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m 1955, a Secretaria de Segu- rança Pública do Estado de São Paulo (SP) promoveu a primei- ra experiência do Brasil de in- serção das mulheres nas ativi- dades policiais, tornando-se, deste modo, um paradigma de modernização para as corporações policiais do país. Passados 60 anos do ingresso das primeiras mulheres na área de segurança pública, uma pesqui- sa da Unicamp aponta que a presença do feminino na Polícia Militar de SP é vista, muitas vezes, como uma ameaça à identi- dade e tradição policial. O estudo, conduzido junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp pelo historiador e sociólogo Marcos Santana de Souza, também revelou a existência de um zoneamento de gênero não institucionalizado, marcando, clara- mente, as funções para mulheres e homens. Conforme constatou o autor da pesquisa, é relegado ao trabalho feminino um caráter eminentemente complementar no campo da segurança pública. O trabalho, que tra- çou uma etnografia do feminino na polícia, acaba de ser contemplado com o Prêmio Capes de Teses 2015. “O efetivo feminino na Polícia Militar do Estado de São Paulo representa apro- ximadamente 10% do efetivo total, que é constituído por cerca de 100 mil policiais. A maior parte destas mulheres atua nos se- tores administrativos com o argumento de uma maior compatibilidade entre as suas características físicas e psicológicas e a na- tureza do trabalho interno”, revela Marcos de Souza. Ele exemplifica citando que apenas em 2014 o Regimento da Cavalaria da PM, um dos setores mais tradicionais e antigos da corporação, passou a empregar mulheres nas atividades de policiamento. O estudioso da Unicamp acrescenta que situações seme- lhantes também acontecem nas unidades operacionais e especializadas, como a Rota, o Batalhão de Choque e o Grupamento Aé- reo, cuja presença feminina ainda é mínima. “Há uma concepção de que mulher tem que estar ocupando uma função interna, doméstica, numa dimensão privada. E os homens, por serem ‘senhores’ do espaço público, têm que estar nas atuações e abor- dagens. Existe uma ideia na instituição de que a presença da mulher enfraqueceria a identidade policial e a própria confiança do trabalho prestado à população. Por este mo- tivo a PM se mostra refratária à presença feminina, especialmente nas unidades ope- racionais”, afirma. Marcos de Souza relata que outro setor que permanece sob a supremacia masculina é o dos órgãos de apoio ligados à instrução, importantes para a reprodução da cultura institucional baseada nos valores milita- res. Embora a participação feminina tenha crescido expressivamente, os homens cons- tituem a maioria absoluta nestes espaços, estimada atualmente em 79,83%. O autor da pesquisa informa ainda que as características femininas são vistas, mui- tas vezes, como elementos que poderiam vulnerabilizar as operações policiais e a uni- cidade da tropa, tão cultuada na corporação. A presença feminina também apresentaria um risco à dimensão do segredo e do silên- cio, própria do trabalho policial, acrescenta. “Esta suposta ameaça se justificaria sob a crença de que as mulheres não se entre- gariam plenamente ao trabalho em função dos compromissos com a ‘casa’. Neste caso, Estudo mostra que inserção feminina nas atividades policiais tem caráter complementar no campo da segurança pública SILVIO ANUNCIAÇÃO [email protected] elas teriam uma disposição ‘natural’ para a quebra de segredos, da lealdade e da con- fiança do grupo. Esta seria uma justificativa para que elas sejam de antemão afastadas da convivência nessas searas de domínio quase absoluto dos homens.” Por outro lado, pondera o sociólogo, existem aspectos apontando que as mulhe- res conseguiram ampliar sua presença na instituição, a despeito dessas restrições, ve- ladas ou não. Além disso, diversos avanços na instituição podem ser observados como a unificação dos quadros masculino e femi- nino da PM em 2011, gerando oportunida- des mais igualitárias de carreira ao público feminino dentro da corporação. Marcos de Souza menciona também o próprio ingresso das mulheres em setores tradicionais, como o 2º Batalhão de Choque, o Regimento de Cavalaria, entre outros. “Essa presença foi possível porque a ex- periência se mostrou exitosa. A população começou a ver bons resultados no trabalho e na presença feminina na PM. E também para a própria instituição foi interessante porque esta presença vai ser ampliada em momentos de crise, em que, muitas vezes, abusos cometidos por policiais vão ganhar a opinião pública. Portanto, sobretudo nos anos de 1990, há uma ampliação conside- rável no efetivo feminino e nos campos de atuação, muito por conta dessa ideia de mo- dernização e de uma tentativa de reformular a imagem da polícia”, situa. Um marco neste sentido aconteceu em 2001, com a nomeação da tenente-coronel Fátima Duarte, a primeira mulher da histó- ria da Polícia Militar de São Paulo a assumir o comando de um batalhão e ter, sob a sua responsabilidade, policiais de ambos os se- xos. O