fotografia de arquitetura e cidade: pura

15
1 FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA DEFORMAÇÃO. César Bastos de Mattos Vieira Prof. Arq. Dr. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Arquitetura Brasil E-mail: [email protected] Resumo A fotografia, e em especial a fotografia de arquitetura e cidade, apresenta uma semelhança incontestável com seu referente real... semelhante sim, mas não igual. Walter Benjamim, já alertava que “a natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao olho. Em 1975, Cervin Robinson, alertava para estas “discrepâncias entre a imagem e a realidade” e Suzan Sontag corrobora, também, com esta hipótese ao afirmar que “a foto pode distorcer”. Este trabalho visa evidenciar e problematizar o uso indiscriminado dos recursos do aparelho fotográfico no intuito, consciente ou não, de construir uma imagem deformada da realidade. A utilização destas estratégias de obtenção de imagens de prédios e parcelas da cidade como forma de agregar ou atribuir valores subjetivos, tais como monumentalidade são pura deformação e tornaram-se uma maneira de fazer fotografia, esperada e até desejada pelos leitores. Palavras-chave FOTOGRAFIA; ARQUITETURA E CIDADE; REPRESENTAÇÃO; PERCEPÇÃO Introdução A fotografia, e em especial a fotografia de arquitetura e cidade, apresentam uma semelhança incontestável com seu referente real. Desde as primeiras fotografias a arquitetura e a cidade se prestam como modelos apresentando um registro da realidade com grande precisão... seriam, então, estas afirmações totalmente verdadeiras? Walter Benjamim, já alertava que “a natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao olho (2008, p. 26, tradução do pesquisador). Em 1975, Cervin Robinson 1 , também alertava para estas “discrepâncias entre a imagem e a realidade” (1975. p. 10), no Journal 1 Fotógrafo, historiador e crítico, Cervin Robinson é reconhecido como um dos mais destacados estudiosos da arquitetura americana. Robinson faz palestras e escreve regularmente para vários periódicos acadêmicos e de arquitetura e tem lecionado fotografia de arquitetura na Universidade de Columbia. Disponível em <http://designobserver.com/author/cervin-robinson/1417/> Acessada em 01/10/2011.

Upload: lytu

Post on 09-Jan-2017

219 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

1

FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA DEFORMAÇÃO.

César Bastos de Mattos Vieira Prof. Arq. Dr.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Arquitetura – Brasil

E-mail: [email protected]

Resumo

A fotografia, e em especial a fotografia de arquitetura e cidade, apresenta uma semelhança

incontestável com seu referente real... semelhante sim, mas não igual. Walter Benjamim, já

alertava que “a natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao olho. Em 1975, Cervin

Robinson, alertava para estas “discrepâncias entre a imagem e a realidade” e Suzan Sontag

corrobora, também, com esta hipótese ao afirmar que “a foto pode distorcer”. Este trabalho visa

evidenciar e problematizar o uso indiscriminado dos recursos do aparelho fotográfico no intuito,

consciente ou não, de construir uma imagem deformada da realidade. A utilização destas

estratégias de obtenção de imagens de prédios e parcelas da cidade como forma de agregar ou

atribuir valores subjetivos, tais como monumentalidade são pura deformação e tornaram-se uma

maneira de fazer fotografia, esperada e até desejada pelos leitores.

Palavras-chave

FOTOGRAFIA; ARQUITETURA E CIDADE; REPRESENTAÇÃO; PERCEPÇÃO

Introdução

A fotografia, e em especial a fotografia de arquitetura e cidade, apresentam uma

semelhança incontestável com seu referente real. Desde as primeiras fotografias a

arquitetura e a cidade se prestam como modelos apresentando um registro da realidade

com grande precisão... seriam, então, estas afirmações totalmente verdadeiras? Walter

Benjamim, já alertava que “a natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao

olho (2008, p. 26, tradução do pesquisador). Em 1975, Cervin Robinson1, também

alertava para estas “discrepâncias entre a imagem e a realidade” (1975. p. 10), no Journal

1 Fotógrafo, historiador e crítico, Cervin Robinson é reconhecido como um dos mais destacados estudiosos da

arquitetura americana. Robinson faz palestras e escreve regularmente para vários periódicos acadêmicos e de

arquitetura e tem lecionado fotografia de arquitetura na Universidade de Columbia. Disponível em

<http://designobserver.com/author/cervin-robinson/1417/> Acessada em 01/10/2011.

