foucault, michel. verdade e subjetividade

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  • 7/25/2019 FOUCAULT, Michel. Verdade e Subjetividade

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    FOUCAULT, Michel. Verdade e subjectividade (Howison Lectures). Revista de Comunicao elinguagem. n 19. Lisboa: Edies Cosmos, 1993. p. 203-223.

    VERDADE E SUBJECTIVIDADE (HOWISON LECTURES)Michel Foucault

    1 ConfernciaBerkeley, 20 de Outubro de 1980

    (Bem, gostaria em primeiro lugar de vos agradecer pela vossa presena, de que no sei sedeva dizer que por demais numerosa. Por demais numerosa para os que, malogrados, ficaramde fora. Por demais numerosa, em todo o caso, para mim, pois, como o senhor o disse h uminstante, professor Dreyfus, vou apresentar-vos uma, melhor, duas conferncias sobre assuntosque so relativamente tcnicos e, consequentemente, desculpo-me perante quem houveradesejado ouvir aqui afirmaes mais gerais e pertinentes simultaneamente existncia do mundo

    e s suas prprias vidas. Neste p, agradeo pois ao comit das Howison Lectures, o Committeefor Arts and Lectures, o Graduate Council, o departamento de Filosofia, o departamento deFrancs e, acima e no fundo antes de tudo, aos meus amigos Burt Dreyfus e Leo Bersani.

    Ora bem, irei agora principiar.)

    Numa obra consagrada ao tratamento moral da loucura e publicada em 1840, Luria, umpsiquiatra francs, fala da maneira por que tratou um dos seus pacientes, o tratou e, como sepode adivinhar, o curou. Uma manh, leva o seu paciente (chamemos-lhe senhor S.) para umbalnerio. F-lo relatar em detalhe o seu delrio.

    Bem, tudo isso, diz o mdico, no passa de loucura. Prometa-me que nunca mais volta

    a acreditar nisso.O paciente hesita, depois promete.Isso no chega, replica o mdico. J fez promessas semelhantes e no as cumpriu.E liga um chuveiro frio por cima da cabea do paciente.Pois,sim, sim, sou louco, grita o paciente.O chuveiro desligado. O interrogatrio prossegue.Sim, reconheo que sou louco, repete o paciente, mas, acrescenta, porque me est

    a forar a faz-lo. claro, nova chuveirada.Bem, diz o paciente, asseguro-lhe, contudo, que ouvi vozes e vi inimigos minha

    volta. Outro banho de chuveiro.Pois bem, diz o senhor S., admito-o. Tudo isso loucura. Sou louco. E claro, fica

    curado.Fazer com que algum sofrendo de doena mental reconhea que louco, um

    procedimento muito antigo na terapia tradicional. A tal ponto se estava convencido da [p.204]incompatibilidade entre a loucura e o reconhecimento da loucura que, nas obras mdicas dossculos dezassete e dezoito, se encontram muitos exemplos daquilo que se poderiam chamar asterapias da verdade. Os loucos ficariam curados se se lhes conseguisse mostrar que as suasalucinaes no tem relao com a realidade.

    Porm, a tcnica usada pelo psiquiatra francs Luria de todo em todo diferente. Luriano tenta persuadir o seu paciente que as ideias dele so falsas ou irracionais. O que se passa nacabea do senhor S. indiferente a Luria. O mdico deseja obter um acto preciso. A explcita

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    afirmao: Pois, sou louco. fcil, claro, reconhecer aqui a transposio, para o interior daterapia psiquitrica, de procedimentos que durante longo tempo foram usados na instituioreligiosa e tambm na judicial.

    Declarar alto e bom som e de maneira inteligvel a verdade acerca de si prprio isto ,

    confessarfoi durante muito tempo considerado no mundo ocidental quer como uma condiode redeno dos prprios pecados, quer como um item essencial da condenao dos pecadores.

    A estranha terapia de Luria pode ser entendida como um episdio da progressivaculpabilizao da loucura. Mas eu queria antes tom-la como ponto de partida para uma reflexomais geral acerca desta prtica da confisso e acerca do postulado de que cada um, para a suasalvao, precisa de saber to exactamente quanto possvel quem e tambm, o que bastantediferente, que precisa de diz-lo to explicitamente quanto possvel a qualquer outra pessoa.

    A anedota de Luria apenas figura aqui como um exemplo das estranhas e complexasrelaes que nas nossas sociedades se desenvolveram entre a individualidade, o discurso, a

    verdade e a coero. A questo : em que consiste tal obrigao? Em dizer a verdade acerca de siprprio, o que imposto a toda a gente e at aos loucos se quiserem tornar-se pessoas racionais enormais.

    De modo a justificar a ateno que dou quilo que aparentemente um assunto toespecializado, deixem-me voltar um pouco atrs por um momento. Afinal, isto somente ummeio de que vou fazer uso para abordar um tema muito mais geral, a genealogia do sujeitomoderno.

    Nos anos que precederam a segunda guerra mundial e ainda mais depois da guerra, afilosofia em Frana era dominada por aquilo que poderamos chamar a filosofia do sujeito, peloque entendo uma filosofia que v no sujeito de sentido a fundao de todo o conhecimento e o

    princpio de toda a significao. Imperava a transcendncia do ego. A importncia dada a estaquesto era, claro, devida ao impacto de Husserl. Apenas eram conhecidas em Frana as suasMeditaes Cartesianas e a Krisis. Porm, a centralidade encontrava-se tambm ligada aocontexto institucional da universidade francesa. Visto que a filosofia tinha comeado comDescartes, s poderia avanar de um modo cartesiano. Mas temos tambm de levar em conta aconjuntura poltica. Dado o absurdo das guerras, dos morticnios e do despotismo, parecia caberao sujeito individual dar sentido s suas escolhas existenciais. Com o cio e o distanciamento quesucederam guerra, essa nfase no sujeito filosfico deixara de ser evidente por si mesma. Osparadoxos tericos deixavam de poder ser evitados, de tal modo que:

    1) Essa filosofia da conscincia, paradoxalmente, no foi capaz de fundar uma filosofia doconhecimento e especialmente uma filosofia do conhecimento cientfico.2) Essa filosofia do sentido, paradoxalmente, foi incapaz de levar em conta os

    mecanismos formativos de significao e as estruturas de sistemas de sentido.[p.205]Tenho conscincia de que uma outra forma de pensamento reivindicou ter ido

    para alm da filosofia do sujeito, durante os anos de que estou a falar. Tratava-se, claro, doMarxismo. Nem preciso diz-lo. Porm, melhor dizer explicitamente que nem o materialismonem a teoria das ideologias constituram com xito uma teoria da objectividade ou uma teoria dasignificao. O Marxismo apresentou-se a si mesmo como um discurso humanista que iriasubstituir o sujeito abstracto por um apelo ao homem real, ao homem concreto, ao homem no

    alienado, e assim por diante. Devia ter ficado claro, na altura, que o Marxismo era portador deuma fraqueza fundamental: o seu discurso humanista ocultava a realidade poltica do estalinismo,que muitos marxistas nem por isso deixavam de apoiar.

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    Com a displicente transparncia do rebate de conscincia, aquilo a que vs, americanos,chamais o Monday morning quarterback1, deixem-me dizer que havia vias possveisduas viaspossveis de superao dessa filosofia do sujeito. Eram elas uma teoria do conhecimentoobjectivo e uma anlise de sistemas de sentido a que poderamos chamar semiologia.

    A primeira destas vias era a via do positivismo lgico. A segunda era a de uma certacorrente da lingustica, da psicanlise e da antropologia todas geralmente agrupadas sob arubrica do estruturalismo.

    No foram estes os rumos que tomei. Deixem-me proclamar, de uma vez para sempre,que no sou um estruturalista e confesso, com a devida mgoa, que no sou um filsofo analtico:ningum perfeito.

    Esforcei-me por sair da filosofia do sujeito por meio de uma genealogia que estuda aconstituio do sujeito atravs da histria, a qual nos levou moderna concepo do eu. Nemsempre esta foi uma tarefa simples, visto que muitos historiadores preferem uma histria de

    processos sociais em que a sociedade desempenha o papel do sujeito e muitos filsofos preferemum sujeito sem histria. Isto no me impediu nem de usar o mesmo material que usaram certoshistoriadores sociais, nem de reconhecer a minha dvida terica para com esses filsofos que, talcomo Nietzsche, colocaram a questo da historicidade do sujeito.