pesquisador ressalta que a nomeação, assim como investimentos no policiamento escolar e comunitário, em campanhas pu- blicitárias e na aproximação com órgãos de imprensa, visava reformular a imagem da corporação, desgastada por episódios de abusos cometidos por policiais. “Apela-se, assim, para o elemento feminino como re- curso para mudança da percepção social em torno da polícia”, pontua. O autor do estudo acrescenta que as mu- lheres ouvidas durante a pesquisa relataram a percepção de que avançaram significativa- mente na profissão, apesar da permanência de alguns entraves. De modo geral, segundo Marcos de Souza, os entrevistados vinculam os preconceitos contra as mulheres na polí- cia à permanência do machismo no conjun- to da sociedade brasileira, da qual a PM não seria uma exceção. Outro aspecto relevante apontado pelo trabalho é que a inserção feminina na PM tem tornado a rotina policial menos dura e hostil, tanto para mulheres como para homens. “Quando se está num universo policial e militar essa dimensão do cuidado e da diferença não costuma ser observada. Estes profissionais, homens e mulheres, estão num ambiente extremamente hostil do qual os direitos fundamentais não são respeitados, muitas vezes. E a inserção fe- minina traz, de alguma forma, essa ques- tão da diferença para a problematização, de que o policial tem família, de que ele é um sujeito com seus dramas, com suas dificul- dades e que precisa ser ouvido e compre- endido.” A tese de Marcos de Souza, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH, ainda concorre ao Grande Prêmio Capes, que será anuncia- do no dia 10 de dezembro de 2015. Outras duas teses da Unicamp, também premiadas entre as melhores de 2014 pela Coordena- ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní- vel Superior (Capes), também disputarão o Grande Prêmio. O historiador, formado pela Universidade Federal de Sergipe com mestrado em sociologia, foi orientado em seu estudo pela professora do IFCH Mari- za Corrêa, que atua como pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. Além do estudo etnográfico, o pes- quisador buscou entender os sentidos do trabalho policial feminino na corporação paulista com a realização de entrevistas em profundidade com 44 policiais milita- res masculinos e femininos de diferentes círculos hierárquicos e com o auxílio de análise documental. Os registros sobre a presença feminina foram colhidos junto ao Comando da Polícia Militar de São Paulo, Academia de Polícia Militar do Barro Bran- co, Arquivo do Museu da Polícia Militar de São Paulo e Centro de Altos Estudos de Se- gurança (CAES). “A contribuição do meu trabalho está no sentido de analisar a presença das mulhe- res na PM e compreender como estas dife- renças de gênero são pensadas do ponto de vista institucional, e também como estas diferenças marcam a atuação das policias. Trata-se de uma reflexão sobre as repre- sentações sociais de gênero que ainda per- manecem, mesmo num momento em que a mulher conquistou espaços e ascendeu socialmente”, contextualiza. Marcos de Souza também considera que seu estudo abre perspectivas para a com- preensão de como esta presença femini- na, com todas as suas implicações, reflete no trabalho prestado e desenvolvido pela instituição à população. “A sociedade bra- sileira demanda, cada vez mais, por maior segurança, uma vez que o Brasil é um dos países que tem um dos mais altos índices de homicídio do mundo. Torna-se, portan- to, essencial refletir sobre como a popula- ção pensa este tipo de enfrentamento da violência e, ao mesmo tempo, distingue po- sições e expectativas para homens e mulhe- res no campo policial. Acredito que outras pesquisas relacionadas à polícia devam ser desenvolvidas e ampliadas considerando a perspectiva de gênero, especialmente no campo na sociologia da violência.” ‘SOU POLICIAL, MAS SOU MULHERA frase que dá título à tese de Marcos de Souza foi colhida a partir do depoimento de uma policial que atua no Pelotão de Cho- que da Polícia Militar do Paraná, concedido para uma rede de televisão, afiliada da TV Band. Embora de outro Estado, a expressão é muito recorrente, segundo o pesquisador da Unicamp. A sua escolha para nomear o trabalho foi motivada pelas múltiplas di- mensões e demandas que nela se revelam, justifica o autor da pesquisa. “Em determinado momento da entrevis- ta, a policial fala da vaidade e da imagem policial, como se fossem elementos distin- tos, que não se casassem. Ela vai dizer, por exemplo, que tem que manter uma postura, se manter séria, fardada, mas que ela não abria mão nem do rímel, nem do batom. Ou seja: ‘sou policial, mas sou mulher, não posso esquecer-me disso.’ E essa dimensão Policiais na década de 1950: passados 60 anos, alguns setores ainda veem as mulheres como ameaça à identidade e à tradição O sociólogo Marcos Santana de Souza, autor do estudo: “Há uma concepção de que mulher tem que ocupar uma função interna, doméstica” Fotos: Divulgação Mulher é relegada a papel Campinas, 30 de novembro a 13 de dezembro de 2015 8

