flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA LUCIANA FERREIRA NASCIMENTO “FLOR DO LÁCIO: O LATIM. O QUE QUER, O QUE PODE ESTA LÍNGUA?” Conceição do Coité 2012

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Page 1: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA

PORTUGUESA E LITERATURAS - LICENCIATURA

LUCIANA FERREIRA NASCIMENTO

“FLOR DO LÁCIO: O LATIM.

O QUE QUER, O QUE PODE ESTA LÍNGUA?”

Conceição do Coité

2012

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LUCIANA FERREIRA NASCIMENTO

“FLOR DO LÁCIO: O LATIM.

O QUE QUER, O QUE PODE ESTA LÍNGUA?”

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso

de Letras com Habilitação em Língua Portuguesa e

Literaturas - Licenciatura, da Universidade do Estado da

Bahia (UNEB – campus XIV) para obtenção do título de

Licenciada.

Orientador: Prof. José Luís Costa Bulcão

Conceição do Coité

2012

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[...] o espírito de romanidade, transmitido pelos nossos

antepassados, não deixará de ser mantido e propagado,

enquanto estivermos em contacto, através da língua

latina, com a fonte criadora e propulsora dessa energia

vivificante.

(Vandick L. da Nóbrega, 1962, p. 16)

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Dedico este trabalho à sociedade em geral, a qual sei que faz parte

dele pois, ao tratar de língua e cultura latina, estamos voltando o nosso

olhar para aqueles que nos antecederam e que construíram para nós as

bases para a vida social. Em especial, dedico esta pesquisa à

comunidade acadêmica, para que, se desejarem, possam dela usufruir

e aprofundar seus conhecimentos acerca do latim e sua incontestável

importância para a compreensão de nós mesmos enquanto seres

participantes de uma sociedade; e ao meu mestre e professor de Latim,

Luís Bulcão, como forma de agradecer e mostrar que sua dedicação e

amor a essa língua transmite a sensação e o desejo de amá-la com

semelhante intensidade.

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AGRADECIMENTOS

Agradecer é sempre a melhor maneira de, sem muitas palavras, lembrar de todos aqueles que,

direta ou indiretamente, contribuíram para você ser o que é.

Agradeço, sem dúvida e sempre em primeiro lugar, ao meu grande e divino amigo Deus, pela

graça de viver e poder realizar os meus sonhos; por ter escolhido para mim uma família tão

humilde e feliz;

A meus pais, pelo amor, pela paciência e apoio incondicionais, estando sempre ao meu lado e

me impulsionando a seguir em frente;

Aos meus irmãos, Cassiano e Tanísia, os quais amo e sempre me deram palavras de apoio e

carinho;

A Robson, pela parceria, cumplicidade, pelo apoio aos meus estudos e por acreditar nos meus

objetivos, dando-me atenção e amor;

À UNEB, pela oportunidade de ingressar em um mundo onde pude conhecer melhor as

pessoas, a vida em sociedade e a mim mesma. Aos funcionários, bibliotecários, professores e

alunos, pelo respeito, consideração e auxílio;

Aos meus professores, todos os que passaram pela sala de aula: pelo carinho, pelos momentos

de aprendizagem e entretenimento, pelas viagens e encontros, pelos conselhos e pela

dedicação em transmitir seus conhecimentos;

Em especial, ao meu professor de Língua, Literatura e Cultura Latinas, Luís Bulcão, por ter

aceito a minha proposta de pesquisa e me orientado, sendo transparente e mostrando-me os

erros e acertos; pelo seu amor ao latim, que é claramente perceptível e, por isso, instigou- me

a também amar essa língua; e por sua amizade, a qual sei que permanecerá fora dos muros

desta Universidade;

À turma de Letras Vernáculas 2008.1, sem distinção, incluindo aqueles que, por um motivo

ou outro, desistiram do curso. A todos os meus colegas e parceiros, por todos os momentos

que passamos juntos, bons e ruins, como uma grande família;

Às minhas amigas Ana Elma, Daiane, Grasiele, Maeli, Vigna e Cíntia, pelo coleguismo, pela

parceria e cumplicidade, pelos momentos de distração e diversão, pelo carinho e pela sincera

amizade.

A todos, muito obrigada! Amo vocês!

Page 6: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

RESUMO

Este trabalho sobre língua e cultura latinas trata de um estudo suscinto e aprofundado sobre a

importância do Latim, enfocando o legado construído e perpetuado pelo Império Romano por

seu intermédio, especialmente sob os pontos de vista linguístico e literário, os quais mostram

que a herança deixada pelos romanos foram de extrema relevância para fundamentar a

sociedade contemporânea. O objetivo desta monografia é fazer-se (re)conhecer o legado

cultural erigido por essa antiga civilização, o qual manteve-se vivo graças a um idioma que

sobreviveu ao tempo e que, eternizado nas chamadas línguas românicas, a exemplo do

português, propicia um estudo conciso de si próprio, facilitando a compreensão das regras e

valores que permeiam a sociedade atual. O estudo recorre à origem de Roma, desde o Lácio

até a formação e queda do Império. De cunho bibliográfico, os teóricos mais utilizados para a

realização deste trabalho foram: Cunha (1982), Napoleão Mendes de Almeida (1992), Zélia

Cardoso (1999) e (2003), Maurer Jr (1962), apud Rossi (2001) e Oswaldo Furlan (2006).

Palavras-chave: Legado romano. Língua. Literatura.

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ABSTRACT

This work about Latin language and culture is a succinct and thorough study about the

importance of Latin, focusing on the legacy built and perpetuated by the Roman Empire

through them, especially in the views of language and literature, which show that the

inheritance the Romans were extremely important to support the contemporary society. The

purpose of this monograph is to be (re) learn the cultural legacy built by this ancient

civilization, which remained alive thanks to a language that survived the time and that,

immortalized in so-called Romance languages, like Portuguese, provides a brief study of

itself, facilitating the understanding of the rules and values that permeate today's society. The

study refers to the origin of Rome, from Lazio to the formation and fall of the Empire. Of

bibliographical, theorists commonly used for this study were: Cunha (1982), Napoleon

Mendes de Almeida (1992), Zelia Cardoso (1999) and (2003), Maurer Jr (1962), cited in

Rossi (2001) and Oswaldo Furlan (2006).

Key words: Roman Heritage. Language. Literature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 09

CAPÍTULO 1 O LATIM E O SEU LEGADO CULTURAL ....................

11

1.1 Do Lácio a Roma ................................................................... 12

1.2 A língua na formação de um povo ....................................... 16

1.3 A herança deixada para a humanidade .............................. 18

CAPÍTULO 2 A LÍNGUA LATINA ............................................................

23

2.1 Os aspectos vulgar e clássico da língua ............................... 24

2.2 As línguas românicas ............................................................ 27

2.3 Uma fonte de conhecimento do Português .......................... 29

CAPÍTULO 3 A LITERATURA LATINA .................................................

33

3.1 Um breve histórico ................................................................ 34

3.2 A poesia latina ....................................................................... 36

3.3 A prosa literária .................................................................... 41

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 45

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REFERÊNCIAS

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9

INTRODUÇÃO

Entre os mais distintos e sofisticados meios de comunicação, a língua é, sem dúvida

nenhuma, o mais importante e valioso sistema comunicativo de uma civilização. Desde que o

homem sabiamente criou a escrita e as diversas formas de comunicar-se, a língua tornou-se a

mais relevante delas por carregar consigo não somente aspectos semânticos e pragmáticos,

mas também a história (e a memória) de um povo. Assim, como qualquer outra língua, com o

latim não foi diferente. Estabelecido como língua oficial do Império Romano, passou a ser

vigente inclusive nas áreas conquistadas e, propagado pelos diversos territórios, era usado

cada vez mais como língua de comunicação entre os romanos e os povos das províncias,

tornando-se uma língua universalizante, que unia as civilizações. Surgiram, então, variedades

no latim falado, ou seja, dialetos que, em parte, diferenciavam-no do latim literário, o erudito.

O uso daquele latim foi então disseminado por todo o império e também por outros povos, o

que permitiu o surgimento das línguas românicas, como é o caso do português.

Entretanto, o objetivo deste trabalho não se reduz ao estudo do latim enquanto língua

clássica e/ou vulgar, mas ao legado linguístico, literário e, sobretudo, cultural que foi deixado

pelo povo romano para o mundo ocidental. Cabe aqui um estudo linear e suscinto de como o

latim deixou de ser a língua de um povo para fazer parte da vida de toda uma civilização, seja

nos aspectos linguísticos ou culturais. Para tanto, compõe-se de pesquisas bibliográficas e

suportes teóricos de autores tradicionais e contemporâneos que se debruçam sobre a história

do latim.

Estudar a herança latina significa, pois, resgatar a história que antecedeu a nossa e

valorizar os resquícios desta antiga civilização, que proporcionou ao mundo atual técnicas e

conhecimentos para se viver em sociedade. Sendo assim, cada capítulo deste trabalho

abordará aspectos que demonstram e comprovam a concretude deste legado que deve ser cada

vez mais reconhecido e valorizado. Portanto, far-se-á conseguinte uma sintética exposição do

que dispõe cada seção e os estudos feitos acerca da importância do latim.

O primeiro capítulo destina-se a uma análise, do ponto de vista histórico, de como a

língua latina propiciou uma herança cultural para as civilizações posteriores, bem como sua

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relevância. Para tanto, é relatada a história e a origem do povo latino, a evolução do latim ao

longo da consolidação do império e seu uso pelo povo romano e pelos conquistados,

demonstrando sua forte presença na formação do caráter daquela nação. Ressalta-se que neste

capítulo são tratados muitos aspectos desse legado, mas para o estudo aqui realizado o que

interessa são as heranças linguística e literária. O capítulo 2 refere-se ao legado linguístico e a

tudo que estiver ligado a este aspecto, como a etimologia, a lexicologia, a morfologia etc.

Neste item, é mostrado inclusive como o estudo desta língua proporciona um aporte seguro

para a aprendizagem do português (o que não significa, porém, que se deva tomá-lo somente

como base para isso).

Considerando-se o latim como arte de ler e escrever bem, o terceiro e último capítulo

trata da literatura latina, abordando suscintamente a história da criação da poesia e prosa

latinas (fases, épocas e obras mais relevantes). Trata também dos literatos que contavam,

cantavam e encantavam com suas belas criações literárias. Pretende-se, pois, com este

capítulo, mostrar que a vida em Roma também era contada principalmente pela arte da escrita,

através das obras literárias, e como estas serviram, e ainda servem, de inspiração para

escritores de épocas distintas.

Para os antigos romanos, legatus,i era um embaixador, um emissário, um comissário

encarregado de regular os negócios de um povo vencido assistido por mais nove romanos. Já

para o mundo contemporâneo, como um bem que alguém deixa a outrem por meio de

testamento, um legado é uma riqueza; quando cultural, uma fortuna de valor inestimável.

Assim, estudar o surgimento dos povos latinos sob os pontos de vista linguístico e literário é

um retorno à origem daqueles que contribuíram para a gênese de nossa sociedade. Portanto,

pode-se dizer que o latim é um dos mais importantes legados culturais deixado pelo Império

Romano, que ainda se faz presente na sociedade contemporânea.

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11

CAPÍTULO 1: A LÍNGUA LATINA E O SEU LEGADO CULTURAL

A língua latina foi, por muito tempo, o mais influente e importante sistema linguístico

das antigas civilizações, não só por ser parte significativa da consolidação do grande Império

Romano, mas porque através dela o seu mundo se fez conhecido. É possível ratificar essa

afirmativa uma vez que, historicamente, a luta pela extensão territorial de Roma, e mais tarde

as conquistas desta civilização, permitiu a unificação entre vários povos, tanto pela língua,

fonte de comunicação entre todos, como por meio da integração de culturas e costumes. Cada

povo dava um pouco e recebia do outro, numa espécie de “troca” que tornou possível a

globalização – prodígio romano, outrora chamada romanização – entre as etnias e, assim,

mudou a história da sociedade ocidental como um todo.

