forças armadas brasileiras no pós-guerra fria

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  • 8/9/2019 Foras Armadas Brasileiras no ps-Guerra Fria

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    78Ten. Mund., Fortaleza, v. 2, n. 3, jul./dez. 2006.

    Este artigo analisa a evoluo do

    pensamento militar brasileiro nasltimas trs dcadas. Examinamos

    as origens das mudanas estratgi-

    cas no perodo ps-guerra fria, con-trastando os processos ocorridos no

    Exrcito e na Marinha, quanto a: re-

    laes com a potncia hegemnica,

    insero do Brasil no mundo e mis-

    so das Foras Armadas. O texto res-salta o papel fundamental da tecno-

    logia no desenvolvimento da Mari-nha e a continuidade de elementos

    doutrinrios da guerra fria no Exrci-

    to. No entanto, ambas as foras so-

    freram significativas mudanas em

    suas concepes estratgicas.

    The Brazilian armedforces in the post-Cold War

    This article analyses the evoluti-on of Brazilian military thinking overthe past three decades. I examinethe origins of strategic changes du-ring the post-Cold War era, contras-ting the processes that have occur-red in the Army and the Navy, in res-

    pect to: relations with the hegemo-

    nic power, Brazils insertion into theworld, the Armed Forces mission.The paper emphasizes the funda-mental role of technology in theNavys development, and the conti-nuity of Cold War era doctrines in theArmy. Nevertheless, both brancheshave undergone significant changes

    in their strategic conceptions.

    Joo Roberto Martins

    Filho: Professor do De- partamento de CinciasSociais da UFSCAR e Pre-sidente da AssociaoBrasileira de Estudos deDefesa.

    JOO ROBERTOMARTINS FILHO

    As Foras

    Armadas brasileirasno ps-guerra fria

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    AS FORAS ARMADASBRASILEIRAS

    NOPS-GUERRAFRIA

    Este artigo tem como objetivo analisar a evoluo do pen-samento militar brasileiro nas ltimas trs dcadas. Nesse sen-tido, ele d continuidade tradio sociolgica que v no es-

    tudo das doutrinas militares uma chave importante para o en-tendimento das polticas militares. Ao longo do texto, tenta-mos decifrar as origens das mudanas consolidadas no pen-samento estratgico no ps-guerra fria, procurando contrastaros processos ocorridos no Exrcito e na Marinha. Analisamosas mudanas nas concepes militares sobre as relaes coma potncia hegemnica no hemisfrio, a insero do Brasil no

    plano mundial e da Amrica Latina, o papel, as misses e as

    hipteses de emprego das Foras Armadas. Nesse quadro, bus-camos entender como as especificidades de cada fora influ-enciaram a evoluo de seu pensamento, destacando o papelfundamental do componente tecnolgico para a compreensoda evoluo da Marinha. A tese central que a fora terrestreapresenta hoje elementos mais fortes de continuidade em re-lao s doutrinas que marcaram o perodo da guerra fria. No

    entanto, ambas as foras sofreram processos significativos demudanas em suas concepes estratgicas, muitas vezes nopercebidas com o devido rigor na literatura das relaes civis-militares na sociedade brasileira, em geral centrada na pers-

    pectiva institucional.

    1 A ROTA DA MARINHAJ no final dos anos 1960, nos ltimos dias do governo Cos-

    ta e Silva, um documento do Departamento de Estado caracte-rizava a opinio militar dominante no Brasil como favorvel auma relativa independncia em relao aos Estados Unidos.1

    Nessa avaliao, o surgimento de uma gerao de altos ofici-ais menos marcados pela experincia da participao do pasna Segunda Guerra Mundial tendia a ter efeitos futuros nas per-cepes militares sobre a aliana com os EUA. Ao mesmo tem-

    po, ainda nessa viso, crescia nas trs foras armadas a per-

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    cepo de que o programa de assistncia militar estabelecidopelo acordo militar bilateral de 1952 no mais atendia s exi-gncias de modernizao militar do pas: H um sentimento

    nas Foras Armadas de que os Estados Unidos usualmenteconsideram seus prprios requerimentos e no aqueles do Bra-sil.2 Nesse quadro mais geral, por suas caractersticas espe-cficas, a Marinha foi a fora onde mais cedo essas percep-es difusas se expressaram em preocupaes mais concre-tas. O documento citado salientava que a fora naval brasi-leira tinha expectativas de se transformar numa fora peque-na, mas moderna e mencionava a opinio de pelo menosum oficial da alta hierarquia naval, para o qual os oficiais daMarinha brasileira no podem sentar na praia e assistir a Ma-rinha dos Estados Unidos patrulhar nossas guas (U.S. De-

    partment of State, 1969 : 61).Estariam a as razes da corrente do pensamento naval que

    uma dissertao acadmica denominou de heterodoxa, emcontraposio a uma postura ortodoxa que permaneceu mais

    vinculada ao pensamento geopoltico da Escola Superior deGuerra, com seus rgidos parmetros de aliana privilegiadacom os EUA nos quadros da guerra fria (Decuadra, 1991). He-gemnica desde meados dos anos 1970, a caracterstica maisgeral dessa corrente sua tendncia a afirmar relativa auto-nomia diante das polticas dos Estados Unidos: percept-vel a preocupao de definir objetivos propriamente brasilei-ros na questo do Atlntico Sul, distintos dos interesses he-

    misfricos ou ocidentais, estes ltimos tradicionalmente per-cebidos, dentro da Marinha, como idnticos aos nacionais(Decuadra, 1991:139).

    Com efeito, os porta-vozes dessa corrente esforaram-sepor fazer uma reavaliao dos prs e contras da aliana inici-ada com a vinda da Misso Naval americana de 1922. Os

    pilares dessa reviso foram resumidos por um dos expoentes

    desse grupo, o almirante Armando Amorim Ferreira Vidigal:

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    A aliana com os Estados Unidos de onde vinha todo o fluxo

    logstico para manter navios brasileiros em operao tinha resol-

    vido as dificuldades e perplexidades que at ento atormentavam a

    Marinha, mas custa de sua iniciativa no processo, o que, breve,teria conseqncias funestas. Sob o comando americano, apren-

    demos a fazer a guerra no mar em moldes modernos, entramos em

    contacto com equipamentos de projeto recente e sofisticados, como

    o sonar e o radar, passamos a pensar em termos mundiais mais do

    que em termos regionais, despertamos, mais uma vez, para nossa

    vocao atlntica. Contudo, total dependncia material somara-

    mos uma subordinao intelectual esterilizadora nos anos subse-

    qentes (Vidigal, 1985:89).