    Para esta espcie de investigao, a histria da cincia constitui um ponto de vistaprivilegiado. O que poderia parecer paradoxal. Afinal, a genealogia do sujeito no ocorre nointerior de um campo de conhecimento cientfico, como se mais nada fssemos para almdaquilo que o conhecimento racional nos poderia dizer acerca de ns prprios. Ao mesmo tempoque sem dvida um importante terreno de verificao para a teoria do conhecimento, assimcomo para a anlise de sistemas de sentido, a historia da cincia tambm cho frtil para se

    estudar a genealogia do sujeito. H duas razes para que assim seja.Todas as prticas pelas quais o sujeito definido e transformado so acompanhadas pela

    formao de certos tipos de conhecimento e, no Ocidente, por uma variedade de razes, oconhecimento tende a ser organizado em torno de formas e de normas mais ou menos cientficas.H tambm uma outra razo talvez mais fundamental e mais especfica das nossas sociedades.Reside no facto de que uma das mais importantes obrigaes morais ser, para qualquer sujeito, oconhecer-se a si prprio. A obrigao dos indivduos verdade e uma organizao cientfica doconhecimento so as duas razes pelas quais a histria do conhecimento constitui um ponto de

    vista privilegiado para a genealogia do sujeito. Daqui se infere, por conseguinte, que no estou a

    esforar-me por fazer histria das cincias em geral, mas to s daquelas que almejam elaborarum conhecimento cientfico do sujeito.[p.206]Uma outra consequncia o facto de que no estou aqui a tentar medir o valor

    objectivo dessas cincias, nem a esforar-me por saber se podem tornar-se universalmente vlidas.Essa tarefa para um historiador da epistemologia. Dedico-me, antes, a uma histria da cinciaque, em certa medida, uma histria regressiva que procura descobrir as prticas discursivas,institucionais e sociais a partir das quais essas cincias irromperam. Tratar-se-ia aqui de umahistria arqueolgica.

    Finalmenteterceira conseqncia, este projecto procura descortinar o ponto em queessas prticas se tornam em tcnicas reflexivas coerentes com objectivos definidos, o ponto em

    1Expresso americana eventualmente equivalente ao portugus treinador de bancada e que se aplica a todo oespectador que se dedica a comentrios acerca das tcticas dos jogos de futebol americano; por extenso, todo ocomentador ocioso de situaes em que de facto no intervm como participante activo.

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    que um discurso particular emergiu de tais tcnicas e passou a ser visto como verdadeiro, o pontoem que elas se ligam obrigao de procurar a verdade e dizer a verdade.

    Em suma, a finalidade do meu projecto construir uma genealogia do sujeito. O mtodo uma arqueologia do conhecimento e o domnio exacto da anlise aquilo a que eu daria o

    nome de tecnologias. Significando isto a articulao de certas tcnicas e de certos tipos dediscurso acerca do sujeito.

    Gostaria de acrescentar uma palavra final sobre a significao prtica desta forma deanlise. Para Heidegger, foi por via de uma crescente obsesso com as technae, tidas por nicomeio de acesso a uma compreenso dos objectos, que o Ocidente perdeu contacto com o ser.Invertamos a questo e perguntemos que tcnicas e prticas deram forma ao conceito ocidentalde sujeito, conferindo-lhe a sua caracterstica clivagem entre verdade e erro, liberdade econstrangimento. Afigura-se-me que aqui que encontraremos a possibilidade real de construiruma histria daquilo que fizemos e, ao mesmo tempo, uma dimenso poltica. Por esta expresso

    de dimenso polticaentendo eu uma anlise relativa quilo que estamos dispostos a aceitar nonosso mundo, a recusar e a mudar, tanto em ns prprios como nas nossas circunstncias.Em suma, trata-se de uma questo de demandar um outro tipo de filosofia crtica. No

    seria uma filosofia crtica que se esforasse por determinar as condies e os limites do nossopossvel conhecimento do objecto, mas sim uma filosofia crtica que busca as condies e asindefinidas possibilidades de transformar o sujeito, de nos transformarmos a ns prprios.

    De volta ao presente, levei por diante este projecto de duas maneiras. Tratei dasmodernas elaboraes tericas que se ocuparam do sujeito em geral. Num livro anterior, tenteianalisar a teoria do sujeito enquanto ser que fala, que vive e que trabalha. Tratei tambm da maisprtica compreenso formada em instituies tais como os hospitais, os manicmios e as prises,

    nas quais certos sujeitos se tornaram objectos de conhecimento e, simultaneamente, objectos dedominao.

    Desejo agora estudar aquelas formas de compreenso que o sujeito cria acerca de siprprio. Tais formas de autocompreenso so importantes, por exemplo, para se analisar amoderna experincia da sexualidade. Mas como eu principiei por este ltimo tipo de problema,fui obrigado a mudar de ideias em vrios pontos. Permitam-me que apresente, por fim, umaespcie de autocrtica. Uma espcie, claro.

    Ao que parece, e de acordo com algumas sugestes de Habermas, podem-se distinguirtrs grandes tipos de tcnicas: as que nos permitem produzir, transformar e manipular coisas; em

    segundo lugar, as tcnicas que nos permitem subordin-las a certos fins ou objectivos. Quer dizer:1) tcnicas de produo, 2) tcnicas de significao e 3) tcnicas de dominao. claro, se quisermos estudar a histria das cincias naturais til, seno mesmo

    necessrio, levar em conta tcnicas de produo e tcnicas semiticas. Mas, visto que [p.207]omeu projecto se ocupava do conhecimento do sujeito, pensei que as tcnicas de dominaofossem as mais importantessem qualquer excluso das demais.

    Ao analisar a experincia da sexualidade e a histria da experincia da sexualidade, fiqueicada vez mais consciente de que, em todas as sociedades, existem outros tipos de tcnicas,tcnicas que permitem aos indivduos efectuarem um certo nmero de operaes sobre os seuscorpos, sobre as suas almas, sobre o seu prprio pensamento, sobre a sua prpria conduta, e isso

    de tal maneira a transformarem-se a eles prprios, a modificarem-se, ou a agirem num certoestado de perfeio, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural e assim por diante.Chamemos a estes tipos de tcnicas as tcnicas ou tecnologias do eu.

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    Parece-me que, se quisermos analisar a genealogia do sujeito nas sociedades ocidentais,temos de levar em conta no apenas as tcnicas de dominao, mas tambm as tcnicas do eu.Digamos que se tem de levarem conta a interaco entre estes dois tipos de tcnicas, os pontosem que as tecnologias de dominao dos indivduos uns sobre os outros recorrem a processos

    pelos quais o indivduo age sobre si prprio e, em contrapartida, os pontos em que as tcnicas doeu so integradas em estruturas de coero.

    O ponto de contacto do modo como os indivduos so manipulados e conhecidos poroutros encontra-se ligado ao modo como se conduzem e se conhecem a si prprios. Podechamar-se a isto o governo. Governar as pessoas no sentido lato do termo, tal como se dizia, naFrana no sculo XVI do governar as crianas, ou do governar a famlia, ou governar almas, no uma maneira de forar as pessoas a fazer o que o governador quer. sempre um difcil e

    verstil equilbrio de complementaridade e conflito entre tcnicas que asseguram a coero eprocessos por meio dos quais o eu construdo e modificado por si prprio.

    Quando estudava os manicmios, as prises, etc., talvez tenha insistido demasiadamentenas tcnicas de dominao. Aquilo a que podemos dar o nome de disciplina algo de realmenteimportante neste tipo de instituies. Porm, trata-se apenas de um aspecto da arte de governarpessoas nas nossas sociedades. No devemos entender o exerccio do poder como pura violnciaou coero estrita. O poder consiste em relaes complexas. Essas relaes implicam umconjunto de tcnicas racionais e a eficincia delas deve-se subtil integrao de tecnologias decoero e de tecnologias do eu. Creio que temos de nos livrar de um esquema mais ou menosfreudiano. Conhecem o esquema da interiorizao da lei atravs do meio que o sexo.Felizmente, de um ponto de vista terico, e talvez infelizmente de um ponto de vista prtico, ascoisas so muito mais complicadas. Em resumo, tendo estudado o campo do governo tomando

    como ponto de partida tcnicas de dominao, gostaria, em termos futuros, de estudar o governo,especialmente no campo da sexualidade, partindo das tcnicas do eu.

