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Flavio Miguez de Mello

Episódios da engenharia (e da política) no Brasil

1ª edição

Rio de JaneiroComitê Brasileiro de Barragens

2014

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Considerando que os textos desta publicação são integralmente baseados na vivência do autor e em fatos a ele narrados, as informações, os dados, as opiniões, as interpretações e as conclusões aqui apresentados, bem como o uso de nomes de pessoas e de instituições, são de responsabilidade do autor e não devem ser atribuídos ao CBDB.

Diretoria de Comunicações do Comitê Brasileiro de Barragens - CBDBFlavio Miguez de MelloUrsula FuerstenauPatricia KnebelSimone DiefenbachArquivo pessoalComitê Brasileiro de Barragens

Coordenação Editorial -

Autor - Projeto gráfico e diagramação -

Edição -Revisão -

Fotografia -

 

M527e       Mello,  Flavio  Miguez  de         Episódios   da   engenharia   (e   da   política)   no   Brasil   /   Flavio  

Miguez  de  Mello.  –  Rio  de  Janeiro:  Comitê  Brasileiro  de  Barragens,  2014.  

    Il.  ;  220p.     ISBN  978-­‐‑85-­‐‑62967-­‐‑07-­‐‑8    

1.   Engenharia   civil.   2.   Barragens.   3.   Bacias   hidrográficas.   4.  Trabalhos  em  usinas  hidrelétricas.  5.  Brasil.  6.  Crônicas.  I.  Título.  

 CDU  627.82:869.0(81)-­‐‑94  

Catalogação  na  publicação:  Leandro  Augusto  dos  Santos  Lima  –  CRB  10/1273  

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Agradecimentos

Agradeço a todos aqueles que tornaram possível a divulgação destes episódios,

aqui incluídos os atuais dirigentes e funcionários do Comitê Brasileiro de

Barragens, e aos muitos engenheiros citados neste livro, que nos precederam

deixando profundas marcas de competência, dedicação e ética profissionais.

Devo agradecimentos a todos os que me apoiaram na Profissão, da qual não

trago queixas, mas saudades do passado – algumas das quais em fatos aqui

relatados – e planos para o futuro.

Aproveito para externar também a minha gratidão a todos os meus professores,

do Brasil e do exterior; a todos os colegas de trabalho nas empresas em que atuei;

aos companheiros da minha vida acadêmica e nas associações técnicas.

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SumárioPrefácio

Introdução

O Doutor

O outro Doutor

Eugênio Gudin

O tenebrário

A censura

Tempos diferentes: a constituição de Furnas

O caboclo e as águas do reservatório de Peixoto

A oposição a Furnas

A volta dos que não foram

Emoções em Jupiá

Emoções na Politécnica

Ecos da Guerra de Canudos

Obra monumental

Pedro de Alcântara

O oficial de justiça, o governador e o

fechamento de Furnas

Pedido de emprego

O banquete e o pomar

O zoológico

As bitolas

Viabilidade

O marechal e o vigia

Viúva-negra

Antes do autódromo

O corpo

O vinho salvador

Leitura dinâmica

A pressão variável

Violada no auditório

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Gás da Bolívia

A farofa

A língua tupi

Os geólogos

O português

Portugueses ao Maracanã

O consultor

A sabedoria portuguesa

O delegado sádico

Alkmin e Campos

Herói nacional

Os apertos que sofríamos

A verba de desmobilização

Tiro pela culatra

O peso

O cunhado

O chefe e o procurador

A greve

A perseguição

Maldade

Os idosos no avião

A estreia

Precisão suíça

O Dirceu do bem

Simonsen

A ementa

Fim com horror

O reitor

Palestra para universitários

Hidráulica de vertedouro

A brecha

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A primeira aula a gente não esquece

Bolo de apostas

Estagiários

Água em seis dias

Como se deve fazer

Entusiasmo exagerado

Prospecção mineira

O dicionário

O Blefe

O início de Itaipu

Itaipu serrada

O salário do presidente

As barragens, os portugueses e o futebol

O câmbio, o taxista e o professor

O milagre brasileiro

Os dois espiões

Índio quer apito

Pior a emenda do que o soneto

Piadas de alentejanos

Manuel Rocha x Rosinha

Os suíços não entenderam

Já combinaram com os russos?

Político ou artista?

A prodigiosa memória do professor Nunes

O tempo passa

Cubatão

A física

As aflições de um filho flamenguista

Lições da África portuguesa

Sanduíche

Furnas x Cemig

De queixo caído

O segurador

O carrão

A chaminé de equilíbrio

A janela do português

O Manuel português

Intolerância de ambientalista

O professor diferente

Antiguidade oriental

O contador da História

Um inglês no Rio de Janeiro

História picante para ouvidos britânicos

O flagelo das secas

Pergunta indiscreta

Os três Flavios

A eficiência premiada

No elevador

Os subdesenvolvidos

O professor distraído

Outro professor distraído

O amigo da onça

O espião no banheiro

O motel

Portunhol

O adivinho e a segurança de barragens

Os mineiros, Getúlio e a siderurgia

Furor arrecadatório

Palavra de ministro

Esposa jovem de marido idoso

O francês e a paradisíaca ilha tropical

Só Deus sabe!!!

As instruções de JK

Estrada que ligava nada a coisa nenhuma

Orós, rogai por nós!

O ministro, o operador e o sangradouro

O presidente, o seu vice e o ministro

O cuidado com marcos e referências de nível

O cuidado com as caixas de testemunhos de sondagem

O cuidado com as amostras

Aureliano Chaves estudante

Aureliano Chaves vice-presidente

Alfafa para burro

Tamanho não é documento

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Uma aventura na África

Outra aventura na África

Os velhinhos

Banho ou jantar

A verba

Português de gringo

O operador na torre de controle

Don Deere

Luiz Borracha

Nudismo

Otton Leonardos

A galeria que nunca houve

A história oficial

Caronas indesejáveis

Carona recusada

Tempos difíceis

Você sabe com quem está falando?

A maldição do Padre Cícero

O governador que sabia demolir barragens

O ministro que queria ser engenheiro I

O ministro que queria ser engenheiro II

Instrumentação?

Paixão recolhida

A briga por São Simão

Eletrobras denunciada

A diretoria de coordenação

Humaitá no Amazonas

Tempos diferentes

As dificuldades aumentam com o tempo

Graças a Deus

A boia

O teatro

O que os outros não têm

O Titanic

O maior desafio

As praias

Os leões

O processo

Aniversário em Itumbiara

Chineses no Brasil

Os juros

Preconceito?

Laginha x Cooke

Las Vegas

A ensecadeira que não secava

Táxi em Lisboa

Perguntas em Lisboa

O morto

O grande choque

Os cinco longos minutos

Terzaghi

Água que não presta

Washington

O geólogo

A eleição surpresa

Niemeyer

O filho

A primeira prova

Minha primeira viagem

Dia dos Pais

Dar o País de volta aos índios

Mortos homenageados

Planejamento energético da hidroelétrica de Itumbiara

O racionamento

Contabilidade inovadora

Reação paraguaia

Verba e recurso

Engenhosidade

Paulo Afonso e o pragmatismo americano

Delmiro Gouveia

Eugênio Gudin x Paulo Afonso

A história se repetiu em Xingó

Getúlio em São Paulo

A Chesf, Santa Terezinha e São Francisco

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8 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Prefácio

Ao longo de seus mais de 50 anos de existência, o Comitê Brasileiro de

Barragens (CBDB) tem se dedicado precipuamente à produção e à disseminação do

conhecimento sobre a engenharia de barragens nacional. Para tanto, historicamente

realiza eventos que proporcionam o encontro entre os integrantes dos diversos

setores que a compõem (profissional, empresarial, governamental, acadêmico e

outros), com o consequente intercâmbio de informações.

Concomitantemente, e com relevo, publica livros, revistas, anais de eventos,

boletins e informativos, que procuram perenizar o acesso ao conhecimento em

qualquer tempo, por quaisquer interessados. Ainda, na condição de representante

do Brasil na Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB), mantém

intercâmbio de conhecimentos com outros países, contribuindo assim para um

inegável protagonismo do Brasil perante a comunidade técnica internacional.

A memória técnica setorial, cuja elaboração conta com a colaboração de muitos

abnegados, é o instrumento pelo qual o Comitê vai escrevendo gradativamente

a história da engenharia de barragens do Brasil. Entre outras, a série de quatro

livros Main Brazilian Dams, por exemplo, iniciada em 1982, cuja última edição

data de 2009, relata com minúcias técnicas as grandes barragens nacionais, bem

como o desafio que foi construí-las. Tal acervo serviu, serve e continuará servindo

às gerações de profissionais que se dedicam à engenharia de barragens, não só lhes

facilitando a tarefa de projetar, construir e manter esses empreendimentos, como

também instilando neles a necessária confiança para que continuamente possam

inovar e aperfeiçoar suas habilidades.

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Mas como em toda memória técnica impera a exigente disciplina da ciência e

da tecnologia, os textos técnicos são obrigatoriamente formais e, por isso, tornam-

se impessoais e rígidos. O texto técnico, comparado às outras formas de escrita,

é um texto sisudo, absolutamente imparcial, que praticamente não dá margens a

emoções.

Contudo, as obras de barragens, sobretudo os grandes açudes e as hidrelétricas

de nosso país, se deram sempre dentro de um contexto social, econômico e

ambiental candente. Ou seja, um contexto inevitavelmente multifacetado,

complexo, que afeta inúmeras pessoas, seus costumes, hábitos, interesses e futuro.

As obras têm, portanto, profundo significado humano, aspecto que muitas vezes

foge das percepções dos técnicos, muito centrados que estão com suas inescapáveis

obrigações com o tecnicismo.

Entretanto, no sentido oposto, e para nosso gáudio, o colega Flavio Miguez

de Mello mais uma vez nos agracia com seu excepcional discernimento acerca da

realidade ao escrever, selecionar, classificar e organizar – diga-se, com prodigiosa

memória e paciência monástica – textos e fotografias sobre uma série de episódios

que ele próprio vivenciou ou que a ele foram relatados, que se deram ao longo

de um período de aproximadamente 50 anos e, além de representar rara riqueza

cultural, servem para confrontar a exatidão da engenharia com a profusão de

aspectos difusos, e de certo modo “plásticos”, encontrados no exercício da política

e na vida da sociedade humana. Desse contraste resulta o inusitado, o curioso, o

divertido, o histórico. Essa é a cor deste livro.

Os que o lerem – principalmente aqueles que de algum modo participaram dos

empreendimentos mencionados nos episódios – poderão desfrutar de momentos

agradáveis, outros surpreendentes e alguns até hilários, que vão desde as reações,

a simplicidade e a singeleza do homem de educação simples do interior do Brasil

até as reações, a inteligência e a argúcia de experimentados políticos e de outras

pessoas que estiveram na liderança dos processos à época das obras relatadas.

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10 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

O autor, além de ter atuado competentemente como empresário, como professor

universitário e como consultor, é dedicado colaborador de longa data do Comitê,

podendo se afirmar que sua história de vida pessoal se confunde com a própria

trajetória do CBDB, desde sua fundação em 1961, para sorte deste último. Ele teve

a rara oportunidade de conviver com personalidades importantes da engenharia

e da política nacional, que o qualificam e o autorizam a descrever sobejamente os

episódios que dão corpo a este livro.

Flavio Miguez de Mello exerceu várias posições de coordenação e comando

no Comitê, tendo sido seu presidente de 1989 a 1996, bem como atuou como

representante brasileiro junto à CIGB em várias ocasiões, tendo inclusive exercido

a vice-presidência em 1989-1990. Seus reconhecidos dotes como escritor foram

postos à prova, e com sucesso, nos inúmeros artigos que escreveu, nas entrevistas

que concedeu e nos livros que publicou, entre eles, o recentemente lançado A

História das Barragens no Brasil – Séculos XIX, XX e XXI, de cunho essencialmente

memorialista, do qual foi organizador e autor de vários capítulos.

Com esta obra, Flavio Miguez de Mello sem dúvida contribui muito para que

seja preenchida essa lacuna “humana”, com frequência ausente nas memórias

técnicas, mas cujo conhecimento de seus principais aspectos é fundamental para

compreensão dos efeitos que as intervenções com obras causam na sociedade.

Sociedade que, enfim, a engenharia deve bem servir.

Desejamos a todos uma boa leitura!

ERTON CARVALHOPresidente do CBDB

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A grande maioria dos fatos narrados a seguir teve a minha participação. Outros

foram transmitidos para mim desde a metade do século XX, por engenheiros

ilustres, personagens centrais do desenvolvimento da construção civil no Brasil

com quem tive o privilégio de conviver profissionalmente.

Esta coletânea de textos tem como objetivo divulgar fatos pitorescos e históricos

envolvendo esses grandes profissionais, evitando que caiam no esquecimento por

ausência de registro.

Desde já expresso o meu profundo respeito por todos que aqui são citados, com

cuja maioria tenho o privilégio de também manter uma sincera e profunda amizade.

Introdução

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12 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

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O DOutOr

Nos primórdios do século XX, o engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de

Brito (1864-1929) estava em um pequeno vilarejo, no interior do Brasil. Era noite

e a maioria dos moradores já havia se recolhido. Foi quando um caboclo foi em

sua direção e praticamente o sequestrou, levando-o em um cavalo até o sítio onde

morava.

Disse ao ilustre engenheiro: “Sei que o senhor é um doutor. Minha mulher está

doente. O senhor vai levar a cura para ela. Mas, se ela morrer, o senhor morre

também.” Ele não conseguiu explicar ao homem que era doutor, mas não médico,

e nem mesmo tinha a quem recorrer para pedir ajuda.

Saturnino de Brito chegou ao sítio e, após um rápido exame, verificou que a mulher

já havia falecido. Temendo pela própria vida, optou por não externar o diagnóstico

ao recém-viúvo e disse que seria preciso transportar a mulher para o vilarejo.

Improvisaram uma maca e conduziram o corpo com muito cuidado – e, para

alívio dele, suficientemente devagar para que, quando chegassem lá, os habitantes

já estivessem acordados. Ao chegar, Saturnino aproveitou o momento em que

estavam passando em frente à delegacia e se precipitou sobre o delegado, pedindo

urgente proteção, no que foi atendido.

O OutrO DOutOr

Não é de se admirar que situações como essa vivenciada por Saturnino de

Brito acontecessem no passado, especialmente se considerarmos o baixo nível de

escolaridade no Brasil. É um cenário que se agrava porque grande parte das obras

de engenharia no País é realizada em rincões mais afastados.

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14 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Em maio de 2013, ao narrar o fato acima ao médico ortopedista Edilberto

Ramalho, ele me relatou uma situação parecida que aconteceu na cidade onde

nasceu, Russas (CE). Era início dos anos de 1950 e estavam em curso os trabalhos

preliminares para a construção do açude Santo Antônio, próximo às terras da fazenda

Tourão, pertencente ao avô dele, o coronel da Guarda Nacional Bruno Epaminondas

de Oliveira.

Dr. Ramalho lembra que um dia o engenheiro-residente da obra, que estava

hospedado na fazenda Tourão, foi sequestrado por um sertanejo. Simples e direto,

este disse que a sua mulher estava há horas em um difícil trabalho de parto e nem

a mais experiente parteira da região se sentia capaz de salvar mãe e filho.

A história se repetia. Não houve como convencer o sertanejo de que o engenheiro

não era doutor de medicina. Quando chegou ao local do parto, veio o momento de

alívio. A mulher tinha acabado de dar à luz e ele pôde respirar aliviado.

Por situações como essas, não era incomum que no passado os engenheiros em

serviço nas regiões mais remotas do território nacional acrescentassem à bagagem

livros básicos de medicina prática, como os do autor Chernoviz, conforme indica o

professor Pedro Carlos da Silva Telles em seu livro História da Engenharia no Brasil.

Talvez por esse motivo, nessa época, o professor Raul Eloi dos Santos era

catedrático da Escola Politécnica e da Faculdade de Medicina.

EugêniO guDin

Eugênio Gudin, ícone da engenharia e da economia, viveu intensamente a época em

que os engenheiros praticamente assumiam a economia. Eram bons tempos.

Formado em engenharia pela Escola Politécnica da Universidade do Brasil, hoje

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele vivenciou momentos históricos

do País: nos seus primeiros dois anos de vida, a época da escravatura; a Proclamação

da República em sua tenra infância; e, na juventude, a Primeira Guerra Mundial e

o crash de 1929. Por ocasião da Segunda Guerra Mundial, Gudin representou o

Brasil na Conferência de Bretton Woods, que estabeleceu as diretrizes das relações

comerciais entre os países mais industrializados do mundo na época.

Ele acompanhou todas as importantes transformações do século XX. Criou o

primeiro curso de Economia na UFRJ, pregou o liberalismo econômico, o controle

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da inflação – sem muito sucesso com os políticos de sua época –, o equilíbrio fiscal

e o câmbio flutuante. Lutou contra o protecionismo, o desperdício dos recursos

públicos e o gigantismo estatal, tendo sempre valorizado a educação. Ele costumava

dizer que “é fundamental educar os professores”.

Participou da implantação da primeira usina geradora de energia da Rio-Light,

que continha a primeira grande barragem do Brasil - Lajes, concluída em 1906 -, e

de represas no Nordeste, uma das quais leva o seu nome.

Foi ferrenho opositor ao governo Juscelino Kubitschek, a quem chamava de

playboy, e a sua meta síntese: Brasília. Nos festejos de comemoração da mudança

da capital, o então presidente do Brasil, com uma grande comitiva, estava em

um palanque apreciando as arriscadas manobras da Esquadrilha da Fumaça da

Força Aérea Brasileira (FAB), quando três dos aviões, em manobra emocionante,

mergulharam sobre o palanque.

Assustadas, as pessoas procuraram um refúgio; foi um verdadeiro alvoroço.

Aliviadas e recompostas depois do susto, ouviram alguém dizer, em voz alta, que

os três pilotos eram Eugênio Gudin, Carlos Lacerda e Gustavo Corção.

Hoje há economistas em todos os postos da economia. Em novembro de

2013, a presidente do Brasil, que é economista e sofreu um grande desprestígio

político causado pelo famoso “pibinho” de 0,9%, o menor PIB dos BRICS em

2012, informou que o IBGE iria efetuar a correção para 1,5% (ainda pequena,

mas 66% maior do que havia sido divulgado). Dois dias depois, os economistas

do IBGE efetuaram a correção com um acréscimo de apenas 0,1%, passando o

“pibinho” para 1%. Ao veicular a notícia, o jornalista João Borges afirmou: “O

governo, que errava as previsões sobre o futuro, agora erra também as previsões

sobre o passado.”

O tEnEbráriO

Tenebrário é um grande candelabro triangular que, na Semana Santa, é usado

nas celebrações da Igreja Católica. São acesas 15 velas que, progressivamente, são

apagadas até que se dá a treva total.

Essa é a imagem do desmonte da indústria de energia elétrica no Brasil na primeira

metade do século XX, o que impediu o progresso nacional, em uma época em que

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16 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

países como Estados Unidos, Canadá e muitos da Europa ocidental experimentaram

um intenso desenvolvimento catalisado pela ampla oferta de energia elétrica.

Embora desde a virada do século XIX para o XX já houvesse pressões

positivistas para estatizar esses serviços no País, o crescimento do parque gerador

foi fortemente freado por movimentos que posteriormente seriam chamados

de nacionalistas. Isso se deu aos poucos, inviabilizando progressivamente as

possibilidades de implantação e ampliação de sistemas de geração, transmissão e

distribuição de energia elétrica.

A Constituição de 1891 concedia autonomia a estados e municípios para

promover concessão de serviços de energia elétrica. Com isso, os sistemas elétricos

eram sempre implantados e operados pela iniciativa privada ou em alguns casos,

por municípios, resultando, em 1930, em mais de 1 mil concessionários.

Entretanto, nessa época, já havia dois grandes grupos estrangeiros: a canadense

Light, que conseguiu as concessões em importantes mercados como do Rio de

Janeiro, São Paulo e municípios vizinhos; e a americana Amforp, que abrangia

diversos municípios da Região Sul à Nordeste.

A insegurança jurídica se deteriorou a partir da posse de Getúlio Vargas em

1930. Sete anos depois, o País passou a ser dirigido por decretos-lei, também

chamados de decretos executivos. Era a ditadura do Estado Novo.

A figura do tenebrário começou a ficar mais marcante a partir de 1931, ano em

que foram proibidos negócios em terras nas quais houvesse cursos d’água com

potencial energético. Teoricamente, as empresas não mais podiam expandir as

suas capacidades de geração de energia em novas usinas hidroelétricas.

As dificuldades ficaram economicamente intransponíveis a partir de 27 de

novembro de 1933, com a proibição da cláusula ouro, que até então era contratual

e estabelecia uma correção cambial nas tarifas, protegendo da inflação as

concessionárias de serviços de energia elétrica.

Essa foi a maior quebra de contrato ocorrida no País até aquela data.

Posteriormente, a magnitude dessa quebra de contrato foi, por várias vezes,

ultrapassada por diversos governos. A mais conhecida já registrada em nossa

história foi o sequestro de bens monetários estabelecido no dia da posse de

Fernando Collor de Mello como presidente da República, em 1990.

Em seu diário, naquele funesto dia de 1933, Getúlio Vargas escreveu, revelando a

sua ignorância sobre economia e seu despreparo gerencial: “Assinei decreto abolindo

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pagamentos em ouro feitos obrigatoriamente no Brasil. Isso atinge principalmente

as empresas de serviços públicos, a Light entre outras, causando excelente efeito no

público.” Ficou clara também a preocupação com a demagogia.

O tiro de misericórdia veio em 1934, com o Código de Águas, pelo qual as

tarifas passaram a ser fixadas com base no custo histórico dos investimentos

realizados na implantação de usinas geradoras e de sistemas de transmissão e de

distribuição.

Nos cálculos das tarifas não eram permitidas considerações relativas à

desvalorização monetária e à inflação. Pelo Código de Águas, também não mais

podiam ser feitas ampliações nas hidroelétricas até que os contratos de concessão

fossem revisados – o que nunca aconteceu.

Um curioso e revelador diálogo ocorreu em 1942, oito anos após a assinatura do

Código de Águas, entre Getúlio Vargas, presidente da República, e Eugênio Gudin,

renomado engenheiro especializado em economia. Nessa ocasião, Vargas perguntou

a Gudin qual era o significado de custo histórico, o que revelou a leviandade com que

a legislação do setor elétrico havia sido tratada por tanto tempo.

A cEnsurA

Após a promulgação do Código de Águas, o estrangulamento econômico das

empresas concessionárias levou a uma estagnação do setor elétrico e a graves

deficiências de suprimento de energia no Brasil.

Anos depois, esse cenário acabou levando à criação das estatais federais – a

primeira foi a Companhia Hidroelétrica do São Francisco S.A. (Chesf), no Nordeste

– e estaduais, principalmente em São Paulo e Minas Gerais.

As consequências foram trágicas. Mas não foram suficientes para abalar o senso

de humor dos cariocas, como comprovam algumas recordações da minha infância.

Recordo algumas marchinhas de Carnaval criadas nos anos 1950 que remetiam a

essa situação: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta

luz.” Ou ainda: “Acende a vela Iaiá, acende a vela, porque a Light cortou a luz, no

escuro não vejo aquela carinha que me seduz.”

Eu tive a oportunidade de relatar algumas dessas questões sobre o desenvolvimento

da indústria de produção de energia elétrica no Brasil em um trabalho apresentado à

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18 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

XIV Convenção da UPADI, a União Panamericana de Associações de Engenheiros

(sigla em espanhol), em 1976, em coautoria com Flavio H. Lyra.

Naquela época, um executivo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE) teve acesso ao trabalho e pediu autorização para publicá-lo em uma revista

técnica da instituição. Isso de fato aconteceu, mas, como tinha muitas críticas ao

governo federal, o material acabou sendo parcialmente censurado.

Lembro que foi retirado, por exemplo, o trecho que questionava o desmonte das

empresas do setor elétrico nos anos 1930, que acarretou em graves consequências ao

desenvolvimento nacional. Dessa forma, fui incluído entre os atingidos pela censura

brasileira, o que hoje, para tantos, passou a ser um importante predicado na política

nacional para angariação de prestígio e de votos em eleições.

tEmpOs DifErEntEs: A cOnstituiçãO DE furnAs

No início do governo Kubitschek, em 1956, estava claro que havia urgência

em adicionar uma grande potência hidroelétrica na Região Sudeste. O potencial

considerado ideal havia sido localizado no rio Grande pela Cemig, em expedição dos

engenheiros Francisco Noronha e Anton Rydland no local conhecido por corredeiras

de Furnas, nas proximidades da fazenda do engenheiro José Mendes Júnior.

O engenheiro Lucas Lopes, parceiro de primeira hora de Juscelino Kubitschek

de Oliveira e que havia idealizado a Cemig no governo do estado, nessa época já

presidente do BNDE, tendo em vista o porte do empreendimento a ser implantado,

naquela altura uma das maiores obras hidráulicas do mundo, propôs a constituição

de uma empresa estatal federal e submeteu sua estrutura organizacional ao

presidente da República no Palácio Rio Negro, residência de verão dos presidentes,

situada em Petrópolis na época em que o distrito federal era no Rio de Janeiro e o

uso de ar condicionado ainda não era difundido.

Lucas Lopes indicou a diretoria executiva composta pelo que se tornou o famoso

tripé, responsável pelo sucesso inicial da empresa: na presidência, o engenheiro

John Reginald Cotrim; na diretoria técnica, o professor Flavio Henrique Lyra da

Silva; e, na diretoria de administração, o engenheiro Benedito Dutra, profissionais

de elevada capacidade e inteiramente intercambiáveis nas suas funções.

Ao receber a proposta de organização da empresa, JK indagou: “E eu? Não

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 19

sobrou nada para mim nessa diretoria?” Lucas Lopes corajosamente respondeu

que não, pois a empresa necessitava de pessoas as mais gabaritadas e corretas

para alcançar o sucesso pretendido e, assim, não comportaria indicações político-

partidárias; porém acrescentou: “Mas o senhor tem as vagas do conselho de

administração, que não será executivo.” JK respondeu: “Ah bom, então, Lucas,

quero você na presidência do conselho de administração.”

A estrutura administrativa inicial de Furnas sem ingerências políticas foi, sem

dúvida, o fator preponderante que garantiu o sucesso da implantação da usina e o

prosseguimento da empresa para outros empreendimentos posteriores.

O cAbOclO E As águAs DO rEsErvAtóriO DE pEixOtO

Nos anos 1960, a Companhia Paulista de Força e Luz, empresa do grupo americano

Amforp, estava concluindo as obras da barragem de Peixoto, no Rio Grande. Essa

seria a maior usina geradora do País até a entrada em operação de Furnas.

Os trabalhos na área do extenso reservatório eram intensos, com ênfase na

relocação dos moradores que ocupavam as áreas que seriam alagadas. A equipe de

campo sinalizou a curva de nível correspondente às margens do reservatório com

o objetivo de deixar claro para a população local até onde iria a inundação.

Porém, um morador resistia a todas as investidas, alheio à programação de

fechamento do túnel de desvio estabelecida para curto prazo. A equipe de campo,

então, conversou com ele, que argumentou: “Vocês não disseram que as águas vão

subir até aquela estaca branca que foi colocada lá em cima? Pois é, eu tirei a estaca

de lá e a coloquei lá em baixo, perto do rio.”

A OpOsiçãO A furnAs

A constituição de Furnas teve ferrenhas oposições, vindas, principalmente,

de Minas Gerais. O governador Bias Fortes receava que os recursos a serem

direcionados para a construção de Furnas inibissem a implantação da hidroelétrica

de Três Marias e costumava dizer que “Minas não será a caixa-d’água do Brasil”.

Com a garantia dos recursos federais para a implantação de Três Marias, criou-

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20 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

se um ambiente político mais propício para que se prosseguisse a construção

de Furnas. Entretanto, até a última hora houve problemas. Quando estava tudo

acertado, Bias Fortes fez ainda mais uma exigência: queria que a sede da empresa

fosse situada em Minas Gerais.

Foi um grande problema, já que a percepção era de que nem mesmo a maior

cidade mineira estaria naquela época capacitada para acolher a gerência de um

empreendimento do vulto de Furnas. Ainda mais que na mesma área de atuação já

havia uma grande demanda de recursos humanos pela recém-criada Cemig.

Essa nova situação deixou Lucas Lopes desnorteado. Estava tudo preparado

para que a base de operações ficasse no Rio de Janeiro, na época, a capital federal,

que abrigava as mais importantes empresas federais como Petrobras, CSN, Chesf,

Vale do Rio Doce, entre outras.

John Cotrim veio com a solução: a sede seria na pequena cidade mineira de

Passos, situada próximo ao reservatório a ser implantado; e o escritório central,

no Rio de Janeiro. Sem revelar esse estratagema, JK pôde garantir essa derradeira

exigência do governo de Minas Gerais. Durante décadas, as atas das reuniões da

diretoria e do conselho vinham referidas a Passos, mesmo que nunca tivessem, de

fato, sido realizadas lá.

A vOltA DOs quE nãO fOrAm

O fato acima ocorreu em meados dos anos 1950. Sessenta anos depois, já na

segunda década do século XXI, o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) tentou

obrigar a transferência da sede de Furnas para Minas Gerais. Ele era apoiado pelo

ex-presidente da Eletrobras, Aloísio Vasconcelos, também mineiro, que havia sido

diretor da Cemig.

Furnas começou com uma usina em Minas Gerais, mas hoje tem importante

atuação em vários estados do País. Após admitir a inviabilidade de sua campanha

bairrista por uma volta cuja ida jamais havia ocorrido, o deputado concluiu que “a

bancada queria a volta de Furnas para Minas. Não havendo essa possibilidade, a

bancada optou por querer mineiros na direção, o que conseguimos.” Ele se referia

à nomeação à presidência da empresa do competente engenheiro mineiro Flávio

Decat, de extensa experiência no setor elétrico.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 21

EmOçõEs Em Jupiá

Um dos fortes opositores à constituição de Furnas foi o governador de São Paulo,

Jânio Quadros, mas Lucas Lopes e John Cotrim conseguiram reverter a posição

contrária do governador, que propôs não continuar se opondo à implantação de Furnas

se o governo federal apoiasse a implantação de duas hidroelétricas no estado de São

Paulo. Uma delas era Jupiá, hidroelétrica de dimensões inusitadas, situada no rio Paraná.

A outra era Caraguatatuba, que retiraria cerca de 50 m³/s do rio Paraibuna, formador

do rio Paraíba do Sul, transpondo suas águas para a vertente oceânica da Serra do Mar.

O governo federal teve que se comprometer com esses dois projetos. Caraguatatuba,

entretanto, jamais saiu do papel por causa dos intensos impactos ambientais que

seriam adicionados aos já outros tantos existentes na bacia hidrográfica do rio

Paraíba do Sul.

Por outro lado, as obras em Jupiá continuaram durante o governo do professor

Carvalho Pinto, cuja candidatura foi apoiada por Jânio Quadros. Depois dele, entretanto,

assumiu como governador Adhemar de Barros, de uma coligação política contrária.

Temerosos de uma descontinuação nas obras de Jupiá, os empreendedores – o

concessionário Celusa, depois CESP, e seus contratados – convidaram o novo

governador eleito para uma visita ao canteiro de obra.

Para impressionar o governador, foi criada uma intensa atividade no canteiro

de obra. O engenheiro Fabio De Gennaro Castro lembra ainda que um almoço foi

servido no Hotel Urubupungá, construção feita pela Celusa, com a finalidade de

recepcionar convidados especiais. Logo após, Adhemar colheu enfeites da mesa

e uma enorme abóbora para levar para o Dr. Ruy, cognome de sua companheira

que teve seu famoso cofre assaltado em Santa Teresa, bairro do Rio de Janeiro, por

opositores ao regime vigente na época e que hoje são políticos famosos.

Após a visita de campo, o residente da Celusa e chefe da obra, engenheiro Darcy

Andrade de Almeida, proferiu uma palestra descrevendo o empreendimento, que era

gigantesco para a época e mesmo para os dias atuais. Vale destacar que Jupiá era a

primeira etapa do que na época era chamado de Complexo de Urubupungá, que viria

posteriormente a incluir a hidroelétrica de Ilha Solteira.

Darcy tinha sobre os ombros a difícil responsabilidade de sensibilizar o governador

para evitar que a construção fosse paralisada. Ao final da palestra, sem ter certeza

de que estava sendo bem-sucedido, ele comentou que a montante (rio acima) havia

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22 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

outro projeto potencial, denominado Ilha Solteira, que seria uma hidroelétrica quase

três vezes maior do que Jupiá. Os engenheiros José Gelásio da Rocha e Og Pozzoli,

presentes no evento, relataram-me que Adhemar agradeceu a palestra e, na sua

fala, mostrou surpreendente conhecimento sobre os problemas energéticos locais.

Ele disse que a demanda de energia elétrica estava crescendo a uma taxa de cerca

de 7% ao ano e que garantir o suprimento era fundamental para o desenvolvimento

do estado. Arrematou afirmando que São Paulo não poderia ficar dependendo dos

humores do governo federal. “Por favor, prossigam com esse ritmo de construção

aqui, mas iniciem amanhã o projeto dessa outra grande usina”, falou Adhemar. Foi

uma explosão de alegria.

EmOçõEs nA pOlitécnicA

No centro do hall das magníficas escadas curvas, no segundo andar do prédio

da UFRJ, no Largo de São Francisco, onde estava sediada a Escola Nacional de

Engenharia, havia uma escultura de um combatente do Exército Nacional em

posição de ataque.

Era uma homenagem aos alunos da escola que participaram da Força

Expedicionária Brasileira (FEB), na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. O

engenheiro Almôr da Cunha relatou que, no retorno dos pracinhas ao Brasil, após

o término das hostilidades na Europa, os estudantes de engenharia organizaram

uma coleta de contribuições no centro do Rio de Janeiro. O objetivo era fazer uma

escultura e uma placa com o nome dos seus companheiros que participaram da FEB.

A responsável por esse trabalho foi a artista Celita Vaccani, parente do saudoso

professor Mota Resende. A escultura permaneceu por três décadas em um local de

destaque no prédio da Escola Nacional de Engenharia.

Em um verão no início dos anos 1960, houve uma mudança parcial das

instalações para a Cidade Universitária, que passou a abrigar o primeiro ano letivo

dos egressos em 1966. O grupo ficou conhecido como a Turma Desbravadora, por

ter sofrido, nos dois primeiros anos, com as então precárias instalações do Centro

de Tecnologia da Cidade Universitária, que ficavam em meio a obras intermináveis.

Durante esse período, a maioria das disciplinas de quase todos os cursos a partir

do terceiro ano letivo permanecia sendo ministrada no prédio do Largo de São

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 23

Francisco. Somente em 1967 é que se formaram os pioneiros da Escola na Cidade

Universitária, componentes da ênfase em engenharia hidráulica do curso de

engenheiros civis que fizeram o curso em todos os períodos com aulas no Centro

de Tecnologia da Cidade Universitária. Os formandos foram André Koff Santana,

Edmundo Daudt da Veiga, Urbano Cagnin e eu.

Ao longo desse período, e em anos posteriores, à medida que as instalações

na Cidade Universitária iam melhorando, os cursos de engenharia foram

progressivamente sendo transferidos. O prédio do Largo de São Francisco passou

a ser ocupado pelo Instituto de Geociências e, posteriormente, pelo Instituto de

Filosofia e Ciências Sociais.

A escultura permanecia no prédio do Largo de São Francisco, já sem os

professores e estudantes de engenharia. A placa de bronze com o nome dos

expedicionários, que era valiosa, acabou sendo roubada do pedestal. Era uma época

de confrontos entre estudantes e militares e a escultura do militar – já sem a placa

que indicava o que representava – acabou danificada. A artista responsável, ao

descobrir o ato de vandalismo, retirou a sua obra do prédio e, após reabilitá-la,

entregou-a para a Associação dos Ex-Combatentes do Brasil.

Muitos anos depois, o professor Afonso Henriques de Brito, diretor da Escola

na época da mudança para a Cidade Universitária, me pediu, na qualidade de

presidente da Associação dos Antigos Alunos da Politécnica, que procurasse a

escultura que havia desaparecido.

Por mero acaso, Francisco Ascenso, em visita à Associação dos Ex-Combatentes,

viu a escultura. Iniciamos então a operação de resgate da obra. Em um primeiro

momento, a situação parecia complicada, pois o presidente da entidade, sargento

Rubens Leite de Andrade, tinha fama de ser pessoa de trato difícil.

Foi então que descobri que no período pós-guerra ele e sua família costumavam

passar as férias na fazenda do meu sogro. Marquei uma entrevista com ele e levei

comigo um dos pracinhas homenageados na escultura, o engenheiro João Ribeiro

Natal. A sua participação e a antiga amizade com a minha família dobraram o

sargento Andrade.

A partir desse dia, passei a vivenciar fortes emoções. Decidimos realizar

uma cerimônia na Universidade e, para isso, precisei descobrir os nomes dos

pracinhas que compunham a placa original. Eram eles: Djalma Dutra Ururay,

Glauco de Castro Silva, João Ribeiro Natal, Kalil Rubez Primo, Luiz Andrade

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24 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Cunha, Maurício Carneiro Luz, Murilo Moraes Leal, Salomão Malina e Zeferino

Cattapretta de Faria.

Conversei com os que ainda estavam vivos e com as famílias daqueles que haviam

falecido. Cada contato era revestido, inicialmente, de alguma desconfiança, mas

também de muita emoção. Finalmente, no dia 15 de setembro de 2004, organizamos

uma tocante cerimônia no salão nobre do prédio do Largo de São Francisco, da qual

participaram em trajes de gala os membros da Associação dos Ex-Combatentes, os

membros da Associação dos Veteranos da FEB – sob a liderança de seu presidente,

coronel Sérgio Gomes Pereira –, o coronel Goulart, representando o esquadrão de

caça Senta a Pua, e a major Elza Cansanção, representando o corpo de enfermeiras

da FEB, entre outros.

Junto com a escultura, recebemos uma carta cujas palavras demonstraram toda

elegância e desprendimento dos ex-combatentes:

O nosso coração resolveu devolver aquele troféu, que nos foi entregue sem um braço e sem o fuzil. Troféu esse que gentilmente foi recomposto e que vinha ornando a sala de espera da Associação. Talvez se não tivéssemos a certeza de que seríamos extintos pelo falecimento de todos os seus associados [...]. Nossa casa vai ficar muito vazia, já que a peça mais importante era o Ex-Combatente feito pela grande escultora Celita Vaccani. Mas o melhor que fazemos é entregá-la a essa tradicional Escola de onde saíram tantos engenheiros.

EcOs DA guErrA DE cAnuDOs

Os anos 1950 assistiram a grande atividade do Departamento Nacional de

Obras Contra as Secas (DNOCS) na construção de açudes no Nordeste visando ao

combate aos efeitos das secas. Um desses açudes foi projetado para ser implantado

no rio Vaza Barris, em local apropriado para construção de barragem fechando um

vale em local de ombreiras mais próximas entre si para a implantação de um açude

denominado Cocorobó, que submergiu sob 246 milhões de metros cúbicos de água

o local da vila de Belo Monte onde milhares de pessoas compartilharam terra,

água e comida, sob a liderança de Antônio Conselheiro, que manifestava simpatias

pela monarquia e horror pelos impostos.

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Historicamente, a vila já havia sido arduamente defendida por sua população no

conflito conhecido como Guerra de Canudos, ocorrido no final do século XIX. Os

jagunços foram derrotados em 1897, após cinco expedições armadas, duas das forças

policiais baianas e três do Exército Nacional. Esse triste episódio da história do

Brasil é narrado por uma testemunha ocular de uma das campanhas, o engenheiro

Euclides da Cunha, em artigos para um periódico de São Paulo e, posteriormente,

no seu livro Os Sertões. Foi também brilhantemente narrado por Mario Vargas Llosa

em La Guerra del Fin del Mundo.Cerca de 60 anos após o término do conflito, o DNOCS iniciou a construção

da barragem de Cocorobó, tendo na direção o engenheiro José Cândido Castro

Parente Pessoa.

Entretanto, ainda hoje existem divergências quanto aos objetivos reais da obra.

De fato, o local do eixo da barragem era o mais indicado para a construção, mas

historiadores afirmam que um dos objetivos da obra seria naufragar as ruínas de

Belo Monte. Hoje, somente quando há uma estiagem intensa e prolongada é que

aparece sobre as águas represadas a parte superior da torre da igreja de Antônio

Conselheiro, que foi bombardeada pela artilharia federal. Considerando ser a

área distante de qualquer infraestrutura urbana de porte para a construção da

barragem, foi necessária a instalação de todos os equipamentos urbanos, inclusive

de um cemitério.

Quando em visita à obra, após o jantar, José Cândido ficava ouvindo as

histórias contadas pelo Pedrão, derradeiro chefe dos jagunços e um dos raríssimos

sobreviventes. Ele conseguiu escapar com vida por ter saído de Belo Monte para

tentar enfrentar, sem sucesso, a quinta expedição militar, que veio do Sul. Pedrão, que

posteriormente havia se refugiado na divisa de Piauí com Maranhão, foi beneficiado

com um indulto e pôde retornar ao local de Belo Monte. E, com idade avançada,

acabou falecendo na época da construção da barragem. Como foi o primeiro a morrer

durante a obra – mesmo não tendo trabalhado nela –, foi enterrado na cova n° 1,

próximo à entrada do cemitério.

Sete décadas depois da Guerra de Canudos, pouco após o sepultamento de

Pedrão, apareceu no DNOCS um coronel do Exército brasileiro questionando

veementemente o engenheiro José Cândido por ter sido um “inimigo da república”

sepultado na sepultura n°1, na entrada do cemitério!

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26 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

ObrA mOnumEntAl

Recentemente o Clube de Engenharia celebrou o centenário da inauguração da

Avenida Rio Branco, originalmente denominada Avenida Central. O engenheiro

Paulo de Frontin queria implantar uma obra monumental cortando o centro da

capital federal. Para tanto projetou uma largura de 50 metros.

O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Pereira Passos, entretanto, considerou

a largura exagerada e fixou o máximo de 30 metros. A decepção foi generalizada

entre os responsáveis pela comissão construtora da avenida. Foi então que veio

a ideia do engenheiro João Travassos de fazer a demarcação com 33 metros, um

acréscimo de 10% em relação ao que havia determinado o prefeito, sob o argumento

de que 33 era “a idade de Cristo”. Consciente de que Pereira Passos não iria medir

a avenida para conferir a largura, Frontin levou adiante a sua decisão.

O prefeito só soube da largura real muito tempo depois, quando não mais era

possível modificá-la.

pEDrO DE AlcântArA

Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier

de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Habsburgo e Bragança era

conhecido no Brasil como Dom Pedro II.

Quando viajava pelo exterior – sempre às suas próprias custas –, gostava de ser

tratado apenas por Pedro de Alcântara. Descendente das nobres casas de Bragança,

de Portugal, e de Habsburgo, da Áustria, das quais herdamos as cores verde e

amarela de nossa bandeira, ele era entusiasta e estudioso das artes, das ciências e

da tecnologia. Participava dos eventos mais importantes do desenvolvimento da

engenharia no País.

Dom Pedro II introduziu no País a meteorologia e a pluviometria. Ele fazia

pessoalmente os registros das chuvas que castigavam Petrópolis (RJ) no verão,

inclusive a intensa e longa precipitação de 22 dias ocorrida em dezembro de 1861.

Naquela ocasião, os rios Piabanha e Quitandinha, este em frente ao Paço Imperial,

registraram níveis d’água muito acima do normal.

Para os que nos precederam na engenharia hidráulica e na geotecnia, ele foi um

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 27

incentivador, pois discutia os problemas de drenagem e de métodos de estabilização

das encostas petropolitanas com os engenheiros da corte. Em 1862, o imperador

acendeu, pela primeira vez no Brasil, uma lâmpada elétrica. A experiência

laboratorial aconteceu no prédio da Escola Central do Rio de Janeiro, pioneira do

ensino de engenharia nas Américas. Dali se originaram a Academia Militar das

Agulhas Negras e a Escola Politécnica da UFRJ.

Em fevereiro de 1879, Dom Pedro II inaugurou a primeira instalação do País

de iluminação elétrica em caráter permanente, na estação terminal da Estrada de

Ferro Pedro II, hoje a Central do Brasil. Esse foi considerado o primeiro marco da

iluminação elétrica do País.

Dois anos depois, durante uma visita à Escola de Minas de Ouro Preto, da qual era

o grande protetor, o imperador participou da primeira demonstração de uma lâmpada

incandescente a vácuo que Thomas Edison havia inventado menos de três anos antes.

Os eventos realizados na já Escola Politécnica tinham o prestígio da participação

do imperador, que despachava em uma sala no segundo andar, conhecida até hoje

como a Sala do Trono. No dia 22 de junho de 1874, ele inaugurou a operação do

primeiro cabo telegráfico submarino que saía do prédio da Biblioteca Nacional. O

equipamento foi instalado por Irineu Evangelista de Souza, Barão de Mauá, que

por esse feito foi elevado a visconde.

O entusiasmo do imperador foi tanto que ele enviou diversos telegramas,

inclusive para autoridades do exterior. O primeiro deles foi para o seu sobrinho,

Dom Luiz, rei de Portugal. A lista incluiu ainda a rainha Vitória, do Reino Unido,

o presidente Ulysses S. Grant, dos Estados Unidos, o marechal Mac-Mahon,

presidente da França, o imperador Guilherme, da Alemanha, e o rei Victor

Emanuel, da Itália.

