força divina 2.3 o som nos audiovisuaismeusite.mackenzie.com.br/salinas/doutorado...
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coadjuvante com poderes ocultos para interferir no papel principal da imagem.
Mesmo vivendo seu papel de apoio, o som mantém o encanto indu de ser
manifestação da força divina, já que a civilização da imagem, mesmo com todo
seu poder, não diminuiu em nenhum momento as duas principais formas de
manifestação sonora do homem: a música e a fala.
2.3 O som nos audiovisuais
Cada meio audiovisual possui suas particularidades de linguagem e de
relacionamento com o receptor. Entretanto, o som e a imagem possuem
características que são idênticas para todos os audiovisuais, há uma linguagem
básica que é válida para todos. Para a imagem existe uma classificação
fundamental de planos, ângulos, movimentos de câmara, composição etc. Nessa
classificação um plano geral, por exemplo, é sempre um plano geral, não importa
se ele é visto em uma gigantesca tela de cinema ou em uma pequena janela de um
monitor de computador. No som também podemos apontar algumas
características básicas válidas para todos os meios audiovisuais. Encontramos
esses elementos do som no que se refere a sua fonte, suas propriedades, sua
localização com relação à imagem, ao espaço e ao tempo.
2.3.1 O som, sua fonte e a trilha sonora
O som é uma energia em forma de onda produzida pela vibração dos
objetos, como já anotamos na citação de Wisnik (no item 1.2.1). Chama-se, então,
de fonte sonora a um objeto que origina um som. De forma geral, pode-se traçar
uma linha cultural para dividir as fontes sonoras em naturais e artificiais. As da
natureza estariam de um lado, e as fontes dos sons codificados pelo homem, junto
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com os sons das máquinas inventadas pelo homem, estariam do outro lado. Na
natureza podemos presentar uma nova divisão: fontes animais e fontes de
fenômenos naturais. As vozes, os grunhidos, os gritos, o canto e os sons da
movimentação dos animais seriam originárias do primeiro grupo, e o som do
vento, de um trovão, das ondas do mar, de uma árvore caindo etc.,
corresponderiam ao segundo grupo. O homem, por sua vez, é fonte de uma série
de sons codificados, emitidos tanto por sua boca como pela movimentação,
batidas e estalos de diferentes partes do corpo. Nas máquinas, também, podem-se
realizar diversas classificações, como por exemplo, fontes mecânicas e fontes
eletro-eletrônicas: o motor de um carro e o alarme de um relógio eletrônico,
respectivamente.
No âmbito do audiovisual, então, o alto-falante é somente uma fonte
artificial eletro-eletrônica. Contudo, esta fonte possui o dom de representar o som
originado em qualquer outra fonte. O que um receptor ouve quando assiste
televisão não é o som de diversas fontes e sim a representação sonora desses sons
originada em uma fonte única. Roger Odin esclarece isto ao dividir aos fontes em
físicas e fílmicas (Odin, 1980: 125). As físicas são todas as fontes sonoras
naturais e artificiais, incluindo o próprio alto-falante. As fílmicas são as fontes
artificiais pertencentes ao contexto específico dos audiovisuais, as quais só podem
ser ouvidas em sua representação sonora através do alto-falante. As fontes sonoras
fílmicas, portanto, são o resultado da manipulação do som por parte de um ou
vários realizadores, no intuito de conceber um universo sonoro participante de um
produto audiovisual.
