folha 03-08-2015

15
 FOLHA 03-08-2015  ALVARO COSTA E SILVA Seca cultural RIO DE JANEIRO - Era o menor sebo da cidade. Ao passar naquela rua menos movimentada do Flamengo corria-se o risco de ver despencar livros e mais livros, tão apinhado vivia o lugar. Mas quem entende da arte de buquinar garantia: ali se escondiam coisas r aras e jamais se saía de mãos abanando. E, como sói acontecer hoje, o Sebo da Lúcia, de portas abertas havia 12 anos, um  belo dia não estava mais lá. Mais uma vítima, pensou o buquineiro, da seca cultural que o país enfrenta: livrarias fechando a rodo; festivais literários sendo cancelados ou com programações enxutas; patrocínios, bolsas, prêmios e concursos extintos; editoras segurando lançamentos; governo suspendendo compras ou não repassando verbas.  A Lúcia, no entanto, deu uma volta esperta na crise. Logo arranjou um novo espaço, que é pelo menos três vezes maior que o antigo, no qual pôde distribuir com mais critério seu acervo de cerca de quatro mil livros, LPs e CDs. Antes, pagava um aluguel de R$ 2.000; agora conseguiu um mais barato (de R$ 1.300), numa galeria de comércio popular no Catete de nome mais apropriado para seu negócio: Machado de Assis. Com capricho, decorou a fachada da lo ja com capas de João Gilbert o, Beatles,  Ary Barroso, Jacob do Bandolim, Iron Maiden. Com orgulho, exibe os títulos sobre moda, arquitetura e história do Rio, e as coleções baratas de romances policiais, de espionagem ou ficção científica. Em destaque, fica o vinil de 10 pol egadas de Aracy de Almeida cantando Noel Rosa ("Feitiço da Vila", "Último Desejo", "Conversa de Botequim", entre outras) , lançado em 1954 pela Continental, com desenho na c apa de Di Cavalcanti e texto na contracapa de Fernando Lobo. Um luxo. "Meu negócio vai bem, obrigada. Deve ser a crise", afirma Lúcia, instalada no novo endereço há quatro meses. RICARDO MELO Bombas na pauta  Ato terrorista, atentado ao Instituto Lula merece condenação bem maior do que declarações protocolares 

Upload: josecostajunior

Post on 01-Nov-2015

217 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

.

TRANSCRIPT

  • FOLHA 03-08-2015

    ALVARO COSTA E SILVA

    Seca cultural

    RIO DE JANEIRO - Era o menor sebo da cidade. Ao passar naquela rua menos movimentada do Flamengo corria-se o risco de ver despencar livros e mais livros, to apinhado vivia o lugar. Mas quem entende da arte de buquinar garantia: ali se escondiam coisas raras e jamais se saa de mos abanando. E, como si acontecer hoje, o Sebo da Lcia, de portas abertas havia 12 anos, um belo dia no estava mais l.

    Mais uma vtima, pensou o buquineiro, da seca cultural que o pas enfrenta: livrarias fechando a rodo; festivais literrios sendo cancelados ou com programaes enxutas; patrocnios, bolsas, prmios e concursos extintos; editoras segurando lanamentos; governo suspendendo compras ou no repassando verbas.

    A Lcia, no entanto, deu uma volta esperta na crise. Logo arranjou um novo espao, que pelo menos trs vezes maior que o antigo, no qual pde distribuir com mais critrio seu acervo de cerca de quatro mil livros, LPs e CDs. Antes, pagava um aluguel de R$ 2.000; agora conseguiu um mais barato (de R$ 1.300), numa galeria de comrcio popular no Catete de nome mais apropriado para seu negcio: Machado de Assis.

    Com capricho, decorou a fachada da loja com capas de Joo Gilberto, Beatles, Ary Barroso, Jacob do Bandolim, Iron Maiden. Com orgulho, exibe os ttulos sobre moda, arquitetura e histria do Rio, e as colees baratas de romances policiais, de espionagem ou fico cientfica.

    Em destaque, fica o vinil de 10 polegadas de Aracy de Almeida cantando Noel Rosa ("Feitio da Vila", "ltimo Desejo", "Conversa de Botequim", entre outras), lanado em 1954 pela Continental, com desenho na capa de Di Cavalcanti e texto na contracapa de Fernando Lobo. Um luxo.

    "Meu negcio vai bem, obrigada. Deve ser a crise", afirma Lcia, instalada no novo endereo h quatro meses.

    RICARDO MELO

    Bombas na pauta

    Ato terrorista, atentado ao Instituto Lula merece condenao bem maior do que declaraes protocolares

  • O presidente da Cmara, Eduardo Cunha, promete barulho na volta do recesso. Seria a pauta-bomba. O objetivo de Cunha, nem ele esconde, reforar o emparedamento do Planalto. O lema: se hay Dilma, soy contra. Para azar do deputado, neste meio tempo ele passou definitivamente de pedra a vidraa. Mas o jogo ainda est para ser jogado.