Aprender latim significa, portanto, resgatar uma língua que fundamentou a nossa

civilização e transmitiu através de si a história de seu povo: costumes, pensamentos,

tecnologias, concepções de vida em sociedade, lazer, consumo diário, ofícios e ocupações,

estruturas familiares, política, conquistas, enfim, tudo o que diz respeito ao modo de viver de

um povo e que só foi possível o conhecimento porque essa língua sobreviveu ao tempo e à

queda do Império Romano que, mesmo deposto como supremo e poderoso, não deixou sua

história “jogada ao vento”, transmitindo-a a todos por meio do idioma. Isso é legado, é

herança passada de geração em geração.

A própria definição de legado vem inclusive do latim legatus,i que etmologicamente

vem de legare (delegar, transmitir a alguém, enviar com uma missão), de acordo com Cunha

(1982), e denomina um “valor previamente determinado que alguém deixa por testamento”.

Na definição atual, legado é sim um valor deixado, mas um bem cultural, social e existencial.

Assim, dizer que o latim é um legado romano significa afirmar que essa língua tem não

somente uma função sistemática de comunicação, mas sobretudo de conhecimento,

transmissão de valores culturais e sociais.

O estudo sociolinguístico é um trabalho interdisciplinar que possibilita o

conhecimento da estrutura social de um povo por intermédio da análise de sua língua. É uma

das grandes ferramentas do saber que a ciência moderna possui, dando uma grande

oportunidade não só de resgatar e exclarecer fatos históricos, como também de descobrir e

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12

contá-los sobre outra ótica. Logo, como compreender o mundo contemporâneo, em toda sua

complexidade, sem conceber nossas raízes latinas? Como entender o mundo medieval e a

história do cristianismo sem uma incursão pelo latim? Para a História, Filosofia, Direito,

Filologia etc, os grandes tratados da antiguidade foram escritos em latim, sem os quais é

impossível um trabalho de pesquisa mais sério.

Outrossim, encontra-se a presença da língua latina na atualidade em outros campos

científicos, mesmo em áreas que não foram trabalhadas ou mesmo conhecidas pelos antigos

romanos, como o caso de determinados ramos da Biologia. Toda nomenclatura da Zoologia e

da Botânica está em latim; na classificação periódica dos elementos da Química, esses são

abreviados levando em consideração a terminologia em latim; na Medicina, utiliza-se desta

língua clássica para, em anatomia, nomear ossos, sistemas, órgãos, músculos etc. Áreas

humanas e exatas “beberam e bebem” desta fonte.

Entretanto, para se compreender melhor o estudo aqui realizado sobre o latim e seu

legado, dando destaque ao linguístico e literário, acredita-se que é pertinente algumas

considerações prévias acerca dessa língua, tais como sua origem, ascensão e declínio, pois o

que se quer neste trabalho é fazer-se (re)conhecer a grande contribuição dada por ela ao

mundo atual. As fontes bibliográficas para este estudo foram principalmente proporcionadas

pelo módulo do professor Luís Bulcão, mas também de autores que tratam da língua e cultura

latinas. Com tais referências, pretende-se, pois, mostrar que em nossa sociedade e na maioria

das civilizações contemporâneas ocidentais, de uma forma ou de outra, a presença do latim é

visível, não aos olhos, mas ao olhar crítico de quem conhece (ou se permite conhecer) a

herança deixada por essa língua.

1.1 Do Lácio a Roma

Localizada às margens do rio Tibre, em região que facilitava a comunicação entre a

Etrúria e a Magna Grécia, principais áreas da Península Itálica, entre os séculos VIII e VI a.

C., o Lácio tem relevantes motivos para ser preservado pela história. Território de solo rico,

onde os latinos – pastores e agricultores – levavam uma vida simples, situava-se na parte

central da Itália, entre o mar Tyrreno (hoje Mediterrâneo), à margem esquerda do Tibre, os

Apenninos e os montes Albanos. Esta região é o berço de três importantes marcos da

humanidade: o latim, o Império Romano e indiretamente, o Cristianismo.

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13

Como ponto estratégico por sua localização e por seu solo rico, os latinos sofriam

invasões e saques diversos. Em uma tentativa inicial de mera proteção, acabam se tornando

grandes guerreiros que erguem a cidade de Roma. A fundação de Roma é cercada de

mistérios e belezas, pois tanto pode ser contada pela Mitologia, com os irmãos gêmeos

Rômulo e Remo, como pela Literatura – através da chegada de Eneias, descendente troiano

que vai para o Lácio – ou mesmo pela História, com a unificação das tribos que viviam na

península tendo como líderes os etruscos.

Há 2500 anos o latim era apenas uma das línguas faladas na região central da

Península Itálica. Língua usada pelos latinos, convivia na situação limítrofe com outros

idiomas locais: osco, volsco, samnita, umbro, etrusco, falisco etc. As inscrições em latim mais

antigas que se conhecem datam do século VI a.C. e foram feitas em várias versões do alfabeto

grego, o qual havia sido levado para a Itália por colonos gregos. Este alfabeto, com

adaptações ao romano, é o que se utiliza hoje. A princípio, nota-se a influência da língua

latina para a disseminação da cultura romana, a qual só foi possível graças ao triunfo de um

idioma que por séculos foi sinônimo de supremacia, poder e erudição.

Fundada, inicialmente Roma se torna uma Monarquia, a qual teve o comando da

dinastia etrusca: Tarquínio, o Antigo, Sérvio Túlio e Tarquínio, o Soberbo. Fim do regime, a

cidade dos irmãos amamentados por uma loba passa a uma República. Neste novo regime

político, os romanos conquistam os povos vizinhos, fazendo com que Roma adquirisse

hegemonia sobre os habitantes da península e o latim, em 272 a. C, se tornasse língua oficial.

O maior nome republicano é Júlio César. Após ser assassinado, Roma se torna um Império, e

o nome César, sinônimo de imperador. Enquanto Império, os romanos conhecem vários

imperadores, mas dois nomes se destacam pela importância com a cultura: Augusto e

Adriano. É nesta fase que Roma conquista o mundo, ampliando seus horizontes e levando sua

cultura para os quatro cantos conhecidos da Terra. O latim torna-se, então, o grande

mensageiro romano.

Roma, durante algum tempo, após a morte de Júlio César, foi marcada por guerras

civis, pelo sentimento de impotência do povo em reverter a situação e trazer de volta os anos

de glória do império. Sobre o comando de Augusto, os literatos da época responsabilizaram-

se, então, por esta missão. Como o poeta Virgílio, sensível às reações populares diante dos

acontecimentos, tentavam, através de suas obras, trazer à memória recordações de um tempo

próspero, onde o campo era um ambiente de paz e o trabalho gerava o progresso. A história de

Roma, desde a sua fundação, era recontada em poemas para que fosse percebida a grandeza

da nação e a indiscutível contribuição de seu povo para tal.

Page 15: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

14

Ao longo do tempo, o Império Romano estendeu-se por grande parte da Europa, norte

da África e Oriente Médio. O latim era usado em todo império como língua oficial da lei, da

administração e, cada vez mais, como a língua do dia-a-dia. A literatura era comum entre os

cidadãos romanos e as obras de grandes autores latinos eram lidas por muitos. Neste meio

tempo, no leste do Mediterrâneo, o grego continuava sendo língua franca e os romanos cultos

falavam tanto o latim quanto o grego. Os exemplos mais antigos de literatura latina são as

traduções das peças gregas e o manual de agricultura de Cato, os quais datam de 150 a.C. A

linguagem usada na literatura latina ancestral, o latim clássico, era algo diferente do latim

falado, conhecido como latim vulgar.

O declínio do latim como língua oficial e dominante corresponde ao enfraquecimento

do Império Romano, o que, mais uma vez, ratifica a indissociável relação entre linguagem e

história. A unidade linguística ia sendo desfeita, assim como a unidade social definhava

devido ao momento pelo qual Roma passava. Todavia as marcas romanas já estavam tão

impregnadas na humanidade que, mesmo perdendo o poder político e lingüístico, Roma irá

legar a base de culturas vindouras. O Cristianismo, assim, passa a ser o grande responsável

por tal feito.

O quadro a seguir mostra, sinteticamente, a origem, ascensão e o declínio do Império

Romano e, consequentemente, da língua latina1:

Período Roma Língua

753 a.C Fundação de Roma pelos

gêmeos Rômulo e Remo

(segundo a lenda).

Vestígios arqueológicos de um

vilarejo (Lácio) habitado por pastores

e lavradores latinos.

509 a.C Até então uma monarquia, os

latinos de Roma a tornam uma

república.

Surgem as primeiras inscrições em

latim.

272 a.C Roma dominava a Itália. O latim torna-se língua oficial da

Península Itálica.

58-44 a.C

Júlio César é declarado ditador

perpétuo pelo Senado, mas é

morto.

Desenvolvimento do latim arcaico sob

o influxo da literatura grega.

1 Quadro elaborado a partir das informações contidas no módulo de Língua, Literatura e Cultura Latinas

organizado pelo Professor Luís Bulcão.

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15

27 a.C e 14 d.C Após uma guerra civil,

Otaviano (Augusto) vira

imperador e consolida os

domínios no Mediterrâneo.

Produção literária de Virgilio, Horácio

e outros escritores.

O latim é usado em todo o Império

como língua oficial da lei, da

administração e cada vez mais como

língua do dia-a-dia.

116 Com Trajano, o império

alcança sua extensão máxima.

O auge dura até as invasões

dos povos bárbaros.

Os romanos cultos falam tanto o

latim quanto o grego.

313 Constantino confere liberdade

religiosa ao império e lança as

bases para transformar o

cristianismo em religião

oficial.

Enfraquece o prestígio da língua

literária e a separação entre o latim

clássico e vulgar diminue.

395 Antes de morrer, o imperador

Teodósio divide os domínios

de Roma em Império do

Ocidente e Império do Oriente.

Ao longo do tempo o latim se

dialectaliza e os romanismos

desenvolvem-se cada vez mais.

476

Rômulo Augusto, último

imperador do Ocidente, é

deposto em 476 e, em 1453, o

Império do Oriente cai.

Com a queda do Império, a oposição

entre unidade e diversidade, entre

latim culto e popular foi eliminada

definitivamente em benefício deste

último.

639

Isolamento das diversas partes

do Império e colapso cultural.

A língua escrita tornou-se quase

impossível pelo alto preço dos

pergaminhos e pela falta total de

papiro; condenação da literatura.

813 Renascimento carolíngio

(renascimento da literatura e

das artes que teria ocorrido

principalmente no reinado de

Carlos Magno).

Morte do latim culto e nascimento dos

romanços, rompendo a unidade do

latim e favorecendo sua diversificação.

Page 17: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

16

Pode-se observar pelo quadro-síntese que, mesmo após o colapso do Império Romano

ocidental, em 476 d.C, o latim continuou a ser usado como linguagem literária por toda a

Europa central e ocidental. Durante o século XV, começou a perder sua posição dominante na

Europa como língua de pesquisadores e religiosos e foi amplamente substituída por versões

escritas das línguas vernáculas europeias, muitas das quais eram descendentes ou haviam sido

fortemente influenciadas pelo latim.

As fases pelas quais passou a língua latina, assim como a história de Roma e de seu

povo, mostram o quanto essa nação lutou pela estabilidade política, social e cultural, na busca

da perfeição que Augusto almejava em seu governo. A divisão do Império, as lutas sociais, o

descontentamento, as guerras, a instabilidade linguística e, principalmente, o fim do glorioso

momento histórico romano facilitaram as invasões dos chamados bárbaros. Junto com suas

terras, com seu povo agora conquistado, a língua também perde sua autonomia. Levada para

vários povos e distintos lugares resulta, tempos depois, na criação de outras línguas.

1.2 A língua na formação de um povo

Uma nação se estabelece a partir de seu povo e de sua língua. Quando uma língua

deixa de existir, pode-se dizer que, junto com esta, “morre” um povo. Da mesma forma é

possível afiançar que um povo que cultiva suas letras faz parte de uma nação rica. É o que os

romanos, inicialmente, perceberam ao contatar com os etruscos e, posteriormente, ratificaram,

quando do convivio com a civilização helênica. Se para muitos Roma foi mestra, dos gregos

foi aprendiz. E isto pode ser verificado em sua trajetória.

Desde que Roma foi fundada, seus governadores sempre buscaram a comunicação

entre os povos do Lácio e as províncias conquistadas. Através de estradas e vias públicas, eles

pretendiam extender tanto o território romano como a cultura de sua nação, pois teriam a

garantia de um império sólido e unificado. Por tal motivo, o latim foi imprescindível.