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Entenderemos aqui como trilha sonora a somatória de todas as fontes
fílmicas. A trilha sonora de um audiovisual corresponde, então, a todo o universo
criado para ser ouvido pelo receptor, ela é a paisagem sonora audiovisual. A
classificação convencionada das fontes de uma trilha sonora é mais simples que a
que apresentamos sobre as fontes físicas. Para Christian Metz existe somente a
combinação de falas, músicas e ruídos (Metz, 1980); J. Duley Andrew cita como
matérias da expressão sonora a linguagem falada, a música, os ruídos e efeitos
sonoros (Andrew, 1978: 212); Gonçalves Lavrador refere-se à coluna sonora
integrada por elementos icônicos, verbais e musicais (Lavrador, 1985: 292). Em
geral, todos os autores simplificam ao máximo qualquer análise do som nos
audiovisuais, os três autores citados são uma amostra breve deste fato. Porém,
quando nos referimos a uma linguagem básica dos audiovisuais, as fontes fílmicas
estariam enquadradas dentro dessas três categorias gerais, sendo que o silêncio,
que representa a ausência de som, e no qual todas as fontes estão caladas, também
deve ser estudado como uma categoria integrante da trilha sonora. Considera-se,
assim, neste trabalho, quatro grupos gerais de fontes fílmicas constituintes da
paisagem sonora audiovisual: as correspondentes (1º) as falas; (2º) aos sons e
efeitos sonoros; (3º) à música, e (4º) ao silêncio. No segundo capítulo do presente
texto analisaremos detalhadamente cada um destes grupos, bem como suas
relações audiovisuais na telenovela e sua audição por parte do receptor.
Diferente da realidade física, onde a capacidade auditiva de figura/fundo
realiza uma seleção do som de uma ou determinadas fontes, a seleção e
construção da paisagem sonora audiovisual é um trabalho específico do
realizador. O cérebro escolhe, no meio do caos, o som que quer ouvir. Este jogo
insere-se na clássica distinção entre som e ruído, na qual o som é comunicação e o
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ruído é interferência na comunicação. "A natureza oferece dois grandes modos de
experiências da onda complexa que faz o som: freqüências regulares, constantes,
estáveis, como aquelas que produzem o som afinado, com altura definida, e
freqüências irregulares, inconstantes, instáveis, como aquelas que produzem
barulho, manchas, rabiscos sonoros, ruídos" (Wisnik, 1989: 24). A trilha sonora
como organização de sons deve ser som e não ruído. A paisagem sonora
audiovisual configura-se de uma sucessão e combinação simultânea de sons
organizados na procura de um determinado significado. A trilha sonora pulsa a
atenção auditiva do receptor no intuito de respostas racionais e emocionais.
Enquanto as fontes físicas emitem uma mescla entre o intencional e o acaso, as
fontes fílmicas emitem uma mistura sonora intencional no máximo de suas
possibilidades. Os realizadores de uma trilha sonora devem ser incluídos no grupo
de compositores da moderna música concreta exatamente por realizarem essa
mistura sonora.
2.3.2 O Som e os Elementos Musicais
Se assumimos a trilha sonora como uma forma da música concreta,
devemos, então, considerar alguns elementos básicos da música para sua análise.
Todo som tem como propriedades uma altura, uma duração, um timbre e uma
intensidade. A sucessão organizada de sons denomina-se melodia, e a combinação
simultânea de dois ou mais sons chama-se de harmonia. Resguardando a distância
estética com a música, a trilha sonora, com toda sua particularidade, também está
composta com base nestes elementos.
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O maior ou menor número de vibrações por segundo determinam a altura
de um som; estas vibrações por segundo são chamadas hertz. O ouvido humano
normal tem capacidade de perceber freqüências que variam entre 20 e 20.000
herzt. Um som é considerado baixo ou grave quando sua freqüência é baixa e, na
medida em que sua freqüência aumenta, o som é considerado alto ou agudo: "...
som grave (como o próprio nome sugere) tende a ser associado ao peso da
matéria, com objetos mais presos à terra pela lei da gravidade, e que emite
vibrações mais lentas, em oposição à ligeireza leve e lépida do agudo (o ligeiro,
como no francês léger, está associado à leveza)" (Wisnik, 1989: 19). A música
organiza os sons em uma seqüência de freqüências determinadas chamadas de
notas musicais (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si);, a seqüência mais utilizada pela música
ocidental nos últimos dois séculos chama-se gama cromática bem temperada.
