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CDU 398(812.1) FOLCLORE E SOCIEDADE* Mundicarmo Maria Rocha Ferretti** Apesar do termo folclore ser amplamente aceito e utili zado, não só no Brasil como também em outros países, para designar a cultura popular tr~ dicional, produzida pelo povo e fora das academias, obser va-se hoje freql1entemente en tre cientistas sociais brasi leiros uma certa recusa em re lacão a sua utilização. Para alguns a palavra folclore co~ tinua a ser associada à idéia de sobrevivências culturais e aos estudos que apresentaram- no como éillgoestático, desvi~ culado do contexto social em queocorre, idéia esta que nao A dinâmica do folclore na sociedade brasiliera. Analisa-se a questão do tradicionalismo e da mudança do foI clore e o papel desempenhado no ranhão pelos centros de religiãõ afro-brasileira na preservacão de tradições culturais de origens di versas. encontra apoio em pesquisas mais profundas desenvolvidas por folcloristas ou por cien tistas sociais. Embora não haja folclore sem tradicionalismo, o tradi cionalismo do folclore não de ve ser confundido com impeE meabilidade à mudança nem com ausênci~ de dinamismo. Folcl2 re estático-rrerasobrevivência do passado-não existe, a não ser em estudos incompletos ou superficiais, pois, se está preso em sua origem a um tem po e a um lugar distantes, em seu processo está vinculado ao * Trabalho originalmente apresentado em janeiro de 1990, no XV Encontro Cultural de La ranjeiras, em Sergipe.· ~ ** Professora Adjunta do Departamento de Psicologia com Doutorado em Antropologia Social. 18 Cad. Pesq., são Luís, v. 7, n. 2, p. 18 - 24, ju1./dez. 1991.

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CDU 398(812.1)

FOLCLORE E SOCIEDADE*

Mundicarmo Maria Rocha Ferretti**

Apesar do termo folcloreser amplamente aceito e utilizado, não só no Brasil comotambém em outros países, paradesignar a cultura popular tr~dicional, produzida pelo povoe fora das academias, observa-se hoje freql1entemente entre cientistas sociais brasileiros uma certa recusa em relacão a sua utilização. Paraalguns a palavra folclore co~tinua a ser associada à idéiade sobrevivências culturais eaos estudos que apresentaram-no como éillgoestático, desvi~culado do contexto social emqueocorre, idéia esta que nao

A dinâmica do folclore na sociedadebrasiliera. Analisa-se a questão dotradicionalismo e da mudança do foIclore e o papel desempenhado no Mãranhão pelos centros de religiãõafro-brasileira na preservacão detradições culturais de origens diversas.

encontra apoio em pesquisasmais profundas desenvolvidaspor folcloristas ou por cientistas sociais.

Embora não haja folcloresem tradicionalismo, o tradicionalismo do folclore não deve ser confundido com impeEmeabilidade à mudança nem comausênci~ de dinamismo. Folcl2re estático-rrerasobrevivênciado passado-não existe, a nãoser em estudos incompletos ousuperficiais, pois, se estápreso em sua origem a um tempo e a um lugar distantes, emseu processo está vinculado ao

* Trabalho originalmente apresentado em janeiro de 1990, no XV Encontro Cultural de Laranjeiras, em Sergipe.· ~

** Professora Adjunta do Departamento de Psicologia com Doutorado em Antropologia Social.

18 Cad. Pesq., são Luís, v. 7, n. 2, p. 18 - 24, ju1./dez. 1991.

contexto social em que é prQduzido (ou reproduzido) .

A dinâmica do folclore tema ver com as alterações politicas e econômicas da sociedade. Em são Simão, no Maranhão,a dança do Lelê (objeto de pe~quisa realizada pela então Fundação Cultural do Estado, descrita por FERRETTI et al (1978,p. 10), é também denominada"pél-a pOILC.O" (porque no pas sadoseus organizadores costumavammatar um daqueles animais paraalimentar os participantes) epor "c.aJ0Únbó de. ve..l-ha" (em virtude de tradicional ausência dosjovens). Em 1976 tivemos opo~tunidade de ver dançar O Lelênaquele povoado e, para surpr~sa nossa, a festa terminou porum "pél-a ólLal1go", em vez de "P~ia pOILC.O" pois a população J anão mais podia arcar com suasdespesas, e, certamente, pass~ra a criar porcos em menor escala. Alguns anos depois encontrando em são Luís algunsdos seus orqaní.z adores , soubemosque depois da pesquisa a dançapassou a ser ensinada na escola e que passara a contar com aparticipação dos jovens da comunidade, deixara portanto deser ",c(uUmbô de. ve..iha."

Esse dinamismo do folclore deveria aparecer em todosos estudos prolongados ma~ cQmo as adaptações e atualizaçõesdo folclore foram freqüent~mente vistas como perda de a~tenticidade (como se também nãotivessem ocorrido em epocasanteriores), deixou de ser vi~to ou apresentado em muitosdeles. Contudo, se folclore étradição, sua mudança precisaser realizada de modo que naocomprometa sua própria existência e não pode ser ditadapela moda. Por outro lado,suavalorização deve apoiar-semais na correspondência prQfunda que existe entre ele ea sociedade que o produziu(emtermos de gosto e visão de mundo) e na consciência de queele e parte do seu patrimôniocultural e, como tal, deveser por ela preservado.