Page 2: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

2

of Architectural Education (JAE). Suzan Sontag corrobora com esta hipótese de que a

fotografia é imprecisa na maneira como registra a realidade visível ao afirmar que “a foto

pode distorcer” (2004, p. 16 grifo do pesquisador). Assim, posto desta maneira, o que se

pode afirmar é que a fotografia é semelhante sim, ao referente real, mas não igual.

O uso indiscriminado dos recursos do aparelho fotográfico e dos programas de

pós edição, no intuito de construir uma imagem espetacularizada da realidade visível, de

maneira consciente ou não, poderia estar criando, no leitor/espectador, uma imagem

deformada daquela cena. A utilização destas estratégias de obtenção de imagens de

prédios e parcelas da cidade, como forma de agregar ou atribuir valores subjetivos, tais

como a monumentalidade, poder, riqueza são pura deformação e tornaram-se um padrão

de fazer fotografia de arquitetura e cidade, esperada e até mesmo desejada por todos os

envolvidos no jogo fotográfico: fotógrafos, leitores/espectadores, editores e teóricos de

arquitetura e cidade. Sontag corrobora com estas afirmações e suposições ao afirmar:

A visão fotográfica, quando se examinam suas aspirações, revela-se sobretudo

a prática de um tipo de visão dissociativa, um hábito subjetivo reforçado pelas

discrepâncias objetivas entre o modo como a câmera e o olho humano

focalizam e julgam a perspectiva. Essas discrepâncias foram bastante notadas

pelo público nos primeiros tempos da fotografia. Assim que começaram a

pensar fotograficamente, as pessoas pararam de falar de distorção fotográfica,

como então se chamava. (Hoje, como observou William Ivins, Jr., as pessoas

de fato buscam tais distorções.) (2004, pg. 113-114)

Este trabalho visa evidenciar e problematizar este aspecto da fotografia de

arquitetura e cidade para que o leitor/espectador/pesquisador não caia na armadilha de

acreditar estar diante de uma representação fiel, objetiva e precisa de uma realidade visual.

A fotografia de arquitetura e cidade e as técnicas de representação em

arquitetura: uma relação antiga e harmônica

Conforme Benjamim (1994. p. 104) já destacava, a fotografia tem dois campos de

atuação bem distintos: artístico, onde concorre com alguns tipos de arte; e técnico, no

campo das representações. Desta sua dupla origem – arte e técnica – a fotografia sempre

oferece ao leitor/espectador um pouco de cada uma de suas facetas. Entretanto,

especificamente a fotografia de arquitetura e cidade, onde pode se considerar que haja uma

predominância do campo das representações, devido a sua intensão de servir como registro

Page 3: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

3

“o mais preciso possível” do “real”, a fotografia e o desenho tradicional tiveram uma

convivência mais pacífica. “Os registros de arquitetura, feitos tradicionalmente através da

representação em desenhos, passavam assim a contar com o novo recurso da fotografia,

quando se tratava de representar o existente” (CARVALHO e WOLFF, 1998 p. 137). Por

sua pretensão de substituir o desenho técnico com mais precisão e maior riqueza de

informações a fotografia tenta, de certa maneira, se aproximar e respeitar as regras e leis da

representação técnica do desenho. Desta forma, a fotografia de arquitetura e cidade, torna-

se, aparentemente, mais técnica e objetiva. Muitas destas diretrizes são utilizadas até os dias

atuais sem que haja, por parte dos envolvidos no ato fotográfico, nenhum questionamento

do porquê o fazem desta ou daquela maneira. Comprova-se pela observação empírica o que

