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FONTISMO LIBERALISMO NUMA SOCIEDADE ILIBERAL DAVID JUSTINO

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F O N T I S M OLIBERALISMO NUMA

SOCIEDADE ILIBERAL

D A V I D J U S T I N O

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Í ND I C E

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111. Progresso, ideologia e projeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Regeneração: capitalismo sem ideologia? . . . . . . . . . . . . 28As primeiras formulações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39Progresso: crença, ciência e teleologia . . . . . . . . . . . . . . 46Progresso e tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56Progresso material e progresso moral . . . . . . . . . . . . . . . 63O Estado e os melhoramentos materiais . . . . . . . . . . . . 71A Era do Progresso: fontes de inspiração do projeto fontista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77A ideia de progresso e o liberalismo português . . . . . . . 83

2. O impossível livre-câmbio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88Origens da tese livre-cambista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88A reforma das pautas e o debate sobre o livre-câmbio . . 94

. . . . . . . . . . . . . . . . . . 109Política pautal e grupos de pressão . . . . . . . . . . . . . . . . . 118O argumento do contrabando . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128O impossível livre-câmbio e o nacionalismo económico . . 137

3. A crítica romântica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143Literatura e ideologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143Almeida Garrett . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147Alexandre Herculano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153Camilo Castelo Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182A nacionalização da narrativa romântica . . . . . . . . . . . . . 191

4. Território e Nação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205Nação sem nacionalismo? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205O Indiferentismo cívico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 217Um território fragmentado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 226Um território desconhecido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237

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Nação, nacionalidade e nacionalismo: as primeiras interpretações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

e identidade nacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274Questões críticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 274

. . . . . . . . . . . . . . . . 282De Turgot e Chalotais a Condorcet . . . . . . . . . . . 283Johann Gottlieb Fichte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 290John Stuart Mill . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 294

. . 304Instruir para quê? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313

O Vintismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314O liberalismo triunfante: liberdade e ordem moral . . 327O debate sobre a Reforma de 1844: ordem e progresso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333

. . . . . . 347Os professores: entre o pároco e o mestre-escola . . . . . 354O ensino feminino e a escola romântica . . . . . . . . . . . . . 366Traços fundamentais da política educativa do fontismo . . . 376

6. A reação popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 389 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 389

A reação popular entre duas guerras civis . . . . . . . . . . . . 397 . . . . . . . . . . . . . 442

7. Fontismo, liberalismo numa sociedade iliberal . . . . . . . . . . . 448

Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 461

Índice onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 463

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INTRODUÇÃO

All history […] is the history of thought, where thought is used in the widest sense and includes all the conscious activities of the human spirit.

R. G. Collingwood1

Recordo, de memória, uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros realizada nos últimos meses de 2002 que teve lugar a título excecional na residência oficial do primeiro-ministro. O XV Governo Constitucional teria pouco mais de seis meses de actividade e enfrentava uma séria ameaça de recessão depois de quase 10 anos de crescimento económico. O agravamento dos deficits do Estado e das contas externas – o eterno problema dos «deficits gémeos» – ganhava uma expressão acumulada que uma década de prosperidade havia feito esquecer.

A particularidade de uma reunião na residência oficial do pri-meiro-ministro deixava adivinhar algo de importante para aprovar e anunciar. As expectativas não saíram goradas. Coube ao ministro das Obras Públicas anunciar um pacote de investimentos em infraes-truturas rodoviárias que ultrapassava os 1000 milhões de euros. Era um plano que pretendia constituir uma resposta à crise económica e ao aumento do desemprego injetando na economia um volume de investimento público considerável.

Aberto o período de discussão do plano, o ministro da Educação pede a palavra.

1 Collingwood, Robin George, The Idea of History, Oxford, Oxford University Press, 1994, p. 445.

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– Sr. Primeiro-ministro, estamos de volta ao fontismo?Os diversos membros do Conselho dirigiram o olhar ao ME

intrigados com o propósito da analogia.– Depois de 15 anos de investimento público em infraestruturas,

precisamos de mais? – inquiriu o ME. Tenho dúvidas sobre o efeito deste tipo de investimento na procura interna. Na atualidade, a acti-vidade das obras públicas tornou-se capital intensiva, já não tem o mesmo poder de criação de emprego que detinha há cinquenta anos atrás. O efeito do aumento da procura sobre o exterior é cada vez maior e os ganhos marginais, face à rede rodoviária já construída, são muito reduzidos.

À crítica sucedeu-se a proposta alternativa:– Com menos de um quinto desse valor eu reabilitava e reordenava

todo o parque escolar do 1.o ciclo que se encontra numa situação de autêntica calamidade pública, com a vantagem de os efeitos sobre a procura interna serem significativamente maiores: recurso às pequenas e médias empresas de construção com maior poder de gerar emprego, utilização de materiais nacionais na quase totalidade e externalidades positivas a curto e médio prazo deste tipo de investimento.

O silêncio foi quase geral, apenas interrompido pelas interven-ções da ministra das Finanças e do primeiro-ministro em defesa do plano rodoviário. Este acabou por ser aprovado e os troços, circulares e variantes lá foram ganhando existência nos anos seguintes.