    Entre tais tcnicas, aquelas que esto orientadas para a descoberta e a formulao daverdade a respeito de si prprio so extremamente importantes. Isto acontece porque para ogoverno das pessoas nas nossas sociedades, todos tinham no s que obedecer mas tambm queproduzir a verdade acerca de si prprios. O auto-exame, o exame de conscincia e a confissoencontram-se entre os mais importantes desses procedimentos. Gostaria de mostrar atransformao, atravs desses dois procedimentos, do velho preceito deifico conhece-te a tiprprio, gnothi heauton, no sentido do preceito monstico diz-me cada uma das tuas faltas,

    omnes cogitationes. Este preceito nascido e inicialmente desenvolvido nas instituies monsticas,[p.208] desempenhou, creio eu, um grande papel na constituio da subjectividade moderna.Com este preceito principia aquilo que poderamos chamar a hermenutica do eu. Esforcei-mehoje por expor o modo como a confisso e o auto-exame eram concebidos nas filosofias grega elatina. E amanh tentarei mostrar-vos em que que eles tornam no Cristianismo primitivo. Ottulo destas duas conferncias poderia ter sido, e deveria ter sido, com efeito: Sobre o comeoda hermenutica do eu.

    bem sabido que o objectivo primordial da escola grega de filosofia no consistia naelaborao e no ensino de uma teoria. O objectivo, como sabem, era a transformao doindivduo: como conferir ao seu ser uma qualidade que lhe permitisse viver diversamente, melhor,

    de maneira mais feliz que outras pessoas.Que lugar ocupava nisto a confisso? primeira vista e em todas as prticas filosficas

    antigas, a obrigao de dizer a verdade acerca de si prprio ocupa bem minguado espao. E isto

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    por duas razes, ambas as quais permaneceram vlidas pela antiguidade grega e helenstica fora. Aprimeira dessas duas razes est em que o objectivo do treino filosfico armar o indivduo comum certo nmero de preceitos que lhe permitem conduzir-se a si prprio em todas ascircunstncias da vida sem perder o domnio de si prprio ou a tranquilidade de esprito, a pureza

    do corpo ou da alma, e assim por diante. deste princpio que advm a importncia do discurso do mestre. Reside ela em falar,

    explicar, persuadir. O mestre tem de dar ao discpulo um cdigo universal de conduta para atotalidade da sua vida. Assim, a verbalizao tem lugar do lado do mestre e no do lado dodiscpulo. A segunda razo, pela qual a obrigao de confessar no tem uma demasiadaimportncia na direco da conscincia clssica, est no facto de a ligao ao mestre sercircunstancial, ou, em todo o caso, provisria. uma ligao entre duas vontades uma relaoque no implica uma completa e definitiva obedincia. O discpulo solicita ou aceita o conselhode um mestre ou de um amigo de maneira a suportar uma provao, uma perda, um exlio, um

    revs da fortuna; ou ento coloca-se cada um sob a sua direco durante um certo perodo daprpria vida, frequentes vezes, mas no necessariamente, quando se jovem. E isto de maneira aque um dia se seja capaz de se comportar autonomamente e no ter j necessidade de conselho.

    A antiga direco do sujeito tendia para a autonomia do dirigido.Nestas condies, podemos compreender que a necessidade de se explorar a si prprio

    com exaustiva profundidade no se faz presente. No indispensvel dizer tudo acerca de siprprio, revelar os mnimos segredos acerca de si prprio de maneira a que o mestre possaexercer completo poder sobre cada um. A exaustiva e contnua apresentao de si prprio sob oolhar de um director todo-poderoso no constitui um trao essencial desta tcnica de direco.

    Mas, apesar desta orientao geral que levou a pr nfase na confisso, verificamos que,

    para o Cristianismo, existem j tcnicas elaboradas de descobrir e formular a verdade acerca de siprprio. O papel delas, ao que parece, tornou-se cada vez mais importante. A crescenteimportncia dessas tcnicas est indubitavelmente ligada ao desenvolvimento da vida comunitrianas escolas filosficas, como acontecia com os pitagricos e os epicuristas. Est tambm ligadaao valor atribudo ao modelo mdico na filosofia epicurista ou estica.

    Uma vez que em to curto espao de tempo no sequer possvel fazer um esboo destaevoluo da civilizao grega e helenstica, lanarei mo de duas [p.209]passagens de um filsoforomano, Sneca. Podem ser considerados como muito bons testemunhos daquela prtica deauto-exame e confisso, tal como existia com os esticos do perodo imperial na poca do

    nascimento do cristianismo.A primeira passagem, encontramo-la no De Ira. Ei-la: O que poderia haver de mais belo,escreve Sneca, do que conduzir uma inquirio sobre o dia de cada um? Que sono poderia sermelhor do que aquele que se segue a esse passar em revista das nossas aces? Quanta calma,compenetrao e liberdade, quando a alma recebeu o seu quinho de louvor e de reprovao e sesubmeteu ao seu prprio exame sua prpria censura. Em segredo, passa em juzo a suaprpria conduta.

    Exero esta autoridade sobre mim prprio e cada dia me obrigo a dar testemunhoperante mim prprio. Quando amorteo a luz minha candeia e a minha mulher enfim fica emsilncio, penso de mim para mim e tomo a medida dos meus actos e das minhas palavras. Nada

    escondo de mim mesmo. Nada me poupo. Com efeito, porque haveria eu de recear o que querque fosse de entre todas as minhas faltas, quando posso velar para que no reincida? Hoje vou

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    perdoar-te. Numa certa discusso falaste agressivamente demais. No corrigiste aquele a quemcensuravas. Ofendeste-o, e assim por diante.

    H algo de paradoxal ao vermos os esticos, como por exemplo Sneca, mas tambmSexto, Epicteto, Marco Aurlio, a concederam tamanha importncia ao exame de conscincia

    quando sabemos que, de acordo com os termos da doutrina estica, todas as faltas, como sabido, so iguais. No deveria pois ser necessrio interrogarem-se a si prprios em cada umadelas.

    Vamos porm olhar para o texto um pouco mais de perto. Primeiro, Sneca emprega umvocabulrio que, primeira vista, aparenta ser, acima de tudo, judicirio. Por exemplo, ele usapalavras tais como cognoscere. Isso tipicamente judicial. Parece portanto que o sujeito , face a siprprio, simultaneamente o juiz e o acusado. No exame, Sneca ou o sujeito divide-se a siprprio. Sneca diz que speculatorde si mesmo, que se inspecciona a si mesmo, que examinaconsigo mesmo o dia passado. E que toma a medida das coisas ditas e feitas, usando a palavra

    remeteri.A respeito de si prprio, ele no um juiz que se v na contingncia de punir, mas antesum administrador que, uma vez levado a cabo o trabalho, ou findado o trabalho do ano, lhe faz obalano, faz armazm das coisas e v se tudo foi feito como devia ser.

    Sneca um permanente administrador de si prprio, mais do que um juiz do seu prpriopassado. Os exemplos das faltas cometidas por Sneca e pelas quais se censura a si prprio somuito significativos. Por exemplo, criticou algum e, em vez de o corrigir, ofendeu. Ou entocensura-se a si prprio por ter discutido com pessoas de qualquer modo incapazes de ocompreender. Essas faltas, como ele prprio diz, so erros. Porqu erros? Tanto pelo facto deno ter em mente os fins que o sbio devia propr-se a si mesmo, como pelo facto de no ter

    aplicado de maneira correcta as regras de conduta que daqueles devem ser deduzidas. As faltasso erros na medida em que so maus ajustamentos entre fins e meios.

    Significativo tambm o facto de Sneca no recordar tais faltas de maneira a punir-se asi mesmo. Esta memorizao tem por objecto uma reactivao de princpios filosficosfundamentais; e no reajustamento da respectiva aplicao na confisso crist o penitente serobrigado a memorizar as leis de maneira a descobrir os seus pecados.

    [p.210]Porm, no exerccio estico, no auto-exame de Sneca, o sbio tem de memorizaros seus actos de maneira a reactivar as regras. Pode pois caracterizar-se esse exame em poucaspalavras:

    Um no se trata de descobrir uma verdade oculta no sujeito, antes uma questo derelembrar uma verdade esquecida pelo sujeito.Doisaquilo que o sujeito esquece no a si mesmo, nem a sua prpria natureza, nem a

    sua origem, nem a afinidade sobrenatural. O que o sujeito esquece aquilo que deveria ter feito,uma coleco de regras de conduta que aprendeu.

    Trs a recoleco de erros cometidos durante o dia serve para medir a distncia quesepara aquilo que foi feito daquilo que deveria ter sido feito.

    Quatroo sujeito que pratica este exame de si prprio no o campo de operaes deum processo mais ou menos obscuro que h que decifrar. Eis o ponto em que as regras deconduta se juntam umas s outras e se arquivam sob a forma de recordaes. ao mesmo tempo

    ponto de partida para aces mais ou menos em conformidade com essas regras. O sujeitoconstitui o ponto de interseco entre um conjunto de recordaes que tm de ser trazidas at aopresente e actos que h que regular. O exame encontra a sim o seu lugar lgico entre os outros

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    exerccios esticos constituindo todos algo a incorporar numa atitude constante um cdigode aces e reaces para qualquer situao que possa ocorrer. Tais exerccios so, em primeirolugar, uma contnua leitura dos manuais de preceitos. No que ao presente respeita, tudo. Oexame dos males que poderiam surgir na vida, os premeditatio malorum. E a est o que respeita ao

    possvel. A enumerao, diria, das tarefas a cumprir durante o dia e isto para o futuro. Efinalmente o vespertino exame de conscincia. E a temos o que ao passado respeita.

    Como se pode ver, o eu no neste caso um campo de dados subjectivos que h quedescobrir. O eu submete-se a si prprio ao julgamento de actos possveis ou reais, passados oufuturos.

