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SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL 24 ABR A 4 MAI Í ON TEATRO DA CORNUCóPIA ADAPTADO DE EURÍPIDES TRADUZIDO POR FREDERICO LOURENÇO ENCENAÇÃO DE LUIS MIGUEL CINTRA

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são luiz teatro municipal

24 abr a 4 mai

í o nte atr o da c o r n u c ó p i a

a da p ta d o d e e u r Í p i d e St r a d u Z i d o p o r F r e d e r i c o Lo u r e n Ç o

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3íon teatro da cornucópia

ÍnFima FracÇÃoJoSé LuÍS Ferreira

Considerados os dois mil, quatrocentos e vinte e oito anos que nos separam da escrita de Íon, os quarenta anos que decorreram desde o 25 de Abril não são senão uma ínfima fracção. De Atenas aos dias de hoje, o Teatro que interessa, o Teatro que persistirá, constituiu-se em máquina de pensamento, de ensaio de todos os futuros possíveis, de espelho de uma verdade sempre problemática, sempre a necessitar de reconstrução. Com ou sem democracia, com ou sem assunção pelos poderes públicos da necessidade social de uma prática teatral. O Teatro a que vale a pena chamar Teatro é sempre um espaço ético de liberdade. Ao Teatro da Cornucópia, a Luís Miguel Cintra e a Cristina Reis, o meu singelo e humilde agradecimento por terem aceitado recriar connosco a sua singular e maravilhosa máquina, neste espaço público de excepção e neste momento em que procuramos muito simplesmente interrogar o que significaram estas curtas quatro décadas da vida da nossa sociedade.

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eSte eSpectÁcuLoLuiS miGueL cintra

Até este espectáculo e como encenador, não sabia o que era uma encomenda a não ser na ópera, e mesmo assim, o que parecia encomenda quase sempre foi discreta prenda de quem muito bem nos quis. A encenação de uma “Carmen”, que me chegou a ser proposta, era encomenda pura e recusei.

Comecei no teatro em Portugal antes do 25 de Abril, integrado no que hoje se reconhece que foi um movimento: o Teatro Independente. E nunca se conseguiu explicar bem porque é que estas companhias que depois da queda do regime anterior foram o sector cultural que mais depressa propôs uma nova forma de estar, de viver, de criar, se queriam chamar independentes, se estiveram sempre, depois do 25 de Abril, tão dependentes financeiramente do Estado. Entenda-se de uma vez para sempre: Independentes porque queriam ser livres, livres de qualquer patrão, fosse ele o empresário ou o Estado ou o público. E foram-no antes do 25 de Abril, graças à política de apoio ao teatro da Fundação Gulbenkian que financiou e nada exigiu

a não ser trabalho e depois do 25 de Abril com muita luta e competição pelo meio, graças ao Estado. Eramos artistas de teatro e queríamos fazer o que nos apetecia. E afinal, o que nos apetecia fazer era também o que por amor à vida achávamos que devíamos: resistência política, cultural, tudo em um. Queríamos ser artistas em liberdade, não ter patrão. Queríamos outra coisa. E assim foi que aconteceu com o Teatro da Cornucópia que durante muitos anos continuou fiel a si próprio, uma companhia que sempre quis trabalhar com os mesmos objectivos mas que de forma transparente punha a claro que a sua forma legal (sociedade comercial por quotas) indicava o que era verdade: tratou-se de um projecto artístico dos dois sócios, depois de dois ainda, mudando um, mas que de comercial nada tinha, e que apesar de não ser uma cooperativa, como acontecia com quase todos os outros, sempre quis, quisemos todos, os seus contratados também, sim, funcionar, e funcionou, como grupo. Como aconteceu, diga-se a bem da verdade, com quase todos “os antigos”,

25 de abrilEsta é a madrugada que eu esperavaO dia inicial inteiro e limpoOnde emergimos da noite e do silêncioE livres habitamos a substância do tempoSophia de Mello Breyner Andresen

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com algumas excepções. Graças a uma força muito grande na militância, um entusiasmo, do público e dos artistas antes do 25 de Abril, e depois, da parte do Estado, nas suas diversas versões, graças àquilo que agora já se reconhece que foi uma incapacidade de, apesar de querer derrubar esta maneira de estar, impor, querer uma alternativa menos incómoda que o teatro dos “independentes”, de descobrir e instalar uma alternativa à capacidade de iniciativa, à vontade destes artistas em que orgulhosamente me integro e a quem sempre considerarei como antigos camaradas. O caso é que durante largos anos fomos livres de escolher repertório, de fazer distribuições, conseguimos espaços geridos por nós para trabalhar. E aquela sempre reaccionária parte da população que não reconhece as actividades artísticas como úteis e necessárias, os que só pensam em dinheiro, os que nunca ouviram o “memento homo quia pulvis es et in pulve-rem reverteris”, e sempre protestaram, nunca tiveram mais força que nós. À Portuguesa, foi lenta a instalação do retrocesso e durante muito tempo a actividade foi afinal reconhe-cida pelo Estado, ainda que tantas vezes sem grande vontade. A criação dos novos teatros Nacionais, teatros do Estado, que pouco tempo depois já absorviam grande parte das verbas destinadas ao teatro, cedo veio perturbar esta situação.