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m 1955, a Secretaria de Segu-rança Pública do Estado de São Paulo (SP) promoveu a primei-ra experiência do Brasil de in-serção das mulheres nas ativi-

dades policiais, tornando-se, deste modo, um paradigma de modernização para as corporações policiais do país. Passados 60 anos do ingresso das primeiras mulheres na área de segurança pública, uma pesqui-sa da Unicamp aponta que a presença do feminino na Polícia Militar de SP é vista, muitas vezes, como uma ameaça à identi-dade e tradição policial.

O estudo, conduzido junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp pelo historiador e sociólogo Marcos Santana de Souza, também revelou a existência de um zoneamento de gênero não institucionalizado, marcando, clara-mente, as funções para mulheres e homens. Conforme constatou o autor da pesquisa, é relegado ao trabalho feminino um caráter eminentemente complementar no campo da segurança pública. O trabalho, que tra-çou uma etnografia do feminino na polícia, acaba de ser contemplado com o Prêmio Capes de Teses 2015.

“O efetivo feminino na Polícia Militar do Estado de São Paulo representa apro-ximadamente 10% do efetivo total, que é constituído por cerca de 100 mil policiais. A maior parte destas mulheres atua nos se-tores administrativos com o argumento de uma maior compatibilidade entre as suas características físicas e psicológicas e a na-tureza do trabalho interno”, revela Marcos de Souza.

Ele exemplifica citando que apenas em 2014 o Regimento da Cavalaria da PM, um dos setores mais tradicionais e antigos da corporação, passou a empregar mulheres nas atividades de policiamento. O estudioso da Unicamp acrescenta que situações seme-lhantes também acontecem nas unidades operacionais e especializadas, como a Rota, o Batalhão de Choque e o Grupamento Aé-reo, cuja presença feminina ainda é mínima.

“Há uma concepção de que mulher tem que estar ocupando uma função interna, doméstica, numa dimensão privada. E os homens, por serem ‘senhores’ do espaço público, têm que estar nas atuações e abor-dagens. Existe uma ideia na instituição de que a presença da mulher enfraqueceria a identidade policial e a própria confiança do trabalho prestado à população. Por este mo-tivo a PM se mostra refratária à presença feminina, especialmente nas unidades ope-racionais”, afirma.