Sempre que podia, acompanhava o dia a dia da Escola Politécnica, participando

de conferências, congressos, assistindo a exames de alunos e concursos para

contratação de profissionais. O professor Pedro Carlos da Silva Telles relembra

um relato do Visconde de Taunay que ilustra bem isso: em uma oportunidade,

ao descer de Petrópolis, o imperador parou para inspecionar uma aula prática de

topografia e astronomia, que na realidade era mais um passeio pelo campo do

que uma aula. Ele perguntou ao professor se eles estavam fazendo observações

astronômicas e obteve como resposta que “sim, isso é feito todas as noites em que

não há chuva.”

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28 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Em seguida, questionou: “Com que instrumentos?” O professor respondeu:

“Temos uma excelente luneta.” O imperador, desconfiado, quis ver a luneta. A caixa

estava trancada e sem chave. Quando finalmente foi encontrada, ficou claro que o

instrumento não havia sido usado fazia muito tempo. A situação foi constrangedora.

Dom Pedro II resolveu usar seus próprios recursos para custear 151 bolsas

de estudo para jovens talentosos, 41 das quais no exterior. Aliás, um professor

complexado seria um de seus adversários no golpe da Proclamação da República,

em 1889.

Benjamin Constant Botelho de Magalhães era um homem de estatura modesta,

com 1,55 metro, de espesso bigode e cavanhaque ralo. A voz era cavernosa e ele

preferia roupas pretas à farda militar de tenente-coronel. Durante a Guerra da

Tríplice Aliança, contra Solano López, foi severo crítico do Duque de Caxias,

comandante e chefe dos aliados na fase decisiva da guerra. Benjamin Constant,

entretanto, permaneceu por apenas um ano na guerra e não participou diretamente

de nenhum combate, ficando dedicado a tarefas de logística.

Em criança, foi aluno displicente do Colégio São Bento, o qual, depois de mais

de dois anos de insucessos, teve que abandonar. Posteriormente, as decepções da

vida profissional, entre as quais não ter conseguido cadeiras de professor em cinco

concursos públicos, fizeram com que assumisse posições contra a monarquia, mesmo

tendo sido convidado por Dom Pedro II para ser professor de matemática dos seus

netos no Palácio da Quinta da Boa Vista, hoje Museu Nacional, a cargo da UFRJ.

Por não conseguir manter-se com os salários de professor, contraiu pesados

empréstimos que, somente no Banco Auxiliar, chegaram a equivaler a seis meses dos

seus salários em diversas instituições de ensino. Sobre esse personagem, o historiador

Renato Lemos, professor da UFRJ, afirmou: “A malfadada vida foi o caldo de cultura

de radicalização política de Benjamin Constant.”

Ao longo da sua trajetória, Benjamin Constant Botelho de Magalhães deu aulas

de matemática na Escola Normal, no Instituto Comercial, no Instituto dos Cegos

(dirigido por seu sogro), na Escola Central e na sua sucessora Escola Politécnica,

ajudando a formar engenheiros. Em 1872, foi prestar concurso para professor da

Escola Militar na presença de Dom Pedro II, que, como dito antes, acompanhava

com invulgar interesse a evolução do conhecimento da época.

Na presença do monarca, fez questão de declarar-se seguidor de Auguste Comte,

positivista e, consequentemente, favorável a uma ditadura e contrário à monarquia.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 29

Consultado, o imperador disse que não via qualquer problema com relação a esse

aspecto. Benjamin pôde prestar o concurso. Foi aprovado.

Foi na Escola Militar que ele mais conspirou contra a monarquia, exercendo

intensa influência nos cadetes e nos militares. O curioso é que, nessa instituição, apesar

de militar, a disciplina não era virtude frequente. Um exemplo foi o que aconteceu no

dia 3 de novembro de 1888, um ano antes da Proclamação da República. Os alunos

combinaram um ato hostil ao ministro da Guerra, o conselheiro Thomaz Coelho.

Ao passar a tropa em revista, ele ouviria um “Viva a República!” Na última hora, os

cadetes não se manifestaram por receio das penalidades. Um exemplo de rigidez maior

aconteceu com Euclides Rodrigues da Cunha. Depois de tentar, sem sucesso, quebrar

a sua própria espada, ele jogou-a ostensivamente no chão. Resultado: foi expulso da

Escola Militar e preso na fortaleza de Santa Cruz, em Niterói, onde permaneceu por

um mês. Depois de um piedoso telegrama do imperador, foi libertado. Ingressou

na Escola Politécnica, tornou-se engenheiro, jornalista e escritor, tendo registrado

no seu livro Os Sertões os vexames do Exército brasileiro nas sucessivas derrotas

e, posteriormente, no massacre de Canudos, ocorrido em 1897, no governo do

presidente Prudente José de Morais e Barros.

A propósito, o prestígio do imperador foi sempre muito elevado, mesmo após a

Proclamação da República e a queda da monarquia. Quando os republicanos assumiram

o governo, tentaram apagar qualquer vestígio do regime anterior.

Mas, nas eleições de agosto de 1889, apenas três meses antes do golpe republicano,

a soma dos votos dos republicanos foi medíocre, não tendo chegado a 15% do total. A

lista de republicanos derrotados nessa eleição incluía Prudente de Morais e Campos

Salles, que acabariam se tornando anos depois presidentes da República.

A questão militar, principal estopim que viria causar a queda da monarquia,

ocasionou a fundação do Clube Militar, do qual o marechal Deodoro da Fonseca foi o

primeiro presidente. O Clube lançou o marechal como candidato ao Senado. Porém, a

sua votação foi ridícula, atingindo apenas 7,6% dos votos (provavelmente quase todos

de oficiais do Exército), ficando em quarto e último lugar.

Assim, o plebiscito que o governo republicano de 1889 havia prometido que seria

realizado para definir o desejo da população quanto ao regime a ser adotado no País,

só aconteceu um século depois, quando não mais havia possibilidade de retorno à

monarquia. Pedro II, extraditado e sem que nenhum membro de sua família pudesse

voltar ao Brasil, veio a falecer como Pedro de Alcântara no seu exílio na França, no

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30 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

ano de 1891. Ele teve um funeral de chefe de Estado concedido pelo governo francês,

o que irritou os membros do governo brasileiro.

Pedro de Alcântara teve o seu pedido atendido: foi enterrado com um

travesseiro contendo uma amostra do solo do seu país. Desejo digno de

engenheiro geotécnico brasileiro.

O OficiAl DE JustiçA, O gOvErnADOr E O fEchAmEntO DE furnAs

Grandes eram as oposições a serem vencidas pela equipe de Furnas nos seus

primeiros anos. Para a construção da barragem, que represou um volume de 21 bilhões

de metros cúbicos, o rio Grande foi desviado através de dois túneis escavados na

margem esquerda.

Após a obra ter atingido estágio avançado, que permitia o fechamento dos túneis

para o enchimento do reservatório, a diretoria de Furnas enfrentou diversos entraves,

inclusive políticos. Os túneis deveriam ser fechados em uma época que fosse possível

aproveitar a estação úmida para que o enchimento do reservatório não demorasse

demais.

O fechamento foi sigilosamente programado para ser feito no dia 9 de janeiro de

1961. Assim, sem alarde, em um final de tarde, os principais executivos de Furnas se

deslocaram para o Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e voaram com destino

à obra em avião fretado da Líder Táxi Aéreo.

Os testes de fechamento na obra eram feitos com as comportas dos túneis. Na cancela

principal do canteiro foi estabelecida uma operação tartaruga para qualquer estranho

que quisesse entrar na obra. À noite, dois carros chegaram à guarita. O da frente trazia

John Cotrim, o presidente de Furnas, e o segundo trazia Flavio Lyra, o diretor técnico.

A operação tartaruga, de fato, funcionou. E isso ficou comprovado quando o

encarregado da portaria, que não conhecia o presidente, só abriu a cancela quando

reconheceu os ocupantes do segundo carro, que frequentavam a obra com mais

assiduidade.

O topógrafo Euclides Nogueira Martins, desconfiado de que o fechamento do

reservatório seria naquela noite, me contou que ficou acordado no canteiro de obra

para poder presenciar o momento histórico. Próximo à meia-noite, Lyra, munido de um

megafone, iniciou a operação de fechamento das comportas.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 31

Os túneis foram fechados com sucesso. As águas represadas iniciaram

rapidamente o preenchimento do fundo do reservatório, cobrindo os bocais

dos túneis em poucos minutos. Todo o cuidado na preparação dessa operação

se mostrou decisivo. Isso porque, no mesmo instante, chegava um oficial de

justiça com um mandado de segurança que impediria o fechamento dos túneis e,

consequentemente, o enchimento do reservatório.

O encarregado da portaria fingiu que dormia um sono profundo, o que atrasou

a liberação do oficial de justiça. Quando ele alcançou o canteiro de obra, já raivoso

e aos gritos, ordenou que a operação de fechamento não fosse realizada. Lyra,

calmamente, explicou que já estava feito e que era impossível voltar atrás. Apontou

para o local onde as grandes comportas de aço estavam submersas por uma lâmina

superior a 20 metros de água e sugeriu, irônico, que o oficial de justiça se sentisse

à vontade para mergulhar e tentar resgatar as comportas.

Outro incomodado com essa situação foi o governador de Minas Gerais,

Magalhães Pinto, que perdeu a oportunidade de capitalizar politicamente com o

evento.

pEDiDO DE EmprEgO

No governo estadual de Milton Campos, Minas Gerais iniciou as obras de

geração de energia. Para isso, foram constituídas autarquias próprias para cada

uma das três usinas que passaram a ser construídas. Com o objetivo de dar

maior dinamismo administrativo, seu sucessor, Juscelino Kubitschek de Oliveira,

instituiu a Cemig como empresa estatal de economia mista, convidando John

Cotrim para diretor técnico. Cotrim vinha do grupo americano Amforp, detentor

de várias concessões de serviços de energia elétrica no Brasil, e procurou imprimir

na Cemig a filosofia de organização e métodos gerenciais comuns nos Estados

Unidos, e ainda desconhecidos no Brasil.

Logo no início das operações, vislumbrando um banco de oportunidades para

empregar protegidos, alguns políticos passaram a indicar candidatos aos cargos.

Porém, Cotrim exigia o envio das qualificações do candidato, o que causou uma

surpresa generalizada e foi a arma para recusar indicações descabidas.

Israel Pinheiro foi um dos que pediram uma colocação para um protegido e

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32 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

perguntou a seu assessor, Júlio Soares, o que era aquilo que Cotrim exigia. A

resposta veio direta: o curriculum vitae. Israel, então reagiu: “Que bobagem é essa

que o Cotrim está inventando? Essa empresa não vai funcionar nunca.” Algum

tempo depois, Israel, já na administração pública como governador do estado, se

viu em situação semelhante à do Cotrim na Cemig diante de pedidos de emprego.

Perguntou então a Júlio Soares: “Como é que se chama aquilo que o Cotrim exige

quando ele não quer empregar alguém?”

O bAnquEtE E O pOmAr

A advogada Dora de Carvalho, filha do advogado Afrânio de Carvalho, diretor

da Chesf nos seus primórdios, me contou que seu pai havia convidado os juízes do

Supremo Tribunal Federal para uma visita ao canteiro de obra durante a construção

da hidroelétrica de Paulo Afonso I, em meados do século passado. À noite, após

terem ficado impressionados com o gigantismo e a complexidade da construção,

os ministros foram recepcionados pelo presidente da Chesf, engenheiro Francisco

Alves de Souza, na Casa da Diretoria, também conhecida como Casa Grande,

devido a reminiscências nordestinas.

As instalações destinavam-se a hospedar diretores e visitas ilustres e eram

geridas pelo mordomo João Cartolino, crente pentecostal sempre alegre. Souza

contou no almoço que o solo local era fértil, bastando ser irrigado para produzir

uma ampla variedade de frutas de elevado sabor. E acrescentou que, nos fundos da

Casa Grande, ele havia mandado fazer um vasto pomar e, após o jantar, todos iriam

saborear uma rica e variada salada de frutas.

Na hora da sobremesa, Souza perguntou ao mordomo Cartolino quantas frutas

iriam ser servidas. “Trinta e uma, senhor presidente.” Orgulhoso da variedade

do pomar, acrescentou ao questionamento: “Quais são as frutas?” Sem vacilar,

Cartolino informou: “Trinta laranjas e um mamão.”

Muitos anos depois, em 1974, eu estava visitando Paulo Afonso em uma comitiva

do Congresso Internacional de Geologia de Engenharia. Nessa época já havia um

hotel bem construído no local, mas com serviço precário. Entre as sobremesas

que podíamos escolher nas refeições, todas feitas nesse hotel, havia um bolo de má

aparência, que ficou intocado durante todos os almoços e jantares. No último dia,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 33

para que não arriscássemos perder o avião para Recife, resolvemos fixar o cardápio

em um só prato para agilizar o serviço.

Para a sobremesa, o maître sugeriu um gâteau surprise. Todos aceitaram. Para

nossa surpresa, era o bolo que há tantos dias vinha sendo desprezado por nós.

Finalmente, sem alternativas, foi consumido por alguns de nós.

O zOOlógicO

A usina de Paulo Afonso tem características únicas. As casas de força subterrâneas

iam sendo construídas e ampliadas à medida que a demanda do Nordeste crescia.

Quando eu estive lá pela primeira vez, fiquei impressionado com os 36 pequenos

lagos artificiais povoados por jacarés, com os caramanchões e com os aquários e

animais domésticos criados em uma pequena fazenda-modelo. No zoológico havia

vários tipos de animais, como cobras, veados, tatus e lagartos.

O modelo hidráulico tridimensional que operara durante o projeto inicial,

comandado pelo engenheiro francês Jules Balança (que veio a se radicar no Brasil

para sempre), tinha até miniatura das edificações urbanas do local. Na época

eles me explicaram que todo esse esmero tinha como um dos objetivos manter a

equipe ocupada entre as fases de ampliação da usina, uma vez que o processo era

descontínuo.

Um incentivador dessas atividades era o diretor técnico, o professor do

Departamento de Eletrotécnica da Escola Politécnica da UFRJ, engenheiro

Amaury Meneses. O seu escritório em Paulo Afonso era famoso: no topo de uma

alta torre em forma de cogumelo e envidraçado nos seus 360°, pássaros ficavam

soltos voando sobre especificações, desenhos e relatórios. “Este é o único jardim

zoológico do mundo que possui uma grande hidroelétrica”, brincava.

As bitOlAs

O Brasil era, no final do Segundo Império, um dos países de mais extensa rede

ferroviária do mundo. Em 1889 havia no País 53 ferrovias, em um total de 9.572

quilômetros de extensão em tráfego e muitos outros em construção.

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34 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Na época, existiam 11 padrões de bitolas – como é chamada a distância entre a cabeça

dos trilhos – e a discussão entre os técnicos do setor era intensa sobre esse tema. Alguns

defendiam as bitolas estreitas, de menor investimento; e outros, as mais largas. Essas

discussões foram registradas no Instituto Politécnico Brasileiro a partir de 1874 e no

Primeiro Congresso de Estradas de Ferro no Brasil, em 1882.

Quando eu era criança, nos anos 1950, perguntei qual era a razão de tantas bitolas

diferentes, que impossibilitavam o intercâmbio modal entre diferentes ferrovias.

A explicação me assustou: era para dificultar uma possível invasão militar vinda da

Argentina pelo Sul do País.

Isso era tão absurdo que prefiro acreditar que tenha havido falta de planejamento

estratégico, o que é também muito constrangedor.

Esse estrondoso progresso na implantação de ferrovias se deveu em parte à

denominada garantia de juros, instituída em 1852, no início da era ferroviária, pela Lei

n° 641. Na prática, o governo garantia a cobertura financeira da diferença que houvesse

entre o resultado financeiro da empresa controladora da estrada e um percentual do

capital investido, em torno de 6%.

Isso incentivava os empreendedores ferroviários, na medida em que garantia o

retorno de seus investimentos em empreendimentos que seriam de risco. Entretanto,

essa decisão gerou também ineficiências.

Durante a realização do Primeiro Congresso de Estradas de Ferro no Brasil, acima

mencionado, ocorreram críticas a essa lei. Mas muitos, inclusive o professor André

Rebouças, a apoiaram. Eles defendiam que as garantias propiciadas aos investidores

eram indispensáveis para a obtenção de resultados positivos nos estudos de viabilidade

financeira.

Meu sogro, filho do engenheiro ferroviário José Pereira de Brito Leite de Berrêdo,

me falava do traçado das ferrovias mencionando a subvenção quilométrica instituída em

1873 pela Lei n° 2.450. Nela o governo garantia a remuneração de “trinta contos” por

quilômetro de estrada. Se a ferrovia fosse construída por um custo unitário igual a esse,

o empreendedor era ressarcido integralmente do seu investimento.

Como decorrência dessa lei, o traçado das ferrovias passou a ser projetado com as

menores escavações possíveis, ampliando consideravelmente a extensão das linhas e,

consequentemente, o custo de implantação e de operação.

A subvenção quilométrica e a garantia de juros foram abolidas em 1903, mas já

haviam causado as distorções aqui mencionadas. Por serem antieconômicas, várias

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 35

ferrovias ainda remanescentes dessa época foram desativadas no início do governo

Castello Branco, em 1964.

viAbiliDADE

Pouco antes do movimento de privatização, eu mencionei em um seminário do Comitê

Brasileiro de Barragens que seria extremamente importante que os empreendimentos

de geração do setor elétrico passassem a ter estudos de viabilidade. Fui aparteado por

um participante do seminário que mencionou a existência dos manuais de viabilidade

adotados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e Eletrobras e seguidos

por todos os agentes do setor.

Mostrei que o manual enfocava procedimentos para estudos que definissem apenas

as viabilidades técnica, econômica e ambiental. Citei que a última usina geradora que

teve estudos de viabilidade financeira havia sido a hidroelétrica de Pereira Passos, da

Light, inaugurada pelo presidente Castello Branco em 1964, depois de estar operando

há algum tempo.

A verdade é que a falta de estudos de viabilidade financeira era comum em

empreendimentos governamentais. Apenas como exemplo, John Cotrim me contou um

episódio que ocorreu nos anos 1950, quando conversou com um ministro de Estado

sobre as notícias veiculadas pela imprensa a respeito do início de uma grande obra de

infraestrutura sem projeto definido – e consequentemente sem orçamento confiável –

ao abrigo de um empréstimo externo nitidamente insuficiente.

Ele perguntou para o ministro qual era a estimativa de custos para a implantação

da obra. Diante de uma resposta vaga, Cotrim insistiu: “Nos níveis anunciados, os

recursos provenientes do empréstimo não darão para muita coisa. De onde virá o

restante?” O ministro, já meio aborrecido, disse: “O resto não é comigo, é com o

ministro da Fazenda.” Cotrim insistiu mais um pouco: “O senhor não tem receio

de iniciar uma obra deste vulto sem definições técnicas e sem esquema financeiro

firme?” Procurando encerrar a conversa, o ministro, já sem paciência, acrescentou:

“Se formos pensar em todas essas coisas antes de começar, não se faz nada.”

Esse modo de pensar prevaleceu durante décadas até o cúmulo de serem

fechados contratos com os grandes fornecedores de serviços sem que recursos

estivessem minimamente assegurados. Era algo que colocava os fornecedores

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36 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

como importantes aliados para a angariação de recursos federais.

Provavelmente, os jovens de hoje, por não terem vivenciado essa longa e tenebrosa

fase, terão dificuldades em acreditar nos relatos das dificuldades na implantação de

muitas das grandes obras de infraestrutura que foram implantadas no País.

O mArEchAl E O vigiA

O general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, que, ao se reformar, seria alçado à

patente de marechal, patente esta hoje extinta, era, naquela época do governo Juscelino

Kubitschek, a pessoa mais poderosa da República. Em 1954, no mesmo dia do suicídio

do presidente Getúlio Vargas, tendo em vista a tensa situação nacional vigente, foi

escolhido pelo recém-empossado presidente Café Filho para o posto de ministro da

Guerra pela sua intolerância com indisciplinas.

Lott permaneceu nesse cargo de 1954 a 1959, nos governos de Nereu Ramos e

Juscelino Kubitschek. Se afastou apenas para concorrer à presidência da República

como candidato da situação, na tentativa de suceder JK. Com o pretexto de garantir

as eleições, Lott derrubou dois presidentes: Carlos Luz, que substituiu Café Filho,

infartado, e o próprio Café Filho, que, restabelecido do infarto que o afastara do cargo,

quis reassumir a presidência.

A Cidade Universitária encontrava-se em início de construção naqueles anos

dourados do meado do século passado. O engenheiro Helmuth Gustavo Treitler

chefiava as obras, que, em seu estágio inicial, compreendiam um vasto aterro unindo

nove ilhas da Baía de Guanabara, nas proximidades da Ilha do Governador (RJ). Sobre

uma dessas ilhas, a Bom Jesus, foi construído o Centro de Tecnologia que hoje abriga

a Escola Politécnica, a Escola de Química, o Instituto de Química, o Instituto Alberto

Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) e o Instituto de

Macromoléculas.

A Ilha de Sapucaia, lixão da cidade até o final dos anos 1940, é o terreno do prédio

que abriga a Reitoria e as faculdades de Arquitetura e de Belas Artes. A Faculdade de

Medicina e o Hospital Universitário ficaram na Ilha do Fundão, que desde aquela época

integrava o acesso à Ilha do Governador.

As demais ilhas eram menores: Baiacu, Cabras, Catalão, Pindaí do Ferreira e Pinheiro.

No extremo sudeste da Ilha de Bom Jesus, o Exército mantém o Asilo Voluntários da

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 37

Pátria, ali instalado para originalmente abrigar os combatentes combalidos egressos

da Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. Nos anos 1950, o comandante

dessa unidade era o coronel Evilázio Vilanova, cunhado de Lott. Algumas vezes, aos

domingos, Lott visitava o cunhado e se banhava e pescava na praia da Ilha de Catalão,

na outra extremidade do grande aterro que se encontrava em execução.

Disciplinado, ele sempre comunicava ao escritório chefiado pelo engenheiro Helmuth

que iria à praia no Catalão. Em um desses domingos, Helmuth instruiu cuidadosamente

o vigia de que o ministro da Guerra e pré-candidato à presidência da República iria

à praia. Tudo precisaria estar no maior capricho. “Não fique perto dele, deixe ele à

vontade, mas fique às ordens caso precise de alguma coisa”, instruiu.

Havia certa dificuldade com os vigias, pois o governo não admitia contratações para

esse cargo. Assim, os que não eram capacitados para os demais serviços se tornavam

vigias. Naquele dia, entretanto, Lott demorou na casa do cunhado, tomou umas

caipirinhas, adormeceu numa rede e só mais tarde, depois das 15 horas, é que foi à praia,

quando a guarda havia sido trocada.

Quando chegou ao Catalão, foi barrado pelo novo vigia, que não havia sido avisado

pelo seu antecessor. Lott, que vestia um calção de banho, chinelo, camiseta e vasto

chapéu, mostrou a ele sua identidade achando que isso seria suficiente para o vigia deixá-

lo ir à praia. O vigia pegou a identidade e olhou. Lott, verificando que o vigia olhava

a sua identidade de cabeça para baixo, disse que seria mais fácil de ele ler se virasse o

documento de cabeça para cima. O vigia permaneceu sem conseguir ler, pois, nessa altura,

Lott percebeu que ele era analfabeto. O vigia disse que o engenheiro Helmuth era muito

bravo e, sem sua licença por escrito, ninguém poderia chegar à praia. Embora fosse a

mais influente personalidade do País, como amante da disciplina, resignou-se a retornar

à casa do cunhado e limitar-se a tomar uma chuveirada. O coronel Evilázio Vilanova,

vendo Lott retornar sem ter nadado e pescado, telefonou preocupado: “Helmuth, você

barrou o homem?” Helmuth, ao saber do ocorrido, se apressou a explicar.

viúvA-nEgrA

Quando eu era jovem, ainda no curso secundário, fiquei impressionado ao

ler no Diário de Notícias, jornal que minha família assinava, que a Força Aérea

bombardeara a ilha da Cidade Universitária para eliminar as perigosíssimas

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38 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

aranhas denominadas viúvas-negras que infestavam o local onde estava sendo

iniciada a construção do novo campus da Universidade do Brasil (UFRJ) e já

haviam atacado um sargento da Aeronáutica.

Ao mencionar esse fato com o engenheiro Helmuth Gustavo Treitler, que havia

sido o residente da construção da Cidade Universitária desde o início do grande

aterro que uniu as nove ilhas formando uma grande ilha artificial, ele me disse que,

por incrível que possa parecer, o fato realmente ocorreu. Do grande aterro para a

formação do terreno do campus, uma parte era de areia que foi transportada por

barcaças de capacidade de cerca de 400 m³ e depositada nas proximidades de onde

foi construído o prédio da Puericultura, na Ilha do Fundão.

Embora o movimento das águas do mar tivesse levado cerca da metade do

volume de areia para a praia de Ramos onde hoje se encontra o Piscinão de Ramos

– conforme a conclusão de estudo do professor Maurício Joppert da Silva –, ficou

uma pequena ilha arenosa de fácil acesso a vau. Pessoas iam lá pescar. Um dia um

sargento da Aeronáutica que foi lá pescar adormeceu e, quando acordou, estava

passando mal, tendo sido levado para um hospital.

Na confusão, disseram que ele teria sido picado por uma viúva-negra. A

história ganhou vulto e a Força Aérea colocou no local duzentos tambores de

gasolina e interditou o aeroporto internacional do Galeão por três horas; três

caças levantaram voo do Campo dos Afonsos, deram vários rasantes sobre o local

e lançaram bombas Naplan. Estas não atingiram o alvo, e sim o canteiro do prédio

da Puericultura, destruindo-o completamente. Posteriormente, o engenheiro

Helmuth coletou cuidadosamente cerca de oitocentas viúvas-negras e foi ao local

onde estavam os tambores de gasolina e colocou fogo. As viúvas-negras coletadas

foram levadas ao Instituto Oswaldo Cruz em Manguinhos, onde Helmuth passou a

saber que essas aranhas não atacam e são muito comuns principalmente nas praias

no entorno de Niterói.

AntEs DO AutóDrOmO

Nos anos 1960, meus tios Gustavo e Pedro Vieira de Castro executaram várias

obras que hoje compõem o campus da UFRJ na Cidade Universitária. Naquela

época e nos anos anteriores, as provas de automobilismo e motociclismo no Rio de

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 39

Janeiro eram disputadas nas ruas da cidade.

No início da Fórmula 1, o circuito do Rio de Janeiro era denominado Trampolim

do Diabo, justamente pelo seu perigo. A largada era no Canal do Leblon e seguia pela

Avenida Niemeyer, até onde hoje fica a Rocinha. Subia até a outra vertente a descia

pela Rua Marquês de São Vicente, esta de paralelepípedo e com trilhos de bonde em

toda a sua extensão.

Espectadores, meio-fios, muros de residências, árvores, postes e toda sorte de

obstáculos eram constantes nas laterais da pista. Os ases do volante disputavam as

provas com uma coragem impressionante. Não é possível imaginarmos nos dias de

hoje um circuito como esse.

O argentino Juan Manuel Fangio, várias vezes campeão da Fórmula 1, foi o grande

vencedor desse circuito. O brasileiro de melhor desempenho era sempre Chico Landi,

pilotando uma Maserati. Depois dessa fase, nos anos de 1964 e 1965, as provas de

motociclismo começaram a ser disputadas no País sob a liderança de Eloy Gogliano,

primeiro presidente da Associação Brasileira de Motociclismo e primeiro vencedor de

uma prova de motovelocidade em Interlagos.

No Rio de Janeiro as provas eram disputadas em circuitos urbanos improvisados

na Quinta da Boa Vista, no entorno do Campo de São Cristóvão ou em volta do então

recentemente construído Estádio Municipal do Maracanã. No circuito da Quinta da

Boa Vista, o melhor tempo pertence a Carlos Eduardo Marques de Souza Zielinsky,

com um minuto, treze segundos e sete décimos. Ele pilotava na ocasião uma Norton,

e a prova era de motociclismo. O segundo melhor tempo é do Fangio: um minuto,

catorze segundos e sete décimos. Ele pilotava uma Ferrari Testa Rosa, motor V12,

numa prova de automobilismo grau Turismo.

É fácil imaginar que, tanto nas provas de automobilismo quanto nas de motociclismo,

qualquer acidente poderia levar a trágicas consequências. Até porque as corridas

atraíam muitas pessoas nas calçadas. Zielinsky, campeão brasileiro e sul-americano,

era na época noivo, e hoje casado, da minha prima Lúcia Maria.

Ele pediu ao meu tio Gustavo para tentar transferir as provas para a Cidade

Universitária, que estava em construção. A ideia dele era que um circuito em volta

do terreno em que estava sendo construído o Centro de Tecnologia seria muito mais

apropriado para as provas. Meu tio entrou em contato com o engenheiro Helmuth

Gustavo Treitler, responsável pelas obras, que prontamente conseguiu a autorização.

Assim, a Associação Carioca de Motociclismo pôde começar a realizar as provas ali

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40 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

nas manhãs de domingo. Foram sete, das quais Zielinsky venceu seis e Demar Netto

Muniz, vulgo Contrapino, uma.

Aproveitando a iniciativa do motociclismo, o circuito da Cidade Universitária

passou a ser usado também para o automobilismo. Foram 20 edições. Na primeira

delas, Emerson Fittipaldi capotou na rótula entre o Centro de Tecnologia e o prédio

da Reitoria, pilotando um Renault Gordini. O motor chegou a se separar do carro, que

era de propriedade de Hélio Massa.

Fittipaldi venceu quase todas as outras provas. Sempre que isso acontecia, Norman

Casari comprava o carro vencedor. Não demorou para todos perceberem que o

sucesso não era devido ao carro, e sim à qualidade do piloto, como ficou comprovado

posteriormente na Fórmula 1 e na Fórmula Indy.

Vários outros pilotos se destacaram nesse circuito da Cidade Universitária, como

os irmãos Bobby e Ronny Sharp, Christian Heins, o próprio Norman Casari e Wilson

Fittipaldi. Em 2001, perguntei ao Zielinsky o que ele sentia ao recordar aquela época.

“Gostaria que o tempo voltasse. Foi muito bom enquanto durou”, admitiu.

O cOrpO

Em 1966, Furnas assumia outra estatal federal, a Chevap, com suas duas

usinas geradoras que se encontravam em início de construção. Em poucos anos,

as duas usinas estavam em operação. A termoelétrica de Santa Cruz, situada a 3

quilômetros da baía de Sepetiba (RJ), capta água no canal de São Francisco, que

transporta as águas do rio Guandu, que, por sua vez, recebe as águas recalcadas

pela Light dos rios Paraíba do Sul e Piraí.

Em função da derivação de descargas promovida pela Light, as vazões no canal

de São Francisco são firmes e apresentam média de cerca de 200 m³/s, conveniente

para a instalação da termoelétrica. As águas captadas no limite leste do terreno da

usina são lançadas, após uso, no canal de Santo Agostinho, situado a oeste da usina,

drenando para o rio da Guarda e daí para a baía de Sepetiba.

Naquela época, muito se falava de mortos que vinham boiando pelos rios. No

início da operação, um corpo foi arrastado pelas águas que estavam sendo captadas,

ficando contido pela grade da tomada d’água. Os operadores comunicaram o fato

à delegacia de polícia da região.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 41

A partir daí, começou a haver sérios inconvenientes para os operadores, que por

diversas ocasiões passaram a ser convocados à delegacia para prestar depoimentos

e serem submetidos a outras extensas formalidades.

Não muito tempo depois, um segundo corpo foi captado pela tomada d’água.

O transtorno relativo ao primeiro corpo tinha sido tanto que eles não tiveram

dúvida: empurraram discretamente de volta ao canal de São Francisco e deixaram

que seguisse o seu destino natural para o mar. E assim foi até a instalação de um

log boom, conjunto de flutuadores que impedem o prosseguimento de materiais

flutuantes à frente da tomada d’água.

O vinhO sAlvADOr

Em 2002, a Universidade Federal de Minas Gerais formava o engenheiro

Guilherme Moreira Grossi, uma promessa de sucesso profissional. Eu o conheci

algum tempo depois, já com uma década na profissão e com o seu talento

comprovado. Ele me contou um episódio ocorrido na audiência pública para a

concessão do licenciamento ambiental da pequena central hidroelétrica Malone,

situada no rio Uberabinha, município de Uberlândia, no Triângulo Mineiro.

O projeto previa uma barragem em concreto compactado com rolo de 30

metros de altura máxima, represando um reservatório com apenas 101 hectares

de área inundada. Como quase sempre, havia uma voz raivosa de oposição ao

empreendimento – apesar de ser uma pequena usina. Era uma conhecida fazendeira

da região e presidente de uma ONG. Ela vociferava contra o licenciamento do

empreendimento.

Seu principal argumento era que, no Triângulo Mineiro, já havia hidroelétricas

demais, muito maiores do que essa, como a Porto Colômbia, Marimbondo e Água

Vermelha, no rio Grande, e Emborcação, São Simão e Cachoeira Dourada, no

rio Paranaíba. A sua opinião era que a região tinha usinas geradoras em número

suficiente para suprir a demanda de todos os seus habitantes e não precisava gerar

energia para outras localidades.

Conhecida apreciadora de bons vinhos, a fazendeira ouviu a seguinte colocação

do engenheiro que apresentava o projeto aos presentes na audiência pública:

“A senhora conhece, aprecia e consome vinho. No entanto, não há notícia da

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42 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

existência de vinícolas no Triângulo Mineiro”, disse. O licenciamento ambiental

foi concedido, e a hidroelétrica entrou em operação em março de 2010.

lEiturA DinâmicA

Consta que, quando o governador do estado da Guanabara, Carlos Frederico

Werneck de Lacerda, esteve em uma ocasião com John F. Kennedy, presidente dos

Estados Unidos, ficou impressionado com a rapidez com que ele leu e entendeu

um documento que o brasileiro lhe havia entregue.

Essa foi talvez a primeira menção no Brasil do que se denominou leitura

dinâmica. Pelo que me lembro, esse procedimento consistia em passar os dedos

em diagonal por folhas impressas acompanhando a ponta deles, sem se fixar em

detalhes. Com isso, a pessoa ficava com uma ideia geral do texto, que seria tão

mais acurada quanto mais se exercitava.

Em 1968 essa prática ganhou popularidade no Brasil. Nessa época

aproveitávamos a hora do almoço para termos aulas de leitura dinâmica na sala do

Departamento de Engenharia Mecânica de Furnas, no prédio situado na esquina

da Avenida Rio Branco com a Rua São José, centro da cidade do Rio de Janeiro.

O entusiasmo foi intenso nas aulas iniciais e praticávamos sempre que

podíamos. Em uma tarde, durante o expediente, o engenheiro Sérgio Saldanha

da Motta, chefe do Departamento, se surpreendeu ao entrar na sala e ver os

engenheiros lendo as propostas de fornecedores de equipamentos mecânicos por

meio dessa técnica. E exigiu que esses documentos voltassem a ser analisados nos

seus detalhes, com todo o rigor e não mais por leitura dinâmica.

A prEssãO vAriávEl

O engenheiro Günter Wernicke era o chefe do setor de válvulas da Voith em

São Paulo quando foi convidado para integrar o quadro de profissionais de Furnas.

Naquela ocasião, em 1969, as primeiras turbinas da hidroelétrica de Estreito,

hoje Luiz Carlos Barreto de Carvalho, apresentavam cavitação. Para analisar o

problema, veio da Alemanha o consultor da Voith, engenheiro Gessler.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 43

Gessler e Wernicke foram para Estreito e testaram injeção de ar comprimido

para minimizar o problema. Entretanto, o manômetro que indicava a pressão de

injeção de ar comprimido variava bruscamente, com acentuadas quedas de pressão.

Wernicke não entendia o que estava acontecendo. Ele resolveu subir as escadas

para chegar ao compressor e verificar a pressão na saída. Assim que ele se afastava

do compressor, o engenheiro Luiz Otávio Medeiros, residente da usina, introduzia

na tubulação uma placa de orifício que reduzia a pressão para jusante. Esse

procedimento foi repetido até que Luiz Otávio ficou cansado e Wernicke, exausto.

viOlADA nO AuDitóriO

Essa foi uma das manchetes de um jornal diário sensacionalista de circulação

no Rio de Janeiro nos anos 1960. A ideia era criar chamadas como essa para que os

adeptos de casos escabrosos adquirissem o jornal.

Nesse caso específico, a reportagem era sobre um festival da canção popular

em que o cantor Sérgio Ricardo foi vaiado. Irritado, ele quebrou o violão e o

arremessou no auditório.

Os anos de 1966 e 1967 foram de pluviosidade excessiva nos estados do Rio de

Janeiro e da Guanabara, ocasionando inúmeros deslizamentos de encosta e quedas

de grandes blocos de rocha. Muitos desses acidentes foram muito bem registrados

pelos engenheiros geotécnicos na época.

O governo da Guanabara criou o Instituto de Geotécnica, sucessor do Serviço

de Pedreiras. A instituição abrigava, sob a liderança de Ronald Young, destacados

profissionais como Gilberto Augusto Alves de Lima e o jovem Willy Alvarenga

Lacerda, que muito mais tarde veio a receber o importante título de Professor

Emérito da UFRJ. Desse seleto grupo participava também a engenheira Anna

Margarida da Costa Couto e Fonseca.

Os diversos acidentes em encostas fizeram com que os trabalhos do Instituto

fossem intensos e urgentes, tendo propiciado grande desenvolvimento para a

engenharia geotécnica nacional. Os trabalhos publicados despertaram o interesse

dos geotécnicos do País e do exterior. Eram frequentes as visitas técnicas às

arrojadas obras que eram executadas.

Uma delas envolveu um pequeno grupo de engenheiros franceses. Eles foram

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levados de helicóptero ao cume da Pedra da Gávea, entre São Conrado e a Barra

da Tijuca. O piloto era Malagutti, bem jovem na época, que acabou se tornando

um dos mais conhecidos desse ramo. Ele criou uma empresa, a Riana, que durante

anos prestou serviços para diversas empresas, como as Organizações Globo.

A engenheira Anna Margarida acompanhou os franceses nessa visita aérea. O

grupo foi deixado no pico da Pedra da Gávea e Malagutti deveria retornar depois

para buscá-los. Entretanto, o tempo virou repentinamente. O denso nevoeiro, a

chuva fina e o anoitecer inviabilizaram o retorno do piloto. Sem alternativa, o

grupo permaneceu ao relento, a mais de 700 metros de altitude, encharcados e à

mercê de vento forte e frio intenso.

No dia seguinte, bem cedo, Malagutti resgatou o grupo. Repórteres já

aguardavam os resgatados no heliporto. O fato virou manchete na primeira página

daquele jornal sensacionalista, com direito a fotografia da engenheira Anna

Margarida aos prantos, descabelada, encharcada e abraçada à mãe. A manchete (de

duplo sentido) foi: “Mulher se perde com franceses na Pedra da Gávea”.

gás DA bOlíviA

Há muitos anos se cogitava a possibilidade de trazer gás da Bolívia. O assunto

ganhou força no governo do general Ernesto Geisel, que havia sido presidente da

Petrobras. Com sua formação militar, ele se preocupava com as condições de logística

e de segurança de suprimento.

Quando soube dessa possibilidade, o general logo questionou: “O que é que eu

farei se os bolivianos subitamente fecharem os registros? Envio para lá os fuzileiros

navais?” O assunto ficou adormecido por mais um bom tempo.

Anos depois, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o gasoduto finalmente foi

implantado. A Petrobras passou a investir pesadamente na Bolívia. Mas Evo Morales

assumiu o país, estatizou os investimentos da Petrobras e aumentou o preço que havia

sido contratado para o gás. As palavras de Geisel foram lembradas por poucos.

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A fArOfA

Os engenheiros Olavo Pinheiro, Humberto Pate e eu estávamos em uma caminhonete

no local onde depois veio a ser implantada a hidroelétrica de Marimbondo, no rio

Grande, entre São Paulo e Minas Gerais. Foi quando avistamos uma longa cobra

atravessando a estrada de terra.

Atropelamos o animal, passando sobre ele várias vezes. Quando tivemos certeza de

que a cobra estava morta, chegamos mais perto e vimos que era uma jiboia, que tem um

porte avantajado, mas não é venenosa. A cobra foi colocada na caçamba.

No dia seguinte, Pate e eu não vimos a cobra pendurada como era de costume fazer

quando esses animais eram mortos no canteiro da obra. Com receio de que o Olavo,

que era o engenheiro-residente da obra, tivesse mandado incluir a jiboia na comida,

deixamos de lado a carne e optamos pelas verduras, legumes, feijão, arroz e uma farofa.

Quando terminamos, ele nos contou que a jiboia estava na farofa. Aí já era tarde.

A línguA tupi

Os índios tupis habitavam o litoral da Região Sudeste. O padre Anchieta fez um

dicionário da língua indígena que muito ajudou os jesuítas na evangelização dos

índios. Esses conhecimentos, entretanto, não foram difundidos após a expulsão dos

jesuítas de nosso território pelo Marquês de Pombal.

Assim, algumas localidades com nomes indígenas indicam propriedades que

deveriam ter sido levadas em conta quando do estabelecimento de obras nesses

locais. Até o início do século XX, Ipanema era uma área insalubre. O engenheiro

Vieira Souto teve dificuldades em urbanizar a área, que até hoje sofre periodicamente

com a dificuldade de renovação das águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em pleno

2013, isso ainda não foi resolvido. Ipanema significa “água suja”. Itaorna, onde

ficam localizadas as unidades termonucleares que demandaram custosos trabalhos

de fundação, principalmente para a usina Angra II, além de preocupações com

estabilidade das encostas locais, significa “pedra podre”. Guarulhos, onde foi

implantado o aeroporto internacional de São Paulo, que enfrenta frequentes

problemas atmosféricos, significa “terra de nuvens baixas”.

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46 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Os gEólOgOs

No início dos anos 1960, havia uma intensa procura por profissionais de geologia

no Brasil, indicando que essa seria uma profissão muito promissora em todos os

seus campos de atuação. A geologia de engenharia era um campo totalmente novo

no País e as grandes obras careciam de profissionais dessa área.

Muitos geólogos formados nessa época em nossas faculdades se destacaram em

âmbito nacional e mesmo internacional. Entre eles estão, sem dúvida, Fernando

Pires de Camargo e Guido Guidicini, que deram decisivas contribuições técnicas

nos inúmeros projetos em que se envolveram ao longo de suas brilhantes carreiras

profissionais. Entretanto, o primeiro contato entre ambos foi algo traumático. No

primeiro dia da aula do curso de geologia da Universidade de São Paulo (USP),

Camargo, na qualidade de veterano, foi escolhido para ministrar uma aula/trote

aos calouros, ansiosos pelo início do curso.

Ele já tinha alguma experiência em ministrar aulas em cursos de preparação

para o vestibular. Depois de embromar os calouros por algum tempo, mencionou

que na USP o trote havia sido definitivamente banido e deu boas-vindas aos

calouros, que, segundo ele, não precisavam temer ser alvo de brincadeiras dos

veteranos.

Como na época era comum os rapazes terem cabelos longos, Camargo

tranquilizou-os, inclusive, quanto ao perigo de terem as suas jubas raspadas.

E perguntou quem não gostaria que isso acontecesse. Guidicini, dono de vasta

cabeleira, levantou a mão. Nesse instante, diversos veteranos que estavam

misturados aos calouros partiram para cima dele e rasparam os seus cabelos.

Mais de 45 anos após esse incidente característico da juventude, os dois

congregam currículos que abrangem as mais destacadas obras de infraestrutura

do País, notadamente no campo de geração de energia elétrica.

O pOrtuguês

Em 1974 ocorreu a Revolução dos Cravos em Portugal com intensos reflexos

políticos em todas as suas províncias ultramarinas. Naquela época, inúmeros

portugueses imigraram para outros países. O Brasil – naquela época achávamos que

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estávamos vivendo o milagre econômico – foi o principal destino de engenheiros

portugueses. A nossa empresa foi uma das mais procuradas.

No fim de tarde, em um bar perto do nosso escritório central, estávamos em

companhia do Taborda, um desses engenheiros portugueses, em um happy hour.

Piadas de português estavam sendo contadas quando reparamos que ele não ria. Foi

então que perguntamos se em Portugal costumavam contar piadas de brasileiros, ao

que ele respondeu: “Programa Nuclear, Transamazônica, Perimetral Norte, Brasília,

salário de um 13° mês que não existe no calendário, empréstimo compulsório, moeda

podre, Lei da Informática. E carece? E vocês acham que é preciso?”

pOrtuguEsEs AO mArAcAnã

Um dos brilhantes engenheiros portugueses que vieram trabalhar no Brasil

após a Revolução dos Cravos, em 1974, foi Álvaro Manuel Sousa Freitas. Ele

chegou com a sua esposa Teresa, hoje falecida, e suas três filhas miúdas.