    Na Marinha, tanto heterodoxos como ortodoxos concorda-vam com a necessidade de superar a dependncia materialexterna na produo de armamentos; o pomo da discrdiaera, assim, a questo da subordinao estratgica aos Esta-dos Unidos. Na verdade, a aceitao da necessidade de pro-curar fora dos EUA os meios almejados pela Marinha brasi-

    leira provocaria um efeito interessante: a busca de maior au-tonomia no plano das formulaes estratgicas foi precedidapela busca de novas fontes para a modernizao tecnolgicados navios. Assim, o Programa Decenal de Renovao dosMeios Flutuantes de 1967 abriu as portas para a compra naEuropa de submarinos, fragatas e navios-varredores, sem queisso implicasse necessariamente qualquer reformulao doconceito estratgico vigente. O motivo dessa inverso foi a

    resistncia dos EUA em fornecer qualquer tipo de armamentos marinhas do hemisfrio, que extrapolasse as misses pre-vistas para essas foras navais nos quadros da guerra fria(Vidigal, 1985:96 e segs.).

    Nesse quadro, a corrente que se tornaria dominante a partirdo governo Geisel deu um passo a mais e passou a expressar ainsatisfao de setores da Marinha com a camisa-de-fora das

    concepes impostas pelos EUA a seus aliados hemisfricos e

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    que, no caso da fora naval, acarretava a destinao exclu-siva de suas marinhas defesa coletiva do hemisfrio con-tra a ento Unio Sovitica, num eventual confronto dos dois

    campos da guerra fria no cenrio do Atlntico Sul, em tare-fas de proteo anti-submarina ao trfego martimo. Efeti-vamente, o pensamento desenvolvido na Escola Superior deGuerra, com sua nfase na segurana nacional e na guerratotal, deixava pouco espao para reflexes sobre defesa na-cional e conflitos localizados (Oliveira, 1988:241-242). Mas,no final dos anos 1960, setores importantes do pensamentonaval aspiravam por horizontes mais amplos para a sua for-

    a, que extrapolassem o carter defensivo e de seguranacoletiva imposto pelos Estados Unidos nos limites do Acor-do de Assistncia Militar de 1952 e do Tratado Interamerica-no de Assistncia Recproca de 1947.

    O advento do governo Geisel, com sua poltica externa vol-tada para a afirmao do Brasil como potncia emergente, deuas condies que faltavam para que o novo pensamento estra-

    tgico naval fundamentasse novas polticas da Marinha. Em1977, o pas denunciou o acordo militar de 1952, no contextodas tenses provocadas pela poltica de direitos humanos dogoverno Carter e do contencioso em torno da assinatura doacordo militar com a Alemanha (junho de 1975). Nesse mes-mo ano, veio luz novo conjunto de Polticas Bsicas e Diretri-zes da Marinha, o qual, posteriormente desenvolvido e deta-lhado no Plano Estratgico da Marinha, gerou a Poltica Bsica

    da Marinha. Sua idia central era a seguinte:o Brasil deveria seafastar dos conceitos genricos de defesa coletiva do hemisf-rio e definir interesses de defesa prprios. Para tanto, partia-seda constatao de que um conflito de grandes propores en-tre EUA e URSS era improvvel, e a Marinha brasileira deveriase preparar para conflitos localizados de alcance regional.Istoampliava a gama de tarefas da fora naval, que passavam a

    incluir, por exemplo, as ameaas areas e de superfcie (Vidi-

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    gal, 1985:103-107; Cmara, 1983:173-74). A preocupao coma autonomia estratgica refletia-se tambm na nfase entoatribuda necessidade de nacionalizao dos meios. Essas

    diretrizes surgiriam com o almirante Henning, ministro daMarinha do presidente Geisel, em conferncia na Escola daGuerra Naval, no incio de 1978:

    A nfase especial vem merecendo as consideraes ligadas ao

    estabelecimento de uma doutrina de emprego, prpria para os

    condicionantes brasileiros, e crescente nacionalizao do seu

    armamento e equipamento, com apoio em pesquisas e desenvol-

    vimento em sintonia com a florescente indstria blica nacional

    (Henning, 1978: 36).

    Tais transformaes consolidaram o apoio da Marinha sdiretrizes mais gerais do governo Geisel, o que inclua o pro-cesso de lenta distenso do regime militar. No dizer de um dos

    principais formuladores da nova orientao naval: A partir de

    1977, a Marinha, pela primeira vez de forma plenamente cons-ciente, formalizou, atravs de documentao adequada, suaconcepo estratgica, em consonncia com a poltica gover-namental (Vidigal, 1985:105). Indagado sobre a impressoda fora naval em relao ao fim do regime militar, o almiran-te Mauro Csar Rodrigues Pereira, ministro daquela fora no

    primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, teria respondi-do: Eu diria que, como a Marinha j via h muito tempo a

    necessidade desse caminho, foi muito natural. Havia um certoalvio (Castro e DAraujo, 2001:262). Por fim, as mudanasocorridas na fora naval permitiram que, no final de 1989, dois

    pesquisadores afirmassem ser a Marinha essa fora mais cla-ramente voltada para polticas estritamente de defesa: A Ma-rinha entende que seu principal papel a defesa, no sentido desalvaguardar e proteger os interesses brasileiros no mar. Esta

    preocupao dever subordinar todas as demais (Proena J-

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    nior; Franco, 1993:152). Com base numa srie de entrevistascom oficiais, na maioria superiores, realizada nos ltimos mesesda guerra fria, conforme um desses pesquisadores constatou,

    a Marinha no mais se identificava com os conceitos da Esco-la Superior de Guerra e na viso dos entrevistados, no existi-ria um conflito interno, nem este seria responsabilidade dasforas armadas. A bipolaridade Leste-Oeste j teria acabadofaz muito tempo (Franco, 2001:125). Em contraste, os oficiaissuperiores do Exrcito contatados na mesma pesquisa apega-vam-se ainda aos conceitos da ESG e consideravam provvel aecloso de conflitos de ordem interna. Essa diferena introduz

    o prximo tpico.

    2 O CAMINHO DO EXRCITOSe podemos dizer que a necessidade de modernizao tec-

    nolgica levou a Marinha a tentar se livrar da camisa-de-for-a do alinhamento automtico com os EUA, no caso do Exr-cito foi o apego aos parmetros geopolticos da guerra fria

    que parece ter levado constatao de que o Brasil precisavade pelo menos alguma liberdade de ao para desenvolverseus prprios interesses, os quais incluam a modernizaotecnolgica, o que acabaria por levar a um projeto industrial-militar que passaria a impor novos termos s relaes com a

    potncia americana.Nesse sentido, em texto datado de 1987, um analista mili-

    tar independente assim registrava:A atual doutrina geopolti-

    ca brasileira foi elaborada durante as dcadas de 50 e 60. Nadcada seguinte, incorporou novos conceitos, sem abandonarsuas premissas ideolgicas e sem alterar suas premissas pol-tico-estratgicas (Cavagnari Filho, 1987:84). A mencionadaincorporao de novos conceitos parecia se referir ascenso,em meados dos anos 1970, da viso militar de que o Brasilestaria pronto para comear sua trajetria efetiva rumo sua

    construo como potncia. Esse antigo postulado da doutrina

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    geopoltica brasileira ganhara nova dimenso com o cresci-mento econmico do pas depois de 1968. No entanto, o queinteressa destacar aqui que a ambio de chegar a potncia

    antes do final do sculo XX no partiu, no pensamento domi-nante no Exrcito, de um questionamento do alinhamento comos EUA. Ao contrrio do ocorrido na Marinha, o pensamentoda fora terrestre acreditava na possibilidade de alcanar mai-or autonomia estratgica com a permisso da potncia ameri-cana: Coerente com sua matriz terica, a concepo militarelege como fim da potncia o exerccio da hegemonia regional

    por consentimento americano (Cavagnari Filho, 1987:80).