Flusser já afirmava: “Os fotógrafos são inconscientes da sua práxis” (2002, pg. 75). Nos

quase 10 anos de pesquisa ainda não foi encontrada citação explícita e clara, por exemplo,

do porquê, na fotografia de arquitetura, se evita a convergência das linhas verticais2. Ao

serem questionados, fotógrafos de arquitetura, editores e pesquisadores/teóricos da área,

apenas afirmam que “é assim”: se faz desta maneira porque é uma “distorção indesejável”.

A justificativa mais provável, porém, conforme a hipótese defendida neste trabalho, é que

a fotografia de arquitetura continua seguindo os preceitos do desenho técnico de arquitetura

e que busca representar o existente baseado nas regras da geometria euclidiana. Da mesma

maneira, nas perspectivas cônicas, suas linhas verticais são mantidas paralelas seguindo os

preceitos da “perspectiva naturalis desenvolvida por Leo Batista Alberti” (MACHADO,

2015, pg 74).

Dizia-se, naquela época, que por ser um sistema de representação fundado nas

leis científicas (leia-se Euclidianas) de construção do espaço, a perspectiva

renascentista deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da realidade visível.

Dizia-se mais: essa mesma perspectiva deveria corresponder à visão da

natureza mais próxima daquela que o olho humano obtém através de seu

mecanismo óptico. (MACHADO, 2015, pg. 74)

Mesmo havendo sido desenvolvido todo um arcabouço teórico para habilitar o

desenho em perspectiva para que este apresentasse o terceiro ponto de vista, este terceiro

2 A convergência das linhas verticais acontece quando a tomada fotográfica não ocorre perpendicularmente as

faces do objeto, ou seja, ao movimentar a câmera para cima ocorrerá o surgimento de um novo ponto de fuga para onde

as linhas verticais convergirão. Este efeito, então, indesejável, poderá ser eliminado ou pelo retorno da câmera para

uma posição perpendicular, ou pela utilização de objetiva especial (Tilt & Shift), ou por câmeras de fole, ou, mas

contemporaneamente, pela pós-edição via softwares de tratamento de imagens, como por exemplo, o Photoshop.

Page 4: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

4

ponto continua sendo eliminado tanto na área do desenho técnico quanto na fotografia de

arquitetura e cidade.

Há outros indícios deste emparelhamento entre as regras do desenho técnico e da

fotografia de arquitetura e cidade, tais como, a tentativa de reprodução das vistas

ortogonais em fotografias, o cone de visão de no máximo 60º e as regras compositivas,

tais como, as vistas de frente (alçadas) ou vistas com um ponto de fuga, vistas inclinadas

a 30/60º ou simétricas (45º). Basta uma passada de olhos em sites especializados em

arquitetura, como, por exemplo, o Archdaily (http://www.archdaily.com.br/br) para uma

comprovação do que está sendo afirmado aqui.

A figura 01 apresenta um desenho do famoso arquiteto americano Frank Lloyd

Wrigth, de 1953. Este desenho é uma perspectiva cônica de dois pontos de vista que não

apresenta a convergência vertical (não está presente o terceiro ponto de fuga vertical). A

linha de horizonte baixa denota ao projeto grande monumentalidade e a perspectiva se

deforma nas extremidades do edifício devido ao cone de visão alargado. Este recurso ao

mesmo tempo que pode gerar uma certa estranheza visual também o diferencia e permite

apresentar linhas dinâmicas como de uma visada nunca vista a olho nu.