    Em seguida ao exame de conscincia, o qual constitui uma espcie de confisso a siprprio, gostaria de falar da confisso a outrem. Quero eu dizer com isto a exposio detalhadada alma que cada um faz a outrem, o qual pode ser um amigo, um conselheiro, um guia. Esta era

    uma prtica desenvolvida por diversas escolas filosficas, como a epicurista e a estica.Um outro texto de Sneca pode tambm servir como um exemplo desta prtica deconfisso. Refiro-me ao incio do tratado De Tranquilitate animi. Sereno, um jovem amigo deSneca, vem ter com ele para lhe pedir conselho. Trata-se muito explicitamente de uma consultamdica sobre o seu prprio estado de alma. Escreve Sereno a Sneca: porque no haveria eu dete confessar a verdade como a um mdico? No me sinto doente, a bem dizer, mas tambm nome sinto inteiramente de boa sade.

    Sereno experimenta a respeito de si prprio um mal-estar, como se estivesse num barcoque no avana mas se v atirado de um lado para outro pelo seu balouar. Receia permanecer nomar nestas condies vista da terra firme e das virtudes que se mantm inacessveis.

    De maneira a escapar a este estado, Sereno decide pois confessar a verdade a Sneca. Mas.por meio dessa confisso, por meio dessa descrio do seu prprio estado, pede a Sneca para lhedizer a verdade sobre esse seu estado. Ao mesmo tempo, Sereno confessa a verdade e tem faltade verdade.

    [p.211] Primeiro ponto: ele confessa a verdade. Diz que quer verum facere confessarverdade. E o que esta verdade, este verum? Pensamentos, faltas secretas, desejos vergonhosos?De modo nenhum.

    O texto surge-nos como um acumular de pormenores relativamente pouco importantes.Por exemplo, Sereno explicou que usa a baixela herdada de seu pai, que facilmente se exalta

    quando profere discursos em pblico, e por a fora.Sob esta aparente desordem, porm, fcil reconhecer trs domnios distintos: o dasriquezas, o da vida poltica e o da glria; adquirir riquezas, participar nos assuntos da cidade,ganhar a opinio pblica. So estes os trs tipos de actividade possvel para um homem livre. Soestas as trs questes morais normalmente colocadas pelas maiores escolas filosficas da poca.O quadro do relato de Sereno no pois definido pelo verdadeiro curso da sua existncia, nempor uma teoria da alma ou dos seus elementos, mas pela classificao dos diferentes tipos deactividade que cada um pode exercer e dos fins que cada um pode perseguir. Em cada um destescampos, Sereno revela a sua atitude por intermdio da enumerao daquilo que lhe agrada edaquilo que lhe desagrada. A expresso placet ni placet o fio condutor da anlise. Por exemplo,

    agrada-lhe fazer favores aos seus amigos. Agrada-lhe comer frugalmente. Porm, o espectculodo luxo alheio agrada-lhe. Tambm lhe d prazer enfatuar o seu estilo oratrio, e por a fora.

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    Ao expor assim o que lhe agrada, Sereno no procura revelar a si prprio os seus desejosprofundos. uma questo de indicar, to exactamente quanto possvel, aquilo a que se encontraainda apegado e aquilo de que j se desprendeu, em que medida que livre e de que coisasexteriores dependente.

    O verum facere que a si mesmo prope no consiste no trazer luz do dia profundossegredos. antes em termos dos laos que o prendem a coisas sobre as quais no tem domnio. uma espcie de inventrio de liberdade no quadro de um cdigo de aces. No umaenumerao de faltas passadas. uma folha de balano de dependncias.

    Temos de ir mais longe, porm. Sereno faz esta confisso no apenas a fim de expor o verdadeiroestado da sua alma, mas tambm de aprender com Sneca a verdade acerca de si prprio. E entoque espcie de verdade esta? Sereno necessita e pede que Sneca lhe d um diagnstico: isso,de facto, o que Sereno diz e isso que Sneca lhe d. Todavia esse diagnstico no consiste emdizer eis o que tu s, so estes os secretos males de que padeces. Sneca contenta-se em dizer

    no creias que s um homem doente que no se consegue curar. s um homem que j estevedoente e que no s apercebe que foi curado.Sneca ajuda Sereno a situar-se a si prprio no caminho que deveria conduzi-lo. Ele

    estabelece exactamente o rumo do barco. Por si s, este diagnstico , como se pode ver, muitocurto e ilusivo.

    Mas esta to s a parte mais pequena daquilo que Sneca diz. O tratado De Tranquilitateanimidiz muito mais do que isso. Que espcie de resposta d o tratado de Sneca s necessidadesde Sereno? Uma teoria filosfica? De modo algum. Uma nova exposio de preceitos morais? claro que no disso que Sereno tem falta. Sereno mostrou na sua confisso que conhece muitobem os grandes princpios morais que so necessrios a uma vida filosfica. A verdade de que

    Sereno precisa no um conhecimento complementar. algo acrescentado ao conhecimentoque ele possui, ao conhecimento dos preceitos morais. Este acrescento quilo que j [p.212]conhecido no um conhecimento; uma fora. uma fora capaz de transformar o puroconhecimento e a simples conscincia num autntico modo de vida. o que Sneca tenta fazer. o que Sneca transmite a Sereno quando usa um conjunto de argumentos persuasivos,demonstraes, exemplos, de modo no a descobrir uma verdade ainda desconhecida no interiorde Sereno, mas a explicar, se assim posso dizer, em que medida a verdade verdadeira. Odiscurso de Sneca no tem por objectivo acrescentar alguns princpios tericos de fora decoero provindos de alhures. O discurso de Sneca visa transformar a verdade numa fora

    vitoriosa e incoercvel. Sneca tem de dar um lugar verdade como uma fora. Da vriasconsequncias.Neste jogo entre a confisso de Sereno e a consulta a Sneca, a verdade no definida

    pela sua correspondncia realidade, mas por uma fora inerente aos princpios e que tem de serdesenvolvida no discurso. Esta verdade no algo que se encontra oculto por detrs ou sob aconscincia na parte mais profunda e obscura da alma. algo que se encontra em frente doindivduo como ponto de atraco, uma espcie de plo magntico que o impele em direco aum objectivo. Esta verdade no se obtm por meio de uma explorao analtica daquilo que sesupe ser real no indivduo. Esta verdade obtida pela retrica e pela explanao. De que vale elapara quem queira seguir uma vida de sbio?

    A confisso no est orientada no sentido da individualizao de Sereno, do discpulo, oupara a descoberta de caractersticas pessoais. A confisso est orientada para a constituio do eu,

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    o qual deveria ser, ao mesmo tempo e sem qualquer descontinuidade, sujeito de conhecimento esujeito de vontade.

    Se o papel da confisso e da consulta dar lugar verdade como uma fora, fcil compreender que o auto-exame tem quase o mesmo papel. Vimos que, se Sneca relembra os

    seus erros cada noite, para memorizar os preceitos morais da conduta e a memria no senoa fora da verdade quando est permanentemente presente e activa na alma.

    Uma permanente memria no indivduo e no seu discurso interior, uma retricapersuasiva no conselho do mestreso estes os aspectos da verdade considerados como foras.

    Podemos ento concluir que o auto-exame e a confisso, na filosofia antiga, poderiam serconsiderados como jogos de verdade, e como tal importantes, mas que o objectivo deste jogo de

    verdade no era descobrir uma realidade secreta no interior do indivduo. O objectivo deste jogode verdade era abrir no indivduo um espao onde a verdade pudesse surgir e actuar como umafora real atravs da presena da memria e da eficincia do discurso. Podemos ver que uma tal

    prtica de exame e de confisso permanece no interior do quadro daquilo que os gregos durantemuito tempo chamaram aglumin.O termoglumindesigna a unidade de vontade e conhecimento. Designa tambm um breve

    naco de discurso, uma sentena, umas poucas linhas nas quais a verdade surge em toda a suafora e fica gravada nas almas dos comuns mortais.

    Na primitiva forma da filosofia grega, os poetas e os adivinhos contavam a verdade aoscomuns mortais atravs desta espcie degnome. Osgnomeeram muito curtos, muito imperativos eto profundamente iluminados pela luz poltica que era impossvel esquecermos ou escapar aoseu poder.

    Bem, penso que se pode ver que o auto-exame e a confisso, tal como os encontramos

    por exemplo em Sneca, mas tambm em Marco Aurlio, Epicteto, e [p.213]por a fora, at totarde como o sculo I, o auto-exame e a confisso eram ainda uma espcie de desenvolvimentodestes gnome. Portanto, poderamos chamar gnomeum eu do tipo de eu que se prope comomodelo e alvo pela filosofia antiga grega e latina um eu em que a fora da verdade tem de seruma com a forma da vontade.

    Em suma, o eu tem de ser constitudo atravs da fora da verdade. Esta fora reside naatitude mnemnica do indivduo e na qualidade de retrica do discurso do mestre. Estasdependem em parte de artes da memria e de artes de persuaso. Por isso, no mundo antigo, astecnologias do eu no se encontram ligadas a uma arte da interpretao, mas a artes tais como a

    mnemnica e a retrica.A observao de si, a interpretao de si, a hermenutica de si no interviro nastecnologias do eu antes do Cristianismo. E esse o ponto que me esforarei por lhes explicaramanh.