Hoje, 40 anos desde o fim da ditadura, a situação já não é a mesma. A energia da militância envelheceu, e no país e na sua actividade cultural, outro regime totalitário a pouco e pouco se instalou, aliás a reboque da Europa: uma situação em que o Estado envergando uma máscara que já quase nada esconde, no fundo tem a mesma incapacida-de de mandar, talvez felizmente, mas obedece claramente a outro ponto de vista

que não o dos artistas: o dos ignorantes que sempre gritaram aos artistas: “cambada de inúteis e de chulos, ladrões do meu dinheiro, mandriões, vão trabalhar!” E capazes são eles, estes reaccionários ignorantes, de estarem a, sem querer, destruir também o seu próprio e desejado teatro de consumo ou comercial, que agora já é declaradamente feito pelos que nós fomos ensinando, ou que, do que fizemos, colheram ensinamento. Esse teatro, que é agora apresentado como inevitável pelos mesmos que o fazem, acaba por ter um objectivo: reproduzir na prática cultural dos cidadãos, o regime de mercado liberal em toda a sociedade violentamente instalado e praticado. E aqueles que, em nome da liberdade, defenderam a chamada democracia parlamentar, começam a perceber que mais que para uma vida em liberdade, essa “democracia” contribui para uma legalização da limitação dessa liberda-de, limitação a que todos estamos sujeitos, a uma verdadeira dependência. A pouco e pouco talvez se reconheça que a ganância, a ambição e outras virtudes capitalistas já tinham entrado sem dar por isso nas consciências. Ou a sua versão “light” e aparentemente mais civilizada: o conforto, o bem-estar. Aqueles a quem chamamos cobradores de impostos e a quem se vê que pagamos bem, fomos nós que os pusemos no poder. Os que nos mandam trabalhar e nos chamam ladrões puseram-nos lá tanto como nós. Com a nossa arma de paz: o voto.

O teatro independente conseguiu sê-lo durante muitos anos, foi uma excepção na Europa em que se integrou, porque também muitos dos que o fazem por militância, aceitaram ser “pobres mas livres”. Agora está a ser vencido por outro valor, e é aquilo a que se chama “o mercado”, ou seja o dinheiro, fazer dinheiro. Não acabou

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a liberdade? O mercado tornou-se na nova censura e no novo empresário. Não podes fazer o teatro que queres porque sai caro e não dá lucro e tens de encontrar quem te compre e ninguém com poder de compra quer comprar o que tu gostas e queres fazer.

Por isso aceitar fazer uma encomenda este ano, o do 40º aniversário do 25 de Abril, como única forma de existir tem algum sabor a derrota.

Mas, sejamos até, mais que justos, optimistas. De que nos queixamos? Estamos nos teatros do Estado. Assim já se consegue pagar a quem trabalha, uns melhor outros pior, para bem do cidadão. Há pior.

Neste caso, o deste espectáculo, na proposta que nos foi feita pela direcção de um Teatro gerido pela Camara Municipal de Lisboa, de maioria socialista, de co-produção de um espectáculo de baixo orçamento, que seria estreado no 25 de Abril e apresentado nessas datas para marcar a efeméride, tratou-se de uma evidente encomenda para uma data que se não podia deixar passar em branco. Mas como entendê-la senão com a ambiguidade de que se reveste? A programação do teatro, a mesma que “não conseguiu” ir para a frente com as propostas anteriores que lhe fiz, entrega-nos (com baixo orçamento) a responsabilidade política da celebração teatral do aniversário

da democracia propondo-nos a “liberdade” de fazer um espectáculo não “sobre” mas pelo menos a propósito da data, com estreia no 40º ano da noite em que ouvi dizer a um amigo, nos corredores do Coliseu dos Recreios onde nessa noite Dame Joan Sutherland cantou a Traviata: “É hoje!”. (Eu não percebi. “É hoje o quê”?). Não foi uma decisão nossa. Não queria fazer um espectáculo sobre o 25 de Abril. É grave e importante demais para gostarmos de o fazer fora da casa que defendemos durante 40 anos. E não há texto dramático sobre o assunto em que me reconheça. Não queria festa, não queria celebrar, queria, e é se conseguisse, talvez dar que pensar.

Mas teatro na data não é uma comemora-ção? Antigamente a festa era nossa, não havia espectáculo, era festa. Agora porque é feriado e o público está ocioso, sem ter que fazer, vendemos bilhetes, ou fazemos estreia para gente especial, para convidados. E a minha primeira reacção ao convite foi: “ não pode ser, resultava em luto profundo”.

Mas em Portugal tudo é diferente, até o amor, como dizia um dos cardeais da ceia de Júlio Dantas. E a resposta que tive foi, num feliz trocadilho: “luto? e porque não luta?” E, muito empurrados pela situação económi-ca e por um pormenor, se quiserem, mas a que damos bastante importância:

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o reconhecimento devido a uma gestão municipal que pela primeira vez nos deu algum apoio, num ano difícil, começámos de facto a ver que, sob outro ponto de vista, e mesmo que nos chamem velhos, é-nos lisonjeiro que, como companhia, nos façam esta proposta a nós e nos associem à evocação do que aconteceu e permitiu a chamada “revolução dos cravos” que outros, mais novos, conheceriam pior. Mesmo correndo o risco de algum resultado menos pacífico e sobretudo menos festivo que o que se desejaria da comemoração de 40 anos sobre o dia em que um regime de ditadura deu lugar a um período com características revolucionárias e sobretudo a um regime de democracia parlamentar que em Portugal vinha reatar o fio cortado pelo 28 de Maio ao movimento republicano, acabou por se tornar num imperativo aceitar um projecto que também devia marcar uma posição sobre o momento em que vivemos.

Ficou-me o jeito, que já ninguém tem, de sentir que o Estado é feito para servir os cidadãos, e estar a ocupar a programação de um teatro do Estado implica um sentido de responsabilidade muito especial. Fazer teatro subsidiado devia significar exacta-mente o contrário do que o Governo nos instiga a fazer: ter lucro. Não há meio de os cidadãos perceberem que o dinheiro que

“lhes sai do bolso” é a democracia que o devia cobrar para bem da população, para que o governo fosse gerente do seu bem. Teatro para fazer lucro não precisa de subsídio, não pode mesmo esperar-se que o faça. Tem de ir à frente do gosto e dos hábitos do público. Serve para abrir caminho ou caminhos. É uma aposta, um risco. E finalmente respondi que sim, quando, na habitual atitude de não querer fazer batota (porquê? “Tem de ser”, dirão quantos?) e não querendo que a Cornucópia “se aproveitasse” da situação, com o raciocínio que passo a explicar e alguma sorte, julguei encontrar um texto que valesse a pena, os actores para o fazer, uma tradução à altura, e vasculhando no repertório clássico, o do nascimento antigo da democracia que herdámos, onde é certo que o teatro seria político, me lembrei que Frederico Lourenço, que já para nós tinha traduzido ou tão bem “recriado” Sófocles (Filoctetes) tinha publicado há já muito tempo uma tradução da tragédia de Íon de Eurípides, autor em que nunca tínhamos ousado tocar.