Page 5: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

5

Figura 01 – Perspectiva Frank Lloyd Wright - 1953 Fonte: DREXLER, 1962. Página 247

A fotografia e suas demandas

Se por um lado o desenho técnico impôs suas regras à fotografia de arquitetura e

cidade, por outro lado, como Flusser já alertava: “o fotógrafo somente pode fotografar o

fotografável” (2002, p. 31). Isto significa que a fotografia também tem limitações e

demandas e, portanto, impõe certas exigências, para que se consiga fazer um registro

fotográfico minimamente satisfatório. Para que isto seja alcançado são necessárias as

seguintes condições: qualidade de luz, distanciamento e ordenamento. Sendo assim, para

que a cena seja fotografada com qualidade, ela precisa oferecer uma boa luz, que seja

possível posicionar a objetiva a uma distância mínima necessária para um bom

enquadramento e, por fim, que o ambiente a ser registrado, ofereça uma possibilidade de

Page 6: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

6

ordenamento, preferencialmente, sem interferência de elementos obstrutivos da visada.

Desta maneira, é possível uma tomada limpa, nítida, organizada e luminosa, onde o ente

arquitetônico ou a parcela urbana seja o protagonista. Estas demandas são apresentadas e

detalhadas na tese “A fotografia na percepção da arquitetura” (VIEIRA, 2012). Quando

estas demandas não são satisfeitas pode o desenho técnico ser uma ferramenta capaz de

um registro mais eficiente da cena, uma vez que o artista pode, por exemplo, eliminar

elementos obstrutivos da visada, fazer seu registro mesmo em condições desfavoráveis

de luz ou distanciamento. Lê-se desenho técnico, nos dias de hoje, tanto o desenho feito

a mão pelo desenhista/artista, quanto o desenho assistido pelo computador (CAD) e suas

vistas virtuais ultrarrealistas (render).

Um dos pontos fundamentais para que a fotografia possa oferecer uma

significativa variação entre a “realidade visível” e o registro fotográfico da cena se origina

na utilização de lentes com distâncias focais diferentes da normal, ou seja, uso de lentes

que oferecem um cone visual diferente ao da visão humana.

Quando o aparato tecnológico (a câmera fotográfica) foi criado, sua primeira

pretensão era de substituir, ou pelo menos se equivaler, ao olho humano, ser

uma prótese mecânica equivalente. Assim, buscou-se de todas as formas obter

deste aparelho imagens que se igualassem às imagens como as vemos. Uma

das primeiras premissas era a de buscar lentes que apresentassem o mesmo

ângulo de visão do olho humano. A lente ‘normal’ é assim chamada porque

tem o ângulo de visão mais próximo do ângulo experimentado pelo olho

humano, ou seja, em torno de 45º. (VIEIRA 2012. pg. 157)

A visão humana, por ser dinâmica e não estática como a visão fotográfica, oferece

uma percepção do campo visual muito mais amplo do que os 45°. Afirma-se que o campo

de visão possa abranger entre 180° e 200°. Consegue-se isto a partir da visão binocular

focada, da visão periférica (desfocada) e da visão monocular periférica desfocada, ou seja,

o olho humano apresenta distintas área de visão com variações na nitidez de imagem.

Apenas uma pequena área central do campo de visão é de total nitidez e se refere a “visão

foveal” (aproximadamente 3°), a partir deste centro a visão vai perdendo em nitidez

gradualmente. Considera-se uma imagem com razoável proporção equivalente ao que o

olho humano percebe em uma única visada ser um cone de visão entorno de 45°. Seria

mais preciso dizer que esta seria a imagem oferecida por um olho só fixo, o olho do

Cíclope, e Machado dispara: “Isso quer dizer que a visão da perspectiva renascentista é a

Page 7: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

7

visão do Cíclope muito mais que a visão do homem” (2015, pg. 77). Com isto, para que

o objeto arquitetônico ou a parcela da cidade, que se pretende registrar, seja enquadrado

na sua totalidade há a necessidade de se afastar consideravelmente da cena, o que, em

muitos casos é impossível. A figura 02 apresenta esta situação ideal para o desenho de

uma perspectiva técnica de dois ou três pontos de fuga e que também pode ser considerada

a demanda ideal para a obtenção de uma fotografia com a utilização de uma lente normal.