    Bem mais real do que especulaes parlamentares foi o atentado contra o Instituto Lula, ocorrido na noite da ltima quinta-feira (30). Em qualquer pas mais ou menos srio, o ataque ao escritrio de um ex-presidente da Repblica num ambiente envenenado como o atual seria classificado de ato terrorista. Uma bomba jogada na sede onde trabalha um dos principais lderes polticos brasileiros merece outro nome?

    Alis, tampouco se trata do primeiro atentado a instalaes do PT. Foi o terceiro num curto espao de tempo. Acidentes? Nada disso. Eles representam uma escalada previsvel. Nos ltimos meses, j tivemos fotgrafos agredidos, cidados atacados durante passeatas, leitores de revistas humilhados em avies e jornalistas perseguidos porque so parecidos com Lula. Isso para no falar das agresses em lugares pblicos hospitais, restaurantes contra quem no reza a cartilha do impeachment da presidente.

    "Ah, mas foi uma bomba caseira e no deixou feridos", simplificaram as notcias sobre o atentado. Como se o fato de ser "feita em casa" anulasse a agresso cometida. Comediantes de ocasio e locatrios das redes sociais aproveitaram o momento para exercitar sua discutvel criatividade. Pena que Lula no estava l, disseram uns. Foi coisa armada pelo prprio PT, acusaram outros.

    As reaes do mundo poltico, ento, impressionaram pelo silncio. Nem com uma lupa possvel encontrar manifestaes veementes de repdio. Queira-se ou no, tal complacncia equivale a endossar esta forma de ataque. J vimos este filme outras vezes.

    Que a oposio se cale do alto do muro, no Brasil ou na Sardenha, at se compreende. Mas soa injustificvel autoridades tergiversarem sobre a gravidade do ocorrido. "Jogar uma bomba caseira na sede do Instituto Lula uma atitude que no condiz com a cultura de tolerncia e de respeito diversidade do povo brasileiro", reagiu a presidente Dilma pelo... Twitter! O ministro da Justia, Jos Eduardo Cardozo, conseguiu ser mais pattico: "Tudo considerado quando temos um fato sob investigao. A polcia agir para apurar o que ocorreu, pois uma situao que merece uma investigao e, quando se pegar o autor, ser necessrio punir". No diga.

    Inexplicavelmente, o assunto foi entregue Polcia Civil de So Paulo, conhecida pelos ndices raquticos de soluo de casos. Nos bastidores, diz-se que a hiptese mais forte aponta para "baderneiros". Por que meros baderneiros resolveram atacar o escritrio de um ex-presidente da Repblica em vez do Museu do Ipiranga, que fica ao lado, parece um mistrio fcil de decifrar menos para o ministro da Justia. Cad a Polcia Federal, considerando que se trata de um caso envolvendo um ex-presidente?

  • O Brasil vive uma luta poltica. A sada mais trgica minimizar fatos relevantes invocando tolerncia, diversidade ou obviedades do tipo "tudo ser investigado". Se os prprios agredidos temem se defender e chamar as coisas pelo nome, o que est ruim s pode ficar pior.

    MINHA HISTRIA BERND WOLLSCHLAEGER

    Sombra histria

    Mdico alemo que hoje vive nos EUA conta como rompeu com a famlia ao descobrir o passado nazista do pai, converteu-se ao judasmo e imigrou para Israel

    LEDA BALBINOEDITORA-ADJUNTA DE "MUNDO"

    RESUMO O mdico Bernd Wollschlaeger, 57, rompeu com a famlia aps descobrir o papel de seu pai Arthur, condecorado pelo ditador nazista Adolf Hitler, na Segunda Guerra (1939-1945). Aps converter-se ao judasmo, Wollschlaeger mudou-se em 1987 para Israel e obteve cidadania israelense. Um dos protagonistas do documentrio "Fantasmas do Terceiro Reich", da brasileira Claudia Sobral, ele vive desde 1991 nos EUA.

    Nasci em 1958 em Bamberg, no sul da Alemanha, onde aprendi muito cedo a importncia da histria por estar cercado por ela. Perguntava aos meus pais sobre seu passado, sobre meus avs, mas eles s se limitavam a dizer que houve uma guerra.

    Mas gradualmente comecei a colher duas verses diferentes. Da minha me, uma tcheca de etnia alem, ouvia sobre o horror de ter sido desalojada de casa, de ter perdido tudo que lhe era caro.

    Do meu pai, ouvi histrias de glria. Comandante de tanque, ele participou dos ataques Polnia (1939), Frana (1940) e Unio Sovitica (1941). Um dia ele me mostrou a condecorao que recebeu de Hitler: a Cruz de Ferro.