    O conservadorismo da fora terrestre refletia-se tambm noseu maior apego aos dogmas da ideologia da segurana naci-onal. At o final da guerra fria o Exrcito ainda considerava amanuteno da ordem interna como sua misso fundamentale resistia, mais que a Marinha, idia de controle civil sobre asForas Armadas. Essa caracterstica no deve nos impedir,

    porm, de localizar algumas mudanas importantes verifica-

    das, depois de 1977, na viso da fora terrestre sobre os ter-mos nos quais se deveriam se dar as relaes com o aliadonorte-americano. Nesse aspecto, ainda que a denncia do acor-do militar de 1952 no tenha significado no Exrcito uma revi-so da idia da subordinao estratgica aos EUA, notam-sealguns processos de alterao na avaliao dos termos da ali-ana. Em nossa hiptese, a questo da tecnologia militar voltaaqui como fator explicativo.

    Com efeito, embora o Exrcito no tenha colocado no cen-tro de suas perspectivas estratgicas a busca de maior auto-nomia diante dos Estados Unidos, a inteno de construo de

    potncia trazia inevitavelmente na mesa a necessidade de de-senvolver a capacidade estratgica brasileira e de diminuir suasvulnerabilidades.Nesse sentido, a doutrina geopoltica j afir-mava a exigncia de dotar o pas de uma base industrial mais

    sofisticada, aumentar a capacitao tecnolgica, aprimorar a

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    infra-estrutura e modernizar as Foras Armadas.Tais objeti-vos, na ideologia da segurana nacional, estavam includos no

    binmio segurana e desenvolvimento. A partir de meados

    dos anos 1970, porm, no contexto da construo da potncia,no pensamento dominante na fora terrestre ganhou peso des-

    proporcional o lado militar dessas necessidades: A moderni-zao da fora militar, o desenvolvimento tecnolgico-militare o domnio da tecnologia nuclear para fins militares (Cavag-nari Filho, 1987: 82). Ou, em outras palavras,

    A militarizao dos principais programas de tecnologia avanada

    (...) viria a revelar a determinao das Foras Armadas de obter atecnologia de vetores: o submarino nuclear, o mssil balstico de

    alcance mdio e o avio caa-bombardeio subsnico (...) a posse

    desses vetores seria um dos principais motivos de tenso nas rela-

    es com os Estados Unidos (Cavagnari Filho, 1994:28-29)

    Para os fins deste texto, o que interessa destacar a diferen-a entre os processos ocorridos na Marinha e no Exrcito. No

    caso da primeira, a necessidade de modernizao tecnolgicaprecedeu a mudana no pensamento estratgico. No caso doltimo, sem mudana no referencial estratgico, chegou-se necessidade de autonomia tecnolgica. Em ambos os casos, oresultado foi um aumento de tenses nas relaes com os Es-tados Unidos.

    Esse trao se expressaria com mais clareza nas negocia-

    es estabelecidas entre o governo Reagan e o governo Figuei-redo na primeira metade dos anos 1980 e que resultaram naassinatura de um Memorando de Entendimento de Coopera-o Industrial-Militar, em 6 de fevereiro de 1984. Referido do-cumento foi resultado dos esforos de um dos cinco grupos detrabalho criados por ocasio da visita ao Brasil do presidenteReagan, em fins de 1982, e expressava as intenes dos EUAde reativar as relaes militares com o pas, trinta anos depois

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    do acordo que definiu as relaes militares entre os dois pasesna primeira fase da guerra fria e cinco anos depois de sua de-nncia pelo governo Geisel.

    Na verdade, o memorando de 1984 representou o fracassodos EUA em convencer o governo militar a aceitar uma agenda

    bastante mais ampla do governo Reagan e que inclua: 1. aadeso do Brasil construo da Organizao do Tratado doAtlntico Sul (OTAS); 2. a cesso da Ilha da Trindade para es-tabelecimento de uma base americana; 3.a formao de umanova comisso mista militar entre os dois pases; 4.a reversoda poltica do Brasil na Amrica Central, onde os EUA estavam

    comprometidos com o solapamento do sandinismo; 5. a res-surreio de uma fora interamericana de paz, com o objetivode atuar na Amrica Central (Bustamante, 1987:64).3 fcilentender por que essa agenda, que implicava a negao dos

    princpios mais elementares da poltica externa brasileira, nofoi aceita. Do ponto de vista do nosso argumento, mais sig-nificativo aprofundar o entendimento das razes que levaram

    o governo Figueiredo a recusar mesmo a agenda mais limitadade transferncia de tecnologia militar, pedra de toque do esfor-o americano para reativar as relaes preferenciais intermili-tares proposto ento pelo governo americano.

    Ao contrrio da conjuntura do comeo dos anos 1950, queencontrou um setor das Foras Armadas brasileiras francamen-te favorvel ao estabelecimento de acordos militares com osEstados Unidos, no incio dos anos 1980, o intento norte-ame-

    ricano de reencontrar no meio militar um aliado seguro paraavanar sua agenda estratgica mais geral para o Brasil, se-duzindo-o com a transferncia de armamentos, defrontou-secom um conjunto de obstculos que expressavam os novostermos em que as Foras Armadas brasileiras, em seu conjun-to, concebiam seus interesses diante do aliado americano.Conforme j vimos, no Exrcito, o pomo da discrdia no dizia

    respeito a divergncias de concepes estratgicas mais ge-

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    rais. Em vez disso, a discordncia se deu em torno dos limitesque a transferncia de tecnologia militar dos EUA imporiam liberdade de ao dos projetos de modernizao tecnolgica

    militar patrocinados por essa fora.Profundamente comprometido com o projeto de consolida-

    o de uma indstria nacional de armamentos, por meio daexportao a pases de Terceiro Mundo, o Exrcito no tinhainteresse em aceitar, seja os limites que a legislao america-na imporia reexportao de armas com tecnologia america-na, seja qualquer projeto de reconverso da tecnologia militarempregada no Brasil a um padro nico norte-americano. Esta

    posio foi sintetizada, em fevereiro de 1984, quando seis diasdepois da assinatura do memorando de entendimento Brasil-EUA pelos ministros Saraiva e Schultz, em Braslia, os seisministros militares brasileiros divulgaram nota na qual afir-mavam que o pas no deveria aceitar tecnologia militar ame-ricana se esta se vinculasse a restrio a exportaes a tercei-ros pases (Bustamante, 1987: 74-75). Dessa maneira,segundo

    possvel afirmar, a poca do arrendamento e emprstimo(lendand lease), que marcou a cooperao militar nos termos dosacordos de 1952, estava terminada.