Alguns anos mais tarde, um outro Governo de cor partidária dife-rente resolveu o problema de forma inovadora: investiu num ambi-cioso plano de reabilitação de todo o parque escolar, mas não deixou de aprovar um plano de infraestruturas ainda mais arrojado que o dos seus antecessores, multiplicando as autoestradas sem custos para os utilizadores, novas infraestruturas aeroportuárias, túneis e viadu-tos que fariam corar de inveja qualquer estrangeiro desprevenido perante a profusão de símbolos do que se entendia por modernidade. As consequências destas opções são hoje conhecidas: a mais grave e prolongada crise económica e financeira que Portugal viveu nos últimos 100 anos com a sujeição do país a um programa de ajuda externa cujos custos financeiros, políticos e sociais não encontram equivalente na nossa história.

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O tal ministro da Educação ao deixar o cargo em 2004 prometeu a si mesmo que tão cedo não iria esquecer o episódio da reunião extraordinária do Conselho de Ministros. Nesse mesmo ano criou com alguns amigos um blogue dedicado à reflexão e discussão dos problemas da sociedade portuguesa. Designaram-no por Quarta República – uma ideia que deixava revelar a utopia regeneradora do sistema político português – e adotaram como texto fundador um excerto de uma obra do último ministro das Finanças da Monarquia, Anselmo de Andrade, publicada em 1911:

É de uma grande monotonia a nossa história financeira. Nas suas linhas gerais cifra-se em gastar mais do que se tem, fazer deficit e pagar mais tarde com empréstimos. Tal é o seu lacónico sumário.

[…]Causas de ordem económica, e causas de ordem política,

explicam esta desagradável situação. As guerras, as aventu-ras marítimas, o estímulo das grandezas alheias, a paixão do fomento, o progressivo alargamento da ação do Estado, a diminuição do poder comprador da moeda, foram causas eco-nómicas de aumento das despesas, e da consequente acumu-lação de dívida. Acrescentem-se as causas de ordem política, como são as tendências a considerar cousa alheia o dinheiro do Estado – como se o Estado não fôssemos nós todos – e a geral ambição de melhorar as condições de vida, tão própria do nosso país como de outros, sem distinção de território, de clima, de população ou de forma de governo, e está explicada a persistência do déficit orçamental, e a grandeza da nossa dívida pública.

[…]Não é Portugal, na estreiteza do seu território europeu,

menos difícil de governar do que outras nações de maior qui-nhão na carta do mundo, sendo deveras complicado o seu organismo nacional. Na sua composição entraram tão variados e opostos elementos, sem nenhum preponderante a dominá--los e a dirigi-los, que logo desde o seu princípio lhe faltaram

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a coesão e a unidade, que o absolutismo lhe emprestava, mas que nunca veio propriamente a adquirir, e portanto o espírito de associação e solidariedade, que são as suas consequências. Da falta destas qualidades, indispensáveis para que uma nação seja um todo bem composto, resultou uma anarquia mansa, que neste meio de impulsivos meridionais se manifesta muitas vezes pela indisciplina em baixo, e pela desunião em cima.2

Nestes três parágrafos Anselmo de Andrade sintetizava a sua visão, não só sobre a economia e as finanças públicas portuguesas, mas também sobre a particular estrutura social que lhe estava subjacente. Era a visão de quem, tendo desempenhado funções governativas, lançava sobre o passado um olhar de interpretação e explicação de um problema recorrente em Portugal. Lançava, simultaneamente, um desafio de reflexão que o paralelismo com os tempos presentes torna irresistível. Este é o produto dessa reflexão iniciada em 2004 e do trabalho de investigação que ela exigiu.

* * *

O ofício de historiador vive constantemente a inquietude da construção do passado pelo presente. É uma tensão expressa pela ati-tude do investigador face ao passado, entre julgamento, compreen-são, avaliação, explicação ou mesmo mitificação. Por mais rigorosos e isentos que sejamos face ao objeto de estudo, essa tensão sente-se desde que se formula o problema de partida, na maneira como sele-cionamos as fontes, a leitura que fazemos dos testemunhos, quer sejam relatos circunstanciados quer estatísticas meticulosamente elaboradas. Por mais descritiva e pretensamente neutra que seja a abordagem do passado ela tem sempre subjacente uma visão, um propósito e uma maneira de pensar que são prisioneiras das expe-riências mais ou menos recentes e do «mundo social» que as modela.

2 Relatório e Propostas de Fazenda. Banco de Portugal – Direitos pautaes em ouro – Mo-bilisação de valores do estado – Contribuição predial – Contribuição de registo, Coimbra, F. França Amado, editor, 1911.

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O fontismo e as muitas leituras que a historiografia portuguesa pro-duziu sobre o liberalismo português estiveram sempre presentes na maior parte da investigação que desenvolvi desde 1976. Os primeiros 20 anos foram sempre muito centrados sobre a história económica do século XIX, com uma ou outra incursão nos séculos anteriores e prolongando-se justificadamente até à I Guerra Mundial. O trabalho de referência continua a ser o texto que constituiu a dissertação para provas de doutoramento, A Formação do Espaço Económico Nacional, Portugal 1810-1913, onde tentei encontrar algumas respostas para os problemas formulados, mas do qual retirei muitas outras perguntas que ficaram por responder. Tratando-se de uma dissertação para pro-vas de doutoramento em Sociologia, inscrevia-se na especialidade de «sociologia e economia históricas», ainda que o predomínio da histó-ria económica se tornasse evidente. Mas terá sido a sociologia que me despertou para as tais perguntas que ficaram por responder. Tentarei fazê-lo agora, pelo menos, parcialmente.