Nossas observações sobrea cultura popular maranhensetem chamado atenção para a relação entre religiosidade PQpular e folclore e para o P~pel desempenhado pelos terreiros de religião afro-brasileira como promotores de folclore. Em são Luís quando alguémlidera um grupo para a reali

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zaçao de uma atividade comoBumba-boi, Festejo do Espír!to Santo, Tambor de Crioula eoutras, geralmente tem umaobrigação a pagar: promessafeita a um santo, desejo oupedido de um de seus encantados de Mina (religião afro)oude Cura (pajelança) . 'Promessafeita a são João é paga, freqüentemente, assumindo-se ocompromisso de organização deum "batalhão" e de realizaçãode brincadeira de Bumba - boiaté O fim da vida, e promessaa são Benedito é paga, gera!mente, com Tambor de Crioula,apesar destas atividades naoserem consideradas propriame~te religiosas, como são a Obrigação de São Lázaro (com umjantar para crianças e cachorros), e a Festa do EspíritoSanto (realizada em quase todos os terreiros de Mina desão Luís) •

Os terreiros convertem-seem importantes centros promQtores de folclore porque,alémde seus membros também fazerem promessas a santos católicos e pagarem essas promessascom aqueles folguedos e rituais, muitas atividades folclóricas são ali realizadas a p~dido dos encantados ou para

agradá-Ios. Assim, o Boi da C~sa de Nagô é do encantado conhecido como Preto Velho, e oda Casa Fanti-Ashanti é do encantado Antonio Luís, o Corre-Beirada. Do mesmo modo, a fe~ta do Espírito Santo (ou do D!vino) na Casa das Minas e realizada para a princesa NochêSepazim, e no Centro de Tamborde Mina Iemanjá (terreiro deJorge Itaci) para o encantadogentil D. Luís, Rei de França.O folclore é tão importantenos terreiros de são Luís(Ma)que na programação das festasgrandes por eles realizadas emlouvor a entidades espirituaisafricanas (voduns e orixás),são sempre incluídas, para animação, várias atividades foIclóricas: Tambor de Crioula,B~ê de Caixa (Carimbó deVelha), além de ladainhas e prQcissões e outros rituais do catolicismo popular.

O fato dessas obrigaçõesreligiosas serem gera~te a~sumidas por toda a vida ou,quando temporárias, nao pod~rem ser abandonadas (daí po~que passam a ser pagas por umparente da pessoa que a contraiu, quando esta é surpree~dida pela morte), garante acontinuidade da realização da

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atividade folclórica envolvida na promessa feita ao santoou ao encantado. No. folcloremaranhense a religião quandonão é o motivo de sua realização funciona como fator de p~tencialização de outros fatores responsáveis por ela, g~rantindo.arealização e a continuidade de atividades foIclóricas.

Mas ao mesmo tempo que areligião contribui para a pr~s~rvação do foldlore pode sertambém para ele um fator de m~dança. Assim, se e:![lSão Luísa festa do Espírito Santo nãofosse ~ealizada nos terreirosde Mina quem poderia esperarque o cortejo do Impe~~dor eda Imperatriz fosse recebidocom defumador (incenso e outras coisas) e com amansi(água com plantas maceradas) ,jogada na soleira da porta?C~mo é do conhecimento geral afesta do Espírito Santo é umafesta do catolicismo popular~ de origem portuguesa. Em sãoLuís do Paraitinga(SP), ondeé realizada com grande explendor, é amplamente apoiada eoontrolada pela Igreja. ~á emsão Luís do Maranhão, não ob,!tante sua origem portuguesa'esua vinculação ao catolicismo,

ela é também ligada à religião afro-brasileira e quandose rende homenagem ao Espir!to Santo, e à nobreza port,!:!guesa,representada pelo'Imp~rador e pela Imperatriz (pe~sonagens de importância fund~mental, às vezes substituídospor reis ou príncipes),rende-se também homenagem a Ifá,Ox~lá, Nochê Sepazim (princesaafricana divinizada), ou a umnobre europeu sincretiz~com~ntidade espiritual africanacornoD. Luis, Rei de 'França(Xangô),entidades espirituaisde religião africana ou afro-brasileira.

Esse caso da Festa .do Espírito Santo, em são Luís doMaranhão, ilustra bem o queacabamos de dizer a respeitode folclore e sociedade. AFesta do Divino, apesar deser católica e de origem po~tuguesa, na capital maranhense passou ,a ser realizadaprincipalmente pelos terreiros de Mina (religião afro-brasileira). E, ao ser assumida pelos terreiros passou aapresentar elementos novos(d~fumador, amansi, homenagem aentidades espirituais da religião afro-brasileira) e a teroutros motivos para a sua

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realizaçào (obrigaçâoentidades espirituaisdas na Mina e também

para comrecebihomena

geadas com a festa: Oxalã, Sepazim, D. Luis). E, ao ser assumi da pelo povo de Hina e int.eq r ada à religião afro-brasileira, a festa sofreu vâriasalteraç6es (para alguns atéinaceitáveis) e outros motivos para ser realizada.

li se da festa do Es

ranhão atesta que ela, longede ser mera sobrevivência. dopa ssado , é uma forma deexp re ssão da devoção do povo maranhense ao Espírito Santo e umaforma de integração do catolicismo ao Tambor de Mina, religião de origem africana praticada com intensidade e formasvariadas pela maior par~e dapopulação de sã::, Luís (nâü ap.§.nas negra e proletâria) .