    3 DO PRATA CALHA NORTEO ano de 1982 aparece tambm como data importante em

    outro aspecto. A ecloso da guerra das Malvinas, que confron-tou a ditadura militar argentina com um inimigo externo ao

    hemisfrio, colocou em tela de juzo a eficcia de um dos pila-res centrais do arranjo de segurana hemisfrica da guerra fria:o Tratado Interamericano de Assistncia Recproca (1947).Alm disso, a derrota da Argentina preocupou os militares, namedida em que deixou clara a incapacidade das Foras Ar-madas brasileiras para uma guerra convencional de mdia in-tensidade (Cavagnari Filho, 1994:52). No entanto, no plano

    regional, a guerra no Atlntico Sul acabaria por contribuir para

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    um processo que j se esboava desde 1977, quando foramresolvidos os pontos de atrito referentes ao aproveitamento do

    potencial hidroeltrico dos rios da bacia do Prata: o da disten-

    so militar entre Brasil e Argentina.Com efeito, embora o emprego da fora militar nunca tenhaconfigurado uma possibilidade real nas relaes entres os dois

    pases, uma das quatro hipteses de guerra do Estado-Maiordas Foras Armadas brasileiras a hiptese Delta previa umconflito com o vizinho setentrional (Cavagnari Filho, 1994:48).Como lembrou numa conferncia pronunciada em 1992, o ge-neral Manuel Teixeira, ento na subchefia do Estado-Maior do

    Exrcito em meados dos anos 1980:

    Durante 80 anos, desde que se organizaram bem as escolas, elas

    vm como doutrina a hiptese de guerra do Brasil com a Argentina

    e vice-versa. Os oficiais que faziam os cursos na Escuela de Estado

    Mayor (...), em Buenos Aires at cerca de quatro anos atrs partici-

    pavam de exerccios onde o inimigo era o Brasil, e isso no era

    ocultado a nossos oficiais. No Brasil fazamos uma diferena e os

    denominvamos inimigo do sul, ou os nomevamos com uma cor(Teixeira, 1992:14).

    Na verdade, j em 1977, analistas do tema militar registra-vam na imprensa indcios de que em Braslia os Estados-Mai-ores militares tendem a reagir positivamente idia da maioraproximao entre os pases do cone sul (Ges, 1978:160). A

    postura assumida pelo Brasil em 1982 contribuiu para apro-

    fundar essas tendncias: A conduta diplomtica brasileira, so-lidria com a Argentina e dirigida busca de uma soluo pa-cfica do conflito, ajudou a dissipar antigos receios e a esvaziaruma rivalidade histrica (Cavagnari Filho, 1994:39). No Exr-cito, tal projeto encontrou continuidade na gesto do generalManuel Teixeira como responsvel pelo planejamento estrat-gico da fora em meados dos anos 1980.

    Mas a compreenso da evoluo do pensamento militar exige

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    voltar a 1977. Ento, no quadro das mudanas na poltica ex-terna patrocinadas pelo governo Geisel, que incluram umamaior preocupao com a Amrica do Sul, a perspectiva de

    alvio nas tenses no Sul possibilitavam a concentrao dosesforos militares, principalmente do Exrcito, na rea que co-meava a se consolidar como seu maior foco de preocupaes:a Amaznia, alvo do Tratado de Cooperao (TCA) entre os

    pases da regio, assinado em maro de 1977. A ligao entreum e outro processo apareceria nas declaraes do ministrodo Exrcito, general Fernando Belfort Bethlem, em fins daqueleano: As fronteiras do Sul esto consolidadas, enquanto as do

    Norte podem ser chamadas de fronteiras vivas (Folha de S.Paulo, 19/11/77). Efetivamente, interessava, sobretudo aoExrcito, a concluso da manobra de ocupao do Norte, pre-vista nas reflexes clssicas da geopoltica brasileira. ParaGolbery do Couto e Silva (1981:47), tratava-se de inundar decivilizao a Hilia Amaznica, a coberto dos ndulos frontei-rios, partindo de uma base avanada constituda no Centro-

    Oeste, em ao coordenada com a progresso E-O segundo oeixo do grande rio.Em maio de 1985, no comeo do governo Sarney, tal mano-

    bra teve continuidade com a proposio pela Secretaria-Geraldo Conselho de Segurana Nacional de um plano para atuaona regio Norte das calhas dos rios Solimes e Amazonas. O

    plano parecia expressar principalmente as vises dominantesno Exrcito. Toda sua justificativa era calcada na linguagem

    da Doutrina de Segurana Nacional e da geopoltica. Dentrodesses parmetros, ele consolidava as preocupaes da foraterrestre com a fronteira norte, no rastro da eliminao, a par-tir de 1975, da ameaa subversiva interna. Coerente com asidias tradicionais da geopoltica brasileira, o Projeto CalhaNorte como foi depois denominado expressava tambm commais fora a preocupao militar em evitar interferncia es-

    trangeira na rea amaznica, considerada de responsabilida-

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    de dos pases da regio, dentro do esprito do TCA. Assim, possvel ver a tanto a presena das percepes calcadas naguerra fria (interferncia de Cuba na situao interna de pases

    vizinhos, considerada naquela altura improvvel), como tam-bm com a interveno direta do governo norte-americano, quetende a superavaliar a possibilidade de expanso comunistana rea (Estudo n.010/3aSC/85). Delineava-se, assim, o qua-dro das preocupaes futuras da fora terrestre com a defesada Amaznia. resistncia s intenes americanas de limi-tar os programas brasileiros de tecnologia sensvel, juntavam-se percepes de ameaa centradas na cobia internacional

    pela Amaznia (Martins Filho, 2003).

    4 INTERMEZZO (1987-1992)O perodo de cinco anos que se seguiu a 1987 no parecia

    uma fase muito propcia para a reflexo estratgica. Nessafase, as Foras Armadas concentraram ,a princpio, sua atu-ao nos trabalhos da Assemblia Constituinte de 1988, com

    o objetivo principal de garantir a manuteno de suas prerro-gativas institucionais, objetivo alcanado com bastante su-cesso (Zaverucha, 1994: 193 e segs.). Com o incio do gover-no Fernando Collor, em 1990, enfrentaram uma poltica decortes oramentrios e medidas de controle civil como aextino do Servio Nacional de Informaes (SNI). No planoexterno, a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o subseqen-te colapso da ento Unio Sovitica configuraram uma sur-

    preendente ruptura com a ordem mundial vigente desde 1947.Em seguida, a Guerra do Golfo, no incio de 1991, alertou osmilitares para as novas condies de interveno militar do

    ps-guerra fria. O resumo de um artigo sobre a estratgia nolimiar do terceiro milnio define bem a viso militar brasileirasobre esses processos: O fim da guerra fria, o desmantela-mento da Unio Sovitica e o colapso do comunismo inaugu-

    raram um perodo de transio na ordem mundial, caracteri-

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    zado pela despolarizao, pela dissociao hegemnica e pelatransnacionalizao (Gigolotti, 2005:55).