Marcos de Souza relata que outro setor que permanece sob a supremacia masculina é o dos órgãos de apoio ligados à instrução, importantes para a reprodução da cultura institucional baseada nos valores milita-res. Embora a participação feminina tenha crescido expressivamente, os homens cons-tituem a maioria absoluta nestes espaços, estimada atualmente em 79,83%.

O autor da pesquisa informa ainda que as características femininas são vistas, mui-tas vezes, como elementos que poderiam vulnerabilizar as operações policiais e a uni-cidade da tropa, tão cultuada na corporação. A presença feminina também apresentaria um risco à dimensão do segredo e do silên-cio, própria do trabalho policial, acrescenta.

“Esta suposta ameaça se justificaria sob a crença de que as mulheres não se entre-gariam plenamente ao trabalho em função dos compromissos com a ‘casa’. Neste caso,

Estudo mostra que inserção feminina nas atividadespoliciais tem carátercomplementar no campo da segurança pública

SILVIO ANUNCIAÇÃ[email protected]

elas teriam uma disposição ‘natural’ para a quebra de segredos, da lealdade e da con-fiança do grupo. Esta seria uma justificativa para que elas sejam de antemão afastadas da convivência nessas searas de domínio quase absoluto dos homens.”

Por outro lado, pondera o sociólogo, existem aspectos apontando que as mulhe-res conseguiram ampliar sua presença na instituição, a despeito dessas restrições, ve-ladas ou não. Além disso, diversos avanços na instituição podem ser observados como a unificação dos quadros masculino e femi-nino da PM em 2011, gerando oportunida-des mais igualitárias de carreira ao público feminino dentro da corporação. Marcos de Souza menciona também o próprio ingresso das mulheres em setores tradicionais, como o 2º Batalhão de Choque, o Regimento de Cavalaria, entre outros.

“Essa presença foi possível porque a ex-periência se mostrou exitosa. A população começou a ver bons resultados no trabalho e na presença feminina na PM. E também para a própria instituição foi interessante porque esta presença vai ser ampliada em momentos de crise, em que, muitas vezes, abusos cometidos por policiais vão ganhar

a opinião pública. Portanto, sobretudo nos anos de 1990, há uma ampliação conside-rável no efetivo feminino e nos campos de atuação, muito por conta dessa ideia de mo-dernização e de uma tentativa de reformular a imagem da polícia”, situa.

Um marco neste sentido aconteceu em 2001, com a nomeação da tenente-coronel Fátima Duarte, a primeira mulher da histó-ria da Polícia Militar de São Paulo a assumir o comando de um batalhão e ter, sob a sua responsabilidade, policiais de ambos os se-xos. O pesquisador ressalta que a nomeação, assim como investimentos no policiamento escolar e comunitário, em campanhas pu-blicitárias e na aproximação com órgãos de imprensa, visava reformular a imagem da corporação, desgastada por episódios de abusos cometidos por policiais. “Apela-se, assim, para o elemento feminino como re-curso para mudança da percepção social em torno da polícia”, pontua.

O autor do estudo acrescenta que as mu-lheres ouvidas durante a pesquisa relataram a percepção de que avançaram significativa-mente na profissão, apesar da permanência de alguns entraves. De modo geral, segundo Marcos de Souza, os entrevistados vinculam

os preconceitos contra as mulheres na polí-cia à permanência do machismo no conjun-to da sociedade brasileira, da qual a PM não seria uma exceção.

Outro aspecto relevante apontado pelo trabalho é que a inserção feminina na PM tem tornado a rotina policial menos dura e hostil, tanto para mulheres como para homens. “Quando se está num universo policial e militar essa dimensão do cuidado e da diferença não costuma ser observada. Estes profissionais, homens e mulheres, estão num ambiente extremamente hostil do qual os direitos fundamentais não são respeitados, muitas vezes. E a inserção fe-minina traz, de alguma forma, essa ques-tão da diferença para a problematização, de que o policial tem família, de que ele é um sujeito com seus dramas, com suas dificul-dades e que precisa ser ouvido e compre-endido.”