    As dvidas surgiram entre meus 8 e 9 anos, porque havia algo curioso na nossa casa em Bamberg. Vivamos de aluguel no primeiro andar de uma construo antiga. A dona, uma condessa com quem minha me me proibia de falar, morava no andar de cima.

    Ao lado da escada que levava ao seu apartamento, havia o retrato de um militar que tambm usava a Cruz de Ferro. Meu pai o chamava de "traidor", e eu no entendia por que algum que se parecia com ele poderia ser ruim.

    At que descobri que o retratado era Claus von Stauffenberg, o coronel que liderou a tentativa de assassinato contra Hitler em 20 de julho de 1944. E foi com sua viva, Nina, que aprendi mais tarde que houve uma Alemanha de ditadura e pessoas que lutaram contra o sistema.

  • Quando tinha 14 anos, nos ensinaram na escola que a Olimpada de Munique (1972) mostraria ao mundo uma nova Alemanha, e no a de 1936, quando Hitler usou os Jogos como propaganda nazista.

    Meus pais chamaram amigos para ver a abertura. Quando a equipe com a estrela de davi na bandeira entrou no estdio, o clima mudou e eles pararam de falar, como se tivesse aparecido um fantasma.

    Dez dias depois, essa equipe foi feita refm por terroristas palestinos. E ento o curso da minha vida mudou no dia seguinte ao fracasso do resgate, quando li nos jornais a manchete "Judeus mortos novamente na Alemanha".

    Na escola, tiveram de nos explicar sobre Auschwitz, a soluo final, a morte de judeus como poltica de Estado.

    Apesar de meu pai ser um cara muito duro, eu o confrontei: "Pai, o que sabe sobre o Holocausto?" Ele respondeu que era mentira, tudo propaganda comunista. No curso de vrios anos, o abordei para tentar extrair a verdade. Aos poucos, ela apareceu.

    Em janeiro deste ano, um especialista militar me entregou uma mala do mecnico do tanque de meu pai cheia de rolos rasgados da Tor.

    Os parentes dele relataram que os membros do regimento do meu pai destruram vilas judaicas na Polnia e na Rssia, mataram todos e saquearam. E usaram os rolos da Tor para envolver os motores dos veculos e evitar que perdessem calor no inverno. Meu pai no apenas soube do Holocausto: participou dele.

    Quando eu tinha 17, 18 anos, ele defendeu o Holocausto dizendo: "Foi necessrio, porque algum tinha de se livrar da sujeira".

    Dos 19 aos 26, 27 anos, passei por uma mudana espiritual. Converti-me e me tornei judeu ainda na Alemanha: foi um total rompimento com minha famlia. Tive de partir e imigrei para Israel em 1987.

    Deixei a nacionalidade alem para trs, me tornei israelense, deixei a f crist para me tornar judeu, servi no Exrcito de Israel. Me desconectei totalmente do antigo eu para manter a sanidade.

    Minha jornada foi me reconciliar comigo, entender: como posso ser alemo, filho de um pai que fez isso? E como ser eu mesmo, normal? Foi uma redeno pessoal.

    Comecei essa jornada me sentindo culpado. No fim, me tornei judeu por convico. No posso limpar o passado de meu pai. Hoje no me sinto mais culpado, mas sinto que, como filho dele, sou responsvel. Tenho de carregar essa vergonha. Mas fiz e fao tudo o que posso para contribuir para essa redeno.

  • Meu pai nunca foi capaz de sentir remorso. Antes de morrer, incluiu no seu testamento que eu nunca deveria visitar sua sepultura, no deveria comparecer a seu funeral, me deserdou. Obviamente, no fui ao seu enterro estava em Israel quando morreu. Mas visitei seu tmulo 20 anos depois, com meu filho.

    A parte irnica que o tmulo dos meus pais em Bamberg fica ao lado do muro que separa o cemitrio cristo do judaico. Quando voc olha na direo desse muro a partir do tmulo deles, v do outro lado as lpides judaicas.

    Olhando para aquilo, disse ao meu filho: "Essa a lio que posso lhe ensinar: a histria sempre projetar sua sombra, mesmo na morte. Por isso melhor lidar com ela estando vivo, saindo da sombra e aprendendo suas lies".

    Meu pai nunca fez isso. Literalmente, ele repousa sob a sombra da histria por toda a eternidade.

    Psiquiatra Iami Tiba morre aos 74 em SP

    Autor de livros sobre educao e juventude estava internado no Hospital Srio-Libans

    DE SO PAULO

    O psiquiatra e educador Iami Tiba morreu na tarde deste domingo (2) no Hospital Srio-Libans, em So Paulo. Ele tinha 74 anos.