Político era de facto, como o é todo o teatro da Grécia antiga, era uma obra como outras desse momento da História da Civilização Ocidental, capaz ainda de trazer para a rua a discussão, o pensamento, capaz de apelar para a responsabilidade política

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dos cidadãos. A obra fala de problemas de Estado com os valores em que assenta em crise. Como diz a Sophia, com quem apren-demos a viver a vida pública: quando “o palácio jazia disperso e destruído”.

Sempre fomos um pouco desmancha--prazeres. Lembro o que fomos criticados porque, em vez de fazermos festa, imediata-mente a seguir ao 25 de Abril, 3 meses depois, estávamos a estrear O Terror e a Miséria no III Reich, de Brecht, feito pela primeira vez sem censura em Portugal para que se pensasse ou aprendesse o que tinha sido o fascismo. Mas neste momento seria, creio, quase impossível festejar com alegria e não por descargo de consciência, os 40 anos do 25 de Abril, uns pelo que tem tardado a apagar-se, outros porque tão depressa acabou. E isto sabendo que muita coisa mudou e com certeza, alguma para muito melhor. Passou tempo, muito tempo, o tempo activo de uma vida, e tenho a certeza de que, no meu tempo, como se costumava dizer, eu tive uma educação, ainda em tempo fascista, muito melhor que aquela a que hoje têm acesso os novos. Mas são tantos mais e de toda a parte, e tantas vezes sem dinheiro, os que têm acesso ao ensino, que, dir-se-ia que o que mudou, mudou para bem, compensa. Quem ousaria dizer que não? Mas também quem não concordaria que alguma cultura humanista não só é precisa mas absolutamente necessária? Talvez os próprios novos, os interessados. E são eles que farão o futuro. E o tempo não há-de ser uma conservação do passado através de uma imutável e cada vez maior acumulação de lastro cultural. Mas que cada um construa com liberdade a sua vida e a responsabilidade a que o convívio, e cada vez mais a própria conservação da espécie nos obriga. Aos olhos de um ancião

nem sempre lhe parece que tenhamos, os mais velhos, sabido prezar os dois valores de que falo: responsabilidade, liberdade. Porque as não reconhecemos na maneira de estar de grande parte dos mais novos. E sabemos que a vida da “política”, com grande minúscula e entre aspas passa a rir ao lado destas questões, somando algarismos que confunde com haveres. E foram estas questões (políticas?católicas?privadas?), ou melhor, a consciência da importância que têm, e de que temos de viver a História com o corpo, ou não a viveremos senão no último momen-to, as questões que mataram Pasolini num bairro da lata aos 57 anos. Há já muito tempo, em 75. Nessa altura eu era ainda muito novo para perceber a dimensão daquilo que a ele o preocupava, na sua maneira de viver o chamado pós-guerra. Hoje, em contrapartida, e já passado o medo de me confrontar com a violência dum filme como Saló, leio a sua obra quase tão devotamente como a Bíblia. E fala deste assunto que afinal é o que está na origem deste espectáculo, e o que continua a estar nos seus objectivos. Por isso mesmo foi em Pasolini, nas suas cartas a Gennariello, que fui encontrar os enxertos dramatúrgicos que fizemos ao Ion de Eurípides. Quase como se ele dissesse o que eu sentiria se fosse mais valente. Era também a esse nível que eu gostaria que andasse o pensamento dos que agora fazem política partidária. A política sem filosofia? Que contra-senso! Já no Génesis se diz que a árvore da serpente no Paraíso era a do conhecimento, a da sabedoria. Aí vai, transcrito da Wikipédia, em brasileiro,claro:

Filosofia (do grego Φιλοσοφία, literal-mente «amor à sabedoria» filos=amar sofia=sabedoria.) é o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao

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conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem.

Outra também transcrita da net:Política A palavra tem origem nos tempos

em que os gregos estavam organizados em cidades-estado chamadas “polis”, nome do qual se derivaram palavras como “politiké” (política em geral) e “politikós” (dos cida-dãos, pertencente aos cidadãos), que estenderam-se ao latim “politicus” e chegaram às línguas europeias modernas através do francês “politique” que, em 1265 já era definida nesse idioma como “ciência do governo dos Estados”. O termo política é derivado do grego antigo πολιτεία (politeía), que indicava todos os procedimen-tos relativos à pólis, ou cidade-Estado. Por extensão, poderia significar tanto cidade--Estado, quanto sociedade, comunidade, coletividade e outras definições referentes à vida urbana.