Nas ocorrências sonoras dos audiovisuais as alturas ganham importância de
acordo com as associações físicas e culturais dos sons. As vozes graves possuem
um ar de respeito e poder superior ao das vozes agudas. O tom grave (e na grande
maioria das vezes uma voz masculina) das narrações esportivas, de
documentários, de apresentadores de notícias, de comerciais etc., revelam-se com
um forte traço cultural dessa relação de poder. Os sons e efeitos especiais
trabalham de acordo as associações físicas das fontes sonoras, como já assinalou
Wisnik, o objetos grandes e pesados geram sons graves, enquanto os pequenos e
leves geram sons agudos. Podemos citar um exemplo deste gênero que está
padronizado ao extremo máximo do associativo: toques graves para acompanhar o
andar do elefante e toques agudos no andar da formiga.
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A duração corresponde ao tempo de prolongação de um som. Uma fonte
sonora pode gerar um som contínuo com duração que varia de frações de segundo
até um indeterminado número de horas. Os súbitos impulsos sonoros, de durações
curtas, geram surpresa e chamam a atenção; as ocorrências longas e contínuas são
colocadas rapidamente pelo cérebro na audição periférica. A duração dos sons
está ligada também à velocidade, isto é, quanto mais curto, maior a sensação de
rapidez, quanto mais longo, mais lento. No mundo urbano moderno os tempos
curtos determinam o sucesso das coisas, os sons curtos apresentam-se num estado
de agitação. Já no mundo da meditação, da reflexão, os tempos longos são os que
levam aos estados ideais de calma e tranqüilidade.
Nos audiovisuais as falas com durações fonéticas curtas denunciam
temperamentos ou estados de ânimo: agitação, ação, tensão, perturbação etc. Falas
lentas e pausadas em durações longas simbolizam tranqüilidade, sabedoria,
racionalidade, controle, preguiça... (novamente, para o andar do elefante os sons
graves e longos, para o da formiga os sons agudos e curtos). Na música, cada nota
tem uma duração específica ao ponto que na escritura musical os símbolos de
representação estão codificados de acordo com o tempo de execução da nota: uma
semibreve corresponde ao tempo mais longo, e uma semifusa corresponde ao
tempo mais curto. O silêncio, por sua vez, que representa a ausência de alturas,
ganha valores significativos em suas durações. As pausas silenciosas podem
trazer as sensações de medo, dúvida, espera e angústia, por exemplo.
O timbre, por sua vez, determina a possibilidade de identificação e
discriminação auditiva das diversas fontes sonoras. Uma mesma nota (altura)
emitida por instrumentos diferentes apresenta-se na mesma freqüência
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fundamental acompanhada de uma série de outras freqüências mais agudas que
determinam a, também chamada, cor ou timbre de cada instrumento. O timbre,
ou a cor, denuncia o tipo de fonte sonora. A capacidade de discriminação aliada à
memória auditiva nos permite reconhecer milhares de fontes sonoras somente
pelo timbre, sem necessidade de estar vendo a fonte. Quando a ligação fonte-som
é alterada, as coisas que vemos ficam falsas, mentirosas, há um estranhamento
sonoro. Por isso é que nos audiovisuais existe um cuidado especial na criação e
reprodução dos sons de uma paisagem sonora, já que uma cor dissonante de sua
fonte prejudica a veracidade do audiovisual.
Reconhecemos as pessoas pela singularidade no timbre de sua voz. A
relação entre um corpo que fala e o som de sua fala está determinada pelo timbre.
Uma mesma pessoa muda a cor de sua voz nas passagens da infância para o
mundo adulto e para a velhice. Quando ouvimos uma pessoa falar reconhecemos
se é homem ou mulher, jovem ou velho, sem necessidade de compreender uma
palavra da língua em que fala. Nos audiovisuais o timbre desempenha um papel
primordial no reconhecimento das fontes e nas associações espaço-tempo
culturais que um som pode carregar. O timbre de um instrumento ou da voz de
uma pessoa pode remontar instantaneamente o receptor a lugares e épocas
determinadas.
A intensidade refere-se ao grau de energia de um som. Independentemente
da altura, duração ou timbre, um som pode possuir intensidades fortes ou fracas.