No Rio de Janeiro, trabalhou na mesma firma que eu e morou no mesmo

condomínio, na Gávea Pequena. Na primeira noite, Álvaro deu as primeiras

instruções a uma empregada que eu havia lhe indicado: “Amanhã vou cedo para

o escritório com o Dr. Miguez. Portanto, tenha o pequeno almoço preparado às

7 horas”. A empregada não entendeu, pediu explicações e ele repetiu que queria

o pequeno almoço às 7 horas, o mais tardar. No dia seguinte, ao descer para o

café da manhã, Álvaro encontrou a mesa posta com ovos de codorna e pequenas

quantidades de arroz, feijão, batata e carne moída.

Quando o papa João Paulo II veio pela primeira vez ao Brasil, sua comitiva passou

de ônibus pelas estreitas estradas da Gávea Pequena. Esperamos Sua Santidade na

calçada e, quando o ônibus passou, Teresa proferiu uma frase em português que só

eu entendi, pois eu havia estudado em Portugal: “O automedonte não carregou os

travões do autocarro.” Traduzindo: “O motorista não pressionou o freio do ônibus.”

Pouco depois de se estabelecer com a família no Rio de Janeiro, seu sogro, o

engenheiro António Bento Franco, veio fazer-lhe uma visita. Em um domingo de

jogo entre Flamengo e Vasco, Álvaro e o sogro foram conhecer o Maracanã. Sem

saber que as torcidas ficavam separadas, entraram no meio da torcida rubro-negra.

Tão logo abriram a boca para chamar um sorveteiro, expondo um acentuado

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48 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

sotaque português, a torcida achou que só podiam ser vascaínos desgarrados.

Álvaro, embora tivesse chegado há pouco do canteiro de obra da hidroelétrica de

Cahora Bassa, em Moçambique, em plena guerra civil, conta que aqueles momentos

na torcida do Flamengo foram de extrema tensão. Após alguns confrontos, ele

e o sogro foram obrigados a comprar sorvete para todos os torcedores que os

circundavam até ficarem sem um tostão, quando, para alívio deles, foram liberados

para sair rapidamente da arquibancada. Como ainda não tinha carro, Álvaro e o

sogro tiveram que retornar a casa, na Urca, a pé, causando preocupação à família

pelo adiantado da hora em que lá chegaram. Por mais incrível que possa parecer,

Álvaro ficou torcedor do Flamengo!

O cOnsultOr

Um dos mais brilhantes pesquisadores em engenharia, o Dr. Manuel Rocha,

dirigiu por longos anos o prestigiado Laboratório Nacional de Engenharia Civil,

em Lisboa, e chegou a ocupar o cargo de ministro de Estado.

Em meados dos anos 1960, durante a construção de importantes obras

hidroelétricas, era comum a formação de juntas de consultores para examinar os

projetos e construções civis. O Dr. Manuel Rocha era um desses consultores, tendo

sido contratado por diversas empresas empreendedoras de obras de infraestrutura

no Brasil naquele período.

A maioria desses consultores eram expoentes da engenharia estrangeira e as

reuniões aconteciam, preferencialmente, em inglês. O mesmo acontecia com as

conversas. O destacado engenheiro Joaquim Pimenta de Ávila participou de um

episódio interessante. Após um cansativo dia de reuniões no local de construção da

hidroelétrica de Água Vermelha, situada no rio Grande entre São Paulo e Minas

Gerais, os consultores foram aos poucos se recolhendo aos seus aposentos. Ficaram

apenas os engenheiros de projeto e os da engenharia do proprietário conversando

com o Dr. Manuel Rocha. Sem perceber, eles continuaram por muito tempo

conversando em inglês, até que se deram conta de que poderiam e, deveriam, falar

em português.

Em uma dessas ocasiões, alguém mencionou o sotaque português, ao que o Dr.

Manuel Rocha retrucou: “Ora, pois, o idioma é nosso; o sotaque é vosso.”

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A sAbEDOriA pOrtuguEsA

Sempre houve grandes amizades entre engenheiros portugueses e brasileiros.

A primeira vez que vivenciei isso foi em 1967, ainda estudante, por ocasião das II

Jornadas Luso-Brasileiras de Engenharia Civil, evento realizado no Rio de Janeiro, e,

posteriormente, em congressos de geotecnia e, principalmente, nas reuniões executivas

da Comissão Internacional de Grandes Barragens, nas quais todos os anos há um

jantar lusófono. O primeiro desses jantares de que participei foi em 1973, em Madri,

sob a coordenação do engenheiro Rebelo Pinto. Daí para frente, o professor Laginha

Serafim passou a ser o organizador. Quando ele se afastou das reuniões, eu passei

a ser o organizador desses jantares, nos quais sempre há intenso congraçamento e

deixamos por curto tempo de ter que falar em francês ou em inglês, idiomas oficiais

da Comissão.

Em geral, os brasileiros, desde a época em que participavam os engenheiros Flavio

H. Lyra e Delphim Mason Fernandes, na década de 1960, viajam com as esposas. Já

os portugueses nunca as levavam, com exceção do engenheiro José Oliveira Pedro

e, posteriormente, dos engenheiros Rocha Afonso e António Pinheiro, que sempre

levavam a Gina, a Maria João e a Cláudia, tão queridas por todas as brasileiras.

Os demais delegados da Comissão Portuguesa de Grandes Barragens

costumavam explicar dessa forma esta decisão, que alguns chamam de sabedoria

portuguesa: “Viajamos sem as esposas, pois desta maneira gastamos a metade e

nos divertimos em dobro.”

O DElEgADO sáDicO

Em 1920 foi inaugurada a hidroelétrica de Bananeiras no rio Paraguaçu, perto

da cidade de Cachoeira (BA). A usina, inicialmente com duas unidades geradoras

de 3 megawatts cada, era constituída por uma barragem provisória de alvenaria

com 7 metros de altura e teve sua construção comandada pelos engenheiros César

Rabello e Américo Simas.

Naquela época, a cidade e toda a região no seu entorno encontravam-se

infestadas por cangaceiros, jagunços e outros maus elementos que infernizavam

a vida das famílias locais. Mulheres tinham que ficar trancadas em casa com

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50 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

portas e janelas fechadas e, mesmo assim, corriam graves riscos. César Rabello,

que havia levado a família para Cachoeira, foi ao governador, que, considerando

a importância da obra para o suprimento energético de Salvador, do Recôncavo e

das localidades do vale do rio Paraguaçu, enviou para a cidade de Cachoeira, com

carta branca, um violento delegado conhecido pelo seu elevado grau de sadismo,

que passou a espancar sem dó nem piedade todos os desordeiros que prendia. O

delegado passou os dias mais felizes da sua vida, mas sua alegria durou pouco: a

região ficou pacificada em pouco tempo.

AlKmin E cAmpOs

José Maria Alkmin era, talvez, o mais antigo parceiro de Juscelino Kubitschek desde a

época em que os dois viviam em Diamantina. Quando ministro da Fazenda no governo

JK, ele encontrou-se com um embaixador árabe que queria apresentar ao presidente as

suas credenciais.

Alkmin, que sempre quis saber o significado de seu nome, que era de origem árabe,

fez a pergunta ao embaixador, que ficou visivelmente pouco à vontade, mas, devido

à insistência do seu interlocutor, acabou dizendo: “Al é o artigo ‘o’ e kmin significa

‘mesquinho’.”

Alkmin ficou desapontado, mas pensou que um ministro da Fazenda deveria mesmo

ser mesquinho. Quando esteve com Juscelino, disse a ele que o tal embaixador havia

revelado o significado do seu sobrenome: “Al é o artigo ‘o’ e kmin significa ‘magnífico’.”

No governo JK, com a construção da nova capital do Brasil e outros investimentos de

vulto, a pressão inflacionária, tão contida nos governos anteriores, estava nitidamente

em aceleração. Alkmin tentava, na medida do possível, mas sem muito êxito, deter

investimentos que provocassem mais inflação.

Em uma ocasião, na presença de Roberto Campos, recebeu em seu gabinete um

correligionário que queria uma vultosa verba para uma grande obra de engenharia que

não traria benefícios e ainda seria mais um incentivo para a disparada da inflação. Após

ouvir com interesse os argumentos, o ministro garantiu que a verba seria concedida.

Depois, quando estavam a sós, Roberto Campos disse que aquela obra era desnecessária

e não entendeu por que ele tinha garantido a verba. Alkmin, velho político mineiro,

respondeu: “Roberto, verba não causa inflação. Verba é uma coisa; recurso é outra coisa.”

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hErói nAciOnAl

Nos anos 1970, quase dez empresas brasileiras estavam entre as maiores consultoras

do mundo em número de empregados. Por outro lado, as empresas nacionais tinham

como obstáculo a Lei da Informática, que prejudicou o desenvolvimento da engenharia

nacional pelas restrições de importação de computadores.

Assim, durante muitos anos, essas companhias ficaram restritas ao mercado interno,

que, por sua vez, era protegido por legislação instituída no governo Costa e Silva que

garantia reserva de mercado às empresas nacionais para projetos correntes. O absurdo

dessa Lei da Informática era tal que Roberto Campos classificava o contrabandista

como herói nacional.

Os ApErtOs quE sOfríAmOs

Mesmo tendo ocorrido intensas aberturas ao comércio internacional, principalmente

a partir do governo Fernando Collor de Mello, a Organização Mundial do Comércio

ainda classifica o Brasil como um dos países de economia mais fechada do mundo. Se

hoje é assim, antes, provavelmente, éramos considerados quase herméticos.

As novas gerações não passaram por alguns apertos que antigamente eram comuns

e, provavelmente, não acreditam nas situações que vivenciamos. Os brasileiros, por

exemplo, não podiam ter cartões de crédito internacionais nem sair do País com mais do

que o equivalente a US$ 1 mil. A moeda estrangeira, por sua vez, tinha que ser adquirida

mediante grande burocracia e no câmbio oficial, que, em algumas oportunidades, chegou

a valer a metade do paralelo. Era o que chamávamos de câmbio negro.

Enviar divisas ao estrangeiro exigia uma burocracia tremenda e ainda tinha que ser

recolhido um escorchante imposto. Dessa forma, cada vez que íamos participar de um

congresso no exterior, tínhamos que pedir compreensão da comissão organizadora para

que admitisse que brasileiros não tivessem que pagar antecipadamente as inscrições,

reservas de hotel e outros registros relativos ao evento.

Para que isso fosse feito com o máximo de segurança, era necessário um

comprometimento em nome da associação técnica e da minha pessoa física, junto à

comissão organizadora do evento, de que os pagamentos em espécie seriam feitos na

chegada. Vencida essa etapa, tínhamos ainda o desafio de conseguir dinheiro que não

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52 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

fosse em moeda nacional, pois esta não era aceita em nenhum lugar fora do Brasil.

Em 1979 foi programado para Nova Délhi, na Índia, um congresso internacional.

Como os temas a serem discutidos eram importantes para a nossa engenharia, e a

edição seguinte seria no Rio de Janeiro, houve muito interesse. E alguém tinha que ser

incumbido de viabilizar as inscrições.

Não revelo quem foi esse alguém para não me incriminar. Ele foi até a agência do

Banco Lar Brasileiro, na Rua Santa Luzia, no Rio de Janeiro, e sacou em moeda nacional

o equivalente a inscrições e registros. O gerente do banco perguntou se havia mala. A

resposta foi negativa e, então, ele embrulhou tudo em um jornal – o que resultou em

um grande e tosco embrulho, que foi levado até a Casa Piano, conhecida casa de câmbio

que ficava na outra extremidade da Avenida Rio Branco, a cerca de 15 quarteirões da

agência bancária.

Foram dois heróis carregando aquele precioso embrulho em hora de grande

movimento no centro da cidade. Ao chegarem, o conteúdo do embrulho foi transformado

em dólares americanos. O novo pacote era menor, mas de forma nenhuma pequeno.

Após passar por vários países, o dinheiro foi finalmente entregue à comissão

organizadora do congresso. Em pouco tempo, tornou-se comum a figura dos doleiros,

que levavam a moeda estrangeira adquirida no câmbio paralelo a escritórios ou

residências, mediante pagamentos adicionais. Essas aflições são inacreditáveis para as

novas gerações.

A vErbA DE DEsmObilizAçãO

Nos anos 1980 a inflação grassava solta, atingindo o inacreditável nível de mais

de 80% ao mês. A economia brasileira cambaleava com uma moratória. Obras de

infraestrutura estavam concentradas em alguns poucos governos estaduais e na esfera

federal. Ainda assim, os recursos para esses projetos eram escassos. Os pagamentos por

serviços executados passaram de incertos para inexistentes, o que causou o desmonte da

engenharia brasileira.

Várias hidroelétricas estavam sendo construídas simultaneamente nessa época, mas

a área econômica do governo federal encaminhou instruções ao Ministério de Minas e

Energia para que fossem tomadas providências. A ideia era que todas as obras federais

fossem paralisadas.

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Da primeira vez que isso ocorreu, confesso que fiquei muito preocupado, para

não dizer apavorado. Eu era diretor de uma empresa consultora com mais de 3 mil

funcionários, pesadamente dedicada a projetos hidroelétricos. Diante dessa instrução

governamental, as empresas de engenharia consultiva passaram a compor, para cada

hidroelétrica em construção, dois orçamentos.

Um deles envolvia a desmobilização, que não resultava em montantes desprezíveis,

como imaginavam os integrantes da área econômica. O outro compreendia as obras

que poderiam ser executadas com o recurso que seria destinado à desmobilização. A

área econômica do governo foi pega de surpresa pelos elevados custos para interromper

as obras e pela quantidade de serviços que poderiam ser feitos com esses recursos.

Então, a instrução foi alterada para que as obras prosseguissem com os recursos que

seriam usados nas desmobilizações – que eram bem inferiores aos recursos necessários

para o prosseguimento das obras em ritmo normal. Passados alguns meses, novamente

veio nova instrução ao Ministério de Minas e Energia para paralisar todas as obras.

Mais uma vez foram feitos os dois orçamentos para cada obra e estas

prosseguiram com a verba de desmobilização. Essas instruções visando às

paralisações, aos orçamentos para utilização da verba de desmobilização e à licença

para prosseguimento das obras, dentro desses limites de gastos, passaram a ser

frequentes. Ocorreram praticamente todos os anos, mais de uma vez, com anos em

que essas instruções ocorriam a cada quatro meses.

Depois do horror do recebimento da primeira instrução para desmobilização, não

nos preocupávamos mais tanto. O problema era que as reivindicações dos construtores

e fabricantes se avolumavam pelos ritmos mais lentos do que os planejados, e, com

aquela inflação galopante, os juros durante as construções dessas hidroelétricas

atingiram níveis surpreendentes e não divulgáveis.

tirO pElA culAtrA

Importante programa de estudos de inventário hidroenergético foi desenvolvido

na Amazônia após o sucesso dos estudos de inventário nas regiões Sul e Sudeste que

haviam sido realizados nos anos 1960 pela Canambra, consórcio de duas empresas

consultoras canadenses e uma americana, com a participação de estatais brasileiras.

Esse programa foi denominado Estudos Amazônia, e a consultora em que eu trabalhava

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54 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

foi encarregada dos inventários dos tributários do rio Amazonas pela sua margem

esquerda. O mercado brasileiro, extremamente fechado no início dos anos 1970, fazia

com que houvesse imensos atrativos para os produtos oferecidos no comércio da Zona

Franca de Manaus. Engenheiros, geólogos e técnicos que tinham que se deslocar de

Manaus para uma das bacias hidrográficas dos afluentes do rio Amazonas saíam de

Manaus com compras dentro das cotas permitidas, registrando os equipamentos na

saída para que, dias depois, entrassem já sem ter novamente que passar pela alfândega.

Outro voo, e novas compras eram registradas e faziam o vai e vem.

O nosso pequeno hidroavião voava sempre lotado. Para compensar, tínhamos um

piloto, Queiróz, muito habilidoso e de muita sorte, pois já havia caído sete vezes antes

de ser contratado para nosso apoio e permanecia vivo, apesar das múltiplas escoriações.

O engenheiro eletricista Paulo Senra era aficionado por som. Em uma de suas

viagens a Manaus, ele extrapolou e adquiriu um equipamento profissional que, por

ser muito grande e pesado, não poderia usufruir do esquema de vai e vem. Então,

ele optou por despachá-lo por via fluvial de Manaus para Santarém, onde não havia

alfândega, e voltar ao Rio de Janeiro dias depois em um voo pinga-pinga cuja primeira

escala era em Santarém. Entretanto, com receio de que o equipamento não fosse

enviado e caísse em mãos de terceiros, ele retirou dois pequenos componentes sem

os quais o equipamento ficaria inutilizado. Assim, se o equipamento fosse subtraído

dele, ficaria sem a menor serventia.

Quando Paulo Senra pousou em Santarém, lá estava o equipamento intacto. Mas

a sua alegria durou pouco. Já no Rio de Janeiro, começou a montar o som e, para

seu desespero, não conseguiu lembrar onde havia escondido os dois componentes que

haviam sido por ele retirados. O som ficou inutilizado.

O pEsO

Os jovens irmãos recém-formados em engenharia mecânica, Roberto e Luiz

Antônio Andrade Reis, naturais de São João del-Rei – de nascimento ou por desejo –,

foram trabalhar no escritório central de Furnas, no centro do Rio de Janeiro.

Eles não se adaptaram às comidas dos restaurantes e, com saudades de comida

caseira, resolveram almoçar na casa dos tios deles, Nelson e Dorinha, que moravam na

Rua Sete de Setembro, também no Centro. Uma semana depois, já eram sete os jovens

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 55

engenheiros que passaram a frequentar os almoços da tia Dorinha, todos da área de

engenharia mecânica. Eu completei a mesa de oito, sendo o único engenheiro civil do

grupo.

A média de idade devia ser de 25 anos, quando ainda éramos glutões. A tia Dorinha,

que antes tinha poucas atividades, passou a se divertir imensamente preparando

almoço para aqueles jovens que chegavam cheios de energia e famintos à sua casa

todos os dias úteis. Para nós, aquele almoço era uma maravilha, pois comíamos mais e

melhor do que em restaurantes, e gastávamos menos.

Todos nós oito titulares tínhamos reservas que ficavam ansiosos em lista de espera.

Como eu era o que mais viajava para as obras, o posto de meu reserva era o mais

valorizado. Um deles era o jovem Carlos Ney Millen Coutinho, filho de general de três

estrelas e sobrinho de dois generais também de três estrelas, um deles tendo chegado a

ser ministro da Guerra. Vivíamos naquela época o governo Médici em pleno milagre

econômico brasileiro. Um dia, Carlos estava escalado para o almoço, mas faltou ao

trabalho pela manhã e foi direto para o almoço. À mesa, explicou-nos que seu carro

havia sido abalroado na Avenida Presidente Vargas, na ida para o escritório. Como de

costume, ele relatou que houve intensa discussão e, lá pelas tantas, de brincadeira ou

não, o Carlos ameaçou o seu oponente: “Você quer sentir o peso de nove estrelas?” O

problema foi rapidamente resolvido.

O cunhADO

O saudoso engenheiro Mário Brandi Pereira foi um dos precursores da

geotecnia no País. Primeiro responsável pela disciplina de mecânica dos solos na

Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, era também

empresário de uma firma de prospecção, ensaios e consultoria geotécnica e diretor

da Chevap, empresa estatal que no início dos anos 1960 estava incumbida de

implantar a hidroelétrica do Funil, no rio Paraíba do Sul, próximo a Itatiaia (RJ).

Como ele havia sido um dos primeiros presidentes da Associação Brasileira de

Mecânica dos Solos (ABMS), algumas reuniões da diretoria da entidade foram

realizadas na confortável casa de hóspedes da vila residencial da hidroelétrica,

durante anos gerenciada pelo dedicado Santana. Para as reuniões da ABMS, a obra

de Funil era equidistante da maior parte, ou mesmo da totalidade, dos membros da

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56 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

diretoria, que residiam no Rio de Janeiro ou em São Paulo.

Assim, os diretores aproveitavam as viagens para realizar interessantes visitas

às obras que envolviam o início da construção de uma grande barragem de terra,

Nhangapi, que à época era a segunda maior do País. Era também a oportunidade

de acompanhar o início da execução de uma barragem de concreto em abóbada

com 85 metros de altura que até hoje é a única desse tipo no Brasil. O túnel de

desvio tem 11 metros de diâmetro e a ensecadeira de montante era uma estrutura

de concreto em arcos múltiplos.

Estive com o Mário Brandi poucas vezes. Pelo que minha lembrança registra,

ele era uma pessoa afável, tranquila. Era do tipo bonachão, mas competente e

atencioso. Fundou a empresa Sermecso com Icarahy da Silveira, e por longos anos

atuaram juntos em prospecções e projetos geotécnicos.

Corria o governo de Castello Branco, a Chevap havia sido incorporada à

Eletrobras e já estava com nova diretoria. Movimentos clandestinos faziam oposição

ao governo e eram severamente combatidos pela polícia e pelas Forças Armadas.

Um dos quatro filhos do Mário Brandi, supostamente, integrava um desses

movimentos. Em uma noite, a residência de Mário Brandi foi invadida por

militares à procura do jovem, que, por sorte, não estavam em casa. Dona Celina

Vianna Pereira, esposa de Mário, reagiu bravamente insultando os invasores, que

vasculhavam tudo.

Mário pedia repetidamente à esposa que dissesse aos invasores quem era o cunhado

dela, tio do rapaz procurado, mas ela apenas enfrentava os invasores com destemida

coragem. De tanto Mário pedir à D. Celina que dissesse quem era o cunhado dela,

finalmente um oficial perguntou a ela, tendo obtido como resposta: “Marechal

Humberto de Alencar Castello Branco, presidente da República.” Rapidamente foram

feitas averiguações que confirmaram a resposta. O presidente era viúvo de Argentina

Vianna Castello Branco, irmã de D. Celina Vianna Pereira. Deixaram o casal em paz.

O chEfE E O prOcurADOr

Raras pessoas mereceram tanto o título de Professor Emérito da UFRJ como

o professor Sandoval Carneiro Jr. Tenho orgulho dos anos que passei na diretoria

colegiada da Escola Politécnica da UFRJ com ele e com o professor Luiz Calôba,

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também Professor Emérito, sob a liderança do professor Heloi Moreira.

Figura brilhante no meio acadêmico, admirado por todos pela sua capacidade e

amabilidade, Sandoval foi saudado pelo professor Edson Hirokazu Watanabe, seu

companheiro de departamento na Escola Politécnica e de programa na Coppe,

durante cerimônia na qual a Universidade lhe concedeu o título.

Em um bem-humorado discurso, o professor Watanabe deixou escapar alguns

episódios do meio acadêmico, vivenciados pelos dois. Um deles revela que, há

décadas, quando Sandoval estava em longo programa no exterior, deixou Watanabe

como procurador para que providenciasse pagamentos aqui no Brasil e remessa de

numerário para complementação da bolsa no exterior.

A época era de inflação galopante, comunicação deficiente, e, antes do advento da

internet, era imprescindível o conhecimento do saldo em conta para que operações

financeiras fossem efetuadas. Watanabe telefonou ao banco, se identificou como

procurador de Sandoval e solicitou a informação. Recebeu como resposta que essa

informação não seria possível de ser fornecida a não ser para o titular da conta.

Fazer ligações internacionais era algo complicado e extremamente dispendioso.

Após gentilmente desligar, Watanabe coletou todos os números e datas da vida do

Sandoval, além do endereço e dos nomes de todos os parentes. Uma hora depois,

com tudo isso a sua frente, telefonou para o banco dizendo ser Sandoval e pediu

a informação de que necessitava. Submetido a um questionário completo, saiu-

se muito bem. As respostas foram firmes e rápidas e ele obteve as informações

de que precisava. Nos meses seguintes, ao telefonar para o banco, a cola estava

sempre por perto.

Mais recentemente, Sandoval dirigia a Coordenação de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior (Capes) em Brasília. No Rio de Janeiro, Watanabe

tentou sem sucesso falar algumas vezes com Sandoval pelo telefone. A zelosa

secretária atuava como um eficiente zagueiro de área, não passava nada. Em uma

das tentativas, quando a secretária atendeu, coincidentemente Sandoval estava

saindo de sua sala e por acaso ouviu o diálogo ao telefone. Pediu para atender e

se dirigiu ao Watanabe pelo apelido de chefe, como era seu costume. A secretária

ficou impressionada pelo fato de o chefe da Capes ter um chefe. A partir desse

dia, todos os telefonemas do Watanabe foram imediatamente transferidos pela

secretária a Sandoval.

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58 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

A grEvE

Meu colega de turma na Escola Nacional de Engenharia, Hunald Antunes, teve

interessantes vivências em países da América Latina. Ele conta nas suas Memórias

de um Engenheiro que greves na Bolívia podiam ser violentas e resultar em muitas

mortes. Os corpos eram transportados por caminhão para La Paz, a capital, e daí

por avião para serem arremessados nos gelados picos da Cordilheira dos Andes.

Assim, ninguém poderia saber quantos eram os mortos.

A expectativa de vida dos mineiros era de cerca de 34 anos, em função do pó

respirado no fundo das minas de estanho, que gerava silicose em seus pulmões. Por

esse motivo, eles não tinham medo da morte e enfrentavam a polícia e o Exército

portando bananas de dinamite. Os confrontos eram violentos.

Hunald teve que enfrentar greves na construção civil na Bolívia. Na Guatemala,

ele foi às ruínas maias de El Quiché. Na ida, parou para uma refeição ligeira

em um restaurante. Ao retornar, viu que o restaurante tinha sido atacado por

guerrilheiros e estava totalmente queimado. Em uma curva da estrada, o seu carro

foi interceptado por uma tropa do Exército. O cabo que estava no comando não

achou nada de errado, mas afirmou que, como Hunald era estrangeiro, estava

infringindo as leis do país e o levou para uma delegacia em um povoado perto.

Chegando lá, pediu ao colega de trabalho guatemalteco que o acompanhava que

procurasse um telefone para chamar apoio. Após algum tempo, o amigo retornou

dizendo que naquela localidade não havia telefone. Quando a noite caía, Hunald deu

disfarçadamente uma nota de US$ 50 ao guatemalteco para que este entregasse ao

cabo. Isso resolveu a questão e ele finalmente foi liberado.

A pErsEguiçãO

Figura de destaque no sul fluminense, o engenheiro José Rosendo de Souza,

perfeito exemplo de cavalheiro e de educação esmerada, foi deputado federal por

dois mandatos nos anos 1960 e diretor do Departamento Nacional de Estradas

de Rodagem. Seus pais adquiriram, em 1951, a Fazenda Nhangapi, que ficava às

margens do rio Paraíba do Sul, no distrito de Engenheiro Passos, naquela época

município de Resende (RJ). A sua mãe, Dona Cotinha, tinha reconhecido bom

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 59

gosto e a fazenda ficou um esmero. Não muito tempo depois, o local acabou sendo

desapropriado pela Chevap, empresa estatal encarregada de implantar a usina

hidroelétrica do Funil.

A fazenda foi inundada pelo reservatório e as principais benfeitorias foram

arrasadas para ceder lugar à barragem de Nhangapi, na época a segunda maior

barragem de terra do País. A função dessa barragem era fechar o reservatório

evitando a inundação da ferrovia e da Via Dutra. O reservatório inundou também

a vila de Santana dos Tócos.

A família Souza lamentou a perda da fazenda. Rosendo, ainda abalado, adquiriu

terras na encosta da Serra da Mantiqueira, quase 100 metros acima do nível

d’água do reservatório. Ele não queria arriscar vir a ser perturbado novamente.

Lá, formou a Fazenda São Gabriel com o esmero herdado dos pais.

O local era banhado pelo rio Água Branca ou ribeirão Itatiaia Superior, cujas

nascentes se localizavam na íngreme vertente sul da Serra da Mantiqueira, não

muito afastadas da região do pico das Agulhas Negras e das Prateleiras. Esse

curso d’água, cujo leito natural atingia o rio Paraíba do Sul, na Fazenda Nhangapi,

teve que ser desviado por um túnel de 3.600 metros de extensão para jusante da

barragem do Funil. O túnel foi dimensionado para escoar no máximo 45 m³/s. Em

1966, a Chevap foi desativada, passando as obras para a Eletrobras – que meses

depois as transferiu para Furnas.

Uma das primeiras providências ao assumir o projeto, foi auditar os estudos

hidrológicos. Para isso, Furnas contratou um consultor americano, Mr. Williams,

que redefiniu a cheia máxima de projeto do ribeirão Itatiaia para uma descarga

de pico de 400 m³/s, nove vezes superior à capacidade do túnel que já estava

executado e em serviço.

Com base no hidrograma dessa cheia, fizemos o projeto e construímos um dique

paralelo à ferrovia para criar uma bacia de amortecimento de cheia a montante

da boca do túnel. Essa bacia, entretanto, não era teoricamente suficiente para

amortecer toda a cheia de projeto. Havia a necessidade de pelo menos uma obra

adicional. Estudos concluíram pela implantação de uma barragem numa garganta

logo a jusante da sede da Fazenda São Gabriel.

Quando cheguei lá com as equipes da sondagem e topografia, o Rosendo,

desanimado, mas com toda a distinção, me perguntou: “Você de novo? Isso é

perseguição?” Mesmo sendo influente, ele não se posicionou contrário à realização

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60 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

dos serviços de campo para a execução do projeto básico de engenharia. Como não

havia interesse de Furnas em executar a barragem, a fazenda foi salva. Assim que

o projeto básico ficou pronto, em 1968, Furnas enviou um documento à Eletrobras

explicando o fundamento do projeto e arguindo se e quando a barragem deveria

ser construída. Até hoje não consta qualquer resposta da Eletrobras.

Nesses 45 anos, algumas vezes a Via Dutra foi atingida por enchentes do

ribeirão Itatiaia que atravessa sob a rodovia em três pontos. A enchente mais

notável ocorreu em fevereiro de 2000.

mAlDADE

Por pura coincidência, durante mais de 40 anos, o competente engenheiro

geotécnico Orlando Gomes dos Santos e eu atuamos juntos nas mesmas empresas.

Inicialmente, na Rodio, uma companhia suíça de geotecnia. Logo depois, em

Furnas e, posteriormente, na Enge-Rio, empresa consultora.

Sempre brincalhão, em uma viagem aérea a bordo de um avião pequeno, houve

uma grande turbulência. Uma senhora a seu lado demonstrou grande medo.

Orlando, com muita calma, colocou a sua carteira de identidade entre os dentes.

Ela estranhou e perguntou por que ele havia feito aquilo. Em resposta, ele disse

que assim ficava mais fácil para identificar os cadáveres. No mesmo instante o

pavor se instalou na senhora.

Os iDOsOs nO AviãO

O bimotor à hélice Beechcraft PT-CEZ, de seis passageiros, fazia a rota Santos

Dumont – Furnas – Estreito – Furnas – Santos Dumont às terças e quintas-feiras.

Embora a manutenção de Furnas fosse excelente e seus pilotos, muito competentes,

em determinada ocasião foi detectado um problema no trem de pouso. Como o

avião era pequeno, os passageiros ouviam tudo o que era falado na cabine do piloto.

E assim ficaram sabendo da decisão de prosseguir a viagem até Santos Dumont

(RJ) por esse aeroporto ser maior e ter mais condições de socorro.

Ao chegar, o bimotor permaneceu mais algum tempo voando até minimizar

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 61

o estoque de combustível em seus tanques. A apreensão e nervosismo dos

passageiros eram enormes, menos um casal de idosos, pais de um operador da usina

de Furnas, que se mantiveram absolutamente tranquilos durante todo o longo voo.

Os outros quatro passageiros, vendo aquele exemplo de coragem, confessaram

posteriormente que chegaram a ficar envergonhados. O trem de pouso não desceu.

O avião foi obrigado a fazer um pouso de emergência de barriga na pista de grama.

Ambulâncias e carros de bombeiro ficaram em prontidão ao longo da pista. O

pouso foi um sucesso. Ao descer do avião, o casal comentou entre si, revelando o

motivo de tanta coragem: “Que esquisito, bem. A escada em Furnas era mais alta.”

A EstrEiA

O Comitê Brasileiro de Barragens é uma das mais prestigiosas entidades técnicas

da engenharia. Mas não foi sempre assim. Em 1936, o engenheiro Francisco

Saturnino de Brito Filho, ao regressar do II Congresso Internacional de Grandes

Barragens, organizado pela Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB)

em Washington DC (EUA), trouxe consigo o firme propósito de criar em nosso País

uma entidade filiada à CIGB, que naquela época tinha somente 26 comitês nacionais.

Foi então instituída a Comissão Brasileira de Grandes Barragens, sob a liderança

do engenheiro Luiz Vieira, destacado dirigente do Departamento Nacional de

Obras Contra as Secas (DNOCS). Entretanto, pouco depois, com o afastamento

de Luiz Vieira do DNOCS, a Comissão Brasileira teve suas atividades paralisadas,

não tendo cumprido suas obrigações com a CIGB, inclusive as financeiras,

tendo acumulado débitos não cobertos por mais de 20 anos. Somente em 1957,

por iniciativa do engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa, então diretor

geral do DNOCS, a Comissão Brasileira de Grandes Barragens foi reativada, sob

a presidência do professor Casemiro José Munarski, e vinculada ao Ministério

da Viação e Obras Públicas. O mesmo erro de ficar vinculada a um órgão da

administração pública foi novamente cometido pelos engenheiros.

Por esse motivo, novamente as obrigações com a CIGB não foram cumpridas

e a Comissão Brasileira foi colocada na pauta da reunião executiva da CIGB a ser

realizada em Roma em 1961 para ser novamente excluída da CIGB. Às pressas foi

feita uma coleta de contribuições junto às empresas de engenharia e, na última

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62 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

hora, foram saudados os débitos. Em 25 de outubro de 1961, finalmente foi

instituído o Comitê Brasileiro de Grandes Barragens no formato de entidade de

direito privado.

A partir dessa data, o Comitê começou a angariar para a nossa engenharia o seu

atual elevado prestígio. Mas o passado de ausências e inadimplências ainda estava

presente na mente de todos os executivos da CIGB quando a reunião executiva

de 1966 foi programada para ser realizada no Rio de Janeiro. O presidente da

CIGB, o engenheiro britânico J. Guthrie Brown, estava extremamente preocupado

com o sucesso da organização. Entre outras coisas, deveria haver um grande salão

com um arranjo de mesas preestabelecido, todas com microfone e bandeiras dos

países-membros, um palco para os principais executivos e para a secretaria e um

sem-número de outras exigências que incluíam tradutores e gravação dos debates.

A reunião estava programada para ser iniciada às 8h30 do dia seguinte no Hotel

Copacabana Palace. Guthrie Brown, hospedado naquele hotel, não via onde poderia

ser o local da reunião executiva, uma vez que, na noite anterior, todos os ambientes

estavam ocupados com outros eventos.

Ele pediu a Flavio H. Lyra e Delphim Fernandes, presidente e secretário do

Comitê Brasileiro, que mostrassem onde seria a reunião da CIGB. Eram 21h30

quando lhe foi mostrado o local da reunião executiva. Estava sendo realizado um

grande desfile de modas. Guthrie Brown ficou apavorado e não dormiu naquela

noite. No dia seguinte, não acreditou quando entrou no salão minutos antes das

8h30 e tudo estava absolutamente pronto e funcionando. Ele confessou que se

sentiu participando de uma ficção científica em que tudo é transformado num

passe de mágica.

O evento da CIGB no Rio de Janeiro e nas visitas às barragens, para surpresa de

todos, foi o mais bem organizado até então. Alguns fatos curiosos ocorreram. Os

melhores hotéis passaram a ter naquele ano frigobares nos apartamentos. Durante

o programa de visitas a obras, os participantes, não acostumados a esses confortos

em hotéis, ao se depararem com frigobares, pensaram que o consumo seria gratuito:

problemas nos check-outs. Ao término das visitas às obras, Delphim Fernandes

entregou ao presidente Guthrie Brown as minutas da reunião executiva, o que

nunca antes havia acontecido com tanta rapidez e precisão. O presidente, que

chegou ao Rio de Janeiro temendo pelo pior, saiu encantado com nossa eficiência.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 63

prEcisãO suíçA

Em 1998, o engenheiro suíço René Frey participava da equipe de montagem

dos equipamentos da hidroelétrica de Santa Branca da Light, situada no alto rio

Paraíba do Sul, em São Paulo. Ele e a sua mulher, vinda da Costa do Marfim,

viviam às turras. Um dia a esposa sumiu. Três dias e três noites depois, ela foi

encontrada em Ubatuba. Contou que foi de carro e um dos pneus furou. Ah, bem!

O DircEu DO bEm

Dirceu Alencar Veloso. Competência, seriedade, amizade, respeito, dedicação.

Saudades. Palavras que caem com muita propriedade na figura inesquecível do

professor Dirceu Veloso. Ele e eu gostávamos de ministrar aulas no primeiro

tempo de cada dia.

Costumava encontrá-lo nos desertos corredores do Bloco D da Escola Politécnica

pouco antes das 6h30. Nessa hora matutina, éramos os únicos já a postos aprontando

sala e material de aula para os alunos. Eu, já nos meus 60, e ele, próximo aos 80,

vindo sempre de táxi para a Cidade Universitária. Em 2002 eu presidia a Associação

dos Antigos Alunos da Politécnica, que desde 1996 tem concedido uma distinção por

ano ao engenheiro que tenha tido carreira exemplar.

Dirceu era o candidato perfeito para receber essa honraria. Propus sua candidatura

e, como não apareceu nenhuma outra proposta, foi eleito por aclamação. Comecei a

organizar a cerimônia e encomendar certificado e placa. Em uma reunião familiar,

fiquei sabendo pelo sogro de minha filha, o empresário Affonso Call de Castro,

e pela sua esposa Regina que eles frequentavam há anos com o Dirceu o mesmo

encontro de casais católicos. Affonso me contou que havia um sério problema:

Dirceu sempre foi exemplar em tudo, e as esposas, sempre que havia oportunidade,

usavam-no como referência para os maridos. Não mais suportando tantas

qualidades numa só pessoa, os maridos resolveram contra-atacar. Naquela época,

Dirceu era diretor da Promon, empresa de consultoria de engenharia com vários

escritórios no País. Quase todas as semanas, Dirceu era obrigado a se deslocar para

São Paulo. Foi a brecha encontrada pelos desesperados maridos. Estes difundiram

sorrateiramente para as respectivas esposas que as frequentes viagens era para

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64 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

que ele, tão cuidadoso com a família, pudesse estar também sempre em contato

com sua outra família, que residia em São Paulo. A mentira tinha que ser muito

discreta, transmitida como se fosse segredo. Como mulheres têm certa dificuldade

em guardar segredos, elas se comunicaram e todas ficaram sabendo da infâmia

divulgada com engenho e arte pelos maridos. O pior: a coisa foi feita com tanta

engenhosidade e discrição que elas acabaram acreditando. O elevado prestígio de

Dirceu ruiu como um castelo de cartas. Mas a verdade não demorou muito a ser

revelada e o prestígio de Dirceu voltou aos píncaros, mas as esposas não mais,

nas disputas com os maridos, os compararam ao Dirceu. O objetivo dos maridos

foi finalmente conseguido com pleno sucesso. A cerimônia da concessão do título

de Engenheiro Eminente ocorreu no prédio da UFRJ do Largo de São Francisco

e foi extremamente concorrida por engenheiros, por empresários, por alunos e

ex-alunos, por acadêmicos da Politécnica, por familiares e até pelos companheiros

do encontro de casais católicos. Na ocasião, Regina Castro nos brindou com um

tocante depoimento sobre o professor Dirceu.

simOnsEn

Quem cursou engenharia certamente não vai esquecer as provas do vestibular. Na

minha época, as três universidades situadas na cidade do Rio de Janeiro, a Universidade

do Brasil, com a Escola Nacional de Engenharia, a PUC-Rio e a Universidade do Estado

da Guanabara, realizavam as cinco provas de cada uma em sequência.

Eram quase três semanas, todos os dias – menos aos domingos. As provas da

Nacional eram realizadas no prédio do Largo de São Francisco, a partir das 8 horas. Os

candidatos ficavam desde cedo nas escadas e na praça esperando a abertura do prédio.

Os menos preparados eram nitidamente os mais nervosos e mais crentes em relação aos

boatos de última hora.

Mário Henrique Simonsen havia sido, e provavelmente ainda é, o melhor aluno que

havia passado pelo Colégio Santo Inácio. Sua brilhante inteligência e seu intenso gosto

pela matemática o fizeram, ainda aos 21 anos, professor de matemática pura e aplicada.

Isso o projetou na economia, tendo colaborado com o ministro Roberto Campos

durante o governo Castello Branco a partir de 1964. Cerca de dez anos depois, assumiu o

Ministério da Fazenda e após a Secretaria de Planejamento do governo João Figueiredo.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 65

Dedicou-se ao ensino na Fundação Getulio Vargas, entre muitas outras atividades.

Foi graduado pela Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, hoje

UFRJ, em engenharia civil e, no ano seguinte, cursou a pós-graduação em engenharia

econômica em curso coordenado pelo professor Carlos Nilo Gondin Pamplona

e apoiado pela Associação dos Antigos Alunos da Politécnica. Um ano depois, já

era professor desse mesmo curso. Em 1994, descobriu um tumor no pulmão com

metástase na cabeça. Seu leito na UTI era ao lado do leito de meu pai. Simonsen

faleceu precocemente, em 9 de fevereiro de 1997.

Graduado no científico do Colégio Santo Inácio como melhor aluno até então,

Simonsen estava inscrito no vestibular de engenharia. No alvoroço dos instantes antes

da abertura do prédio do Largo de São Francisco para a realização da primeira prova

do vestibular, que sempre era a de Álgebra, repentinamente foi procurado por um

grupo de candidatos aflitos dizendo que havia um “bizu”. Eles falaram que cairia o

teorema de Jean Pierre Constantin. Simonsen respondeu: “Teorema de Jean Pierre

Constantin? Não conheço, portanto não existe.”

A EmEntA

Cardápio em Portugal é ementa. Em 1989, estávamos iniciando as atividades

de nossa empresa de consultoria em Lisboa. Para chefiar o pequeno escritório,

retornou a Portugal o engenheiro José Chichorro Rodrigues, que havia trabalhado

na nossa equipe em Itaipu.

Estávamos desenvolvendo os estudos ambientais para o projeto da hidroelétrica

de Fridão, situada em uma das mais belas regiões do país, nas proximidades de

Amarante, no rio Tâmega, afluente do Douro. Outro serviço que nos interessava

era um estudo ambiental na lagoa de Óbidos, nas cercanias de interessantíssima

cidade medieval na área litorânea ao norte de Lisboa.

Em Óbidos há um castelo fortificado, construído no ponto mais alto da pequena

cidade murada, dominando a cidade e a lagoa. Nesse castelo foi instalada uma

pousada, designação de hotéis de luxo de propriedade do governo português. Na

primeira visita ao sítio do projeto, como tínhamos que almoçar, fomos à pousada.

O refeitório fica na antiga sala de armas, ambiente longo, porém estreito, devido a

haver, na época de sua construção, apenas estruturas de madeira ou de alvenaria de

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66 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

pedra para vencer grandes vãos. Um garçom muito gentil nos trouxe uma ementa.

Como éramos duas pessoas e tínhamos pressa, dei a minha para o Chichorro e pedi

outra. O garçom, que não estava acostumado com hóspedes apressados, disse com

muita educação: “Posso trazer outra ementa, mas alerto-vos: é idêntica a esta.”

fim cOm hOrrOr

O ilustre engenheiro Benedito Dutra, diretor de administração e finanças

nos primeiros anos de Furnas, depois secretário-geral do Ministério de Minas e

Energia, sempre dizia esta frase quando, penosamente, tinha que encerrar algo:

“Antes um fim com horror do que um horror sem fim.”

Um caso de fim com horror – no qual Dutra não teve participação, aliás – foi o

fechamento abrupto do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS)

no governo de Fernando Collor de Mello. Já o horror sem fim veio depois.

O departamento foi resultado de uma comissão criada em 1933 com a missão

de promover o saneamento. As atividades iniciaram-se nas obras de drenagem da,

então insalubre, Baixada Fluminense, sob a orientação do engenheiro Hildebrando

de Araújo Goés. Foram décadas de serviços prestados à população brasileira,

estendendo suas atribuições à implantação de obras para drenagem, controle de

cheias, geração de energia elétrica, irrigação, abastecimento de água, paisagismo

urbano, controle de estuários e regularização de descargas.

No total, 59 barragens com essas finalidades foram implantadas. Nas atividades

do DNOS, destacaram-se vários engenheiros, entre os quais Paulo José Poggi

Pereira e Otto Pfafstetter. Uma das bacias hidrográficas com obras para controle

de cheias é a do rio Itajaí-Açu, em Santa Catarina. Lá foram construídas três

barragens com esse objetivo – a maior delas, a Barragem Norte, no rio Ibirama.

Esta tinha um reservatório de capacidade de amortecimento de 263 milhões

de metros cúbicos, formado por uma barragem de terra de 63 metros de altura

com vertedouro principal de superfície, sem comportas, do tipo canal lateral.

Provavelmente, o de maior capacidade desse tipo no Brasil. Essa obra, como

outras, ficou repentinamente inacabada e sem um órgão responsável. Embora

quase pronta, havia ainda estruturas a serem concluídas.

O exemplo dessa obra foi um dos mais marcantes. Com a repentina ausência do

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 67

Departamento, os índios da região assumiram o local das obras, que haviam sido

abandonadas, e passaram a gerir a barragem por anos a fio. Por sorte, o vertedouro

de lâmina livre não era controlado por comportas, mas evidentemente a carência de

uma gestão competente resultava no meio técnico apreensões sobre a segurança.