Vem tudo dos Gregos. O cineasta João Canijo um dia disse-me mesmo que esse material antigo dava para fazer filmes a vida inteira. E é de lá que sai muito do que pensamos. Já se vê porque é que as obras dramáticas desse tempo que se conservaram são uma fonte inesgotável de comparações e deduções. No último espectáculo que aqui fizemos, no tempo da tão sábia e generosa direcção deste teatro por Jorge Salavisa, foi à comédia desse tempo, a Aristófanes, que recorremos num espectáculo que foi uma operação de charme, uma piscadela de olhos ao espectador. Agora a relação com Eurípides é mais elaborada e deu-me que pensar. Senti que a peça, que não sei se Shakespeare teria lido, mas faz lembrar o Hamlet, passava pelos mesmos temas de reflexão a que o nosso envelhecimento pode conduzir. O reino de Atenas está decadente. Naquela sagrada família, em que o filho de

um Deus é gerado por uma mortal, e para ser rei renuncia à sua natureza de filho de Deus, espezinhando a sua mãe, e gerador de um destino de rei que a gerou, duas ideias são o fulcro da intriga: a crise de fé: os deuses já não são o que eram, em que acreditaremos reinando na cidade da deusa da razão, Atena? A outra ideia, de que decorre um retrocesso, é a de que a mentira é o mal. Michel Foucault nas suas célebres lições comenta largamente o Íon na perspectiva de que a peça conta e define a decadência do que era a virtude em que assentava a legitimidade do poder e da sua relação com os cidadãos, a sua possibilidade de falar verdade. É de facto um dos pontos em que ainda hoje sentimos o trágico em Íon: a transformação daquele moço, que aquele filho do Sol e da Terra (a geração de sua mãe descende, segundo se diz, de uma família que nasceu da terra), criado pela sibila no umbigo do mundo, o lugar do oráculo que prediz o futuro, tenha de viver assente numa mentira pública, para poder ser chefe. Mas há o tempo. E apesar de tudo o que possa haver de paralelo, é demagógico decalcar sobre o que um texto diz do seu tempo (neste caso 25 séculos antes de nós), a realidade do nosso tempo. Se reconhece-mos, por exemplo uma progressiva respon-sabilização individual na mentalidade dos mais novos que é razão para termos direito à esperança, eu sinto que a virtude da lealdade se tornou quase sinónimo de inépcia, de desajuste com o nosso tempo, e sendo a inteligência, como aprendi, a capacidade de lidar com novas situações, sinónimo de estupidez. Eu até defendo que a nossa relação actual com a vida está doente de tão abstracta e virtual. A filosofia, o pensamento, não pode separar-se das coisas. Somos alma e corpo sensações

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e pensamento, tudo junto. A palavra justa, a clareza, do pensamento dos Gregos arrepia-me de tão pouco suja, de tão pouco contraditória. De desajustada da nossa experiência de vida. Estou mais a gosto na minha pele contraditória de pecador cristão e todo o mundo em que vivemos descende disso. Entre uma estátua de Fídias, ou um dos anónimos kourói do museu da Acrópole e um quadro de Ribera, eu estou sempre mais do lado dos barrocos. Talvez depois de tanta decepção da História, admirando sobretudo, como a máxima beleza, o generoso sonho do esplendor físico, humano, como resposta do Homem ao desafio divino, que está figurado no tecto e no altar da Sistina. Quando a Sophia escreve no fim do seu poema do Crepúsculo dos Deuses, poema que acabámos por incluir no espectá-culo, ela está com a sua maravilhosa e apaixonada lucidez, a falar disto mesmo: agora os deuses já não o são. E para um cristão a redenção, está na encarnação divina, essa dor, essa alegria. É nessa capacidade de prever a passagem desta família de semi-deuses para a sagrada família do Cristianismo que eu me encontro com o profundamente trágico mas também aquilo que de trágico permanece, estou de acordo com o Frederico, nesta tão humana concepção da tragédia que Eurípides tem.

Lembro-me bem da experiência de represen-tar o Filoctetes e sei como é diferente.

Culpo-me de eventualmente me estar a afastar das coisas, da tão invocada vida, nos espectáculos que tenho vindo a dirigir. É de certo modo inevitável com o envelheci-mento físico, que também se padeça de algum desequilíbrio na ânsia de fazer sínteses, de dominar a vida que nos vai fugindo e que é desordenada por excelência, “vital”. Uma parte disso também é decorren-te da limitação da liberdade de que falava no início. Que nunca o computador e a internet nos limite a vida a um ecrã! Que nunca o pensamento se torne abstracto, que nunca a síntese nasça por falta de dinheiro para mais que o essencial ou para o pormenor! Mas corremos agora no teatro todos esse risco. Tudo conceptual, que é mais barato. E lá se vai o conceito para deixar em seu lugar o que dá jeito: nada, rotunda preta e nenhuma decoração, nem sequer uma cadeira. E cada vez mais igual a si próprio e cada vez mais uma solução para um problema de produção, e cada vez menos obra de criação, uma invenção. Todos teremos pelo menos de sentir na pele o problema. E é verdade que a pobreza aguça o engenho. Aguça mais o de quem tem mais para aguçar, claro, e aí vamos nós em mais uma competição: quem melhor se sai das condições difíceis de produção,

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e aí temos tudo a trabalhar para a eficácia em vez de coisa generosa por excelência, descoberta e aprendizagem do prazer. Mas de uma virtude tento não fugir: a lealdade para com o espectador, nosso igual e também nosso irmão, mais apanhado ainda que nós nesta aberração. E que diferença vai de igual a irmão, de uma palavra à outra? O afecto, o coração. Fraternidade sim, que de Igualdade estamos pelos cabelos porque é mentira e alibi, e quanto à Liberdade estamos falados. E esta era uma palavra de ordem de uma revolução de há 300 anos! Bem digo eu que é melhor desordem que formular palavras para uma ordem que tão facilmente degenera em absurda burocracia. Primeiro que tudo: perder o medo, expor-se. Aceitar riscos. Não são palavras de ordem. São desejos que aconteça. Viver a custo perdido.