O impacto do som em intensidades fortes pode danificar o ouvido provocando
perdas irreparáveis na audição. Um som grave contínuo com uma alta intensidade
pode derrubar um prédio pelas fortes vibrações provocadas nas colunas e paredes.
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Nos anos 70, o cinema realizou, no filme Terremoto (1974), uma experiência na
qual o público sentia os tremores de terra através de um som grave de baixa
freqüência e forte intensidade (sensurround). Esta propriedade, então, reveste o
som de uma dinâmica pontual com relação ao receptor. A intensidade prende a
atenção com suas diversas variações, moldando momentos de ação e repouso. Em
uma fala, por exemplo, as mudanças de intensidade podem ser tão ou mais
significativas que o que está sendo dito.
Um som com amplitude constante gera um grau de tensão suspenso na
dúvida de se vai terminar, diminuir ou aumentar. "O som que decresce em
intensidade pode remeter tanto à fraqueza e à debilitação, que teria o silêncio
como morte, ou à extrema sutileza do extremamente vivo (podendo sugerir
justamente o ponto de colamento e descolamento desses sentidos, o ponto
diferencial entre a vida e a morte, aí potencializados). O crescendo o fortíssimo
pode mandar, por sua vez, um jorro de explosão proteínica e vital emanando da
fonte, ou a explosão mortífera do ruído como destruição, como desmanche de
informações vitais" (Wisnik, 1989: 23). O som audiovisual aproveita-se desta
riqueza para criar figuras auditivas às vezes concordantes com a imagem e, às
vezes, dissonantes desta. No adequado controle das intensidades reside um dos
segredos de uma mixagem sonora e talvez do encantamento do receptor ao assistir
um audiovisual.
Os sons, com suas alturas, durações, timbres e intensidades, não se
apresentam de forma individual; ouvimos nas paisagens sonoras físicas e fílmicas
conglomerados de sons sucessivos e simultâneos. A sucessão de notas variando
em suas alturas criam a melodia. Em uma peça musical ela pode ser interpretada
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por um ou vários instrumentos, ou pela voz humana. No âmbito do audiovisual
falar de melodia torna-se um poco mais complicado, pois como determinar uma
linha melódica em uma trilha composta por tantos elementos diferenciados? A
princípio, podemos dizer que a partir do cinema sonoro as falas assumem o papel
de melodia. Não é necessário realizar uma pesquisa para concluir que as falas nos
audiovisuais transportam para si a missão do encadeamento narrativo. O intuito
dos realizadores é que a audição focalizada concentre-se nas falas, naquilo que é
dito. Seria, então, uma melodia que em sua organização lingüística estaria
direcionada à sua compreensão racional. Porém, esse valor de melodia dilui-se ao
notar que os outros elementos sonoros, inclusive os não-lingüísticos das próprias
falas, devem ser ouvidos com a audição periférica, provocando respostas
emocionais. Nesta relação de figura/fundo, a figura dirige-se ao racional e o fundo
ao emocional do receptor. Apresenta-se, então, uma articulação na qual a trilha
sonora detém não uma linha melódica, mas sim um jogo de várias linhas
melódicas simultâneas. A trilha sonora define-se, dessa forma, como uma
polifonia sonora estimulando ininterruptamente, e por várias frentes, a atenção
auditiva do receptor.
Na combinação simultânea dos sons, ou seja, na harmonia, a polifonia da
trilha sonora encontra seu papel de ação vertical. Na música entende-se por
acorde o momento em que duas ou mais notas são ouvidas ao mesmo tempo. Um
acorde em uma trilha sonora pode acontecer na simultaneidade de fala, música,
sons e/ou silêncio, e as possibilidades de significado projetam-se às múltiplas
combinações realizáveis. Quiçá, um dos maiores atributos estéticos das
manifestações audiovisuais resida nos bons aproveitamentos das articulações
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harmônicas tanto no interior da imagem, como nos acordes sonoros e nas
articulações de som e imagem.