    No referente Amaznia, o governo Collor iniciou um pro-

    cesso de desmantelamento das polticas de integrao e mo-dernizao conservadora construdas durante o regime mili-tar, cumpriu a obrigao constitucional de demarcao dasterras dos Ianomami e colocou em banho-maria o Projeto Ca-lha Norte. No contexto pr-realizao no Rio de Janeiro da ECO-92, sua poltica externa procurou mostrar ao mundo um pasalinhado s reivindicaes do movimento ecolgico mundial.Nada disso, contudo, afetou a poltica do Exrcito de instala-

    o de grandes unidades e unidades operacionais na regioamaznica, em que se destacou a transferncia de uma briga-da de infantaria de Petrpolis (RJ) para Tef (AM), em 1991-92,e de uma brigada de Santo ngelo (RS) para Boa Vista (RR),em 1992-93 (Mximo, 1999:199-200; Silva, 1999).

    5 O EXRCITO E A RESISTNCIA NA AMAZNIA

    Na verdade, no plano do pensamento poltico militar, o go-verno Collor (1990-92) marcou uma mudana decisiva. Enquan-to se falava em crise de identidade militar, o Exrcito tinha emgestao uma nova doutrina. Tal doutrina expressa a adapta-o do Exrcito conjuntura do imediato ps-guerra fria. Nasvises dominantes no meio militar, as principais caractersti-cas dessa conjuntura foram o surgimento dos EUA como nicasuperpotncia mundial, no mais comprometida com o siste-

    ma de alianas do bipolarismo, num contexto onde passou ase debater a superao das noes tradicionais de soberanianacional. Tudo isso, num quadro interno no qual o governoCollor parecia se alinhar com as foras que pregavam a dimi-nuio do papel das Foras Armadas dos pases perifricos(Martins Filho, 2003: 264 e segs.).

    No incio de 1991, eclodiu a declarao do comandante mi-

    litar da Amaznia de que o Exrcito transformaria isso num

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    Vietn, se houvesse uma invaso daquela rea do pas (Mar-tins Filho, 2003: 272). No comeo de 1992, na alocuo feita tropa, no dia da formao de despedida da brigada gacha

    transferida para o norte, seu comandante, o general Luiz Neryda Silva, aludiu no apenas distenso com a Argentina, masa presses aliengenas que ameaam nossa soberania sobrea Amaznia. Isto fez com que a prioridade de emprego dasForas Armadas fosse direcionada para aquela rica e cobiadarea, bravamente conquistada e mantida por nossos anteces-sores (Silva, 1999: 266).

    No h uma histria oficial da formulao dessa doutrina.

    Contudo, existem fortes indcios segundo os quais seus pri-meiros formuladores foram oficiais que haviam participado docombate guerrilha no Araguaia, na primeira metade dos anos1970, e tinham experincia nos mtodos do Centro de Instru-o de Guerra na Selva, sediado em Manaus.4 Se essa hipteseestiver correta, o que parece ter ocorrido um processo inte-ressante e possivelmente indito de transformao de uma ex-

    perincia de combate anticomunista, com razes na doutrinafrancesa daguerre rvolutionnaire, numa doutrina que procu-rava retirar lies estratgicas e operacionais das foras atento combatidas, na hiptese de conflito do Brasil com umagrande potncia. Na realidade, a idia de espelhar os mtodosdo inimigo no era nova e constitua o corao da doutrinafrancesa (Martins Filho, 2004). O trao novo estava no esforo

    para integrar mtodos irregulares de guerrilha guerra con-

    vencional de foras regulares, em face de um poder militarincontestavelmente mais forte.

    Por volta de 1991 j se discutia na Escola de Comando eEstado-Maior do Exrcito (ECEME) uma estratgia capaz deser empregada na Amaznia, em manobra necessariamentelonga e com a transformao temporria de foras irregularesem foras guerrilheiras (Silva, 1992). Seu fundamento terico

    era a conceituao da estratgia da lassido de Andr Beaufre:

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    Se a margem de ao grande, mas os meios disponveis excessi-

    vamente fracos para obter uma deciso militar, pode-se recorrer a

    uma estratgia de conflito de longa durao, visando a promover

    uma usura moral, a lassido do adversrio. Para poder durar, osmeios empregados sero muito rsticos, mas a tcnica de emprego

    (geralmente uma guerra total apoiada sobre uma guerrilha genera-

    lizada) obrigar o adversrio a um esforo bem mais considervel

    do que ele poder suportar indefinidamente. Este modelo de luta

    total prolongada de fraca intensidade militar foi geralmente empre-

    gado com sucesso nas guerras de descolonizao. Seu terico prin-

    cipal Mao Tse-Tung (Beaufre, 1998:33).

    Nesse quadro, em texto publicado em 1995, o ento coro-nel-aviador lvaro Pinheiro referia-se pela primeira vez a umadiretriz estratgica do Estado-Maior do Exrcito, que, para fa-zer face possibilidade da ocorrncia de um conflito contrauma fora multinacional extracontinental dotada de um supe-rior poder de combate, definia a estratgia operacional da las-sido ou da usura, conceituando-a como aquela que desen-

    volve-se atravs de um conflito prolongado, de carter total,tendo na maioria das vezes fraca intensidade, normalmente

    base de guerrilha e busca obter a deciso pelo desgaste morale o cansao material. Nesta forma de atuar fundamental sa-

    ber durar (Pinheiro, 1995: 13). Segundo a verso oferecida pelogeneral Paulo Roberto Corra Assis, ex-comandante do Centrode Instruo de Guerra na Selva ,e a chefia do Estado-Maior doComando Militar da Amaznia:

    O estudo desta estratgia iniciou-se em Braslia, em 1994, quando

    o general Pedrozo ento vice-Chefe do Departamento Geral de Ser-

    vio, do qual eu era assistente, sabedor por antecipao que ao ser

    promovido Gen Ex iria comandar o Comando Militar da Amaznia

    expediu sua principal diretriz, qual seja um tipo de guerra de guerri-

    lha no CMA. Iniciamos os estudos juntamente com o Comando de

    Operaes Terrestres, onde contamos com a valiosa colaborao

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    do Cel lvaro (Pinheiro, JRMF), para criarmos essa estratgia a fim

    de nos anteciparmos a uma fora muito superior diante da qual

    estaramos incapacitados de enfrent-la caso viesse a intervir na

    Amaznia(Assis, 2003:159).

