes de cozinha e inmeras outras profisses, desde que sejam proprietrios de pequenos negcios agrcolas, industriais, comerciais e de servios, onde trabalhem com o auxlio da famlia e/ou de poucos trabalhadores assalariados. Trabalhadores de pequenas propriedades familiares agrcolas, se fizerem parte da famlia, pertencem a essa classe e no classe dos trabalhadores assalariados. Somente pertenceriam a essa classe trabalhadores que prestarem servios diretamente aos grupos mais ricos, como cozinheiros-chefes, pilotos e motoristas bem qualificados, vendedores de lojas mais caras, empregadas domsticas mais qualificadas, professores doutorados de colgios e universidades particulares e de cursinhos, seguranas bem qualificados, profissionais com ensino superior empregados em funes medianas em empresas, profissionais com ensino superior, funcionrios pblicos em empregos bem situados e funcionrios de escritrio mais qualificados, de empresas ou do governo que, alm de assalariados, possurem um pequeno capital, isto , meios de produo atravs do qual tambm obtenham algum tipo de lucro, juros, renda fundiria ou aluguis. 3) Classe trabalhadora sem propriedade de meios de produo: assalariados agrcolas, assalariados industriais, assalariados do comrcio e dos servios pblicos e privados. A essa classe, que os romanos antigos chamavam proletariado, termo mantido pelos marxistas e tambm por outras correntes de pensamento, pertenceriam todos os trabalhadores assalariados que no tm a propriedade de qualquer meio de produo, a no ser sua prpria fora de trabalho, sejam eles trabalhadores que prestam servios diretamente aos grupos mais ricos, profissionais com ensino superior empregados em funes medianas em empresas, profissionais com ensino superior, funcionrios pblicos em empregos bem situados, funcionrios de escritrio mais qualificados, de empresas ou do governo, trabalhadores manuais de maior qualificao, operrios especializados de indstrias pblicas e privadas, empregadas domsticas, cozinheiros, garons, vendedores, cabeleireiros, pedreiros, trabalhadores industriais menos ou mais

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    qualificados, funcionrios de escritrios, funcionrios do Estado e trabalhadores assalariados rurais. Essas classes no so estticas nem estanques. No caso especfico do Brasil, o processo de transformao das antigas classes sociais, herdadas do sistema agrrio, primeiro escravista e, depois, campons agregado, promoveu duas grandes transformaes sociais, aceleradas a partir dos anos 1960, ambas relacionadas com a classe latifundiria antiga, que vivia quase exclusivamente da renda fundiria arrancada do trabalho de parceiros, rendeiros, meeiros e outras categorias de trabalhadores rurais. A classe latifundiria foi modernizada pelo Estado ditatorial, capitalizando sua maior parte e transformando-a numa frao agrria da classe proprietria capitalista, o que se conhece normalmente como agronegcio. Essa classe no vive mais apenas da renda da terra. Possui a propriedade de uma srie de outros meios de produo modernos, como mquinas, equipamentos, sementes melhoradas, gado de alta linhagem etc., e emprega trabalho assalariado, tanto qualificado, como os operadores de mquinas, agrnomos, veterinrios e outros, quanto no qualificado, como os cortadores de cana, coletores de algodo etc. Portanto, obtm lucro e outras rendas permitidas pela propriedade do capital. Uma parte dos latifundirios no se modernizou e continua presente na sociedade brasileira, embora haja uma tendncia crescente de que suas terras sejam apropriadas pelo capitalismo agrcola e que o restante dessa velha classe simplesmente desaparea. A modernizao capitalista da antiga classe latifundiria, por outro lado, expulsou milhes de camponeses agregados das terras em que trabalhavam, dando lugar s mquinas e a trabalhadores assalariados. Seu xodo para as grandes e mdias cidades, em busca de trabalho, num dos maiores movimentos migratrios conhecidos pela histria brasileira, expandiu a favelizao urbana brasileira a nveis nunca vistos. Criou-se, assim, um exrcito de fora de trabalho de baixo custo para o chamado milagre econmico da ditadura militar, fora de trabalho que no foi totalmente absorvida durante aquele milagre. A partir da crise dos anos 1970 e da estagnao econmica que se seguiu, conformou-se ento um imenso exrcito de reserva de fora de trabalho que, na prtica, pode ser considerada uma classe lumpen, descamisada, marg