A tese de Marcos de Souza, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH, ainda concorre ao Grande Prêmio Capes, que será anuncia-do no dia 10 de dezembro de 2015. Outras duas teses da Unicamp, também premiadas entre as melhores de 2014 pela Coordena-ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní-vel Superior (Capes), também disputarão o Grande Prêmio. O historiador, formado pela Universidade Federal de Sergipe com mestrado em sociologia, foi orientado em seu estudo pela professora do IFCH Mari-za Corrêa, que atua como pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu.

Além do estudo etnográfico, o pes-quisador buscou entender os sentidos do trabalho policial feminino na corporação paulista com a realização de entrevistas em profundidade com 44 policiais milita-res masculinos e femininos de diferentes círculos hierárquicos e com o auxílio de análise documental. Os registros sobre a presença feminina foram colhidos junto ao Comando da Polícia Militar de São Paulo, Academia de Polícia Militar do Barro Bran-co, Arquivo do Museu da Polícia Militar de São Paulo e Centro de Altos Estudos de Se-gurança (CAES).

“A contribuição do meu trabalho está no sentido de analisar a presença das mulhe-res na PM e compreender como estas dife-renças de gênero são pensadas do ponto de vista institucional, e também como estas diferenças marcam a atuação das policias. Trata-se de uma reflexão sobre as repre-sentações sociais de gênero que ainda per-manecem, mesmo num momento em que a mulher conquistou espaços e ascendeu socialmente”, contextualiza.

Marcos de Souza também considera que seu estudo abre perspectivas para a com-preensão de como esta presença femini-na, com todas as suas implicações, reflete no trabalho prestado e desenvolvido pela instituição à população. “A sociedade bra-sileira demanda, cada vez mais, por maior segurança, uma vez que o Brasil é um dos países que tem um dos mais altos índices de homicídio do mundo. Torna-se, portan-to, essencial refletir sobre como a popula-ção pensa este tipo de enfrentamento da violência e, ao mesmo tempo, distingue po-sições e expectativas para homens e mulhe-res no campo policial. Acredito que outras pesquisas relacionadas à polícia devam ser desenvolvidas e ampliadas considerando a perspectiva de gênero, especialmente no campo na sociologia da violência.”

‘SOU POLICIAL,MAS SOU MULHER’A frase que dá título à tese de Marcos de

Souza foi colhida a partir do depoimento de uma policial que atua no Pelotão de Cho-que da Polícia Militar do Paraná, concedido para uma rede de televisão, afiliada da TV Band. Embora de outro Estado, a expressão é muito recorrente, segundo o pesquisador da Unicamp. A sua escolha para nomear o trabalho foi motivada pelas múltiplas di-mensões e demandas que nela se revelam, justifica o autor da pesquisa.

“Em determinado momento da entrevis-ta, a policial fala da vaidade e da imagem policial, como se fossem elementos distin-tos, que não se casassem. Ela vai dizer, por exemplo, que tem que manter uma postura, se manter séria, fardada, mas que ela não abria mão nem do rímel, nem do batom. Ou seja: ‘sou policial, mas sou mulher, não posso esquecer-me disso.’ E essa dimensão

Policiais na década de 1950:passados 60 anos, alguns setoresainda veem as mulheres comoameaça à identidade e à tradição

O sociólogo Marcos Santanade Souza, autor do estudo:“Há uma concepção de quemulher tem que ocuparuma função interna, doméstica”

Fotos: Divulgação

Mulher é relegada a papel Campinas, 30 de novembro a 13 de dezembro de 2015Campinas, 30 de novembro a 13 de dezembro de 20158