A questão central que pretendo esclarecer neste trabalho não decorre da avaliação do que foi a política do fontismo, das suas con-cretizações e inconsequências ou do impacto que teve no desenvolvi-mento económico e social do Portugal oitocentista. Problemas como a evolução comparada do produto nacional, os fatores de atraso, as mudanças estruturais na economia e na sociedade, o papel dos dife-rentes sectores de actividade, a maior ou menor dependência face ao exterior, entre tantas outras temáticas que têm sido abordadas pela historiografia portuguesa dos últimos 50 anos, não sendo problemas resolvidos, considero-os hoje problemas minimamente esclarecidos.

O que me interessa compreender e explicar é o contexto da ação e das estratégias políticas, não as suas consequências. Interessa-me compreender e explicar porque foram adotadas determinadas polí-ticas e não outras, porque se deu prioridade a determinado tipo de investimentos e não outros, em que bases assentou a continuidade, pelo menos durante cerca de quatro décadas, de um projeto de mudança económica e social que melhor ou pior se identifica com esse termo peculiar fontismo.

Poucos dias após a morte de Fontes Pereira de Melo, Ramalho Ortigão lançava uma farpa lisonjeira que, possivelmente pela pri-

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meira vez, defendia essa imbricação: «A Regeneração convertera-se desde muito tempo em Fontismo. Há anos que na política monárquica portuguesa não há de facto senão um único princípio de governo. Esse princípio era António Maria Fontes Pereira de Melo»3. Rama-lho Ortigão não explicita desde quanto se dera aquela conversão, ou seja, a partir de que data a Regeneração se tinha transformado em fontismo. Desde que Fontes subiu à liderança do Governo? Desde que a política dos melhoramentos materiais que ele preconizava pas-sou a orientar o modelo de desenvolvimento?

É corrente a identificação do fontismo com o que alguns historia-dores designam por Segunda Regeneração, limitando-o ao período compreendido entre a Janeirinha (1 de Janeiro de 1868) ou, em alternativa, o primeiro governo liderado por Fontes Pereira de Melo (1871), e os acontecimentos que marcaram a passagem para a década de 90 (Ultimato, revolta republicana, bancarrota, etc.). Porém, como teremos oportunidade de demonstrar, a influência de Fontes na concepção desse modelo é bem anterior quer a esse período quer à própria Regeneração e ultrapassa em muito o seu papel individual.

Para responder a estes problemas a principal hipótese de trabalho que adotamos assenta no papel decisivo da ideologia e das estraté-gias de ação política que configuram o conceito de projeto, enquanto conjunto coerente e sistematizado de opções orientado para um pro-pósito coletivo. Quais foram as alternativas de política e as ideias em presença que condicionaram ou sustentaram as escolhas e a constru-ção desse projeto? Quais os instrumentos e as matrizes culturais que orientaram ou influenciaram a ação?

Nesta perspetiva, o confronto entre decisões racionais ou irracio-nais não tem qualquer sentido. Poder-se-á sempre demonstrar a irra-cionalidade de uma decisão económica – por exemplo a construção de uma linha férrea ou de uma nova autoestrada –, mas ao separá-la do contexto e das diferentes variáveis que influenciam essa decisão, estamos a aplicar um modelo de análise e uma particular maneira de pensar que poderiam não ter cabimento na época em causa. Qual-quer análise custo-benefício de uma decisão historicamente iden-

3 As Farpas, Tomo iii, Lisboa, David Corazzi, editor, 1887, p. 189.

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tificada será sempre um anacronismo, principalmente porque essa suposta racionalidade não era a orientação dominante das decisões numa determinada época. Se assim não fosse a maior parte das liga-ções ferroviárias em Portugal nunca teria saído do papel, pelo menos durante o século XIX.

Roland Mousnier defendia que a história não tem sentido por si mesma, pois ela é moldada pela vontade dos homens e das escolhas que fazem4. A questão que se deve colocar é a de saber o que molda, condiciona e orienta a vontade dos homens, as suas escolhas, as suas decisões, a sua ação?

Se recorrermos a Max Weber e à metáfora do agulheiro encontra-mos uma primeira resposta:

Não ideias, mas interesses materiais e ideais, governam dire-tamente a conduta dos homens. No entanto, frequentemente as «imagens do mundo» que foram criadas pelas «ideias» deter-minaram, como os agulheiros, as linhas ao longo das quais a ação foi empurrada pela dinâmica dos interesses.5

A interação entre ideias e interesses resume a dicotomia funda-mental, porém é necessário entendê-las no quadro das instituições, do sistema de valores e das culturas existentes, em especial as domi-nantes: normas, valores, padrões de conduta, mas também convic-ções, crenças, visões do mundo, adquiridos que ora condicionam, ora potenciam a ação.

No caso particular da ação política três outros conceitos são indis-pensáveis: poder, ideologia e estratégia da ação.

Neste trabalho a nossa atenção centrar-se-á na relação entre ideo-logia, projeto e ação política. O poder enquanto objeto de análise, não sendo ignorado, não merecerá, para já, idêntica atenção.

O conceito de ideologia será desenvolvido no primeiro capítulo a partir da ideia de progresso e de como a sua concepção contri-

4 Mousnier, Roland, As Hierarquias Sociais. De 1450 aos Nossos Dias, tradução portu-guesa, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, p. 182.