Gostaríamos ainda de discutir a relação Folclore e Sociedade levantando um probl.§.ma de ordem geral, apresentadoprincipalmente por cientistassociais e militantes marxistas: o do destino do folclorecom a politização e ascensaodo proletariado e com o maior,acesso das camadas populares

a CGL bÁ~:,J e ru.í it.a. Os que cü~

sideram o folclore um frutoda pobreza e da ~gnorãnciafgeralmente ac redí.t.z.mque eledeve desaparecur com a reducão das desigualdad.e.ssociaise com a r'evo'luç âo ::;OC1 alista,e que não deve merecer grande atenção das vanguardas p~liticas. Mas, entre os militantes illarxistashã tambêmquem reconheça o va Lo.rdo fol

c Lore enquanto pe t.ri.môní.oeultura1 do povo, construido apartir do imaginãrio social,e quem veja 11e1e uma forma 1egítima de expressão do gostodas camadas populares e dereforço da identidade nacional. E estes geralmente admitem que o folclore deve ocupar um lugar especial na nova sociedade(embora advoguema necessidade '1,:? .,<.Lt:eraçãodemuitos dos seus contefidos a

fim de adequá-los ã novaideologia) ,

A necessidade de transformaçâo do conteJdo reacionârio do folclore e Je suautilização pelas vanguardasrevolucionárias ooin fins P2_liticos ê encontrado atê mesmo em GRÃ]vlSCI., conhecido como o grande valorizador dofolclore no pensamento mar

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xista. Essa preocupaçao norteou no Brasil dos anos 60 asproduç6es dos Centros de Cultura Popular da União Nacionalde Estudantes (UNE)e de orgãospúblicos de cultura, principalmente de Recife(PE). No enta~to, hoje em Cuba(3l anos apósa revolução socialista),o folclore continua apresentandoconteúdos não valorizados naideologia dominante, como e ocaso da religião. (Estaria alio governo revolucionário subestimando o valor pedagógicodo folclore ou vendo na apr~sentação de conteúdos nao valorizado na ideologia do pa~tido comunista uma forma de reforço desta ideologia, pelaapresentação de outras post~ras como superadas pelo progre~so trazido pela revolução socialista?) .

Em visitas realizadas aCuba em janeiro de 1988 e setembro de 1989, pudemos constatar a existência ali de gr~pos folclóricos ligados a centros de religião afro-cubanosou constituídos por pesocas deterreiros, apresentando música e dança dos Orixás e de outras entidades espirituaiscultuadas, e também divulga~do a mitologia e o sistema de

crença em que se fundamentam,apesar do ensino da religiãocontinuar proibidoàs crí.ança's, ede rituaispúbllcos como pr~ciss6es e oferendas no mar àIemanj á cont í.nuarem suspensos. t: possível que mui tas m~nifestaç6es folclóricas cub~nas tenham deixado de receberapoio do governo revolucion~rio por nao serem consideradas expressão de "valores a~tênticos." Hoje no entanto,quem visita Cuba tem talvezmaior chance de conhecer ede valorizar as t.rad.í çôe s cu!turais populares daquele paísdo que quem esteve ali antesda revolução socialista.

o caso de Cuba permite quea constatação de que o acesso das camadas populares àcultura erudita nao determina necessariamente o abandono e à desvalorização do foIclore e que o folclore é importante na reconstrução dasociedade, urna vez que contribui para a afirmação da

identidade nacional. Permite

também que se conclua que o

folclore pode tornar-se mais

connhecido e valorizado,qua~

do apoiado pelo governo.

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The dynamic af folklore in brasiliansociety analyses the issue oftradicionalism and the changes infolklore and also the role p1ayed byafrican-brasilian religion centresin the state of Maranhão aiming atpreserving cultural traditions fromvarious origins.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

FERRETTI, S. et alo Dança dolelêo Rio de Janeiro: FUNAR

TE, 1978. 40 p. (Cardernos de

Folclore, 22).

GRAMSCI,A. Literatura e vidanacionaL Rio de ,Janeiro: Ci

vilizações Brasileiras, 1968.

ORTIZ, R. Cultura:organizacão

e ideologia. cadernos de 0p.!nião, são Paulo, n.12, p.65-69, jul. 1979.

ENDEREço DO ADTOR.

Universidade Federal do MaranhãoCentro de Estudos BásicosDepartamento de PsicologiaCampus Universitário do BacangaCEP 65.000 - são Luís -MA.

24 Cad. Pe sq ,., são LuI s , v. "/, n , 2, p. 18 - 24, jul./dez. 1991.