    Muito obrigado.

    2a ConfernciaBerkeley, 21 de Outubro de 1980

    Bem, algumas pessoas pediram-me para fazer um breve resumo daquilo que disse na noitepassada. Tentarei faz-lo como se se tratasse de uma boa srie de televiso. O que aconteceu, pois,no primeiro episdio? Muito poucas coisas importantes. Tentei explicar porque que estava

    interessado na prtica do auto-exame e da confisso. Estas duas prticas parecem-me constituirbons testemunhos de um problema maior, que a genealogia do eu moderno. Essa genealogiatem sido obsesso minha desde h anos porque uma das vias possveis para nos livrarmos de

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    uma filosofia tradicional do sujeito. Gostaria de fazer o ponto dessa genealogia a partir daperspectiva das tcnicas. Entre tais tcnicas do eu, a mais importante nas sociedades modernas ,penso eu, aquela que tem a ver com a anlise interpretativa do sujeito, com a hermenutica do eu.Como se formou esta hermenutica do eu? Eis o tema das duas conferncias. A noite passada,

    falei acerca das tcnicas do eu gregas e romanas, ou pelo menos acerca de duas dessas tcnicas, aconfisso e o auto-exame. facto que encontramos a confisso e o auto-exame muitofrequentemente nas filosofias helenstica e romana tardias. Sero elas os arqutipos da confisso edo auto-exame cristos? Sero elas as nicas formas da moderna hermenutica do eu? Tenteimostrar que elas so muito diferentes disso. A finalidade delas no , penso eu, decifrar uma

    verdade oculta nas profundezas do indivduo. O objectivo delas outra coisa. dar fora verdade no indivduo. O objectivo delas constituir o eu como unidade ideal da r vontade e daverdade.

    Ora bem, voltemo-nos para o cristianismo como bero da hermenutica ocidental do eu.

    Como toda a gente sabe, o cristianismo uma confisso. Quer isso dizer que o cristianismopertence a um tipo muito especial de religio: aquele que impe aos seus seguidores a obrigaode verdade. Tais obrigaes so numerosas no cristianismo: por exemplo, obrigaes depermanecer fiel a um conjunto de proposies que constituem um dogma ou obrigaes deconsiderar certos livros como uma permanente fonte de verdade; obrigaes tambm, pelomenos no ramo catlico do cristianismo, de aceitar as decises de certas autoridades em matriade verdade; obrigaes ainda, no apenas de acreditar em certas coisas mas tambm de mostrarque se acredita nelas. Todo o cristo obrigado a manifestar a sua f. [p.214] Todavia, ocristianismo exige outra forma de verdade uma obrigao de verdade muito diferente daquelasque acabei de mencionar. Cada pessoa tem o dever de saber quem , de saber o que acontece no

    interior de si prpria, de saber as faltas que pode ter cometido, de saber as tentaes a que estexposta e, mais ainda, cada um obrigado a dizer estas coisas a outras pessoas e a assim darpblico testemunho contra si prprio.

    Algumas observaes: estes dois conjuntos de obrigaoos que dizem respeito f, aolivro, ao dogma, e os que dizem respeito ao eu, alma, ou ao corao esto ligados uns aosoutros. Pressupe-se que um cristo seja amparado pela luz da f se se quiser explorar a siprprio. Em contrapartida, o acesso verdade da f no concebvel sem uma purificao daalma. Como disse Agostinho numa frmula repleta de significado, Quid facit veritatem? venteautem. Facere veritatem. Significa isto fazer verdade em si mesmo e venire ad lucem, aceder luz.

    Ora bem, fazer verdade em si prprio (facere veritatem) e aceder luz (venire ad lucem) so doisconceitos fortemente ligados.No budismo, estas duas relaes com a verdade, venire ad lucem e facere veritatem, esto

    igualmente ligadas, como sabem. Contudo, encontraram-se ligadas de tal maneira que quase seidentificavam. Descobrir a verdade no interior de si prprio, decifrar a verdadeira natureza e aorigem autntica da alma eram considerados pelos gnsticos como algo que vinha luz. Se o eugnmico dos filsofos gregos, de que falei ontem noite, tinha de ser construdo como umaidentificao entre a fora da verdade e a forma da vontade, poderamos dizer que h um eugnstico. E o eu gnstico que podemos encontrar descrito nos textos de Tom Evangelista. Esteeu gnstico tinha de ser descoberto no indivduo, mas como uma parte do esquecido lampejo da

    primitiva luz.Em contraste, uma das principais caractersticas do cristianismo ortodoxo, uma das

    principais diferenas entre o cristianismo e o gnosticismo, uma das principais razes da

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    desconfiana em relao aos msticos nas religies crists e um dos mais constantes traoshistricos desta religio crist, consiste no facto de aqueles dois sistemas de obrigao de verdade

    um virado para o acesso luz e outro virado para o fazer verdade no interior de cada um terem sempre mantido uma relativa autonomia. Mesmo aps Lutero, mesmo no protestantismo,

    os segredos da alma, os mistrios da f, o eu e o livro no so iluminados no cristianismoexactamente pela mesma luz. Exigem mtodos diferentes e pem em aco tcnicas especficas.Ponhamos de parte a longa histria da sua relao complexa e frequentemente conflitual antes edepois da Reforma.

    Gostaria esta noite de focar a ateno no segundo daqueles dois conjuntos, que aobrigao imposta a todo o cristo de manifestar a verdade acerca de si mesmo. Em vez deconsiderar o cristianismo como a religio do livro que tem de ser interpretado, eu gostaria deconsiderar o cristianismo como a religio do eu que tem de ser decifrado. Por outras palavras, oLivro grego por excelncia, a Ilada e a Odissia, constitua j, antes do cristianismo, matria de

    interpretao para os prprios gregos. Embora o eu grego no fosse matria de interpretao, osfilsofos gregos praticavam a confisso e o auto-exame.Quando falamos de confisso e auto-exame no cristianismo, claro que temos em mente

    o sacramento da penitncia e a confisso catlica dos pecados. Contudo, estas artes sosobretudo inovaes tardias no cristianismo e os cristos dos primeiros [p.215] sculosconheciam formas completamente diferentes de revelar a verdade acerca de si prprio. Essasformas so, creio eu, decisivas se quisermos compreender como ter principiado a hermenuticado eu no Ocidente.

    No entrarei nas discusses que tiveram lugar e que prosseguem ainda acerca dapenitncia. Quanto ao progressivo desenvolvimento destes direitos penitenciais no cristianismo

    primitivo, gostaria to s de sublinhar um facto fundamental. A penitncia nos primeiros sculosdo cristianismo no um acto determinado. A penitncia um estado que apresenta vriascaractersticas. A funo deste estado evitar a expulso definitiva da Igreja de um cristo quetenha cometido um ou vrios pecados graves. Como penitente ele excludo de muitas dascerimnias e direitos colectivos, mas no deixa de ser um cristo. Por meio deste estado ele podeobter a sua reintegrao.

    O estado pois uma questo a longo prazo. Ele afecta muitos aspectos da vida, tais comoobrigaes de abstinncia, regras sobre a indumentria, directivas acerca das relaes sexuais. Oindivduo fica marcado a tal ponto por este estado, que mesmo aps a sua reconciliao

    continuar a sofrer um certo nmero de proibies. Por exemplo, no ser capaz de se tornarpadre.Ora, entre os elementos que constituem este estado, a obrigao de facere veritatem, como

    diria Agostinho, de manifestar a verdade, fundamental. Por manifestar a verdade no queroexprimir iniciao nos pecados. Emprego uma expresso muito mais imprecisa e obscura:manifestao da verdade. Com efeito, para designar o jogo de verdade, na ignorncia dapenitncia, a patrstica grega usava o termo enigmtico de exomolotatise os autores latinos usavamfrequentemente a palavra grega exomologesis, sem qualquer traduo. O que significa este termo?Num sentido muito geral, esta palavra refere-se ao reconhecimento do facto. O que nos leva

    verdade de facto. Penso que as coisas podem ser representadas esquematicamente da seguinte

    maneira: quando um pecador busca penitncia, apresenta ao bispo as razes do seu pedido.Explica as faltas que cometeu. Esta apresentao, em qualquer caso, devia ser extremamentebreve e no uma parte da prpria penitncia. Precedia a penitncia.

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    Na outra ponta do procedimento da penitncia, quando fosse chegado o momento dareintegrao, tinha lugar um episdio que o texto regularmente chamava exomolotasis. Algumasdescries so muito precoces e algumas muito tardias, mas so quase idnticas. Tertuliano, porexemplo, descreve a cerimnia desta maneira: o penitente leva a cabea coberta com um leno e

    cinzas. Est andrajosamente vestido. levado pela mo e conduzido igreja. Prostra-se peranteas vivas e os sacerdotes. Ergue-lhes as pontas das vestes. Beija-lhes os joelhos.