    O mdico estava internado desde o comeo do ano para tratamento de um cncer.

    Segundo o hospital, Tiba morreu por volta das 19h. At as 23h, a causa da morte no havia sido divulgada.

    "Ele foi um dos principais psiquiatras do pas e do mundo. Sempre teve um ar de menino, sempre alegre", disse o amigo Reinaldo Polito, colunista do UOL, empresa controlada pelo Grupo Folha.

    Filho de monge budista, Tiba nasceu em Tapira, no interior de So Paulo, em 1941.

    Em junho de 2014, em entrevista a Antnio Abujamra, no programa "Provocaes" da TV Cultura, foi questionado sobre a morte.

    Na ocasio, Tiba disse que, apesar da conscincia de que estava envelhecendo, no queria morrer. "Diante de tanta oportunidade que eu tenho de divulgar ideias e melhorar famlias, eu no quero morrer agora", afirmou.

    Quando Abujamra perguntou de que forma Iami Tiba gostaria de morrer, o mdico se lembrou da mulher e respondeu: "Feliz ao lado dela. Simples assim".

  • Com a mulher, Maria Natrcia, teve trs filhos Luciana, Andr e Natrcia.

    CARREIRA

    Iami Tiba escreveu mais de 40 livros sobre eduo, que somaram mais de 4 milhes de cpias vendidas, entre eles o best-seller "Quem Ama, Educa!".

    O mdico foi eleito em pesquisa do Ibope Opinio, no ano passado, como o brasileiro mais admirado ou usado como referncia na rea de psicologia.

    Formou-se em medicina na USP em 1968 e iniciou sua carreira no setor de psiquiatria do Hospital das Clnicas, onde foi professor assistente.

    O enterro ser realizado s 16h, nesta segunda-feira (3), no cemitrio do Morumbi.

    Vitria no Rio isola Ronda no topo do UFC

    MMA Americana precisou de 2 minutos e 10 segundos para vencer as ltimas quatro lutas; brasileira caiu em 34s

    GUILHERME SETOENVIADO ESPECIAL AO RIO

    As provocaes ao longo de meses, os cartis invictos das lutadoras, a enorme divulgao e a expectativa da opinio especializada e do pblico fizeram crer que o duelo da americana Ronda Rousey com a paraibana Bethe Correia seria disputado.

    Ronda, campe peso-galo, porm, no precisou de mais que 34 segundos para nocautear sua adversria de maneira categrica neste domingo (2), na Arena da Barra, no Rio, e deixar claro mais uma vez que ela no tem rivais a sua altura no UFC atualmente.

    "Ela uma imensa superestrela, diferente de tudo que j vi. Ela j est na lista dos maiores atletas da histria do evento", disse Dana White, presidente do UFC, o principal circuito mundial de MMA (artes marciais mistas).

    A vitria sobre Bethe, com quem se irritou aps suposta referncia ao suicdio de seu pai, teve requinte de crueldade: foi no estilo em que a rival melhor, a troca de golpes.

    Na primeira troca de socos, Ronda levou a adversria grade, esquivou-se de alguns golpes e a derrubou com socos diretos e cruzados no rosto. Bethe desmoronou com o rosto no octgono "beijou a lona", em jargo do boxe.

    O grito de "uh, vai morrer" da torcida transformou-se em "ol, ol, Ronda, Ronda".

  • Para vencer suas ltimas quatro lutas do UFC, Ronda gastou ao todo 2 minutos e 10 segundos. E essa superioridade absoluta no deve terminar to logo, j que seu prximo confronto deve ser com a compatriota Miesha Tate, que ela venceu duas vezes.

    "Fico feliz de ter conseguido terminar to rapidamente as minhas ltimas lutas. Estou na busca para ser uma atleta perfeita", disse Ronda.

    Entre torcedores e especialistas, acredita-se que a lutadora com mais chances de disputa parelha com Ronda seria a curitibana Cris Cyborg, 30, campe do Invicta, maior evento feminino fora do UFC, com 14 vitrias, uma derrota e uma luta sem resultado (por causa de resultado positivo em antidoping de Cyborg).

    Aguardado h anos, o confronto esbarra na diferena de categorias das atletas. Ronda peso-galo do UFC, com limite de peso de 61 kg, ao passo que Cyborg peso-pena, com teto de 65 kg.

    "A questo complicada, porque todos esto prontos para a luta. Eu estou, a Ronda tambm est. Mas a Cyborg tem que bater o peso, e eu no a vejo fazer o esforo necessrio", afirmou White.

    Nas redes sociais, Cyborg escreveu que se prepara para uma luta abaixo de sua categoria e pediu chance para dar aos fs "a luta mais violenta da histria do MMA".