O rEitOr

Eminente historiador, Pedro Calmon foi por muitos anos reitor da Universidade

do Brasil. À frente desse cargo, ele vivenciou experiências que refletiram, durante um

período da história brasileira, uma nítida preponderância do poder executivo, exercido

por militares reformados e eleitos em pleitos indiretos pelo Congresso Nacional.

Nessa época, principalmente a partir de 1968, eram comuns os movimentos

estudantis de enfrentamento aos militares. Nem sempre Calmon era tratado pelos

alunos da Escola Nacional de Engenharia com a educação que merecia. Em uma

ocasião, quando visitava as obras do Centro de Tecnologia na Cidade Universitária, o

presenciei sendo obrigado por estudantes a andar por caminhos pouco seguros.

Ainda assim, não foram poucas as ocasiões em que ele ajudou estudantes,

principalmente membros do Diretório Acadêmico, para que não fossem presos. Em um

dos episódios mais marcantes, alunos de diversas unidades da Universidade, inclusive

da Escola de Engenharia, se refugiaram no prédio da Faculdade de Direito, na Praça

da República, e atiravam objetos contra forças policiais que cercavam o prédio.

A notícia chegou ao reitor, que se deslocou rapidamente para lá. Ao chegar, se

deparou com destacamentos da polícia e do Exército se preparando para entrar

no prédio. Um enfrentamento seria inevitável e suas consequências poderiam ser

dramáticas. Calmon se postou na entrada principal do prédio e impediu a entrada,

dizendo uma frase que seria difundida na época: “Aqui na universidade só se entra após

ter passado no vestibular.”

pAlEstrA pArA univErsitáriOs

Esta história é contada em detalhes pelos engenheiros Paulo Coreixas e Erton

Carvalho. Um dos mais destacados tecnologistas de concreto do País, consultor

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68 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

de importantes projetos no Brasil e no exterior, o engenheiro Walton Pacelli

de Andrade, comandava o laboratório central de Furnas em Goiânia. Ele fora

convidado para apresentar uma palestra sobre tecnologia avançada do concreto

na universidade.

Antes de sair, reuniu alguns dos membros da sua equipe e entregou uma folha

de papel para cada um. “Com o objetivo de quebrar o gelo, preparei para cada um

de vocês essas perguntas a serem endereçadas a mim quando eu tiver concluído

a palestra.” Ao final da apresentação, como previsto, os universitários não

fizeram perguntas. Como combinado, o engenheiro Rubens Machado Bittencourt

consultou o papel que havia recebido e formulou a pergunta que estava nele

redigida.

Ao ouvir, o esquecido Pacelli respondeu: “Me admiro muito de você, Rubão,

que trabalha há tanto tempo comigo, não saber uma coisa elementar como essa!”

Depois disso, nenhum dos outros ousou formular qualquer pergunta.

hiDráulicA DE vErtEDOurO

Em visita à hidroelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, uma grande comitiva

estava em uma das extremidades da crista do vertedouro, na época o de maior

capacidade do mundo. Com velocidade, a água passava tangencialmente ao muro

lateral, a montante do vão extremo direito. Quando isso acontecia, por mudar de

direção, provocava um vórtice no sentido horário.

Ao olhar essa cena, o presidente da Eletrobras, engenheiro Mário Bhering,

destacado técnico do setor elétrico, recordou as aulas teóricas de hidráulica.

Apontou para o vórtice e disse que aquilo estava acontecendo devido à aceleração

de Coriolis, relacionada à rotação da Terra, que faz com que no hemisfério sul,

quando a água escoa para baixo, haja um movimento giratório no sentido horário

e um movimento contrário no hemisfério norte.

Quando a comitiva chegou à outra extremidade do vertedouro, o fluxo,

influenciado pelo outro muro lateral, provocava um vórtice no sentido anti-

horário. O engenheiro José Turco Neto, que acompanhava a comitiva, falou à

meia voz: “O vertedouro é tão longo que cruzamos o Equador.”

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 69

A brEchA

Uma das ensecadeiras de segundo estágio do desvio do rio para a construção da

hidroelétrica de Tucuruí, no rio Tocantins, estava para ser fechada. O competente

engenheiro José Renato Kling Cotrim, que participou do projeto desde o seu início,

se diverte quando lembra desse fechamento.

Devido à importância da obra, a mídia fez uma ampla divulgação. Depois de

marcada a cerimônia, foi feito um trabalho especial para deixar para esse dia apenas

um trecho muito pequeno, que seria aterrado com toda a pompa e circunstância.

As autoridades ficariam em um canteiro de obra, com visão ampla da operação, que

seria feita em minutos.

Até o dia anterior do evento, uma pequena vazão passava pelo trecho de

aterro que faltava na ensecadeira. Porém, ao amanhecer do dia marcado, com as

autoridades chegando e o rio já desviado, não mais havia fluxo de água escoando

pelo trecho da ensecadeira que faltava ser executado.

Isso aconteceu porque, durante a noite, a descarga do rio diminuiu e,

consequentemente, o nível d’água diminuiu também, ficando abaixo do trecho a ser

fechado. Foi uma correria: as equipes rapidamente mobilizaram escavadeiras para

executar uma brecha no trecho que não estava completo, até pouco abaixo do nível

d’água. Assim a água voltaria a fluir sobre o aterro.

Todos se posicionaram para assistir ao fechamento da ensecadeira. A imprensa se

preparou para filmar e fotografar. Os tratores entupiram a brecha ao som de aplausos

dos presentes. Ninguém, exceto os envolvidos diretamente com a obra, ficou sabendo

que esse tinha sido, na realidade, o segundo fechamento daquela ensecadeira.

A primEirA AulA A gEntE nãO EsquEcE

Como em todos os anos, no início de 1968 o professor Flavio H. Lyra ofereceu a sua

sala de reunião em Furnas, onde era diretor técnico e vice-presidente, aos seus alunos

da disciplina de Aproveitamentos Hidroelétricos. Como acontecia todos os anos, eles

aceitaram prontamente e fugiram nesses dias das instalações ainda precárias da UFRJ,

em construção na Cidade Universitária.

Em uma quarta-feira do início do ano letivo, o consultor austríaco em geotecnia

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70 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Arthur Casagrande, contratado por Furnas e por diversas outras grandes empresas

do setor elétrico, iria visitar as obras em execução. O professor Lyra teria que

acompanhá-lo e, por isso, pediu ao chefe do Departamento de Engenharia de Furnas,

Franklin Fernandes Filho, que o substituísse em sala de aula.

No mesmo dia, pouco após o início do expediente, Franklin adentra a sala do grupo,

que na época gerenciava o início dos projetos das hidroelétricas de Porto Colômbia e

Marimbondo. Muito afobado, como de costume, dirigiu-se ao coordenador do grupo,

o engenheiro Humberto Pate, e pediu que o substituísse. Contou que um amigo tinha

sido baleado no Espírito Santo e que teria que viajar para lá com urgência.

Pate, que tinha um temperamento oposto, ficou surpreso e perguntou: “Franklin,

que dia será essa aula?” E recebeu uma resposta rápida: “Dentro de dez minutos,

na sala de reunião.” “E qual é o assunto?”, questionou novamente. “Investigações

preliminares. Adeus.”

Visivelmente nervoso, Pate me disse: “Miguez, você fez esse curso no ano passado

e sabe como são essas aulas. Assume isso, eu estarei lá com você.” Naquela época, os

desenhos dos projetos eram agrupados por assunto e colocados em cabides. Pegamos

alguns deles e os levamos para a sala, com o objetivo de mostrarmos o que se costumava

fazer em investigações de campo nas áreas de geologia, geotecnia, fluviometria e

cartografia. Para falar sobre os critérios para a programação de sondagens e ensaios in

situ, comecei descrevendo a geologia dos dois locais, dizendo que eram situados sobre

derrames basálticos intercalados com horizontes de arenito e/ou brecha.

Dias depois, ao retornar do Espírito Santo, Franklin nos chamou à sua sala e disse

que deveríamos ministrar mais aulas sobre o assunto. Os alunos tinham gostado muito

e, segundo acrescentou, disseram que só não entenderam nada do que veio depois de

derrames basálticos. Ministrei naquele ano e em anos seguintes quatro aulas sobre

fundamentos de geologia.

bOlO DE ApOstAs

Apostas são mais comuns do que se pensa na universidade. Os alunos podem

até não prestar muita atenção nas aulas, mas não perdem nenhum detalhe dos

professores. Não raro se desenvolve admiração por uma professora bonita.

Gilda de La Roque era um desses casos. Ela entrou na Escola Nacional de

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 71

Engenharia em 1961. Foi monitora de cálculo vetorial a partir de 1963. Sempre

elegante e com ótima didática, conseguia dominar um auditório de 100 alunos do

primeiro ano, que não perdiam suas aulas.

O engenheiro Erton Carvalho, destacado profissional, presidente de prestigiosas

associações técnicas e consultor de importantes obras hidráulicas, era professor na

engenharia civil da UFRJ no curso de hidráulica. Sua competência e dedicação

sempre cativavam os alunos, que eram observadores e percebiam na sua dedicação

o desejo de que as matérias ensinadas fossem devidamente absorvidas.

A Dra. Heloisa Firmo, hoje ilustre professora do mesmo curso, conta que, ao

fim das aulas, o Erton, no seu entusiasmo pela matéria e após preencher a lousa

ilustrando suas explicações, quase sempre tinha a roupa e o rosto impregnados

de pó de giz. Durante as aulas, corria um bolo de apostas para verificar em que

instante o seu rosto receberia a primeira camada de giz.

Sabedor disso, eu muito raramente usava giz. Quando o fazia, usava giz

importado, que não deixava pó nas mãos, trazido para mim dos Estados Unidos

por minha querida sobrinha e afilhada Ana Gregori. Mas certamente meus alunos

devem ter reparado em muitas características da minha personalidade e eu também

devo ter sido alvo de comentários e apostas.

EstAgiáriOs

Furnas costumava oferecer todos os anos, durante as férias escolares de julho,

estágios em suas obras para os estudantes do último ano de engenharia civil. Como

diretor técnico e vice-presidente da empresa, o professor Flavio H. Lyra oferecia

essa extraordinária oportunidade aos seus alunos da disciplina Aproveitamentos

Hidroelétricos da UFRJ. Os estágios eram na obra em que havia maior intensidade de

construção.

Como sucedi ao Dr. Lyra como responsável por essa disciplina – depois de mim

vieram Adolfo Szpilman, Luiz Felipe Pierre, eu novamente e, atualmente, Heloisa

Firmo –, essa oportunidade que dávamos aos estudantes permaneceu por muitos

anos. Ao longo desse tempo, muitos episódios interessantes aconteceram.

Em uma dessas ocasiões, o estudante Carlos Alfredo Paiva chegou à obra da

hidroelétrica de Marimbondo. Era uma segunda-feira da primeira semana de

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72 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

julho, no início da década de 1970. No meio da semana, ele pediu para retornar

ao Rio de Janeiro no voo da sexta-feira. Disse que iria se casar.

Ninguém acreditou, mas o chefe da obra, engenheiro Rubens Vianna de

Andrade, e seu auxiliar imediato, engenheiro José Luiz Sá Freire de Pinho,

concederam uma vaga em um dos pequenos aviões que conectavam três vezes

por semana as obras no rio Grande ao escritório central, no Rio de Janeiro. Na

segunda-feira, para espanto geral, Carlos Alfredo reapareceu em Marimbondo

com a recém-casada esposa. A lua de mel foi na obra, durante o mês do estágio.

Outro estagiário dessa época foi Ricardo Ivan Bicudo. Magro e elegante

desde a época de estudante, e até hoje, ele se fartava com os deliciosos almoços

e jantares preparados pelo Alexandre Penacchi, responsável pelas refeições dos

que se alojavam na obra. Acabou o estágio sofrendo de uma forte úlcera.

Depois de formado, Bicudo foi contratado pelo engenheiro Joaquim Pimenta

de Ávila, passando a fazer parte de uma eficiente equipe de projetos geotécnicos.

Um dia, um dos filhos pequenos do Joaquim chegou a casa depois do colégio e

disse que estava apaixonado por uma menina do colégio. “Mas o nome dela é

estranho: Bicudo”, comentou.

Já a menina, curiosa com o trabalho do pai, pediu para ir ao escritório durante

um dos dias das férias escolares. Naquele dia, Bicudo teve uma intensa agenda

de reuniões sucessivas. Ao chegar em casa, a filha denunciou o pai para a mãe:

“Mamãe, descobri que o papai não faz nada o dia inteiro. Fica só conversando

com os amigos.”

águA Em sEis DiAs

Esse é um dos episódios de grande repercussão da engenharia. No final do século

XIX, o abastecimento de água na cidade do Rio de Janeiro era pouco confiável – o

que não difere muito dos dias atuais. Isso porque, atualmente, depende quase na

totalidade da bacia do rio Guandu.

A situação ficou crítica no verão de 1888/1889, época de intenso calor e surto de

febre amarela. Impelido pelo clamor popular, o governo imperial emitiu uma nota pela

imprensa solicitando a solução para o abastecimento no mais curto prazo possível. A

ideia era que essa obra fosse considerada prioritária e, assim, tivesse respaldo financeiro.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 73

O engenheiro Francisco de Paula Bicalho apresentou um plano de trabalho,

que previa que essa implantação demandaria quatro meses. No dia 15 de março, o

jovem e ainda desconhecido engenheiro Paulo de Frontin se comprometeu pelos

jornais a colocar água na cidade em seis dias. Isso significava um acréscimo de

10.400 litros por minuto, e com um custo muito menor. A estratégia era fazer

novas captações na Serra do Mar, na localidade do Rio D’Ouro.

O imperador Pedro II acreditou no jovem engenheiro. No dia 16 de março,

o contrato estava assinado, com cláusulas draconianas. Dois dias depois, 360

trabalhadores estavam mobilizados, chefiados pelos engenheiros Carlos

Sampaio, Julio Paranaguá e João de Barros Carvalhais. A fiscalização ficou a

cargo do engenheiro Raymundo Belfort Roxo. Na obra foram usados tubos

disponibilizados pelo governo, que também se encarregou do transporte por via

ferroviária.

A chuva foi inclemente durante toda a obra. Entretanto, no dia 23, como

prometido, a água chegava à caixa-d’água do Barrelão, estrutura da adutora Rio

D’Ouro, na Serra do Tinguá. Por causa das duras condições locais e da chuva

intensa, jovens jornalistas foram destacados para cobrir essa curta epopeia.

Assim como o engenheiro Frontin, eles também eram desconhecidos na época:

Olavo Bilac, Raul Pompéia e Coelho Neto.

Esse feito projetou nacionalmente o engenheiro Paulo de Frontin. Pelo texto

acima, nota-se que, naqueles tempos, engenheiros eram reconhecidos pela

sociedade e cediam os seus nomes, após a morte, a importantes logradouros

públicos.

O sistema do Rio D’Ouro foi melhorado ao longo dos anos e é operacional

até hoje, embora contribua com apenas 2% do abastecimento da região

metropolitana do Rio de Janeiro. Até a minha época de estudante, esse episódio

era narrado nas aulas de hidráulica das escolas de engenharia. Eu o ouvi dos

professores Theophilo Benedicto Ottoni Neto e Flavio H. Lyra, que achavam

que as chuvas, apesar de terem atrapalhado as obras, foram fundamentais para

que a vazão prometida tivesse sido captada. Infelizmente, por ter ocorrido em

um passado remoto, esse episódio não é mais relatado nas escolas de engenharia

da atualidade.

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74 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

cOmO sE DEvE fAzEr

Trabalhei para a Light em todas as suas fases institucionais, desde o final do período

canadense. Em dois contratos tive o privilégio de atuar com o engenheiro Wilsom

D’Andrea, um dos superintendentes da empresa em São Paulo. Ele lembra uma reunião

que aconteceu na época em que a companhia foi encampada pelo governo central.

Diretores da Eletrobras endereçavam aos gerentes de suas subsidiárias instruções

veementes de que não fossem contratados serviços sem verba alocada – era como se

eles estivessem recebendo uma reprimenda. Na sua estreia como estatal, D’Andrea,

espantado, disse que na Light canadense era diferente: um serviço só poderia ser

contratado quando, além de constar na programação financeira e ter verba aprovada,

houvesse o carimbo da tesouraria situada no segundo andar, garantindo haver recurso.

Seria bom se, no setor elétrico, tudo tivesse sido feito assim.

EntusiAsmO ExAgErADO

O engenheiro Mário Santos é conhecido pela sua elevada capacidade e pelo seu

constante e contagiante entusiasmo. No livro A História das Barragens no Brasil,

editado pelo Comitê Brasileiro de Barragens em 2011, há uma extensa entrevista sua

que retrata a sua brilhante carreira e sua permanente franqueza, que é também uma

marcante característica da sua personalidade.

Em julho de 2013, a Fundação Getulio Vargas (FGV) promoveu um simpósio sobre

a matriz energética brasileira. Em dado momento, o engenheiro Mário Menel Cunha,

que era o moderador de uma sessão, enfatizou a importância de os debatedores se

manterem nos 15 minutos previstos para as suas exposições. Classificando-se como

idoso, ele disse que, como todos os velhos, iria exemplificar contando uma história.

Quando integrava o alto escalão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel),

assistiu a uma apresentação do conceituado engenheiro Mário Santos em um evento

no qual o engenheiro José Luiz Alquéres era o coordenador de debates. Empolgado, o

palestrante já havia ultrapassado em muito o tempo que lhe havia sido concedido.

Alquéres, depois de tentar sinalizar algumas vezes que o tempo estava esgotado,

mandou um recado por escrito para Mário Menel, que estava na plateia: “Por favor, use

da sua posição de órgão concedente, pois eu só posso interrompê-lo abatendo-o a tiros.”

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 75

prOspEcçãO minEirA

Juiz de Fora é a mais carioca das cidades mineiras. Essa ligação vem desde que

Mariano Procópio implantou a Estrada União Indústria, no Segundo Império. E

se intensificou depois da construção da ferrovia da Leopoldina, que saía do Rio de

Janeiro e chegava a Minas Gerais.

Para provocar os residentes na capital mineira, na estação ferroviária de Juiz de Fora,

havia (e está preservada até hoje) uma placa com duas setas em sentidos contrários.

Uma indicava que para um lado estava o Rio de Janeiro e, para o outro, o interior.

A Companhia Mineira de Eletricidade tinha a concessão de distribuição de energia

elétrica em Juiz de Fora, até ter sido adquirida pela Cemig. Suas usinas geradoras

estavam localizadas no rio Paraibuna, que corta a cidade. Entre os seus projetos de

expansão de geração estavam os estudos feitos pelo engenheiro João Brasil Camargo

das hidroelétricas de Sobragy, no rio Paraibuna, e de Picada, no rio do Peixe, ambas

perto da sede municipal.

A Companhia Paraibuna de Metais era uma indústria eletrointensiva, cuja demanda

de energia se encaixava com o que essas duas hidroelétricas poderiam produzir. Eu levei

para os principais executivos da empresa – o industrial Raymundo Pessoa e o engenheiro

Geraldo Magela de Mattos Sanabio – a ideia de torná-la autoprodutora de energia

elétrica através da implantação dessas duas usinas, o que, de fato, veio a acontecer. Os

projetos saíram do papel, tendo 110 megawatts de capacidade instalada conjunta.

No final dos anos 1980, iniciamos o projeto da hidroelétrica de Sobragy, situada em

um conjunto de corredeiras a jusante da cidade de Juiz de Fora e da confluência com

o rio do Peixe. Não confirmo se é verdade ou se faz parte do folclore mineiro, mas as

más línguas, para me provocar, contavam uma história sobre o seu Wilson, que era

proprietário das terras na margem direita do rio no local da usina.

Em conversa no botequim, seu Wilson teria externado o desejo de, numa próxima

vez que estivesse no campo o engenheiro carioca de pele clara e olhos azuis que havia

proposto o projeto da hidroelétrica para a Companhia Paraibuna de Metais, pedir a

ele que locasse uma pequena estrada terminando no curral de sua fazenda, com a

topografia que estava sendo levantada na região.

Um caboclo, ouvindo a conversa, teria dito para o seu Wilson: “Esses engenheiros

da cidade são muito caros. Leve o seu burro até o ponto extremo, solte ele lá e venha

atrás dele fincando estacas de madeira no terreno. O burro irá até o curral em nível”,

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76 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

aconselhou. “Mas o meu burro morreu”, disse o seu Wilson, ao que o outro acrescentou:

“Então não tem jeito, contrate o engenheiro.”

Não presenciei esse diálogo e desconfio que foi invenção da equipe de projeto. Mas,

se ocorreu, sei a quem o senhor Wilson se referia.

Já esse fato que narro a seguir se passou comigo. Um dia, o engenheiro Geraldo

Magela, mineiro de Mar de Espanha, me telefonou pedindo que eu enviasse a turma

de sondagem para a margem esquerda, oposta ao local previsto para a casa de força, e

iniciasse uma curta campanha de sondagens à percussão.

Argumentei que não havia motivo para essas sondagens, uma vez que a casa de força e

o túnel de adução seriam construídos na margem direita e na margem oposta não haveria

nenhuma estrutura. Magela disse que sabia disso, mas que o seu Wilson não sabia.

Para quebrar a resistência dele com relação à venda de suas terras, o que vinha sendo

um verdadeiro pesadelo, o engenheiro iria espalhar no botequim que toda a adução do

projeto seria pela margem esquerda. Consequentemente, não precisaria mais adquirir a

fazenda do seu Wilson. Foi tiro e queda. Quando ele viu que estavam sendo executadas

sondagens na outra margem, prontamente aceitou vender as suas terras.

O seu Wilson ficou feliz com o resultado da negociação. Foi fichado na Companhia

Paraibuna de Metais com a função de tomar conta e explorar as terras que tinham sido

dele e, com o dinheiro recebido, comprou uma pequena fazenda vizinha.

O DiciOnáriO

No início dos anos 1960, a Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB)

editou um dicionário de termos técnicos em barragens para os idiomas francês, inglês

(britânico e americano), espanhol, italiano, alemão e português lusitano.

Considerando o boom de implantação de grandes projetos no Brasil e a estruturação

do Comitê Brasileiro de Barragens, resolvemos incluir o português do Brasil em uma

segunda edição. Fui encarregado de preparar os termos em português do Brasil no início

de 1968 e contei com o importante apoio do experiente engenheiro Arthur Crocchi.

No ano seguinte, antes do advento das cópias Xerox, o engenheiro Franklin Fernandes

Filho, chefe do Departamento de Engenharia de Furnas, iria participar das Terceiras

Jornadas de Engenharia dos Países de Idioma Português em Angola e Moçambique,

ocasião na qual os membros dos comitês brasileiro e português iriam discutir os novos

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 77

termos técnicos a serem introduzidos no dicionário da CIGB. Franklin me pediu a

minuta dos termos brasileiros. Prontamente entreguei o original. Percebendo que eu

retinha duas cópias em carbono, ele me pediu as cópias que eram as únicas outras vias.

Muito temeroso, as entreguei.

Meus mais tenebrosos pressentimentos não falharam: Franklin perdeu as três únicas vias

na viagem antes mesmo de chegar a Angola. Tive que fazer tudo novamente. Entretanto,

fiquei sabendo termos em português que me ajudaram a redigir relatórios de serviços que

fiz, muitos anos depois, em nossas firmas sediadas em Portugal e em Moçambique.

Termos como deslocação, desmatação, regolfo, impacte, albulfeira, sapal, betão,

evacuador de cheias e outros são muito diferentes dos usados no Brasil. No início dos

anos 1970, a nova edição do dicionário da CIGB passou a conter os termos brasileiros.

Em 2011, Itaipu, com base no dicionário da CIGB e sob a competente coordenação do

engenheiro Miguel Sória, editou precioso dicionário de termos técnicos em barragens

nos idiomas português, inglês, francês e espanhol.

O blEfE

O engenheiro Miguel Fernández Y Fernández, dono de vasto e brilhante currículo

em saneamento, foi meu aluno de hidráulica no final da década de 1960. Seu filho

Miguel, muitos anos depois, também foi meu aluno no mesmo curso. Isso deve ser carma

familiar! O Miguel sênior me contou interessante episódio ocorrido com o engenheiro

Enaldo Cravo Peixoto que havia sido secretário de obras do Estado da Guanabara no

governo Carlos Lacerda. O fato foi presenciado pelos engenheiros Fernando Botafogo,

Adilson Seroa da Motta e Constantino Arruda. Estava em projeto o que veio a ser o

Interceptor Oceânico, grande obra de saneamento no Rio de Janeiro que envolvia em

sua extremidade de jusante, o Emissário Submarino situado na já então famosa praia de

Ipanema, imortalizada por Vinícius de Moraes e Tom Jobim. Havia intensa preocupação

na população de que, após o lançamento no fundo do mar, o esgoto retornasse à praia.

Foi convocada uma coletiva de imprensa, o que equivaleria hoje a uma audiência pública,

na qual os projetistas, capitaneados pelo engenheiro Enaldo Cravo Peixoto, foram

submetidos a uma série de perguntas. Quando um jornalista, abordando a grande

preocupação geral, perguntou se havia possibilidade das fezes incidirem na praia, Enaldo

blefou, com veemência e firmeza: “Prezado jornalista. Anote aí o que eu vou dizer. O

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78 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

que garante que as fezes nãovoltarão à praia é a teoria da impedância relativa das águas

profundas.” Instalou-se uma silenciosa perplexidade e, não havendo mais perguntas, a

sessão foi encerrada para alívio dos engenheiros.

O iníciO DE itAipu

Nos anos 1970, quando as obras da hidroelétrica binacional Itaipu foram

iniciadas, tudo era novidade e os questionamentos eram frequentes. Até mesmo o

plenipotenciário presidente Alfredo Stroessner, que governou o Paraguai de 1954 a

1989, foi questionado. As obras começaram com a escavação de um grande canal na

margem esquerda, a margem brasileira.

Esse canal tinha a função de desviar as águas do rio Paraná para que fosse possível a

execução da barragem principal e da casa de força no leito natural do rio. Nesse canal,

antes do desvio, foram implantadas ensecadeiras, barragens provisórias que protegiam

a construção de estrutura que iria fechar o reservatório. Como a escavação do canal foi

em grande parte em rocha, esse material foi aproveitado para o início da execução da

barragem de enrocamento da margem esquerda.

Enquanto o canal de desvio estava sendo executado na margem esquerda, o

descarregador de cheias estava sendo projetado para ser implantado na margem direita.

Um questionamento foi feito ao presidente Stroessner: por que todas as obras estavam

sendo feitas exclusivamente na margem esquerda, ou seja, no Brasil? A resposta foi

digna de um político do antigo PSD mineiro: “Las obras preliminares van a ocurrir en

suelo brasileño: el canal de desvio y suyas ataguias de aguas arriba y de aguas abajo,

que son las obras provisionales. El vertedero de seguridad, que es la obra definitiva, va

a ocurrir en suelo paraguayo!”

itAipu sErrADA

No início de construção das estruturas de concreto no leito do rio Paraná em Itaipu, um

visitante recebido pelo chefe da obra, engenheiro Rubens Vianna de Andrade, ao examinar

uma seção transversal pela tomada d’água e casa de força que estava fixada na parede do

escritório da obra, estranhou que no campo não havia a junta entre as duas estruturas

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que estava indicada no desenho. Realmente foi verificado que a concretagem estava sendo

feita sem a junta. Os projetistas das duas estruturas foram chamados e reagiram, pois não

gostaram de ter que recalcular todo o projeto passando a admitir a continuidade estrutural.

A solução foi encontrada com a aplicação de grande serra utilizada em mineração para

fazer a junta na interface das duas estruturas e mantê-las estruturalmente independentes.

O sAláriO DO prEsiDEntE

No início dos anos 1970, Furnas estava construindo a primeira unidade da usina

nuclear de Angra dos Reis. Como existia uma série de dificuldades na obra, o engenheiro

Alceu Braga Lopes foi contratado para prestar uma consultoria. Ele iria ajudar na

análise dos equipamentos de construção, métodos construtivos, organização do canteiro,

logística de suprimentos, programação de construção e de montagem, organização da

fiscalização e outros aspectos visando melhorar a eficiência da implantação da usina.

Alceu Lopes foi formado em engenharia química pela atual UFRJ em 1952. Na

época em que foi contratado por Furnas para a referida consultoria, era assistente

da diretoria da Montreal. Em seu relatório, Alceu colocou muito claramente as

deficiências que estavam prejudicando o bom andamento da construção. Um dos

itens do relatório foi uma crítica aos salários da equipe de Furnas, considerados

muito baixos e defasados no mercado. E isso incluía explicitamente os salários dos

diretores da empresa.

Pouco após ter sido entregue o relatório, Alceu foi chamado para uma reunião

na sede de Furnas. Conduzido pelo engenheiro Fernando Antônio Candeias,

diretor de administração, ele foi introduzido na sala do presidente da empresa,

o engenheiro John Reginald Cotrim, onde estavam aguardando os engenheiros

Flavio H. Lyra, diretor técnico, Luiz Carlos Barreto de Carvalho, diretor de

operação, e outros representantes da alta administração.

Cotrim, mostrando-se contrariado, tinha nas mãos uma via do relatório e

comentou que nele havia críticas à empresa. Alceu afirmou que o documento

refletia o que foi constatado na obra e que seu objetivo era colaborar com a

companhia, e não a criticar. Após uma discussão sobre o conteúdo do relatório,

Alceu foi convidado a assumir o comando da construção da usina nuclear. Era um

tremendo desafio, pois a central nuclear era um empreendimento de ponta para a

engenharia brasileira.

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80 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Alceu então pegou uma folha de papel, escreveu um número, dobrou a folha

e entregou-a ao Candeias, pedindo que ele passasse ao Dr. Lyra. Disse que nela

estava escrito o seu salário na Montreal. Ao ler o conteúdo, Dr. Lyra manifestou

certo espanto. A partir daí, Alceu ficou afastado do grupo enquanto os diretores

debatiam as possibilidades de contratação. Após a conclusão dos debates, Cotrim

se dirigiu ao Alceu e disse que, se ele aceitasse comandar a obra, seria admitido

imediatamente como assistente do Dr. Lyra e, posteriormente, transferido para

Angra dos Reis com um adicional de 30% sobre o salário. Com isso, ele teria

os mesmos proventos do presidente da empresa. Alceu aceitou e assumiu a

superintendência da construção da usina nuclear, indo residir na obra, e, desde

então, passou a ficar muito vinculado à região de Angra dos Reis.

As bArrAgEns, Os pOrtuguEsEs E O futEbOl

Meu primeiro contato com os portugueses foi através do futebol. O Fluminense

havia sido campeão carioca de 1951 com uma equipe aparentemente modesta,

chamada pejorativamente pelos adversários de timinho. Entretanto, a equipe dirigida

por Zezé Moreira, que introduziu naquele ano a marcação por zona, tinha jogadores

virtuosos como Píndaro, Pinheiro, Telê, Carlyle, Orlando e Didi, além dos dois

melhores goleiros que já vi atuar nos meus mais de 60 anos de futebol: Castilho e

Veludo, que, infelizmente para os tricolores, foram contemporâneos em uma posição

que não admite dois jogadores atuando ao mesmo tempo no mesmo time.

No ano seguinte, em 1952, buscando cicatrizar a ferida aberta em 1950 pela

perda no Maracanã do campeonato mundial para o Uruguai, em cuja seleção

atuava o extraordinário ponta de lança Miguez, foi organizado, com apoio da

FIFA, um campeonato mundial de clubes campeões. Foram convidados campeões

de vários países, além dos campeões de São Paulo e do Rio de Janeiro. Eu, que,

por ser na época muito pequeno, só havia assistido a um jogo da Copa do Mundo de

1950, pude acompanhar todos os jogos do Fluminense no campeonato dos campeões

mundiais, que foi denominado de Taça Rio. A partida que mais me marcou foi contra

o Sporting, campeão de Portugal, que naquela época contava com ótimo plantel, no

qual se destacavam os cinco violinos – assim chamados porque jogavam por música –,

comandados por Travassos.

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O resultado foi um empate por 0x0 devido às grandes atuações dos goleiros

Castilho, pelo Fluminense, e Carlos Gomes, pelo Sporting. Depois desse jogo, passei

a simpatizar com o Sporting em Portugal. A campanha prosseguiu e o Fluminense,

invicto, se sagrou campeão dos campeões do mundo.

Logo após a minha formatura na Escola Nacional de Engenharia da Universidade

do Brasil, hoje Escola Politécnica da UFRJ, tangenciei o projeto da hidroelétrica de

Funil, no rio Paraíba do Sul, projetada pela Coba, empresa portuguesa de engenharia

consultiva com sede em Lisboa.

Em 1973, a minha admiração pela engenharia hidráulica e geotécnica portuguesa se

consolidou durante excelente treinamento que me foi propiciado no Laboratório Nacional

de Engenharia Civil. Ao indagar o endereço do Laboratório, fui surpreendido pela

resposta: o Laboratório era tão conhecido que dispensava endereço; para lá chegar bastava

ir à Avenida do Brasil, em frente à Avenida do Rio de Janeiro. Endereço inesquecível.

Nesse treinamento tive o privilégio de ter sido orientado pelo destacado engenheiro

e pesquisador Ricardo de Oliveira, que até hoje possivelmente não desconfia do elevado

grau de amizade e de admiração que gerou em minha pessoa.

Por motivo da crise política e econômica que logo depois se alastrou em Portugal, a

partir de meados dos anos 1970, tive a oportunidade de trabalhar com muitos competentes

engenheiros provenientes de Portugal e de suas antigas províncias ultramarinas.

Em 2002 fiquei muito honrado por ter sido convidado para ministrar aulas em um

curso sobre segurança de barragens em Lisboa, promovido pela Direcção Nacional de

Águas e pela Comissão Portuguesa de Grandes Barragens. Minha última aula foi no

dia seguinte ao que o Sporting havia conquistado o campeonato português de futebol,

depois de um longo período em que se destacavam o Benfica e o Porto.

Lisboa estava em festa. Em todas as aulas, eu havia usado exemplares da minha

coleção de gravatas dos comitês nacionais da Comissão Internacional de Grandes

Barragens. Nessa derradeira aula, eu estava usando uma verde do Comitê da Irlanda.

Ao terminar a aula e os debates, uma última mão foi erguida para uma pergunta.

Era um senhor, certamente engenheiro experiente, que poderia colocar uma pergunta

de difícil resposta. Até então eu havia respondido satisfatoriamente a todos os

questionamentos. Ele elogiou a cor verde da minha gravata, a mesma cor do Sporting,

e me fez a pergunta, que eu não soube responder: “Senhor engenheiro, por que o Jardel

não foi convocado para a Seleção Brasileira?” Jardel, atacante revelado pelo Vasco da

Gama, era o ídolo máximo da torcida do Sporting.

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82 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Finalmente, ao encerrar o curso, eu deixei uma relação de referências bibliográficas

sobre segurança de barragens, em português e nos dois idiomas oficiais da Comissão

Internacional de Grandes Barragens, inglês e francês. Lembrando que as minhas

filhas não tiveram aula de francês no colégio, e que na sala havia alguns jovens

engenheiros, perguntei se todos liam em francês. Interpretei o silêncio que se seguiu

como uma resposta afirmativa. Ao me retirar da sala aliviado, dois jovens engenheiros

se aproximaram e disseram: “Senhor engenheiro, nós podemos ler em francês, mas não

percebemos.”

O câmbiO, O tAxistA E O prOfEssOr

Tendo feito especialização em hidráulica, resolvi cursar a pós-graduação em

geologia. Na época, final dos anos 1960 e início dos anos 1970, os cursos de geologia

da UFRJ eram sediados no prédio do Largo de São Francisco, no centro do Rio de

Janeiro. Em 1972, o saudoso professor Ronaldo Azambuja, então diretor do Instituto

de Geociências, convidou o Dr. Ricardo de Oliveira, pesquisador e chefe da geologia

do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), em Lisboa, para ministrar

um curso sobre mecânica de rochas. Tive o privilégio de participar como aluno desse

curso, mas só em 2013 é que soube de algumas coisas que ocorreram, as quais passo

a relatar a seguir.

Tudo acertado, Ricardo se deslocou para o Rio de Janeiro depois de alguns meses.

Antes, ao aceitar, ele havia perguntado quanto era a remuneração, que converteu para

dólares americanos da época. Ao final do curso, Azambuja entregou um cheque em

cruzeiros de valor muito inferior ao que o Ricardo esperava. Ao ser perguntado pelo

valor correspondente em dólares, Azambuja respondeu que aquele valor de meses

atrás correspondia ao câmbio daquela época, mas a volatilidade da nossa moeda e a

inflação eram de tal ordem que corroeram em cruzeiros a remuneração que havia sido

aprovada pela Universidade, que teve que permanecer no valor histórico. O valor em

moeda firme passou a ser muito inferior ao esperado. Essa deve ter sido a primeira

experiência do Ricardo com o Brasil.

Para ministrar o curso, Ricardo solicitou que suas aulas fossem concentradas,

para que a sua permanência fora de Lisboa não se estendesse por muito tempo. E foi

atendido. Alugou um apartamento em Ipanema, perto da Praça General Osório. O

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deslocamento para o Centro não era curto.

Em um dos primeiros dias de aula, Ricardo pegou um táxi Volkswagen de motorista

e um banco para duas pessoas, muito comum naquela época. Ao dizer o destino, o

taxista percebeu que não estava conduzindo um brasileiro, mas um português como

ele. Ao puxar conversa ficou sabendo que o Ricardo era um pesquisador que havia

vindo para ensinar num curso de pós-graduação na Universidade Federal. Quando

a longa corrida foi concluída, não houve meios de o taxista receber a remuneração

pelos seus serviços. Ele disse que tinha sido uma honra transportar um professor

universitário que vinha dar lições no exterior.

O milAgrE brAsilEirO

O engenheiro e advogado Gilberto Valente Canali conta que, em pleno milagre

brasileiro, esteve com Sebastião Camargo, presidente e principal acionista da

Construção e Comércio Camargo Corrêa, em uma solenidade na obra da hidroelétrica

de Salto Santiago, no oeste do Paraná. Ao chegar em seu avião, Sebastião Camargo foi

informado de que o engenheiro José Gelásio da Rocha, então diretor da Eletrobras,

ainda não havia chegado.

Imediatamente deu instruções para que o seu avião fosse buscar o Gelásio. Com

tempo livre na obra, ele teve a oportunidade de conversar sobre diversos assuntos.

Em um dos momentos, Sebastião Camargo afirmou: “Não sei por que os jovens ficam

preocupados com custos e cronogramas. As obras custam o que têm que custar e

levam o tempo que têm que levar.”

Os DOis EspiõEs

Durante o governo de João Goulart, Leonel Brizola, então governador do

Rio Grande do Sul, encampou a empresa de energia elétrica local, subsidiária

da Amforp, grupo americano que detinha várias concessões no Sul, Sudeste e

Nordeste do Brasil. O grupo foi estatizado em seguida. O engenheiro Léo Amaral

Penna era seu principal executivo. Considerando seu prestígio técnico e sua

extensa capacitação, Léo Penna assumiu a diretoria de planejamento e engenharia

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84 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

da Eletrobras já no governo Castello Branco.

Como era comum naquela época, foram contratados pela Eletrobras dois coronéis

que foram posicionados como assistentes do Léo Penna: Raul Garcia Lhano e Mauro

Moreira. Léo Penna me contou que, inicialmente, sentiu um certo desconforto, pois

a missão dos dois seria a de fiscalizar as atividades da Eletrobras. Entretanto, em

pouco tempo, por serem pessoas muito capazes e corretas, e por ser a Eletrobras bem

gerenciada, criaram fortes laços de amizade com Léo Penna e com os demais membros

da Eletrobras, passando a ser elementos importantes no setor elétrico, Lhano

assumindo a primeira presidência da Eletronorte e Moreira se destacando em Itaipu.

ínDiO quEr ApitO

Em viagem realizada em 2004 pelo norte do Mato Grosso, próximo à fronteira

com Rondônia, para a inspeção de uma pequena central hidroelétrica, estávamos

percorrendo uma estrada de rodagem não pavimentada, que já existia quando uma

reserva indígena foi demarcada. Vista em planta, a reserva tem a forma lenticular. A

estrada, que na época era mantida pelos índios, atravessava a reserva na sua menor

dimensão.

Evitar a estrada significaria estender demasiadamente o percurso. Ao chegarmos

ao limite da reserva, nos deparamos com uma cancela fechada, operada por um índio

que nos informou que, para entrar, teríamos que contribuir com R$ 5,00, que ele

pronunciou “cinco rau”, mantendo uma das mãos espalmada para indicar a quantia.

Depois de atravessarmos a reserva, no outro extremo, outra cancela fechada e outro

lacônico índio: “Para sair, vinte rau.”

piOr A EmEnDA DO quE O sOnEtO

Em Portugal as piadas são sobre os alentejanos. Os alentejanos sofrem com as

piadas. Ao ouvi-las fico com a impressão de que devemos ter sido colonizados por

alentejanos.

Em janeiro de 2012, por instrução normativa publicada no Diário Oficial da União

(DOU), a Funai determinou que todos os documentos, inclusive EIAs e RIMAs, para

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licenciamentos ambientais de empreendimentos que se situam próximos a terras

indígenas têm que ser traduzidos para a língua indígena da região. Nota-se que, mesmo

em regiões populosas como a entre Rio de Janeiro e São Paulo, há terras indígenas.

Atualmente, as 505 terras indígenas compreendem 12,5% do território nacional.

Segundo o Censo de 2010 do IBGE, são identificadas 305 etnias e 274 línguas

indígenas faladas, algumas das quais pouco conhecidas pelos próprios índios e

nenhuma delas escrita. Sendo apenas falados, os sons teriam que ser escritos em

algum idioma como, por exemplo, o português, para poderem ser lidos. Assim, para

que um índio possa ler em sua língua, ele teria que saber ler em português.

Pior a emenda do que o soneto. Como a gritaria contra essa absurda e descabida

exigência foi muito grande, em maio do mesmo ano, a Funai, também através do

DOU, emitiu nova instrução normativa pela qual passou a exigir traduções para

línguas indígenas apenas quando ela, Funai, julgar necessário ou conveniente.

piADAs DE AlEntEJAnOs

Fernando Collor de Mello havia assumido a presidência da República e bloqueado

a moeda circulante, causando graves problemas para todos os residentes no País.

Pouco depois, haveria na Austrália a reunião executiva da Comissão Internacional

de Grandes Barragens. Os brasileiros que iriam participar enfrentaram dificuldades

instransponíveis para realizar a inscrição, reservar hotel e adquirir passagem

aérea, bem como obter recursos para despesas no exterior. A jornada não poderia

ser mais longa.

Eu consegui participar da reunião porque nossa empresa de engenharia

consultiva tinha uma subsidiária em Portugal, que adiantou as despesas. E fiz

um voo com escala em Lisboa. Dali em diante me incorporei ao grupo do comitê

português, que estava querendo um sétimo participante para conseguir descontos

nas passagens.

Pela antiga amizade e também por baratear as passagens, fui muito bem-vindo

ao grupo. De Lisboa a Sydney a viagem é muito longa e, no início, conversávamos

animadamente. Entretanto, aos poucos os assuntos foram se rarefazendo e

começamos a contar piadas. Os seis portugueses contavam piadas de alentejanos,

como é o costume em Portugal. Para cada piada de alentejano que eles contavam,

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86 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

eu contrapunha outra piada de alentejano. Em dado momento, o engenheiro Silva

Gomes, conceituado pesquisador do prestigiado Laboratório Nacional de Engenharia

Civil, me perguntou: “Miguez, como é que sendo brasileiro você sabe tantas piadas

de alentejano?” Ao que o engenheiro José Pedro, outro conceituado pesquisador,

retrucou: “Silva Gomes, não seja estúpido. Ele está a contar piadas de português.”

mAnuEl rOchA x rOsinhA

Em 1979, o congresso da Comissão Internacional de Grandes Barragens foi

realizado em Nova Délhi. Mesmo estando em hotel de bandeira internacional, o

serviço era sofrível. No café da manhã, o jeito para sermos servidos sem demoras

extremamente longas era sentar em um balcão onde podíamos pressionar mais

diretamente os encarregados do serviço.

Em um dos dias do congresso, eu estava ao balcão ao lado da Rosinha, esposa do

Paulo Barros, engenheiro de Furnas. Ela percebeu que do seu outro lado havia um

participante do congresso que falava português que, pelas tantas, lhe perguntou se

conhecia Portugal. Ela respondeu: “Infelizmente não, e vou lhe dizer por quê. Meu

marido e eu tínhamos planos de ficar um tempo em Lisboa. Ele tentou fazer um estágio

no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) em Lisboa, mas um tal de Manuel

Rocha, elemento desprezível e diretor-geral do laboratório, vetou o estágio dele.”

O lance foi tão rápido e inesperado que eu, embora estivesse ao lado, não

consegui fazer nada para evitar a catástrofe. Seu interlocutor, com muita elegância

e amabilidade, falou: “Tenha certeza, minha senhora, de que, em uma próxima

candidatura de seu marido, ele será prontamente aceito e muito bem recebido. Eu

sou o desprezível Manuel Rocha.” Ele era muito conhecido de nós, engenheiros,

mas não necessariamente das esposas dos participantes do congresso.

