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Universidade Estadual de Campinas 19 a 25 de abril de 2004 4 ELIDE RUGAI BASTOS* P ara um leitor do pen- samento social, a forma pela qual um autor se relaciona com a proble- mática que aborda diz muito, não apenas sobre seu perfil intelectual como a respeito de sua personalidade. Mais ainda, expli- cita o modo pelo qual se relaciona com o mundo. Percorrendo a ampla gama de preocu- pações que atravessam a obra de Octavio Ian- ni, podemos perceber um traço, várias vezes assinalado pelos que o conheceram, que o destaca como figura das mais notáveis entre a inte- lectualidade nacional: além de ser reconhecido como um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros, foi uma refe- rência ética nesse campo, pois ja- mais abriu mão do compromisso com a justiça social e a liberdade. As dezenas de livros e artigos por ele escritos, que ampliaram o horizonte das investigações na área das ciências sociais, abrangem um largo espectro de problemas e dilemas que atravessam a socieda- de contemporânea. Lembro uma questão entre as muitas, que ilustra sobremaneira essa sua qualidade de referência ética e intelectual. Um dos temas fundamentais da reflexão de Octavio Ianni foi a análi- se da condição social do negro bra- sileiro. Temática de sua primeira grande pesquisa – da qual resultou primeiramente parte do livro Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960), em seguida Metamorfoses do Escravo (1962), – atravessou, embo- ra nem sempre centralmente, toda sua obra. Mais que isso, a questão do negro no Brasil não foi para ele somente um assunto de reflexão, mas objeto de constante militância. Questiona, em seus trabalhos, não apenas a bibliografia con- sagrada sobre a questão étnica, mas também os comportamentos que fundam as relações sociais no Brasil. Mostra como, ao definir-se a situação da população negra e mulata no Brasil, a raça é elemento dos mais importantes, pois funda a assimetria das relações sociais. Essa ausência de paralelismo nas trocas sociais leva à configuração de uma desigualdade perversa, não só porque impede que grande parte da população tenha acesso aos bens sociais, como opera como reprodutora da condição de exclu- dência. Aqui se coloca a questão principal que orienta sua reflexão: como romper esse círculo vicioso? Na busca de respostas a essa per- gunta desenvolve grande parte de sua investigação e enfoca a si- tuação de submissão dos negros na sociedade brasileira. Denuncia o racismo camuflado, a exclusão da população negra dos melhores empregos e salários, o não acesso às melhores escolas, o que afeta sua possibilidade de competição, a concentração racial da riqueza e do poder. A partir dessa cons- tatação, critica as interpretações sobre a questão racial que vei- culam a idéia de que a predomi- nância no Brasil é do preconceito de classe e não do de raça, como se fosse um mero acidente o fato de o negro e o mulato concentra- rem-se nas classes mais pobres, tanto na cidade como no campo. Nessa direção, em Raças e classes sociais no Brasil (1970) e Escravidão e racismo (1978) mostra que raça e classe são categorias comple- mentares na análise e como essa articulação se constitui como base dos conflitos sociais tanto no Brasil como no restante da América Lati- na. Assim, indo além das atitudes, das verbalizações, dos compor- tamentos visíveis, indica que o substantivo da avaliação reside na percepção das práticas sociais nas relações de produção, na escola, na família, nas igrejas, na hierarquia militar, na administração pública. É certo que o desnível de oportu- nidades já aponta para a existência de práticas sociais discriminatórias em relação ao negro, constituindo- se como um limite ao avanço da democracia. Mas, como Ianni demonstra, essas manifestações discriminatórias expressam téc- nicas de preservação de interesses e privilégios e, por isso, impedem a livre circulação das pessoas se- gundo sua competência e sua qualificação. Assim, a questão racial acaba por transformar-se em componente fundamental da política e, desse modo, afeta o debate, o encaminhamento e a resolução da questão nacional nos países latino-americanos. Mas, se a pesquisa é funda- mental para a compreensão das transformações da sociedade, a ação também o é: com esse intuito, Ianni aproxima-se dos movimen- tos sociais. Busca perceber o senti- Ianni, a responsabilidade intelectual levada ao limite do do protesto negro tanto como força que operou na história da sociedade brasileira como no seu delineamento presente. Aprende com ele. Descobre seu sentido de