A manipulação ilimitada de intervenção linear horizontal e vertical dotam o
som de possibilidades várias na somatoria de sentidos propostos pelo realizador e
apropriados e reelaborados pelo receptor. A composição melódica e harmônica
das falas, dos sons, das músicas e dos silêncios, constrói uma paisagem sonora
exclusiva do universo do audiovisual, composição esta desconhecida pelo homem
até a aparição do cinema sonoro. Embora o teatro pudesse realizar jogos sonoros
similares muito antes do cinema, ele não contava com os recursos tecnológicos
trazidos pelas novas formas de relacionamento das manifestações sonoras como a
imagem, o espaço e o tempo.
2.3.3 Som vs. Imagem, Espaço e Tempo
As articulações audiovisuais confrontam o som com a imagem, com o
espaço e o tempo representados. No cotidiano, os sons que ouvimos e as imagens
que vemos pertencem à realidade espaço/temporal em que vivemos. A luz é a
condição essencial para enxergar os objetos, porém nossa visão está limitada
pelos obstáculos que impedem sua propagação. Enxergamos somente aquilo que
está na frente de nossos olhos, ao ponto que para ver algo ao lado, devemos
realizar um movimento da cabeça, deixando de ver o que víamos antes. Há uma
apreensão do espaço, negando o próprio espaço. Possuímos uma potencialidade
de visão próxima aos 180o, no entanto, os caminhos da civilização levaram os
olhos a concentrar-se em uma breve área central do campo visível. Para além
dessa área fica a chamada visão periférica, fundamental para nossos movimentos
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cotidianos, sem ela seria quase impossível dirigir um carro sem bater
constantemente as laterais. Como anotamos acima com relação à audição, a visão
também faz um jogo de figura e fundo entre o que vemos focalizadamente e o que
vemos perifericamente.
O ouvido complementa em parte a apreensão do espaço negado pelos olhos.
Nossa audição é espacial, ouvimos em todas as direções além de não requerer da
luz para essa tarefa. Em condições normais os sons que ouvimos são o contato
com o espaço que não enxergamos. Seria impossível saber que alguém está no
portão de casa sem o estampido das palmas em harmonia com o cotidiano grito
cantado: "oh de casa!".
No audiovisual, a divisão entre o visto e o ouvido é mais profunda que na
vida cotidiana. O visto abrevia-se no interior dos limites retangulares de uma tela,
a imagem audiovisual é sempre um recorte do representado. Ao referir-se à
imagem eletrônica, Arlindo Machado escreve que ela "utiliza uma linguagem
metonímica, em que a parte, o detalhe, o fragmento são articulados para sugerir o
todo, sem que esse todo, entretanto, possa jamais ser revelado de uma só vez"
(Machado, 1990: 48). Mas a imagem cinematográfica também é metonímica, não
importando o tamanho da tela nem sua definição, há um espaço do visível,
denominado de campo, e outro do não-visível, chamado de fora-de-campo.
Segundo Nöel Burch, o espaço fora-de-campo divide-se em seis segmentos:
quatro correspondentes aos lados de fora da tela, um atrás da "câmara" (na frente
da imagem) e finalmente um atrás da cenografia (atrás da imagem) (Burch, 1970:
26). Comparando com a visão cotidiana, aparentemente existe uma proximidade
entre o visto e o não-visto, a diferença significativa está em que na imagem
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audiovisual vemos somente o que o realizador quer mostrar, não temos opção de
virar a cabeça e atingir um dos seis segmentos fora de campo.
O som audiovisual, por sua vez, é uma composição seletiva de falas, sons,
músicas e silêncios, diferente da realidade onde o som de todas as fontes ao redor
chega até os ouvidos e a seleção acontece no cérebro. O que ouvimos sai de um
ou vários alto-falantes e, assim como na imagem, escutamos aquilo que o
relizador quer mostrar. A divisão de campos determina-se em um campo do
ouvido e um campo do que não é ouvido. Com relação à imagem, o que ouvimos
pode ter suas fontes visíveis ou invisíveis. O som cuja fonte está localizada no
campo da imagem denomina-se som-in, e o som cuja fonte está localizada fora-
do-campo denomina-se som-off. Entendemos por som-in os sons que possuam
sua fonte plenamente visível na imagem e por som-off os sons que possuem sua
fonte não visível, ou seja, quando está em qualquer um dos segmentos fora da
imagem.