    Contudo, como vimos, h fortes indcios de que os princpi-os da nova doutrina estavam definidos j em 1991. Talvez ogeneral se refira a um aprofundamento de aspectos da doutri-na no mbito do CGIS.5 De todo modo, quando vem luz oSistema de Planejamento do Exrcito (SIPLEX), a estratgia dalassido j est consolidada (Ministrio do Exrcito, 1996). No

    nvel operacional, como explica um dos seus mais importan-tes formuladores, ela pressupe a adoo da guerra irregularcomo principal forma de conduta da guerra convencional con-tra uma potncia militar claramente superior ao Brasil, em re-cursos materiais e cientfico-tecnolgicos. O grande objetivoda nova estratgia demonstrar ao invasor que o preo a pa-gar para manter o domnio sobre determinada regio no com-

    pensa os benefcios decorrentes (Pinheiro, 1995: 13).

    Para o coronel Pinheiro, nosso Exrcito compartilha com onorte-americano o mesmo conceito doutrinrio de emprego dasForas Especiais(FEs) quando preconiza que os Destacamen-tos de Foras Especiais estabelecero reas Operacionais deGuerra Irregular (AOGI). A diferena est em que, no caso bra-sileiro, no se prev a atuao das FEs no estrangeiro, junto aum Movimento Revolucionrio Patrocinado. Os operadores deFEs nacionais estabelecero AOGI no contexto de um Movi-

    mento de Resistncia, trabalhando com comunidades brasi-leiras, quando da ameaa ou da ocorrncia de uma invaso denosso territrio. O objetivo poltico a ser atingido restabe-lecer a Soberania e a Integridade do Patrimnio Nacional. Porfim, a doutrina se baseia na idia de que o centro de gravidadedo invasor sua vontade nacional. Vale dizer, a lassido temcomo objetivo durar at que se enfraquea a vontade nacionalde lutar do inimigo (Pinheiro, 1995: 13-14).

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    A nova concepo do Exrcito elevou os textos dos teri-cos da guerra revolucionria categoria de leitura recomen-dada nas escolas de formao. No espanta, assim, que pro-

    blemas estratgicos (da Guerra Revolucionria, JRMF) de MaoTse-Tung fossem citados j em 1992, na monografia do coro-nel Pinto Silva. Outra monografia, do major Fernando VelozoGomes Pedrosa, menciona o texto de Mao Sobre a guerra

    prolongada como modelo que, com adequadas adaptaes,pode ser aplicado a outros conflitos de natureza semelhante(Pedrosa, 1995:6). O texto desse oficial inaugura tambm oestudo da experincia de luta do exrcito vietnamita contra

    as potncias francesa e norte-americana e afirma que consi-derando-se a justia da causa e o nvel de mobilizao do

    povo vietnamita, a vitria final do Vietn era s uma questode tempo.6 Nesse aspecto,como os prprios textos militaresdestacam, no seria possvel buscar na experincia dos pa-ses centrais reflexes sobre estratgias de resistncia: Os

    pases nos quais o Brasil tem tradicionalmente buscado ori-

    entao para formular sua doutrina militar no dispem deum modus operandique possa servir de base para uma dou-trina operacional (Abreu, 2003: 28).

    De todo modo, j em meados da dcada de 1990 a novadoutrina estava consolidada. De l para c, alm de rebatiz-la, a bem da clareza, como Doutrina de Resistncia, o Exrcitotem se esforado por aprimor-la no plano estratgico e tti-co-operacional. Como afirma um oficial de estado-maior

    (Abreu, 2003:28-29): A doutrina da resistncia vem sendodesenvolvida com carter prprio, mediante o estmulo pro-moo de simpsios e discusses em escolas e unidades datropa e conduo de experimentaes doutrinrias que in-corporam o gnio inventivo e a capacidade de improvisaodos homens que integram a fora terrestre.7

    Nesse sentido, nem a publicao da Poltica de Defesa Na-

    cional, em 1996, nem a criao do Ministrio da Defesa, em

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    1999, alteraram o curso previamente definido. No manual C-124-1 Estratgia, a fora terrestre afirma que a resistnciaconsiste em desgastar, por meio de um conflito prolongado,

    um poder militar superior, buscando seu enfraquecimentomoral pelo emprego continuado de aes no-convencionaise inovadoras, como, por exemplo, tticas de guerrilha (Mi-nistrio da Defesa, 2001:3.12). J o manual MD-33-M-04 ADoutrina Militar de Defesa preconiza que a estratgia da re-sistncia caracteriza-se pelo desenvolvimento de aes mili-tares em um conflito prolongado, de carter restrito, na mai-oria das vezes de baixa intensidade, onde normalmente em-

    pregam-se tticas e tcnicas de guerrilha (Abreu, 2003:27).Como este documento j foi elaborado no mbito do Minist-rio de Defesa, a continuidade parece evidente. de supor, as-sim, que os documentos sigilosos que constituem a PolticaMilitar de Defesa e a Estratgia Militar de Defesa, aos quaiso analista no pode ter acesso a no ser muito indiretamente,

    por inferncias retiradas das monografias militares, sejam do

    mesmo teor.8 Assim, foi possvel a uma anlise militar definais de 2005 afirmar:

    A doutrina em desenvolvimento pelo Exrcito Brasileiro para a

    defesa da Amaznia com base nas aes de guerrilha indita

    na Histria Militar. Nunca antes um exrcito regular se preparou

    para uma guerra irregular de longo prazo, desde a instruo at

    o levantamento dos aspectos logsticos envolvidos (Gigolotti,

    2005: 63-64).

    6 A MARINHA: TECNOLOGIA E ESTRATGIAComo vimos, desde meados da dcada de 1970 o pensa-

    mento dominante na Marinha vinha enfatizando a necessidadede autonomia estratgica o que se traduzia na definio deuma doutrina de emprego desvinculada dos imperativos da

    defesa hemisfrica , bem como de criao de uma capacida-

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    de tecnolgica autctone. Os anos 1990 encontraram a Mari-nha confiante nas potencialidades da integrao regional, prin-cipalmente com a Argentina o que permitiria definir con-

    cepes de defesa comum desvinculadas dos interesses es-pecficos da potncia hegemnica regional (Vidigal, 1990:60)e convicta do acerto de sua poltica de busca de autonomiatecnolgica, embora admitisse a adaptao da evoluo tec-nolgica naval s condies especficas do Brasil.Isto exigiaum compromisso entre modernizao e nacionalizao domaterial blico.