Trecho da tese em que o sociólogo Marcos Santana de Souza analisa as duas imagens acima: “Na primeira imagem, policiais da Rota são representados com armamento pesadoem posição defensiva, além de portarem arma no coldre. Como marcas distintivas dos policiais, estão a boina negra, específi ca dos membros da unidade desde os anos 1970, o braçale a expressão cerrada. A seriedade e/ou braveza estampada na face indica que não se trata de uma polícia voltada para a aproximação amistosa com o público, mas para intervençõesduras nas quais o diálogo não opera como recurso estratégico. Nas imagens os policiais aparecem prontos para o combate. A segunda representação percorre caminho oposto ao vinculara imagem do policial a de crianças pela via do amparo e da proteção. Em oposição à fi sionomia fechada e brava dos policiais da Rota, destaca-se a expressão serena do policial, que trazum bebê no colo e, segurando com a outra mão, segue com uma garota que o olha carregando um pequeno urso de pelúcia. As duas representações são marcas das perspectivas traçadas pela instituição nas últimas décadas e que visam tanto reforçar a tradição e corresponder às demandas sociais em torno de um tipo de atuação policial dura quanto ‘reformar’ a imagemda corporação junto ao público externo, focando na dimensão cidadã da polícia e na proteção dos mais indefesos”.

Peças publicitárias exaltam o trabalho de mulheres na corporação: efetivo feminino representa 10% do contingente da Polícia Militar

De modo institucional, a presença femini-na é reverenciada como expressão do caráter moderno e democrático da Polícia Militar. Tais expectativas levariam as policiais a viverem a experiência de uma “ilusão”, segundo Marcos de Souza. No trabalho, ele exemplifica este sentimento com o relato de uma entrevista-da no contexto do “Baile da Espada”, ocorrido durante a festa de formatura da Academia de Polícia Militar do Barro Branco.

O pesquisador, que acompanhou a cerimô-nia em duas ocasiões, conta que aspirantes e seus padrinhos dançam ao som de valsas sob os olhares orgulhosos de parentes e amigos, num espaço prestigiado por seus superiores e por autoridades civis. O baile de formatura funciona como um rito que marca o ingresso no oficialato e o desejo de ascensão social e de reconhecimento.

“Era basicamente sobre esse desejo que se referia a minha entrevistada quando definiu a festa, marcada por luxo e por um protocolo extenso de exigências dos participantes e con-vidados, como uma ‘ilusão’ a ser negada pela realidade das ruas e também dos quartéis, na complexa missão de enfrentar o crime numa sociedade desigual e violenta como a socieda-de brasileira”, relata.

“No caso das mulheres, como pude acom-panhar, o baile surgia ainda como uma pro-messa, bastante transitória, é verdade, de

foi algo que percebi nas demais entrevistas porque é uma cobrança institucional, tam-bém, o fato de ser feminina na corporação. Há um esforço institucional da polícia em mostrar esta compatibilidade e fazer com que as policiais não percam de vista que ser mulher é necessariamente ser feminina, o que representa uma clara forma de regula-ção dos comportamentos.”

Ainda de acordo com o estudioso, em “sou policial, mas sou mulher”, há a per-cepção do feminino como elemento restri-tivo da experiência de ser e estar na polí-cia. “O ‘mas’, como conjunção adversativa, deixa evidenciado o sentido de contraste ou compensação do feminino na profis-são. A frase, portanto, aponta exatamente para esse sentido polissêmico da existên-cia humana e dos desafios e interesses que orientam o lugar das mulheres no campo policial: elas querem ser vistas como pro-fissionais capazes, mas não desejam ao mesmo tempo ver esquecido ou negligen-ciado o fato de serem mulheres, mães, es-posas e irmãs”, analisa.