Os cidadãos romanos tinham direitos e deveres bem estabelecidos e, durante a

República, por exemplo, as leis eram bem rígidas e deviam ser seguidas à risca. A

organização da sociedade romana era feita por meio dessas leis que se tornaram fundamentais

para uma vida sociável. Quando os imperadores impuseram seu poder, a cidadania passou a

ser um dos principais requisitos para um romano. Assim, Roma era dividida entre plebeus (o

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17

povo) e patrícios (os cidadãos). Aqueles poderiam conseguir o status de cidadão se fossem

grandes proprietários de terras, e os que não conseguiam teriam que suportar as obrigações de

subordinado. No entanto, o significado de cidadania foi ampliado e, atualmente, cidadão é

todo aquele que tem direitos e deveres para com a sociedade em que vive.

Em se tratando da vida em Roma, pode-se dizer que os romanos viviam de modo

semelhante ao mundo de hoje, numa cidade grande: ruas cheias de pessoas, casas

aglomeradas, mendigos, estradas e construções imponentes, tudo quanto diz respeito a uma

metrópole. Festas e eventos com comida e bebida em abundância, seguidos de muita orgia e

embriaguez, eram típicos da burguesia. Com a expansão do império, o convívio com outros

povos permitiu a transmissão do latim para estes e, consequentemente, os aspectos culturais

romanos. Isso implica que as províncias que iam sendo conquistadas tinham contato com a

vida social romana através do latim, que era usado por todos em Roma.

Com a propagação do latim e a relação com outros povos, torna-se evidente o contato

com outras línguas e, mais ainda, os fatores que condicionam uma mudança, seja em que

âmbito for. Isso ocorre porque, inevitavelmente, toda língua carrega consigo aspectos

culturais e sociais de seu falante que, em contato com outra(s), é influenciada direta ou

indiretamente. Assim ocorreu com a língua latina ao longo do Império Romano: ao conquistar

novos territórios, o latim passou a ser influenciado por outras línguas, como o grego e o

etrusco, que juntamente com a língua de Roma faziam parte do cotidiano desses povos.

Na época da consagração do imperador Augusto, a proposta da pax augusta parecia

entorpecer e alegrar os ânimos de uma população desgastada por guerras civis. A volta ao

campo, o trabalho manual e a luta pelo progresso eram forças propulsoras que impulsionavam

os romanos a seguir o instinto patriota de elevar sua nação. O momento magno quase que

exigia isso do povo, entretanto a sensação de estabilidade não duraria eternamente.

O latim começa a perder sua posição de língua oficial e dominante, quando a cultura

desses outros povos passa a influenciar consideravelmente a de Roma. Entretanto, no período

de gestão do imperador Constantino, a religião que viria mais tarde a se espalhar pelo mundo

– o Cristianismo – passou a utilizar a língua latina como principal difusora de seus ideais. O

latim propagou-se de tal maneira pelos territórios romanos que ocorreu a sua dialetação,

tornando o latim clássico, usado mais frequentemente pela burguesia e pelos literatos, muito

diferente do latim falado pelo povo, o chamado vulgar.

Deve-se ressaltar, contudo, que ao estudar o latim vulgar e suas variações linguísticas

é indispensável destacar a contribuição daqueles escritores que utilizaram em suas obras esse

dialeto, tornando possível o estudo e a comprovação da diversidade do idioma e,

Page 19: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

18

especialmente, de sua importância enquanto língua do povo e pedra basilar para a formação

de outras línguas. Produto de uma contribuição variada, o sermo vulgaris possibilitou que

línguas como o português viessem a surgir, tornando-se patrimônio de uma nação. Torna-se

indiscutível afirmar que toda e qualquer língua é um valioso bem a ser preservado pelo seu

povo. O latim, surgido na região do Lácio, formou seu povo, os latinos, que por sua vez,

constituiu o Império Romano que, mais tarde, proporcionou ao mundo, através de sua língua,

o surgimento de outras que fariam dela uma língua eterna, vivida e revivida no cotidiano dos

“neoromanos” da contemporaneidade.

1.3 A herança deixada para a humanidade

Pode-se afirmar que o latim teve e tem importante influência na sociedade atual e,

como visto, não somente no aspecto linguístico. Além das diversas línguas românicas geradas

que são importantes campos de estudo, há várias outras áreas científicas e artísticas em que

ele se faz presente, seja em parte ou no todo, e que, mesmo parecendo díspares, conferem a

esta língua a sua contribuição, tais como: Biologia, Medicina, Direito, Filosofia, Sociologia,

História, Religião, Literatura, Escultura, Arquitetura, Música, Cinema, dentre outras.

[...] há uma rica literatura deixada pelo mundo romano, que não só nos permite o

desfrute de autênticas obras de arte como estende seu alcance por outras áreas do

conhecimento: pela historiografia, pela filosofia, pela antropologia, pela teoria

literária em todos os seus matizes, pela ciência, pelo teatro. [...] há o interesse

linguístico pelo latim. [...] Sendo uma das mais antigas línguas indo-europeias [...]

fornece-nos explicações para fenômenos aparentemente inexplicáveis de nosso

idioma e das línguas irmãs do português. (CARDOSO, 1999, p. 10)

Para a ciência, o sistema de nomenclatura binominal, que foi criado por Carolus

Linnaeus em 1755, utiliza o latim nas nomenclaturas científicas em geral, em nomes de

plantas e animais. Os biólogos usam a terminologia latina, assim como os paleontólogos e

outros cientistas, a fim de nomear gêneros e espécies. Na medicina, Nero foi o precursor do

parto em “cesariana”, pois este imperador, um dos doze Césares, nasceu em circunstâncias

especiais. Assim, o Latim exerceu enorme influência sobre diversas línguas vivas, ao servir de

fonte vocabular para a ciência, o mundo acadêmico e o Direito, em especial.

Page 20: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

19

O aspecto religioso ocidental até hoje apresenta muitas semelhanças com a religião

romana, sendo o Cristianismo o maior destaque nesse caso, já que se apresenta como religião

oficial praticamente em todo esse hemisfério planetário. O latim eclesiástico ainda é usado

pela Igreja Católica em liturgias e documentos oficiais, apesar das missas atualmente serem

celebradas em línguas vernáculas. Há, no entanto, indícios de que em algumas regiões do

Brasil, por exemplo, a igreja opte por rezar missas em latim, como eram feitas originalmente.

Pode-se observar também que geralmente palavras escritas em latim aparecem em emblemas,

símbolos e brasões de instituições como igrejas, universidades e fóruns, representando o lema

ao qual defendem.

O Direito romano, para muitos especialistas, é a mais significativa contribuição desse

povo para a sociedade moderna, pois esta rígida ciência ainda é a base da legislação brasileira

e de outras nações. Em textos jurídicos, encontram-se expressões como habeas corpus, álibi,

data vênia, animus decipiendi, animus ambulandi, animus abutendi e animus confitendi. Até

mesmo os conceitos de cidadania, expansão e civilização têm procedências na mitologia

romana.

Num pequeno núcleo urbano originou-se um grandioso império e sua trajetória de

organização política se divide entre Monarquia, República e Império, fato acontecido também

na estruturação política brasileira. As instituições políticas romanas inspiraram filósofos

iluministas ao criarem também os senados (em latim: Senatus é a mais remota assembleia

política da Roma antiga, com origem nos Conselhos de Anciãos da Antiguidade oriental

surgidos após o ano 4000 a.C. Daí a origem de seu nome, senex, "velho", "idoso").

Dois outros motivos pelos quais Roma deve ser constantemente lembrada são a

Literatura e a Filosofia. Vários estilos literários praticados atualmente são de origem romana,

como é o caso da sátira. É uma literatura que supera em quantidade e qualidade qualquer outra

literatura nacional durante o mesmo período, pois basta lembrar as grandes obras da Teologia

como o hinário e as coletâneas de lendas cristãs. Também, no lado profano, nomes como os

de Dante, Petrarca, Boccaccio, Erasmo, Bacon, Descartes e Newton produziram obras e

tratados valiosíssimos em latim. Até mesmo o termo literatura vem do latim "litterae" que

significa "letras", possivelmente uma tradução do grego "grammatikee". Em latim, literatura

significa uma instrução ou um conjunto de saberes ou habilidades de escrever e ler bem, e se

relaciona com as artes da gramática, da retórica e da poética.

Os escritores romanos deixaram para as futuras gerações uma visão detalhada da

vida cotidiana e de sua diversão, de suas angústias, de seus prazeres e de suas dores.

Praticamente podemos sentir o gosto das refeições das pessoas comuns: o pão

Page 21: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

20

integral, o queijo fresco prensado à mão, os figos verdes de segunda safra e, é claro,

o pequeno peixe de grande popularidade, o arenque. Podemos caminhar pelas

fazendas romanas graças à poesia de Virgílio e ouvir conselhos de como trabalhar a

terra. Considerava-se que o sétimo dia da Lua trazia sorte para laçar e domar o gado

selvagem e, no verão, o feno de um prado seco deveria ser cortado depois do

anoitecer para melhores resultados, uma das regras da produção de feno que era

seguida com frequência na Itália e que persiste na lembrança de muitos. (BLAINEY,

2008, apud COSTA, 2009)

A Filosofia apresenta-se como base da moral romana, da qual se destaca Horácio como

um poeta cuja obra está marcada pelos valores do estoicismo (corrente filosófica que

fundamentava-se num universal materialismo e dispensava qualquer transcendência) e do

epicurismo, o qual foi uma das respostas dadas pelas escolas filosóficas ao momento histórico

em que vivia a Grécia da época helenística. Ambas são, entretanto, correntes da filosofia que

retornam à metafísica naturalista dos pré-socráticos e foram de extrema relevância para a

concepção de valores dos romanos para a vida em sociedade.

Os romanos foram introdutores de novos componentes arquitetônicos, dos quais se

destacam os arcos, as cúpulas e as abóbadas, além dos aspectos monumentais de suas

construções, a exemplo de estradas e pontes, imprescindíveis para facilitar a comunicação e o

comércio entre as cidades, assim como para garantir a união do Império através da melhor

locomoção do exército e de pessoas. Sem falar nos arcos de triunfo, anfiteatros, templos,

circos, basílicas e casas de banhos (termas). Muitos desses monumentos sobrevivem até os

dias atuais, como é o caso das ruínas do Coliseu.

Na escultura, sempre houve a preocupação de reproduzir de forma realista as

características da fisionomia dos modelos, mormente cabeças ou bustos, principalmente das

grandes personagens públicas, dando grande valor ainda à técnica dos afrescos e mosaicos.

Isso mostra a inovação dos romanos em relação aos gregos, uma vez que estes, ao

representarem um imperador ou filósofo importante, os endeusavam e davam-lhes uma forma

escultural divinizada. Quanto ao esporte, as lutas de gladiadores nas arenas (termo que

significa areia), o lançamento de dardos, as corridas, o levantamento de pesos e a natação,

praticados pelos romanos, exerceram muita influência nas modalidades esportivas atuais,

tendo até mesmo a estrutura dos estádios de futebol inserida neste legado (uma analogia ao

Coliseu, que estruturalmente pode ter dado origem a esses espaços esportivos).

A publicidade faz parte de uma importante atividade econômica que move o setor de

consumo, tendo como principal interesse a difusão maciça de apelos que instigam a compra

de produtos e serviços. O termo publicidade, de acordo com Cunha (1982), vem do

substantivo latino publicus e do verbo publicare, sendo originalmente vocacionado para a

Page 22: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

21

livre circulação das idéias. Ao redor do mundo, ela interfere decisivamente nas decisões

tomadas pelos consumidores por meio do intensivo investimento na propagação de marcas.

Pertencentes a esse paradigma, marcas como ADIDAS e OLYMPIKUS, ambas produtoras de

materiais esportivos, possuem, na investigação da sua raiz etimológica, origem no latim:

ADIDAS - do verbo latino addo, -is, -ere, -didi, -ditum = 1) colocar junto de, pôr juntamente,

aplicar, adaptar; 2) ajuntar, acrescentar, aumentar, redobrar a velocidade; 3) tornar-se mais

corajoso, dar coragem. No português adido (adj. sm.); e OLYMPIKUS - do adjetivo latino

olympicus, -a, -um = Olímpico, do substantivo latino Olympus, i = Olimpo, montanha entre a

Tessália e a Macedônia, morada dos deuses.