5 Weber, Max, From Max Weber: Essays in Sociology, Routledge, 1991, p. 280 [tradução do autor].

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buiu para reconfigurar a ideologia liberal em Portugal. Pretende-se identificar as fontes de inspiração, os debates e polémicas, mas tam-bém as reações que, por vezes, são tão ou mais importantes para a identificação das ideias que pretendem contestar. O conceito de ideologia é problemático face à sua banalização no discurso político do século XX que o integrou no senso comum como uma distorção ou ilusão instrumental da realidade. O legado marxista da dicotomia entre «verdade» e «falsa consciência» e da perspetiva instrumental na reprodução das relações de dominação de classe acabou por vingar na cultura ocidental. Mas nem por isso o conceito deverá ser desva-lorizado na sua capacidade analítica: os contributos de autores como Clifforf Geertz, Lévi-Strauss, Edward Shils, Raymond Boudon ou Michael Freeden são suficientemente pertinentes e poderosos para que os possamos dispensar.

Da mesma forma, recorremos ao contributo inevitável de Ann Swidler, «Culture in Action: Symbols and Strategies»6, para com-preender a relação entre «cultura estabelecida» e ideologia, enten-dida esta enquanto «cultura não estabelecida», potencial criadora de «novas estratégias de ação», em função da estrutura de oportunida-des. O modelo proposto tem a virtude de valorizar a conjuntura, o particular contexto histórico, enquanto potenciadores de novas estratégias de ação que passaremos a identificar na perspetiva macro-política, pelo conceito de projeto7.

O artigo de Ann Swidler ajuda-nos ainda a problematizar a rela-ção dinâmica entre a ideologia de novas elites emergentes e as tradi-cionais «culturas estabelecidas». É neste contexto que construímos a hipótese de trabalho da difícil relação entre a ideologia liberal e a cultura iliberal da sociedade portuguesa oitocentista.

Situamo-nos claramente fora dos domínios disciplinares tradi-cionais das ciências sociais e, à falta de melhor identificação, acon-chegamo-nos no que poderemos designar por sociologia histórica

6 Swidler, Ann, «Culture in action: Symbols and strategies», American Sociological Re-view (1986), pp. 273-286.

7 Com esta opção conceptual apontamos, ainda que parcialmente, para o quadro pro-posto por Habermas, Jürgen, «Modernity: An Unfinished Project [1980]», Contemporary Sociological Theory (2012), p. 444.

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das ideias, lugar sem estatuto particularmente reconhecido, mas que não terá dificuldade em invocar os seus principais inspiradores: Max Weber, S. N. Eisenstadt, V. M. Godinho e, mais recentemente, Peter Wagner.

A ideia de progresso é a mais inovadora no quadro do discurso político liberal português de meados do século XIX. Mais do que um conceito é uma concepção que se inscreve numa nova matriz cultural que irá moldar maneiras de pensar e de entender a evolução das sociedades. Progresso, civilização e modernidade são termos cor-rentemente associados e quantas vezes confundidos quer no discurso da sociologia quer no da filosofia ou da ciência política. Os dois primeiros termos foram bem cedo objeto de uma maior precisão por parte de Stuart Mill e de Herbert Spencer8 não se justificando o recurso a contribuições posteriores.

Porém, as diferentes concepções de progresso no pensamento contemporâneo, nomeadamente nas reflexões sobre a evolução das sociedades ocidentais, estão definitivamente conotadas com a ideia de modernidade. J. P. Arnason enuncia essa ligação pela forma como a ideia de progresso contribuiu para a construção cultural da modernidade: «The main new element in the cultural constitution of modernity is the idea of progress, accompanied by the closely related image of the whole social field as an area of active construc-tion by human beings, and therefore as a possible object of political intervention.»9

A forma como essa ideia de progresso foi apropriada e incorpo-rada no discurso político e passou ela própria a constituir um refe-rencial orientador das opções políticas, será o objeto principal da análise desenvolvida no primeiro capítulo. É essa apropriação social-mente diferenciada que tentaremos identificar entre as múltiplas

8 Mill, John Stuart, «Civilization», London and Westminster Review, Abril de 1936, re-publicado em Dissertations and Discussions, Londres, John W. Parker and Son, 1854, pp. 160-205. Spencer, Herbert, Social Statics. The Conditions essential to human hapiness speci-fied, and the first of them developed, Nova Iorque, Robert Schalkenbach Foundation, 1970, p. 58.

9 Arnason, Jóhann Páll, Civilizations in Dispute: historical questions and theoretical tradi-tions, Vol. 8, Boston, Brill, 2003, p. 30.

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narrativas políticas, bem como compreender o papel que desempe-nhou na reconfiguração da ideologia liberal em Portugal e explicar como contribuiu para a elaboração do projeto político identificado como fontismo.

* * *

O segundo capítulo parte da contestação à tese da ideologia libe-ral de inspiração inglesa e às teorias do livre-câmbio e da dependên-cia. Essa contestação assenta na não adoção das teses do comércio livre, associadas à «escola de Manchester», entre a elite dirigente por-tuguesa da Regeneração. Tratando-se de um tema já suficientemente desenvolvido nos últimos quarenta anos de historiografia portu-guesa, resta ainda explicar quais as razões que levaram os responsáveis políticos a manter o perfil protecionista da política aduaneira. Neste particular aspeto retomamos a dicotomia de Weber entre «ideais» e «interesses» para explicar como estes se impuseram àqueles.