desvendamento, desmistificação do véu ideológico que recobre a re- alidade da condição da raça negra. Isso explicaria as mobilizações em sua diversificação no espaço e no tempo, além da amplitude de sua ação, ora afirmando uma cultura afro-brasileira, ora lutando contra qualquer espécie de discriminação. Acata a diversidade de direções. Compreende, desse modo, a articu- lação entre a literatura negra e o mo- vimento negro, notando que ambos conjugam-se e se retroalimentam. Sua construção é simultânea, um não sendo superior ao outro. Absor- ve esse dado como uma lição para a direção do trabalho intelectual. Com os desafios do presente, com a cristalização de uma socie- dade global, com o fato de os ho- mens depararam com uma nova etapa da história, desloca-se a ação do movimento negro, que passa a beneficiar-se do debate mais amplo sobre os direitos universais. Ianni levanta algumas indagações sobre os caminhos da nova história da questão racial, agora dentro de di- ferentes condições de existência. A definição dessas novas condições é objeto de seus livros recentes: A Sociedade Global, de 1992, A Era do Globalismo, de 1996, e Enigmas da Modernidade-Mundo, de 2000. Com a questão racial quis exem- plificar, brevemente, como Ianni percebeu a recriação das diversida- des e das desigualdades no Brasil, em vários momentos da história e, através dessa reflexão, exerceu permanentemente a crítica. Em outros termos, como assumiu um traço intrínseco à condição de in- telectual: vincular a atividade de pensar ao compromisso de elevar a condição humana. *Elide Rugai Bastos é professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp Ao lado de Mário Schemberg, Octavio Ianni fala durante a Semana Karl Marx, realizada em março de 1983 em São Paulo Rubem Murilo Leão Rego, diretor do IFCH-Unicamp Geraldo Di Giovanni, professor do Instituto de Economia da Unicamp Octavio Ianni era de uma geração que estudou e consolidou as ciências sociais no Brasil, além de ter feito uma obra importante com Florestan Fer- nandes, Francisco de Oliveira e Fer- nando Henrique Cardoso. Obra que, de uma certa forma, é um desdobramento do Caio Prado e de Werneck Sodré e que teve o papel de desvendar o que era o Brasil, um país até então pratica- mente desconhecido. Sua importância também foi muito grande na área da teoria, na introdução de uma sociologia de cunho marxista e dialético no Brasil, além de seu pioneirismo no estudo da globalização, deixando vários livros que são extremamente importantes. Sua perda está inserida em outra perda, que é a de uma geração que está sumindo e que será muito difícil de ser reposta. São quadros de intelectuais orgânicos cujas elaborações e análises foram inclusive incorporadas por diferentes classes sociais, por instituições e foram fundamentais na construção de uma universidade pública no Brasil, o que não é pouca coisa. Além da obra, que foi extremamente evolutiva – do jovem intelectual até o grande sociólogo da globalização –, o professor Octavio deixa um legado par- ticularmente imenso na área de ensino. Ele formou pelo menos dez gerações de sociólogos, economistas e cientistas po- líticos. Não consigo enumerar o volume de teses de mestrado e doutorado que o professor Octavio orientou, mas é de uma qualidade e quantidade impressio- nantes. Outro grande legado seu foi a ética. Sempre foi um grande sociólogo, extremamente discreto, cumpridor de seus deveres, absolutamente dedicado aos alunos e sem nunca se deixar conta- minar pela única doença profissional da universidade, que é a vaidade. José Antonio Segatto, diretor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (FCL-Araraquara) REPERCUSSÃO Fotos: Toni de Sousa/Fundo Voz da Unidade/Arquivo Edgard Leuenroth Fotos: Antoninho Perri A morte do professor Octavio Ianni deixa um vazio muito grande. Fica a ausência de um pensador e de um in- telectual extremamente preocupado com o destino da sociedade brasileira, com as injustiças sociais e com a necessidade de construção de uma nova ordem e de uma nova forma de organização social no Brasil. Demonstrou, até o final da vida, uma dedicação imensa ao ensino e ao debate – vale dizer que, apesar de doente e de estar na condição de professor a-posentado compulsoriamente, deu aula na Unicamp até dez dias antes de falecer. Nós perdemos um grande colega, um homem extremamente dedicado aos interesses do povo brasileiro. Seu maior legado foi a análise que fez do Estado brasileiro e de sua formação. Fez também uma análise crítica única do desenvol-vimento do capitalismo no Brasil. Essa é uma contribuição fundamental para todos nós.