Percebe-se, lexicalmente, (Cunha, 1982) que até mesmo nas relações mais intrínsecas

do homem, esta cultura está presente: o termo “família”, derivado do latim “famulus”, que

significa “escravo doméstico”, foi criado na Roma Antiga para designar um novo grupo social

que surgiu entre as tribos latinas, ao serem introduzidas a agricultura e a escravidão

legalizadas. Até mesmo “amor” é latino: o verbo amare é a base para a palavra amor; diligere

tem a noção de "ser afetuoso de", "a estima", e seria adequado para descrever a amizade de

dois homens; caritas é usado em traduções da Bíblia para significar "amor caritativo".

Socialmente, a noiva como figura central na cerimônia de casamento, bem vestida e

arrumada com flores de laranjeiras no véu, é mais um artifício romano. Como este, outros

hábitos diários desse povo prevalecem no cotidiano, a saber: tomar vinho por razões etílicas

ou de saúde; tomar banho em locais públicos; valorizar os avanços tecnológicos; lutar pelos

direitos de um cidadão etc. Diante de tanta exuberância e riqueza, porém, não se engane em

pensar que antigamente não existiam práticas como a prostituição, o homossexualismo e o

ócio; atitudes imorais como propina, orgia e luxúrias (os aristocratas viviam em versões

luxuosas da domus, a tradicional casa da nobreza romana, que possuía água corrente e

piscinas aquecidas); as diferenças sociais e a escravização.

Esta antiga língua está ainda nas tecnologias mais modernas (segundo BLAINEY,

2008 apud COSTA, 2009): na fecundação in vitro, no fax (abreviação de fac simile, que

significa "faça de maneira semelhante"), num curriculum vitae, na renda per capita, déficits,

superávits, e da pós-graduação lato ou stricto sensu ao doutor honoris causa. Mesmo muitas

palavras importadas do inglês remontam ao latim: na informática usa-se o verbo deletar, do

inglês to delete, que vem do verbo deleo, delere (latim) e significa "destruo, apago”.

Aproximadamente oitenta por cento das palavras da língua portuguesa são oriundas ou ainda

escritas em latim, como, por exemplo, as expressões idem, o supra summum, o et caetera.

Page 23: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

22

Alguns filmes, como A Paixão de Cristo, apresentam diálogos em latim; muitas

organizações e governos ainda hoje ostentam lemas em latim, como o estado brasileiro de

Minas Gerais (libertas quæ sera tamen). A tradução para o latim de obras "best-sellers",

como Harry Potter, além da presença da língua latina em jogos de videogame e em letras de

músicas de bandas conhecidas se tornam fatores de interesse por jovens para seu estudo.

Encontra-se ainda vivo o gênero épico no cinema, em que naquela época, os gladiadores

apareciam a serviço das narrativas no começo do Cristianismo. Outro legado romano é a

forma de contar os dias do ano e o próprio calendário gregoriano usado atualmente. A

denominação do mês de julho, por exemplo, é emprestado do nome Júlio César, tendo César,

por sua vez, virado sinônimo de imperador e derivado em alemão kaiser e em russo czar.

Em relação ao seu valor linguístico, não se pode deixar de falar que o latim vulgar é o

ancestral das línguas neolatinas (italiano, francês, espanhol, português, romeno, catalão, reto-

românico e outros idiomas e dialetos regionais da área); assim também como muitas palavras

adaptadas e/ou originadas do latim foram adotadas por outras línguas modernas não

neolatinas, como o inglês e o alemão. O fato de haver sido a língua franca do mundo ocidental

por mais de mil anos é prova de sua influência. Após sua transformação nas línguas

românicas, o latim continuou a fornecer um repertório de termos para muitos campos

semânticos, especialmente culturais e técnicos, para uma ampla variedade de línguas.

Das cidades aos campos, das termas aos teatros, da literatura à filosofia, da ciência à

engenharia, da história à mitologia, enfim, todo esse legado romano assegura a perpetuação de

um passado que está recriado na sociedade contemporânea, através da língua latina. Portanto,

essa grande herança deixada pela civilização romana marca um elo entre o seu passado e o

presente, tornando-se um patrimônio de valor inestimável, que deve ser preservado e estudado

ao longo dos tempos.

Page 24: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

23

CAPÍTULO 2: A LÍNGUA LATINA

A língua, de um modo geral, pode ser definida como um sistema de signos

convencionais que articula a comunicação entre pessoas de uma determinada comunidade.

Este sistema, por não compor uma realidade estática, possui um dinamismo que o leva de uma

imperceptível variação a uma notória mudança. A língua latina, portanto, foi a linguagem que

predominou, inicialmente, na região do Lácio até estender-se por toda a Roma e, tempos

depois, para diversos lugares do mundo. Isso mostra desde já a influência desse sistema

linguístico para a formação de outras línguas.

Entre vários outros falados na Península Itálica, o latim era o idioma de simples

pastores e rústicos agricultores, pessoas que viviam diretamente da terra e apenas o utilizavam

como meio de comunicação. Com a romanização, os latinos, além de entrarem em contato

com povos cujo modelo social era mais estruturado, acabaram incorporando elementos de

culturas diversas para formar o que viria a ser o Império Romano. Assim, a priori serviram-se

dos etruscos, dos quais possivelmente herdaram o alfabeto que nos foi legado. Por fim,

enriqueceram-se com os gregos, de quem não só se inspiraram no apreço pelas artes como, e

sobretudo, no cultivo das letras.

Uma vez com uma sociedade politicamente ordenada e fazendo uso da língua para

fins inclusive estéticos, os romanos passam a conhecer a literatura como arte, e o latim passa a

ter dois padrões de fala: o vulgar e o literário. Fundamentais para a história do antigo império,

estas duas modalidades de articulação da mesma língua convivem lado a lado por muito

tempo, até que tenham desfechos diferentes: uma transformar-se-á, gerando falares, enquanto

a outra será preservada em obras de arte.

Para Maurer Jr. (1962, p. 53 apud ROSSI, 2001) na Roma antiga, as três principais

manifestações do latim eram: a língua literária, utilizada por grandes escritores como Cícero e

Horácio; a língua coloquial urbana, usada pela sociedade aristocrática; e a língua vulgar, que

era falada pelo povo. É interessante ainda constatar algumas características do latim clássico:

a primeira delas é a estabilidade linguística, pois era extremamente rígido. Isso se deve por se

tratar de uma língua empregada por uma elite dominante – os patrícios – zelosa de proteger

Page 25: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

24

seu poder político, econômico e social, uma vez que tinha costumes e educação muito

refinada.

Outra característica é a formalidade da língua, sempre tendendo para o sintético, e a

estabilidade do latim literário, uma espécie de suporte documental para o latim utilizado por

essa minoria. Vê-se aí o idioma como fator de dominação, como instrumento de poder, uma

espécie de subestimação da cultura do dominado, como se o fato de saber uma língua de

extrema rigidez gramatical, como o latim clássico, conferisse direitos quase divinos aos seus

falantes, e qualquer outra manifestação linguística diferente desta seria quase uma ofensa aos

deuses. Daí a marginalização por parte dos patrícios do latim dito vulgar. Apesar disso, alguns

escritores, como Cícero e Petrônio, usaram-no em suas obras.

Quando o latim, através da sua repercussão como língua oficial do Império Romano,

foi aos poucos sendo integrado à cultura local de outras comunidades, sofreu direta e

indiretamente modificações em sua estrutura, sobretudo no que diz respeito à fala, resultando

então na sua dialetação. Com o passar do tempo, este continuou a se distanciar do padrão

literário e acabou evoluindo para as línguas românicas. Por outro lado, muitas palavras

adaptadas e/ou originadas do latim foram adotadas por outras línguas não neolatinas, como o

inglês e o alemão.

O fato de haver sido a língua franca do mundo ocidental por mais de mil anos é prova

maior de sua influência. Esta influência pode ser muito bem detectada em diversas áreas

sociais, verificando-se os elementos linguisticos de diferentes povos. Após sua transformação

nas línguas românicas, o latim continuou a fornecer um repertório de termos a muitos campos

semânticos, especialmente para o português que, apesar de ser formado com a contribuição

linguistica de várias culturas, tem a língua dos antigos romanos como sua matriz principal.

2.1 Os aspectos vulgar e clássico da língua

O latim foi transmitido de geração em geração e para povos de lugares distantes que,

em contato com esta língua, assimilaram-na e disseminaram-na por onde passaram, levando

consigo resquícios da cultura romana. Com o passar do tempo, aqueles que com ela tiveram

contato, a seu modo, utilizaram-na em suas próprias culturas e fizeram, portanto, do latim

uma língua universal. Segundo Cardoso (1999, p. 06), “durante o longo período de tempo em

que foi utilizado como língua viva, o latim sofreu, evidentemente, profundas transformações”,

Page 26: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

25

Para atestar a afirmação, basta notar as grandes dessemelhanças entre os primeiros textos

literários produzidos no início do século I a.C. e os da era cristã, no final do século V.

Este fato faz com que, de acordo com o período e a situação social predominante,

caracterize-se historicamente o latim. Assim, denomina-se latim pré-histórico à língua falada

pelos primeiros habitantes do Lácio, aproximadamente no século XI a.C, quando não se tem

vestígios de nenhum documento escrito. Ao surgiram os primeiros documentos escritos,

aproximadamente entre os séculos VII e IV a.C., este é chamado latim proto-histórico. O

latim utilizado entre o século III e I a.C. e que manifestava-se, sobretudo, nos textos literários

é nomeado arcaico. A partir do momento em que essa língua enriquece sua estrutura

gramatical, graças à literatura e à influência da cultura helenística, surge o latim clássico, no

segundo quartel do século I a.C. quando foram criadas obras literárias que marcaram a poesia

e a prosa latinas. Por fim, considera-se o latim pós-clássico, recorrente nos primeiros séculos

da era cristã, entre I e V, o que já não carrega a pureza e o vigor gramatical que marcaram a

fase anterior, percebendo-se, logo, a dialetação do mesmo.

É possível compreender que as fases pelas quais esta língua passou acarretaram

variações e condicionamentos, o que justifica as mudanças ocorridas e a concepção de que o

latim poderia, com o tempo, se extinguir, o que felizmente, não aconteceu. Fato é que, a partir

do período arcaico, Roma passa a conviver com duas “modalidades linguisticamente

acentuadas”: o latim clássico e o latim vulgar.

Uma língua tem dois empregos distintos: o literário, quase sempre escrito, usado

pelos artistas da palavra e pela sociedade culta, difundido nas escolas e Academias –

e o popular, falado quase sempre, de que se serve o povo despreocupado e inculto.

(NETO apud CARVALHO e NASCIMENTO, 1984, p.13)

O latim falado, denominado vulgar ou sermo vulgaris, floresceu durante o Império

Romano e permaneceu quando então os povos bárbaros invadiram e conquistaram essa nação.

Os fatores que diferenciam-no do latim erudito estão além da dialetação. Sendo aquele usado

pelas classes populares e estas, portanto, em maior número, funcionava “como um

instrumento familiar de comunicação diária” (Coutinho, 1976, p. 30). A principal

consequência do processo de romanização do latim foi o descontrole da variação linguística

que ocorreu na língua. Os indícios do latim vulgar podem ser encontrados em algumas obras

literárias da época, e isso permite ratificar as fases do latim. Entretanto, como era uma

variedade da língua oral, dificultava o estudo da gramática por ser muito distinta.

Page 27: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

26

No estudo do latim vulgar, deve-se salientar a importância das obras dos

escritores da decadência romana, sobretudo daqueles que, visando a um

objetivo superior, escreviam com simplicidade, sem a preocupação da

gramática e do estilo. Neste número, estão os escritores cristãos.

(COUTINHO, 1976, p. 31)

Como afirma o autor, as construções gramaticais eram mais simples, caracterizando-se

o latim vulgar por mudanças no vocabulário quando, por exemplo, acrescentou novos

significados a uma mesma palavra ou na criação de outras; na fonética, pela supressão,

inserção ou transformação de segmentos fônicos, tais como encontros vocálicos; na

morfologia, ao reduzir o número de declinações e casos do latim clássico etc; e na sintaxe,

principalmente pelas construções analíticas (muitas destas transformações estão presentes em

gramáticas das línguas novilatinas, como o português). De acordo com Furlan (2006, p. 31),

porém, “entendê-lo no sentido depreciativo de vulgarismo, de uso linguístico condenável,

implicaria equívoco resultante de visão linguística superada”. Isso porque, segundo ele, a

variação falada do latim não significa que houve corrupção do latim clássico, tampouco que o

latim vulgar o sucedeu, uma vez que caracteriza-se como uma evolução e perpetuação da

língua.