Para Barcelos o cone visual ideal se apresenta ainda mais justo: entre 30 e 40°.

Figura 02 – Posição ideal para determinar a perspectiva. Objeto colocado com as faces a 30º | 60º em relação ao

Observador, a uma distância do Observador entre 2,5 a três vezes a sua dimensão e num ângulo de observação entre 30º a 40º (BARCELOS)

Fonte: http://www.ebah.com.br/content/ABAAABDaEAK/nocoes-basicas-perspectiva# Acessado em 12/07/2016

Estas variações de graus do cone de visão ideal persistem entre os autores

pesquisados e já era indicado no texto da tese do pesquisador. O que se observa em raros

casos é o alerta ou descrição das consequências da utilização de cones visuais alargados

na representação da realidade visível.

O cone de visão ‘normal’ que reproduzirá as mesmas proporções do que se vê

a olho nu é de no máximo 60°, sendo 45° o ângulo considerado que os olhos

humanos oferecem na visão focada. A aproximação maior eliminará ou deixará

de fora partes do objeto ou, no caso de se ampliar o cone de visão com a

utilização das lentes grande angular, obter-se-ão deformações como, por

exemplo, a convergência de linhas paralelas – aberrações visuais. (VIEIRA

2012. pg. 107)

No desenho técnico, se define como 60° o cone de visão máximo (LASEAU,

1982. p. 37), corroborada pelo que afirma Barcelos:

Page 8: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

8

O cone óptico do homem está calculado em aproximadamente 60º graus, embora

o nosso ângulo de visão seja de 180º. Contudo, apenas consegue-se focar com

rigor, as formas existentes num ângulo de 60º. Na representação das formas,

quando se emprega um ângulo maior de 60°, a imagem fica com um aspecto

distorcido. Este aspecto pode ser perfeitamente realçado e explorado, no campo

artístico. No campo da fotografia, consegue-se facilmente, imagens distorcidas,

através do emprego de objetivas "grande angular" e "olho de peixe".

Barcelos, nesta colocação, já levanta a possibilidade do uso “no campo artístico”

da exploração de ângulos maiores e indica a fotografia como “ferramenta” de

representação que possibilitaria a utilização deste recurso com consequentes distorções

nas imagens resultantes e, ainda, aponta para a utilização de objetivas (lentes) “grandes

angulares” e “olho de peixe”3.

A figura 03 apresenta duas situações de desenho perspectivado com dois pontos

de fuga. No primeiro caso o observador estava a uma boa distância do objeto o que gera

os pontos de fuga razoavelmente afastados entre si permitindo realizar uma perspectiva

equilibrada. No segundo caso, a exagerada aproximação do observador e consequente

aproximação dos pontos de fuga provoca uma deformação acentuada da perspectiva.

Figura 03 – Deformações na perspectiva devido a aproximação do observador.

Fonte: http://www.ebah.com.br/content/ABAAABDaEAK/nocoes-basicas-perspectiva# Acessado em 12/07/2016

O efeito apresentado na figura dois também pode ser reproduzido, em fotografia,

com a utilização de objetivas com diferentes distâncias focais ao enquadrar a mesma cena.

A objetiva, para filmes de 35 mm e sensores “full frame”, que oferece um cone de visão

de 60 graus é a 28 mm. Até as décadas de 1980 e 1990, esta lente 28mm, era considerada,

3 “Olho de peixe” é um tipo de lente considerada “super grande angular” que pode apresentar um cone de visão

próximo de 180 graus e resultando em uma imagem muito distorcida com aparência de uma bolha.