Paulo Barros não fez uma segunda tentativa; faleceu não muitos anos após esse

episódio sem conhecer Portugal e, consequentemente, nunca esteve no LNEC.

Os suíçOs nãO EntEnDErAm

Nos anos 1960, a Electrowatt, empresa consultora suíça com larga experiência

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em projetos de hidroelétricas, resolveu instalar um escritório no Rio de Janeiro.

Conseguiu um contrato com a Empresa Fluminense de Eletricidade (EFE) para

desenvolver o estudo de viabilidade do aproveitamento hidroelétrico de Rosal no

rio Itabapoana. A EFE foi posteriormente englobada, junto com outras empresas

estaduais, nas Centrais Elétricas Fluminenses (CELF).

Depois da encampação nos anos 1960 das empresas do grupo Amforp, do qual a

Companhia Brasileira de Energia Elétrica (CBEE) fazia parte, a CELF e a CBEE

foram reunidas na Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro (CERJ).

A CERJ foi privatizada, sendo hoje denominada Ampla. Mas a usina de Rosal

acabou não tendo sido implantada por nenhuma dessas empresas. Os estudos

de viabilidade efetuados pelos suíços foram concluídos e entregues à EFE, que

os encaminhou ao poder concedente. Entretanto, este solicitou a Furnas uma

verificação da oportunidade da implantação da hidroelétrica.

Furnas, que desde sua constituição teve que lutar ferrenhamente por seu espaço

contra as empresas estaduais de energia elétrica da Região Sudeste, elaborou uma

comparação com a usina de Estreito, que na época estava em início de construção.

Essa comparação resultou na indicação de uma maior economicidade de Estreito

pelo efeito de escala, por ser esta 20 vezes maior do que Rosal.

Com esse resultado, a EFE, que já vinha com atrasos de pagamento das faturas

emitidas pela consultora suíça, assumiu a posição de que não pagaria mais nada,

pois o empreendimento para o qual o estudo de viabilidade havia sido feito não

foi considerado viável pelo governo. Os suíços, por mais que argumentassem, não

conseguiram entender por que não recebiam por um serviço corretamente feito. A

usina de Rosal foi construída muito depois pelo Grupo Rede e entrou em operação

em 1999. Posteriormente, foi transferida para a Cemig.

Já cOmbinArAm cOm Os russOs?

Essa expressão é uma das mais conhecidas no Brasil e foi originada na Copa do

Mundo de 1958 quando, no seu terceiro jogo, a Seleção Brasileira ia enfrentar a

temível seleção soviética. Pela primeira vez, o endiabrado Garrincha seria escalado.

O treinador Vicente Feola, momentos antes do jogo, ainda no vestiário, recordava as

últimas instruções aos jogadores dizendo que todos deveriam centralizar o jogo no

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88 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Didi – que nessa Copa ficou conhecido por Mr. Football –, que passaria a bola para o

Garrincha na direita. Este, após ultrapassar os seus marcadores soviéticos, chegaria

à linha de fundo para centrar para Vavá ou Pelé, que estariam posicionados na área

adversária. Garrincha, na sua conhecida inocência e percebendo que ele seria o único

que teria que enfrentar marcadores, perguntou: “Já combinaram isso com os russos?”

A expressão, embora com mais de meio século, é usada com frequência até hoje.

Em 1962 a Comissão Internacional de Grandes Barragens realizou a sua reunião

executiva em Moscou. Participaram como delegados à reunião, como representantes

do recém-instituído Comitê Brasileiro, Flavio H. Lyra e John R. Cotrim. Os dois

tiveram contato com a realidade da União Soviética na época, pois, além de Moscou,

visitaram as principais obras hidráulicas em execução naquele país.

No retorno, Cotrim publicou o livro Um Engenheiro Brasileiro na Rússia, no qual

relatou o que havia observado na longa viagem. O livro causou forte impacto, já que

na época, em plena Guerra Fria, a propaganda projetava entre nós uma imagem irreal

da União Soviética e os relatos do Cotrim mostravam o atraso social que imperava

naquele país.

Em 1966 o Comitê Brasileiro de Barragens realizou a reunião executiva da Comissão

Internacional no Rio de Janeiro. Na programação estava incluída uma visita dos

participantes às interessantes instalações da Light, em Piraí (RJ), que envolvem várias

barragens, diques, três transposições de bacias, grandes instalações subterrâneas,

usinas hidroelétricas e unidades reversíveis. O sistema foi sendo ampliado desde os

primeiros anos do século XX e teve a contribuição, além de engenheiros nascidos no

Brasil, de destacados técnicos vindos do exterior, como Frederick Stark Pearson, Clint

H. Kearny, Asa White Kenney Billings, Karl Terzaghi, Portland Port Fox, Victor F. B.

de Mello, Serge Hsu e muitos outros que, em cerca de 65 anos, implantaram arrojadas

obras com pioneirismo, batendo alguns recordes mundiais.

Os visitantes tiveram o privilégio de conhecer todas as instalações com detalhe,

contando com o valioso apoio dos chefes da operação, Walter Strukembruk e Henrique

Smoka. Na delegação soviética, havia um tradutor sempre presente para ajudar na

comunicação entre os russos e os brasileiros.

As perguntas dos russos eram frequentes, mas, pela fisionomia deles, dava para

sentir que a tradução não era satisfatória. Por três vezes naquela tarde, como todos os

mortais, o tradutor teve que se dirigir ao sanitário. Imediatamente os russos, embora

falando um inglês macarrônico, porém perfeitamente inteligível, fizeram diversas

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perguntas, algumas das quais já haviam sido feitas antes. Quando o tradutor retornou

ao grupo, novamente os russos voltaram a falar somente em russo e por meio do

tradutor. Ficou claro que esse havia sido nosso primeiro contato com a KGB. Enquanto

existiu a União Soviética, houve sempre nas delegações soviéticas um “tradutor”.

Já nos anos 1970, a CESP havia adquirido os equipamentos de geração da

usina hidroelétrica de Capivara na União Soviética. Para apoio na montagem dos

equipamentos, havia no canteiro de obra um engenheiro russo que veio ao Brasil

com sua mulher, mas sem os filhos. Todos estranhavam como eles se alimentavam

fartamente. Na época a engenharia brasileira experimentava um intenso surto de

progresso, com amplas oportunidades para os que quisessem se radicar no País. Ao

ser perguntado se gostaria de permanecer aqui após o comissionamento das unidades

geradoras, o engenheiro respondeu que não poderia porque os seus filhos, que tiveram

que permanecer na União Soviética, sofreriam graves consequências.

Em 1977, o Comitê Soviético de Grandes Barragens conseguiu emperrar a Comissão

Internacional de Grandes Barragens com uma série de questões e interpelações

descabidas. O chefe da delegação soviética, o engenheiro Moiseyev, apresentou todos

os pontos durante a reunião executiva de 1977 realizada em Salzburgo (Áustria)

corado e com uma fisionomia de raiva contida. Era a primeira vez que ele frequentava

uma reunião executiva, tendo conseguido aglutinar a antipatia geral. Após os dias

de reunião, como de costume, foram realizadas visitas às barragens. Além das

hidroelétricas e eclusas no Danúbio, foram visitadas usinas de alta queda nos Alpes,

em meio a paisagens deslumbrantes que o engenheiro João Alberto Bandeira de Mello

ficava classificando como colírio para os olhos.

Durante a viagem, Moiseyev foi uma pessoa extremamente agradável. Surpreso

com esse comportamento tão diferente do anterior, o engenheiro Epaminondas

Mello do Amaral Filho perguntou a ele quem era o verdadeiro Moiseyev: aquele

irascível e abominável da reunião executiva ou este perfeito cavalheiro durante a

viagem. Moiseyev respondeu que o verdadeiro era o da viagem e que na reunião

executiva ele foi obrigado a fazer o que fez por ordem superior, com a qual

absolutamente não concordava.

Em 1982 recebi para jantar na minha casa no Rio de Janeiro a delegação soviética

que tinha vindo à cidade para o congresso da Comissão Internacional. O chefe da

delegação já não era mais o Moiseyev, nem era tão polido quanto ele. Era um “armário”

muito maior do que eu. Após o jantar, levei os soviéticos ao hotel na Avenida

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Atlântica, em Copacabana. Ao nos despedirmos, o chefe soviético, emocionado com

tanta gentileza, resolveu repentinamente me agradecer com um beijo que seria na

boca, como é o costume na Rússia. Depois de quase me imobilizar agarrando-me

pelos cabelos, teria conseguido seu intento não fosse eu, muito ágil, desviar minha

boca no último instante.

pOlíticO Ou ArtistA?

O professor Flavio H. Lyra, de invejável trajetória profissional como diretor de

empresas de energia elétrica, consultor e presidente de associações técnicas, havia

falecido. O Comitê Brasileiro de Barragens e Furnas Centrais Elétricas S.A. decidiram

promover uma sessão em justa homenagem a esse expoente da engenharia brasileira.

O presidente do Comitê, engenheiro Erton Carvalho, fez uma palestra técnica

ao início da sessão. O diretor da Escola Politécnica, professor Heloi José Moreira,

mostrou à plateia o desempenho do jovem Lyra como aluno aplicado desde o seu

ingresso prematuro na Escola Politécnica. Fiquei encarregado de apresentar uma

palestra sobre a sua vida e a ilustrei ricamente com imagens que remontaram à sua

tenra infância. Creio que minha palestra tenha sido emocionante para todos os que

privaram de sua amizade e competência. Certamente foi emocionante para a família e

para mim também. Após o encerramento da sessão, no auditório do oitavo andar do

prédio de Furnas, foi oferecido um coquetel no 16º andar.

No caminho para o coquetel passei mal e fui atendido prontamente pela brigada

de incêndio, que me levou para o ambulatório. Lá, para minha sorte, estava de

plantão uma médica cardiologista. Depois dos primeiros exames e tratamentos, fui

transferido para a emergência cardiológica do Hospital São José, que é dirigida pelo

excelente médico Augusto César Neno e fica nas proximidades de Furnas. Várias

pessoas que tinham participado da sessão notaram a minha ausência no coquetel e,

sabendo da minha internação, foram para o hospital, que repentinamente foi invadido

por uma grande orla dos participantes da sessão, além dos meus familiares, que foram

chamados às pressas.

O ambiente normalmente tranquilo do hospital havia se transformado. O enfermeiro

que me atendia, muito simpático e curioso, me perguntou: “Nunca houve tanto tumulto

por aqui. Quem é o senhor, um político influente ou um artista da Globo?”

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Engenheiro Asa White Kenney BillingsEpisódio tempos diferentes

Engenheiro João Camilo Penna, ministro da Indústria e Comércio do governo FigueiredoEpisódio O presidente, o seu vice e o ministro

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92 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Governador Adhemar de Barros

Episódio Emoções em Jupiá

Imperador Dom Pedro IIEpisódio pedro de Alcântara

Aureliano Chaves de MendonçaEpisódios Aureliano chaves vice-presidente

e Aureliano chaves estudante

Engenheiro Paulo de FrontinEpisódios Obra monumental e água em seis dias

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Ministro coronel Costa CavalcantiEpisódio palavra de ministro

Presidente Getúlio Dornelles Vargas Episódios Os mineiros, getúlio e a siderurgia e getúlio em são paulo

Marechal Henrique Batista Duffles Teixeira LottEpisódio O marechal e o vigia

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94 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Engenheiro Lucas Lopes, idealizador da Cemig e de

Furnas, presidente do BNDEEpisódio tempos diferentes:

a constituição de furnas

Professor Antônio José da Costa Nunes em seminário do Comitê Brasileiro de Grandes Barragens

Episódios A prodigiosa memória do professor nunes, As aflições de um filho flamenguista, a Física e o Tempo passa.

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Engenheiro Guy Maria Villela PaschoalEpisódio Eletrobras denunciada

Dr. Manuel RochaEpisódios O consultor e manuel rocha x rosinha

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96 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Delmiro Gouveia, pioneiro na geração de energia

elétrica no NordesteEpisódio Delmiro gouveia

Eugênio Gudin e Roberto CamposEpisódio Eugênio gudin

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Arquiteto Oscar Niemeyer, que, quando jovem, era meia-armador juvenil do FluminenseEpisódio niemeyer

Professor emérito da UFRJ Luiz Calôba

Episódio O chefe e o procurador

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98 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Igreja do povoado de Belo Monte (Canudos)

Episódio Ecos da guerra de canudos

Os poucos sobreviventes, logo após o massacre de Belo Monte (Canudos)

Episódio Ecos da guerra de canudos

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Corpo de Antônio Conselheiro após o massacre de Belo Monte (Canudos)Episódio Ecos da guerra de canudos

Estátua de Antônio Conselheiro às margens do açude de CocorobóEpisódio Ecos da guerra de canudos

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100 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Presidente Humberto de Alencar Castello Branco com engenheiros John R. Cotrim e Mauro Thibau,

na inauguração da hidroelétrica de EstreitoEpisódio O cunhado

Engenheiros Saturnino de Brito

Filho e Theophilo Ottoni Netto

Episódio O Doutor

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Engenheiros Flavio H. Lyra e Delphim M. Fernandes, primeiros executivos do Comitê Brasileiro de BarragensEpisódio A estreia

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102 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Sra. Maria Lyra e prof. Heloi José Fernandes Moreira em sessão em

homenagem póstuma a Flavio H. LyraEpisódio Político ou artista?

Professor Fernando Emmanuel BarataEpisódios O grande choque e Os cinco longos minutos

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Engenheiros Walton Pacelli de Andrade e Epaminondas Mello do Amaral FilhoEpisódio palestra para universitários

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104 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Engenheiro Ferdinand

M. G. BudwegEpisódio Os

subdesenvolvidos

Emerson Fittipaldi, grande vencedor das provas de

automobilismo na Cidade Universitária, no Rio de Janeiro

Episódio Antes do autódromo

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Professor Pedro Carlos da Silva TellesEpisódio O contador da história

Engenheiro Itamar Franco, que, quando governador de Minas Gerais, ameaçou derrubar a barragem de Pium I, derivando o rio Grande para o rio São FranciscoEpisódio O governador que sabia demolir barragens

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106 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Dr. Ricardo de OliveiraEpisódios O câmbio, o taxista e o professor e

As barragens, os portugueses e o futebol

Professor emérito da UFRJ Sandoval Carneiro Jr. (d)

Episódio O chefe e o procurador

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Dr. John D. Cadman, há 50 anos no BrasilEpisódios português de gringo, A verba e banho ou jantar

Engenheiro Erton Carvalho (e), presidente do Comitê Brasileiro de Barragens. Ao fundo os presidentes honorários Cássio Baumgratz Viotti e Delphim Mason Fernandes (d)Episódios Outro professor distraído e bolo de apostas

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108 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Professor Nelson Souza Pinto falando

ao microfone entre os engenheiros Souza

Lima (e) e Gurmukh Sarkaria (d),

durante uma reunião em Itaipu

Episódio O que os outros não têm

Engenheiro Mário Santos no XXV Seminário Nacional de Grandes Barragens, em 2003Episódio Entusiasmo exagerado

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Escultura de Celita Vaccani representando os expedicionários da FEB, alunos da Escola Nacional de Engenharia da Universidade do Brasil, hoje Escola Politécnica da UFRJEpisódio Emoções na politécnica

Cerimônia de recebimento da escultura do expedicionário pela Associação dos Antigos Alunos da PolitécnicaEpisódio Emoções na politécnica

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110 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Barragem de Orós. Erosão causada

na região do vertedouro antes

de ser executado o revestimento

de concretoEpisódio O ministro,

o operador e o sangradouro

Barragem de Orós durante o seu colapsoEpisódio Orós, rogai por nós!

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Ministro general Juarez Távora recebendo explicação do professor Theophilo Benedicto Ottoni Netto sobre o projeto do vertedouro de Orós, no modelo hidráulico reduzidoEpisódio O ministro, o operador e o sangradouro

Vertedouro da barragem de Orós após conclusão das obrasEpisódio O ministro, o operador e o sangradouro

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112 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Engenheiro Hugo Soares de Souza, entronizado chefe tribal em Camarões

Episódio Outra aventura na áfrica

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Padre Cícero, que amaldiçoou a barragem de Piranhas, do DNOCS, posteriormente denominada Engenheiro AvidosEpisódio A maldição do Padre Cícero

Engenheiro Moacyr Avidos, projetista da barragem de PiranhasEpisódio A maldição do Padre Cícero

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114 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Presidente Juscelino Kubitschek sendo apresentado à minuta final da constituição da empresa Central Elétrica de Furnas S.A. pelos

engenheiros, da esquerda para a direita, João Monteiro, Lucas Lopes, John R. Cotrim, Flavio H. Lyra e Benedito Dutra, no Palácio

Rio Negro, em Petrópolis (RJ), no dia 25 de fevereiro de 1957 Episódio tempos diferentes: a constituição de furnas

Consultor Jack Hilf e engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa no escritório do DNCOS

Episódios Estrada que ligava nada a coisa nenhuma

e caronas indesejáveis

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Abertura da exposição técnica da 34° Reunião Executiva da Comissão Internacional de Grandes Barragens, realizada no Rio de Janeiro em 1966Episódio A estreia

Engenheiro Pierre Londe (e) com dois dos três Flavios: Lyra (d) e eu, em 1973Episódio Os três flavios

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116 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Arthur Casagrande na barragem de Itaipu durante a construção

Episódio preconceito?

Sebastião Camargo na construção da hidroelétrica de TucuruíEpisódio O milagre brasileiro

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Karl Terzaghi entre Casemiro José Munarski e Otelo MachadoEpisódio terzaghi

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118 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Governador Israel Pinheiro com o engenheiro Mario

Behring na inauguração da hidroelétrica de Jaguara

Episódio pedido de emprego

Engenheiro Mário Bhering com o então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek de Oliveira, na inauguração da hidroelétrica de Cajuru

Episódio pedido de emprego

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Diretores de Furnas com o presidente Juscelino Kubitschek no local da obra da hidroelétrica de Furnas. Todos olhando para o fotógrafo, à exceção de Flavio H. Lyra, preocupado com o início das obras de desvio do rioEpisódio O oficial de justiça, o governador e o fechamento de Furnas

Inauguração da hidroelétrica de Três Marias. Presidente Jango, governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e Celso Melo de Azevedo, presidente da Cemig. Sorridentes na ocasião, pouco depois Magalhães Pinto derrubaria Jango da presidência da RepúblicaEpisódio furnas x cemig

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120 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Início da construção da Avenida Central (Rio Branco) próximo à Praça Mauá

Episódio Obra monumental

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Término da construção da Avenida Central (Rio Branco), próximo à Rua da Assembleia, década de 1900Episódio Obra monumental

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122 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Barragem da hidroelétrica do FunilEpisódio O adivinho e a segurança de barragens

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Usina de Angiquinho na cachoeira de Paulo Afonso, primeira hidroelétrica do Nordeste, construída por Delmiro Gouveia em 1910Episódio Delmiro gouveia

Hidroelétrica de XingóEpisódio A história se repetiu em xingó

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124 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Em Itaipu tudo é grandioso. Orquestra dentro das estruturas do estator de um dos geradores

Episódio O maior desafio

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Barragem de Furnas. À direita, a encosta instável do Córrego dos CabritosEpisódio só Deus sabe!!!

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126 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Hidroelétrica de JupiáEpisódio Emoções em Jupiá

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Hidroelétrica de São SimãoEpisódio A briga por são simão

Hidroelétrica de MarimbondoEpisódio minha primeira viagem

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128 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Hidroelétrica de Peixoto (Marechal Mascarenhas de Moraes)Episódios instrumentação? e O caboclo e as águas do reservatório de peixoto

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Hidroelétrica de EmborcaçãoEpisódio Eletrobras denunciada

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130 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Vertedouro da Hidroelétrica de TucuruíEpisódio hidráulica de vertedouro

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A prODigiOsA mEmóriA DO prOfEssOr nunEs

Nos anos 1960 e 1970, os eventos geotécnicos eram muito movimentados, pois

havia sempre intensos embates entre os mais destacados engenheiros da época. Em

1973, o Seminário Nacional de Grandes Barragens estava sendo realizado no Hotel

Glória, no Rio de Janeiro. O professor Antônio José da Costa Nunes era, mais uma

vez, o relator de um dos temas. Entre outras virtudes, ele era reconhecidamente

dono de prodigiosa memória. Como de costume, após a conclusão do relato, durante

intervalo, foram abertas inscrições para debates. Encabeçando a lista vi o nome do

professor Victor F. B. de Mello. Quando os debates se iniciaram, o professor Nunes

estava com uma grande e pesada mala portátil. O professor Mello foi enfático ao

defender uma posição frontalmente contrária à exposta no relato. Em resposta, o

professor Nunes iniciou dizendo, para espanto geral: “Concordo com o professor

Victor de Mello.” E enfatizou: “Concordo integralmente com o professor Victor

de Mello.” Após pequena pausa, concluiu: “Concordo plenamente com o que o

professor Mello disse no seminário do ano passado.” Retirando da mala os anais

do seminário do ano anterior, o professor Nunes leu as palavras que o professor

Mello havia proferido em uma das sessões do seminário de 1972, concluindo:

“Sou, portanto, obrigado a discordar frontalmente do que disse o professor Mello

agora.” O professor Mello saiu pela tangente dizendo que ele evoluía e o fazia com

muita rapidez.

O tEmpO pAssA

Um ano após a minha formatura, os professores do curso de engenharia

hidráulica da UFRJ, coincidentemente meus superiores em Furnas, me pediram

emprestado o meu trabalho de fim de curso para servir de exemplo aos alunos que

estavam concluindo o mesmo curso um ano depois.

Ao retirar o trabalho do meu arquivo doméstico, verifiquei que era primário

para o que eu já havia progredido no meu primeiro ano de profissão. Confesso que

fiquei envergonhado ao entregá-lo e muito preocupado até hoje, pois o trabalho

nunca mais me foi devolvido.

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132 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

No final dos anos 1940, Leopoldo Miguez de Mello, antes de ser catedrático de

física industrial da Escola Nacional de Química da Universidade do Brasil, hoje UFRJ,

teve que defender sua tese em um concurso para livre-docência. O processo era moroso e

a tese havia sido escrita muito antes do concurso. A banca selecionada pela Universidade

era presidida pelo professor Antônio José da Costa Nunes, catedrático de física da Escola

Politécnica, professor de elevado conhecimento técnico e conhecido rigor.

Leopoldo, meu tio, me contou que, quando começou a se preparar para o concurso,

verificou que a tese poderia ser muito melhorada com os conhecimentos que ele havia

adquirido no longo intervalo entre a sua elaboração e o concurso. Não teve dúvidas:

se preparou para atacar a própria tese. No início do concurso, ele foi surpreendido

pelos rasgados elogios proferidos pelo severo professor Nunes e ficou sem jeito de

atacar a própria tese, não havia se preparado para defendê-la. Entretanto, foi aprovado

e posteriormente se tornou catedrático.

cubAtãO

Pouco após a fundação da Petrobras, resultado da campanha “O Petróleo é Nosso”

nos anos 1950, a refinaria de Cubatão no litoral paulista estava sendo inaugurada. Era

motivo de orgulho nacional e as celebrações tomavam conta da cidade de Santos (SP).

O assunto petróleo dominava todas as conversas em qualquer lugar da cidade.

Em um ponto de ônibus, o advogado Alvaro Miguez de Mello foi contatado por um

estranho sobre o assunto. Como tinham opiniões divergentes, e por não ser técnico

da área, temeroso, o advogado perguntou: “O senhor é especialista?” Ao que o

interlocutor, visando o término da discussão, com sua vitória afirmou: “Não, não sou

especialista, mas sou amigo íntimo do maior especialista do Brasil.” O advogado, já

agora com uma pequena esperança, insistiu: “Quem é esse especialista?” A resposta:

“O Dr. Leopoldo Miguez de Mello.” O advogado, então, calmamente concluiu: “Eu

também sou íntimo amigo do Dr. Leopoldo; eu sou o pai dele.”

A físicA

Por ser a mais antiga instituição de ensino de engenharia das Américas,

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é natural que a Escola Politécnica da UFRJ congregue inúmeros episódios

pitorescos. Suas origens coincidem com as da Academia Militar das Agulhas

Negras, com as primeiras atividades acadêmicas realizadas no século XVIII, na

Casa do Trem de Artilharia, prédio hoje ocupado pelo Museu Histórico Nacional.

Dentre os movimentos mais marcantes destaca-se o pela abolição da escravidão,

liderado pelos professores André Rebouças e Paulo de Frontin desde a fundação

do Centro Abolicionista da Escola Politécnica, em 1883.

Ao longo de sua história, o prédio da Escola hospedou diversas instituições

e eventos relevantes, como o Instituto Politécnico Brasileiro, fundado em 1862

sob a presidência do Conde D’Eu, e que contava com a frequente participação

do imperador Pedro II em vários de seus eventos – era comum o imperador

despachar da sala de frente do segundo andar, denominada, até recentemente, Sala

do Trono. Também aconteceram ali diversos congressos e exposições, visitas de

pessoas ilustres como Albert Einstein, em 1925, e Mme. Curie, em 1926, além de

sediar os primeiros anos da Escola de Engenharia Militar, atual Instituto Militar

de Engenharia, fundada em 1929 pelo Ministério da Guerra.

Um dos episódios mais relatados certamente ocorreu, mas há versões

conflitantes no que diz respeito aos protagonistas. O tempo passou e já não se

sabe como isso aconteceu. O professor Leizer Lerner não garante que tenha

acontecido com o professor Dulcídio Almeida Pereira e seu aluno Antônio José da

Costa Nunes, ou com o professor Costa Nunes e um aluno seu, Armando Coelho

de Freitas, como escreveu o professor Aimone Carmadela.

Vou relatar o episódio como me contaram em 1963: o catedrático de física

da Escola Politécnica da UFRJ no início do século XX, professor Dulcídio

Almeida Pereira, para valorizar a sua disciplina, dizia que “engenharia era física

mais bom senso”. Quando aluno, Antônio José da Costa Nunes, que anos depois

veio a suceder o professor Dulcídio na cátedra de física, ao ouvir essa afirmação,

teria perguntado: “Professor, se forem mudados os termos da equação, pode-se

definir física como sendo engenharia menos bom senso?” O professor Nunes veio

a nutrir profundo respeito pelo seu antecessor na cátedra, tendo classificado o

professor Dulcídio como possuidor de “espírito evoluído e constantemente a par

dos progressos da ciência que ensinava e de suas aplicações”, designando o curso

de física como Curso Professor Dulcídio Almeida Pereira.

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134 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

As AfliçõEs DE um filhO flAmEnguistA

Júlio Cézar Costa Nunes, filho do professor Antônio José da Costa Nunes, é

rubro-negro; e seu pai, catedrático de física da então Escola Nacional de Engenharia

da Universidade do Brasil, era vascaíno. Como todo pai, o professor Nunes, apesar

de extremamente ocupado com a profissão, se esforçava para conviver com o filho

ainda criança, naquela transição dos anos 1950 para 1960. Para isso, levava o filho

ao Maracanã e, para agradá-lo, assistia aos jogos na arquibancada, no meio da

torcida do Flamengo. Ele costumava dizer que era um suplício que só um pai

dedicado suporta.

Para aproveitar o tempo livre antes dos jogos e durante os intervalos entre

o primeiro e o segundo tempo, o pai abria livros para estudar, fato que nunca

antes havia sido visto na torcida rubro-negra durante uma partida. O filho ficava

aflito com aquela discrepância em relação a todos que os circundavam. A coisa

piorou em um disputadíssimo Flamengo x Vasco, em 1961, em que um atacante

do Flamengo se jogou na área vascaína simulando uma penalidade máxima.

Imediatamente, enquanto a torcida rubro-negra apupava e reclamava do árbitro,

que acertadamente não marcara a falta, o professor Nunes, com sua índole de

mestre de corrigir a todos, levantou-se, girou de 90° para encarar de frente a

torcida enfurecida e, com o dedo em riste, afirmou que não tinha ocorrido qualquer

irregularidade por parte dos defensores do Vasco, e que o atacante havia simulado

a falta. A partir desse episódio, Júlio Cézar, temendo ser linchado com o pai, não

quis mais ir ao Maracanã naquelas circunstâncias.

liçõEs DA áfricA pOrtuguEsA

Os anos 1970 foram marcados na Eletronorte pelo início das obras de três

hidroelétricas na Amazônia: Tucuruí, Samuel e Balbina. As prospecções em

andamento mostravam solos finos, que deveriam ser de muito baixa permeabilidade.

Entretanto, os ensaios de infiltração indicavam elevadíssima permeabilidade,

característica esta que deveria ser alterada para se tornar propícia para realizar a

fundação das barragens.

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Poços e trincheiras foram escavados e revelaram túneis naturais, com franca

passagem de água. As mais variadas teorias foram propostas para a gênese desses

túneis – desde o início chamados de canalículos – sem que nenhuma satisfizesse

a lógica. Até que um geólogo português, em visita a um desses locais, disse com

toda a tranquilidade: “Pois isso são as térmitas, temos imensas delas em África.”

As térmitas são insetos da família das formigas que perfuram o solo em direções

subverticais à procura do lençol freático. As térmitas foram extintas no Brasil há

cerca de 10 mil anos, mas permanecem na África até os dias atuais.

sAnDuíchE

Devido a incertezas nas estimativas de vazões de percolação em terrenos

destinados à fundação de barragens, e apoiado em resultados de auscultação de

poropressões, a partir do final dos anos 1960 passou a ser adotado o fator de

segurança dez para o dimensionamento de tapetes horizontais drenantes em

barragens de terra.

Em 1974 a Petrobras estava construindo a Barragem do Rio Verde, destinada

ao abastecimento de água para a Refinaria do Paraná, em Araucária. O tapete

drenante que havia sido projetado somente de areia, até então tradicional, não

daria vazão às descargas percoladas com o coeficiente de segurança que passou a

ser adotado. Na posição de engenharia do proprietário, sugerimos a adoção de um

tapete drenante sanduíche, composto de camadas de areia, pedrisco e brita. Essa

técnica já vinha começando a ser empregada em algumas barragens, como a da

hidroelétrica de São Simão, da Cemig.

Essa sugestão, entre outras, motivou reação da CR Almeida, construtora da

obra, que agendou uma reunião com a direção da Petrobras, com a participação de

dois diretores da construtora, um dos quais, o próprio Cecílio do Rego Almeida.

O engenheiro Edson Zampronha e eu resolvemos atuar, como de costume, em

dupla: ele, o malvado, e eu, o bom. Depois de alguma discussão, Cecílio afirmou

que o filtro sanduíche era uma invenção nossa e não era usado em barragens.

Depois de discorrer sobre aspectos técnicos, eu disse que esse tipo de tapete

drenante estava sendo feito pela Impregillo para a Cemig na barragem de São

Simão. Imediatamente Cecílio retrucou: “Pela Impregillo e por nós.” (A Impregillo

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136 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

havia entrado no Brasil na concorrência da hidroelétrica de São Simão associada

à CR Almeida.) Então, eu completei: “Então vocês fazem para a Cemig e não

querem fazer para a Petrobras?” O tapete sanduíche foi executado na barragem da

Petrobras e está tendo um excelente desempenho.

furnAs x cEmig

Em recente entrevista que colhi do engenheiro Guy Vilella, em companhia do

engenheiro Erton Carvalho, presidente do Comitê Brasileiro de Barragens, para o livro

A História das Barragens no Brasil, editado pelo Comitê Brasileiro de Barragens, tive a

real dimensão das disputas entre as empresas de energia elétrica na Região Sudeste.

Entretanto, minha primeira experiência nesse campo foi muito antes, por volta de 1970,

quando os executivos de Furnas queriam acesso a alguns arquivos da Canambra.

A Canambra tinha sido um consórcio de duas empresas canadenses de consultoria e

uma americana que fizeram o estudo do potencial hidroenergético da Região Sudeste,

trabalho este que foi concluído em 1966 e efetivado em parceria com a Cemig, em Minas

Gerais, com a Cesp, em São Paulo, e com Furnas, no Rio de Janeiro. Inicialmente, o

engenheiro José Ernani Coelho Dias, muito jeitoso e diplomata, foi enviado por Furnas

a Belo Horizonte e voltou de mãos abanando. Pouco tempo depois, eu tinha outra missão

em Belo Horizonte e me prontifiquei para tentar obter os arquivos.

Fui desencorajado, mas, como já havia marcado o contato com o diretor Archimedes

Violla, me apresentei à sua secretária. Ela entrou na sala do diretor para me anunciar.

Para minha surpresa, me deparei com um homem risonho, de braços abertos e dizendo:

“Flavinho, que bom ver você. Entre aqui na minha sala.” Como não o conhecia, confesso

que cheguei a olhar para trás para ver se havia outro Flavio na sala de espera. Não havia,

era mesmo comigo que ele estava falando. Fui extremamente bem recebido. Depois de

falar sobre amenidades, ele me perguntou o que eu queria. Assim que eu disse o que era,

ele prontamente telefonou para a Socorro e pediu que o transferisse para o Octávio, a

quem disse que eu estava descendo para falar com ele e que ele deveria me dar tudo o que

eu pedisse. Octávio Mello Arêas era o chefe do Departamento de Engenharia Civil da

Cemig e já havia negado os arquivos ao José Ernani. Maria do Socorro era a secretária

do departamento. Muito a contragosto, ele me cedeu os arquivos, para surpresa de todos

em Furnas. Acho que mesmo com o meu dedicado empenho no Comitê Brasileiro de

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 137

Barragens, do qual o Octávio era conselheiro, levei muito tempo para cair nas suas graças.

No almoço da família do domingo seguinte à minha viagem a Belo Horizonte,

mencionei o ocorrido na Cemig e recebi a explicação da extrema amabilidade de que fui

alvo: quando ainda jovem, em 1937, Archimedes Violla, muito amigo da família, havia

sido o principal articulador do namoro de meus pais, que, embora residentes no Rio de

Janeiro, se conheceram em Lambari (MG), cidade natal do Violla.

DE quEixO cAíDO

Em 1978, o engenheiro geotécnico Aurélio da Silva Lopes trabalhava no

projeto da hidroelétrica de Palmar, no Uruguai. Ele me contou que em umas férias

na época de verão estava ele na casa dos sogros deitado no sofá da sala com a

cabeça apoiada pela mão no queixo assistindo o desfile de escolas de samba, quando

adormeceu. Acordou com intensa dor, com a boca escancarada e sem poder falar.

Depois de muito tempo, conseguiu comunicar o que havia acontecido por escrito.

O cunhado levou-o a um dentista que, em duas tentativas, colocou a articulação

do maxilar no lugar. Anos depois, após lauto almoço, ao ler longo e enfadonho

relatório de ensaios geotécnicos do tratamento de fundação da barragem de

Balbina no rio Uatumã (AM) por injeção de alta pressão para rompimento de solo

e preenchimento de canalículos, estava com a cabeça apoiada na mão com carga

excêntrica e, mais uma vez, o queixo caiu. Nova correria para a articulação do

maxilar inferior ser novamente colocada no lugar. As más línguas de uma mesa de

veteranos geotécnicos e geólogos, que mensalmente se reúnem no restaurante Urich,

garantem que da primeira vez o queixo teria caído ao vislumbrar a Luiza Brunet à

frente da bateria da Portela. Mas Aurélio jamais confessou isso.

O sEgurADOr

Naquela época, há muitos anos, os rapazes tinham que fazer coisas incríveis para

conseguir alguma chance com as garotas. Hoje, geólogo sênior, detentor de vasta

experiência profissional, Roberto Corrêa me contou o que ele fazia para conseguir

uma chance com as jovens. Enquanto alguns amigos se inscreveram em uma academia

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138 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

de lutas marciais, ele se inscreveu numa academia de dança clássica situada ao lado.

A academia de dança era de uma dançarina russa que havia se apresentado no

Cassino da Urca, fugiu da trupe e conseguiu asilo político concedido pelo presidente

Getúlio Vargas. Enquanto seus amigos ficavam se enroscando uns aos outros sobre um

tatame, ele conseguiu um emprego como segurador. Seu trabalho consistia em segurar

pela cintura as estudantes bailarinas em seus saltos e colocá-las suavemente de volta

ao tablado. Ele fazia isso bem lentamente, aproveitando sua função ao máximo e sendo

sempre muito elogiado. E era muito mais divertido.

O cArrãO

Em uma fase de minha vida profissional, dediquei parte do meu tempo na

pesquisa de locais para implantação de pequenas centrais hidroelétricas. Para

tanto, adquiri um Mitsubishi Pajero Full Turbo Diesel Intercooler super equipado.

Assim que recebi o carro, mostrei-o ao meu sócio, geólogo da excelente segunda

geração da geologia de engenharia no País, Gualter Pupo. Entusiasmado, falei

dos acessórios que seriam muito úteis em viagens de reconhecimento de campo,

como bússola e clinômetro – naquela época não havia Google e o GPS ainda não

era comercializado. Do alto de sua longa experiência, ele disse que o principal

acessório era a pequena geladeira que ficava entre os bancos da frente. Já na

primeira viagem no verão, dei razão a ele.

Em uma das primeiras viagens com o carro, fui à cidade de Rio Preto (MG),

terra do professor de engenharia estrutural da Escola Politécnica da UFRJ,

Silvio Souza Lima, para pesquisar o rio Santana. Eu havia pré-selecionado três

locais para PCHs, um dos quais, o local da PCH Mello, que foi posteriormente

implantada pela Valesul. Outra PCH promissora era a PCH Mato Limpo, que

ficava na serra, mais distante da cidade. Ao pedir informações quanto ao estado

das estradas para atingir a região do Funil onde a barragem dessa PCH seria

construída, um morador local, aparentemente impressionado com o meu carro

naquela cidade em que quase só havia fuscas velhos, me disse, por ingenuidade

ou por sarcasmo, que eu não teria maiores problemas de alcançar o local e

acrescentou: “Daqui até lá são dez quilômetros, mas com o seu carro o senhor

pode fazer em três.”

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 139

A chAminé DE EquilíbriO

Em dispositivos hidráulicos em que a adução em pressão é muito longa, pode vir a

ser necessária uma estrutura, em geral vertical e com a extremidade superior aberta,

no interior da qual o nível de água fica variando em função das variações da pressão

da água. Esse dispositivo, muito comum em hidroelétricas em que a casa de força

é distante da barragem, chama-se chaminé de equilíbrio, no interior da qual a água

flutua. Por ter a sua extremidade superior aberta, a flutuação do nível d’água em seu

interior admite e expulsa ar.

A pequena central hidroelétrica Santa Rosa II, situada no rio Grande a jusante de

Nova Friburgo (RJ), foi projetada contendo uma chaminé de equilíbrio. Seu EIA/RIMA

foi submetido à Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA),

órgão ambiental que antecedeu ao Instituto Estadual do Ambiente (INEA) no Rio

de Janeiro. As críticas iniciais foram pesadas. Dentre elas, uma das mais contundentes

foi que os estudos de meio ambiente sequer mencionaram quais seriam os gases que

seriam expelidos pela chaminé de equilíbrio presente no circuito hidráulico de geração.

A JAnElA DO pOrtuguês

Engenheiro português morava em casa tombada pelo Patrimônio Histórico e tinha

desejo de abrir uma janela em uma das fachadas da residência. A solução que ele adotou

foi engenhosa. No prazo mais curto possível, construiu a janela e pintou-a com a mesma

cor das demais. A seguir fez uma consulta ao Patrimônio Histórico, devidamente

ilustrada com várias fotografias da fachada, já com a nova janela, perguntando se poderia

tapar com alvenaria a abertura da janela. O Patrimônio enviou resposta afirmando que

a janela tinha que permanecer no local e, se em uma inspeção fosse verificado que ela

não estava lá, o proprietário seria exemplarmente punido. A janela lá está até hoje.

O mAnuEl pOrtuguês

Manuel de Almeida Martins, brilhante engenheiro civil formado em 1971 pela

Escola Politécnica da UFRJ em uma das primeiras turmas da ênfase em mecânica

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dos solos e fundações, nasceu em Viseu, norte de Portugal, tendo vindo, ainda miúdo,

morar com os pais no Rio de Janeiro. Como nos anos recentes todos passaram a

desejar, Martins ostenta hoje passaporte europeu. Em certa ocasião, em um balcão

de atendimento, foi muito bem recebido por uma funcionária que, prestativa,

se ofereceu para preencher um formulário e perguntou: “Por favor, seu nome

completo.” Martins respondeu: “Manuel, com ‘u’, de Almeida Martins.” Após ter

escrito o primeiro nome, a funcionária voltou a perguntar: “Por favor, o seu segundo

nome, pois eu não entendi.” A resposta: “Almeida.” A funcionária insistiu: “Não esse,

o segundo: Com U, Com Uuu!”

intOlErânciA DE AmbiEntAlistA

A intolerância dos que se classificam como ambientalistas não é de hoje.

Herodoto Barros era chefe do Departamento de Patrimônio de Furnas. Ainda em

um dos primeiros governos militares, no início dos anos 1970, Furnas precisava

instalar uma torre no topo do morro do Sumaré, no Rio de Janeiro. Essa torre

seria um elemento fundamental do sistema de comunicação das usinas da empresa

com a sua sede, situada em Botafogo, onde estava sendo implantado o centro de

despacho das usinas geradoras. O Sumaré é parte do Parque Nacional da Tijuca e

o seu responsável foi totalmente impermeável a qualquer intervenção na área do

parque. Após algumas vãs tentativas de acordo, Herodoto promoveu uma reunião

cuja ata retratava em detalhe esse posicionamento do responsável pelo parque.

Ele assinou a ata e recolheu as assinaturas dos demais presentes. Ao se retirar do

recinto da reunião, Herodoto mencionou que a segurança do suprimento de energia

elétrica à Região Sudeste ficaria seriamente comprometida sem a torre, mas que,

aquela ata, para resguardar os dirigentes de Furnas, seria enviada à Eletrobras, ao

Ministério de Minas e Energia e ao Serviço Nacional de Informações (SNI), ficando

devidamente caracterizada a responsabilidade de qualquer colapso no sistema da

Região Sudeste do País. A simples menção do SNI fez com que imediatamente as

posições dos ambientalistas se invertessem e a torre foi implantada. Depois dessa

torre, uma vez que houve precedente, várias outras torres foram instaladas e hoje

podem ser vistas no topo do Sumaré.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 141

O prOfEssOr DifErEntE

Na disciplina Aproveitamentos Hidroelétricos, que coordenei durante anos

no curso de engenheiros civis, opção de obras hidráulicas, há um capítulo sobre

equipamentos elétricos. Como minha formação é civil, costumava pedir apoio ao

Departamento de Eletrotécnica para ministrar esse capítulo da ementa. Vendo no

Museu da Escola o meu quadro de formatura, notei que o professor homenageado

do curso de engenheiros eletricistas naquele longínquo ano de 1967 havia sido o

professor Olavo Cabral Ramos Filho. Chamei o professor Olavo para ministrar o

capítulo sobre equipamentos elétricos em um dos recentes períodos letivos.

Durante a aula, o Olavo disse para os meus alunos e para mim que, em uma

ocasião, ele estava sozinho aplicando uma prova para uma turma grande no maior

salão do prédio do Largo de São Francisco. Com o objetivo de dificultar intercâmbios

de informações entre alunos durante a prova, ele redistribuiu os alunos, que já

haviam se instalado, em grupos denominados escritórios. Em seguida, colocou sobre

a mesa do professor uma pequena mesa de aluno e sobre esta, uma cadeira. Ele deu

início à prova devidamente empoleirado, de maneira a dominar todo o salão. Um

parente, de passagem pela Escola, reparou o Olavo próximo do teto, sem saber de

suas intenções. Reportando à família, ele teria dito: “Vocês têm razão, ele não está

batendo bem da cabeça”.

AntiguiDADE OriEntAl

Em 1979, consegui que o Comitê Chinês de Barragens recebesse uma delegação de

dez brasileiros com suas esposas para uma inesquecível visita técnica envolvendo as mais

importantes obras hidráulicas e os mais destacados institutos de pesquisas. Naquela

época, pouco depois do término da Revolução Cultural, a logística na alimentação, nos

deslocamentos e nas hospedagens na China era extremamente precária.

Em uma das noites, tivemos um concerto com uma pequena orquestra composta

por instrumentos chineses originais. No início do evento foi feita a apresentação dos

instrumentos. O primeiro instrumento apresentado foi classificado como muito recente,

o mais novo da orquestra, e havia sido introduzido na música chinesa no século XIII.

Pensei: para eles é recente, mas, para nós, nessa época o Brasil nem havia sido descoberto.

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142 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

João Paulo Maranhão de Aguiar, respeitável engenheiro de muitos anos na Chesf,

conta que um grande amigo e competente engenheiro participou, no início dos

anos 1980, de um seminário na China sobre a evolução da humanidade. Durante o

evento, um pedante francês perguntou ao palestrante chinês qual era a opinião dele

sobre a importância da Revolução Francesa na evolução da humanidade. O chinês,

detectando o sentimento de superioridade do francês, respondeu: “Passados 180

anos, a queda da Bastilha é um acontecimento recente e ainda não está na época de

se ter uma avaliação definitiva.”

O cOntADOr DA históriA

Pedro Carlos da Silva Telles, engenheiro, professor, escritor e historiador da

engenharia, é portador, com todo o mérito, do título de Engenheiro Eminente.

Autor do importante livro A História da Engenharia no Brasil, resgatou, através de

exaustiva pesquisa, o desenvolvimento da engenharia no nosso País desde as suas

primeiras manifestações até a metade do século XX.