Marcos de Souza acrescenta que numa ordem focada nos preceitos militares, vis-tos como essencialmente masculinos, as mulheres compreendem que “ser mulher” impõe restrições, pesados testes de compe-tência, discriminação e amarguras. “Neste ambiente, elas seguem lidando com as es-truturas, afastando-se da idealização tra-çada nos primeiros tempos com a Polícia Feminina, quando o trabalho desenvolvido era eminentemente assistencial e voltando para o atendimento de mulheres, crianças e idosos. Elas apresentam novas formas de ser mulher diante de transformações so-ciais diversas que informam contradições, incertezas e esperanças.”

reconhecimento de feminilidade para além das molduras disponíveis no cotidiano policial e de uma participação em iguais termos com os homens. As marcas da diferença feminina, longe de constituí-rem restrições, eram reverenciadas, uma vez que elas haviam superado, através do esforço pessoal, os mesmos desafios reservados aos homens. Na festa, a beleza e a sensualidade da farda feminina, presente na longa saia com abertura lateral e no uso mais acentuado de maquiagem, era parte de um passaporte conquistado pelas mulheres nas práticas e discursos que transitam entre igualdade e diferença”, completa.

O RECEIO À MASCULINIZAÇÃOAinda conforme o historiador, uma maior con-

centração do público feminino nos trabalhos inter-nos tem por objetivo não apenas explorar aquelas que seriam competências próprias das mulheres como “maior senso de organização”, “sensibilida-de”, “capacidade de comunicação”, mas também para evitar que em contato com as ruas as mu-lheres “sofram” com o risco de masculinização de suas atitudes, assim como de “inversão” de sua sexualidade. Tais aspectos, segundo ele, deslegiti-mariam socialmente o emprego feminino na ativi-dade policial, tendo em vista as expectativas reser-vadas a esse público dentro e fora da corporação.

“Neste sentido, as diferenças de gênero, lon-ge de serem minimizadas no campo policial mili-tar, são em grande medida reforçadas com vistas

a definir, a priori, espaços e atribuições para homens e mulheres. Especialmente no interior dos quartéis, as mulheres, com sua ‘sensibili-dade’, ajudariam a restaurar as forças e ‘curar as feridas’ dos homens, ‘naturalmente’ inclina-dos à ‘guerra’.”

Marcos de Souza esclarece que o receio em torno da masculinização das mulheres na polícia é um elemento bastante difuso não apenas entre os policiais, mas na própria sociedade. Ele cita o caso da sargento Ales-sandra, com 18 anos de serviço. A profissio-nal relata a experiência do marido professor sobre as representações sociais no ambiente de trabalho de como seria o comportamento da esposa.

“Muitos não sabem que ele é marido de uma policial militar, nem imaginam. Tem gen-te que com ele trabalha há cinco anos numa escola e ninguém sabe que ele é casado com uma policial militar, porque ele preferiu não falar”, conta a sargento, em depoimento para o pesquisador. “Segundo Alessandra, as rea-ções costumavam ser de certa desconfiança ou marcadas por comentários inconvenientes para o marido, que, por vezes, ouvia termos como ‘sargentona’ das pessoas para se referi-rem às mulheres na polícia, além de questiona-mentos sobre o cotidiano do casal, a exemplo de quem ‘mandava’ no relacionamento”, expli-ca Marcos de Souza.

PublicaçõesArtigosSOUZA, Marcos Santana de. A vio-lência da ordem: polícia e represen-tações sociais. São Paulo: Annablu-me, 2012.

Novos espaços do feminino: traba-lho, gênero e corporações militares no Brasil. In: Sociais e Humanas, Santa Maria, v. 24, n. 02, jul/dez 2011, p. 133-147.

“Elas não servem pra guerra”: pre-sença feminina e representações sociais de gênero na polícia militar de Sergipe. – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2009 (monografia de especialização em “violência, criminalidade e políticas públicas”).

Tese: “‘Sou policial, mas sou mu-lher’: gênero e representações so-ciais na Polícia Militar de São Paulo”Autor: Marcos Santana de SouzaOrientadora: Mariza CorrêaUnidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)Financiamento: Capes

O ‘Baile da Espada’ e a ilusão perdida pelas ruas

secundário na PM, aponta teseCampinas, 30 de novembro a 13 de dezembro de 2015 9Campinas, 30 de novembro a 13 de dezembro de 2015