Já o latim clássico, também chamado de sermo urbanus, é o latim em sua essência

culta e bela, uma língua sintética que prima pela objetividade. Segundo Coutinho (1976, p.

29) “caracteriza-se pelo apuro do vocabulário, pela correção gramatical e pela elegância do

estilo”. Em outras palavras, era uma forma que, em um número menor de vocábulos,

transmitia a mesma mensagem que frases complexas de línguas analíticas. A pureza e

sofisticação desta modalidade é ainda sinônimo de admiração de estudiosos da língua. Por ser

de extrema rigidez gramatical, era utilizada especialmente pelas classes mais prestigiadas e

pelos autores literários. Por tal motivo, para uns o latim é tão aclamado e por outros tão

repudiado: a gramática latina exige muita atenção e estudo, portanto, o esforço para uma

aprendizagem significativa varia conforme a motivação de cada um.

Importante notar que o latim clássico está diretamente relacionado ao latim literário,

usado nas obras. Para Furlan (2006, p.32) “o latim clássico é o da língua literária e da língua

escrita em situação formal, com preocupações estéticas ou didáticas pelos escritores do

período áureo da literatura latina”. Isso faz, segundo ele, com que a língua e a literatura latinas

diferenciem-se do grego, por exemplo, pois por ser sintética, não era produto somente do

intelecto, mas de elementos que a tornaram suprema, erudita, símbolo do poder romano. Foi

através da língua latina, especialmente do latim clássico, que Roma instituiu seu Império, por

meio das grandes obras literárias que foram escritas na época. O próprio César Augusto

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27

percebeu o valor que a língua tinha e, por isso, instigava os poetas e prosadores latinos a

comporem textos que transmitissem ao povo, principalmente, aos conquistados, as glórias do

Império Romano.

A relevância de estudar o latim clássico vai muito além das dúvidas recorrentes em

línguas como o português, o qual a maior parte do vernáculo se compõe de palavras latinas. O

confronto de línguas sintéticas com línguas analíticas, especialmente quando estas são

oriundas daquelas, permitem a comparação entre elas e influenciam no estudo concentrado da

língua em suas especificidades (aspectos morfológicos, sintáticos, semânticos etc).

O latim vulgar era usado pelas diversas classes populares (sermo quotidianus,

urbanus, plebeius, rusticus, ruralis, pedestris, castrensis etc). O latim clássico, apesar de

cultivado e preservado pela classe mais culta da sociedade romana, foi cedendo espaço para o

padrão coloquial. No período considerado pós-clássico, a língua literária começou a perder a

pureza e sua característica sintética para dar lugar a formas analíticas, dialetações oriundas da

disseminação do latim vulgar. O latim vulgar, comum a todos, é, portanto, o ancestral das

línguas neolatinas.

2.2 As línguas românicas

A queda do Império fez com que o latim perdesse o poder de língua normativa. As

sociedades que haviam sido conquistadas e o absorveram como língua, tornaram-no tão

diversificado que isso implicou, geograficamente, na consequente formação de sistemas

linguísticos distintos. Naturalmente, foi um processo lento, mas decorridos os séculos, eles

foram se concretizando.

Herança valiosa para as sociedades que as tem como línguas oficiais, ou mesmo um

segundo falar, as línguas românicas formam um grupo de idiomas evoluído do latim vulgar.

Sabendo-se que a língua, de uma forma geral, é viva e dinâmica e, por este motivo, carrega

consigo aspectos histórico-culturais de um povo, tornando-se o elemento básico para a

construção e o desenvolvimento de uma civilização, pode-se afirmar que as línguas neolatinas

são responsáveis pela formação de um novo mundo: a civilização latina.

Será que, realmente com propriedade, o Latim deve ser chamado de língua morta?

[...] E se afirmássemos que o Latim, mesmo não sendo a língua de um povo, é,

Page 29: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

28

talvez por isso a língua de uma civilização, a nossa civilização ocidental? (SILVA

ROSA, 1974).

Com o enfraquecimento da unidade linguística, no século V, o latim vulgar se

dialetou, passando a se desenvolver distintamente em localidades e contextos diversos.

Surgem, assim, falares regionais que, mesmo oriundos do latim, devido às grandes

modificações apresentadas, já não se poderia concebê-los como tal. Por outro lado, também

não poderiam ser considerados como línguas literárias, por faltar-lhes “instrumentos

linguísticos” (CARVALHO; NASCIMENTO, 1984) para as novas composições sociais e

políticas. A esses múltiplos falares intermediários (castelhano, leonês, galo-provençal,

romanço lusitânico etc) entre o latim vulgar e as línguas românicas atuais, chama-se romanços

ou romances. Logo, conclui-se que as línguas românicas têm raiz mediata no latim vulgar e

imediata nos romanços.

Passada a fase de transição que caracterizou os romanços, paulatinamente com o

surgimento de textos redigidos atesta-se, então, o nascimento das línguas românicas.

Importante lembrar que o registro literário de aparecimento de alguns desses idiomas

acompanham simultaneamente o surgimento de determinada nação. Isto para citar a

importância política de uma língua. Assim, tem-se: francês (séc. IX); espanhol ou castelhano

(séc. X); italiano (séc. X); sardo (séc. XI); provençal (séc. XII); rético ou reto-românico (séc.

XII); catalão (séc. XII, ou princípios do séc. XIII); português (séc. XIII); franco-provençal

(séc. XIII); dálmata ou dalmático (séc. XIV) e romeno (séc. XVI).

As línguas românicas encontram-se presentes nos sete continentes, atuando em seis

países como línguas oficiais. Delas, apenas o dalmático – falado até fins do século XIX na

Dalmácia, antiga região da Iugoslávia – está morto. Estes idiomas não só comprovam que o

latim vive, como também trazem consigo uma gama imensa do apogeu do Império Romano,

servindo de fonte formadora para novas sociedades.

Talvez como ascendentes têm de morrer para que a vida exploda, o Latim,

mesmo não sendo língua de um grupamento social (logo “morreu”), está cada

vez mais vivo como o repositório, a fonte de solução dos problemas

linguísticos aflorados pela angústia criadora deste inventor insaciável que é o

homem moderno. (SILVA ROSA, 1974)

Embora o latim não seja mais língua de um grupo que nasça falando-o, estudiosos

aceitam a concepção de que, pela herança linguística, literária e sócio-cultural deixada, este

encontra-se vivo, de uma forma diferente, no mundo atual. Além disso, seu conhecimento é

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29

fundamental para a compreensão das línguas românicas, e estas, por sua vez, fortalecem a

necessidade de estudá-lo. Para Bearzoti Filho (2002, p.9) “Dentre elas, muitas tiveram curso

de vida breve. Outras sobreviveram, ganharam tradição escrita e tornaram-se línguas oficiais

de Estados Modernos independentes”. Segundo o autor, as línguas de origem latina mais

influentes e disseminadas, no presente e no passado, são o português, o galego, o espanhol, o

catalão, o francês, o provençal, o italiano e o romeno. Atualmente, dos dez idiomas mais

falados no mundo três são românicos (o espanhol, o português e o francês) e dois receberam

bastante influência do latim (o inglês e o alemão); e dos cinco principais difundidos com a

colonização (o inglês, o francês, o espanhol, o holandês e o português), mais uma vez a língua

dos romanos se faz presente.

2.3 Uma fonte de conhecimento do Português

No prefácio de seu livro Gramática Latina, Napoleão Mendes de Almeida (1992) trata

da verdadeira importância do latim, no qual aponta, dentre outras, sua relevância para o

conhecimento da língua materna brasileira, o português. Afirma que não se pode pensar no

estudo do latim apenas como benefício para a aprendizagem exclusiva do próprio idioma,

muito menos que esta é a sua primeira finalidade, pois deste “podemos retirar a utilidade para

todo o vernáculo”. Sabendo-se, porém, que a língua portuguesa possui influência quase

unânime da língua latina, a qual abrange cerca de oitenta por cento do léxico, o autor defende

que o estudo do idioma dos antigos romanos possibilita um entendimento conciso da língua

nacional e, para tanto, propõe a inserção do latim nas salas de aula, desde a formação básica à

superior.

Almeida afirma ainda que, para qualquer outro fim, o estudo do latim proporciona maior

desenvolvimento do raciocínio lógico e da coordenação mental, aguçando o hábito de análise

e o espírito de observação, como deve ser todo trabalho educativo. Entretanto, hábilidades

cognitivas à parte, sendo a língua portuguesa uma extensão do latim, que em processo de

romanização chegou à Península Ibérica no século III a. C., em todos os aspectos linguísticos

de sua formação encontram-se elementos da língua dos césares. É possível, portanto, detectar

atualmente na gramática vernácula brasileira indicíos pertencentes tanto ao latim vulgar como

ao clássico, já que ambos conviveram e, até certo ponto, se misturaram.

Page 31: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

30

Na fonética, com o latim vulgar, a tendência na fala do povo era tornar palavras

proparoxítonas em paroxítonas. Esse fator explica porque em português há um número

considerável de palavras paroxítonas em relação às demais. Exemplo: álacrem (latim

clássico) > alácre (latim vulgar) > alegre (português); cáthedram (latim clássico) > cathédra

(latim vulgar) > cadeira (português). No léxico também houve a predominância do uso de

palavras populares e afetivas com sufixos diminutivos. Por exemplo: o vocábulo auris (latim

clássico) era mais utilizado na forma diminutiva auricula (latim vulgar). A evolução dessa

palavra, através de processos fonéticos e fonológicos, resultou em orelha; a palavra equus

(latim clássico) jamais era usada pelo povo que preferia caballu (latim vulgar), culminando

em cavalo.

Ainda em relação ao léxico, a formação do português brasileiro foi muito influenciado

pelos empréstimos linguísticos, mas o latim sobressaiu a todos, por meio da variação falada, a

qual agregou palavras de todos os povos da Península Ibérica. Deste modo, a contribuição

latina para a compreensão de algumas palavras em português parece ser indispensável, pois

possibilita ao aprendiz a percepção do sentido amplo de um vernáculo e a análise de

vocábulos aparentemente da mesma “família”. Exemplos: água fluvial (lat. fluvius, i: rio);

água pluvial (lat. pluvius, i: chuva), daí pluviômetro, instrumento que mede as preciptações

das chuvas; cavalo alado (lat. ala, ae: asa) e inverno (lat. hibernu), por isso a palavra

portuguesa hibernar, que diz respeito ao ato dos animais permanecerem em sua toca

repousando durante o inverno.

Na morfologia, verifica-se uma quantidade enorme de estrutura que não só facilita o

entendimento do português, como também o coloca em contato direto com o latim. É o caso

das formas comparativas e superlativas de adjetivos, que mesmo existindo uma tendência para

o analitismo, nota-se ambas convivendo na gramática portuguesa. Exemplo de comparativo:

dulcior, no latim clássico (forma sintética); magis ou plus dulce, no latim vulgar (forma

analítica); mais doce em português. Exemplo de superlativo: dulcissimus, no latim clássico

(forma sintética); multo dulce, no vulgar (forma analítica); docíssimo e muito doce em

português. O mesmo se dá na formação da voz passiva na língua portuguesa: enquanto a

passiva analítica segue a predominância do latim corrente, a passiva sintética ou de infinitivo

seguem a forma do latim clássico.

Dando continuidade à morfologia, a regra do plural em muitas palavras na língua

portuguesa consiste apenas no acréscimo da desinência S, o que não ocorre em latim. Assim,

o estudo da língua latina esclarece que as diferentes formas de plural do português, sobretudo

terminadas em ão, podem ser naturalmente explicadas. A terminação plural ões tem sua

Page 32: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

31

origem na terminação latina one ou ones, a exemplo de orationes (orações) e nationes

(nações); o plural ães, nasceu de palavras terminadas em an, ane ou anes, como canes (cães) e

panes (pães); o plural ãos teve duas formações: anu, anus, como em manus (mãos) e granus

(grãos) e palavras paroxítonas terminadas em ãos, como bênção (bênçãos) e órfão (órfãos).