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Universidade Estadual de Campinas – 19 a 25 de abril de 20044

ELIDE RUGAI BASTOS*

Para um leitor do pen­samento social, a forma pela qual um autor se relaciona com a proble­mática que aborda diz

muito, não apenas sobre seu perfil intelectual como a respeito de sua personalidade. Mais ainda, expli­cita o modo pelo qual se relaciona com o mundo. Percorrendo a ampla gama de preocu­pações que a travessam a obra de Oc ta vio Ian­ni, podemos per ce ber um traço, várias vezes assinalado pelos que o co nheceram, que o destaca como figura das mais no táveis entre a in te­lec tua lidade nacional: além de ser reconhecido co mo um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros, foi uma refe­rência ética nesse campo, pois ja­mais abriu mão do compromisso com a justiça social e a liberdade.

As dezenas de livros e artigos por ele escritos, que ampliaram o horizonte das investigações na área das ciências sociais, abrangem um largo espectro de problemas e dilemas que atravessam a socieda­de contemporânea. Lembro uma questão entre as muitas, que ilustra sobremaneira essa sua qualidade de referência ética e intelectual.

Um dos temas fundamentais da reflexão de Octavio Ianni foi a análi­se da condição social do negro bra­sileiro. Temática de sua primeira grande pesquisa – da qual resultou primeiramente parte do livro Cor e mobilidade social em Florianópolis (1960), em seguida Metamorfoses do Escravo (1962), – atravessou, embo­ra nem sempre centralmente, toda sua o bra. Mais que isso, a questão do ne gro no Brasil não foi para ele somente um assunto de reflexão, mas objeto de constante militância.

Questiona, em seus trabalhos, não apenas a bibliografia con­sagrada sobre a questão étnica, mas também os comportamentos que fundam as relações sociais no Brasil. Mostra como, ao definir-se a si tuação da população negra e mulata no Brasil, a raça é elemento dos mais importantes, pois funda a assimetria das relações sociais. Es sa ausência de paralelismo nas tro cas sociais leva à configuração de uma desigualdade perversa, não só porque impede que grande parte da população tenha acesso aos bens sociais, como opera como re produtora da condição de ex clu­dência. Aqui se coloca a questão principal que orienta sua reflexão: como romper esse círculo vicioso?

Na busca de respostas a essa per­gunta desenvolve grande parte de sua investigação e enfoca a si­tuação de submissão dos negros na sociedade brasileira. Denuncia o racismo camuflado, a exclusão da população negra dos melhores empregos e salários, o não acesso às melhores escolas, o que afeta sua possibilidade de competição, a concentração racial da riqueza e do poder. A partir dessa cons­tatação, critica as interpretações sobre a questão racial que vei­culam a idéia de que a predomi­nância no Brasil é do preconceito de classe e não do de raça, como se fosse um mero acidente o fato de o negro e o mulato concentra­rem­se nas classes mais pobres, tanto na cidade como no campo.

Nessa direção, em Raças e classes sociais no Brasil (1970) e Escravidão e racismo (1978) mostra que raça e cla sse são categorias comple­mentares na análise e como essa articulação se constitui como base dos conflitos sociais tanto no Brasil

como no restante da América Lati­na. Assim, indo além das atitudes, das verba li zações, dos compor­tamentos visíveis, indica que o substantivo da avaliação reside na percepção das práticas sociais nas relações de produção, na escola, na família, nas igrejas, na hierarquia militar, na administração pública.

É certo que o desnível de oportu­nidades já aponta para a existência de práticas sociais discrimina tó rias em relação ao negro, constituindo­se como um limite ao a van ço da democracia. Mas, como Ianni demonstra, essas manifestações discriminatórias expressam téc­nicas de preservação de interesses e privilégios e, por isso, impedem a livre circulação das pessoas se­gundo sua competência e sua qualificação. Assim, a questão racial acaba por transformar­se em componente fundamental da política e, desse modo, afeta o debate, o encaminhamento e a resolução da questão nacional nos países latino­americanos.

Mas, se a pesquisa é funda­mental para a compreensão das transformações da sociedade, a ação também o é: com esse intuito, Ianni aproxima­se dos movimen­tos sociais. Busca perceber o senti­

Ianni, a responsabilidadeintelectual levada ao limite

do do protesto negro tanto como força que operou na história da sociedade brasileira como no seu delineamento presente. Aprende com ele. Descobre seu sentido de des ven damento, desmistificação do véu ideológico que recobre a re­alidade da condição da raça negra. Isso ex plicaria as mobilizações em sua di versificação no espaço e no tempo, além da amplitude de sua ação, ora afirmando uma cultura afro­brasileira, ora lutando contra qualquer espécie de discriminação. A cata a diversidade de direções. Com preende, desse modo, a articu­lação entre a literatura negra e o mo­vimento negro, notando que ambos conjugam­se e se retroalimentam. Sua construção é simultânea, um não sendo superior ao outro. Absor­ve esse dado como uma lição para a direção do trabalho intelectual.