Considerando o quadro ideológico de reconfiguração do libera-lismo português que será descrito no primeiro capítulo seria expec-tável e racional a opção pelas teses do livre-câmbio, quer elas se inspirassem nos princípios da escola de Manchester – como assegu-rava Oliveira Martins – quer nos da escola liberal francesa, nomea-damente de Michel Chevalier ou mesmo de Frédéric Bastiat. Como teremos oportunidade de demonstrar, este é um dos aspetos do fon-tismo em que os interesses vingaram sobre os ideais, especialmente a convergência entre os interesses do Estado em assegurar uma fonte de receita com elevada liquidez e baixo custo de cobrança e os indus-triais ciosos do privilégio no acesso ao mercado interno.

De certa forma, as políticas protecionistas sempre se sobrepuse-ram às débeis e inconsequentes tentativas de liberalização. Desde 1837 até à adesão à EFTA nos anos 50 do século xx e decisivamente com a integração na Comunidade Económica Europeia, Portugal sempre manteve um perfil protecionista nas suas relações económi-cas com o exterior. A hipótese explicativa que se poderá formular passa por saber se essa continuidade assentava apenas no pragma-tismo dos interesses – do Estado e das elites económicas – ou se

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é possível identificar expressões de nacionalismo económico como fonte de legitimação da ação do Estado.

Considerando a época das primeiras políticas protecionistas em Portugal não será difícil identificar a invocação recorrente dos prin-cípios mercantilistas tradicionais, muito mais que a adoção de uma concepção nacionalista do desenvolvimento económico do país. Mas é ténue o limite que separa a própria evolução do que Adam Smith designava por «sistema mercantil» daquilo que emerge no século xix, mas que se afirma na primeira metade do século xx, e que de forma pioneira Friedrich List definiu como «sistema nacional» de econo-mia política.

A particular história das relações económicas entre Portugal e a Inglaterra, especialmente as consagradas pela assinatura do Tratado de Methuen e sobejamente discutidas nas teorias clássicas das relações internacionais, marcaram o debate oitocentista em torno das alter-nativas do livre-câmbio e do protecionismo. Facilmente identificá-vel como a origem do atraso e do subdesenvolvimento de Portugal, quer nos discursos parlamentares de Fontes Pereira de Melo quer nos escritos de Oliveira Martins, a história das relações comerciais com a Inglaterra tornou-se o pano de fundo dos debates e das políticas comerciais em Portugal. Seria esse debate uma expressão precoce do nacionalismo económico, tal como ele virá a ser entendido no século xx, ou a reafirmação das velhas teses do protecionismo mercantil?

Num aspeto muito particular poderemos encontrar algumas expressões do que poderemos designar por nacionalismo económico: a ideia de que Portugal dispunha de recursos naturais e de potencial de desenvolvimento suficientes para poder almejar a sua autossuficiência. Ora, o que se pretendia proteger dos interesses estrangeiros era esse potencial imaginado, reservando-o para a exploração dos nacionais.

* * *

O terceiro capítulo é dedicado à análise do que designámos por «crítica romântica» do fontismo. A hipótese de que partimos passa por entender o romantismo não só como movimento literário, mas também como ideologia que se afirma por oposição à ideia de pro-

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gresso legada pelo iluminismo e, de algum modo, à própria concep-ção de modernidade. Tal não significa que os autores mais destacados do movimento literário romântico fossem fervorosos inimigos do progresso ou contrários a alguns dos princípios da modernidade. O caso de Herculano é de algum modo paradigmático: confesso progressista, ainda que de inspiração providencialista, rejeitava o materialismo que desejava romper com a tradição, os costumes e as instituições que haviam sustentado uma identidade coletiva ao longo de séculos; formado nos princípios da ciência, não abdicava da dimensão profundamente religiosa das suas crenças e do que enten-dia ser a dimensão moral indispensável ao progresso humano; espe-rançoso num futuro que rompesse com o atraso secular, não deixava de buscar no passado medievo os contornos de uma idade do ouro que a providência teimava em negar ao presente.

Garrett abjurava os utilitaristas, Camilo ridicularizava os melho-ramentos materiais, Júlio Dinis rejeitava os vícios da cidade e enal-tecia o potencial regenerador dos campos, das pequenas aldeias, da integridade moral assente nos valores tradicionais. Esta vai ser a mais destacada reação e a mais consistente crítica do fontismo, poten-ciando o confronto de dois mundos sociais e culturais não só distin-tos, senão mesmo contrários.

É na crítica romântica que vamos encontrar as primeiras for-mulações do decadentismo da segunda metade do século xix, especialmente o que irá inspirar a alternativa republicana. O que designaremos por «nacionalização da narrativa romântica» consti-tuirá o cadinho de princípios que moldará as primeiras manifesta-ções de nacionalismo que se afirmam na década de 80 do século xix.

O quarto capítulo partirá de uma questão básica para a com-preensão da ideologia liberal: porque foram tão tardias essas mani-festações de nacionalismo? Porque é que o fontismo nunca revelou essa expressão ideológica quando, um pouco por toda a Europa, os nacionalismos se afirmavam na era das ideologias?