    OPINIO

    A lenda Orlando Orfei nos ajuda a no desistir

    Morre no Rio, aos 95 anos, italiano que veio morar no Brasil em 1968 para ser um dos maiores nomes do circo nacional

    HUGO POSSOLOESPECIAL PARA A FOLHA

    Apesar de ter morrido no sbado (1), no Rio, de pneumonia, aos 95 anos, o italiano Orlando Orfei seguir como viveu seus ltimos anos, uma lenda.

    Nos anos 1980, quando eu era estudante da Picadeiro Circo-Escola, fomos convidados a assistir ao retorno de Orlando Orfei, aps ter se recuperado de um derrame. Quando ele entrou trmulo na jaula dos lees, arrastando uma das pernas, foi uma comoo. Ao erguer uma cadeira diante das feras, perdeu a fora das mos, derrubando-a no cho. A plateia ficou sem respirar.

    O leo avanava lentamente para dar o bote quando ele suspendeu a mo, detendo o animal com um gesto poderoso. Ainda trmulo, de frente para aquela ameaa real, recuou e saiu da jaula ovacionado pelo pblico.

  • No me interessa se ele anunciou fazer "essa primeira entrada na jaula" mais umas cem vezes, pois aquela a que assisti foi to real que me ensinou que o circo uma arte na qual o tempo presente, o aqui-agora, to ficcional e mgico quanto a mais sofisticada das fices.

    Tenho a felicidade de fazer com os Parlapates uma pardia de "As guas Danantes", um de seus nmeros mais bregas e divertidos. Sinto que ele tenha partido sem assistir a essa homenagem.

    Muitos jovens no sabero quem era Orfei, que passou a morar no Brasil em 1968 e se apresentou num picadeiro pela ltima vez em 2008. Comeou a vida como palhao aos seis anos, quando o irmo, 20 anos mais velho, o colocava dentro das calas de figurino.

    Foi mgico, malabarista, domador de feras e equilibrista. Morava com a mulher, Herta, 80, com quem teve seis filhos.

    Hoje, quando um jovem artista despreza o circo antigo, percebo que confunde tradio com conservadorismo estagnante da expresso, pela falta de referncias.

    O circo contemporneo carece de autocrtica, sobretudo quando confunde a tradio com o esprito kitsch de Orfei, que reproduzia a Las Vegas dos anos 1970, a base de smoking, paets dourados e sorrisos de cigarro mentolado.

    Como se a esttica dessa Disney de adultos que a Las Vegas de hoje, com o Cirque du Soleil desenhando mosaicos feitos de lixo do pop, no fosse tambm carregada da ostentao para impressionar pencas de turistas.

    Como no blasfemar a cada vez que um cone como Orfei parte, se somos um pas que no sabe cuidar de sua cultura? So Paulo tem um Centro de Memria do Circo que vive mais pelo empenho de seus funcionrios que pelo desejo real do poder pblico em dar-lhe sentido vivo.

    Enquanto circenses pedem que a renovao venha com investimentos na formao de novas geraes, polticos negligentes continuam sentando em cadeiras de Secretarias de Cultura ignorando a importncia do circo. o caso do Circo Escola Piolin, cuja rea j est desapropriada no Largo do Paissandu, stio histrico dessa arte na cidade, que por falta de vontade ou competncia mais um projeto que no sai do papel.

    Assim, vamos vivendo de lendas, como Orlando Orfei, que nos alimenta a alma e nos ajuda a no desistir.

    HUGO POSSOLO, 53, palhao, dramaturgo e diretor do grupo Parlapates

    GREGORIO DUVIVIER

    No entendo

  • No entendo o documento de identidade ainda ser um pedao de papel e voc ser obrigado a andar com ele

    No entendo as companhias areas estarem sempre falindo ou beira da falncia, enquanto a quantidade de clientes no param de crescer. No entendo Toddynho sabor napolitano.

    No entendo a expresso "nem por um caralho", que d a impresso de que um caralho a maior coisa que pode existir no mundo. "Isso eu no aceito nem por R$ 1 bilho". "T, mas e por um caralho?" "Ah, por um caralho eu topo".

    No entendo a expresso "Vai com Deus", porque Deus, caso exista, invisvel, ento fica difcil saber por onde ele t indo. Seria melhor voc pedir pra Deus: "Vai com ele".

    No entendo no existir uma lei mundial que garanta a uniformidade de tomadas e carregadores.

    No entendo aparecerem asteriscos quando voc digita o nmero do seu CPF no caixa dos supermercados para ningum ver seu CPF e quando voc conclui apareceram os dgitos para voc confirmar se acertou qual o sentido de terem asteriscos se os dgitos aparecem para voc confirmar?

    No entendo o 3G ilimitado ter limites. No entendo o Ita 30 horas no funcionar nem 10.

    No entendo o trfico de drogas ser considerado crime hediondo e o homicdio no. No entendo meta.