O som-in apresenta uma plena articulação audiovisual: o que é visto e
ouvido. Evita-se com ele uma incoerência som-imagem, eliminando possíveis
confusões por parte do público. No cotidiano, a simultaneidade entre som e
imagem depende somente da distância que nos encontramos da fonte sonora.
Sabemos que o som propaga-se no ar a uma velocidade de 340 metros por
segundo, portanto, nos acontecimentos distantes, vemos sua imagem e depois
ouvimos e som, o relâmpago e o trovão são o melhor exemplo da natureza deste
fenômeno. Mas no cotidiano próximo som-imagem são simultâneos, articulados e
coerentes.
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Nos audiovisuais, o som sincrônico corresponde a essa simultaneidade de
fonte emitindo som e sua representação na imagem. Os diálogos normalmente são
apresentados com fala sincrônica, vemos quem fala através de um som lábio-
sincrônico, isto deixa evidente e sem nenhuma dúvida as perguntas ou quem está
falando o quê. Os sons e efeitos sonoros apresentam sincronia basicamente
quando é possível observar na imagem uma fonte sonora, e quanto mais realista é
a produção nota-se um cuidado maior na ocorrência de sons cujas fontes são
visíveis. Em algumas produções utiliza-se até uma exacerbação dos sons
possíveis, temos na imagem um acontecimento que no cotidiano seu som seria
muito leve, talvez inaudível, mas a ocorrência sonora torna-se plenamente
audível. Nestes casos o som-in confere uma veracidade audiovisual acima do real.
Já a música, que tem uma grande participação nas trilhas sonoras, apresenta
poucas intervenções sincrônicas, somente quando se trata de produções onde ela é
o elemento central, os instrumentos e/ou as pessoas que cantam têm a fonte-in.
Em uma ampla maioria dos produtos audiovisuais a música toca durante quase
todo o tempo, mas sua fonte permanece sempre fora do campo.
O som-off denuncia o espaço fora-do-campo, nota-se uma incoerência
audiovisual. O som-off apela para a memória auditiva do receptor, memória de
sons naturais e artificiais. No som-off o espaço e tempo são potenciados e
amplificados, as relações ultrapassam a ligação direta com a imagem como
veremos adiante. O som-off chama para si as mágicas características do rádio. A
não-ligação com a imagem pulsa a imaginação do ouvinte, portanto, o som-off
adquire um papel primordial em suas possibilidades consonantes e dissonantes
com a imagem. Sua presença pode ser simplesmente paralela, concordando e
moldando coerentemente a imagem, ou libertando-se do paralelismo, criando
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novas direções de expressão, às vezes fugindo totalmente da imagem. Um ano
após o lançamento do cinema sonoro, na Declaração Sobre o Futuro do Cinema
Sonoro (1928), os cineastas soviéticos Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov
apontavam os perigos de empobrecimento da arte do cinema, em especial o da
montagem, com a chegada do som. Mas já vislumbravam o dinamismo do som-
off: "APENAS UM USO POLIFÔNICO do som com relação à peça de montagem
visual proporcionará uma nova potencialidade no desenvolvimento e
aperfeiçoamento da montagem./ O PRIMEIRO TRABALHO EXPERIMENTAL
COM O SOM DEVE TER COMO DIREÇÃO A LINHA DE SUA DISTINTA
NÃO-SINCRONIZAÇÃO COM AS IMAGENS VISUAIS. É apenas uma
investida deste tipo dará a palpabilidade necessária que mais tarde levará à
criação de um CONTRAPONTO ORQUESTRAL das imagens visuais e sonoras"
(Eisenstein, 1990: 218).