Com os desafios do presente, com a cristalização de uma socie­dade global, com o fato de os ho­mens de pararam com uma nova etapa da história, desloca­se a ação do movimento negro, que passa a

be ne ficiar-se do debate mais amplo so bre os direitos universais. Ianni levanta algumas indagações sobre os caminhos da nova história da questão racial, agora dentro de di­ferentes condições de existência. A definição dessas novas condições é objeto de seus livros recentes: A Sociedade Global, de 1992, A Era do Globalismo, de 1996, e Enigmas da Mo dernidade-Mundo, de 2000.

Com a questão racial quis e xem­plificar, brevemente, como Ianni percebeu a recriação das diversida­des e das desigualdades no Brasil, em vários momentos da história e, através dessa reflexão, exerceu permanentemente a crítica. Em outros termos, como assumiu um traço intrínseco à condição de in­telectual: vincular a atividade de pensar ao compromisso de elevar a condição humana.

*Elide Rugai Bastos é professora do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

Ao lado de Mário Schemberg, Octavio Ianni

fala durante a Semana Karl Marx, realizada em março

de 1983 em São Paulo

Rubem Murilo Leão Rego, diretor do IFCH-Unicamp

Geraldo Di Giovanni, professor do Instituto de Economia da Unicamp

Octavio Ianni era de uma geração que estudou e consolidou as ciências sociais no Brasil, além de ter feito uma obra importante com Flo restan Fer-nandes, Francisco de Oliveira e Fer-nando Henrique Cardoso. Obra que, de uma certa forma, é um desdobramento do Caio Prado e de Werneck Sodré e que teve o papel de desvendar o que era o Brasil, um país até então pratica-mente desconhecido. Sua importância também foi muito grande na área da teoria, na introdução de uma sociologia de cunho marxista e dialético no Brasil, além de seu pioneirismo no estudo da globalização, deixando vários livros que são extremamente importantes. Sua perda está inserida em outra perda, que é a de uma geração que está sumindo e que será muito difícil de ser reposta. São quadros de intelectuais orgânicos cujas elaborações e análises foram inclusive incorporadas por diferentes classes sociais, por instituições e foram fundamentais na construção de uma universidade pública no Brasil, o que não é pouca coisa.

Além da obra, que foi extremamente evolutiva – do jovem intelectual até o grande sociólogo da globalização –, o professor Octavio deixa um legado par-ticularmente imenso na área de ensino. Ele formou pelo menos dez gerações de sociólogos, economistas e cientistas po-líticos. Não consigo enumerar o volume de teses de mestrado e doutorado que o professor Octavio orientou, mas é de uma qualidade e quantidade impressio-nantes. Outro grande legado seu foi a ética. Sempre foi um grande sociólogo, extremamente discreto, cumpridor de seus deveres, absolutamente dedicado aos alunos e sem nunca se deixar conta-minar pela única doença profissional da universidade, que é a vaidade.

José Antonio Segatto, diretor da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (FCL-Araraquara)

REPERCUSSÃO

Fotos: Toni de Sousa/Fundo Voz da Unidade/Arquivo Edgard Leuenroth

Fotos: Antoninho Perri

A morte do professor Octavio Ianni deixa um vazio muito grande. Fica a ausência de um pensador e de um in -telectual extremamente preocupado com o destino da sociedade brasileira, com as injustiças sociais e com a ne cessidade de construção de uma nova ordem e de uma nova forma de or ga nização social no Brasil. Demonstrou, até o final da vida, uma dedicação imensa ao ensino e ao debate – vale dizer que, apesar de doente e de estar na condição de professor a-posentado compulsoriamente, deu aula na Unicamp até dez dias antes de falecer.

Nós perdemos um grande colega, um homem extremamente dedicado aos interesses do povo brasileiro. Seu maior legado foi a análise que fez do Estado brasileiro e de sua formação. Fez também uma análise crítica única do desenvol-vimento do capitalismo no Brasil. Essa é uma contribuição fundamental para todos nós.