A hipótese de que partimos para explicar esse nacionalismo tar-dio e, de certa forma, incipiente, é o facto de os Portugueses cons-tituírem uma das nações mais antigas da Europa cuja identidade e integridade nunca foram postas em causa. Lembre-se que a última

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ameaça externa a essa integridade se saldou em três invasões do território nacional pelos exércitos de Napoleão, quando o Império ainda sustentava o fausto da corte e um próspero comércio externo de entreposto. A recuperação da soberania fez-se com a família real exilada no Brasil e com a velha aliança luso-britânica a impor um elevado preço: o acesso direto dos ingleses aos portos brasileiros. A partir de então Portugal tornou-se irrelevante na geopolítica euro-peia e atlântica saída do Congresso de Viena e abriu o que designá-mos por interciclo dos impérios, entre o fim do império atlântico e o início do império africano. Foi neste contexto que se concretizaram os primeiros movimentos liberais e se configurou o regime monár-quico-constitucional que duraria 90 anos.

Perdida a esperança de recuperação do Brasil e sem alternativas viáveis que pudessem justificar a reconstrução do Império, Portugal vê-se obrigado a virar-se para o seu próprio território que, durante cinco séculos, vivera secundarizado e em grande parte esquecido pelo menos desde as guerras da restauração.

E o que encontraram os primeiros liberais do vintismo? Um terri-tório desconhecido, paroquializado e um povo insensível aos apelos da elite ilustrada e citadina. Um projeto político que depositava a soberania na Nação, não era ativamente reconhecido por esta. Deste desencontro identificámos o que Garrett, no entusiasmo da sua juven-tude, definia por indiferentismo cívico e que Basílio Teles viria a carac-terizar sinteticamente como o «estranho caso de um povo absorto e parado no meio de um mundo em febris e permanentes mutações».

Para os que se moviam em busca de um «espírito de nacionalidade» que pudesse sustentar a existência coletiva de um Povo enquanto Nação, raro era que esse indiferentismo não emergisse como traço marcante da sua própria identidade. De forma mais ou menos explí-cita assim o reconheceram Garrett, Antero, Andrade Corvo, Anselmo de Andrade ou Bento Carqueja. As causas apontadas são múltiplas, mas há, pelo menos, uma comum: a falta de unidade entre as elites, a conflitualidade dominante na vida política, que projetava a reconhe-cida falta de autoridade do Estado. O problema está em saber até que ponto não estaremos perante uma representação das elites resultante da ineficácia dos seus próprios programas políticos.

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Por isso formulamos a hipótese assente nessa particularidade de uma nação sem nacionalismo e de duvidosa consciência nacional. O fontismo não incorporou no seu projeto essa dimensão da ideo-logia liberal, confinou-a à crença de um progresso material sufi-cientemente poderoso para romper com os bloqueios do atraso. O jovem rei D. Pedro V expressava essa crença, em 1859, numa carta dirigida ao marquês de Loulé, quando ao referir-se à necessidade de construção das linhas férreas do interior as considerava como a «resolução de uma grande questão; se dormimos, ou estamos mor-tos»:

Se dormimos, acordar-nos-á o silvo satânico da locomo-tiva, e tomar-nos-á, a nós também, a indústria nos seus braços de ferro. Se estamos mortos, o que ainda não creio – o que não é permitido acreditar-se – são inúteis todos os esforços10.

* * *

Como despertar a Nação desse sono letárgico e indiferente para os desafios que o progresso colocava? Como mobilizar uma nação de iletrados para um projeto que pressupunha a transformação de vassalos em cidadãos, de servos em homens livres e autónomos?

Os Portugueses eram, por meados do século xix, dos que na Europa apresentavam as mais elevadas taxas de analfabetismo11 e das mais baixas taxas de escolarização. A rede de escolas públicas que havia sobrevivido aos tempos tumultuosos do primeiro terço de Oitocentos quase havia desaparecido por falta de pagamento dos magros vencimentos dos professores. A consciência desse atraso representava para muitos dos membros da elite liberal portuguesa o grande desafio que importava vencer. Da sua superação dependia a continuidade do próprio regime liberal ainda mal refeito do fim do despotismo miguelista.

10 Leitão, Ruben Andresen (apresentação, estudo e notas), Cartas de D. Pedro V aos Seus Contemporâneos, Lisboa, Livraria Portugal, 1961, pp. 252-253.

11 Candeias, António, «Modernidade, educação, criação de riqueza e legitimação políti-ca nos séculos xix e xx em Portugal», Análise Social 176 (2005), p. 483.

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É neste contexto que surgem as primeiras tentativas de concep-ção de uma instrução pública obrigatória e de a considerar como um dever do Estado para com a Nação. Em 1835 Rodrigo da Fon-seca Magalhães apresenta o primeiro projeto de reforma da instru-ção pública cuja vigência não foi além de escassos meses. No ano seguinte surge a reforma de Passos Manuel e oito anos mais tarde a de Costa Cabral, que viria a vigorar por mais de um quarto de século. Da análise destas três reformas identificamos os referenciais ideológicos que fundamentam os seus propósitos: liberdade, ordem e progresso.

Interessa-nos sobremaneira o discurso legitimador da intervenção do Estado num domínio que está para além das funções de soberania do modelo de estado moderno e o debate em torno da afirmação de uma instituição que competia diretamente com o tradicional mono-pólio das organizações religiosas na produção e reprodução dos valo-res sociais e morais: um Estado que bem cedo adotou a escolaridade obrigatória, que definia o currículo, que financiava e organizava a rede de escolas que pretendia cobrir todo o país, que autorizava, regulava e inspecionava o seu funcionamento e que detinha o poder de certificação das aprendizagens.