    No entendo a tampa das privadas no ser levantada por um pedal. Meu pai inventou essa geringona e causa-me espcie ele no estar milionrio.

    No entendo o Bradesco ter registrado lucro recorde nesse semestre de crise. No entendo se o lucro acontece apesar da crise ou por causa dela.

    No entendo dinheiro gerar dinheiro mais dinheiro que o trabalho.

    No entendo a empresa de Eike estar beira da falncia e Eike continuar bilionrio. No entendo os bancos declararem falncia e os banqueiros continuarem ricos.

    No entendo as igrejas no pagarem imposto sobre a arrecadao. No entendo o novo acordo ortogrfico.

    No entendo por que viajar na contramo da rotao da Terra e voltar 24 horas no fuso horrio no faz a gente voltar para ontem.

    No entendo o documento de identidade ainda ser um pedao de papel e voc ter que andar com ele.

  • No entendo no poder usar o celular quando est provado que o sinal do celular no interfere em nada e no entendo, caso acreditem de fato que um celular possa derrubar o avio apesar de todas as pesquisas, por que deixam a gente embarcar com ele.

    LUIZ FELIPE POND

    Temperamento destino

    Apenas pessoas deselegantes dizem a verdade socialmente. E uma mulher sem vaidade como o homem sem coragem

    Temperamento destino. Uma ideia fora de moda. Um preguioso semeia o vazio sua volta. Um covarde destri a vida sua volta. Um mesquinho faz o mundo ficar feio. Um invejoso o faz irrespirvel. Um vaidoso engana o amor das mulheres.

    "Temperamento destino" significa que, se voc preguioso e no consegue acordar cedo, provvel que no consiga fazer muita coisa na vida. Claro que isso no uma regra universal: voc pode ser preguioso e ser... rico! Ou ter uma mulher que te sustenta. Ou um marido que te sustenta. Ou ganhar na loteria. Mas, na maioria dos casos, quem no gosta de acordar cedo, ou quem inventa dificuldades para justificar a prpria preguia, tende a no realizar muita coisa na vida. Ponto.

    V? Completamente fora de moda. Uma coisa simples assim trai uma viso de mundo fora de moda. Quer outro exemplo?

    Gente covarde. Piorou, n? Piorou porque hoje todo mundo legal. Ou, se no , por culpa de alguma forma de opresso. At mesmo a psiquiatria e as neurocincias esto virando desculpa para temperamentos sem muitas virtudes justificarem seus fracassos. Dia desses, as pessoas viro com "manual de funcionamento", e, por exemplo, aprovaes em escolas e faculdade sero dadas por juzes e psiquiatras, e no mais pelos professores.

    Bem feito para eles, os professores, que so bem culpados por isso tudo, uma vez que tm ensinado o "culto da vtima" h algumas dcadas para os alunos. As crianas nem sabem mais as capitais dos Estados e dos pases porque seus professores esto mais preocupados em pregar todo tipo de ideologia salvacionista. Quem diria que a sala de aula iria virar uma igreja?

    Mas voltemos covardia. Em pocas de guerra mais fcil enxergar a covardia e ver que ela uma epidemia. Em tempos de paz, ela fica mais disfarada. Mas, ainda assim, voc a v aqui e ali. A covardia gosta de andar em bandos. Fala sempre "ns" e adora ser parte de algum "coletivo" ou "instituio". A covardia incapaz de sair do protocolo. Sente-se em casa num protocolo. Por isso prolixa e, assim, enche o saco da coragem que tende a ser impaciente com ela. A

  • coragem sua inimiga mortal, inclusive porque mais bonita e inteligente do que ela. A covardia adora ouvir o som da prpria voz.

    A originalidade terra estranha para a covardia, que prefere copiar. Ela, a covardia, costuma se dar bem quando a regra obedecer a mediocridade. sempre um risco enfrentar a mediocridade porque ela tem a maioria em seu exrcito. Covardia e mediocridade so irms gmeas. Uma se reconhece na outra. Uma defende a outra com uma fria que s miserveis de carter sentem. Normalmente, essa fria alimentada pela inveja, prima-irm da covardia e da mediocridade. Todas as trs so feias de doer. Diria, em gria popular: trs barangas de matar!

    E a mesquinhez? Se voc mesquinho, mesmo se ficar rico, permanecer pobre de esprito. Olhar para o mundo assim como quem olha para uma casa vazia. Difcil ser confiar em algum. Sem confiana, respira-se mal. Come-se mal. Beija-se mal. Imagine s um mesquinho lambendo a boca de algum por dentro? Ele morre de nojo. O manaco por sade um mesquinho disfarado. Sexo? Se lamber a boca dela por dentro o mataria de medo, imagine lamb-la entre as pernas? Mulheres generosas do com gosto. Homens generosos tomam com amor. A generosidade uma forma de confiana. E a confiana no sobrevive sem aquilo que Nietzsche chamava de Eros.