Gosto cada vez mais que se ponham as cartas na mesa e que cada vez menos o teatro seja uma prestação de provas a um juiz. Que seja o que é: uma forma superior de estarmos com os outros. Tenho escolhido para esse encontro muitas vezes textos clássicos. Não há perigo assim de tomarmos gato por lebre e de, como às vezes acontece, pensarmos que, com qualquer guião de televisão se faz filosofia. Mas também tento não usar a autoridade do clássico escolhido

como passe-partout de qualquer parvoíce e de muito instrumento de “promoção” de que o formato ideal é o digest. Mas ao encenar uma tragédia de há tanto tempo não posso reconstituir como se fazia nem com a ajuda dos resultados de todas as eventuais investigações. No teatro o texto dos outros, mesmo antigo, passa por um crivo antes de chegar ao espectador, passa por nós, queiramos ou não, volta a ser presente pelo nosso corpo, a nossa voz, e teremos de nos apropriarmos dele. Gosto que a construção de um espectáculo utilize o máximo de materiais à nossa disposição, todos os níveis de leitura que nos suscitou, mesmo as zonas escuras que eventualmente não consegui-mos entender, e de o fazer com os elementos que temos e de que podemos dispor. Seja como for, não suporto as actualizações apressadas e tantas vezes ditadas apenas pelos baixos orçamentos. Ou por outra razão de mercado: na ópera, por exemplo, a frequência com que o mesmo reportório é apresentado leva a que, para criar uma ilusão de novidade, se façam modernizações sem sentido de óperas com libretos incompreen-síveis em fatos modernos. Isto não é tornar os clássicos acessíveis, é marketing que torna os teatros em fábricas de fraudes intelectuais. Pelo contrário, fazemos dissonâncias e anacronismos que os tornam

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ainda mais complexos. Como são. E a maior simplicidade esconde a máxima e complica-da inteligência das coisas. A cenografia também não é decoração, tem voz na dramaturgia de um espectáculo, não é só espaço sem sentido. Muitas coisas na cenografia mínima deste espectáculo são mais pistas para o pensamento que a peça pode suscitar, trampolim para associações de ideias, figuração de referências, que acabam por criar um efeito de colagem às vezes chocante, mas esperemos que mais estimulante do que cenografia propriamente dita.

Creio que começámos por pôr em cena a própria proposta. Hora local: 2014, 25 de Abril, 40 anos depois. À falta de autorização para usar a cortina anti–fogo no São Luiz, porque se se gastasse podia já não funcionar se houvesse fogo a sério, as cores da nossa bandeira. Lá fora, no Chiado nalgum altifalante camarário, à mistura com o nosso manneken-pis, o Fernando Pessoa da Brasileira, em seu tempo amorosamente esculpido pelo professor Lagoa Henriques, uma canção antiga que nos faz chorar, o Menino d’Oiro do Zeca Afonso, e mais ainda a outra canção do menino, a fechar o espectáculo, a da dolorosa melancolia da esperança, Canção de Embalar. Lembramo-nos do edifício da Pide, ao lado do São Luiz, das mortes que ali houve no dia 25 de Abril de 74. Dos poucos tiros que houve, quase todos foram aqui, sobre 4 jovens, diante do São Luiz, vindos da varanda da Pide. Eu andava por ali. A poucas centenas de metros foi o episódio do largo do Carmo em que se sentia o perigo, eu vi, muito mais que a alegria da vitória como quase passou a ser História depois da reconstituição do filme Capitães de Abril, em que também gosto de ter actuado, do lado da reacção,

provavelmente igualmente falso, como diria o verdadeiro Alferes Cabrita, reaccionário. Ser actor tem destas coisas, dizemos muitas vezes a verdade e o seu contrário. Passaram 40 anos sobre os mesmos locais e dão a palavra à Cornucópia: em cena os mais velhos para falarem ao público, darão a ver o seu trabalho honesto e de alguns outros, para grande alegria nossa, alguns dos que melhor nos continuam, 3, poucos, porque são esses os dados que nos dita a produção. Amigos. A lealdade para com o público não nos permite escamotear o arrepio. Não há violência cénica que possa competir com o confronto da memória com o presente. Valha-nos o escândalo de começar com Zeca Afonso um Eurípides truncado e enxertado de óbvias piscadelas de olho do mais cerrado mau gosto, como a valsa da Traviata, a Ave-Maria de Gounod ou o hino do MFA. Tanto que já muito tarde, nos últimos ensaios, acabámos por dar a voz a um poema de Sophia que de tal maneira me formou, que nele reencontro o que me convenceu a escolher este texto, aceitar e até já agrade-cer a encomenda, e o que assim aprendi.

Para além de estar ao lado da Cristina e de poder, como afinal toda a vida, contar com a sua imensa confiança, e dos outros que, na sombra, será sempre injusto não nomear, orgulho-me das pessoas com quem estarei em cena, a quem estou e fico, no caso do Guilherme, ligado por laços de um valor que se modifica mas sabe acompanhar o tempo: a amizade. E por poder dar a cara pela qualidade do seu trabalho. São actores capazes de me oferecerem a liberdade de construir comigo uma leitura, um pensamen-to. São casos raros de honradez profissional, para dizer o mínimo. Gente melhor que o tempo que vivemos.

Percebi, ao pôr sobre a mesa elementos

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das duas épocas que se confrontam neste palco, a “revolução dos cravos” da 2ª metade do século XX e a Atenas do século V, ligadas pela ideia comum de Democracia, e em cada uma delas links internos para os respectivos passados, o da implantação da República e o 28 de Maio que lhe pôs fim, e na antiga Atenas, o tempo anterior à Democracia, quando ainda havia reis, tempo passado também para Eurípides e para o público da sua estreia, o como são tempos terrivel-mente incompatíveis e quanto o choque da decepção democrática nos aguçava a compreensão do texto antigo. Estou habituado a pensar que representar os clássicos nos ajuda a compreender o presente. Neste caso convenci-me do contrário. É difícil não tornar em presente os textos passados que interiorizamos ao voltar a representá-los. É a memória do 25 de Abril que nos ajuda a entender Eurípides. E a arte daqueles que já são passado para uns mas aos mais velhos ainda nos parecem presente (a arte faz coisas destas): são a poesia de Sophia, as duas canções do Zeca, a citação do Evangelho de Pasolini com o mesmo “Sometimes i feel like a motherless Child”, a sua lucidez revolucionária, quem dão forma à nossa tentativa de conhecer uma decepção antiga e de a tornarmos comparável com um novo presente: a da necessidade da mentira nos cargos de poder.