    Muito mais tarde, Jernimo descreve de igual modo a penitncia de Fabola, que tinhacasado segunda vez, perante o seu primeiro marido. E cito: nos dias que precederam a Pscoa,Fabola podia ser encontrada entre as fileiras dos penitentes. O bispo, o padre e as pessoaschoravam com ela. De cabelos desgrenhados, face plida, mos sujas, a cabea coberta de cinzas,ela fustigava o peito nu e a face com que tinha seduzido o seu segundo marido. A todos revelavaa sua ferida e Roma, em lgrimas, contemplava as cicatrizes no seu corpo emaciado . Como sepode ver, Jernimo e Tertuliano no podiam deixar de ficar mais arrebatados com este tipo de

    coisas. Todavia, o termo exomologesis no se aplica apenas a este ltimo episdio. frequentemente usado para designar tudo aquilo que o penitente faz para obter a suareconciliao no espao de tempo em que conserva o estado de penitente. Os actos [p.216]pelosquais ele se pune a si prprio tm de ser indissociveis do; actos pelos quais se revela a si prprio.

    A punio de si prprio e a expresso voluntria de si prprio esto estreitamente ligadas.No final do sculo III, o correspondente de Cipriano escreve que aqueles que desejam

    fazer penitncia tm de, e cito: provar o seu sofrimento, mostrar a sua vergonha, dar a ver a suahumildade e exibir a sua modstia. E Passonte2, no Parnaso, disse que uma verdadeira penitncia cumprida no de modo nominal, mas antes encontra os seus instrumentos em serapilheiras,

    cinzas, abstinncias, atribulaes e na participao de um grande nmero de pessoas na orao.Numa palavra, a penitncia no primeiro sculo da era crist um modo de vida prosseguido emtodas as ocasies, segundo uma obrigao de cada se mostrar a si prprio. A exomologesis precisamente isso. Desde finais do sculo II, a exomologesis subsistiu no cristianismo por umperodo de tempo extremamente longo, visto que encontramos os seus efeitos colaterais nasordens de penitentes que tanta importncia tiveram nos sculos XV e XVI. Podemos ver comoos procedimentos para revelar a verdade so mltiplos e complexos. Certos actos da exomologesistm lugar em privado, mas muitos so dirigidos ao pblico. Tertuliano tem uma expressocaracterstica para designar esta espcie de penitncia, a publicado sui. O penitente tem de usar

    meios verbais para se exprimir a si prprio como um pecador.O conceito depublicatio suino referido atravs de uma descrio precisa, no atravs deuma anlise verbal, mas principalmente atravs de expresses somticas e simblicas. Ao mostraro seu corpo, Fabola desvela a carne que cometeu o pecado. H algo de paradoxal nisto, porm.

    Apublicacio suitem, de facto, duas funes. E a regra de apagar o pecado, de o riscar, de o fazerdesaparecer e restituir a anterior pureza adquirida pelo baptismo. Mas tambm destinada amostrar o pecador tal como . A maior parte dos actos que constituem a penitncia tem o papel,no de dizer a verdade acerca do pecado, mas sim o papel de mostrar o verdadeiro ser dopecador, ou o verdadeiro ser pecador do sujeito. A expresso de Tertuliano, a publicacio sui, no uma maneira que o pecador tem de explicar os seus pecados. A expresso significa que ele tem de

    se apresentar a si prprio como um pecador na sua realidade de ser um pecador. E agora a

    2Referncia obscura que no conseguimos identificar (N.T.)

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    questo porqu. A pblica expresso do pecador deveria ser eficaz para apagar os pecados. Paradarmos uma breve vista de olhos a este problema, podemos dizer que os Padres cristosrecorrem a trs modelos. Um o bem conhecido modelo mdico no qual ele tem de mostrar asferidas se quiser ser curado. Outro modelo frequentemente usado no tribunal e no julgamento:

    apazigua-se sempre o juiz confessando espontaneamente as prprias faltas. No dia do julgamento,o prprio diabo se ergueria para acusar o pecador e o pecador j se lhe antecipou ao acusar-se a siprprio. O inimigo ver-se- obrigado a permanecer em silncio.

    Porm, o mais importante modelo usado para justificar a necessidade da exomologesisou dapublicatio sui de uma natureza globalmente diferente. o modelo do mrtir. No se podeesquecer que a prtica e a teoria da penitncia foram elaboradas em larga medida em tomo doproblema dos relapsos. O mrtir aquele que prefere enfrentar a morte a abandonar a sua f. Orelapso abandona a f para manter a vida de aqui e agora. Apenas ser readmitido se, por seuturno, se expuser voluntariamente a uma espcie de martrio para o qual haver sempre

    testemunhas. Esta espcie de [p.217]martrio a penitncia. Em suma, a penitncia, na medidaem que a reproduo do martrio, constitui uma afirmao de mudana de ruptura com oprprio eu, com o prprio passado, com o mundo e com toda a vida anterior.

    Uma tal demonstrao, como se pode ver, no tem pois por funo o estabelecimento deuma identidade. Antes serve para marcar, por intermdio dessa espectacular demonstraodaquilo que cada um , a recusa do eu, o romper consigo prprio.Ego non sum, ego a frmula quese encontra no corao da publicacio sui, da exomologesis. Os ostentatrios gestos das mortificaestm a funo de mostrar ao mesmo tempo a verdade do estado de ser um pecador e aautenticidade da ruptura. Trata-se de uma auto-revelao que ao mesmo tempo uma auto-destruio. Lembremos o objectivo da tecnologia estica do eu. Consistia em sobrepor o sujeito

    de conhecimento e o sujeito de verdade por intermdio da perptua memorizao de regras. Orabem, pelo contrrio, na exomologesis e na publicatio sui o penitente procura sobrepor a verdadeacerca de si prprio e a renncia a si prprio por um acto de violenta ruptura.

    Debrucemo-nos agora sobre a confisso na instituio monstica. Nas instituies cristsdos primeiros sculos, possvel encontrar uma outra forma de confisso. Muito diferente daexomologesispenitencial, a confisso organizada que encontramos nas comunidades monsticas, eem primeiro lugar no mundo oriental. De certo modo, esta confisso est bastante prxima doexerccio com que deparamos nas escolas pags de filosofia. No h nada de extraordinrio nisto,

    visto que a filosofia grega tinha grande influncia no mundo oriental. a vida monstica que se

    apresenta a si prpria como a verdadeira forma de vida filosfica. E os mosteiros definiam-secomo as verdadeiras escolas de filosofia. Existe, em todo o caso, uma bvia transferncia, para aespiritualidade crist, de tecnologias do eu provindas de prticas da filosofia pag. JooCrisstomo, por exemplo, ir descrever um auto-exame que tem exactamente a mesma forma e omesmo carcter administrativo que o que foi descrito por Sneca no De ira.

    Crisstomo escreve, pela manh que temos de fazer conta s nossas despesas. E depois da refeio da noite, quando tivermos ido para a cama e no houver ningum aimportunar-nos ou a inquietar-nos que temos de pedir a ns prprios que prestemos contas danossa conduta para connosco mesmos. realmente fazer as contas do dia aquilo queCrisstomo prope. H que examinar o que em nosso benefcio e o que prejudicial. H que

    velar para que se despenda apenas um peclio razovel e se ponham de parte fundos teis emlugar de gastos perniciosos, oraes em lugar de palavras indiscretas. Nada pode ser maisadministrativo do que isto.

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    E exactamente este o estilo de auto-exame tpico de Sneca. Estes tipos de prticasantigas modificaram-se porm sob a influncia de dois elementos fundamentais da espiritualidadecrist: o princpio de obedincia e o princpio de contemplao. Olharemos primeiro para oprincpio de obedincia. Vimos j que, nas escolas antigas de filosofia, a relao com o mestre era,

    se assim posso dizer, instrumental e provisria. A obedincia disciplina fundava-se nacapacidade de o mestre conduzir a uma vida feliz e enfim autnoma. Por uma longa srie derazes que no tenho tempo para discutir, a obedincia um trao muito diferente na vidamonstica e, sobretudo, nas comunidades cenobticas. Esta obedincia cenobtica recaiforosamente sobre todos os aspectos da vida.

    H um velho princpio da Patrstica que Cassiano repete. Diz esse princpio que Tudoaquilo que se faz sem a autorizao do director espiritual constitui um roubo. [p.218]Cassianoconta a histria de um jovem monge, doente quase morte. Mas antes que morresse pediu ao seumestre autorizao para morrer. O mestre proibiu-o de morrer, de maneira que ele viveu mais

    algumas semanas. Ento, o mestre deu-lhe ordem para que morresse e o jovem monge morreu.Na vida monstica, a obedincia uma relao permanente. Mesmo velho, mesmo quando chegaa sua vez de ser mestre, o monge tem de manter o esprito de obedincia como um sacrifciopermanente da sua prpria vontade.