Algumas vezes me espanto com atuais jovens engenheiros reclamando de eventuais

desconfortos em expedições ao campo. Para esses, a leitura do livro os faria entender

os sacrifícios dos pioneiros da Profissão que nos precederam nos séculos passados.

Narrativas como a da construção da ferrovia Madeira Mamoré, que mostra que,

entre 1907 e 1912, foram trazidos para as obras 21.873 homens, dos quais 6.200

morreram e quase todos os demais adquiriram doenças tropicais, são exemplos da

dureza dos tempos passados. A média de permanência dos trabalhadores na obra

era de pouco mais de três meses. Em 1909, a percentagem de dias perdidos por

doença ultrapassou 50%. Além das doenças tropicais, havia ataques de animais como

onças, jacarés, cobras e até formigas. Um dos médicos, Dr. Walcott, relatou que um

homem que havia morrido no mato teve o corpo quase completamente consumido

por formigas em uma única noite.

Embaixadores da Alemanha, Áustria e Rússia reclamaram oficiosamente da

propaganda enganosa feita na Europa para angariação de engenheiros, médicos

e operários. Trabalhadores chegavam fortes, mas logo adoeciam e morriam. Um

sobrevivente contou que 600 antigos soldados alemães que haviam sido recrutados,

ao tomarem contato com as terríveis condições sanitárias locais, amotinaram-se e

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 143

obrigaram o comandante do navio que os havia trazido a levá-los de volta a Manaus.

Cerca de 300 espanhóis, sabendo dos amotinados alemães, se recusaram a

desembarcar. O engenheiro-chefe americano, com 100 homens armados, quis forçá-

los a desembarcar e recebeu um tiro na testa, falecendo imediatamente. Participaram

da obra trabalhadores brasileiros e de Barbados, mas muitos também foram

recrutados em Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Hungria, Polônia, Índia, China,

Malásia e outros países.

Os cargos de chefia eram predominantemente exercidos por americanos da Brazil

Railway Co., firma do empresário Percival Farquhar, que era muito influente no

Brasil. Apesar de tudo, as instalações em Santo Antônio – onde a partir de 2009

começou a ser implantada a grande hidroelétrica no rio Madeira – e em Porto Velho,

cidade que nasceu com a ferrovia, eram superiores ao padrão dos acampamentos de

obra da época e de muitas cidades brasileiras.

Mesmo obras ferroviárias no estado de São Paulo eram difíceis, como registrou o

engenheiro Janot Pacheco:

Por toda parte a que, nesses sertões bravios, chegava a ponta dos trilhos, estava presente o perigo sob as mais diversas formas: os assaltos da mosquitaria infernal, a ameaça das onças e de outros animais ferozes, a fúria das manadas de porcos-do-mato que rompiam por entre as barracas [...], as sucuris emboscadas nas orlas das matas [...], os frequentes ataques de índios [...].

Um engenheiro anotou em sua caderneta de campo “dezenove mosquitos por

centímetro quadrado”.

O engenheiro Barros Pereira relata a sequência de telegramas enviados pelo

telegrafista em um ponto da construção da “Noroeste”, trancafiado em um vagão

que servia de posto telegráfico, sob ataque de índios: “Os índios iniciaram o ataque.

Tentam forçar as portas. Não sei o que vai acontecer, mas parece que procuram tirar o

vagão dos trilhos e lançá-lo no rio que passa perto.” Por sorte os índios não cortaram

o fio do telégrafo e o ataque pôde ser combatido por uma locomotiva que veio em

socorro, com pessoal armado e que chegou apitando e tocando o sino. Muitos outros

que foram sujeitos a ataques indígenas, entretanto, não tiveram a mesma sorte.

Silva Telles relata a implantação da ferrovia São Paulo-Rio Grande no início

do século passado, que permitia, em 1915, a realização de uma viagem por 2.152

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144 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

quilômetros de São Paulo a Porto Alegre em apenas 72 horas! A construção dessa estrada

foi um dos detonadores da Guerra do Contestado, que causou o falecimento de milhares

de pessoas nos estados de Santa Catarina e Paraná. Conta-se que, na inauguração de

trecho entre Itararé e Ponta Grossa, Afonso Penna, presidente da República, notou que

em cada estação havia um mesmo homem a receber, com foguetes, a comitiva que se

deslocava de trem. Intrigado por ver em mais uma estação o mesmo fogueteiro, indagou

como ele poderia sempre estar à frente da comitiva, tendo saído após o trem ter partido

de cada estação. A explicação era que, devido ao terreno de orografia acidentada, o

traçado da estrada era sinuoso e o fogueteiro se deslocava a cavalo.

um inglês nO riO DE JAnEirO

Arthur Penman, ilustre pesquisador geotécnico inglês, era a mais britânica

pessoa que conheci. Dono de uma irrepreensível pronúncia da elite britânica, tinha

no respeito aos horários uma obediência cega e incrível precisão. Pouco antes das

palestras e debates sob sua coordenação no Institution of Civil Engineers, em

Londres, por exemplo, ele podia ser sempre encontrado na primeira fila da plateia até

o grande relógio analógico da parede do auditório indicar 20 segundos para a hora

programada. Nesse instante, ele se levantava e calmamente se dirigia para a mesa,

sentando-se na cadeira reservada para si. Sem olhar para o relógio, iniciava a sessão

exatamente na hora marcada.

Ele me contou, mostrando fotografias, que em seu aniversário de 80 anos, quando

já era viúvo, convidou para a sua casa 79 amigos, que se sentaram com ele em dez

mesas de oito lugares cuidadosamente distribuídos. Como eu iria fazer 60 anos, ele

sugeriu que eu fizesse algo parecido, talvez com um maior número de amigos. Eu

disse que isso era impossível por aqui, pois vários dos que fossem convidados não

viriam, alguns apareceriam sem terem sido convidados e outros viriam no dia errado.

Em outra oportunidade nos encontramos na Inglaterra pouco após ele ter casado

uma de suas filhas. No primeiro dia do programa, ele perguntou se eu poderia trazer

para o Brasil o bolo do casamento da filha para entregá-lo ao professor da PUC-Rio,

Dr. Pedricto Rocha, muito seu amigo, que não tinha podido comparecer ao casamento.

Isso deve ser uma das tantas tradições britânicas. Tive que concordar e fiquei

preocupado durante toda a estadia na Inglaterra, pois não saberia como eu traria o

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 145

bolo na minha bagagem. No último dia do programa, ele me deu uma caixa do tamanho

de uma bola de pingue-pongue. Era o bolo. Não tive dificuldade de transportá-lo.

Penman esteve pela primeira vez no Rio de Janeiro em 1982, como relator do tema

geotécnico no congresso da Comissão Internacional de Grandes Barragens. A partir de

então, voltou muitas vezes, a maioria das quais como visitante em programas da PUC-

Rio. Em algumas dessas ocasiões, eu conseguia que ele proferisse palestras na Escola

Politécnica da UFRJ ou no Comitê Brasileiro de Barragens. Em algumas dessas viagens,

tive o prazer de hospedá-lo em minha casa e levá-lo para a minha pousada, em Penedo

(RJ). Ele era o coordenador de um dos comitês técnicos de que eu participei na Comissão

Internacional e, por esse motivo, nos víamos pelo menos uma vez por ano, durante a

reunião dos executivos da Comissão, mesmo que nesse ano ele não viesse ao Brasil.

Em 1995, a reunião foi em Oslo, Noruega, no primeiro semestre. Naquela ocasião, ele já

estava com idade avançada e viúvo. Convidei-o para, no ano seguinte, vir ao Rio de Janeiro

no caminho de ida ou de volta para a reunião de 1996, que aconteceria em Santiago, Chile.

Ele disse que seria difícil, pois estava com dificuldades para fazer muitas viagens.

Retruquei dizendo que ele tinha muitos amigos no círculo de geotécnicos no Rio

de Janeiro e ficaria hospedado na minha casa, alvo de todas as atenções. Ele aceitou,

mas imediatamente perguntou se a visita dele deveria ser antes ou depois da reunião

de Santiago, ao que respondi que, com antecedência superior a um ano, ele poderia

escolher. Ele implorou para que eu definisse, argumentando que um inglês precisa estar

programado e que o tempo disponível não era muito longo! Perguntei se poderia ser

depois de Santiago e ele ficou feliz por ter essa definição. Eu já ia me retirando quando

ele pediu que eu definisse qual seria o dia em que ele deveria desembarcar no Rio de

Janeiro. Respondi que não sabia da programação da reunião de Santiago. Ele sabia de

tudo e disse que a reunião terminaria no dia 18 de outubro. Então, sugeri que ele viesse

no dia 20. Achando que havíamos esgotado o assunto, comecei a me afastar novamente

quando ele me chamou perguntando a que horas do dia 20 de outubro do ano seguinte

deveria chegar à minha casa.

históriA picAntE pArA OuviDOs britânicOs

Em 1983, havia muita curiosidade técnica pelos projetos e obras das grandes

barragens e hidroelétricas em construção no Brasil. O Institution of Civil

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146 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Engineers me convidou para que eu apresentasse uma palestra em Londres

discorrendo sobre os principais destaques de nossa engenharia de barragens.

Temendo a não observância de horários, característica de brasileiros, Arthur

Penman foi me buscar no hotel que eles haviam reservado, que ficava próximo ao

instituto. Concentrei minha palestra nas barragens da bacia hidrográfica do rio

Paraná, concluindo com Itaipu e procurando mostrar a contribuição dos projetos

na evolução da engenharia nacional.

Como os bretões gostam de inserir em palestras algum tópico jocoso, e como

são curiosos em relação à Amazônia, depois de mostrar a evolução e a grandeza dos

empreendimentos, disse que em uma esquina de Manaus eu tinha visto um índio

que dizia “chance” para todas as mulheres que passavam perto dele. Perguntei a

ele por que ele não dizia “how” como todos os outros índios, ao que ele respondeu:

“I know how, all I need is a chance.” Todos riram muito. Concluí dizendo que as

barragens da bacia do rio Paraná se constituíram na maior chance que tivemos para

promover o desenvolvimento do nosso know-how em engenharia de barragens.

Depois da palestra, Penman me disse que foi tudo ótimo, mas que aquela sala não

estava acostumada a relatos tão picantes.

O flAgElO DAs sEcAs

Desde a Grande Seca, a maior catástrofe nacional causada por fenômenos naturais

no Brasil, que foi iniciada em 1877, e mesmo antes dela, o semiárido tem sofrido

intermitentemente com a carência de chuvas e as consequentes secas intensas. Foi a

Grande Seca que propiciou, por iniciativa de Dom Pedro II, um plano de ação para

o combate às consequências das secas no Nordeste. O imperador, inclusive, esteve

pessoalmente na área atingida pela Grande Seca. Desse plano surgiu, em 1906, a

nossa primeira grande barragem: Cedros, no Ceará, concluída em 1906. Foi ainda

no Segundo Império que surgiu a ideia da transposição de parte das descargas do rio

São Francisco para o semiárido.

O jornalista Elio Gaspari conta que Lula visitou o interior do Ceará durante a

intensa seca de 1998, em companhia de José Genoino, que viria posteriormente a

ser um dos mais destacados personagens do mensalão e cuja família morava em

Jaguaruana. Naquela ocasião, Lula culpou a desatenção dos tucanos e prometeu rios

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 147

de mel para o Nordeste: “O Fernando Henrique veio ao Ceará na campanha de 1994 e

prometeu transpor as águas do rio São Francisco, mas até agora não trouxe nem um

copo d’água”, disse. Em 2003, eleito presidente, ele prometeu: “Nesses quatro anos,

24 horas por dia serão dedicadas para fazer aquilo que acredito: a transposição das

águas do rio São Francisco.” Depois de mais de dez anos da primeira posse do Lula, o

copo d’água ainda não apareceu. Em 2012 e 2013, novamente o semiárido enfrentou

gravíssima seca sem as águas do São Francisco, sem novos açudes e sem carros-pipa.

pErguntA inDiscrEtA

Em 1976, a Eletrobras, através do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica

(Cepel), iniciava a obra de dois grandes laboratórios, o maior deles localizado em

Adrianópolis, distrito de Nova Iguaçu (RJ). Com os serviços de terraplanagem

já avançados e logo após a contratação da Enge-Rio para o gerenciamento

da implantação, em visita à obra, o diretor-geral do Cepel, engenheiro Jersey

Zbigniew Leopold Lepeck, manifestou interesse em subir ao castelo d’água para ver

o local de cima. Ele foi acompanhado pelo residente da equipe de gerenciamento,

engenheiro José Luiz Salgado. Ao chegar ao castelo d’água, 45 metros acima da

praça de terraplanagem, Lepeck perguntou ao recém-chegado residente que ainda

não estava familiarizado com o projeto: “José Luiz, onde será instalado o gerador

de impulso?” A resposta foi rápida: “Boa pergunta, Dr. Lepeck. Um a zero para o

senhor. Pode fazer outra.”

Os três flAviOs

Éramos três os diretores na nossa empresa de consultoria: Flavio Henrique

Lyra, presidente; Flavio José Lyra, seu filho e diretor de administração e finanças;

e eu, diretor técnico e de produção. O presidente e eu éramos conhecidos pelos

sobrenomes. Assim, nunca houve confusão, a menos de uma vez quando uma visita

pediu à recepcionista para falar com o Dr. Flavio. Ela perguntou: “Com o Pai, com

o Filho ou com o Espírito Santo?”

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148 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

A EficiênciA prEmiADA

No início da década de 1970, o engenheiro Adolfo Szpilman, na época chefe

do Departamento de Engenharia Civil de Furnas, foi convocado pela Justiça

Eleitoral para ser presidente de mesa em uma eleição. No dia seguinte à eleição,

nos encontramos em um dos aviões de Furnas, em viagem para as obras no rio

Grande, entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Ele, que sempre se esforçou

para ser extremamente eficiente, me disse que o desempenho da sua seção foi

notável. Relatou, inclusive, que nos momentos menos movimentados consultou

a lista telefônica e telefonou para alguns eleitores que ainda não haviam votado

incentivando-os a aproveitar a calmaria. Como resultado, me disse ele, “fomos

a segunda urna a ser entregue em todo o Rio de Janeiro”. Ao ouvir aquilo, dei

os parabéns e adicionei: “Daqui para frente, o senhor será sempre lembrado pela

Justiça Eleitoral em cada eleição.” Dito e feito: durante muito tempo, o Szpilman

era sempre convocado.

nO ElEvADOr

Em meados do primeiro semestre de 1973, eu estava em um programa de

treinamento na Chas. T. Main, prestigiosa empresa de engenharia consultiva em

Boston (EUA). Era o meu último dia na cidade quando, ao entrar no elevador, senti

que chegavam mais pessoas querendo subir. Saí do elevador e esperei uma senhora

e uma jovem, segurando a porta. Eu ia perguntar o andar que elas desejavam, mas,

antes que eu pudesse me oferecer para tal, elas pressionaram o comando para um

andar inferior ao que eu me dirigia.

Como sempre naquela época, eu trajava blazer e gravata e carregava uma pequena

mala com papéis e documentos que era chamada de mala James Bond. A senhora se

dirigiu para a jovem em português: “Minha filha, olhe que rapaz alinhado e educado.

Você deveria se interessar por um rapaz assim em vez de sair com esses seus amigos

cabeludos malcheirosos. Se eu tivesse a sua idade, flertaria com ele.”

Por ser muito tímido naquela época, senti calor facial que me indicou estar

ruborizado. A senhora olhou para mim, desviou o olhar para a porta do elevador e

falou em português: “Você entende português?” Ao que eu prontamente respondi,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 149

também em português: “Nem uma palavra, minha senhora.” Em seguida, a porta

do elevador se abriu e as duas saíram. Pude ouvir as reclamações da filha acusando

a mãe de ter feito o maior vexame.

Os subDEsEnvOlviDOs

Ferdinand Budweg conta que, em 1968, quando São Paulo partiu para o projeto

do metrô, por carência de experiência nacional prévia, a empresa consultora

alemã Eisenbahn Consulting foi contratada em consórcio com a Promon para

exercer o planejamento e supervisão de projeto. Os alemães, temerosos do

subdesenvolvimento de nossa engenharia, trouxeram enorme catálogo com

detalhadas diretrizes administrativas que incluíam desde normas de procedimento

até detalhes de execução de desenhos em prancheta.

O impacto da imposição dos procedimentos foi substancial. Os desenhistas da

Themag, que detalhava uma das mais complexas estações, aparentavam revolta.

Eles eram acostumados a produzir para a CESP desenhos à tinta para plástico

e estavam sendo obrigados a trabalhar em papel e a lápis. Budweg, nascido na

Alemanha e brasileiro por escolha e por coração, compreendeu a situação, infringiu

as normas administrativas e sugeriu ao diretor alemão que eles fizessem uma visita

às obras da hidroelétrica de Ilha Solteira.

Fretado um DC-3, os alemães foram conduzidos à obra e ficaram impactados

com sua magnitude, na época uma das maiores hidroelétricas do mundo e muito

maior do que qualquer obra hidráulica na Alemanha. As instruções para elaboração

dos desenhos foram canceladas.

O prOfEssOr DistrAíDO

Formado em história natural em 1945, José Moacyr Vianna Coutinho é um expoente

da mineralogia e da petrologia, professor emérito da Universidade de São Paulo e

pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo. Ele foi mestre

de muitos dos maiores geólogos do País, como Luiz Ferreira Vaz, que narra a sua

experiência no projeto da hidroelétrica de Tucuruí, gigantesca obra no rio Tocantins.

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150 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

No início do projeto, ainda em 1975, Vaz se deparou com condições

geológicas muito complicadas. Além disso, a sua experiência até então era,

predominantemente, nas formações basálticas e areníticas mais simples da bacia

do rio Paraná, além dos gnaisses da Serra do Mar. Ele contratou consultoria do

professor Coutinho para obter a classificação petrográfica das rochas do local da

barragem.

Como na época pescar era a única diversão disponível no local, em um domingo

eles foram pescar apoiados por um barqueiro com sua voadeira. Quando Vaz

procurou pelo professor, o viu nadando no estilo “cachorrinho” em um poço

amplo e profundo, que era frequentado por jacarés, piranhas, sucuris e outros

animais perigosos. O barqueiro não conseguiu convencer o professor a sair d’água

e entrar no barco, tendo ele nadado distraída e demoradamente até a margem.

Na volta, já em São Paulo, o professor apresentou ao Vaz o resultado de sua

pesquisa: 17 tipos de litologia diferentes, detalhadamente classificados nos 11

quilômetros do eixo selecionado para a barragem. Vaz vislumbrou o problema

de transmitir essa informação aos engenheiros. Pediu para o professor que

procurasse grupar as litologias para simplificar a modelagem dos engenheiros. O

professor efetuou um grupamento possível, reduzindo para sete tipos litológicos.

Isso já era difícil para os engenheiros, mas mais simples do que os 17 originais.

O professor Coutinho formulou a primeira interpretação estrutural da geologia

local que foi comprovada pelas prospecções posteriores.

No livro José Moacyr Vianna Coutinho – Geologia e Causos, o geólogo José

Maria Azevedo Sobrinho narra também um trabalho de campo em São Sebastião

(SP). Após o almoço, o professor pediu a nota fiscal. Ainda no estacionamento,

Coutinho perguntou se a nota fiscal estava com ele, José Maria, pois não a achava.

Em seguida pararam para abastecer o carro em um posto de gasolina. O professor

pediu e recebeu a nota fiscal. Também nunca mais a achou. Depois de os dois irem

de barco até a praia de Maresias para coletarem amostras rochosas, ao retornarem,

o professor aflito perguntou: “Você viu onde coloquei a chave do carro?”

O professor Luiz Alberto Fernandes narrou que, em novembro de 1994, alguns

brasileiros participaram, com o professor Coutinho, de um congresso em Cuba.

Todos foram a Varadero, um local turístico da ilha. No retorno a Havana, notaram

a ausência do professor, que, conhecido por sua distração, estava embarcado em

outro voo, com destino a Santiago de Cuba.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 151

OutrO prOfEssOr DistrAíDO

Quando em viagens ao exterior sem a companhia de sua dedicada esposa

Heloisa, o grupo de amigos do prestigiado engenheiro Erton Carvalho, estimado

professor de hidráulica da Escola Politécnica da UFRJ e destacado engenheiro

de Furnas, presta atenção especial nele. No retorno da reunião dos executivos da

Comissão Internacional de Grandes Barragens realizada no Irã, ao entrarmos na

cabine do avião da Air France, notamos a ausência do Erton.

Pedro Paulo Sayão Barreto, Paulo Coreixas e eu vasculhamos a cabine sem

achar o Erton. Passamos a longa viagem até a escala em Paris extremamente

preocupados, pois ficar perdido no Irã não é das coisas mais recomendáveis. Já

na saída do avião encontramos o Erton feliz da vida elogiando o conforto do voo

de volta comparado com o de ida. Verificamos que nós, corretamente, viramos à

direita ao entrarmos na cabine, nos dirigindo para a classe turística. E ele, sem

querer, virou à esquerda e se acomodou na primeira classe.

O AmigO DA OnçA

Luis Carlos Noronha Pinto era o engenheiro-residente dos serviços de

levantamentos e prospecções para o projeto de viabilidade da hidroelétrica de

Cachoeira Porteira, situada no rio Trombetas, afluente pela margem norte do rio

Amazonas, no estado do Pará. A equipe de campo utilizava um acampamento de

obra que havia sido abandonado pela Andrade Gutierrez quando da paralisação da

construção da Rodovia Perimetral Norte. O acampamento, próximo à confluência

dos rios Trombetas e Mapuera, foi de grande utilidade na fase preliminar do

projeto da hidroelétrica por ser bem instalado e possuir uma pista de pouso não

pavimentada, mas em boas condições.

Noronha, jovem e esportista, fazia o cooper – corrida vagarosa que havia há pouco

sido divulgada como exercício – todas as manhãs na pista de pouso. Em uma dessas

ocasiões, ao entrar na pista de pouso pela cabeceira sul, viu entrando pela cabeceira

norte uma onça pintada. Imediatamente, ele deu meia-volta e saiu em disparada de

volta ao alojamento, sem coragem de olhar para trás. Dizem os que presenciaram o

retorno em disparada que ele teria entrado no alojamento pela janela.

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152 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

O EspiãO nO bAnhEirO

A Assessoria de Comunicação Social da Itaipu Binacional publicou um relato

de casos dos quais selecionei os dois seguintes. Em 1991, Marzuith Cosme de

Souza Pyrrbo havia sido transferido do escritório de Itaipu do Rio de Janeiro

para Curitiba. Às 13h40 de uma tarde de verão, ele pegou um exemplar do Jornal

do Brasil e se instalou no vaso do aconchegante banheiro da sala de reuniões da

diretoria-geral brasileira.

O banheiro possuía iluminação propícia para uma confortável leitura. Quando

se preparava para abandonar o tão acolhedor recinto, percebeu que muito tempo

havia se passado e que, para sua aflição, o diretor-geral Fernando Xavier Ferreira

iniciava uma reunião sigilosa com outros dirigentes brasileiros. Enclausurado no

banheiro, Marzuith ouvia tudo. Como a reunião se alongava – e apavorado com a

possibilidade de ser descoberto por alguém que quisesse usar o banheiro –, ele foi

para um minúsculo compartimento de 1,2 metro quadrado destinado aos controles

do ar condicionado, que ficava anexo ao banheiro. Como era verão, passou a

temer que alguém viesse ligar o ar condicionado e o descobrisse ali. Então, ele

se escondeu em uma caixa de papelão e lá ficou até as 17h30, quando a reunião

finalmente acabou e ele pôde voltar à sua mesa, com o JB embaixo do braço e sem

saber como explicar tão demorada ausência.

O mOtEl

Alcibíades e Romilda eram bem casados, apesar de ela ser do tipo brava e ciumenta.

Em uma tarde, ela foi à sala do Alcebíades no escritório de Itaipu de São Paulo e viu

um cinzeiro na mesa dele com os dizeres Ma Belle. Ela ficou uma fera, “rodou a

baiana” e desancou o Alcebíades, que, pego de surpresa, ficou atônito, sem ação.

Quando Romilda finalmente se retirou batendo a porta e sem sequer se despedir

dele, ele perguntou à secretária que cinzeiro era aquele. Em resposta, D. Rosa

respondeu, meio sem jeito, que ela havia trocado o cinzeiro dele por aquele, pois o

dele estava velho e muito usado. Alcibíades disse: “Olha só o que você me arrumou:

minha mulher pensa que eu estive em um motel e me deu a maior bronca. Não sei

o que fazer.” “Mas Dr. Alcebíades, no cinzeiro não há nada que diga que é de motel.

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Só está escrito Ma Belle. Eu realmente o trouxe de um motel em que estive com o

meu namorado”, disse D. Rosa. Alcebíades deduziu então que Romilda já conhecia

o motel e que não havia sido com ele, pois ele lá nunca estivera. Ao chegar em casa,

foi à forra: “Quem não presta é você, Romilda, como você sabia que o cinzeiro é de

motel?” Romilda retrucou: “Que cinzeiro de motel? Eu só disse aquilo tudo porque

você teve um enfarte e o cinzeiro estava cheio de pontas de cigarro. Você havia

prometido nunca mais fumar. Mas me diga agora: que história é essa de você levar

lembranças de motel para o seu escritório?” O tempo fechou de vez.

pOrtunhOl

Selecionamos o competente engenheiro espanhol Manuel Ruiz Ortuño para

a chefia da equipe da Enge-Rio-Logos no gerenciamento das montagens dos

equipamentos da hidroelétrica de Itaipu. Além de sua indiscutível capacidade, o fato

de ter castelhano como sua língua mãe foi considerado uma grande vantagem, já que

o trabalho em Itaipu era feito com profissionais brasileiros e paraguaios. Entretanto,

ele falava rápido e procurava se expressar em português para os brasileiros, resultando

em um portunhol algumas vezes difícil de ser entendido. Não raro, nem paraguaios

nem brasileiros o entendiam. Em uma dessas ocasiões, me contou o engenheiro Luiz

Cerqueira de Berrêdo, Ortuño, sempre apressado, encontrou Hernani Pottumati no

corredor e disse a ele: “Jo me voi al inginiero Berrêdo.” Pottumati, sempre solícito

e vendo a pressa do Ortuño, imaginou o que ele poderia estar querendo tão aflito e,

sem entender o seu portunhol, saiu e voltou rapidamente entregando ao Ortuño a

chave do banheiro privativo.

O ADivinhO E A sEgurAnçA DE bArrAgEns

Minha querida esposa Marlene Rezende Izoldi, resendense, sempre me falava do

Savananda, um adivinho com elevado prestígio no médio vale do rio Paraíba do Sul,

na primeira metade e em meados do século passado. Com aparência de um indiano,

cultivando mistério, ganhava a vida adivinhando o futuro dos que o consultavam.

Residente em Resende (RJ), suas profecias eram respeitadas pela população da região.

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154 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

A notícia de que uma barragem seria construída no rio Paraíba do Sul, entre

Queluz e Itatiaia, se espalhou quando, nos anos 1940, equipes da Estrada de Ferro

Central do Brasil e, no ano seguinte, a Light iniciaram estudos no local das três

corredeiras onde hoje se encontra a barragem do Funil.

Desde essa época, Savananda passou a dizer que via uma enorme catástrofe com

o colapso da barragem e uma inundação sem precedentes de todas as cidades rio

abaixo. Vindo de Savananda, a previsão alarmava a população. A hidroelétrica foi

construída nos anos 1960 e o seu reservatório foi formado em dezembro de 1969.

Quase 30 anos depois, apenas os mais velhos e com ligações em Resende ainda se

lembravam de Savananda quando, em pesquisa de campo, o geólogo Renato Cabral

Ramos, que estava hospedado em minha pousada em Penedo (RJ), me revelou que

havia uma erosão em uma encosta marginal ao reservatório.

Munido de câmara fotográfica e filmes em papel e slide – as câmaras digitais ainda

não estavam no mercado -, fui até a área e verifiquei a progressão de uma grande

voçoroca situada na porção de jusante de uma estreita sela topográfica da margem

direita do reservatório, localizada longe da barragem e, por esse motivo, sem a

atenção que Furnas sempre dedicou ao monitoramento detalhado da barragem.

As fotos em papel foram enviadas a Furnas anexadas a um relatório descrevendo

a voçoroca e os slides, projetados em simpósio realizado na semana seguinte, que

contou com a participação de engenheiros de Furnas. As providências para o

controle do progresso da voçoroca foram tomadas sob a orientação do engenheiro

Erton Carvalho, na época chefe do Departamento de Engenharia Civil de Furnas, e

a previsão de Savananda foi, consequentemente, devidamente afastada.

Os minEirOs, gEtúliO E A siDErurgiA

Durante anos os mineiros não perdoaram o presidente Getúlio Vargas em seu

primeiro governo, por não ter posicionado a Companhia Siderúrgica Nacional em

território mineiro, já que o minério era mineiro. Mesmo Macedo Soares tendo

explicado inúmeras vezes que siderúrgicas devem ficar perto do mercado e não

perto do minério, além de Minas Gerais não ter na época, anos 1940, infraestrutura

energética e de transporte adequada, os mineiros não se convenciam.

O secretário de Viação e Obras Públicas do governo estadual de Milton Campos

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 155

(1947-1951), engenheiro José Rodrigues Seabra, encomendou aos engenheiros

Lucas Lopes, John Cotrim e Mauro Thibau a elaboração do plano de eletrificação

de Minas Gerais, que resultou em investimentos estaduais em geração de energia.

Em campanha para presidência em 1950, Getúlio Vargas prometeu a instalação

de uma grande siderúrgica em Minas Gerais. Após sua eleição, a Mannesmann, que

tinha planos de se instalar no Rio de Janeiro, esteve com Getúlio para consolidar o

apoio federal para o empreendimento. “Eu dou tudo o que os senhores quiserem,

contanto que a usina vá para Minas”, disse Getúlio aos alemães e recomendou que

procurassem o recém-eleito governador de Minas Gerais, que contava com um

competente plano de eletrificação. Juscelino Kubitschek afirmou aos executivos da

Mannesmann: “Podem instalar a usina, que garantimos a energia.” Essa garantia

de suprimento de energia elétrica assegurou a implantação da Cemig.

furOr ArrEcADAtóriO

No Brasil Colônia havia um imposto de 20% sobre a extração do ouro. Era

conhecido como o quinto dos infernos. Quando a coroa portuguesa resolveu

cobrar os impostos em atraso, sob a denominação de derrama, os inconfidentes

mineiros consideraram que seria a oportunidade para tentar o estabelecimento de

uma república nos moldes da recente República dos Estados Unidos da América.

Hoje, com a carga fiscal batendo recorde mundial na casa dos 40%, muitos sentem

que, como colônia, o furor arrecadatório seria até bem mais suportável.

Mas essa característica do nosso País parece que sempre existiu. Em final de

1926, assumiu a presidência da República o fluminense de Macaé Washington

Luiz, cujo principal lema de campanha foi “Governar é abrir estradas”, o que pode

ter causado a ênfase nos transportes rodoviários. O ministro da Viação e Obras

Públicas era o engenheiro Victor Konder, que iniciou a implantação de rodovias

começando pelas BR-1 (Avenida Brasil), BR-2 (Rio - São Paulo) e BR-3 (Rio -

Petrópolis), inauguradas em 1928.

Em 1927 foi criado o Fundo Especial para a Construção e Conservação de

Estradas de Rodagem, constituído por um imposto sobre combustíveis e veículos

importados. No que se referia a combustíveis, o imposto era de 60 réis por quilo de

gasolina. Para aumentar a arrecadação, o engenheiro Philuvio Rodrigues sugeriu

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156 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

a substituição da palavra quilo por litro, que, além de ser medida mais fácil, propiciava

um imediato acréscimo de arrecadação de 38,8% em época de baixa inflação.

pAlAvrA DE ministrO

Em 1968, Furnas recebeu as concessões das hidroelétricas de Porto Colômbia e

Marimbondo, ambas no rio Grande, entre Minas Gerais e São Paulo. Nos estudos de

inventário que haviam sido realizados pela Canambra, Porto Colômbia foi localizada

pouco a montante da foz do rio Pardo no rio Grande. O rio Pardo contribui com

cerca de 30% da descarga do rio Grande na confluência dos dois rios. Nos estudos

iniciais, Furnas optou por um local situado pouco a jusante dessa confluência, com

considerável acréscimo de energia sem que houvesse grandes impactos ambientais,

uma vez que a usina de Porto Colômbia seria (como é) de baixa queda, pouco superior

a 20 metros, e, portanto, seriam de pouca expressão as terras a serem inundadas no

vale do rio Pardo.

Ao serem iniciados os estudos de campo, o prefeito da pequena cidade de Guaíra (SP),

julgando que a inundação seria semelhante à do reservatório de Furnas, capitaneou

um movimento político no estado de São Paulo contra a alternativa de posicionamento

da barragem a jusante da foz do rio Pardo. Esse movimento atingiu o ministro Costa

Cavalcanti, das Minas e Energia, que, em solenidade na usina de Jupiá, garantiu em

discurso que Porto Colômbia seria situada a montante do rio Pardo.

Poucos dias depois, diretores de Furnas e seus assessores mostraram a conclusão

dos estudos de localização de Porto Colômbia ao ministro, que lamentou dizendo que

“palavra de ministro não volta atrás”. A usina teve que ser construída a montante da

foz do rio Pardo. Desde o início de sua operação, em 1973, a usina deixa de gerar cerca

de 650 mil megawatts-hora por ano.

EspOsA JOvEm DE mAriDO iDOsO

Em 1975 fui pela primeira vez relator do Seminário Nacional de Grandes

Barragens. O tema era Investigações Preliminares para Projetos de Barragens.

Deixei as considerações sobre prospecções geológicas para o fim e, após abordá-las,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 157

para realçar sua importância, concluí a exposição comparando a integração entre a

barragem e o maciço de sua fundação com o relacionamento de um casal de esposa

jovem e marido idoso. “Ele (fundação), já alterado, com faces rugosas e fissuradas, com

eventuais falhas de caráter, e ela (barragem), esbelta, com faces lisas e bem tratadas,

crescida rapidamente e com formas arrojadas. Ele fica recalcado com os movimentos

dela e se esforça para corresponder às solicitações físicas a que ela o obriga. Se ele for

fraco, recebe injeções, mas, se ele perde o equilíbrio, ela perde sua existência.”

O frAncês E A pArADisíAcA ilhA trOpicAl

No final dos anos 1960, Jean Pierre Paul Rémy havia se graduado engenheiro e,

embora tivesse feito mestrado e doutorado, ainda teria que prestar serviço militar

ou atuar em programas assistenciais do governo francês. Um desses programas era

ensino pós-graduado em países em desenvolvimento. Consultando as alternativas,

verificou que do programa constava uma universidade federal no Rio de Janeiro,

situada em uma ilha. Imediatamente imaginou essa ilha como sendo semelhante às do

Taiti, possessão tropical francesa no Pacífico, e, sem mais delongas, se candidatou para

ensinar na Coppe-UFRJ, onde foi imediatamente aceito.

Ao desembarcar no velho Galeão, foi recebido por professores da Coppe e

perguntou se a ilha da Cidade Universitária ficava perto. Como resposta, ouviu que

era no caminho. Ao passar pela ilha, na época ainda meio desértica, se deparou com

seu primeiro contato com a realidade brasileira. Entretanto, mesmo assim, acabou

gostando do País e aqui permanece vivendo há mais de 40 anos.

só DEus sAbE!!!

Pouco após a entrada em operação da hidroelétrica de Furnas, passou a ser

observada uma progressiva erosão na alta e abrupta encosta lateral esquerda do

reservatório no local denominado Córrego dos Cabritos, dada a verticalidade da

encosta. Um bloco havia desmoronado da encosta causando ligeiros danos a uma

embarcação ancorada à barragem e revelando a situação perigosa caso blocos maiores

se desprendessem, principalmente um grande bloco denominado de monólito.

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158 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Como as erosões evoluíam, foram feitos ensaios em laboratório de hidráulica

em modelo reduzido, tendo-se obtido resultados preocupantes para a segurança da

barragem de enrocamento que poderia ser galgada por uma grande onda provocada

pela queda do monólito no reservatório, principalmente se este estivesse no seu nível

máximo normal ou próximo dele.

A demolição do monólito e de outras partes da encosta foi iniciada. O engenheiro da

obra, Olavo Pinheiro, foi entrevistado pelo Jornal Nacional da Rede Globo no local da

obra. Com muito cuidado, as perguntas foram antes submetidas para que as respostas

fossem bem estudadas. Mas, ao final da entrevista, veio uma pergunta que não havia

sido programada sobre o que aconteceria se o monólito colapsasse. Olavo, pego de

surpresa, respondeu: “Só Deus sabe.” A entrevista causou pânico.

As instruçõEs DE JK

Em visita às obras da hidroelétrica de Três Marias, Juscelino, então presidente da

República, viu o técnico de solos Mário, que posteriormente teve longa carreira no

IPT e na Enge-Rio, retirando um cilindro de terra do aterro em compactação. Ficou

agachado ao lado do Mário e, em voz baixa, perguntou o que era aquilo que ele fazia.

Mário explicou que era um ensaio novo chamado método de Hilf para verificação do

grau de compactação do aterro. Ele entrou nos detalhes dos procedimentos e disse

que a liberação da camada dependia do resultado do ensaio. Juscelino certamente, não

entendeu o método, mas disse à meia voz, ao pé do ouvido do Mário para que os outros

não ouvissem: “A qualidade é importante, mas, por favor, não mande parar a obra.”

EstrADA quE ligAvA nADA A cOisA nEnhumA

No início do governo de Jânio Quadros houve uma “caça às bruxas”, sendo

classificados como bruxas os que eram próximos ao Juscelino no governo anterior. O

engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa se enquadrava nesse grupo por ter

sido diretor-geral do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).

Ele foi submetido a vários inquéritos, com os mais despropositados questionamentos,

como: “O senhor construiu uma estrada na qual não se vai a lugar nenhum?”

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 159

Estranhando a pergunta, José Cândido quis saber que estrada seria essa. Ao lhe ser

mostrada em planta, José Cândido esclareceu com calma que essa estrada era o acesso

à área de empréstimo de uma barragem. O termo área de empréstimo causou outro

susto no inquisidor, que de engenharia nada entendia.

Orós, rOgAi pOr nós!

Eu era criança, porém me lembro de ler no Diário de Notícias os diretores do DNOCS

alertando que a carência de recursos e de crédito estava ameaçando a segurança da

barragem de Orós, em construção no final de 1959. Com efeito, na época houve uma

intensa drenagem de recursos federais direcionados para a construção de Brasília,

denominada por JK a meta síntese de seu plano de metas. Assim, outras obras federais

foram relegadas ao abandono.

No caso da barragem de Orós, esse abandono era extremamente perigoso, na medida

em que o aterro compactado do corpo da barragem em construção teria que superar a

cota da soleira do sangradouro, situado na margem esquerda, antes do início da estação

chuvosa e, consequentemente, das cheias. Por total falta de recursos financeiros e de

crédito, a construção ficou paralisada e, no final da estação das chuvas, ocorreu uma cheia

que galgou a barragem em construção causando seu colapso, apesar dos desesperados

esforços de última hora para subir a crista e proteger o talude de jusante. Grande

inundação foi verificada em todo o vale a jusante, não tendo havido muitas perdas de

vidas graças à atuação do Exército e da Aeronáutica no salvamento das populações que

viviam às margens do rio Jaguaribe, o maior rio intermitente do País.

A barragem foi reconstruída e inaugurada ainda no governo JK, culpado pelo colapso

dela. Na inauguração, Juscelino se esquivou da responsabilidade pelo desastre durante o

seu discurso e capitalizou politicamente o evento dizendo:

O vasto mar que aqui se formou não se destina apenas a refletir a luz das estrelas. É um mar ativo que vai regularizar o regime do maior rio seco do mundo. Não me julgo credor da vossa gratidão, cumpri um dever sagrado e uma sagrada missão que as circunstâncias me reservaram. Eu é que sou grato a Deus por ter podido vos ser útil, concluindo e inaugurando essa obra, objeto de tantos sonhos e aspirações, obra legendária que desafiou 40 anos de esforços e de frustrados desejos.

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160 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

No local da barragem, imerecidamente, Juscelino foi brindado com uma estátua

em tamanho natural, de braços abertos e olhos voltados para o rio Jaguaribe.

O ministrO, O OpErADOr E O sAngrADOurO

Após o colapso e a reconstrução da barragem de Orós, permaneceu a carência

de recursos para o término da obra, que implicava na concretagem do sangradouro

situado na margem esquerda. Com o objetivo de evitar que houvesse vertimento

por sobre as rochas intensamente fraturadas e mesmo decompostas em vários

pontos, havia um trator e seu operador estacionados sobre uma ensecadeira de

terra situada na crista do sangradouro.

Em visita a Orós, o então ministro de Viação e Obras Públicas, que não era

engenheiro, estranhou a presença da ensecadeira e mandou que fosse utilizado o

trator para que a ensecadeira fosse aberta. A água escoando sobre a rocha local

provocou intensa erosão regressiva que, por pouco, não causou novo colapso da

obra, desta vez pela ombreira.

Em seguida, tendo ficado nítido para as autoridades a importância e urgência

do término das obras, foi encomendado ao professor Theophilo Benedicto Ottoni

Neto o projeto do sangradouro. O projeto aproveitou a grande erosão que

havia sido provocada pelo escoamento das águas, sendo um projeto exemplar de

arquitetura hidráulica.

O prEsiDEntE, O sEu vicE E O ministrO

Aureliano Chaves, empossado vice-presidente do general João Batista Figueiredo,

comunicou ao também engenheiro João Camilo Penna que o presidente o havia convocado.

Entretanto, não revelou o assunto que seria tratado. Camilo Penna estava na antessala com

o general Venturini, quando saiu da sala do presidente o economista Delfim Netto, que

perguntou o que ele estava fazendo ali. Camilo respondeu com sinceridade: “Por incrível

que possa parecer, não sei.” Ao entrar na sala do presidente, Figueiredo foi logo dizendo:

“O senhor me foi indicado para ministro das Minas e Energia, mas foi vetado por ter falado

mal do acordo nuclear. Assim, o senhor será ministro da Indústria e Comércio.”

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 161

Camilo Penna foi ministro por cinco anos e nove meses, quando aconteceu um

imprevisto. O ministro Antônio Delfim Netto ordenou que todos os ministros

recebessem o Paulo Maluf, candidato à presidência da República. Camilo não

poderia apoiar o Maluf, pois o outro candidato era Tancredo Neves, por quem

Camilo nutria amizade de longa data. Então, emitiu a carta de demissão.

O cuiDADO cOm mArcOs E rEfErênciAs DE nívEl

Em 1968, no início do projeto da hidroelétrica de Marimbondo, foi efetuado pela

Geofoto o levantamento aerofotogramétrico da área da barragem. A equipe de campo

de Furnas detectou uma discrepância constante, de aproximadamente um metro, na

altimetria. Muito tempo foi gasto até que descobrimos que uma das referências de nível

usadas pela Geofoto estava localizada na praça central de Icém, pequena povoação

situada à margem esquerda do rio Grande no local da usina.

Com entrada de recursos na prefeitura, tinha havido uma obra de remodelação

da praça. Perguntado, o prefeito disse saber que a referência de nível tinha que

ser preservada e, portanto, ao longo de toda a obra na praça, a referência de nível

ficou muito bem guardada na sacristia da igreja. A aerofotogrametria teve que ser

redesenhada.

O cuiDADO cOm As cAixAs DE tEstEmunhOs DE sOnDAgEm

O sistema de geração da Light na Serra das Araras foi muito engenhoso e

implantado em ampliações sucessivas desde os primeiros anos do século XX até os

anos 1960. A partir dos anos 1950, o sistema passou a contar com a derivação de

expressivas descargas bombeadas dos rios Paraíba do Sul e do seu afluente Piraí.

As descargas efluentes das usinas geradoras afluem ao Ribeirão das Lajes, que

passou a ser praticamente um rio artificial com grandes descargas.

A última usina do sistema tinha sido inaugurada pelo presidente Humberto de

Alencar Castello Branco. Cerca de 30 anos após essa inauguração, propus à Light

a implantação de mais uma usina no Ribeirão das Lajes, em sequência às usinas

em operação e aproveitando as grandes descargas e a proximidade do centro de

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162 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

carga. O projeto básico foi concluído em seguida; entretanto, devido a alterações

na governança da Light, as atividades para a implantação dessa nova usina foram

descontinuadas. Somente após a virada do século foi que a usina voltou a ser

considerada, tendo sido construída e entrado em operação em 2012.

Quando da descontinuação das atividades, foi enfaticamente recomendado que as

caixas com os testemunhos (amostras) das sondagens que tinham sido executadas

na fase do projeto básico fossem cuidadosamente guardadas. Anos depois, na

retomada do projeto, a equipe técnica foi procurar os testemunhos das sondagens

para nova análise que serviria de base para as prospecções complementares. Ao

perguntarem pelas caixas de testemunhos, verificaram que elas estavam muito bem

acondicionadas. Entretanto, estavam sem os testemunhos, que, por serem amostras

de pedra aparentemente sem valor para um leigo, haviam sido jogados no rio.