    Em seus aspectos mais gerais, o mundo do ps-guerra fria

    despertou na Marinha preocupaes bastante semelhantes sdo Exrcito: a nova situao estratgica era expresso de umagradativa mudana do eixo das tenses mundiais, que subs-titua as anteriores tenses Leste-Oeste por um injusto e,como no poderia deixar de ser, inseguro distanciamento en-tre os pases do norte, desenvolvidos, poderosos, ricos e r-

    bitros da ordem mundial e os pases em desenvolvimento ou

    subdesenvolvimento do sul (Flores, 1992:99). Os pensado-res navais tambm encaravam com desconfiana o novo dis-curso da soberania restrita e a emergncia de temas glo-

    bais meio ambiente, direitos de minorias, direitos huma-nos , que permitiriam a ultrapassagem dos conceitos clssi-cos de soberania nacional e autodeterminao. O mesmo va-lia para as propostas de reforma dos aparelhos militares dos

    pases menos poderosos: na viso dominante na Marinha, elas

    escondiam as intenes hegemnicas das potncias, sobre-tudo dos Estados Unidos, no sentido de impor sua prpriaagenda de segurana nacional a pases como o Brasil, con-forme se evidenciava na proposta de uso dos militares na re-

    presso ao narcotrfico:

    A reduo da capacidade de defesa clssica equivale, na prtica,

    adoo de um modelo que outorga a defesa de um pas a outra

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    potncia, geralmente a uma grande potncia, no nos termos tradi-

    cionais da defesa solidria ora em eclipse, mas simplesmente em

    funo do entendimento unilateral da grande potncia e de seus

    associados (Flores, 1992:105).

    Contudo, a especificidade da fora naval conferiu s refle-xes da Marinha algumas caractersticas prprias. Antes detudo, seguindo o fio condutor que vimos acompanhando desdeo comeo dos anos 1970, o pensamento naval concentrou-sena tendncia da nova ordem em consolidar o que se configu-rava com uma espcie de apartheid tecnolgico:

    So cada vez maiores as dificuldades para transferncia de tecno-

    logia de ponta, sob alegao de que ela capacita o receptor, mes-

    mo se um pas de potncia mdia, a produzir armas de destruio

    em massa e a desenvolver msseis de longo alcance, o que, segun-

    do o ponto de vista dos desenvolvidos, nas mos dos povos e

    governos politicamente imaturos, ameaa a paz mundial(Vidigal,

    1996: 56-57).

    Na mesma perspectiva, com o fim da dissuaso nuclear,adquiriam novo relevo as inovaes tecnolgicas em reascomo o aperfeioamento dos msseis e satlites artificiais; oaumento de autonomia e capacidade de carga dos avies; oaperfeioamento dos submarinos; a evoluo dos torpedos edas minas, assim como a revoluo da guerra eletrnica, entreoutros. Sem acesso s novas tecnologias, a Marinha ficaria demos atadas e ver-se-ia impossibilitada de desenvolver um

    projeto prprio que equacionasse as necessidades de moderni-zao com as possibilidades de nacionalizao dos equipa-mentos (Vidigal, 1996).

    Mas o aspecto mais original da evoluo do pensamento daMarinha no ps-guerra fria parece estar na reformulao dadoutrina. Refirimo-nos aqui ao desenvolvimento do conceito

    de dissuaso convencional como principal misso do poder

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    militar dos pases menos poderosos, que no podem pretenderum enfrentamento com pases de poder nacional muito superi-or aos seus (Vidigal, 1996:59). Aparentemente, expressa-se

    aqui uma evoluo semelhante que observamos no Exrcito.Mas h diferenas importantes. A partir da idia de que a Ma-rinha tem importante papel a desempenhar tanto na paz - pormeio do emprego poltico do poder militar -, quanto na guerra,o pensamento naval passa a propor o abandono do conceitode hipteses de guerra e hipteses de conflito, face pou-ca objetividade dessas hipteses e a ambigidade das situa-es que podem surgir. Em seu lugar sugere-se a adoo do

    conceito de vulnerabilidades estratgicas, vale dizer: Os prin-cipais pontos em que um pas vulnervel ao de um inimi-go externo qualquer, onde uma agresso pode causar dano dedifcil reparao e totalmente desproporcional ao esforo feito(Vidigal, 1996:62).9

    Com a nova conceituao, o pensamento estratgico daMarinha pretendia dar conta da inerente instabilidade da or-

    dem internacional e, ao mesmo tempo, definir com mais pre-ciso uma poltica militar para o pas: A combinao dasmisses resultantes de todas as vulnerabilidades estratgicasaceitas como vlidas servir de base para a definio do podermilitar necessrio (Vidigal, 1995:65). Em nossa perspectiva onovo enfoque tem conseqncias expressivas em termos de

    pensamento militar. Ao centrar fogo na definio das ForasArmadas como instrumento permanente da poltica externa

    nacional, a Marinha torna desnecessria a justificao da exis-tncia dessas foras com o recurso a qualquer atividade queno seja a defesa nacional, como por exemplo a defesa internaou guerra revolucionria. Torna possvel, assim, afirmar comtodas as letras que as hipteses de guerra do perodo pr-1989esto superadas e afasta com mais rigor a necessidade de de-finir inimigos internos. Os novos conceitos abriram caminho

    para que a Marinha se antecipasse ao Exrcito em outras ino-

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    vaes. Nesse prisma, j em 1995, pensadores navais previamuma maior colaborao das Foras Armadas do cone sul, anecessidade de progresso da doutrina militar no sentido da

    combinao de foras e o papel positivo que o Ministrio daDefesa poderia desempenhar na formulao de uma nova dou-trina de emprego.

    Os anos seguintes consolidaram tais vises. Em fins de2002,conforme o comandante da Marinha, almirante SrgioChagasteles, afirmava o novo documento da Estratgia MilitarBrasileira, ento em elaborao pelo Estado-Maior das ForasArmadas, incorporava a idia da superao do conceito de hi-

    pteses de guerra, adotava o de hipteses de emprego, oqual no exigia mais a identificao de um inimigo especfico.No mesmo texto, o comandante da fora naval reiterava a cen-tralidade da noo de vulnerabilidades estratgicas para adefinio das respostas e estratgias das Foras Armadas nanova conjuntura. O novo quadro conceitual conferia Marinhamaior capacidade de definir seu Conceito Estratgico e as ne-

    cessidades da fora. A partir da se estabelecia a importnciada noo de pronto emprego que, fundada na capacidade decumprir misses de um amplo espectro de emprego, abria es-

    pao para a flexibilidade, versatilidade e mobilidade no plane-jamento da fora (Chagasteles, 2003).

    7 A FORA DA INRCIANessa seo final, pretendemos sugerir que, no comeo do

    sculo XXI, apesar das mudanas analisadas neste artigo, per-manecem na fora terrestre alguns conceitos elaborados no

    perodo da guerra fria e que parecem ter sobrevivido aos aba-los que marcaram os anos 1990. Assim, embora o Exrcitotenha abandonado o conceito de Hipteses de Guerra e adota-do o de Hipteses de Emprego,10 conforme tudo indica, aindano mudou significativamente a viso explicitada em 1996,

    quando foi publicado o Sistema de Planejamento do Exrcito

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    (SIPLEX). Na sua doutrina Alfa, o Exrcito continuava a consi-derar a possibilidade de atuar na Defesa Interna, em

    Aes permanentes de carter PREVENTIVO, privilegiando as estra-tgias de PRESENA NACIONAL e da DISSUASO, bem como

    buscando contribuir com o Governo no esforo para inibir a atua-

    o das Foras Adversas (F Adv) e evitar que as crises evoluam para

    um quadro de ameaa estabilidade institucional (maisculas no

    original, JRMF) (Ministrio do Exrcito, 1996).