Page 9: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

9

para a fotografia de arquitetura, como limite da “perspectiva exagerada inevitável do uso

de uma visão alargada” (MCGRATH, 2009. pg 20). Este “padrão” vem sendo alterado e

cada vez mais se encontra em “dicas” para fotografia de arquitetura e cidade a sugestão

para a utilização de lentes mais amplas (de menor distância focal). Encontra-se, como

exemplo, afirmações como esta: “A grande-angular (GA) – é uma das objetivas mais

relacionadas à fotografia arquitetônica, possibilitando um enquadramento amplo (curta

distância focal) já que muitas vezes é impossível captar a extensão ou se distanciar do

assunto”4 ou, esta: “A grande angular ou lente ultra grande angular ajuda a obter

composições dramáticas e é provavelmente o tipo de lente mais importante para fotos de

arquitetura”5. Percebe-se que não há mais referência nenhuma às questões relativas as

deformações e aberrações dimensionais proporcionadas por estas lentes. O mercado

oferece, por exemplo, a lente Tilt and Shift - T&S (objetiva que permite a correção de

perspectiva e por isso indicada para a fotografia de arquitetura) com distância focal de

17mm, ou seja, uma ultra grande angular, cada vez mais utilizada por fotógrafos de

arquitetura e cidade. Neste trabalho serão apresentados exemplos de fotografias obtidas

com o uso desta lente. Esta objetiva oferece um ângulo de visão (horizontal, vertical,

diagonal): 93°/ 70°30’/ 104° respectivamente. Com esta objetiva é possível se obter uma

tomada inteira de um ente arquitetônico ou uma parcela de cidade sem que tenha que se

tomar grande distanciamento da cena a ser registrada. Para se ter uma noção melhor desta

demanda de distância, para uma objetiva normal há que se estar a uma distância de 2,5 a

3 vezes a maior dimensão do objeto. Já com uma objetiva de 17mm é possível enquadrar

todo um prédio a uma distância de uma vez a maior dimensão do objeto.

A figura 04 é um exemplo de uma fotografia obtida com uma lente de 17mm

posicionada de maneira inclinada para cima com relação ao prédio, o que faz surgir a

convergência das linhas verticais. Entretanto, por se tratar de uma lente aesférica6, esta

imagem não apresenta o efeito bolha ou “olho de peixe”. Neste caso há apenas um

“tombamento” dos prédios com o edifício protagonista (centro da fotografia) tomando

4 Fonte da informação: Fotografia – DG. Fotografia e arquitetura. Parte 1 de 2. Site: http://www.fotografia-

dg.com/fotografia-arquitetura/ Acessado em 13/07/2016. 5 Fonte da informação: Architecture Photography: Top 10 Tips For Creating Breathtaking Architecture Photos.

Site: Fotoblur Blog http://www.fotoblur.com/blog/1/architecture-photography-tips Acessado em 15/07/2016. 6 As objetivas fotográficas construídas com elementos de lente aesférica, oferecem imagens com distorções

mínimas dimensionais e cromáticas e imagens bem definidas o que as diferenciam dramaticamente das lentes

construídas com elementos esféricos, denominadas de lente “olho de peixe”.

Page 10: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

10

uma forma piramidal. Este efeito é apresentado também nas perspectivas cônicas com

três pontos de fuga ou nas imagens virtuais construídas vias softwares de CAD. Nestes

programas há literalmente câmeras fotografias virtuais onde se pode escolher diferentes

lentes e parâmetros como ISO, abertura do diafragma, tempo do obturador e se gerar

imagens “realísticas” também denominadas de renderes. O que é mais curioso é que estas

imagens, assim como as fotografias obtidas por câmeras “reais” que apresentam a

convergência, são depois editadas por softwares de pós-edição, como no Photoshop da

ADOBE, para a eliminação deste efeito óptico.

Figura 04 – Exemplo de fotografia com o observador muito próximo do objeto fotografado. Sem correção de perspectiva – com o terceiro ponto de fuga.