crepÚScuLo doS deuSeS

Um sorriso de espanto brotou nas ilhas do Egeu

E Homero fez florir o roxo sobre o mar

O Kouros avançou um passo exactamente

A palidez de Atena cintilou no dia

Então a claridade dos deuses venceu os monstros nos

[frontões de todos os templos

E para o fundo do seu império recuaram os Persas

Celebrámos a vitória: a treva

Foi exposta e sacrificada em grandes pátios brancos

O grito rouco do coro purificou a cidade

Como golfinhos a alegria rápida

Rodeava os navios

O nosso corpo estava nu porque encontrara

A sua medida exacta

Inventámos: as colunas de Sunion imanentes à luz

Mas eis que se apagaram

Os antigos deuses sol interior das coisas

Eis que se abriu o vazio que nos separa das coisas

Somos alucinados pela ausência bebidos pela

ausência

E aos mensageiros de Juliano a Sibila respondeu:

«Ide dizer ao rei que o belo palácio jaz por terra

quebrado.

Phebo já não tem cabana nem loureiro profético nem

fonte melodiosa.

A água que fala calou-se.»

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Quando, em 455 a.C., Eurípides concorreu, pela primeira vez, às competições dramáti-cas de Atenas – a cidade que, ao longo da sua dramaturgia, seria objecto dos maiores elogios e das críticas mais ásperas -, o ambiente cultural que se vivia na cidade--estado paradigmática do mundo helénico começara já a acusar a influência do pensamento sofístico. Isto significa que os valores tradicionais da Hélade, a que Píndaro e Ésquilo souberam como ninguém dar a expressão mais perfeita, começaram a ser postos em causa; e as certezas sobre o papel dos deuses e dos homens, assim como a crença numa ordem divina essencialmente justa, características das gerações que combateram em Maratona e Salamina, foram progressivamente dando lugar à dúvida desintegradora, que penetrava, cada vez mais sensivelmente, nas consciências dos Atenienses, a partir do momento em que se iniciou a Guerra do Peloponeso, em 431.

No teatro de Dioniso, este ambiente tinha forçosamente de se fazer sentir. As interro-gações sobre a religião e sobre a ética transparecem de modo mais ou menos

indirecto na fase final da carreira de Sófocles, nomeadamente em Filoctetes; mas seria Eurípides (juntamente com Aristófanes, o seu “alter ego” cómico) a dar uma voz mais audível tensões religiosas, anímicas e morais que pautaram as últimas décadas do século V, numa série surpreendente de obras dramáticas que, de Alceste (a mais antiga peça conservada) a Ifigénia em Áulis (representada a título póstumo após a morte do tragediógrafo), nunca deixaram de provocar os espectadores dos festivais dramáticos de Atenas – e de colocar, ainda hoje, a helenistas e amantes do teatro, sérias dificuldades quanto à exegese do corpus multiforme que nos foi legado pelos estudio-sos do período bizantino.

Constituído por dezoito dramas (dos quais um, o Ciclope, é o único exemplo que chegou até nós de um drama satírico completo), o corpus euripidiano pode ser dividido, em traços muito largos, em três grupos distintos: (a) as peças de uma primeira fase (pouco representada na selecção de peças que a Antiguidade nos transmitiu), que poderemos dizer “severa” no sentido em que se utiliza,

Sobre a traduÇÃo de ÍonFrederico LourenÇo

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em alemão, a expressão strenger Stil para descrever a contenção e a beleza depurada de certo período da história da arte grega (são elas Alceste, Medeia e Hipólito); (b) as peças ditas “políticas”, de que se fará adiante menção; (c) as peças tardias, todas elas detentoras de traços distintivos comuns, como a recuperação do diálogo em tetrâme-tros trocaicos, uma maior liberdade de resolução dos trímetros jâmbicos, uma atitude radicalmente inovadora em relação ao tratamento do mito, certos maneirismos estilísticos, uma tendência cada vez mais marcada de encarar os estásimos como momentos de decorativismo puramente esteticizante e a progressiva intromissão de registos discursivos e dramáticos que mais tarde seriam considerados apanágio da… comédia. Eurípides já tinha explorado o registo quase displicente da “tragicomédia” em Alceste; mas à a partir da Ifigénia táurica, “a mais humana e bem disposta das tragé-dias clássicas”, que o tom de comédia se vai imiscuindo cada vez mais na contextura dos drama euripidianos, a ponto de se levantar, no respeitante a Íon e Helena, a leve possibilidade de encararmos estas peças como “comédias”. A intromissão do tom cómico é visível, ainda, noutras tragédias tardias, como Orestes (diálogo entre o protagonista e o escravo frígio), Bacantes ( o ambiente sinistro de “comédia negra” que invade a cena entre Dionísio e Penteu vestido de bacante, repleta de humor ao mesmo tempo bizarro e terrível) e Ifigénia em Áulis (diálogo entre Agamémnon e o servo, no início do primeiro episódio).

No entanto, apesar desta divisão algo artificial entre três fases distintas, há elementos que são constantes ao longo da produção do tragediógrafo. Eurípides subverteu, por exemplo, a concepção