Como demonstraram Francisco Ramirez e John Boli12, o desen-volvimento dos sistemas nacionais de ensino de massas com parti-cular expressão na Europa Ocidental, foi o instrumento privilegiado para a construção política da coesão e unidade nacional num sistema de estados altamente competitivo como era o europeu. Só que, recor-rendo às mesmas concepções e medidas, cada um dos estados euro-peus estruturou processos de construção manifestamente desiguais. No caso português, Yasemin Soysal e David Strang13 propõem-nos a sua inclusão no modelo de «construção retórica» dos sistemas nacio-nais de ensino na Europa, associando-nos aos casos de Espanha, Itália e Grécia. À adoção prematura da escolaridade obrigatória e dos prin-

12 Ramirez, Francisco O., e John Boli, «The political construction of mass schooling: European origins and worldwide institutionalization», Sociology of Education (1987), pp. 2-17.

13 Soysal, Yasemin Nuhoglu, e David Strang, «Construction of the first mass education systems in nineteenth-century Europe», Sociology of Education (1989), pp. 277-288.

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cípios estruturantes da escola de massas não correspondeu o aumento de escolarização efetiva da população ao longo do século xix.

A adoção entusiástica da prioridade à instrução pública acessível a todos os cidadãos deu lugar à frustração do analfabetismo persistente e generalizado, a uma escolarização limitada e à multiplicação de reformas que esbarravam na indiferença das populações e na incapa-cidade do Estado em mobilizar as famílias e as comunidades locais para tão ambicioso propósito.

* * *

O sexto capítulo é dedicado às reações populares às medidas e aos símbolos do novo poder liberal, com particular atenção aos fenóme-nos de contestação do projeto fontista. Partimos do questionamento de dois adquiridos da historiografia portuguesa.

O primeiro é o do indiferentismo popular enquanto representação social das elites intelectuais portuguesas que pretendemos confron-tar com a multiplicidade de movimentos populares que ganharam maior expressão nas duas décadas que se sucederam à vitória liberal sobre as forças miguelistas.

O segundo centra-se na tradicional associação da contestação popular a contextos materiais de crises de subsistência ou de reação antifiscal.

A revisão da literatura académica sobre os movimentos populares neste particular período de instabilidade social permite-nos entendê--los no quadro mais complexo de motivações, dinâmicas da ação coletiva e repertórios mais ou menos ricos de significados. A essa literatura acrescentamos a investigação realizada nos últimos 20 anos sobre uma série de tumultos e motins populares que se concentra-ram num período de um ano e meio, entre 1861 e 1862. Tomámos a série de casos como objeto privilegiado de análise e tentámos explo-rar e identificar outras dimensões que vão muito para além da busca dos «fatores determinantes».

Uma das hipóteses trabalhadas é a da politização desses movimen-tos na particular perspetiva da contestação e desafio da autoridade das instituições e dos agentes que o liberalismo português instaurou.

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O lento e atribulado processo de reconstrução liberal do Estado à escala nacional deparou-se com a resistência das populações, com os interesses e os pequenos poderes das elites locais, com as dinâmicas locais de expressão paroquial e a aversão aos novos valores sociais que o fontismo representava. Mais do que um movimento nacio-nal, estamos perante uma sucessão de episódios confinados sem que qualquer força política conseguisse conferir-lhe a coesão e identi-dade de propósitos.

Como teremos oportunidade de demonstrar, trata-se de movi-mentos debilmente organizados mas comummente mobilizados pela reação à intrusão do Estado e dos símbolos do liberalismo na velha ordem rural e comunitária. Os seus traços fundamentais não diver-gem, no fundamental, dos observados no movimento da Maria da Fonte, salvo em dois aspetos: no contexto político, em que a contesta-ção ao cartismo cabralista é substituída pela contestação aos progres-sistas (herdeiros do velho setembrismo e do movimento Patuleia) do Governo do marquês de Loulé; e nas consequências para o regime, o primeiro conduziu à Guerra Civil, quando no segundo o regime suportou o embate de uma forma relativamente eficaz.

Por último, o sétimo capítulo pretende fazer o balanço e, tanto quanto possível, relançar novas pistas de investigação e de reflexão em torno do confronto entre o projeto liberal do fontismo e o tra-vejamento social e cultural de uma sociedade que concebemos sob a expressão de iliberal. Este confronto revela diferentes expressões que poderemos sintetizar na oposição entre a desejada centralidade de um novo sistema de valores que as novas elites liberais projeta-ram e a reação das periferias pulverizadas pelo paroquialismo rural, orientadas pelos valores dominantemente religiosos, comunitaristas e reativos à intromissão do Estado, a cujos agentes não reconhecem nem legitimidade, nem autoridade. A questão que se poderá colocar, por fim, é a de avaliar até que ponto não estaremos perante o con-fronto entre um projeto de modernidade e a resistência da sociedade tradicional perante tão ameaçadora mudança.

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1. PROGRESSO, IDEOLOGIA E PROJETO

A regeneração de Portugal está na liberdade. A liberdade é o progresso. O progresso é a herança sem limite, que o pretexto devolveu ao presente e o presente há de devolver á posteridade.

Cláudio Adriano da Costa1

Regeneração: capitalismo sem ideologia?