Fonte: Fotografia do pesquisador – César Bastos de Mattos Vieira

Já a figura 05 é uma fotografia obtida com uma lente Tilt & Shift, de 17mm,

posicionada de maneira perpendicular aos planos do edifício. Desta maneira as linhas

verticais do edifício se mantém paralelas. Isso não quer dizer que se trata de uma imagem

mais agradável que a apresentada na figura 04 ou, pelo menos, mais “realística” e que não

gere tanto quanto a outra fotografia uma certa estranheza ao olhar. Esta imagem foi obtida

em uma distância extremamente pequena do ente arquitetônico, o que resultou em um

Page 11: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

11

exagero na perspectiva, possível somente com a utilização desta objetiva. Contudo, este

tipo de imagem mostra-se “desejável” no meio arquitetônico. É indiscutível que esta

maneira de registrar a arquitetura e partes da cidade transmita uma impressão de

monumentalidade e imponência, sendo uma representação distinta daquela que o olho

humano oferece. Percebe-se então que mesmo com a busca de respeitar diretrizes técnicas

da representação por desenho, as fotografias oferecem valores subjetivos. Ao ser

extrapolado os parâmetros técnicos agrega-se valores artísticos ao registro fotográfico.

Figura 05 – Exemplo de fotografia com o observador muito próximo do objeto fotografado. Com correção da

perspectiva – eliminação do terceiro ponto de fuga.

Fonte: Fotografia do pesquisador – César Bastos de Mattos Vieira

O universo espetacularizado da fotografia de arquitetura e cidade

Flusser instiga e problematiza a fotografia ao afirmar que “O motivo do fotógrafo,

em tudo isto, é realizar cenas jamais vistas, ‘informativas’” (2002, pg. 35). No universo

da fotografia de arquitetura e cidade esta afirmação toma uma dimensão incontestável.

Page 12: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

12

Nunca foi mais verdadeiro que a fotografia de arquitetura e cidade busca a

espetacularização da realidade visível: a tomada jamais vista. Encontra-se em todos os

meios de informação “dicas” e sugestões que reforçam estas estratégias e moldam padrões

de representação cada vez mais distanciados da realidade visual oferecida pelos olhos

humanos. Nos dias de hoje, não apenas pela oferta de novos equipamentos, softwares e

estratégias fotográficas o que se apresenta aos leitores/espectadores, de maneira

consciente ou inconsciente, é pura deformação!

No prefácio do livro Mundo perfeito, do fotógrafo português Fernando Guerra,

escrito por Luís Urbano, o autor aborda “a dualidade da fotografia ao confundir perfeição

possível com as possibilidades de alteração desta realidade” (VIEIRA, 2012, pg. 250).

Tal como os arquitectos reconstroem um mundo particular em cada projecto,

procurando dar um sentido de unicidade a partir das variáveis com que se

confrontam - do cliente ao lugar, da geografia ao orçamento, das contingências

materiais às limitações estruturais - as fotografias de Fernando Guerra

devolvem à arquitectura essa procura da perfeição possível, “intensificando a

realidade retratada”, reconfigurando o mundo que a rodeia. (URBANO)

Sontag, por sua vez, destaca que este fenômeno de reconfiguração do mundo, em

parte devido a “uma predileção a favor da visão” (PALLASMAA, 2011, pg. 9) está

ensinando novos códigos visuais.

Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas

ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar.

Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim,

o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação

de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia

de imagens. Colecionar fotos é colecionar o mundo. (SONTAG, 2004, pg. 13)

Algumas consequências desta era do espetáculo, sem a devida desconfiança do

que está sendo apresentado pelas imagens fotográficas, são descritas por Jungmann (apud

CATTANI, 2010. pg. 12) da seguinte maneira:

(...) nossa cultura está se tornando tão imagética que estamos nos afastando cada

vez mais dos originais, das obras in situ. A imagem passa a ser o intermediário

universal entre o objeto e seu observador; a imagem é tão moderna, atual e

sedutora que corremos o risco de esquecer o objeto possível por trás dela. A obra

Page 13: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

13

original parece uma realidade ultrapassada e mesmo um conceito dispensável em

produções como a fotografia. (JUNGMANN, 2010. pg. 12) 7

Sem a devida atenção e compreensão destes fenômenos e de como se dá o registro

fotográfico da arquitetura e cidade, um leitor/espectador/pesquisador corre o risco de cair

em uma armadilha de acreditar no que é mostrado como uma cópia file da “realidade

visível”.