tradicional de herói trágico, que em Ésquilo e Sófocles aparecia preferencialmente revestida de “vontade indómita” masculina, mas que surgiu, no teatro de Eurípides, com grande frequência, associada à fragilidade e emotividade típicas das suas heroínas femininas. Alceste, Medeia, Fedra, Ifigénia, Creúsa e Helena são personagens cuja “feminilidade” é aproveitada com uma verosimilhança psicológica que faz delas figuras muito mais reais do que as inesquecí-veis, mas comparativamente monolíticas, Cassandra e Antígona (de Ésquilo e Sófocles, respectivamente). A crítica à religião tradicional corresponde igualmente a um elemento que é constante no ideário euripidiano, surgindo em praticamente todas as tragédias conservadas de forma tão incontornável que S. Minocchi pôde ver no poeta de Salamina um percursor do Cristianismo. Por vezes, é o próprio entrecho que veicula essa crítica, como nos sucede nos casos de Hipólito, Héracles e Bacantes, para citar apenas os casos mais célebres de dramas onde a precária existência humana é (quase) aniquilada pela intervenção proposi-tadamente malévola (dir-se-ia sádica, sobretudo no caso de Bacantes) de uma divindade despeitada. Outras vezes surgem--nos comentário, reflexões e dúvidas sobre a fidedignidade dos mitos, um pouco disper-sos por todas as peças, que põem em causa os deuses tradicionais, criticando-os de modo mais ou menos directo. A “inutilidade” dos deuses relativamente às angústias e aspirações mortais acaba por ser o mal menor, embora conduza a uma atitude de sophron apistia (“descrença esclarecida”, como diz o Mensageiro no v. 1617 de Helena), que prefigura já o pessimismo característico de épocas posteriores, como se vê pela célebre reflexão da Ama de Fedra no Hipólito

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(vv. 189-197):A vida humana é toda ela dolorosa e não

há meio de pararem os sofrimentos. Ainda para mais, aquilo que é melhor do que a vida, a escuridão circundante esconde-o com nuvens. Parecemos infelizmente apaixonados por esta coisa que, seja lá o que for, cintila aqui na terra, inexperientes de outra vida e sem a revelação do que está debaixo da terra. Andamos e o que nos arrasta não passa de mitos.

Mas a religião tradicional, com o seu panteão de divindades invejosas, impassíveis e cruéis, não é o único alvo do espírito crítico de Eurípides. Nas peças tardias, como observa C. Willink, os cânones tradicionais de valor pessoal (“glória”) são asperamente criticados; por seu lado, os estereótipos de “valor colectivo”, assim como a polis que os aceita de modo cinicamente acomodatício, também recebem ao longo da produção do tragediógrafo um tratamento que não deixa Atenas ilesa. Mas é sobretudo nas “peças políticas” (Heraclidas, Andrómaca, Hécuba, Suplicantes e Troianas) que se consubstan-cia a atitude crítica de Eurípides no respei-tante ao relativismo ético e à hipocrisia política de que a cidade se socorria cada vez mais para justificar o conflito que a opunha a Esparta – talvez por se sentir “sobrecarrega-da de culpa”, como diz o protagonista de Íon (v. 601). Esta fase termina com uma das peças mais chocantes de toda a tragégrega, As Troianas, ao lngo da qual o espectador é levado a assistir ao pesadelo totalmente desprovido dde esperança a que conduz a crueldade humana. Apesar desta peça ter sido adaptada ao cinema em 1972 por M. Cacoyannis (com Katharine Hepburn, Irene Papas e Vanessa Redgrave nos papéis de Hécuba, Helena e Andrómaca, respectiva-mente), a força do original euripidiano pode

ser captada com mais fidelidade num filme que ficou célebre evido ao seu efeito de “catarse pelo horror” ao abordar os piores excessos de desumanidade a que, para sua desgraça, o ser humano é capaz de descer: Saló de Pier Paolo Pasolini (1975).

Não há nada, porém, no ambiente sufocan-te e sobrecarregado das Troianas de 415, que nos prepare para a reviravolta mais inesperada da carreira de Eurípides. É que as tragédias que o poeta apresenta em seguida nos festivais dionisíacos caracteri-zam-se, na sua maior parte, pela desconcer-tante inadequação com que lhes assenta a designação “tragédia”. Se considerarmos os entrechos de Ifigénia entre os Tauros, Íon, Helena e Andrómeda, verificamos que, de acção trágica propriamente dita, pouco ou nada se consegue descortinar: o poeta opta por um registo híbrido, algures entre o melodramático e o cómico que, embora explorando as possibilidades emotivas anagorisis (“reconhecimento”), se afasta por completo da mitopoética trágica consagrada por Ésquilo e Sófocles. Somos quase tentados a afirmar que, a partir da intransigência insuportável da tragicidade de Troiana, Eurípides decidiu trilhar cami-nhos novos, antecipando neste aspecto (como em tantos outros…) a estética helenística na sua repugnância em voltar a repisar itinerários já gastos por uma tradicção que começava, de si também, a dar sinais de fadiga.

Efectivamente, é neste contexto que a tragédia euripidiana é “reinventada”. O desfecho “feliz” passa a ser de rigor, ainda que, para tal, o autor tivesse de concluir abruptamente as suas peças com as mais discutíveis intervenções do deus ex machina, a figura divina que surge no final, no ponto em que o argumento chega a um impasse

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impossível de resolver, para “ditar” uma solução para a problemática apresentada pelo drama – “solução”, aliás, cuja artificiali-dade muitos leitores têm dificuldade em aceitar. O novo género, que surge a partir da “reinvenção” da tragédia levada a cabo por Eurípides ao compor Ifigénia entre os Tauros, Íon e Helena, resistiu até agora às etiquetas que os helenistas têm querido aplicar-lhe (e.g., “melodrama”, “dramas romanescos”, “comédia romântica”, Intrigenstücke, etc.). B. Knox chega a propor que “desde que entendamos ‘comédia’, não na acepção antiga, mas no sentido moderno do termo, Eurípides, nestas peças – especial-mente na obra culminante que é o Íon -, é o inventor daquilo a que chamamos comédia”. Parece-me contudo exagerado empregar o termmo “comédia” neste contexto, porquan-to, como advertiu W. Stockert, com ‘trágico’ e ‘cómico’ estamos a recorrer a conceitos estéticos que não eram conhecidos ao autor grego… estamos a empregar estas catego-rias de forma anacrónica”. Quando muito, preferimos a formulação mais contida de T. Stinton, “afinidades cómicas”. O que é facto, porém, é que uma análise mais profunda destas peças acaba por pôr em relevo outros elementos, pouco consentâne-os (embora superficialmente parecidos…) com o conceito antigo, ou mesmo moderno, de comédia. Exemplificando, observemos que, na caracterização que oferece destes dramas euripidianos, o mesmo Knox, defensor da aplicação do termo “comédia” ao Íon, descreve o “novo género” inventado por Eurípides do seguinte modo:

“a essência desta nova forma dramática é que as personagens são obrigadas a caminhar sobre uma fina camada de gelo, que as separa da escuridão das águas trágicas; pode acontecer-lhes

estalar a superfície, mas nunca caem lá dentro. Este género é um exercício virtuosístico na criação de suspense, terminando com uma fuga bem sucedida que deixa para trás aquilo que é incuravel-mente trágico, o sofrimento.”