Há, ainda algumas palavras na língua portuguesa que permitem mais de uma forma de plural,

mas a tendência é a predominância do plural ões, como ancião, que pode ser anciãos, anciões

ou anciães.

Na sintaxe, também se encontram várias estruturas que só podem ser entendidas e

explicadas a partir do conhecimento da língua dos romanos. Citemos o caso das orações

subordinadas substantivas que no português possuem mais de uma forma: as substantivas

reduzidas de infinitivo, as quais seguem o latim clássico. Exemplo: O povo diz ser a Terra

redonda (Vulgus dicit terram esse rotundam); e as substantivas desenvolvidas, que mediante a

conjunção integrante segue o analitismo do latim vulgar. Exemplo: O povo diz que a terra é

redonda (Vulgus dicit quod Terra est rotunda).

Como meio para um conhecimento mais específico sobre uma língua, observa-se

também a etimologia. A etimologia é a ciência que estuda a origem das palavras em seu

sentido mais verdadeiro possível, desde a raiz linguística a qual se originou. Se no português

as palavras originaram-se, em sua maioria, do latim, logo, muitos vocábulos têm sentido

conciso com a busca pela origem etimológica latina. Entender o processo de formação das

palavras a partir do latim facilita a compreensão de termos aparentemente ilógicos. É o caso

da palavra dominus,i (senhor) que aparece nos vocábulos dominar, domínio, condomínio;

ager,agri (campo) origem das palavras agrário, agrícola, agricultor; e nauta,ae (marinheiro)

formadora de náutico, astronauta, internauta etc.

A título de curiosidade, ainda etimológica, os dias da semana têm seus nomes na

língua portuguesa devido a palavras de origem latina. Nas liturgias, os dias da semana da

Páscoa eram considerados dias santos, por isso não se deveria trabalhar: O shabbat (o sábado)

era o dia em que os judeus se uniam para fazer sua reunião de fé e de mercado, último dia de

seu calendário semanal, sendo este, portanto, o dia de descanso. Em 189 d.C., o Papa Vítor I

muda o dia de descanso dos cristãos para o domingo, em homenagem à ressurreição de Cristo.

Em 325 d.C., as orientações decididas no Primeiro Concílio de Niceia, reafirmaram a decisão

de Vítor I, mudando o nome de Solis Dies, que significa Dia do Sol - forma como os pagãos

se referiam ao domingo - para Dominica Dies, depois para Dominus Dei, que em português

quer dizer “Dia do Senhor” e evoluiu para o vernáculo domingo.

Page 33: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

32

Como descreve Arruda (2011, p. 18) o conhecimento de uma língua está muito além

de sua estrutura ou gramática, pois possui também aspectos culturais e históricos. Então,

conhecer a língua latina, bem como a sua formação, conferem ao usuário do idioma português

a capacidade de entender sua própria origem e elucidar as dúvidas relacionadas às mudanças

de uma língua para outra.

Page 34: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

33

CAPÍTULO 3: A LITERATURA LATINA

A Literatura é uma das principais expressões artísticas que prima por criar um universo

paralelo ao mundo real, mas com traços que se assemelham a este. Fatos históricos, problemas

sociais, vida em comunidade, guerras, conquistas etc, tudo o que marca o cotidiano de um

povo pode se tornar objeto de inspiração para esta arte. Vale ressaltar, no entanto, que

Literatura não deve ser confundida com História, apesar delas se relacionarem. Ocorre que a

arte literária, de um modo geral, permite ao ser humano a sensação de parecer possível o

mundo ficcional, colocando-o próximo do mundo real e conferindo ao seu contexto social

uma similaridade com o ambiente descrito na obra. Evidente que este não é o objetivo da

literatura, tampouco sua função, mas se a vida ao redor do Lácio inspirava os escritores a

utilizarem-no como espaço privilegiado em suas obras, não tinha razão para não sê-lo.

Assim, este capítulo trata, de maneira específica e suscinta, da Literatura Latina,

apresentando um breve relato sobre o surgimento desta arte, alguns momentos importantes da

sociedade romana, os quais influenciaram os artistas a compor seus trabalhos, e uma

classificação em “fases” e “épocas” que, conquanto convencionais, guardam características

bem marcantes. Outrossim, serão citados alguns escritores e obras de extrema relevância para

o conhecimento acadêmico, bem como a importância que essa literatura teve em sua época e

ainda tem para as civilizações posteriores, pois, embora a criação de obras literárias em Roma

tenha sido inicialmente lenta e imitadora, o que denominar-se-á Literatura Latina é o resultado

de um “ato criador” inigualável que contará e encantará a humanidade, como define Coelho

(1980, p. 22). Ressalta-se que, para a conceituação de literatura num âmbito geral foram

utilizadas as teorias de Nelly Coelho (1980) e, para o estudo da Literatura Latina, (prosa e

poesia), os teóricos foram Zélia Cardoso (2003) e Oswaldo Furlan (2006), além de estudos

complementares.

Page 35: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

34

3.1 Um breve histórico

A arte de contar histórias é conhecida desde a Grécia antiga, e os romanos tinham o

entendimento de que, para ser uma nação independente e de cultura própria, deveriam ter a

sua forma diferente de fazê-la. Inspirados nos gregos, mas não copistas, os latinos

introduziram e fundamentaram sua literatura para, tempos depois, fazer parte da história.

Tomando como exemplo a Ilíada e a Odisséia, ambas atribuídas ao escritor grego Homero,

poetas e prosadores latinos começaram a escrever sobre a vida em Roma. Assim, surgem

obras que tanto contam o cotidiano romano como os grandes feitos dos imperadores. Além

disso, o próprio latim torna-se o elo de ligação entre a arte falada e a escrita, e a literatura

passa a ser contemplada como forma de manifestar o belo e o inspirador.

Segundo Cardoso (2003), “o estudo de uma literatura, portanto, deve ser precedido de

uma coleta de informações sobre a época em que ela nasceu e floresceu”, assim como “a

compreensão das manifestações culturais de um povo pressupõe o conhecimento das

circunstâncias em que elas se produziram”. Logo, para que se possa dar início ao estudo da

Literatura Latina torna-se conveniente compreender como essa arte originou-se em Roma e

em que contexto social.

A literatura de Roma, assim como qualquer outra, estava intrinsecamente relacionada à

vida social, havendo períodos em que esta foi mais ou menos favorecida e valorizada. Seu

nascimento, evolução, apogeu e, por fim, declínio acompanham o ritmo da própria história

romana. A consequência da romanização impôs aos latinos o convívio com vários povos,

atuando em determinados momentos como aprendiz e, em outros, como mestre. Aprenderam

muito, a princípio, com os etruscos, dos quais possivelmente legaram o alfabeto, e

posteriormente com os gregos de quem, dentre tantas heranças culturais, desenvolveram o

cultivo das letras.

Sob a boa influência helênica, desde o século III a. C., o latim praticado com intuito

artístico foi sendo gradativamente enriquecido, até alcançar, no século I a. C., como afirma

Cunha (1986, p.12), “a alta perfeição da prosa de Cícero e César, ou da poesia de Vergílio e

Horácio”. Em 240 a.C., o épico grego Odisseia foi traduzido para a língua latina por Lívio

Andrônico, um grego de Tarento que morava e ensinava em Roma. E isso marcaria

oficialmente o início da literatura local.

No entanto, foi em meados dos séculos VII ou VI a.C que a literatura realmente começa

a surgir, restringindo-se, até então, a manifestações orais. O surgimento de Roma, contado

Page 36: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

35

mitologicamente pela lenda dos irmãos Rômulo e Remo, ou mesmo pela História, a partir dos

povos que habitaram o Lácio, passando pelas conquistas territoriais, as guerras, as vitórias e

perdas, o triunfo do Império Romano, as invasões etc eram temas recorrentes dessas obras de

arte.

Todas as transformações sofridas por Roma, desde o seu “nascimento”, transcorrendo

a Monarquia, a República até a queda do Império, são documentadas e registradas pela

literatura e, quando a criação destas produções cresce em grande escala, vê-se a necessidade

de organizá-las. Cardoso (2003) diz que “embora saibamos que a tentativa de classificar as

manifestações literárias por períodos, épocas ou escolas é arbitrária e convencional” [...], esta

é uma forma de especificar os pensamentos de cada momento que foram, sem dúvida

nenhuma, distintos entre si por possuírem, sobretudo, características definidas. Logo, a

história desta literatura foi dividida didaticamente em períodos, e os trabalhos produzidos,

classificados em gêneros para, compreendendo o contexto da época, poder ser feito o

entendimento adequado das obras.

Classifica-se, pois, a literatura latina em quatro fases, as quais se distinguem pelo

período em que determinados fatos ocorreram e que marcaram a história romana: a primeira, a

fase primitiva: corresponde às primeiras obras traduzidas para o latim e às primeiras

inscrições nesta língua; a segunda, a helenística: os romanos inspiram-se nas produções

gregas para criar as suas primeiras poesias; a terceira fase é a clássica: período em que a

literatura alcança seu auge, pois é justamente o momento de esplendor do Império Romano, e

os seus governantes dão o aval para que os poetas e prosadores latinos escrevam as glórias e o

poder que nessa época o mundo mediterrâneo pôde conhecer. Por ocorrer nesta fase

acontecimentos distintos, foi sub-dividida em três épocas: a época de Cícero, criador de uma

literatura clássica; a de Augusto, considerada a mais elevada pois este imperador usou a

literatura inclusive a serviço da política; e a época dos imperadores julio-claudianos, em que

Roma já começa a perder seu poder hegemônico, mas ainda florescem obras literárias.

Quando o Império entra em decadência, inicia-se a quarta e última fase, a pós-clássica,

a qual, mesmo não contendo o brilho da anterior, revela grandes escritores. Esta fase, também

por características diferentes, se divide em duas épocas: a neoclássica, em que ainda se tem a

escrita de obras relevantes tanto na poesia como na prosa; e a cristã, no final do século II, que

abre espaço para produções de caráter estritamente religioso.

A queda do Império Romano enfraquece em muito a produção literária latina, uma

vez que o Cristianismo, implantado por Constantino como religião oficial, e a dialetação da

língua latina, aliados a outros fatores político-culturais, prenunciam um novo período na

Page 37: Flor do lácio o latim o que quer, oque pode esta língua

36

história da humanidade: a Idade Média. A Igreja Católica Romana passa a ser a grande

matenedora dos trabalhos produzidos em latim. Prova disso é que, nos séculos posteriores, as

epístolas e poesias líricas de conteúdo religioso serão os tipos mais comuns de obras literárias

e, especialmente nos séculos IV e V, as Cartas de São Jerônimo serão exemplos marcantes

para estudo da língua latina. Com isso, “os textos escritos em latim só atingiam um público

reduzido” e “a produção literária definhava” (CARDOSO, 2003, p.210). Assim, a

continuidade da Literatura Latina se deu, desse momento em diante, com obras eclesiásticas e

escritores ligados a assuntos espirituais e morais.

Importante ressaltar que, em 395 d.C. após o falecimento de Teodósio, na tentativa de

evitar o desmoronamento, o vasto Império Romano foi dividido em duas partes: Ocidente e

Oriente. A parte ocidental é a primeira a ser invadida e dominada pelos povos bárbaros,

sucumbindo em 476. Já o Império do Oriente duraria tempo suficiente para que o latim se

tornasse uma língua universalizante (através do surgimento das línguas românicas) e para que

sua escrita fosse cada vez mais utilizada pela religião e entre as classes sociais cultas da

sociedade.

Para Coelho (1980, p. 23) “a arte é na realidade, em suas expressões mais variadas, o

fenômeno que descobre o mundo à Humanidade”, buscando entender o universo do homem e

sua existência, por isso deixa de ser a imitação do real para tornar-se a verdade do mundo

ficcional. Assim, o que se produziu em Roma é resultado da essência que a literatura

encontrou no ser humano, sobretudo na vida do povo romano, com seus mistérios e conflitos

existenciais. Estudar e entender a Literatura Latina é buscar no passado um sentido para o

presente, já que muito do que foi escrito compõe hoje a nossa história. A partir desse sintético

estudo, busca-se compreender como os gêneros literários romanos se difundiram,

transformando sobremaneira suas obras em clássicos da literatura universal e fontes de

inspiração para escritores contemporâneos.