    E a vaidade? Ah! A vaidade! A mais bela das fraquezas. Um pouco de vaidade faz parte do contrato social de elegncia entre as pessoas. S pessoas deselegantes dizem a verdade socialmente. E a mulher sem vaidade como o homem sem coragem. Ambos no servem para quase nada. Pelo menos no servem um para o outro.

    Temperamento destino. Se voc perder uns minutos olhando no espelho, ver como o destino est mais dentro de voc do que pode parecer. Voc tambm pode pensar em carter como destino. Ideias fora de moda, mas que deviam voltar a ser usadas nas escolas e nas famlias.

    ENTREVISTA WOODY ALLEN

    O trabalho do artista mostrar s pessoas que tudo insignificante

    CINEASTA DIZ QUE TENTA DISTRAIR PBLICO DO QUANTO A VIDA PODE SER TERRVEL E QUE COMDIAS SO SOBREMESAS, ENQUANTO FILMES SRIOS SO OS PRATOS PRINCIPAIS

    RODRIGO SALEMCOLABORAO PARA A FOLHA, DE CANNES (FRANA) Prestes a completar 80 anos, Woody Allen segue sua rotina: acorda cedo, leva os filhos adolescentes adotados com a mulher, Soon-Yi Previn, filha adotiva de sua ex-mulher Mia Farrow para a escola, caminha na esteira e depois passa

  • horas na cama ou na mquina de datilografar que o acompanha h mais de 60 anos.

    assim que Allen, um dos cineastas mais importantes da histria, continua a dirigir e escrever um filme por ano.

    No mais recente, "O Homem Irracional", previsto para estrear no Brasil no dia 27, o nova-iorquino conta a histria de um filsofo superstar, interpretado por Joaquin Phoenix, que reencontra a felicidade quando se envolve com uma aluna (Emma Stone) e comete um ato "irracional".

    Durante o Festival de Cannes, no qual o longa foi exibido fora de competio, em maio, Allen falou Folha sobre morte, frustraes, mulheres bonitas e o projeto no Rio que nunca foi adiante.

    Folha - Voc gosta de divulgar seus filmes em festivais?

    Woody Allen - Gosto de vir a Cannes, mas o problema que [os produtores] esperam que voc promova seu filme. No quero ser aquela pessoa que diz como o filme timo. Ento, meio constrangedor. O que eu tenho a falar irrelevante, porque dirigi e escrevi o longa, ento claro que vou dizer que tal coisa maravilhosa. Mas estarei mentindo (risos).

    No acha engraado que em todas as vezes que voc lana um filme algum crtico aparea com a frase "Woody Allen est de volta velha forma"?

    Nunca leio sobre mim mesmo porque as pessoas sempre entendem errado. Mesmo quando querem ser gentis, e elas so gentis, entendem errado. Quanto menos penso em mim mesmo, melhor fico.

    surpreendente que no leia sobre si mesmo ao mesmo tempo em que divaga sobre a existncia em seu novo filme.

    Me preocupo bastante com a minha mortalidade. So questes que sempre me incomodaram. No me considero um cineasta poltico, mas sou como cidado. Mas quando falo de arte, estou interessado nos temas existenciais. Mesmo que seja para fazer piadas.

    Quando voc tomou conscincia da prpria mortalidade?

    Talvez em uma idade parecida com a de todo o mundo, em torno dos quatro, cinco anos.

    To cedo?

    Ah, isso acontece. Psiclogos dizem que normal.

    Ento, voc encarou isso de maneira filosfica em vez de enfiar a cabea em gibis?

  • Correto. H pessoas mais ajustadas do que eu que diriam: " algo inevitvel, vou aceitar e aproveitar a vida". Mas no consigo. Sou mimado, penso como a morte vai estragar tudo. E, se esse o caso, vou pegar minha bola e levar para casa (risos).

    Voc est prestes a fazer 80 anos e com uma carreira ainda ativa e brilhante. No fim das contas, voc se deu bem, no?

    Tive muita sorte, preciso admitir. Nunca fui um bom aluno. Era atltico quando jovem e estava interessado em esportes e jazz, nada cerebral demais. Porm, tive a sorte de saber, por alguma razo inexplicvel, escrever piadas. Ningum na minha famlia era engraado ou participou do showbusiness em algum momento das suas vidas.

    Contar piadas salvou minha vida e passei a trabalhar no teatro e na TV. Voc ganha uma quantia exagerada no entretenimento e, em pouco tempo, eu tinha mais dinheiro com humor do que meu pai em toda a sua vida.

    Ao mesmo tempo, voc queria ser o Bergman americano.