Além da relação com a imagem, o som também articula-se com o espaço e o
tempo dos acontecimentos audiovisuais. O cotidiano é vivido dentro do nosso
espaço e nosso tempo real, o que vemos e ouvimos refere-se a objetos reais que
nos rodeiam. Em um audiovisual há um universo real ou imaginário. Quando a
representação apresenta fatos reais, denomina-se não-ficção, e quando
apresentam-se fatos criados pela imaginação, denomina-se ficção. Contudo,
nestas duas formas de representação criam-se universos espaço-temporais onde os
fatos acontecem, na linguagem literária este universo real ou de ficção descrito
pelos autores denomina-se diégese.
Analogicamente à cotidianidade, tudo o que vemos e ouvimos nos
audiovisuais deveria pertencer à diégese, som-imagens diegéticos, mas a realidade
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audiovisual cria um universo paralelo onde também podem acontecer ocorrências
sonoras e visuais que estão fora da diégese, som-imagem extradiegéticos. No
cotidiano normal não há ocorrências extradiegéticas, ouvir ou ver algo além da
normalidade insere-se no âmbito da alucinação, da loucura ou da parapsicologia.
Nos audiovisuais, entretanto, essas "anormalidades" extradiegéticas são um fato
coerente e perfeitamente aceito pelo receptor atual. O som em especial possui uma
gama considerável de ocorrências extra-diegéticas, sendo que a música destaca-se
dos outros elementos sonoros neste tipo de ocorrências. "A música, que pode ser
diégetica ou construir um comentário adiegético, representa quase sempre,
sobretudo no segundo caso, um fator de interiorização da perspectiva e de
focalização do narrador" (Lavrador, 1985: 292). Quando os sons diégeticos
constroem a realidade fílmica, os sons extradiegéticos (ou adiegéticos, segundo
Lavrador) são uma comunicação direta entre realizador e receptor, há uma ponte
que passa por cima da realidade representada.
O sons diegéticos apresentam uma outra articulação com o tempo, a do
sincronismo ou não-sincronismo temporal. O sincronismo temporal refere-se
simplesmente à unidade entre o ouvido e o visto, como já foi explicado. Há,
porém, duas possibilidades básicas de não-sincronismo temporal: a primeira dá-se
quando a imagem representa o tempo presente e o som representa acontecimentos
passados ou futuros, e a segunda acontece quando o som representa o tempo
presente e a imagem apresenta o passado ou o futuro. Nos dois casos há uma
dissincronia temporal entre som e imagem.
Nos audiovisuais, então, as articulações do som com imagem, espaço e
tempo podem ser classificadas de forma geral nas ocorrências de som-in e som-
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off, de som-diegético e som-extradiegético e, de som-sincrônico e som-não-
sincrônico. Um som-in, com algumas exceções, tem sua fonte na diégese e o som-
off pode ter sua fonte dentro do espaço diégetico ou no espaço extradiegético. O
atual receptor está acostumado com todas estas articulações de som e imagem,
tanto pela analogia com a própria realidade sensorial, como pela adaptação
gradual de recepção audiovisual durante o presente século.
Para concluir estas anotações gerais sobre o som nos audiovisuais devemos
assinalar que todas as considerações aqui tecidas sobre o som e a imagem, são
válidas para todos os tipos de produtos audiovisuais: de ficção e de não-ficção,
dramatizados ou não-dramatizados. Em todos há uma diégese proposta, e um
desdobramento em uma extradiégese ou em diégeses paralelas ou múltiplas, como
seria o caso dos programas jornalísticos. Numa transmissão esportiva, por
exemplo, ouvimos o som simultâneo de dois espaços: o som do campo de jogo e
das arquibancadas, e o som da cabine ou estúdio de transmissão. Neste caso é
óbvio que há uma única diégese, mas para efeito de análise devemos considerar
duas paralelas, totalmente diferenciadas. As novas formas de manipulação da
imagem também trouxeram possibilidades várias na sobreposição de espaços e/ou
tempos diferenciados, ao ponto que, de forma simultânea, podemos estar vendo e
ouvindo duas ou mais diégeses independentes ou interligadas. A análise deste tipo
de ocorrências somente é possível na particularidade de cada produto audiovisual.