Ora desprende-se destas palavras que, nos respeitante aos entrechos de Ifigénia entre os Tauros, Íon e Helena, outras circunstâncias caracterizadoras se impõem (o suspense, por exemplo), incompatíveis com o registo da comédia. O Íon é formal-mente, basta lermos Aristófanes ou mesmo Menandro e Terêncio (os autores cujo género de comédia – “comédia nova” – mais se assemelha às ditas afinidades cómicas de Eurípides) para vermos a que ponto a estrutura formal é determinante. No entanto, é uma tragédia que parece assumir-se quase como uma critique of the genre, como dizem os teorizadores anglo-saxónicos da estética do cinema relativamente à distância que se instaura entre um Johnny Guitar de Nicholas Ray e o “western” enquanto género, ou entre Cleopatra de Joseph L. Mankiewicz e o “filme épico”. Por tudo isto, o efeito incon-gruente que poderá produzir a representa-ção e/ou leitura do Íon assenta numa mescla insólita regras subvertidas e de expectativas goradas – uma contextura complexa, sem dúvida, que faz desta peça a mais subtil da carreira de Eurípides e, ao mesmo tempo, em termos de estética e de dramaturgia, talvez o drama mais surpreendente e desconcer-tante de toda a tragédia grega.

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Direcção Artística Temporada 2013-2014 José Luís FerreiraDirectoraAida TavaresAdjunta da Direcção Executiva Margarida PachecoSecretariado de DirecçãoOlga SantosDirecção de ProduçãoTiza Gonçalves (directora)Susana Duarte (adjunta)Mafalda SebastiãoMargarida Sousa DiasDirecção TécnicaHernâni Saúde (director)João Nunes (adjunto)IluminaçãoCarlos TiagoRicardo CamposRicardo JoaquimSérgio JoaquimMaquinistasAntónio PalmaPaulo MiraVasco FerreiraSomNuno SaiasRicardo FernandesRui LopesEncarregado GeralManuel CastiçoSecretariado TécnicoSónia Rosa Direcção de CenaAndreia LuísJosé CalixtoMaria TávoraMarta Pedroso Ana Cristina Lucas (assistente)Direcção de ComunicaçãoAna Pereira Luís Gouveia MonteiroNuno SantosBilheteiraCidalina RamosHugo HenriquesSoraia AmarelinhoFrente de casaLetras e PartiturasAssistentes de salaCarla Pignatelli Carolina AlvesCarolina SerrãoConstança SáCristiano VarelaDelfim PereiraDomingos TeixeiraHernâni BaptistaInês Veiga MacedoJoão CunhaLeonor MartinsManuel VelosoMaria VelosoSeverino SoaresCarlos Ramos (Assistente)SegurançaSecuritasLimpezaAstrolimpa

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www.teatro-cornucopia.pt www.teatroSaoLuiZ.pt

24 aBr a 4 Mai teatro / estreia

íonteatro Da cornucópiaadaptado de eurípidestraduZido por Frederico LourenÇoencenaÇÃo de Luis MiGueL cintra

quarta a sáBado às 21h; doMinGo às 17h30 (excepto dia 1 de Maio)SALA PRINCIPAL; M/121H45 SEM INTERVALO€12 a €15 (coM descontos €5 a €10,50)sessÃo LGp 4 Mai

tradução Frederico Lourençoencenação e adaptação Luis Miguel Cintracenografia e Figurinos Cristina Reisdesenho de Luz Cristina Reis, Luis Miguel Cintra com Rui SeabrainterpretaçãoCoroJosé Manuel Mendes (com Hermes-Prólogo e Atena)Luís Lima BarretoLuis Miguel CintraÍonGuilherme GomesCreúsaLuísa CruzXutoJoão Grosso (actor do Teatro Nacional D. Maria II)VelhoLuis Miguel CintraServo (de Creúsa)LuÍs Lima BarretoPítiaJoão Grosso

assistente de encenação e contra-regra Manuel Romanoassistentes para o cenário e figurinos Linda Gomes Teixeira e Luís Miguel Santosdirector técnico Jorge Estevesconstrução e montagem de cenárioJoão Paulo Araújo e Abel DuarteMontagem e operação de luz e somRui SeabraGuarda-roupa e conservação do Guarda-roupaMaria do Sameiro Vilelaassistente de produçãoTânia Trigueirossecretária da companhiaAmália Barrigaco-produção Teatro da Cornucópia e São Luiz Teatro Municipal

O Teatro da Cornucópia é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal/Secretário de Estado da Cultura – DGArtes

26 aBrconverSa com a equipa artÍSticaSÁBADO DEPOIS DO ESPECTÁCULO

30 aBrteatro na antiGuidade cLÁSSica com Frederico LourenÇoQUARTA ÀS 18HSALA PRINCIPALENTRADA LIVRE

ainda no 25.40

26 aBrportuGaL. e o Futuro?debateSÁBADO ÀS 17H; JARDIM DE INVERNOENTRADA LIVRE

Convidados:Joana Manuel, actriz/cantoraAntónio Guerreiro, jornalista e críticoMário Horta, psicanalista e psicoterapeutaPedro Magalhães, politólogo e investigador (a confirmar)

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