flusser codificado

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Flusser codificado FLUSSER, V. 2007. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Sªo Paulo, Cosac & Naify, 224 p. Fabrcio Silveira 1 Nos últimos anos, o nome de Vilém Flusser tem sido cada vez mais freqüente no campo da pesquisa em Comunicação. Tanto os trabalhos dedicados à fotografia quanto aqueles voltados à dimensão existencial da vida humana numa sociedade aparelhada ou à elaboração de uma filosofia da técnica mais abrangente (sobretudo no que diz respeito às repercussões dos dispositivos técnicos sobre a criação artística), têm encontrado na obra deste filósofo tcheco-brasileiro estímulos consideráveis e perspectivas muito desafiadoras. Em meio a esta oportuna e feliz recuperação bibliográfica, dando-lhe ainda maior pujança, é que se insere agora O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, lançado há poucos meses pela editora Cosac & Naify. O judeu Vilém Flusser nasceu em 12 de maio de 1920. Em 1939, fugindo do nazismo, juntamente com aquela que se tornaria sua esposa – Edith Flusser –, mudou-se para Londres e, em seguida, para o Brasil. Por volta de 1960, sem nenhuma formação universitária, de forma completamente autodidata, passou a dedicar-se à produção acadêmica e intelectual. Foi amigo do jurista e ex-reitor da USP Migueal Reale Jr., com quem fundou, em 1967, a primeira faculdade de Comunicação Social do Brasil, a Faculdade de Comunicação da FAAP/SP. Teve ainda outros amigos “notáveis”, como o filósofo Milton Vargas, que lhe concedeu a posição de assistente docente na cadeira de Filosofia da Linguagem, no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o filósofo Vicente Ferreira da Silva, que o levou para o Instituto Brasileiro de Filosofia, Alfredo Mesquita, que o convidou para ministrar aulas na Escola de Arte Dramática/ USP (onde se encarregou das disciplinas de História do Espetáculo e Teoria da Máscara). Flusser teve vínculos de amizade também com Décio de Almeida Prado, que o convidou para atuar como colaborador de um suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo, e com Leônidas Hagenberg, tradutor brasileiro de Charles Sanders Peirce. A história do diabo, também relançado há pouco mais de dois anos, é seu primeiro livro escrito. A primeira publicação, contudo, é Língua e realidade (1963), igualmente reeditado pela Ed. Annablume, em 2004, com prefácio de Norval Baitello Jr. No começo dos anos 1970, Flusser voltou para a Europa. Até 1991, quando veio a falecer, num acidente automobilístico, atuou como palestrante e passou a publicar com boa freqüência. Da produção dessa fase, ainda há pouca coisa traduzida para o português. O próprio Filosofia da caixa preta foi publicado originalmente na Alemanha, em 1983. Só depois foi reescrito e lançado no Brasil. Segundo Arlindo Machado, a edição brasileira seria mais madura. Nela, o próprio título é modificado – acrescentando-se a expressão “caixa preta” (que seria uma adequada e sugestiva síntese da proposta central do autor). Para Machado, a edição 1 Jornalista (UFSM), Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS), Doutor em Ciências da Comunicação (UNISINOS – RS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da UNISINOS, São Leopoldo – RS. E-mail: [email protected]. revista Fronteiras estudos midiÆticos IX(2): 135-138, mai/ago 2007 © 2007 by Unisinos

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Nos últimos anos, o nome de Vilém Flusser tem sido cada vez mais freqüente nocampo da pesquisa em Comunicação. Tanto os trabalhos dedicados à fotografia quanto aquelesvoltados à dimensão existencial da vida humana numa sociedade aparelhada ou à elaboraçãode uma filosofia da técnica mais abrangente (sobretudo no que diz respeito às repercussõesdos dispositivos técnicos sobre a criação artística), têm encontrado na obra deste filósofotcheco-brasileiro estímulos consideráveis e perspectivas muito desafiadoras. Em meio a estaoportuna e feliz recuperação bibliográfica, dando-lhe ainda maior pujança, é que se insereagora O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, lançado há poucosmeses pela editora Cosac & Naify.

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  • Flusser codificado

    FLUSSER, V. 2007. O mundo codificado: por uma filosofia dodesign e da comunicao. So Paulo, Cosac & Naify, 224 p.