    Tal doutrina exigiria que o Exrcito se fizesse presente em

    todo o Territrio Nacional, com o propsito de conhecer a reae acompanhar situaes com potencial para gerar crises (Mi-nistrio do Exrcito, 1996:12).

    Seis anos depois, a Estratgia da Presena ainda era vistacomo fundamental, diante do papel pioneiro do Exrcito na for-mao do pas, a despeito de ainda se considerar a possibili-dade de um retraimento lento dessa necessidade. Segundo o

    ento comandante do Exrcito, general Gleuber Vieira, hojepassou a ser mais importante a capacidade de se fazer presen-te do que estar presente e a presena deve ser seletiva. Naviso da fora terrestre, o processo de retirada de uma pre-sena seletiva deve ser lento, mas observando-se aquele papel

    pioneiro que, durante algum tempo, teremos de exercer (Viei-ra, 2003:138-39). Na nova verso do SIPLEX (Ministrio da De-

    fesa, 2002), a doutrina Alfa permanece a mesma, suprimindo-se apenas o termo foras adversas.Em nossa hiptese, o que se v a a maior dificuldade do

    Exrcito em se livrar de sua histrica preocupao com a or-dem. A viso ainda predominante na fora parece melhor ex-

    pressa em uma monografia defendida na ECEME e publicadaem 1995 em A Defesa Nacional, intitulada As Foras Armadas

    no sculo XXI:

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    Mesmo se a lei no previsse tal destinao, dificilmente a sociedade

    aceitaria que as Foras Armadas se mantivessem impassveis diante

    do caos e da desordem. Seria ilgico e utpico que o Estado abrisse

    mo do brao armado para enfrentar qualquer ameaa, externa ouinterna. O velho aforismo franco-manico de que as Foras Arma-

    das sejam um grande mudo s encontra guarida entre os mal-

    intencionados. A mudez uma deficincia orgnica incompatvel de

    se constituir em predicado militar (Carvalho, 1995:64).

    No mesmo sentido, situa-se o apego ao conceito de segu-rana, em contraposio ao de defesa. Com efeito, possvel

    inferir de texto do ento subchefe do Estado-Maior do Exrcito,general Rui Monarca da Silveira, elaborado em 2003, que cou-

    be fora terrestre, nos trabalhos de reviso da Poltica deDefesa Nacional, no mbito do Ministrio da Defesa, a propos-ta de insero na nova verso daquele documento da tradicio-nal noo da Escola Superior de Guerra, que v a SeguranaNacional como a condio que visa a obteno e a manuten-

    o dos objetivos e interesses da Nao, por meio da integra-o e do emprego coordenado das vrias expresses do PoderNacional (Silveira, 2004:170). O mesmo texto recupera as re-flexes do marechal Castello Branco sobre as diferenas deabrangncia entre as noes de segurana e defesa, o qual con-sidera a noo de segurana nacional como mais abrangente,

    por compreender a defesa global das instituies, incorporan-

    do por isso aspectos psicolgicos, a preservao do desenvol-vimento (Silveira, 2004:171). No espanta assim uma mono-grafia militar recente lembrar que a estrutura militar est con-dicionada para responder aos desafios do passado, ou seja, rebocada pela histria. A mentalidade eminentemente retros-

    pectiva, defensiva e endgena.Portanto, no correspondendoao desejvel para quem aspira o crculo das naes de primei-ro nvel (Alves, 2004:33).11

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    Dessa forma, no comeo do sculo XXI, o analista do pen-samento militar brasileiro defronta-se com aspectos de mu-dana e de continuidade, cuja evoluo preciso acompanhar

    nos prximos anos, para a melhor compreenso da mudanade mentalidade militar. De todo modo, a tese principal destetexto a de que a compreenso do pensamento castrense fundamental para entender a questo militar no Brasil e paradar fundamento a qualquer tentativa de dilogo crtico com omeio militar parece se sustentar. Como procuramos demons-trar, o cho militar move-se com cautela, mas se move.

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    NOPS-GUERRAFRIA

    NOTAS

    1A atual tendncia da poltica exterior, com sua independncia em assuntos-chave efirme, mas basicamente amigvel, postura de toma l d c com os Estados Unidos nosassuntos bilaterais, parece corresponder opinio militar majoritria (U.S. Department

    of State, 1969: 33).

    2Ou porque alguns oficiais desejam mostrar a independncia brasileira dos EstadosUnidos ou porque este pas no est apto a oferecer os servios de tipo avanado queesto sendo procurados, atualmente h considervel interesse das Foras Armadas porofertas de venda atrativamente preparadas de terceiros pases (U.S. Department ofState, 1969: 61).

    3O trabalho de Bustamante, embora fundamental para entender essa etapa das relaesmilitares Brasil-EUA, peca pelo desconhecimento do debate interno s Foras Armadas brasileiras nos anos 1970 e 1980, sobre o qual existem hoje evidncias muito maiscompletas, como as fornecidas pelo projeto de recuperao da memria militar do CPDOC.

    4Dois exemplos so lvaro de Souza Pinheiro, que foi ferido no Araguaia (Carvalho,2004:193) e Carlos Alberto Pinto Silva, instrutor no CIGS em 1973-74 (Silva, 1992: 89),ambos coronis no incio dos anos 1990.

    5Do ponto de vista formal, cabe ao Estado-Maior do Exrcito a definio da DoutrinaMilitar Terrestre, no mbito do Comando de Operaes Terrestres.

    6Ver tambm, entre outros, Forjaz (1999; 2000); Forjaz, (2003); Abreu (2003) e Gigolotti(2005).

    7Machado Filho (2000); Salvani (2000); Plum (2005).

    8Algumas idias constantes da Estratgia Militar Brasileira podem ser inferidas das anota-es do general Mrcio Bergo (2005:11-12).

    9Exemplos dessas vulnerabilidades seriam a dependncia de importao de energia, ariqueza da Amaznia ou a extenso de nossas fronteiras.

    10A nova verso do SIPLEX define que as hipteses de emprego decorrem dos cenriosadmitidos e das orientaes poltico-estratgicas do pas, que no elegem ou caracteri-zam qualquer pas como potencial inimigo, e representam as opes estratgicas daDefesa Nacional (Ministrio da Defesa, 2002:33).

    11Esse autor, tenente-coronel de cavalaria e Estado-Maior, escreveu,em 2004, o nico

    texto que podemos chamar de crtico s concepes estratgicas atuais da fora terrestre.