3.2 A poesia latina

Tanto na Grécia como em Roma, as primeiras obras de arte inspiravam-se em mitos

acerca da origem dessas civilizações. A pequena região conhecida como Lácio foi, através da

mitologia romana, transfigurada em um ambiente onde o mágico e o extraordinário aconteceu:

duas crianças são encontradas e alimentadas por uma loba. Com o passar do tempo, essas

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37

crianças crescem e se tornam as precussoras de um futuro grande império. A lenda dos irmãos

Rômulo e Remo é muito conhecida e hoje permite estudar a história do povo latino sob outros

aspectos, pois detalhes dessa narrativa mostram como essa sociedade foi se formando. Apesar

de o mito ser considerado “como criação estética da imaginação humana” (CHASE apud

FURLAN, 2006, p. 250), sem dúvida, as histórias criadas sobre a formação de Roma foram

imprescindíveis para que estudos mais completos fossem feitos sobre essa antiga civilização.

A literatura em verso “é obra de fantasia, de ficção ou imaginação” (FURLAN, p.

253), a qual favorece a diversidade de interpretações através da utilização de metáforas e

outras figuras de linguagem. Em Roma, a criação poética estava mais ligada à musicalidade;

muitos poemas eram, inicialmente, escritos para serem cantados. Assim, os cânticos podem

ter sido os anunciadores dos futuros gêneros literários romanos. Deste modo, considera-se

que, em Roma, as produções escritas em caráter de poesia pertencem às formas lírica, épica,

satírica, dramática (tragédia e comédia) e didática.

A poesia lírica é geralmente definida como uma escrita em versos criada, em sua

maioria, de forma subjetiva, em que o autor encontra na beleza do universo ao seu redor (a

natureza, os seres, os sentimentos e emoções, as relações humanas etc) inspiração para

escrever. Composta em pequenas estrofes, na Antiguidade era acompanhada por um

instrumento musical (em especial a lira; daí os nomes lírica e lirismo), num tom harmônico

entre palavra e melodia.

Mesmo antes da invasão cultural helênica, impondo a poesia grega como modelo de

imitação, em Roma, assim como em outros povos do Mediterrâneo, já existia manifestações

rudimentares do lirismo expressas através do canto. Os cantos heroicos, os fesceninos, tais

quais os religiosos e funerários podem ser enquadrados na natureza de líricos, todavia todos

com características pré-literárias. Somente com a primeira composição de forma helênica do

poema-canção em homenagem ao deus Juno, escrito em 207 a.C. – também atribuído a Lívio

Andrônico – é que o lirismo assume proporções peculiarmente artísticas entre os romanos.

Os romanos adotaram teorias de Platão para criar sua poesia e, no caso da lírica,

inaugurada pelos latinos aproximadamente no século VII a.C., era calcada sobretudo na

preocupação do poeta com seus sentimentos. O mundo exterior era desconsiderado e o que

importava era a resolução de problemas e conflitos intrínsecos. Além disso, muito da

mitologia romana inspirava a criação dos ambientes e a idealização da realidade. São

exemplos de consagrados escritores líricos de Roma os poetas Catulo, Virgílio, Tibulo,

Propércio, Horácio e Ovídio, os quais compunham em diversas espécies de poesias líricas

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38

(odes, elegias, éclogas etc), incitando a beleza textual vários escritores da literatura universal

pela magistral elegância poética.

A poesia épica é uma forma escrita caracterizada pela narração de acontecimentos

grandiosos, heroicos, tais como batalhas e conquistas territoriais, em que os personagens

principais possuem uma força física incomum e assemelham-se, pela coragem e astúcia, aos

deuses. É criada com o intuito de ser recitada ao público e sua estrutura compõe-se de estrofes

longas. Em Roma, esse estilo de poesia teve grande destaque sobretudo no período em que o

Império Romano se expandia e alcançava seu auge: Virgílio cria a Eneida. Inspirada na

formação e consolidação do império, esta obra de arte clássica e universal, segundo seu autor

não foi terminada. Por isso, antes de sua morte, Virgílio pede que o manuscrito seja destruído,

mas o então imperador Augusto intervem e mantém a obra. A epopeia virgiliana conta a

história latina por meio da vida do heroi Eneias, sobrevivente da guerra de Troia e que,

através da ajuda dos deuses e de sua força sobrenatural, chega ao Lácio, onde funda a futura e

gloriosa Roma.

É importante considerar que, apesar de Eneida ter sido criada a partir do exemplo

grego do poeta Homero, é uma obra que constitui valor inestímavel e, como afirma Cardoso

(2003, p. 5) “a literatura latina conseguiu ser criativa e original”. Dessa maneira, por ser a

epopeia uma narrativa que engrandece a nação a que faz referência, Virgílio sente a

necessidade e oportunidade de contribuir com essa glória, criando uma história que por muito

tempo passou a ser considerada uma verdade. O incentivo vem também do imperador

Augusto, que deseja que Roma faça-se conhecida ao mundo mediterrâneo. O que ele e muito

menos Virgílio esperavam é que a Eneida tivesse a repercussão que teve para a época e, mais

ainda, a possibilidade de tornar-se uma literatura de âmbito universal, fonte de inspiração para

futuras epopeias, a exemplo de África de Francesco Petrarca, escrita em latim em 1342, e Os

lusíadas, de Camões, em 1572, em pleno Humanismo.

Durante toda a antiguidade romana, a Idade Média e o Renascentismo, o poema

virgiliano constituiu modelo de composição e foi reproduzido em múltiplas edições,

entre elas a versão do Codex Vatticanus, que data do século IV, e a edição ilustrada

do século XIII de Henri de Veldecke. A idealização do Império Romano e sua

identificação com a expansão do Cristianismo levaram Dante Alighieri a escolher

Virgílio como parceiro na viagem aos infernos, que ele narra em A divina comédia, e

a Eneida como modelo de composição poética para aquele que foi um dos maiores

poemas da literatura medieval. A Eneida inspirou também Os lusíadas. Assim como

a poesia lírica de Camões anunciou e depois permeou sua epopéia, nas Eglogas e

Geórgicas de Virgílio é possível também perceber o sopro da Eneida. (CLARET,

2007, p.16)

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39

Outros escritores romanos que compunham poesias épicas foram Névio e Ênio,

merecendo destaque Lucano, autor de Pharsália – poema sobre uma guerra civil – Públio

Papínio Estácio, que escreveu Tebaida, e Claudiano com Sobre o rápto de Prosérpina, a qual,

segundo Claret (2007, p. 9) “consegue reviver o gênero já em seu período de decadência”.

Já a poesia satírica merece destaque por ser um produto sui generis, nascido em

Roma e sem influências helenísticas. Segundo Cardoso (2003, p. 89), “não só desperta

interesse por suas próprias características, por afigurar-se como uma espécie de crônica social

em versos, como também por ter sido amiúde considerada como um gênero poético original”.

Essa forma de poesia caracteriza-se pela crítica, pela censura, pelo ataque a comportamentos e

condutas morais; pela ridicularização de costumes, defeitos e vícios. E tudo feito com um

toque de humor e ironia.

Com uma coletânea composta de poemas variados, com metros diversos e agrupados

em quatro volumes, foi Ênio a inaugurar o gênero, nomeando-o de Sátiras (Satirae, oriundo

do latim satura, saturado, misturado, carregado). Contudo, conforme Furlan (2006, p. 254),

foi com Horácio que a sátira “alcançou o mais alto grau de perfeição” e, com o poeta Juvenal,

“ela se tornou um dos gêneros mais respeitáveis e apreciados da literatura latina”. Merecem

destaque também o romano Marcial, o qual criou sátiras com caricaturas muito bem

detalhadas, Varrão – autor de uma imensa e variada obra – e Lucílio, o qual pela liberdade

de escrita é considerado “o verdadeiro criador da sátira latina” (CARDOSO, 2003, p. 91). Vê-

se, pois, que a produção literária em Roma possuía, para todos os gêneros, representantes de

alta qualidade e estilo próprio, o que proporcionou uma vasta e rica literatura. A sátira foi um

sucesso entre os romanos, que utilizavam-na para escancarar os problemas e dilemas sociais

de forma lúdica e artística e uma herança para os dias atuais.

A poesia dramática envolvia uma série de episódios complicados ou patéticos, assim

como acontecimentos terríveis ou catastróficos. Tal qual a epopeia, a dramaturgia também

tem origem grega, ainda assim nos primordios da civilização latina são encontrados resquícios

embrionários, sobretudo de caráter religioso, que contribuíram para a formação desta espécie

poética. Este estilo de poesia compreendia duas formas distintas de manifestação: a comédia e

a tragédia. A primeira é uma espécie de poesia cuja representação teatral transmite ao público,

como afirma Coelho (1980, p. 38), “o mundo do materialismo grosseiro. O ridículo ou a

mediocridade do mundo real, concreto e mesquinho” [...]. Em outras palavras, é uma forma de

satirizar pessoas e determinadas situações, a inferioridade humana perante os deuses,

costumes, valores morais etc. Pela definição, é possível perceber que a comédia contrapõe-se

a idealizar a realidade – pelo contrário, procura demonstrar de forma concreta o mundo a que

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os homens comuns estão submetidos. A comédia latina teve predileção por temas gregos já

em discussão, e são representantes dessa modalidade dramaturgos como os poetas Plauto e

Terêncio, os quais assumiam as diversas funções de autor, ator e diretor de cena, tendo seus

textos a proeza de alcançar os dias atuais.

A tragédia, por sua vez, caracteriza-se por representar em versos a linguagem comum,

recitada com um ritmo próximo à fala cotidiana. Em geral, é uma poesia dialogada e atuada,

as personagens são seres em conflito com o mundo exterior e o seu final, na maioria das

vezes, é trágico e irreversível. Ainda que de raiz helênica e também trazida por Lívio

Andrônico, a tragédia teve o seu início em Roma por volta do século II a.C. com os poetas

Pacúvio, dotado de linguagem solene e eloquente, e Ácio, possuidor de grande habilidade

descritiva. Outros nomes como Névio e Ênio tiveram relevância, porém Sêneca foi o mais

conhecido dramaturgo, autor de dez peças. Foi esse estilo de poesia, em comunhão com a

comédia e a sátira, que infuenciou a criação do teatro. No entanto, vale lembrar que a

dramaturgia foi mais comum na Grécia do que em Roma, uma vez que os latinos preferiam

usar os grandes teatros (como o Coliseu) para o combate de gladiadores e animais.

Atualmente muito do que se vê da dramaturgia vem da arte greco-romana. As linhas

teóricas de estudo, as concepções cênicas, as peças teatrais revisitadas são demonstrações de

como a Antiguidade Clássica greco-latina ainda é basilar na sociedade pós-moderna. Inclusive

ciências como a Psicologia bebem na fonte para desenvolverem trabalhos, a exemplo do

Psicodrama.

A poesia denominada didática, por fim, é considerada uma categoria especial de

poesia que prima transmitir informações e conhecimentos, tendo sido muito utilizada como

material pedagógico em Roma. Entretanto, mesmo objetivando o caráter didático mantinha

elementos e recursos próprios da linguagem poética. Segundo Cardoso

[...] poderia parecer estranha a utilização da poesia para transmitir o saber. Em

Roma, contudo [...] foi freqüente essa prática. [...] O romano sempre demonstrou ter

espírito prático e pragmático. Ao aprender a manejar o verso, foi levado,

evidentemente, a descobrir-lhe uma função utilitária. E nasceu dessa forma a poesia

didática, que coexistiu com os demais gêneros poéticos em todas as fases da

literatura latina. (CARDOSO, 2003, p.102-103)

Apesar de apresentar indícios desde a fase primitiva com pequenos textos em versos

(oráculos, predições, provérbios), a poesia didática foi realmente introduzida em Roma

através de poemas filosóficos do escritor Ênio, aproximadamente em II a.C. Catão também

compôs poesias de caráter didático, mas foi no século I a.C que ela alcançou seu auge com os

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poetas Lucrécio, Virgílio, Horácio e Ovídio. As principais obras poéticas de valor didático

foram Sobre a natureza, de Lucrécio, as Geórgicas, de Virgílio, os Fastos, de Ovídio e as

Fábulas, de Fedro.