    Um outro trao distingue a disciplina monstica da vida filosfica. Na vida monstica, acontemplao o bem supremo. obrigao do monge volver constantemente os seuspensamentos para o ponto nico que Deus. tambm certificar-se que o seu corao seja firmee o olho da sua alma seja suficientemente puro para ver Deus e dele receber a divina luz.Colocada sob este princpio de obedincia e orientada para a contemplao, a tecnologia do euque se desenvolve no monasticismo cristo apresenta caractersticas peculiares. As Institutionese as

    Collaliones de Joo Cassiano fornecem uma exposio bastante sistemtica e clara deste auto-exame e da confisso, tal como eram praticadas entre os monges egpcios que Joo Cassiano

    visitou antes de regressar ao sul de Frana e ter escrito aqueles dois livros, os quais servem derelao de viagem entre os mosteiros do Egipto e da Palestina.

    No Oriente, Cassiano observou um auto-exame que est mais preocupado com ospensamentos do que com a aco. Uma vez que tem de volver permanentemente o seupensamento no sentido da culpa, o monge v-se obrigado a inspeccionar o curso dos seuspensamentos. O que inclui no apenas a pacincia susceptvel de facilitar a firmeza da suaconduta, mas tambm e at as imagens que se apresentam ao esprito, os pensamentos que vm

    interferir com a contemplao e as diversas solicitaes que desviam a ateno do esprito do seuobjecto, isto , de Deus. Pode-se ver como a matria-prima para inspeco e para o exame do euno so desejos de vento feitos. uma regio interior dos desejos, e de bem mais substancialmatria. Esta matria aquilo que os Padres gregos chamam, quase sempre pejorativamente, oslogismoi, ou seja, em latim, as cogitationes, os pensamentos, os movimentos quase imperceptveis dopensamento, a permanente volubilidade da alma. esta a alma que Cassiano descreve como

    polykinetos. Significa que a alma est sempre a mover-se e a mover-se em todas as direces.Mas, quando o monge inspecciona o seu prprio pensamento, com que que ele se

    preocupa? No com a relao, claro, entre a ideia e a realidade. A questo da verdade, paraCassiano e para o monge, no consiste na correlao objectiva entre a ideia e aquilo a que a ideia

    se refere. A questo da verdade diz respeito natureza, qualidade e substncia do seupensamento.

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    Temos de deter-nos por um momento neste importante ponto. De maneira a tornarcompreensvel aquilo em que consistia esta permanente destrina, Cassiano recorre a trscomparaes. A primeira a do moinho. O pensamento como uma m que tritura os gros,diz Cassiano. Os gros so, claro, aqueles que se apresentam. Cabe ao moleiro apartar, de entre

    os gros, aqueles que so maus daqueles que podem ser admitidos m. Cassiano recorretambm comparao com os oficiais que pem os soldados em fila sua frente e os fazempassar direita ou esquerda, distribuindo a cada um sua tarefa, de acordo com as respectivascapacidades.

    Por ltimo, e penso que este o ponto mais importante e de maior interesse, Cassiano dizque, a respeito do nosso prprio eu, temos de ser como o cambista a quem [p.219] seapresentam moedas. Quando um cambista examina uma moeda, olha para a efgie que ela ostenta.

    Aprecia o metal de que feita, para determinar exactamente qual ele e se puro. Procura saberde que oficina vem e sopesa-a na sua mo de maneira a saber se foi limada ou danificada. Do

    mesmo modo, diz Cassiano, temos de verificar a qualidade dos pensamentos. Temos de saber seeles ostentam realmente a efgie de Deus, ou seja, se eles nos permitem realmente contemplar aDeus. Se o seu brilho de superfcie no oculta a impureza de um mau pensamento, qual aorigem deles? Provm de Deus ou da oficina de demnios? Finalmente, se so de boa qualidade eorigem, no tero eles sido adulterados e oxidados por maus sentimentos?

    Penso que esta forma de exame poderia ser vista luz da semelhana entre aquelaimagem do cambista e vrios textos de Freud sobre a censura. Poder-se-ia dizer que a censurafreudiana simultaneamente a mesma coisa e o reverso do cambista de Cassiano. Tanto ocambista como o censor tm de controlar o acesso conscincia, admitir algumas representaes,rejeitar outras. Todavia, o cambista de Cassiano tem por funo decifrar o que falso e ilusrio, o

    que se apresenta conscincia e, depois, admitir apenas o que autntico. Com esse propsito, ocambista de Cassiano recorre a uma atitude especfica que a patrstica latina chama discretioe apatrstica grega diacrisis.

    Pelo contrrio, a censura freudiana muito mais perversa e ingnua. perversa porquerejeita aquilo que se apresenta tal como , e muito mais ingnua porque aceita aquilo que seencontra bastante degradado. O cambista de Cassiano um verdadeiro operador, por intermdioda discretio e da diacrisis: A censura freudiana um operador simblico ou um operador defalsidade por intermdio do simbolismo. No quero porm avanar mais neste tipo de paralelos.

    Trata-se to-s de uma indicao, ainda que me parea que a relao entre as prticas freudianas e

    as tcnicas crists da espiritualidade poderia constituir, se feita seriamente, um campo deinvestigao cheio de interesse.Aquilo em que eu gostaria de insistir esta noite outra coisa, ou, pelo menos, algo

    indirectamente relacionado com o anterior. H algo de realmente importante no modo comoCassiano prope o problema da verdade acerca do pensamento. Primeiro que tudo, ospensamentos (no os desejos, no as paixes, no as atitudes, no os actos) surgem na obra deCassiano e em toda a espiritualidade por ele representada como um campo de dados subjectivosque tm de ser considerados e analisados como um objecto. E penso que esta a primeira vez nahistria que os pensamentos so considerados como possveis objectos de anlise. Em segundolugar, os pensamentos tm de ser analisados no em relao ao respectivo objecto, nem em

    funo da experincia objectiva, nem de acordo com regras lgicas, mas com suspeio, visto quepodem ser secretamente alterados, adulterados na sua prpria substncia. Em terceiro lugar,aquilo de que o homem precisa, se no quiser ser vtima dos seus prprios pensamentos, um

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    perptuo trabalho de interpretao, um perptuo trabalho de hermenutica. A funo destahermenutica descobrir a realidade oculta no interior do pensamento. Em quarto lugar, estarealidade, que susceptvel de se dissimular nos meus pensamentos, constitui um poder que no de outra natureza que no a da minha alma, como o , por exemplo, o corpo. Este poder tem a

    mesma natureza que os meus pensamentos e a minha alma. o Demnio. a presena deoutrem em mim.

    Esta constituio dos pensamentos como um campo de dados subjectivos que requeremuma anlise interpretativa a fim de se descobrir o poder do outro em mim [p.220], segundocreio, se a compararmos com as tecnologias esticas do eu, uma maneira bem diferente deorganizar as relaes entre verdade e subjectividade. Penso que a hermenutica do eu comea a.

    Todavia, temos de ir mais alm, pois o problema saber como possvel levar permanentementea cabo esta necessria hermenutica dos nossos pensamentos. Como possvel executar estetrabalho do cambista? Como possvel sermos o cambista de ns prprios, ou dos nossos

    pensamentos? Bem, a resposta dada por Cassiano e pelos seus detractores simultaneamentebvia e surpreendente. A resposta que seremos o cambista de um roubo, seremos o cambistados nossos pensamentos. Entabularemos uma relao hermenutica connosco prprios. O que seleva a cabo apenas mediante o contar esses pensamentos ao mestre ou ao padre, o confessar noas nossas faltas, no aquilo que se fez, mas confessando o mais imperceptvel movimento dessespensamentos. Esta operao, o facto de contar a outrm aquilo que se est a passar na nossaconscincia, nos nossos pensamentos, assegura o trabalho do cambista.

    Por que que esta confisso susceptvel de assumir um papel hermenutico? claroque uma razo nos vem mente. Ao expor os movimentos do seu corao o discpulo permite aoseu senhor conhec-los e, graas sua maior experincia e sabedoria, o senhor ou o padre pode

    compreender melhor o que se est a passar. A sua superioridade permite-lhe distinguir a verdadeda iluso na alma da pessoa de cuja direco est encarregado. H, para Cassiano, uma virtudeespecfica de verificao no prprio acto de verbalizao. A seguinte histria contada porCassiano demonstra o seu ponto de vista.