    Fabrcio Silveira1

    Nos ltimos anos, o nome de Vilm Flusser tem sido cada vez mais freqente nocampo da pesquisa em Comunicao. Tanto os trabalhos dedicados fotografia quanto aquelesvoltados dimenso existencial da vida humana numa sociedade aparelhada ou elaboraode uma filosofia da tcnica mais abrangente (sobretudo no que diz respeito s repercussesdos dispositivos tcnicos sobre a criao artstica), tm encontrado na obra deste filsofotcheco-brasileiro estmulos considerveis e perspectivas muito desafiadoras. Em meio a estaoportuna e feliz recuperao bibliogrfica, dando-lhe ainda maior pujana, que se insereagora O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicao, lanado h poucosmeses pela editora Cosac & Naify.

    O judeu Vilm Flusser nasceu em 12 de maio de 1920. Em 1939, fugindo do nazismo,juntamente com aquela que se tornaria sua esposa Edith Flusser , mudou-se para Londrese, em seguida, para o Brasil. Por volta de 1960, sem nenhuma formao universitria, de formacompletamente autodidata, passou a dedicar-se produo acadmica e intelectual. Foi amigodo jurista e ex-reitor da USP Migueal Reale Jr., com quem fundou, em 1967, a primeirafaculdade de Comunicao Social do Brasil, a Faculdade de Comunicao da FAAP/SP. Teveainda outros amigos notveis, como o filsofo Milton Vargas, que lhe concedeu a posio deassistente docente na cadeira de Filosofia da Linguagem, no Instituto Tecnolgico daAeronutica, o filsofo Vicente Ferreira da Silva, que o levou para o Instituto Brasileiro deFilosofia, Alfredo Mesquita, que o convidou para ministrar aulas na Escola de Arte Dramtica/USP (onde se encarregou das disciplinas de Histria do Espetculo e Teoria da Mscara).Flusser teve vnculos de amizade tambm com Dcio de Almeida Prado, que o convidou paraatuar como colaborador de um suplemento literrio do jornal O Estado de So Paulo, e comLenidas Hagenberg, tradutor brasileiro de Charles Sanders Peirce.

    A histria do diabo, tambm relanado h pouco mais de dois anos, seu primeiro livroescrito. A primeira publicao, contudo, Lngua e realidade (1963), igualmente reeditadopela Ed. Annablume, em 2004, com prefcio de Norval Baitello Jr.

    No comeo dos anos 1970, Flusser voltou para a Europa. At 1991, quando veio afalecer, num acidente automobilstico, atuou como palestrante e passou a publicar com boafreqncia. Da produo dessa fase, ainda h pouca coisa traduzida para o portugus. Oprprio Filosofia da caixa preta foi publicado originalmente na Alemanha, em 1983. S depoisfoi reescrito e lanado no Brasil. Segundo Arlindo Machado, a edio brasileira seria maismadura. Nela, o prprio ttulo modificado acrescentando-se a expresso caixa preta (queseria uma adequada e sugestiva sntese da proposta central do autor). Para Machado, a edio

    1 Jornalista (UFSM), Mestre em Comunicao e Informao (UFRGS), Doutor em Cincias daComunicao (UNISINOS RS). Professor do Programa de Ps-Graduao em Cincias daComunicao da UNISINOS, So Leopoldo RS. E-mail: [email protected].

    revista Fronteiras estudos miditicosIX(2): 135-138, mai/ago 2007 2007 by Unisinos

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    brasileira deveria ter sido tomada como base para toda a longa srie de tradues que a obrarecebeu. O livro foi traduzido para cerca de 14 idiomas.

    Foi na Europa que Flusser produziu suas obras mais propriamente voltadas para oestudo da comunicao e da mdia. O mundo codificado uma reunio de textos produzidosneste perodo. O livro encontra-se dividido em trs sees: Coisas e Construes renemartigos publicados anteriormente em The shape of things: a philosophy of design (Reaktion,1999); por sua vez, os textos reunidos na seo Cdigos j haviam aparecido em Writings(organizado por Andreas Strhl, em 2002). Nada mais oportuno, ento, do que oferecer aopblico de lngua portuguesa alguns dos melhores fragmentos da comunicologia deixada porVilm Flusser.

    Trs grandes influncias marcaram-lhe a obra: o marxismo, o formalismo e Ortega yGasset. Alis, justamente a leitura de A rebelio das massas (do autor espanhol) que o colocouem contato com Nietzsche e o jogou em direo ao existencialismo (Camus, principalmente).Como formalista, vale reconhecer sua admirao por Ludwig Wittgenstein. Ainda que fosseinfluenciado ento por um certo positivismo lgico, sua reflexo o transcende, adquirindo,muitas vezes, um tom francamente absurdo.

    Registre-se tambm o carter especulativo-ficcional-fabular da atitude expositiva (e,nesse sentido, metodolgica) adotada. Parece que estamos diante de algum tipo de ficocientfica, com tons de provocao, de relato jornalstico ou de manifesto cultural. Isto talvez sed em funo da experincia do autor com textos jornalsticos, textos curtos e textos de aopoltica, em certo sentido.