Mesmo se obtendo pouco conhecimento acerca de suas primeiras manifestações, a

poesia didática foi muito importante para a formação de jovens e para o conhecimento da

literatura in loco, além da sua transmissão de doutrinas e valores morais. Sua importância

ainda está presente no mundo hodierno e se faz representar em fabulistas como La Fontaine e,

quiçá, na literatura intitulada autoajuda.

A poesia latina, segundo Furlan (2006, p.253), “produziu, sobretudo, em seu período

áureo, acervo considerável de obras de valor perene e universal, em todos os seus gêneros”.

Daí pode-se ratificar a importância da literatura de Roma para o mundo e reconhecer que a

contribuição dos romanos para esta criação artística é incontestável. Além disso, o estudo da

poesia latina propicia ainda uma análise de como as obras contemporâneas podem ter sido

influenciadas direta ou indiretamente, seja na estrutura, na composição, nos temas, e

demonstra a vitalidade de uma língua que transmitiu através da arte romana os valores da sua

época e a vivência do seu povo.

3.3 A prosa literária

A prosa latina tem início já desde a fase primitiva, quando aparecem as primeiras

inscrições em latim. Elas possuem um imenso valor histórico, contudo falta-lhes o apuro

artístico que identifica o trabalho literário. A princípio, a maioria foi escrita sem preocupações

estilísticas, sendo, portanto, utilizada como documento. Para Cardoso

só podemos falar, realmente, em prosa literária quando, no início da chamada época

helenística, a influência grega se tornar sensível e a linguagem poética, estruturada

nas obras em verso, for utilizada também nos textos em prosa. (CARDOSO, 2003, p.

124)

Já prosa latina de cunho literário, em relação à poesia, foi pouco desenvolvida em

Roma. Boa parte dos prosadores romanos eram homens da aristocracia, em geral senadores,

enquanto os poetas eram de origem mais humilde. A literatura em verso tendia a ser mais

valorizada devido ao seu caráter estético, que se distanciava da linguagem comum, e os temas,

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42

apesar de corriqueiros, ganhavam uma nova significação. A poesia, como foi exposto

anteriormente, possuía diversas formas que distinguiam-se conforme a maneira com que

determinados assuntos eram tratados. Contudo, apesar de escassa, a produção literária romana

de estilo narrativo, além das preocupações artísticas tinha, sobretudo, fonte documental muito

importante para os estudos sobre a sociedade latina.

Na categoria dos textos prosaicos encontrados na Roma antiga, os arquivos, anais,

livros, comentários e tantos outros podem muito bem ser apresentados como a matriz das

atuais atas, editais, anais, relatórios etc. Dentre os gêneros escritos em prosa, todavia, apenas

o romance tem aspectos literários, portanto será este, por sua finalidade estética, o objeto de

estudo desta seção.

Entre as escassas obras escritas em prosa com preocupações artísticas destaca-se o

Satiricon, de Petrônio. De acordo com os estudos de Cardoso (2003), foi este um dos

primeiros textos escritos que, por sua estrutura e características, é considerado um romance.

Vale a ressalva de que em determinadas partes do livro é possível encontrar alguns trechos em

verso.

Escrito entre os séculos I e III da Era Cristã, o Satiricon é uma obra incompleta.

Trechos do livro se perderam, mas o conteúdo da maior parte da obra permite uma

interpretação precisa do enredo: três jovens depravados – Encólpio, Ascilto e Gitão – e um

velho poeta – Eumolpo – vivem divertidas aventuras por pequenas cidades da Itália. O que

interessa, no entanto, saber sobre essa obra é sua importância para a época em que foi escrita e

para os estudos posteriores acerca da Literatura Latina, pois pode ser considerada um marco

na história da prosa literária de Roma. Diferente das demais obras que eram, em geral, de

caráter documental, o Satiricon propiciou entender de que maneira os autores latinos

absorviam os costumes da época e faziam disso objeto de suas obras de arte. No caso deste,

por exemplo, Petrônio detalha os ambientes e comportamentos das personagens de forma que

permite uma visão de como ele percebia os acontecimentos em sua terra.

Foi, portanto, no período conhecido como Imperial, mais especificamente na época

dos imperadores julio-claudianos que a prosa latina teve início. É nessa fase que a língua

latina já sofre modificações em sua estrutura, e a popularidade do latim vulgar influencia as

obras literárias dos escritores. Isso mostra que a variedade falada do latim foi também uma

contribuição da prosa, num período de decadência da forma culta e erudita, uma vez que desta

maneira os autores disseminavam o latim vulgar, o qual era cada vez mais utilizado pelo

povo. Sendo assim, é importante ressaltar que os textos mais escritos eram geralmente

informativos e documentais, como poesias didáticas, atos (atas), anais e alguns voltados para

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a retórica (discursos), filosofia, epistolografia e sátiras. Poucos eram os autores que criavam

romances.

Ainda acerca do Satiricon, em um estudo feito sobre o que provavelmente levou

Petrônio a compô-lo, Maria Ivonete Silva (2007, p.125) afirma que trata-se

“indubitavelmente, de uma obra valiosa sob o ponto de vista literário e também sob o ponto

de vista histórico”, pois Petrônio é um escritor “original, dotado de rara capacidade de

observação”. Ao narrar as aventuras dos jovens, de um ser mais experiente e, por isso, talvez,

mais sábio, o escritor buscou imitar a realidade sem deformá-la. Sem contar que o período em

que o romance foi escrito era marcado pelo desânimo da população diante do governo dos

imperadores, sobretudo porque estes estavam em constantes polêmicas e já não

tinham o apoio popular. Consequentemente, Petrônio absorvia os problemas do povo,

especialmente porque era conhecedor da vida de prazeres e escândalos do então imperador

Nero, o que o estimulou a escrever sátiras com assuntos dessa espécie.

Outro texto latino pode ser apresentado como exemplo de narrativa novelística: Libri

Metamorphoseon. De acordo com Cardoso (2003, p. 130), a obra de Apuleio, Metamorfoses,

conhecido também como O asno de ouro, “foi considerada por alguns como uma

representação alegórica do mito platônico de Fedro: a alma deve morrer para chegar à

concepção do divino e sofrer duras provas para elevar-se até Deus”. O texto, composto de

onze livros, narra a história de Lúcio, um jovem que se vê transformado em um burro, mas

sua consciência é ainda de um ser humano, por isso, ao vivenciar como um animal, percebe o

quanto o homem pode ser mesquinho e cruel. Depois de várias experiências, de pessoas que

conheceu e serviu e de lugares por onde passou, ele retorna a sua fisionomia humana graças a

um sonho em que a deusa Ísis lhe revela o segredo da maldição. Pelas características

narrativas e ficcionais, este conjunto de livros foi considerado um romance.

Para Coelho (1980, p. 43), a prosa literária é uma obra ficcional “estruturada em

longos ou breves capítulos (ou partes) e que, segundo Littré, procura excitar o interesse pela

pintura das paixões, dos costumes ou pela singularidade das aventuras”. Partindo deste

princípio, é possível então enquadrar as obras citadas como romances. Ratifica-se, pois, que o

prosador é um ser observador das relações sociais e compõe suas obras fazendo uma análise

crítica do mundo real sem que isto interfira ou influencie na obra ficcional. Em outras

palavras, a dualidade ficção versus realidade existe e, desde a Roma antiga, já se fazia

presente. Apuleio, bem como Petrônio e tantos outros prosadores dessa época, observadores e

conhecedores dos valores e costumes sociais, compunham suas obras valendo-se dessa

característica.

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44

Quando a literatura em prosa, que já não era tão produzida, perde espaço para registros

históricos e documentais, surge o sermão religioso, o qual predominantemente fazia apologia

ao Cristianismo, transmitindo através dos textos a fé e a moral da religião agora vigente.

Neste período, tanto a prosa como a poesia são cada vez menos valorizadas, sobretudo as que

não tivessem conteúdo cristão. Assim, sobressaíram neste período poesias líricas apologéticas

e textos em prosa como epístolas, hinos, biografias ou textos filosóficos. Vários são os

escritores cristãos desta época, tendo destaque nomes como São Jerônimo e Santo Agostinho,

cujos textos, hoje em dia, são estudados não só pela Lieratura, mas, sobretudo, pela Teologia

e Filosofia. Além de escritores considerados “pagãos”, a exemplo de Plínio e Tácito, que

muito contribuíram para o acervo desta literatura.

Importante ressaltar o papel fundamental da Igreja Católica para com o latim e a

Literatura Latina, principalmente, a cristã. A instituição não só serviu como uma espécie de

mecenas e protetora, como também propiciou à contemporaneidade o contato com tal riqueza.

De acordo com Luis Galidie (1926, p. 8), “a Igreja não somente salvou e conservou as obras

dos escritores, mas adotando o latim como língua oficial, fê-lo por muitos séculos intérprete

das altas especulações do espírito”.

A prosa literária, como pode-se perceber, foi usada pelo Império também como

instrumento de propagação de alguns conceitos e valores. Em toda a história da Literatura

Latina, observa-se a importância desta enquanto veículo de comunicação entre imperador(es)

e Império, mas principalmente entre povo e cultura. Percebendo que os pré-clássicos e os

clássicos tiveram sua formação ao fulgor desta literatura, não apenas pelo mérito intrínseco,

os escritores latinos são atuais. Esta literatura, hoje parte da literatura universal, de tão rica

continua servindo de modelo como também fonte de pesquisa para as novas gerações.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho monográfico teve como objetivo principal focar a herança que o

latim, direta e/ou indiretamente deixou para a humanidade, demonstrando o imenso poder de

uma língua que, aparecida mais ou menos sete séculos antes desta era, impôs-se na

humanidade e atravessou o tempo servindo como esteio para criação de muitas civilizações.

A riqueza cultural construída pelo antigo Império Romano, que depois de séculos de apogeu

cai perante os chamados bárbaros, jamais teria chegado à contemporaneidade sem que a

língua latina, além do fator lingüístico, não tivesse assumido seu papel político, artístico e

religioso.

O projeto procurou revisitar as origens da língua latina, fazendo um percurso histórico

para mostrar sua presença desde a antiguidade ao mundo contemporâneo. A fim de dar um

maior embasamento aos argumentos apresentados, a pesquisa abordou os primeiros falantes

da língua e relatou como um idioma, de um simples meio de comunicação, tornou-se uma

grande arma política e administrativa. Fatos históricos foram relatados, exemplos

apresentados e questões elucidadas.

Buscou-se apresentar as profundas contribuições que o latim trouxe para o

conhecimento atual, servindo inclusive de língua oficial da ciência moderna. Distanciando-se

da idéia de língua morta ou língua de padre, ao invés de apenas abordá-lo dentro do campo

linguístico, abriu-se para visitação um leque de áreas em que ele está presente, possibilitando

assim percebê-lo além do que concebe o senso comum.

Direito, Filosofia, Publicidade, várias áreas de conhecimento foram apontadas como

sendo enriquecidas pela cultura dos césares. No aspecto linguístico, assuntos foram tratados

de maneira objetiva e estimuladora para que a discussão facultasse interesse para outras

pesquisas. No que concerne à Literatura, concepções, contexto social, gêneros, autores e obras

foram abordados, sempre com base em referenciais teóricos e tudo sempre exemplificado.

O latim é uma língua clássica que, à primeira vista, parece pertencer a um cenário

estranho para a humanidade. Junto com o grego, não mais encontra espaço dentro de certos

contextos do mundo moderno. Todavia, é uma língua de fundamental importância para que se

possa entender não só enigmas da vida atual, mas certos rumos tomados pela humanidade.

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Seu estudo, sobretudo na Bahia, distancia-se muito dos trabalhos realizados em grandes

centros de pesquisa. Enquanto em alguns países, mesmo não latinos como Alemanha e

Estados Unidos, dedicam-se anos ao seu aprendizado, no Brasil, a depender da região, apenas

dois semestres.

Assim, depois de muito empenho em encontrar vestígios do latim nas diversas áreas do

conhecimento e sabendo de sua valorosa influência na formação não só das línguas românicas

como também das sociedades modernas, acredita-se ter atingido o objetivo desta pesquisa. No

âmbito acadêmico, o estudo do latim precisa ser estimulado a fim de auxiliar o

enriquecimento do discente em campos distintos do saber. O trabalho apresentado dá, então,

sua parcela de contribuição para a Universidade.

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