    Um jovem monge, Serapis, incapaz de suportar um jejum. Por isso, todas as noitesrouba um naco de po. Todavia, claro, no ousa confess-lo ao seu director espiritual. Um dia opadre de Serapis descobriu a histria. Ento, faz um sermo pblico sobre a necessidade de ser

    verdadeiro. Convencido, o jovem Serapis tira o po do seu hbito e mostra-o a toda a gente. Emseguida, e isto que importante, prostra-se, devolve o po e confessa o segredo da sua reflexo

    diria. No preciso momento da sua confisso, uma luz parece irromper do seu corpo e atravessara sala. Logo aps, um repugnante cheiro a enxofre espalha-se a toda a volta.Pode ver-se que nesta histria o elemento decisivo no , obviamente, o facto de o mestre

    saber a verdade. No sequer o facto de o jovem monge revelar o seu acto e restituir o objectodo seu roubo. a confisso. o acto verbal da confisso que vem por ltimo e que faz com quecertas mculas se tornem visveis. A confisso uma prova de verdade. Por qu? Porque no sepode aludir sem dificuldade quilo que marca a diferena entre bons e maus pensamentos. Sealgum enrubesce ao cont-las, se procura escond-las, se, muito simplesmente at, hesita emdiz-lo, tal prova de que no to bom quanto pode parecer. O mal habita nele. Portanto a

    verbalizao constitui uma maneira de destrinar pensamentos que se apresentam. Podemos

    atestar do respectivo valor baseando-nos no facto de eles resistirem ou no verbalizao.Cassiano fornece a razo para tal resistncia. Satans, enquanto smbolo do mal,

    incompatvel com a luz e resiste aos pensamentos sob os quais se oculta at que a confisso o

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    arranque s negras cavernas do inconsciente e o traga luz do discurso explcito. Satans podeser um mau pensamento que, mal trazido luz, perde a sua malignidade. A terrvel serpente queesta confisso forou a sair do seu fojo subterrneo derrete-se luz e d da vergonha pblicoespectculo. Satans ento rpido a bater em retirada.

    [p.221]Querer isso dizer que basta ao monge contar em voz alta os seus pensamentos,mesmo quando a ss? claro que no. Este tipo de confisso requer a presena de algum,mesmo que no fale, mesmo como urna presena silenciosa. E isto porque o padre que ouve estaconfisso a imagem de Deus e a verbalizao dos pensamentos um modo de pr peranteDeus todas as ideias, imagens e solicitaes tal como surgem conscincia. A esta divina luz, elasmostram-se necessariamente tal como so.

    Daqui podemos concluir resumidamente que a verbalizao tem em si mesma umafuno interpretativa. Contm em si mesma um poder de diacrisis, de diferenciao e de discretio.Esta verbalizao no uma espcie de retrospeco de actos passados. Tem de ser uma

    actividade permanente, tanto quanto possvel contempornea do fluxo dos pensamentos. Omonge tem de contar ao padre omnes cogitationes, ou todo o seu pensamento. Esta verbalizaotem de ser exaustiva, mas tambm tem de penetrar to profundamente quanto possvel nospensamentos. Esses pensamentos, sejam eles quais forem, tm uma origem inaparente, uma raizobscura, recantos secretos e essa parte que a verbalizao tem de trazer luz. Tal como a

    verbalizao traz luz exterior os movimentos profundos e as obscuras razes do pensamento, pelo mesmo processo que a alma humana passa do reino de Satans para a lei de Deus. Ocaminho da conscincia da noite para a luz tambm o caminho de Satans para Deus. Issosignifica que a verbalizao uma via para a converso, para a ruptura do eu. uma via que aconverso segue para se desenvolver e obter efeito. Visto que, sob o domnio de Satans, o ser

    humano se encontrava preso a si prprio, a verbalizao, como movimento em direco a Deus, uma renncia a Satans. Pela mesma razo, uma renncia a si prprio. A verbalizao umauto-sacrifcio. A esta permanente, exaustiva, profunda e sacrificial verbalizao dos pensamentos,dava a patrstica grega o nome de exagoresis.

    Assim, como se pode ver, na Cristandade dos primeiros sculos, a obrigao de dizer averdade acerca de si prprio haveria de tomar duas grandes formas. A exomologesis(publicado sui) ea exagoresis so muito diferentes uma da outra. Por um lado, a exomologesis era uma formaespectacular de o penitente exprimir o seu estatuto de pecador tornado manifesto em pblicademonstrao. Por outro lado, a exagoresis era uma analtica e contnua verbalizao dos

    pensamentos, levada a cabo numa relao de total obedincia vontade de outrm. Observmosporm que esta verbalizao, como lhes disse, tambm uma maneira de renunciar ao eu e dedeixar de desejar ser o sujeito da vontade. Deste modo, a exagoresisencontra o seu paralelo nummodelo do martrio que obceca a exomologesis. As mortificaes ascticas infligidas ao corpo e aobrigao de verbalizao aplicada aos pensamentos essas duas coisas as mortificaessomticas e a verbalizao so simtricas. Pressupe-se que elas tm os mesmos objectivos e osmesmos efeitos, e tanto assim que possvel isolar a exomologesise a exagoresis, a publicatio suie a

    verbalizao como um inimigo comum de ambas as prticas.A estas duas prticas podemos aplicar o seguinte princpio. A revelao da verdade acerca

    de si prprio no pode ser dissociada da obrigao de renunciar ao eu. Temos de sacrificar o eu

    de modo a descobrir a verdade acerca do nosso eu. E temos de compreender este sacrifcio noapenas como uma mudana radical no modo de vida mas como a consequncia de uma frmula.Renunciamos a ser o sujeito da nossa vontade, vergados obedincia ao outro pela encenao

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    simblica da nossa prpria morte na publicacio sui. Facere veritatem fazer a verdade acerca de siprprio impossvel sem esse sacrifcio. [p.222]Detenhamo-nos aqui. Fui ao mesmo tempodemasiado longo e demasiado esquemtico. Por favor considerem tudo o que eu disse apenascomo um ponto de partida urna dessas mesquinhas origens que Nietzsche gostava de descobrir

    no princpio de grandes coisas. As grandes coisas que aquelas prticas monsticas anunciavam sonumerosas. Mencionarei algumas delas antes de terminar.

    A operao daquilo que poderamos chamar o eu gnoseolgico figura aqui de maneiraproeminente. Lembram-se do que lhes disse ontem. As tecnologias gregas do cu tendiam aproduzir aquilo a que chamei o eu gnmico. Era uma permanente sobreposio, sob a forma dememria, do sujeito de conhecimento e do sujeito de vontade. No incio da conferncia indiqueique os movimentos gnsticos eram uma questo de constituio de uma unidade ontolgica, oconhecimento da alma e o conhecimento do ser. Portanto, o que poderia chamar-se o eugnstico haveria de ser constitudo no cristianismo.

    Contudo, o que se v o desenvolvimento de uma tecnologia muito mais complexa. Estatecnologia mantm a diferena entre conhecimento do eu e conhecimento do ser. essa aprincipal diferena entre o eu gnstico e a tecnologia gnstica do eu. Quando este conhecimentodo eu toma forma, no advm da identificao entre o pesar dos pecados e a verdade, como noeu gnmico. Toma forma na constituio de pensamentos como dados subjectivos que h queseparar uns dos outros. E o papel de intrprete assumido pelo trabalho de uma contnua

    verbalizao dos mais imperceptveis movimentos dos pensamentos. esta a razo pela qualpoderamos dizer que o eu cristo, que se correlaciona com essas crenas um eu agnoseolgico.

    O segundo ponto que me parece importante o facto de no cristianismo primitivo terhavido uma perptua oscilao de uma tecnologia da verdade do eu orientada para a manifestao

    do ser, a exomologesis. o que chamamos a tentao ontolgica do cristianismo. Trata-se de umaoscilao entre essa tecnologia do eu, segundo a exomologesis, e uma tecnologia da verdadeorientada para a anlise discursiva do pensamento. Ou seja, a exagoresis e a esta poderamoschamar a tentao epistemolgica do cristianismo. Como se sabe, depois de muita oscilao, demuitos conflitos e muita flutuao, a exagoresis a tentaco epistemolgica do cristianismo tornou-se vitoriosa.

    Mesmo nestas tcnicas hermenuticas, a exagoresis consistia, em parte, na produo deverdade, a qual no podia ser satisfeita sem uma condio muito estrita e imperativa. Comovimos, a hermenutica do eu implica o sacrifcio do eu e, claro, o processo de no-identidade. E

    essa, segundo creio, a contradio profunda, ou se se quiser, a maior riqueza das tecnologias doeu crists. No h verdade acerca do eu sem o sacrifcio do eu. A centralidade da confisso dospecados no cristianismo encontra aqui uma explicao. A verbalizao da confisso dos pecados instituda como um jogo discursivo da verdade que um sacrifcio do sujeito.

    O quarto e ltimo ponto consiste no facto de que um dos grandes problemas da culturaocidental tem sido encontrar a possibilidade de fundar a hermenutica do eu, baseada no nosacrifcio do eu, mas numa positiva, terica e prtica emergncia do eu. Seria isso uma inclinaoem direco a uma tecnologia da identidade do eu e no a uma tecnologia sacrificial do eu. Eraesse o objectivo da instituio judicial nos meados da Idade Mdia. Era tambm o objectivo dasinstituies mdicas, psiquitricas e psicolgicas desde finais do sculo XVIII. Era igualmente o

    objectivo da teoria poltica, filosfica e epistemolgica durante o sculo XVII. esse, penso eu, o[p.223] alicerce, a raiz profunda daquilo que poderamos denominaras antropologiaspermanentes do modo ocidental de pensar.

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