Considerações finais

Enfim, como era o objetivo deste texto, procurou-se fomentar uma discussão sobre

o grau de precisão e equivalência do universo “real visível”, dos registros fotográficos de

arquitetura e da cidade. Uma vez que estas imagens são fruto de uma codificação pelo

aparato tecnológico, pelo fotógrafo/operador e que seguem estratégias, padrões, que

podem produzir representações muito distantes da “realidade” e, assim, com

consequências diversas, e porque não afirmar negativas, na construção imagética por

parte dos leitores/espectadores.

Perceber com estranheza as imagens fotográficas, de arquitetura e cidade,

apresentadas pelos meios de comunicação e difusão é um bom sinal de que este leitor

ainda não foi estimulado a tal ponto de banalizar, de achar normal tanta discrepância entre

o que o olho percebe e o que a fotografia apresenta. É necessário retomar a consciência

de que pode existir uma grande diferença entre a realidade visível e suas representações

fotográficas.

Saber ler a fotografia, perceber suas armadilhas, entender sua maneira de codificar

o universo visível é permitir a este leitor reconstruir realidades e alcançar informações.

7 Referência original citada por Cattani (2010): JUNGMANN, Jean-Paul. L’image en achitecture: de la

représentation et de son empreinte utopique. Paris: Éditions de la Villette, 1996.

Page 14: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

14

Referências Bibliográficas

BARCELOS, Rosi Silva. Noções Básicas de Perspectiva.

http://www.ebah.com.br/content/ABAAABDaEAK/nocoes-basicas-perspectiva#

Acessado em 12/07/2016.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história

da cultura. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

______. Sobre La fotografia. Pré-textos. 4 ed. Tradución: José Muñoz Millanes, Valencia,

Espanha: Imprenta Kadmos, 2008.

CARVALHO, Maria Cristina Wolf de ; WOLF, Silvia Ferreira Santos, Arquitetura e

fotografia no século XIX, in: FABRIS, Annateresa, Org. Fotografia: uso e funções no século

XIX. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998. p:131 a 172.

CATTANI, Airton. Sistemas de representação em arquitetura. Relatório de estágio pós-

doutoral junto ao Centre d’Archives d’Architecture du XXe siècle da Cite de l’Architecture et du

Patrimoine. Paris, 2010. Texto inédito.

DREXLER, Arthur. The drawings of Frank Lloyd Wrigth. Londres: Thames and Hudson,

1962.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da

fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

LASEAU, Paul. La expresion gráfica para arquitectos y diseñadores. Mexico: G. Gili,

1982.

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo

Gili, 2015.

MCGRATH, Norman. Achitectural Photography: Professional techniques for shooting

interior and exterior spaces. New York: Amphoto Books, 2009.

PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre:

Bookman, 2011.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. 3 ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

ROBINSON, Cervin. Architectural photography. Journal of Architectural

Education (JAE), Vol. 29, No 2, Describing Places (Nov.,1975), pp. 10-15. Publicado por

Blakwell Publishing em nome de ACSA – Association of Collegiate Schools of Architecture, Inc.

Disponível em <http://www.jstor.org/stable/1424476> Acessado em 15/09/2011.

URBANO, Luís. Reconfigurar o mundo. Últimas Newsletter 06. Site de FG +SG -

Fotografia de Arquitectura. Fonte: http://ultimasreportagens.com/newsletter/n06/. Acessado em

24/04/2011.

VIEIRA, César Bastos de Mattos. A fotografia na percepção da arquitetura. Tese

(Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande

do Sul, Porto Alegre, 2012. Repositório Digital – UFRGS

Linck: http://hdl.handle.net/10183/53735

Page 15: FOTOGRAFIA DE ARQUITETURA E CIDADE: PURA

15