    Sim, eu queria ser srio, escrever tragdias e virar Eugene O'Neill, Bergman ou Tennessee Williams. Queria escrever dramas pesados, e poderia fazer isso, mas ningum me dava oportunidades. Me contratavam porque precisavam de algum que soubesse escrever comdia, e poucas pessoas sabiam.

    Quando comecei a fazer filmes, ningum financiaria se fosse um drama, apenas quando era uma comdia. S mais tarde, depois de "Noivo Neurtico, Noiva Nervosa" (1977) e outros filmes, que a United Artists me disse: "OK, pode fazer um filme srio se quiser." Fiz "Interiores" (1978).

    Ser engraado no suficiente?

    Menosprezamos o que temos de talento natural. Ser engraado, para mim, no significa nada. Mas quando vejo algum desenhando, acho maravilhoso. assim que me sinto com a comdia, porque sempre achei fcil.

    Quando eu ia ao cinema ver Bergman, me divertia muito mais do que com comdias. Para mim, comdias so sobremesas, e os filmes srios so os pratos principais.

    Voc disse que fcil fazer comdia, mas admitiu dificuldades para escrever sua srie para a Amazon. E ela uma comdia.

    Sim, mas estou tendo dificuldades porque no estou acostumado a escrever em seis partes. Estou acostumado a fazer aquela coisinha boba que fao todos os anos, e sei onde esto incio, meio e fim.

    Mas escrever uma srie estranho, porque voc produz por 15 minutos e precisa ter um gancho empolgante para o prximo episdio.

    H uma linha que podemos seguir nos temas dos seus filmes?

  • H temas recorrentes, mas acidentais. como psicanlise: voc fala, e o mdico no abre a boca. Depois de cinco anos, voc nota que alguns assuntos aparecem frequentemente e possuem significado.

    Ao longo dos anos, mesmo nos meus primeiros filmes, h um assunto presente: amor e morte. No h nenhuma resposta, so apenas piadas.

    O trabalho do artista mostrar s pessoas que tudo que vocs esto fazendo insignificante, e que tudo vai desaparecer um dia. Ento, aproveitem a vida. Minha maior contribuio tentar distrair as pessoas por duas horas, faz-las esquecer como a vida pode ser terrvel. Meus filmes so como um copo de gua gelado em um dia quente de vero.

    Mas voc inspirou geraes de roteiristas e diretores.

    No sei. Meu sentimento, e no digo isso para ser modesto, que no influenciei ningum. Se voc ler qualquer entrevista com jovens cineastas, sempre vo citar Scorsese ou "Star Wars", mas meu nome nunca aparece.

    No ruim influenciar as pessoas, mas eu no o fiz e no me incomodo com isso.

    Poderia dizer ento que influenciou colees de discos.

    Bem, isso pode ter acontecido. A parte mais prazerosa de filmar colocar a trilha. Quando voc termina um longa, ele est frio e sem vida, ento vou para a minha coleo e escolho uns discos. De repente, coloco Ramsey Lewis, e o filme ganha vida. No tem nada a ver com ser inteligente, mas com erros e acertos.

    Com as mulheres dos filmes so assim tambm?

    A no tem como errar. Trabalhei com as mais amveis mulheres do cinema. Janet Margolin era linda. Diane Keaton era linda quando jovem. Trabalhei com Scarlett Johansson e Charlize Theron. At Mia Farrow, com quem briguei, era linda. Mas no consigo imaginar algum to bonita quanto Emma Stone.

    Por que voc to fascinado por atrizes bonitas?

    Um dos grandes prazeres da vida olhar para uma mulher bonita. Vou trabalhar e l est Emma Stone ou Scarlett Johansson parecendo uma deusa. E isso dura meses (risos). At os homens so charmosos.

    divertido trabalhar com sujeitos bonites e carismticos. Fiz filmes com Colin Firth, Michael Caine, John Cusack, Colin Farrell e... (pausa) Bem, no consigo me lembrar to facilmente dos homens quanto das mulheres.

    Nestes 80 anos, quais lies voc aprendeu na vida?

    Voc acredita que se tornou mais tolerante com as pessoas, menos rabugento. Compreende que as pessoas tm os mesmos problemas e inseguranas que voc.

  • Voc fica consciente do sofrimento alheio e tende a se importar mais com as pessoas. Mas no aprendemos muito.

    O que aconteceu com os planos de filmar no Brasil?

    No sei muito sobre o Brasil alm do que aprendemos na escola. Precisaria ir e aprender mais sobre o pas, ver como a cidade funciona.

    Mas no pensaria duas vezes, um pas que voc cresce ouvindo de forma extica e romntica. S no fao ideia de como comear um filme em um lugar sem conhec-lo. Se vou a Londres, sei onde esto os restaurantes, os parques, as ruas. Preciso ir ao Rio encontrar a sensibilidade da cidade.