O cuiDADO cOm As AmOstrAs

Meu primeiro estágio em engenharia foi em uma firma suíça de geotecnia

denominada Rodio, sediada na Rua Bambina, no Rio de Janeiro. O seu laboratório

de solos, muito bem equipado para os padrões da época, ficava sobre seu depósito

de equipamentos em Bonsucesso.

Um dos contratos em desenvolvimento na época incluía a coleta de amostras

indeformadas de solos compressíveis no Chile para serem submetidas a ensaios

especiais no Rio de Janeiro. Os cilindros metálicos chegaram por via aérea ao

aeroporto do Galeão e foram direcionados para a Alfândega. Como era de se esperar,

não havia na Alfândega ninguém com conhecimentos de mecânica dos solos. As

explicações de que dentro dos tubos cilíndricos metálicos havia apenas terra, que

não poderia ser mexida, levantaram suspeitas e não convenceram os inspetores, que

resolveram abrir todos os cilindros. Após amolgarem completamente as amostras

à procura de algum contrabando, constataram a veracidade das informações. Ao

devolverem as amostras completamente amolgadas, ficaram surpresos ao ver

que elas foram jogadas fora, por não mais servirem aos objetivos dos ensaios que

seriam realizados.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 163

AurEliAnO chAvEs EstuDAntE

Desde jovem, Aureliano Chaves de Mendonça era grande e desajeitado. Mesmo

assim, tinha a política correndo em suas veias. Ainda estudante em Itajubá, era o

presidente do diretório acadêmico. Naquela época, primeira metade do século XX,

a atual Escola Federal de Engenharia de Itajubá era uma instituição privada sob

a denominação de Instituto Eletrotécnico de Itajubá, passando posteriormente a

Instituto Eletromecânico de Itajubá.

Na época em que era uma instituição privada de ensino superior, o Instituto

passava por dificuldades financeiras. Ficou decidido, por consenso, pedir que o

governo federal o encampasse. Para tanto, uma delegação de diretores, professores

e alunos viajou de ônibus para o Rio de Janeiro, para uma audiência com o então

presidente Getúlio Vargas, cujo agendamento havia sido conseguido.

Aureliano, na qualidade de presidente do diretório acadêmico, seria um dos que

dirigiria a palavra ao presidente, procurando angariar sua simpatia pela proposta

de encampação. E iniciou dizendo: “Sr. presidente, apesar de discordar frontalmente

do senhor em quase todos os aspectos...” Foi impedido de continuar falando pelos

próprios companheiros e colocado no fundo da sala de reunião. Getúlio acabou por

encampar o Instituto, que prosseguiu formando excelentes engenheiros.

AurEliAnO chAvEs vicE-prEsiDEntE

Em maio de 1992, o Comitê Brasileiro de Barragens, na época presidido pelo

engenheiro Carlos Alberto Pádua Amarante, tinha uma importante missão a

cumprir: realizar com sucesso o Congresso Internacional de Grandes Barragens.

Entretanto, no ano anterior, Amarante havia perdido o cargo de diretor de engenharia

e planejamento da Eletrobras por discordar insistentemente do ministro César Cals

de Oliveira sobre hidroelétricas na Amazônia. Para a sessão de abertura do Congresso,

teria que ser convidada uma autoridade de primeira grandeza, como era tradição

nesses congressos em todos os países que nos antecederam. Não havia entusiasmo

em convidar o presidente da República nem ministro da área de obras hidráulicas.

Aureliano foi a solução, por ser engenheiro, vice-presidente da República e chefe

de uma secretaria federal de energia. Convite feito e aceito, fomos convocados para

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164 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

estarmos presentes na inspeção que os seguranças federais iriam fazer nas instalações

do centro de convenções. Para nossa surpresa, não houve qualquer preocupação quanto

à segurança contra atentados, mas sim, quanto à imagem do vice-presidente.

Já na entrada do centro de convenções, fomos informados de que teríamos que retirar o

grande tapete que havia ali, pois o desastrado vice-presidente teria grande probabilidade

de tropeçar e cair. Procuramos argumentar que seria um transtorno retirar o referido

tapete para, após a sessão de abertura, termos que recolocá-lo. O chefe do serviço de

segurança perguntou secamente: “Vocês conhecem o Aureliano?” Sem esperar resposta,

emendou: “Então tirem o tapete.” Daí para frente, tivemos que concordar com tudo.

AlfAfA pArA burrO

O engenheiro e professor da UFRJ João Moura permaneceu por pouco tempo como

diretor técnico da Companhia de Eletricidade do Rio de Janeiro (CERJ), que na época

era uma empresa estatal de energia elétrica com concessões em muitos municípios do

estado do Rio de Janeiro.

A CERJ foi o resultado da fusão das Centrais Elétricas Fluminenses (CELF),

companhia estatal estadual, com a Companhia Brasileira de Energia Elétrica, empresa

originalmente americana do grupo Amforp, que foi estatizado no início dos anos 1960.

A CERJ, após ser privatizada, adotou o nome de Ampla.

No curto período em que permaneceu na diretoria técnica, o engenheiro João

Moura teve algumas surpresas. Descobriu que havia uma verba para aquisição de

alfafa destinada a alimentar um burro que, no passado distante, servia de apoio para a

locomoção entre a casa de força de uma das usinas da empresa e a barragem, situada em

posição remota. Na época em que João Moura me contou isso, não mencionou a usina.

Hoje, ele infelizmente falecido e eu conhecendo as usinas, imagino que ele estivesse

falando da hidroelétrica de Macabu, que entrou em operação em 1949, projetada pelo

professor Edmundo Franca Amaral e cuja casa de força turbina águas provenientes do

rio Macabu sob 328 metros de queda bruta, derivando-as para o rio São Pedro, situado

no sopé da Serra do Mar.

Com o passar dos anos, foi criado acesso rodoviário na região, facilitando o tráfego

esporádico entre a casa de força e a barragem. O burro havia falecido há décadas, mas

a verba e o recurso permaneciam sempre contabilizados.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 165

tAmAnhO nãO é DOcumEntO

Tamanho não é documento; nem peso. Em outubro de 2013, foi notado que

desapareceram várias vigas metálicas que tinham sido usadas como peças estruturais

da Avenida Perimetral, situada na região portuária da cidade do Rio de Janeiro. As

vigas, uma das primeiras peças da demolição, após terem sido removidas, estavam

estocadas em um terreno baldio no Caju.

A Perimetral, uma longa avenida elevada que serviu durante décadas para desafogar

o trânsito do centro do Rio de Janeiro, embora estruturalmente saudável, foi condenada

a ser demolida. No início da demolição, seis vigas de aço pesando 20 toneladas cada,

cada uma equivalente ao peso de cinco elefantes, foram roubadas em plena luz do dia.

O CREA-RJ estimou que cada uma valeria R$ 150 mil.

Esse sumiço não foi um ato único. O saudoso engenheiro João Moura, quando diretor

técnico da CERJ, perguntou a mim e ao Dr. Flavio Lyra se nós achávamos fácil perder

um elefante. Dissemos que, devido ao seu tamanho, deveria ser mesmo difícil sumir com

um elefante. Moura então nos disse que se surpreendeu ao assumir o cargo de diretor

técnico, pois havia descoberto que uma usina hidroelétrica não estava sendo localizada.

umA AvEnturA nA áfricA

O engenheiro Hugo Soares de Souza, prestigioso executivo do grupo Brazil

Energy, conta as suas aventuras na África como responsável pela operação das usinas

geradoras de concessão da AES em Camarões, de 2001 a 2005. A hidroelétrica de

Ladgo, com quatro unidades de 18 megawatts cada, foi doada pela China a Camarões,

projetada e construída por chineses e instalada com equipamentos chineses.

Na primeira visita à usina situada em um rio caudaloso que corta a savana árida,

Hugo viu, da crista da tomada d’água, o que ele julgou serem inúmeros e enormes

blocos de pedra no canal de fuga. Ele perguntou por que os blocos não haviam sido

detonados e removidos, pois nitidamente introduziam perda de queda à usina. E

obteve como resposta que os hipopótamos gostavam de se banhar na água corrente.

Embora já em operação há muitos anos, ainda estavam na usina cinco chineses,

um dos quais cozinhava para os outros quatro, que, por sua vez, nada faziam. Como

os operadores sabiam manter a usina, os manuais já haviam sido traduzidos para

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166 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

o francês e para o inglês e os chineses, que nada faziam, custavam US$ 1 milhão

por ano, Hugo providenciou a dispensa dos chineses. Ao serem comunicados, eles

arregalaram os olhos com a surpresa. Os chineses não saíram e, meses depois,

Hugo recebeu um telefonema do presidente da AES, Mr. Mark Miller, dizendo

para ele desistir da demissão dos cinco chineses. Isso porque tinha recebido um

telefonema furioso do primeiro-ministro camaronês mandando a AES “entubar”

o assunto, pois era uma cooperação técnica. Ao término do contrato do Hugo, os

chineses permaneciam na usina.

OutrA AvEnturA nA áfricA

A hidroelétrica de Song-Loulou, equipada com oito unidades de 45 megawatts

cada, era de fundamental importância para a República dos Camarões. Em 2001,

a sua barragem apresentava uma intensa deterioração devido à reação álcalis-

agregados, que faz com que as estruturas de concreto se expandam. Essas expansões

impediam o acionamento de comportas e tornavam ovais condutos originalmente

de seção circular. A reabilitação das estruturas hidráulicas foi possível com a

obtenção, a fundo perdido, de recursos de um banco suíço de fomento.

O chefe da transmissão e da operação de todas as usinas de concessão da AES

em Camarões era o engenheiro brasileiro Hugo Soares de Souza, que tinha na

usina de Song-Loulou o camaronês Batet como chefe da operação. Por carência

quase total de infraestrutura regional, a operação da usina envolvia o incrível

contingente de 350 pessoas. Batet era de etnia Mbamelek, que distava da região da

usina cerca de 500 quilômetros. Por sua influência, todos os empregados da usina

eram de sua etnia. A etnia da área da usina é Bassa.

A orientação da AES era integrar o máximo possível as comunidades locais aos

serviços das usinas. Batet procurava impedir, porém Hugo promoveu a substituição

de cerca de 150 pessoas, contratando trabalhadores da região. Como os serviços

eram simples e, consequentemente, mesmo sendo baixos os salários, o impacto dessas

contratações foi muito grande na comunidade Bassa.

Um dia, um residente local fardado foi conversar com Hugo. Ele estava preocupado

com a viagem que o engenheiro faria ao Brasil com a família, no Natal. Queria saber

quando ele estaria de volta a Camarões: “Os Bassas querem te homenagear e torná-lo

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 167

chefe tribal.” Hugo passou a ser pessoa do mais elevado respeito na região e mantinha

sua condecoração na sua sala de trabalho. Pessoas que iam reivindicar qualquer coisa

à AES, ao verem a condecoração, passavam a tratá-lo com o mais elevado respeito.

Os vElhinhOs

A Brazil Energy é, basicamente, composta por jovens executivos altamente

preparados em finanças, economia, direito, administração e engenharia de produção

e, em geral, pós-graduados no exterior. Eu, nos meus 60 e muitos anos, e o CEO da

empresa, Frederico Robalinho de Barros, elevávamos a idade média do grupo. Fui

encarregado de formar uma equipe de consultores para fazer a análise de investimento

(due diligence) no âmbito da engenharia para aquisição da pequena central hidroelétrica

de Braço. Coincidentemente, eu havia sido o responsável pelo projeto básico.

Como essa análise é notoriamente feita por seniores, convoquei os consultores

Alfredo Toledo, engenheiro eletricista de larga experiência, Takemitsu Yamazato,

engenheiro mecânico com atuação em grandes hidroelétricas, e John Cadman,

engenheiro civil e geólogo residente no Brasil há 50 anos, que havia sido meu

orientador na pós-graduação. As idades de nós quatro somadas superavam os 300

anos! Leonardo Pinho, um dos jovens executivos acima referidos, pós-graduado em

Harvard, foi conosco na primeira visita de inspeção à hidroelétrica. Posso imaginar,

embora ele jure que não houve isso, o relato feito pelo Leonardo aos seus pares dizendo

que viajou “com o Miguez, que teve que parar em uma farmácia, pois havia esquecido

os remédios que tem que ingerir todos os dias. O Alfredo frequentemente pedia para

parar o carro para saltar com objetivo de recolocar a sua coluna vertebral no lugar. Já

no local da usina, chegou de São Paulo o nipônico, mais velho do que todos os outros!

E o geotécnico, imaginem, havia sido professor do Miguez!!!”

bAnhO Ou JAntAr

John Cadman chegou ao Brasil em 1962 integrando o Peace Corps, programa

assistencial americano para jovens voluntários. Por sua formação em geologia, ele

foi encarregado de prospectar e perfurar poços no Polígono das Secas, interior do

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168 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Nordeste. Ele relata experiências quase inacreditáveis, como a de chegar com um

pequeno grupo a uma localidade denominada Lajes dos Negros, município de Campo

Formoso, perto de Morro do Chapéu (BA). Não havia alternativa de hospedagem

senão a de ficar em uma casa cuja dona alugava um quarto. Ao chegar, famintos e

cobertos da poeira do sertão, receberam a pergunta feita pela dona da casa. “O que

é que vocês preferem: janta ou banho?” Ao pedido de explicação feito, a dona da casa

respondeu: “É o seguinte: só há essa lata com água. Se vocês preferirem se lavar, não

haverá janta; mas, se vocês preferirem jantar, cozinharei nessa água.” Naquela noite,

eles dormiram sujos.

A vErbA

John Cadman relata vários problemas com residentes no interior da Bahia,

principalmente os políticos, nas suas atividades no programa de perfuração de

poços para abastecimento de água, no início dos anos 1970. Quando chegava a uma

localidade, o prefeito já dizia onde ele teria que perfurar o poço. A maior parte das

vezes era na praça principal; algumas vezes nas terras do prefeito.

Entretanto, em geral, essas não eram localizações geologicamente apropriadas

para o poço, por estarem, por exemplo, em terrenos cristalinos não fraturados e

de baixíssima permeabilidade. O pior era quando o local mais apropriado coincidia

com as terras do adversário político. Após alguns meses, quando já havia perfurado

cerca de 100 poços, o jovem Cadman foi chamado a Juazeiro para uma reunião

com o engenheiro Torres, executivo da Comissão do Vale do São Francisco, que

comunicou a ele que a verba havia sido suspensa. Sem saber o que era verba, Cadman

perguntou se era algo relativo a verbo. Ao dar a explicação, Torres disse que ele

tivesse paciência, pois provavelmente, se tudo corresse bem, dentro de seis meses a

verba reapareceria.

Apavorado, Cadman foi relatar o ocorrido ao diretor do Peace Corps, George

Coleman, que lhe disse que coincidentemente havia acabado de receber um telefonema

do engenheiro Mário Mafra, da Cemig, que estava em um grupo de trabalho com

duas empresas canadenses e uma americana de engenharia consultiva. Eles estavam

levantando as possibilidades hidroenergéticas do estado de Minas Gerais com extensão

para toda Região Sudeste, em um consórcio que viria a ser muito bem- sucedido,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 169

denominado Canambra.

Mário Mafra queria o apoio de um jovem profissional com o perfil do Cadman.

Ao chegar ao escritório da Cemig em Belo Horizonte, sua primeira pergunta ao

Mário Mafra foi: “Há verba?” Soube que era uma dotação da Unesco com recursos

garantidos. A partir dessa experiência, e de trabalhar com o geólogo americano John

Cabrera, Cadman virou barrageiro para o resto de sua vida profissional.

pOrtuguês DE gringO

Depois de cinco décadas no Brasil, John Cadman passou a residir em Itaipava.

Um dia, ao descer para o Rio de Janeiro de ônibus, veio conversando com uma

professora de português aposentada. Percebendo o sotaque, ela perguntou de onde

ele era. Com a resposta de que ele havia nascido no Canadá, mas também era

americano, ela elogiou muito o português que ele falava.

Cadman se animou e revelou que no mês seguinte, dezembro de 2012, faria uma

comemoração com amigos pelos seus 50 anos no Brasil – ele também tinha residido

em Lisboa, durante um treinamento no Laboratório Nacional de Engenharia

Civil. Ela então afirmou: “Cinquenta anos? Tudo isso? Retiro o que disse sobre a

qualidade do seu português.”

O OpErADOr nA tOrrE DE cOntrOlE

Até não muito tempo atrás, o conhecimento de idiomas estrangeiros era rarefeito

entre os brasileiros, apesar de na minha época de colégio ser obrigatório o ensino

de latim, inglês, francês e espanhol. Nos colégios, entretanto, o ensino de idiomas

era, em geral, muito fraco, e entre os que se aventuravam a estudar com mais

profundidade um idioma, usualmente, a escolha recaía sobre o francês.

Pelo espanto que causou, não me esqueço, por exemplo, de um anúncio publicado

no final dos anos 1960 nos classificados de O Globo: uma empresa estrangeira de

engenharia industrial procurava um engenheiro de montagem. O anúncio, mal

traduzido, oferecia oportunidade de trabalho para um especialista em ereção.

Dona Leda Morado Nery, secretária da diretoria técnica de Furnas e

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170 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

posteriormente secretária da presidência da Enge-Rio, contava que há muitos anos,

logo que foi instalada a torre de controle no aeroporto de Santos Dumont, no Rio

de Janeiro, um primo dela passou a ser um dos operadores, apesar de ter modestos

conhecimentos de idiomas estrangeiros, restritos ao precário ensino dos colégios,

que na época priorizavam o francês.

Uma vez que era um aeroporto doméstico, foi considerado que bastava os

operadores conhecerem os jargões da aviação. Logo após a instalação da torre de

controle, um avião da Lufthansa entrou em contato pedindo, em inglês, instruções

para pouso. O comandante alemão perguntou repetidas vezes se ele estava

contatando o aeroporto do Rio de Janeiro e obtinha resposta afirmativa, mas

quando pedia instruções para pousar, recebia em inglês macarrônico: “No, you can

not land here.”

Após longo tempo sem saber se expressar em inglês ou em qualquer outro

idioma que o alemão pudesse entender, sem conseguir indicar que o aeroporto

internacional era outro, o operador, ante a insistência do alemão, que já sobrevoava

o Rio de Janeiro há vários minutos, disse: “If you want to land, you land, but I take

my body out.” O alemão, sem entender nada, entrou em desespero.

DOn DEErE

Pela primeira vez no Brasil, o consultor de geologia, professor Don Deere, fez

uma visita ao canteiro de obra da hidroelétrica de Marimbondo. O geólogo de

Furnas, Carlos Alberto Lyra Vaz, mostra uma pedra e pergunta que rocha é aquela.

Deere pega a pedra e diz, com segurança: “This is a liveitright.” Carlos: “What

is that?” Deere: “Live it right there.” Para outra amostra de rocha que Carlos

apresentou: “This is a FRDK.” Carlos: “What?” Deere: “Funny rock, don’t know.”

luiz bOrrAchA

Acampamento de construção da hidroelétrica de Jupiá no rio Paraná, década

de 1960, uma partida de futebol estava para começar. O excelente jovem geólogo

Carlos Eduardo Osório Ferreira, recém-chegado à obra, se ofereceu para atuar como

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 171

goleiro. Completamente uniformizado, inclusive com boné e joelheiras, disse que o

seu estilo era semelhante ao de Luiz Borracha, que havia sido goleiro do Flamengo.

Logo no início da partida, os atacantes adversários perceberam que podiam

chutar de qualquer distância porque tinham boas chances de marcar gols. Uma

figura nipônica de nome Raimundo Kimura, excelente arrematador, fez a festa com

vários gols. Após essa partida, e até hoje, ficou o apelido de Luiz Borracha.

No final dos anos 1970, por ocasião do desenvolvimento do projeto de Xingó, o

geólogo francês André Pautre foi contratado como consultor. Na primeira reunião,

Pautre, de maneira disfarçada, me perguntou o nome do Carlos Eduardo, ao que

respondi: “Loui Gomme.” Pautre passou a chamá-lo por seu apelido em francês até

o fim da consultoria. Acho que o Carlos Eduardo queria me bater. Pautre nunca

soube que esse não era o nome dele.

Nos anos 1980, estávamos projetando a barragem das Antas para a Nuclebras

em Poços de Caldas. Embora a barragem não fosse grande, era de todo o interesse

que fosse detectada uma ocorrência de rocha sã no trecho do rio em análise para

ser localizada a estrutura de concreto do vertedouro. Baseado na geologia regional,

Carlos Eduardo, como sempre categórico, afirmou que, se fosse encontrado

afloramento rochoso no local, ele comeria a rocha.

Na primeira visita ao campo, o engenheiro Lourenço Justiniano N. Baba, em

inspeção cuidadosa, localizou um pequeno afloramento rochoso, que veio a servir

de fundação para as estruturas combinadas de vertedouro em arco, descarregador

de fundo e adufa de desvio. Como Baba trouxe uma amostra e me mostrou, fui

convocando, um a um, toda a equipe da engenharia para a minha sala. Eu disse

para a Dona Sebastiana, nossa copeira, que, assim que o Carlos Eduardo entrasse

na sala (ele seria o último a ser chamado), colocasse na mesa de reunião a amostra

de rocha em um prato com garfo e faca e um copo d’água. Pela primeira vez, vi o

Carlos Eduardo sem jeito.

nuDismO

Nos anos 1950 e 1960, pontificou no Rio de Janeiro a naturalista e dançarina Dora

Vivacqua, nascida em 1917, na cidade de Cachoeiro do Itapemirim. Dora provocou

grandes impactos por suas provocantes danças com jiboias e por sua colônia de nudismo

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172 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

instalada na ilha Tapuama, na Baía de Guanabara. Ela ficou conhecida por seu nome

artístico de Luz del Fuego – tirado de um perfume argentino – e se referia à sua Ilha

como Ilha do Sol, onde ninguém podia permanecer vestido. Dora foi assassinada em

sua ilha em 1967; o nudismo desapareceu por muitos anos da orla do Rio de Janeiro.

Nessa mesma época, com o objetivo de garantir o abastecimento de água à fábrica

de borracha sintética e à refinaria em Duque de Caxias (Reduc), a Petrobras implantou

em Xerém a barragem de Saracuruna, na raiz da serra da Estrela, serra de Petrópolis

(RJ). A barragem foi construída em um aterro compactado sobre espessa camada

de solo. Entretanto, foram verificadas intensas percolações de água proveniente do

reservatório e surgências de água no terreno natural a jusante da barragem. Por esses

motivos, o reservatório era mantido com baixo nível d’água.

Para solucionar o problema, foi contratado o prestigiado Instituto de Pesquisas

Tecnológicas de São Paulo (IPT), que nessa época tinha o seu escritório do Rio de

Janeiro sob o comando do geólogo Fernando Pires de Camargo, titular de valioso

currículo em geologia de engenharia. O chefe da Divisão de Geologia Aplicada do IPT,

engenheiro Murilo Dondici Ruiz, concebeu um ensaio in situ para definir o fluxo de

água pelo corpo e, principalmente, pela fundação e ombreiras da barragem. O ensaio,

inédito na época, consistia na introdução de uma quantidade de radioisótopo em furos

feitos através do corpo da barragem e na medição da propagação da radioatividade

pelo solo.

Fernando Camargo, Nivaldo Chagas, técnico do IPT, e Costinha, motorista da

Reduc, vieram pela Via Dutra de São Paulo trazendo com todo o cuidado uma pesada

caixa de chumbo contendo o radioisótopo a ser colocado no solo de fundação da

barragem. A cápsula, após ter sido retirada da caixa de chumbo, foi introduzida em

um furo vertical executado para esse fim. Na sua posição final, no fundo do furo, a

cápsula foi quebrada pela pancada de um vergalhão, permitindo, assim, que o material

radioativo penetrasse na fundação da barragem. A cápsula rompida foi içada à superfície

e o furo foi tamponado. Só após essas operações, e depois de ter manuseado a cápsula

e o vergalhão, foi que os três perceberam que poderiam estar contaminados pela

radioatividade. Ligaram o contador, que indicou nos três a presença de radioatividade.

O pânico se instalou e eles, rapidamente, se despiram, desfazendo-se de suas roupas,

possivelmente contaminadas, e as abandonando sobre a barragem. Lembraram-se de

ter visto que, nessas circunstâncias, a primeira coisa que se fazia, além de se livrar das

vestimentas, era tomar um longo banho de chuveiro.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 173

Por isso, partiram em alta velocidade para o hotel Novo Mundo, situado na Praia

do Flamengo, onde tinham reservas. Como era um fim de tarde e início de noite,

contavam com a escuridão para não serem facilmente vistos por terceiros. Ao chegar

ao hotel, sem sair do carro, explicaram a situação ao funcionário da portaria e pediram

as maiores toalhas que havia no hotel. Entraram enrolados nelas e foram direto para

os quartos.

Fernando confessa hoje que passou muitos anos preocupado com os possíveis

efeitos da exposição à radioatividade que ocorreu naquele dia. Mas, posteriormente ao

susto, o contador passou a ser aplicado em trotes em outros técnicos que iam visitar

a barragem. O renomado engenheiro geotécnico Faiçal Massad, por exemplo, não

escapou: Fernando passava o contador pelo corpo e, quando se aproximava da região

da virilha, disparava o contador. Invariavelmente, o som do contador gerava pânico na

pessoa supostamente contaminada e gargalhadas naqueles que sabiam do trote.

O ensaio na fundação foi alterado, tendo sido injetada fumaça que aparecia em

vários pontos mostrando que o solo tinha caminhos preferenciais de percolação.

Foi verificado que os caminhos preferenciais haviam sido escavados por animais.

Como solução ao problema, foram executados dois diafragmas, um de cada lado,

minimizando o fluxo de água pelo corpo e pela fundação da barragem, que passou

a ter seu reservatório operado na sua plena capacidade.

OttOn lEOnArDOs

No segundo semestre de 1962, para uma das primeiras turmas de geólogos

em formação na então Universidade do Brasil, hoje UFRJ, o professor Otton

Leonardos estava ministrando uma aula prática no maciço do Corcovado. Naquele

ano a Seleção Brasileira de Futebol havia se sagrado bicampeã mundial no Chile.

Sempre há na turma um aluno querendo derrubar os professores; aquela não seria

uma exceção.

Combinado com os colegas, um aluno que havia acompanhado o campeonato e

trazido do Chile uma pedra, levou-a ao professor, que perguntou onde ele havia

achado aquela amostra. O aluno disse que tinha encontrado na estrada. O professor

falou: “Curioso, isso é um andesito, rocha ácida extrusiva, comum nos Andes; pode

ser encontrada no sul, mas não aqui.”

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174 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

A gAlEriA quE nuncA hOuvE

Nos anos 1980, para analisar um problema no conduto forçado da hidroelétrica

de Areal, na época concessão da CERJ, fui chamado pelo diretor técnico, engenheiro

João Moura, para uma consultoria. Recebi a única via dos documentos do projeto,

que não eram muitos, mas tinham a assinatura de John Cotrim como calculista e

de Léo Penna como aprovação.

Essas duas assinaturas eram mais do que suficientes para garantir a qualidade

dos cálculos. Em visita à usina, solicitei ao chefe da operação para visitar a

barragem, incluindo a galeria de injeção e drenagem. Ele me garantiu que não

havia essa galeria e eu insisti, mostrando os desenhos. Ele contou que havia

participado da construção quase 40 anos antes, logo após o término da Segunda

Grande Guerra, e me mostrou várias fotografias da obra de concreto, pelas quais,

em blocos defasados, verifiquei que realmente não havia sido construída a galeria.

Refiz parametricamente os cálculos de estabilidade e verifiquei que, sem a

galeria, a barragem teoricamente não deveria ser estável pelos critérios usuais de

projeto. Solicitei à Geomecânica que instalasse piezômetros, que confirmaram as

subpressões exageradas que ocorriam na fundação. Como o vale é relativamente

estreito, devia estar havendo um efeito de arco na parte inferior da estrutura de

concreto-gravidade da barragem que, não considerado nos cálculos, evitava um

possível colapso. Muitos anos depois, em 2011, o engenheiro Olavo Vieira me

esclareceu que a galeria não havia sido feita para economizar forma.

A históriA OficiAl

O Cristo Redentor foi eleito uma das sete maravilhas do mundo moderno. Foi

erguido com base em subscrições públicas, no ponto mais alto do Corcovado, a 710

metros de altitude, dominando linda paisagem do Rio de Janeiro. Seu pedestal tem 8

metros de altura e abriga uma capela. A imponente estátua tem 38 metros de altura.

Como nas obras atuais, mesmo as mais importantes, sua construção não foi

pacífica. O procurador-geral da República tentou impedir a construção afirmando

que era inconstitucional por ser uma imagem religiosa em País cuja Constituição de

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 175

1891 separava o Estado da Igreja.

A história oficial e as notícias veiculadas pela mídia da época relatam que

foi Guglielmo Marconi, inventor da radiotelegrafia, quem, desde a Itália, teria

acionado o comutador e acendido a iluminação do Cristo Redentor. A realidade

não foi essa. Naqueles tempos, a transmissão sofria de muitos problemas e, na hora

certa, quando Marconi acionou o comutador, houve uma falha. Quem realmente

acendeu a iluminação foi o engenheiro Gustavo Corção, que, posteriormente, além

de professor, tornou-se escritor, jornalista e filósofo de grande projeção.

cArOnAs inDEsEJávEis

O engenheiro José Cândido Castro Parente Pessoa foi diretor-geral do Departamento

Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) no governo JK. Como havia necessidade

de deslocamentos frequentes pelo interior do Nordeste para acessar os diversos locais

das obras, sempre havia pedidos de carona no avião que ele utilizava. Não se sabe se

era para se livrar dos caronas indesejáveis ou por apenas querer ter um exótico animal

de estimação, ele adotou uma onça que sempre viajava com ele no avião. Com isso, os

pedidos escassearam.

cArOnA rEcusADA

Hoje a rodovia que liga Belo Horizonte a Brasília passa perto da barragem de Três

Marias. Entretanto, na época de sua construção, uma viagem por terra a Três Marias

era um penoso sacrifício por estradas não pavimentadas de sofrível qualidade. Com o

objetivo de evitar problemas com terceiros acidentados em viaturas da Cemig, John

Cotrim expediu uma circular pela qual passou a ser vedado aos motoristas da Cemig

dar carona a terceiros em viaturas da empresa.

Em uma de suas viagens a Três Marias, Cotrim teve seu carro enguiçado no meio

daquele longo e despovoado percurso. Entretanto, sabia que aquele era o dia do malote

vindo do escritório central. Assim, bastava esperar o carro da Cemig e ir nele até a

obra. Ao ver a poeira no horizonte, Cotrim se preparou para fazer a sinalização. O

carro diminuiu a marcha, o motorista viu o pedido de carona e não parou. Ao chegar à

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176 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

obra, o motorista foi avisado de que o Cotrim havia sido deixado ao léu na estrada. Tão

logo chegou à obra, Cotrim, conhecidamente dirigente muito bravo, mandou chamar

o motorista, que compareceu muito nervoso. Para surpresa do motorista, Cotrim,

dirigindo-se a ele, elogiou-o por ter seguido à risca as instruções recebidas.

tEmpOs DifícEis

Os projetos do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS)

eram feitos no Rio de Janeiro. Octacílio Santos Silveira, um dos pioneiros da

geotecnia, me contou que recebia os projetos, ia para os locais das barragens e

andava em círculos concêntricos de raios progressivamente maiores até achar uma

área de empréstimo com o solo especificado no projeto.

Nos anos 1940 e 1950, os documentos de projeto eram emitidos em vegetal.

Principalmente durante os tórridos verões cariocas, os desenhistas enfrentavam

dificuldades em tentar evitar, sem muito sucesso, que a transpiração de mãos e

braços afetasse os desenhos. Com o objetivo de minimizar esse problema, o diretor-

geral José Cândido Castro Parente Pessoa mandou instalar ar-condicionado na

sala de desenho. Muito pouco usual naquela época, a repercussão dessa medida

foi considerada absolutamente despropositada, tendo repercutido amplamente na

imprensa e classificada pela oposição como um luxo absurdo.

vOcê sAbE cOm quEm Está fAlAnDO?

O escritório central de Furnas era no centro do Rio de Janeiro. Estávamos de

mudança para o novo prédio em Botafogo. Para o planejamento da mudança, foram

desenhadas plantas contendo os arranjos das salas com os nomes dos funcionários

e as posições das respectivas mesas e armários.

Em uma das salas do sétimo andar aparecia em planta a mesa do recém-admitido

arquiteto Marco Aurélio Pureza Cotrim, designada pelo sobrenome Cotrim. O

chefe dos serviços gerais, Sr. Jardim, ao ver a planta disse: “Nessa empresa Cotrim

é só um, o presidente.” Mandou que o nome fosse alterado. Achei despropositado esse

posicionamento, mas, algum tempo depois, veio a se mostrar realmente oportuno.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 177

Já no novo prédio, estávamos iniciando o projeto da hidroelétrica de Itumbiara.

O encarregado da elaboração de estimativas de custos, engenheiro Nelson Borges,

queria conhecer o projeto da vila de operadores da usina de Marimbondo para

estimar o custo da vila de operadores da usina de Itumbiara.

Ele foi informado de que o projeto da vila da usina de Marimbondo havia sido

do arquiteto acima citado. Eu estava ao seu lado quando ele, após consultar a lista

de ramais internos, discou. Talvez por ser hora do almoço, em vez de ter passado

pela secretária, quem atendeu se identificou como Cotrim. Nelson pediu detalhes

dos custos e do projeto da vila de Marimbondo. Do outro lado da linha veio a

resposta de que não sabia desse detalhe. Nelson insistiu, reclamando: “Cotrim, não

esconda o jogo, me forneça logo essas informações. Sei que foi você o responsável

pelo projeto.” Cotrim, percebendo que havia algum engano, indagou: “Você sabe

com quem está falando? Aqui é o presidente da empresa.” Nelson, quase sem voz,

retruca: “E o senhor, Dr. Cotrim, sabe com quem está falando?” Cotrim responde

que não e o Nelson complementa: “Graças a Deus”, e desliga rapidamente.

A mAlDiçãO DO pADrE cícErO

A barragem era denominada de Piranhas e se situava no município de Cajazeiras

(PB), controlando uma área de drenagem de 1.124 quilômetros quadrados. O projeto

foi desenvolvido pelo engenheiro Luiz Vieira com a colaboração dos engenheiros

Moacyr Avidos, Régis Bittencourt e Lohengrin Chaves.

A barragem, com 44 metros de altura e 340 metros de extensão, foi construída de

terra compactada, e seu sangradouro original, projetado para escoar um pico de cheia

de 800 m³/s, era constituído por uma crista vertente livre com ogiva de concreto de

160 metros de extensão e calha constituída por revestimento do talude de jusante em

lajes de concreto armado articuladas entre si posicionadas sobre o talude de jusante

da barragem.

Consta que o Padre Cícero, venerado em todo o Nordeste, havia dito repetidas

vezes que a barragem iria colapsar. Recalques na barragem haviam aberto as juntas

das lajes da calha do sangradouro. A cheia de 1963 piorou a situação. Apenas quatro

outras barragens com esse tipo de vertedouro eram conhecidas no Ocidente, tendo

todas elas rompido.

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178 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Por esses motivos, o reservatório era mantido em nível baixo. Finalmente, após a

passagem dessa cheia, foi feita uma verificação da segurança da barragem, que já havia

sido denominada Engenheiro Ávidos. A análise alterou a capacidade do sangradouro

para o dobro da original; a calha foi desfeita e um novo vertedouro foi executado na

ombreira direita antes que a maldição do Padre Cícero se materializasse.

O gOvErnADOr quE sAbiA DEmOlir bArrAgEns

Itamar Franco, que havia sido presidente da República, concorreu e foi eleito

governador de Minas Gerais. O presidente Fernando Henrique Cardoso, seu

sucessor no governo federal, acelerava o programa de privatização. Um dos focos

era o setor elétrico, que foi parcialmente privatizado. Houve intensa oposição a

essa privatização, da qual o governador Itamar Franco participou ativamente para

evitar a privatização de Furnas. Em um gesto quixotesco, enviou a força militar

estadual para ocupar a barragem de Pium I e disse que, sendo engenheiro, saberia

como demoli-la com eficiência. Essa barragem fecha o reservatório de Furnas

evitando que suas águas, em vez de seguirem o rio Grande na bacia hidrográfica

do rio Paraná, passem para a área de drenagem do rio São Francisco. O colapso

dessa barragem desviaria o rio Grande para o rio São Francisco secando a usina

de Furnas e, em consequência, tirando vazão de todas as 11 grandes hidroelétricas

a jusante, inclusive as binacionais entre Brasil e Paraguai e entre Paraguai e

Argentina. Não foi por esse motivo que Furnas não foi privatizada, mas o folclórico

ato ficou marcado na engenharia.

O ministrO quE quEriA sEr EngEnhEirO i

O ministro de Minas e Energia não era engenheiro, mas dava palpites. Um deles

foi em uma solenidade durante a construção da hidroelétrica de Balbina, que, em

função do sistema isolado de Manaus, havia sido corretamente dimensionada com

cinco unidades geradoras de 50 megawatts cada uma, perfazendo 250 megawatts.

Na apresentação do projeto durante uma visita à obra, o ministro disse que o

dimensionamento estava errado, pois a adoção de unidades maiores teria sido mais

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 179

econômica. E acrescentou: “Por que não foram adotadas duas unidades de 100

megawatts e uma de 50 megawatts?”, questionou. No fundo da sala, o engenheiro

Edson Zampronha, chefe do projeto, disse à meia voz: “E por que não meia unidade

de 500 megawatts?”

O ministrO quE quEriA sEr EngEnhEirO ii

Os procedimentos para o fechamento do reservatório de Itaipu estavam sendo

definidos. Um dos problemas era a vazão nula a jusante da barragem durante a

primeira fase do enchimento até que as águas represadas atingissem a soleira do

vertedouro, situada 20 metros abaixo do nível d’água máximo normal projetado

para o reservatório. Nesse período, teria que ser minimizado o impacto para

jusante e, para tal, a operação das barragens situadas no rio Iguaçu liberaria

descargas muito maiores do que as que seriam verificadas em condições normais,

uma vez que o rio Iguaçu tem sua confluência com o rio Paraná pouco a jusante da

barragem de Itaipu. Ao tomar conhecimento desse critério, o ministro disse que

sifões resolveriam o problema sem que houvesse alteração no despacho das usinas

do rio Iguaçu.

Costa Cavalcanti, o presidente brasileiro de Itaipu, por não ser engenheiro, não

respondeu, porém comunicou ao diretor técnico John Cotrim esse questionamento.

Em reunião posterior, quando a questão foi novamente levantada pelo ministro,

agora já com a presença de Cotrim, ele esclareceu que para tanto “basta apenas

revogar a lei da gravidade”.

instrumEntAçãO?

Em 1973, a hidroelétrica de Peixoto, Marechal Mascarenhas de Moraes, teve

a sua concessão transferida da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) para

Furnas. Tão logo isso ficou estabelecido, fiz uma inspeção na usina, na época uma das

mais importantes do país. Perguntei ao chefe da operação sobre a instrumentação.

Pela resposta, fiquei sabendo que era composta por apenas três piezômetros.

Perguntei onde estavam localizadas as células piezométricas e não obtive qualquer

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180 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

resposta. Perguntei como eram medidas as pressões. E ouvi: “Colhemos a água que

sai dos piezômetros e medimos o tempo para encher um tubo que tem o volume

conhecido.” Ainda bem que a barragem é em arco e, consequentemente, deve ter

elevado fator de segurança.

Naquela ocasião, Ivo Marinho, o chefe do arquivo de Furnas, passou uma

temporada analisando toda a documentação disponível e me consultando se os

documentos levantados correspondiam ao que foi construído. Eram inúmeros

desenhos de diversas alternativas de projeto e nenhum desenho correspondia ao

projeto como construído.

Muitos anos depois, Furnas lançou uma concorrência para estudo de melhorias

na barragem e na usina de Peixoto. Como a usina havia sido implantada sob o

comando do engenheiro Léo Amaral Penna e ele, já idoso, participava de nossa

equipe técnica, pedi que participasse da reunião inicial para elaboração da proposta

a ser enviada a Furnas. Foi só nessa ocasião que fiquei sabendo que a única coleção de

documentos de projeto estava muito bem guardada, na casa do Léo Penna.

pAixãO rEcOlhiDA

Aldo Motta, advogado de Furnas e uma das pessoas mais engraçadas que

conheci, me contou em detalhe o caso da velha viúva, feia, pequena, desdentada,

corcunda e enrugada que criou uma paixão recolhida desde que viu um jovem

engenheiro carioca de olhos claros nas obras que Furnas estava fazendo, na área

do reservatório.

O reservatório seria criado a partir de janeiro de 1961. A viúva, entretanto,

não permitia a concretagem de um bueiro em sua propriedade, ameaçando quem

chegasse perto com tiros de garrucha. Para que a pequena obra fosse executada

sem riscos, em uma noite, Aldo Motta levou o referido engenheiro à casa da viúva

com a finalidade de distraí-la enquanto os operários executavam a concretagem.

Ficou combinado que, tão logo o trabalho estivesse concluído, morteiros seriam

lançados como sinal de que os dois poderiam descer para a estrada.

Ao chegarem à casa da viúva, tomaram um café e, pouco depois, o jovem

engenheiro foi convidado pela viúva para ver o paiol, deixando Aldo só na casa. O

tempo foi passando e nada dos morteiros. Após muito tempo, quando finalmente

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Aldo e o engenheiro saíram em direção ao bueiro, os operários riam porque,

propositalmente, não dispararam os morteiros, obrigando o engenheiro a difíceis e

longas manobras para tentar escapar do assédio indesejado. Aldo, hoje já falecido,

nunca me disse se o engenheiro conseguiu escapar, mas sempre insinuava que não.

A brigA pOr sãO simãO

Em 1967 e 1968, o governo federal fez uma distribuição de concessões dos grandes

potenciais situados no Triângulo Mineiro: Furnas ficou com Marimbondo e Porto

Colômbia; CESP, com Água Vermelha; e Cemig, com São Simão. O aproveitamento de

São Simão era, na época, desproporcional para as dimensões da Cemig. O engenheiro

João Camilo Penna, presidente da Cemig, teve dificuldade em obter financiamento para

a obra porque, segundo ele, em entrevista a mim concedida, o ministro da economia

Antônio Delfim Netto, contrário ao governador Israel Pinheiro, se opôs a que o BNDE

abrisse uma linha de financiamento.

Mauro Thibau recomendou que a Cemig tentasse financiamento externo, o que foi

conseguido para os equipamentos permanentes junto aos fabricantes e para as obras

civis junto ao Banco Mundial. O Banco, entretanto, de acordo com suas normas internas,

exigiu que a concorrência fosse internacional. A Camargo Corrêa registrou protesto e

não concorreu.

A Andrade Gutierrez não temia adversários estrangeiros, mas perdeu a concorrência.

A italiana Impregilo ganhou. A Cemig passou a sofrer forte pressão da Mendes Júnior, a

segunda colocada. Camilo foi chamado a depor na Assembleia Legislativa e no Congresso

Nacional, onde recebeu importante apoio do seu conterrâneo e ex-governador Magalhães

Pinto, que disse: “Camilo, destruir você, nunca; você é mais importante do que a Cemig.”

A usina de São Simão foi feita com sucesso dentro do custo e dos prazos contratados.

ElEtrObrAs DEnunciADA

Havia sido acertado na montagem financeira que um terço dos recursos para

a implantação da hidroelétrica de Emborcação viria da Eletrobras. Atravessando

fase difícil da economia nacional, a Eletrobras, através de seu presidente Maurício

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182 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Schulman, em reunião no Maracanã – a grande sala no escritório central em que

as reuniões mais importantes eram realizadas –, propôs que a Cemig diminuísse

drasticamente ou mesmo paralisasse a construção.

Isso ocorreu no primeiro ano de construção. Foi muito difícil, porém o diretor

da Cemig, engenheiro Guy Vilella, por não poder alterar o ritmo de implantação

da obra sem que ocorressem notáveis prejuízos, conseguiu que a Eletrobras

cumprisse, nesse primeiro ano, o contrato de financiamento. No segundo ano, foi

quase impossível para a Cemig fazer com que a Eletrobras cumprisse o contrato

de financiamento. No terceiro ano, com o agravamento da crise financeira que se

abatia no País, a Eletrobras fechou a questão e Schulman, aos gritos, afirmou que

não haveria mais aportes da Eletrobras, cujo financiamento significava 91% dos

custos das obras civis.

O colapso seria sem precedentes para a Cemig. A diretoria resolveu denunciar

a Eletrobras ao Banco Mundial, que forçou o governo brasileiro a fazer com

que a Eletrobras cumprisse o contrato, sob a ameaça de cancelamento de todos

os financiamentos contratados com o Banco. O governo e a Eletrobras tiveram

que ceder e a usina de Emborcação foi concluída. As obras das estatais federais,

entretanto, foram executadas com as verbas de desmobilização, com atrasos e,

consequentemente, com grandes acréscimos de custos devido às fortes incidências

de juros durante as suas construções.

A DirEtOriA DE cOOrDEnAçãO

Mário Bhering foi presidente da Eletrobras durante muitos anos. Uma de suas

ideias mineiras foi a criação de uma nova diretoria, cujo único objetivo era deixar

claro aos paulistas que não havia, no âmbito da Eletrobras, qualquer regionalismo.