    O discurso de Flusser desmodalizado, as frases so diretas e taxativas. Assemelha-se a uma fala quase proftica. Saliente-se tambm que algum ceticismo e uma vagafenomenologia so suas mais fortes influncias. Segundo Gustavo Bernardo, um dos principaisintrpretes de Flusser no Brasil, teramos trs fenomenologias: uma, transcendentalista (comoem Husserl); outra, existencialista (como em Sartre e Camus); e outra, hermenutica (comoem Gadamer). Flusser transitaria entre elas, posicionando-se, preferencialmente, no interiorda ltima.

    Este estilo experimental possui tambm carter de projeto. Filosofia da caixa preta, porexemplo, apresenta-se como ensaio para uma futura filosofia da fotografia. Assim, se ocompararmos com Benjamin (tomado aqui em funo de seu principal escrito, Passagens),encontraremos a dois autores marcados por uma espcie de incompletude ttica, dedicados criao de mundos possveis, de linhas de reflexo que visam antes criao (e fico, assimsendo) de novos ngulos e horizontes de trabalho.

    O estilo acadmico, para Flusser, combina honestidade intelectual com desonestidadeexistencial. Ningum pensa academicamente, embora muitos assim escrevam, diz ele. Oestilo acadmico seria um faz de conta, onde empenhamos o intelecto e tiramos o corpo fora.

    Filosofia da caixa preta, sem dvida alguma seu livro mais conhecido, antes um livrode anlise das mdias como um sistema ou um livro de antropologia filosfica da tcnica. Afotografia, nesse contexto, mero pretexto para a discusso.

    Para Flusser, Auschwitz (ou foi) o fim da histria. A histria, alis, a histria dasexplicaes que, com o correr do tempo, se tornam mais e mais insatisfatrias. Em sntese, ps-histria, para Flusser, implica no-linearidade e nova mitologia (ou nova magia); implica tambma progressiva substituio dos sistemas de escrita pelas imagens tcnicas. Para ele, a expressops-histria no deve ser tomada num sentido barato de ps-modernidade. Flusser acreditaque a histria da humanidade seria a histria de trs catstrofes: (1) a hominizao, a descidapara a savana, o andar ertil, que implica aquisio de conhecimento e nomadismo; (2) oassentamento, que implica cultivo da terra, a criao de animais e de agrupamentos humanos,acumulao de bens materiais; (3) ainda sem nome, mas que pode ser entendida como umanova hominizao, ou uma hominizao virtual, onde a morada atravessada pelo que chama

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    de ventos da informao, onde coisas materiais passam a ser menos importantes do queno-coisas, do que informaes, softwares e similares; ou seja: algo invade nossa morada.

    Neste contexto, comunicao e design seriam campos centrais para o entendimento denosso presente. Ambos seriam interdependentes, ambos seriam devotados codificao domundo e da experincia humana. A teoria da comunicao, diz ele, de forma to nicaquanto potica, ocupa-se com o tecido artificial do deixar-se esquecer da solido, e por causadisso uma humanity (Flusser, 2007, p. 91).

    O mundo codificado mais uma oportunidade preciosa para que o leitor brasileiro possase defrontar com produo to forte e particular. Amadurecem aqui a verve argumentativa, osinteresses e os conceitos mais marcantes, o olhar sempre surpreendente e o inusitado modusoperandi de Vilm Flusser. Mais atraente ainda a possibilidade de v-lo dedicando-se aostemas comunicacionais nos quais ainda nos debatemos. Muito bem-vinda, uma leituraobrigatria e iluminadora.

    Referncias

    BENJAMIN, W. 2006. Passagens. So Paulo, Imprensa Oficial do Estado de So Paulo/ BeloHorizonte, Ed. UFMG, 1167 p.FLUSSER, V. 2004. Lngua e realidade. So Paulo, Ed. Annablume, 228 p.FLUSSER, V. 2005. A histria do Diabo. So Paulo, Ed. Annablume, 216 p.FLUSSER, V. 2005. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro, Ed. Relume Dumar, 82 p.FLUSSER, V. 1999. The shape of things: a philosophy of design. London, Reaktion Books, 120 p.FLUSSER, V. e STRHL, A. (org.). 2002. Writings. Minnesota, Univ. Minnesota Press, 230 p.ORTEGA Y GASSET, J. 2002. A rebelio das massas. So Paulo, Martins Fontes, 300 p.

    Submetido em: 06/09/2007Aceito em: 08/09/2007

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