O destaque dado por Oliveira Martins a Fontes Pereira de Melo, enquanto primeira figura das «gerações novas» que protagonizaram a política da Regeneração, não prima pelo reconhecimento das suas qualidades pessoais e intelectuais. Em comparação com alguns dos seus contemporâneos, Oliveira Martins considerava Fontes uma figura menor e ridícula, sem a «imaginação colorida» de José Estê-vão ou o «talento verdadeiro» de Casal Ribeiro, faltava-lhe a veia sarcástica de Souto Maior e estaria muito longe da competência e conhecimento de António Serpa ou Andrade Corvo. Considerava-o um homem sem «génio» que se limitava a «obedecer às correntes da época», especialmente a veiculada pelos «economistas ex-são-simo-nianos», com Michel Chevalier à cabeça2. Tudo se resumia a retórica «banal», «redonda», dominada por «frases que, sem comentários, soariam ao futuro como excentricidades de um burocrata maníaco». Só a «habilidade verbosa o distinguia»3.

1 Citado por Forrester, Joseph James, The Prize-Essay on Portugal, London-Edimburgh--Oporto, John Weale, 1854, p. 134.

2 Martins, Oliveira, Portugal Contemporâneo, Vol. ii, Lisboa, Guimarães Ed., 8.ª edição de 1976, p. 287.

3 Idem, p. 289.

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P R O G R E S S O , I D E O L O G I A E P R O J E T O

Não obstante as alusões às «correntes da época» e à influência dos economistas como Chevalier, o tom crítico de Oliveira Mar-tins era reforçado pela imagem criada de um homem cujo único pensamento era a obsessão pelo caminho de ferro: «O caminho de ferro é para ele verdadeiramente, não um símbolo, mas a realidade do progresso. Correr a vapor, ganhar, trocar, gozar, que outra coisa é a vida?»4. Ainda que Fontes não tenha produzido obra escrita, a simples consulta dos discursos parlamentares seria suficiente para perceber que a descrição de Oliveira Martins é redutora e tem como único objetivo ridicularizar o líder regenerador.

O desdém a que Oliveira Martins votou a imagem política e pes-soal de Fontes Pereira de Melo não pode ser dissociado da sua preo-cupação em distinguir a Regeneração inicial do seu posterior desvio corruptivo identificado com a política do fontismo. Neste aspeto, essa preocupação de Oliveira Martins não teve repercussão. O que as décadas seguintes vieram consagrar foi a progressiva identificação entre o período regenerador com a «doutrina» e a política do fon-tismo, independentemente da presença de Fontes Pereira de Melo nos elencos governativos.

O primeiro problema que desejaria formular não se centra na avaliação da solidez e coerência das ideias de Fontes Pereira de Melo, mas antes em saber se existe ou não uma matriz ideológica do que se designou, de forma generalizada, por fontismo.

O segundo problema decorre dessa excessiva identificação do «modelo» e da «doutrina» com as ideias do governante: até que ponto essas ideias são exclusivas de Fontes Pereira de Melo, criadas ou adota-das por ele, ou resultam de uma reflexão mais alargada que se proces-sou no seio da elite liberal portuguesa? Quer Oliveira Martins, quer mais tarde Anselmo de Andrade, convergem na tese de que Fontes é o iniciador e promotor da «economia política dos melhoramentos materiais»5 inspirada nos economistas franceses: «Ao tempo [1852] estava ao leme o novel estadista Fontes, apaixonado do fomento e

4 Idem, p. 288.5 Andrade, Anselmo de, Portugal Económico e Outros Escritos Económicos e Financeiros

(1911-1925), Lisboa, Banco de Portugal, 1997, p. 161.

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entusiasta do capitalismo, que veio para o Governo com a economia política de Michel Chevalier»6. Esta excessiva personalização entre Fontes e o fontismo, como teremos oportunidade de demonstrar, é enganadora.

Terceiro problema, decorrente do anterior, centra-se em perceber e explicar qual a génese e a difusão dessas novas concepções entre a elite liberal e até que ponto é que à veia inspiradora e inovadora de Fontes não deveremos contrapor o da prévia maturação e aggiorna-mento ideológicos do liberalismo português, em grande parte por influência do que se passava na Europa, especialmente em França e na Inglaterra. A confirmar-se esta hipótese poderá ter sentido falar-mos de um projeto e programa do fontismo anterior à própria Rege-neração?

Por último, subjacente a estes três problemas, justifica-se colo-carmos o da existência ou não de uma ideologia distinta ou «cons-truída» sobre os princípios do liberalismo português pós-guerra civil. Ou seja, estaremos perante uma «nova geração» portadora de um novo conjunto de ideias, valores e princípios que tendem a orientar uma outra ação política, ou, pelo contrário, estaremos perante uma reconfiguração dos pilares ideológicos do liberalismo português.

Entre a historiografia da segunda metade do século xx existem algumas teses a considerar. A defendida por Manuel Villaverde Cabral identifica a natureza da Regeneração e do fontismo, como um modelo de desenvolvimento assente na desideologização da ação política, requisito indispensável à pacificação e à convergência entre as diferentes fações e partidos, cuja conflitualidade havia marcado a primeira fase da implantação do liberalismo em Portugal. É a tese da «reconciliação política das classes possedentes» em torno de um programa de fomento dos «melhoramentos materiais»7.

Vai no mesmo sentido a apreciação feita por José-Augusto França quando defende que o fontismo «nunca teve ideias definíveis em termos ideológicos» susceptíveis de sustentarem um programa polí-

6 Idem, p. 191.7 Cabral, Manuel Villaverde, O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século

XIX, Porto, A Regra do Jogo, 1976, pp. 163-165.