Para tanto, foi criada a diretoria de coordenação, que dispunha apenas de uma

pequena sala e compartilhava uma secretária com terceiros. Para assumir a nova

diretoria, foi convidado o professor Lucas Nogueira Garcez, presidente da CESP,

estatal estadual de São Paulo na área elétrica. O professor Garcez, ex-governador

de São Paulo, figura de elevada projeção técnica e política, deveria apenas participar

das reuniões de diretoria e das decisões da Eletrobras, tornando-se, assim, uma

ponta de lança da Eletrobras dentro da CESP.

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A ideia funcionou às mil maravilhas, tendo sido evitados desgastes desnecessários

no setor elétrico, dada a transparência das ações da diretoria da Eletrobras.

Entretanto, quando César Cals de Oliveira Filho perdeu a eleição para o governo do

Ceará e ficou sem posição política, vislumbrou essa diretoria, que havia ficado vaga,

e pleiteou sua ocupação. Como Cals era muito dinâmico, sem saber dos objetivos da

diretoria, imediatamente começou a desenvolver vários projetos e programas que

não estavam incluídos na concepção original da diretoria, desvirtuando o objetivo

principal, que não mais retornou às origens. Essa diretoria foi o ponto de apoio

junto ao presidente Figueiredo para Cals se tornar, posteriormente, ministro das

Minas e Energia.

humAitá nO AmAzOnAs

O cerco à fortaleza de Humaitá, às margens do rio Paraguai, durante a Guerra

da Tríplice Aliança foi um dos pontos mais decisivos da guerra. Daí esse nome

em guarani estar presente em várias localidades e logradouros no território

nacional. Quando César Cals de Oliveira Filho assumiu a diretoria de coordenação

da Eletrobras, mesmo tendo encontrado resistência do seu presidente, Mário

Bhering, trouxe vários colaboradores e deu início a uma série de projetos.

Um desses projetos visava ao desenvolvimento de pequenas usinas hidroelétricas

na Amazônia com unidades de baixa queda. Na realidade, eram duas ideias novas

que, se separadas, teriam certamente tido sucesso: havia muitas possibilidades

de locais na Amazônia viáveis para usinas pequenas, como posteriormente ficou

comprovado, e diversas usinas de baixa queda foram implantadas com sucesso no

País. Entretanto, pequenas usinas de baixa queda na Amazônia congregavam a soma

de dois fatores que oneram os empreendimentos de geração de energia elétrica.

A diretoria contratou estudos preliminares e selecionou os projetos de

Humaitá e Eirunepé para serem implantados. Com base nesses levantamentos

sem detalhamentos necessários e em concorrências, a Eletrobras contratou as

obras civis e os projetos. Aquelas antes destes. As obras foram iniciadas com o

detalhamento dos projetos sendo feito em paralelo ao projeto básico, do qual um

dos itens era o estudo energético.

Ao avaliar as curvas-chave dos locais das usinas, os estudos energéticos das

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duas hidroelétricas, efetuados pelo projetista, mostraram que só poderiam gerar

com a capacidade plena pouco menos do que um mês por ano. Em parte por falta

de afluência durante a estiagem e também pelo afogamento por jusante na época

de vazões mais elevadas, em que elas ficariam praticamente inoperantes. De

acordo com esses resultados, as duas hidroelétricas tiveram suas obras e projetos

cancelados, para alívio dos engenheiros geotécnicos do consórcio projetista, que

teriam que solucionar economicamente intrincados problemas das duas fundações,

ao mesmo tempo extremamente permeáveis e compressíveis.

tEmpOs DifErEntEs

Por incrível que pareça, no início do século passado, as obras fluíam muito

melhor do que nos dias de hoje. Corria o ano de 1924 com intensa estiagem em

São Paulo e graves consequências para a Light no suprimento de energia elétrica.

O notável engenheiro americano Asa White Kenney Billings implantou, em

apenas 11 meses, saindo do zero, a hidroelétrica de Rasgão com duas unidades de

9 megawatts, as maiores de São Paulo e as segundas maiores do País, aproveitando

um canal que havia sido escavado quase um século antes com o objetivo de derivar

o fluxo do rio Tietê para exploração, nunca realizada, de ouro no aluvião em uma

curva do rio.

A Light descobriu duas unidades Francis de 9 megawatts cada em final de

fabricação no exterior e as adquiriu. A logística era muito difícil, pois a maior

carroça que atingia o local da obra tinha capacidade de transportar até 15 toneladas

em estradas não pavimentadas de tráfego precário. A época era convulsionada com

o movimento tenentista que ocupou a cidade de São Paulo por semanas. O País

encontrava-se em estado de sítio e a coluna Miguel Costa/Prestes iniciava sua

longa marcha. Mesmo assim, a hidroelétrica teve sua operação iniciada em 1925,

11 meses após ter sido tomada a decisão da sua construção.

A hidroelétrica operou em regime provisório até 1961, quando foi paralisada.

Nos últimos anos do século passado foram feitas reabilitações das estruturas civis

e dos equipamentos, voltando a ser operada com sucesso. Nos dias de hoje, esses 11

meses podem nem ser suficientes para, por exemplo, o estabelecimento do escopo

do estudo ambiental para obtenção de licença prévia.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 185

As DificulDADEs AumEntAm cOm O tEmpO

Leopoldo Miguez de Mello, professor catedrático da Escola de Química da

Universidade do Brasil, hoje UFRJ, fundador do Conselho Nacional do Petróleo

(CNP) e diretor da Petrobras nos anos 1960, era um incentivador do desenvolvimento

industrial do País, em especial da Petroquímica. Sua frase “No Brasil nunca se fez nada

demasiadamente grande” retrata o seu espírito empreendedor.

Entretanto, cada vez mais passavam a ser exigidas atividades burocráticas para

a aprovação de estudos de viabilidade para o lançamento de cada novo projeto. Ao

excesso da burocracia técnica ele reagiu: “Se Dom Manuel, que era venturoso, tivesse

que desenvolver tantos estudos de viabilidade, talvez Cabral não tivesse descoberto

o Brasil.” Ele faleceu pouco antes do advento dos estudos de meio ambiente, que

passaram a demandar muito mais tempo e recursos.

grAçAs A DEus

Muitas pessoas que não acreditam em Deus usam frequentemente essa expressão.

Para formar o seu primeiro ministério, o presidente Lula convidou Marina Silva

para comandar a pasta de Meio Ambiente. Desde o início do governo, ocorreram

intensos embates entre essa pasta e as relativas à infraestrutura, principalmente

com relação à obtenção de licenciamentos ambientais. Foram muitas as discussões,

sendo uma das mais emblemáticas a que envolveu o licenciamento das duas

grandes hidroelétricas, Santo Antônio e Jirau, situadas no rio Madeira, entre a

fronteira com a Bolívia e a cidade de Porto Velho.

Apesar dos expressivos benefícios na integração do transporte fluvial e no

abastecimento de energia ao sistema interligado nacional, além de serem usinas de

baixa queda, as duas barragens e seus reservatórios impactavam áreas florestadas

da Amazônia. As dificuldades na obtenção dos licenciamentos ambientais acabaram

por determinar a reforma ministerial, com o consequente abandono de Marina Silva

do ministério e do Partido dos Trabalhadores, ao qual ela era filiada há décadas.

Posteriormente, as licenças foram concedidas. A energia elétrica no rio Madeira

pôde começar a ser produzida em 2012, com as obras ainda em construção. Mas,

durante os embates, o presidente Lula tentou contornar ao máximo a saída de

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186 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Marina Silva do seu governo e do seu partido político. Ancelmo Gois relatou

em 5 de outubro de 2013 que a ministra do Meio Ambiente esteve com Lula,

acompanhada por seu conselheiro religioso, e disse ao presidente que “Deus havia

aconselhado para ela sair do governo”. Tendo em vista a gravidade da situação,

Lula pediu tempo para dar uma resposta. Depois procurou Marina e contou a

novidade: “Falei com Deus e ele pediu para você ficar.”

Com esse argumento, Marina permaneceu por mais um ano no Ministério do

Meio Ambiente, tendo finalmente saído do governo e do partido em 2008.

A bOiA

Formado em geologia no início dos anos 1970 em sua terra natal, Rio

Grande do Sul, atualmente profissional de grande projeção, Sérgio Berrino,

consultor e empresário de sucesso na área de prospecção geotécnica, estava em

um sítio selecionado para uma grande barragem no norte do Peru. Ele tinha

a responsabilidade de efetuar o primeiro mapeamento geológico do local. O

rio atravessava um vale de encostas escarpadas com elevada velocidade e forte

gradiente, o que tornava muito problemática sua travessia. Como era imprescindível

fazer o mapeamento geológico das duas margens, e como ele havia chegado ao

local depois de longa e penosa viagem, viu que tinha que atravessar o rio, pois um

retorno ao local seria muito demorado e dispendioso.

Ao saber pelos peões que o rio era atravessado pela população local com o apoio

de uma boia de câmara de ar de pneu de caminhão, se propôs a fazer a travessia.

Para não arriscar, ele entregou a sua máquina fotográfica a um companheiro, que

não se propôs a fazer a travessia (ou travessura). O peão peruano ficou sentado na

boia, Berrino colocou a roupa e as botas sobre a cabeça e sentou no colo do peão.

Este, com as mãos equipadas com sandálias de dedo, uma em cada mão e usadas

como remo, se esforçava para atingir a margem oposta. O companheiro de Berrino

ficou na margem e colheu muitas fotografias dessa travessia. Ao voltar da viagem,

Berrino, sem saber que a travessia havia sido fartamente documentada em sua

própria máquina fotográfica, pediu na empresa para que as fotografias da viagem

fossem editadas. Nessa ocasião foi distribuída por e-mail a todos os funcionários

uma circular da administração da empresa de consultoria na qual Berrino trabalhava,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 187

pela qual despesas de viagem tinham que ter suas contas apresentadas em curto

espaço de tempo. Outro competente geólogo da mesma empresa, Roberto Corrêa,

que se encontrava em viagem mais longa, respondeu também por e-mail que não

poderia atender o que a circular demandava e acrescentou que não sentava na boia.

O e-mail atingiu a todos que haviam recebido a comunicação da administração e foi

o estopim para se descobrir as fotografias do Berrino atravessando o rio no colo do

índio peruano e ter as fotografias enviadas pela internet a várias pessoas da empresa.

O tEAtrO

Nos anos 1970, a Celusa estava construindo a hidroelétrica de Jupiá no rio Paraná.

Era uma obra de primeira grandeza e envolvia números até então inéditos no País,

como potência instalada de 1.400 megawatts e capacidade de descarga de 50.000

m³/s. Contratada como empresa de prospecção geológica e geotécnica, a Rodio,

multinacional suíça, tinha como residente o engenheiro Sérgio Dias Figueiredo.

Foi programada uma primeira visita dos dirigentes suíços à obra. Sérgio, tentando

induzir seus superiores a um aumento de salário, procurou exagerar nas condições

desfavoráveis de trabalho. Para isso, pediu emprestado e vestiu as roupas mais

modestas do peão menos qualificado e recebeu, muito mal vestido, seus superiores

suíços. O teatro funcionou, os suíços se apiedaram do Sérgio e lhe concederam um

aumento de salário, mesmo sem ele ter mencionado o que queria.

O quE Os OutrOs nãO têm

Em 2001 estávamos nos preparando para as reuniões dos executivos da Comissão

Internacional de Grandes Barragens, programadas para Dresden, Alemanha. Para

facilitar a logística dos participantes e acompanhantes, sugeri que a delegação brasileira

ficasse em um hotel por mim selecionado, que não era muito longe do local do evento.

E também não era nem o mais caro, nem o mais barato. Quase todos nós fizemos as

reservas nesse hotel, à exceção do professor Nelson Pinto. Sua esposa, querendo ficar

junto das amigas, questionou o motivo de apenas os dois terem reservado o hotel onde

o evento seria realizado, o mais caro, mas o mais cômodo para os participantes das

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reuniões. Em resposta, Nelson se justificou: “Maria, é porque eu tenho uma coisa que

os outros delegados brasileiros não têm”. Curiosa, Maria do Socorro perguntou: “Mas

o que é que você tem e que os outros não têm?” Resposta imediata: “Setenta anos”.

O titAnic

O professor emérito da USP, José Goldemberg, profundo conhecedor da área de

energia, publicou em 18 de novembro de 2011 um importante artigo que define bem

o setor nessa época: “Nessa área [energia], o que temos visto é a adoção de políticas

setoriais que se movem mais ou menos ao acaso sob pressão de lobbies poderosos, sem

uma política coerente e unificadora. É por esse motivo que vivemos sobressaltados

com a iminência de falta de energia elétrica ou de importação de petróleo.”

Essa correta postura do professor vem de longa data. Em 1989, o Comitê

Brasileiro de Barragens realizou o XVII Seminário Nacional de Grandes

Barragens, em Foz do Iguaçu, evento que desde o início da série, em 1962, se

reveste de elevada importância para a engenharia na divulgação da tecnologia

aplicada a barragens e reservatórios nos mais diversos domínios da técnica. Em

1979 foi instituído mais um arrocho salarial através de legislação, que penalizou

sobremodo contratos na modalidade “cost plus” largamente adotados desde os

anos 1950 pelo setor elétrico estatal, que haviam possibilitado a grande arrancada

para implantação de hidroelétricas da mais elevada projeção, tais como Furnas,

Três Marias e Jupiá. Esse arrocho gerou uma crise sem precedentes nas empresas

prestadoras de serviços, além de graves problemas associados à crise financeira

do governo federal, que passou a adotar restrições ao faturamento dos seus

colaboradores. Entretanto, a falta de investimentos em projetos de novas usinas

geradoras indicava que, em um futuro próximo, as probabilidades de deficiências

no suprimento de energia elétrica no País seriam crescentes. E isso, se mantido

o baixo nível de investimentos na ampliação do parque gerador, deveria causar

racionamento de energia elétrica. Ao final do referido seminário, os participantes

se reuniram e redigiram a Carta de Foz do Iguaçu, que deixava claro os riscos acima

mencionados. A carta foi lida pela professora Evelyna Bloem Souto, aclamada por

todos os presentes, e publicada nos principais jornais do País.

O respeitável professor José Goldemberg, apesar de ser profundo conhecedor

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 189

do setor elétrico, infelizmente, desconhecendo a retidão do Comitê Brasileiro

de Barragens, confundiu os objetivos da carta. Apoiado na sua grande projeção

nacional, não encontrou dificuldade em publicar um incisivo artigo atribuindo a

motivação da Carta de Foz do Iguaçu a interesses de empreiteiros de obras do

setor elétrico. Esse artigo esvaziou o clamor do Comitê Brasileiro de Barragens

e da engenharia nacional desse segmento e ficou atravessado na garganta de

engenheiros que colaboraram na redação do documento. Os investimentos pedidos

na carta continuaram não sendo devidamente realizados e, como previsto, no ano

2000, 11 anos após o referido seminário, a estocagem de energia nos reservatórios

das hidroelétricas atingiu níveis preocupantes. E isso ocasionou o racionamento de

2001 e 2002, de trágicas consequências econômicas e políticas.

Em 2001 era projetado no Brasil o filme Titanic, grande sucesso de bilheteria.

Com o advento do racionamento, foram divulgadas comparações entre o Brasil e o

Titanic: o artigo do professor Goldemberg chocou o setor de barragens, o Titanic

se chocou com um iceberg; o Brasil afundou às escuras e o Titanic naufragou com

as luzes acesas.

O mAiOr DEsAfiO

Acompanhei a trajetória de alguns dos maiores vultos da engenharia nacional,

entre eles Flavio H. Lyra e John R. Cotrim. Quando Cotrim deixou a diretoria

técnica de Itaipu, foi trabalhar conosco na Enge-Rio. Nesse tempo, ele se dedicou,

entre outras coisas, a editar uma memória técnica de Itaipu e um livro sobre

a história de Furnas, que infelizmente ficou apenas no início, em seu primeiro

volume. No primeiro dia do Cotrim na empresa, fomos os três almoçar em uma

churrascaria no aterro do Flamengo, onde fiz uma pergunta aos dois que queria

fazer há tempos: “Qual foi o maior desafio para nossa engenharia: implantar

Furnas ou Itaipu?” Cotrim, imediatamente, respondeu que foi Itaipu e descreveu

longamente as dificuldades de toda natureza – as técnicas e, principalmente, as não

técnicas – que tiveram que ser enfrentadas.

Lyra, entretanto, com mais calma, mostrou que o desafio em Furnas foi ainda

maior, pois era uma das mais arrojadas obras hidráulicas do mundo em um País

que na época dispunha de recursos humanos e financeiros extremamente escassos.

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190 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

As prAiAs

Eu tinha estado em reunião com o professor Pamplona, emérito da UFRJ e

presidente da Fundação José Bonifácio (FUJB), no campus da UFRJ da Praia

Vermelha e retornava de táxi para a Cidade Universitária. O motorista pediu

instruções quanto ao roteiro, pois era novo na praça e costumava trabalhar em

Campo Grande. Estávamos na Avenida Rui Barbosa e ele, maravilhado com a

paisagem, fazia perguntas, às quais eu respondia: “Passamos pela Praia de Botafogo

e à frente fica a Praia do Flamengo. A Praia do Fluminense é o Maracanã.”

Os lEõEs

Estávamos encarregados da engenharia do proprietário (que na época ainda

era denominada de gerenciamento) da implantação da barragem dos Pequenos

Libombos, em Moçambique. Ainda na fase preliminar, antes da contratação do

empreiteiro, quis ir até o local da área de empréstimo de solo para a barragem

de terra. Fui desaconselhado, pois, além do estado de guerra civil, havia animais

selvagens. Em consideração aos avisos e por não ter havido confrontos no passado

recente naquela área, pedi a escolta de um soldado armado. Parti com ele, que

portava um rifle de fabricação soviética. Quando já havíamos nos afastado do

acampamento, perguntei ao soldado se ele sabia atirar, tendo obtido resposta

afirmativa. Prossegui perguntando se ele sabia atirar em alvo móvel; outra resposta

afirmativa. Perguntei se, caso uma leoa viesse nos caçar, ele atiraria nela. Dessa vez

a resposta foi negativa. Preocupado, perguntei por quê. Ele respondeu: “Não tenho

munição.” O erro foi meu! Eu tinha que ter feito o pedido completo. Olhei para trás

e tive a impressão de que o acampamento estava muito distante.

Conhecedor das estepes africanas, eu sabia que algumas vezes os predadores

ficam escamoteados na vegetação. Sem nada lógico para dizer, perguntei: “O que

fazemos?” A resposta foi: “Nós correremos, mas, não adianta, a leoa nos pega.” Olhei

novamente para ele, jovem, com pelo menos 30 anos a menos do que eu. Entendi

quem seria pego nessa corrida. Voltamos a passos largos para o acampamento.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 191

O prOcEssO

O professor Fernando Amorim, do Departamento de Engenharia Naval da

Escola Politécnica, não era dado às coisas da burocracia. Em uma época, ele chegou

a ser o vice-reitor de patrimônio da UFRJ e estava enrolado com os diversos

processos, que continuamente aportavam à sua mesa.

Com sacrifício, ele procurava dar destinos lógicos aos casos. Um deles,

entretanto, era um pesadelo de difícil solução. Ele contou como resolveu: chegou à

janela do 8º andar do prédio da Reitoria na Cidade Universitária e atirou ao vento

o processo que tanto o exasperava. O caso não mais o atormentou.

AnivErsáriO Em itumbiArA

Arthur Casagrande, consultor geotécnico das mais importantes barragens de

terra e de enrocamento do Brasil, passou a vir prestar apoio a Furnas, Cemig e

CESP desde os anos 1950. Ele sucedeu a Karl Terzaghi, que, no final dos anos

1940 e início dos anos 1950, prestou importante consultoria nos projetos da Light

em São Paulo e no Rio de Janeiro. Companheiros na docência da Universidade de

Harvard, Casagrande sofria com o vício de Terzaghi, fumante inveterado. Quando

tinha que ir à sala de Terzaghi, via as janelas sempre fechadas, mesmo no verão.

Não adiantava reclamar, pois obtinha como resposta que não se devia perder tanta

fumaça no ambiente.

Já idoso, Casagrande estava no canteiro de obra de Itumbiara por ocasião de

um de seus derradeiros aniversários. Alexandre Penacchi, que chefiava o serviço

de atendimento, preparou com todo o cuidado um bolo em forma de barragem de

terra. Após o jantar, o bolo foi apresentado ao Casagrande ao som do parabéns para

você. Decorridos alguns instantes e ainda emocionado, Casagrande perguntou se

aqui no Brasil havia o jogo dos sete erros. Após resposta afirmativa, ele passou a

apontar sete erros na geotecnia representada no bolo.

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192 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

chinEsEs nO brAsil

Pouco após o fim da Revolução Cultural na China, ainda nos anos 1970,

engenheiros chineses passaram a nos visitar. Estavam para iniciar muitas grandes

hidroelétricas na China e eles estavam curiosos para saber dos nossos critérios de

projeto e métodos construtivos. Para uma das primeiras visitas, programei uma ida

às obras da hidroelétrica de Itumbiara. Alexandre Penacchi, como sempre, caprichou:

serviu um tornedor com acompanhamentos variados. Os chineses só comeram os

acompanhamentos; não sabiam usar garfo e faca para cortar a carne. Aprendi a lição.

Já no Rio de Janeiro, convidei Li Eding e Chen Chongang, presidente e secretário

geral do Comitê Chinês de Barragens, para um almoço em minha casa. Servi picadinho

carioca. Li Eding, emocionado, agradeceu por eu ter preparado para ele o prato típico

da cozinha da sua província e passou a me considerar a pessoa mais educada que ele

havia conhecido em suas viagens. Evidentemente não revelei a ele que era um prato

carioca e fiquei com os créditos, que por acaso ganhei.

Os JurOs

No final dos anos 1970, já vivíamos com inflação elevada e com juros sem

paralelo em outros países. Miriam Leitão, em seu livro Saga Brasileira, calculou

a inflação entre dezembro de 1979 (primeira maxidesvalorização promovida por

Delfim Netto) e julho de 1994 (cruzeiro/real): 13.342.346.717.617.70%, mais de

13 quatrilhões por cento em menos de 15 anos!

Nessa época o engenheiro Mário Henrique Simonsen, expoente da

macroeconomia, advertia: “Se o ministro da Fazenda é popular, ele está fazendo

alguma coisa muito errada.” Era o caso de Dilson Funaro, um dos 13 ministros

da Fazenda naquele curto período, no lançamento do Plano Cruzado. Foi nesse

ambiente que a obra de Itaipu foi iniciada. Participamos da idealização do canteiro

de obra visando à celeridade da execução. O objetivo era minimizar a incidência de

juros durante a construção.

Em uma das primeiras visitas de engenheiros chineses ao Brasil, fiz uma

apresentação do projeto de Itaipu e da concepção de seu canteiro de obra, no qual

se destacavam os monotrilhos e os cabos aéreos para colocação de concreto em

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 193

grandes produções. Ao final, os chineses perguntaram qual era o motivo de tanta

preocupação com a produção acelerada da construção. Respondi que neste País,

a maior parcela do custo da obra eram os juros durante a construção e, por isso,

tínhamos que ter uma produção acelerada. Eles, então, perguntaram o que eram os

juros. Eles eram felizes e não sabiam.

prEcOncEitO?

No início dos anos 1950, quando Arthur Casagrande começou a ser consultor no

Brasil, estava sendo construída a Via Anchieta, ligando o planalto paulista ao litoral de

Santos. No entorno da cota 500m, havia uma grande instabilidade de encosta de tálus,

que se configurava como grande problema para a execução da rodovia. No caminho para

a casa de força de Henry Borden, no sopé da Serra do Mar em Cubatão, pesquisadores

do IPT mostraram a referida instabilidade a Casagrande, que recomendou a instalação

de intensa drenagem profunda. E ouviram dele, em uma época em que muito poucas

eram as mulheres que se dedicavam à engenharia: “Na criminalística, os franceses

dizem: Cherchez la femme. Em geotecnia devemos dizer: Cherchez l’eau.”

lAginhA x cOOKE

O que Laginha Serafim era para as barragens de concreto em abóbada, J.

Barry Cooke era para as barragens de enrocamento com face de concreto. Ambos

tendiam sempre para a seleção desses tipos de barragem, respectivamente. Em

1988, Laginha Serafim era relator de um tema sobre barragens de concreto no XVI

Congresso da Comissão Internacional de Grandes Barragens, em São Francisco,

nos Estados Unidos.

Para surpresa geral, durante os debates, apareceu como inscrito J. Barry Cooke.

Na sua contribuição, ele não falou sobre o tema barragens de concreto, mas

apresentou uma seção transversal típica de barragem de enrocamento com face de

concreto. Prosseguiu mostrando o plinto, a laje no talude de montante, o quebra-

ondas na crista e focalizou uma face de concreto compactado com rolo na parte

inferior do talude jusante, ancorada ao enrocamento. Ele mostrava que essa face

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194 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

estava sendo usada em três novas grandes barragens em construção, inclusive na

de Xingó, como elemento de proteção caso o maciço de enrocamento viesse a ser

submerso durante a construção por uma vazão excepcional, que ultrapassasse a

capacidade de descarga do dispositivo de desvio do rio. Ao ouvir essa explicação,

Laginha Serafim comentou: “Com tanto betão, não carece o material incoerente.”

lAs vEgAs

Eu estava com a família em um restaurante do Fashion Mall, no Rio de Janeiro,

quando entraram várias artistas que se acomodaram na mesa ao nosso lado. À

cabeceira, Ivete Sangalo, que, por estar mais próxima de mim, me cutucou no

braço esquerdo e perguntou se, na nossa mesa, alguém saberia dizer em que estado

da federação ficava a cidade de Las Vegas.

Todos ficaram surpresos e eu, rapidamente, respondi que Las Vegas fica em

Nevada. Ela prosseguiu perguntando sobre o lago que há nas proximidades.

Eu respondi que é o Lake Meade, formado pela Boulder Dam, hoje denominada

Hoover Dam, no rio Colorado. O engenheiro Herbert Hoover foi presidente dos

Estados Unidos durante a Grande Depressão e o general George Gordon Meade

foi um dos comandantes do Exército da União na fase final da Guerra da Secessão.

Ela expressou admiração por eu saber tudo isso. Por falta de modéstia, eu não

revelei que, sendo barrageiro, saberia essas respostas com certa facilidade.

A EnsEcADEirA quE nãO sEcAvA

A hidroelétrica de Ilha dos Pombos, situada no rio Paraíba do Sul próximo à

cidade de Além Paraíba, entrou em operação em 1924. Depois dessa época, passou

por algumas reformas e reforços estruturais. Os mais recentes ocorreram nos anos

1980. Foi necessário ensecar ampla área a montante de parte da barragem que

abriga as três grandes comportas de setor do vertedouro. E tudo isso sem que a

usina fosse paralisada, ou seja, sem que o reservatório fosse esvaziado.

A ensecadeira foi lançada sobre o que era a Ilha dos Pombos antes da criação do

reservatório. Após o lançamento da ensecadeira em ponta de aterro, o empreiteiro

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tentou sem sucesso esvaziar a área compreendida entre a ensecadeira e a barragem,

pois a percolação sob a ensecadeira era igual à descarga bombeada, qualquer que

fosse essa descarga, sem haver qualquer alteração do nível d’água, indicando

condições de franca permeabilidade pelo corpo ou pela fundação da ensecadeira.

Ninguém entendia o que estava ocorrendo até que um matuto ribeirinho, muito

idoso, residente no local da barragem desde que nasceu, contou que nos tempos

anteriores à construção da barragem era comum marcar as divisas estaduais com

fileiras de grandes pedras soltas. Assim, havia uma dessas fileiras de grandes pedras

sobre o que havia sido a Ilha dos Pombos, sendo depois inundada pelo reservatório

e tendo permanecido sob a água desde 1924. Esse ancião simples possibilitou que

o mistério, que ninguém desvendava, fosse finalmente compreendido.

táxi Em lisbOA

Em julho de 1973, depois de longos meses em treinamento nos Estados Unidos

e Canadá, e depois de ter participado do congresso da Comissão Internacional de

Grandes Barragens em Madri, fui cumprir um proveitoso estágio no Laboratório

Nacional de Engenharia Civil, na cidade de Lisboa. A minha esposa foi se encontrar

comigo lá. O fato a seguir aconteceu comigo há quatro décadas e, de tanto eu

contá-lo, já o ouvi contado por terceiros como piada.

No trajeto de táxi do aeroporto para o hotel, eu perguntava pelos três filhos pequenos,

o mais velho com apenas dois anos, dos quais tinha imensas saudades. Importante lembrar

que desde o Brasil Colônia havia muito mais portugueses que vinham para o Brasil do

que brasileiros que iam para Portugal. Em 1973 as novelas brasileiras ainda não haviam

atingido Portugal. A primeira, cerca de dois anos depois, foi Gabriela, Cravo e Canela, um

sucesso tão retumbante que obrigava até que as sessões de cinema fossem interrompidas

para que ninguém perdesse o capítulo daquele dia. A partir dessa época, o modo de falar

dos brasileiros, nossos sotaques e nossas palavras de origem indígena, como Ipanema e

Itaipu, passaram a ser mais frequentemente ouvidos em Portugal.

Quando o táxi parou em um sinal de trânsito (semáforo, para paulistas), o motorista

perguntou: “Que idioma estão a falar, que não é português e eu percebo tudo?”

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196 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

pErguntAs Em lisbOA

Em 1977 eu estava dirigindo em Lisboa tentando ir à Direcção Nacional de Águas,

que ficava na Rua São Mamede ao Caldas. De início, algumas dificuldades. Naquela época,

estacionar em Lisboa era extremamente difícil, não havia mapeamento das ruas e por

cima havia a Rua São Mamede. Eu sabia que, descendo da praça Marquês de Pombal em

direção ao Rossio, pela Avenida da Liberdade, teria que virar à direita antes de chegar ao

acesso ao Bairro Alto. Parei o carro e perguntei a um transeunte: “Bom dia, o senhor sabe

onde é a Rua São Mamede ao Caldas?” A resposta foi exata: “Pois.” Percebi imediatamente

que a minha pergunta havia sido erradamente formulada. Tentei corrigir: “Pode o senhor

me informar como devo fazer para ir a Rua São Mamede ao Caldas?” Novamente a mesma

resposta exata: “Pois.” Novamente entendi que errei na pergunta. Finalmente pronunciei

a frase certa: “Por favor, me diga como ir à Rua São Mamede ao Caldas.” Muito gentil, o

transeunte me respondeu apontando em direção ao Rossio e disse: “Estás a ver aquela

carrinha que lá vai, descendo e dobrando a esquerda? Pois lá não é.” E, apontando agora

para a direita, prosseguiu: “Suba à sua direita, siga sempre em frente.”

O mOrtO

O geólogo brasileiro Paulo Ciro Encodine estava cursando pós-graduação em

hidrogeologia em Coimbra, Portugal. Tradição na Universidade, havia em um dos

grandes saguões o velório de um ex-professor. Ao descer as escadas e penetrar no saguão,

curioso para saber quem era o defunto, Encodine perguntou discretamente à meia voz a

um dos consternados presentes: “Quem é o morto?” Disfarçadamente e sem dizer uma só

palavra, o perguntado com o indicador apontou para o caixão.

O grAnDE chOquE

Desde quando era aluno, o professor Fernando Barata desenvolveu grande afeição

e orgulho pela Escola Politécnica da UFRJ. Ele externou que, uma de suas mais ricas

experiências foi o início da carreira de docente na então chamada Escola Nacional de

Engenharia da Universidade do Brasil. Sempre considerou que os alunos dessa Escola,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 197

pioneira do ensino de engenharia no Brasil, eram o que de melhor poderia haver no País.

O professor Eduardo Barbosa Cordeiro dizia que o professor Barata não acreditava

ser possível que um aluno da Escola pudesse colar em um exame. Em 1963, no governo

de João Belchior Marques Goulart, o Ministério da Educação e Cultura fez admitir na

Escola uma turma de quase 600 alunos, praticamente o dobro das turmas anteriores.

Foi necessário que parte do grupo cursasse o ciclo básico no prédio do Largo de São

Francisco. Em 1966 essa turma, já no quarto ano letivo, tinha no curso de engenharia

civil a disciplina de mecânica dos solos. O professor Barata marcou uma prova para ser

realizada à noite no prédio do Largo de São Francisco. Como era funcionário do estado

do Rio de Janeiro, o professor Barata imprimiu as folhas de questões no Departamento

de Estradas de Rodagem (DER). Um dos funcionários que estava fazendo a impressão,

de brincadeira, disse que eles poderiam ganhar uma boa quantia se levassem uma via

das folhas de questões antes da prova para vendê-la aos alunos. O professor Barata, não

entendendo como brincadeira, se indignou e garantiu aos funcionários do DER que,

caso eles tentassem fazer aquilo, seriam exemplarmente corridos do prédio. Nessa noite,

durante a prova, por puro acaso, o professor Barata surpreendeu um grupo de alunos

fazendo a prova fora de sala e, evidentemente, colando. Foi uma decepção marcante.

Os cincO lOngOs minutOs

Reconhecidamente, o professor Fernando Barata necessita de tempo para externar

de maneira precisa suas ideias, pois ele invariavelmente vai buscar as origens dos fatos.

Em 1975, a Coppe-UFRJ realizou um interessante Simpósio sobre Instrumentação em

Mecânica dos Solos. Em uma das sessões, atuava como coordenador de debates o professor

Willy Alvarenga Lacerda.

Após a exposição do professor Dirceu Alencar Veloso no tema sobre fundações

profundas, havia muitos pedidos de inscrição para os debates. Um dos que desejavam

trazer contribuição era o professor Barata. O professor Willy Lacerda só podia dividir

o tempo necessário a cada debatedor, o que resultou em cinco minutos para cada um.

Tempo insuficiente para o que o professor Barata queria expor. Quando os debates foram

iniciados, o professor Willy, ao ver a relação de debatedores inscritos, chamou o professor

Barata. Após os cinco minutos regulamentares, o professor Barata ainda estava falando

das diversas gerações da mecânica dos solos no Brasil e dirigindo-se ao engenheiro Oldair

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198 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Grillo, pioneiro da geotecnia entre nós: “Dr. Grillo, levante-se para que os jovens possam

apreciar a sua estatura.” O tempo se esgotou e o professor Willy chamou o debatedor

seguinte, o engenheiro Barata, que prosseguiu mencionando as turmas formadas

na Escola de Engenharia, hoje Escola Politécnica, da UFRJ em mecânica dos solos,

classificando a minha turma como a Turma Zero, por ter sido aquela que, apesar de não

ter cursado a ênfase de mecânica dos solos, possibilitou a instalação dessa ênfase a partir

do ano seguinte, no curso de engenharia civil. Nessa altura, os segundos cinco minutos

se escoaram e o professor Willy convocou o terceiro debatedor, o consultor Barata. Mais

cinco minutos e Willy convocou o inscrito seguinte, que, pela lista, era o pesquisador

Barata. E só então ele entrou no escopo do tema e da exposição do professor Dirceu

Veloso, por mais de dez minutos adicionais.

tErzAghi

O professor Barata sempre manteve extremo respeito pelos que nos antecederam e

atuaram com destaque na profissão. Seu grande entusiasmo e sua dedicação ímpar também

impressionavam seus alunos. As primeiras aulas de mecânica dos solos no quarto ano

do curso de engenheiros civis na Escola Politécnica da UFRJ eram dedicadas à história

desse ramo da tecnologia, que foi fundado por Karl Terzaghi, originalmente engenheiro

mecânico, nascido na Áustria e que por pouco escapou de falecer no Brasil. Isso porque,

quando jovem, entusiasmado com a propaganda enganosa que era feita para angariar

profissionais de todos os níveis para a construção da Ferrovia Madeira Mamoré – onde

elevadíssima percentagem dos contratados morreu ou adquiriu graves doenças tropicais –,

se candidatou, mas desistiu de vir na última hora.

Como Terzaghi, além de fundador, foi também o mais destacado profissional do ramo

até seu falecimento, era inevitável que seu nome fosse mencionado várias vezes durante

essas aulas iniciais. Em 1966, já na terceira aula, de tanto ouvir referências a Terzaghi,

os alunos resolveram fazer um bolo de apostas para ver quem acertava quantas vezes

a palavra Terzaghi era mencionada no tempo regulamentar da aula. A expectativa

aumentava à medida que o tempo transcorria. Foi implantado um regulamento para a

contagem e nomeado, entre os alunos, um juiz responsável para indicar o vencedor. O

professor, provavelmente, até a divulgação desse texto, nunca tenha sabido disso.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 199

águA quE nãO prEstA

O engenheiro José Marcos Donadon relata episódios pitorescos ocorridos na construção

da hidroelétrica de Itaipu. No dia do aniversário de sua esposa ele saiu da obra para uma

rápida fugida à cidade de Foz do Iguaçu para comprar flores e redigir um cartão amoroso.

Na avenida Brasil recebe um rádio do chefe. “Atenção Donadon, qual é a sua localização?”.

Em resposta, Donadon disse, com segurança: Porto de areia, chefe.” O chefe disse: Então

olhe no retrovisor.” Donadon sem jeito: “Chefe, você também dando um nó na cidade?”

Donadon era algumas vezes selecionado para acompanhar visitantes. Alguns grupos

eram difíceis. Uma comissão de iranianos perguntou qual era a defesa da hidroelétrica

contra mísseis. Em outra ocasião, ele ciceroneou um grupo de “ambientalistas” fanáticos

contra barragens que chegaram a ser inconvenientes ante as explicações pacientemente

dadas às suas questões desprovidas de qualquer lógica. Ao final da visita um dos membros

do grupo se dirigiu a ele: “Você, e eu falo em nome do grupo, não conseguiu nos convencer

da sua hidroeletricidade, uma vez que, depois de deixar a energia nas turbinas, a água é

devolvida ao rio sem nenhuma energia.”

WAshingtOn

Em 1973, fiz um período de treinamento na Chas. T. Main, prestigiosa empresa de

engenharia consultiva sediada em Boston, nos Estados Unidos. Ao final do período, o

geólogo Charles Benziger visitou comigo obras de hidroelétricas reversíveis na Nova

Inglaterra e no estado de Nova York. Patriota entusiasmado e republicano devoto, ele

foi me mostrando também, sempre que possível, lugares e prédios remanescentes da

guerra da independência. Na terceira vez que ele apontou para mais uma casa em que

George Washington havia pernoitado, eu disse, provocando sua ira: “Agora entendo por

que vocês o chamam de Pai da Pátria.”

O gEólOgO

No pós-guerra (Segunda Guerra Mundial), a Região Sudeste estava despertando para

grandes obras de engenharia e não havia ainda especialista em geologia de engenharia,

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além de serem muito poucos os geólogos no País. O departamento de engenharia da

Servix, que veio a se transformar na Engevix, era dirigido por engenheiros alemães sob

a liderança de Hans L. Heinzelmann. Ele, vislumbrando a necessidade da atuação de

geólogo nos projetos, contratou o jovem paleontólogo austríaco Hermann Haberlehner,

que veio para o Rio de Janeiro com a esposa Bertha e filhos, tendo permanecido no Brasil

por longos anos até seu falecimento. Nas décadas em que viveu entre nós, foi professor

do Instituto de Geociências da UFRJ e formou alguns dos mais destacados geólogos

de engenharia do País. Dias depois de sua chegada, Heinzelmann convidou a família

Haberlehner para um almoço em sua casa de campo no município de Petrópolis, tendo

enviado carro com motorista para conduzir a família. Ao chegarem, Heinzelmann

perguntou ao motorista como havia sido a viagem. O motorista disse que a viagem havia

sido boa a menos das diversas paradas que foi obrigado a fazer a pedido do novo geólogo

da empresa. Deslumbrado com formações geológicas muito diferentes das formações da

sua terra natal, Haberlehner estava tomando contato com afloramentos de gnaisse e com

solos residuais. Como qualquer geólogo, Haberlehner usava o seu martelo profissional

como escala nas suas fotografias. O motorista acrescentou: “Dr. Heinzelmann, este vai

dar trabalho. Deve ser completamente doido. Imagina o senhor que a toda hora ele pedia

que eu parasse o carro e saía para fotografar um martelo.”

A ElEiçãO surprEsA

No início de 1989, o Comitê Argentino propôs a minha candidatura para vice-presidente

da Comissão Internacional de Grandes Barragens (CIGB). Foi bem mais por amizade do

que por merecimento. Entretanto, surgiu um problema aparentemente intransponível, pois,

pouco antes do término do prazo para lançamento de candidaturas, foram lançados mais

dois outros candidatos de maior competência e prestígio: um canadense, destacado dirigente

técnico da Hydro Quebec, e um mexicano, que já era professor universitário quando eu nascia.

Vi que era óbvio que eu não teria a menor chance. Assim, antes da eleição se processar,

preparei umas palavras elegantes como candidato derrotado, elogiando a escolha que os

executivos da CIGB fariam. Para minha surpresa, fui eleito no primeiro turno e tive que

arrumar as ideias em um muito curto espaço de tempo, ao caminhar para o microfone para

um discurso de agradecimento. Evidentemente foi um discurso curto no qual, confesso, não

lembro o que disse.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 201

niEmEyEr

Respeitado em todo mundo por sua arte, o arquiteto Oscar Niemeyer surpreendia

sempre com seus projetos arrojados com traços não convencionais. Ao falecer,

em dezembro de 2012, deixou um legado de construções que são verdadeiras

esculturas. Ao longo de sua vida foi sempre muito festejado, admirado pela beleza

das linhas e superfícies curvas em seus projetos. “Não é o ângulo reto que me atrai,

nem a reta dura, inflexível. O que me atrai são as curvas livres e sensuais, as curvas

que encontro nas montanhas de meu País, nos cursos sinuosos de seus rios, nas

ondas do mar, no corpo da mulher preferida.”

Dignos também de admiração são os engenheiros que calcularam as estruturas

desenhadas por Niemeyer, tais como José Carlos Sussekind, que não muito

raramente tinha que dizer ao artista que estruturalmente a obra não poderia

ser construída, e Bruno Contarini, sobre o qual Henri Uziel, ao lançá-lo como

candidato ao título de Engenheiro Eminente, resumiu seu currículo dizendo apenas

que Contarini era calculista dos projetos de Oscar Niemeyer. Também dignos de

admiração foram os engenheiros construtores, como os irmãos Pedro e Gustavo

Vieira de Castro, que muito raramente reclamavam pelo esforço que tinham que

fazer para conseguir soluções construtivas para as arrojadas estruturas de Brasília

durante a sua construção no final dos anos 1950.

Na sua juventude, no início do século passado, Niemeyer, tricolor de coração, atuou

no time de futebol juvenil do Fluminense. Quando perguntaram a ele em que posição

jogava, respondeu com senso de humor: “Não era bom de bola, mas tinha um tio que era

diretor. Jogava na meia-direita. Foi a única vez na vida que estive à direita”, mencionou

Niemeyer, admirador de Stalin, Lenin, Castro, Chaves. Ele era comunista convicto,

mesmo após a queda do muro de Berlim, e se referia a Mikhail Gorbachev como “aquele

que traiu”, sem citar o nome, responsabilizando-o pelo fim da União Soviética.

O filhO

Durante os treinamentos que fiz em 1973 – no US Army Corps of Engineers,

no Bureau of Reclamation, na Hydro Quebec e no LNEC –, coletei muitas imagens

extremamente didáticas que eu projetava durante minhas aulas na Poli-UFRJ,

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202 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

além de outras de visitas mais recentes a obras. Em algumas imagens antigas, eu

aparecia. Passados vários anos, como eu ia envelhecendo e as imagens não, percebi

que o eu que aparecia nas imagens era bem mais moço do que o eu que estava

ministrando a aula. Resolvi, então, dizer que a pessoa que estava projetada na tela

era o meu filho. Terminada uma das aulas, uma aluna perguntou se o meu filho era

também barrageiro e se ele poderia vir dar a aula seguinte.

A primEirA prOvA

Considerando as dificuldades de acesso e as distâncias dos bairros residenciais

do Rio de Janeiro à Cidade Universitária, os professores foram ficando mais

condescendentes com atrasos dos alunos (e deles mesmos) no início das primeiras

aulas de cada dia, que eram oficialmente marcadas para serem iniciadas às 7 horas.

Com o objetivo de ter mais tempo no resto do dia, eu sempre marcava as minhas

aulas para esse primeiro horário.

Entretanto, sempre que eu chegava ao Bloco D da engenharia civil antes das

7 horas, encontrava lá apenas o professor Dirceu Alencar Veloso, condecorado

como Engenheiro Eminente pelo seu valor, pelas suas importantes contribuições

à Profissão e pela sua dedicação sem igual ao curso de engenharia de estruturas.

Durante muitos anos, um dos dias de minhas aulas na disciplina de Aproveitamentos

Hidroelétricos era a segunda-feira. Assim, todos os anos em março, a primeira aula

do nono e décimo períodos na especialização de hidráulica era ministrada por mim.

Para não perder precioso tempo à espera dos alunos, na primeira aula do

período eu os submetia a uma prova. Sempre apareciam algumas contestações, tais

como: “Mestre, o senhor ainda não ensinou nada e já está cobrando?” Eu respondia

que eles estavam há mais de quatro anos na Escola Politécnica e já deveriam ter

aprendido alguma coisa.

Ao entrarem na sala, os alunos viam nas carteiras as folhas de prova e as

questões; quando olhavam para a lousa percebiam que a prova tinha início às 7

horas e término às 7h40. Como por anos a fio eles estavam acostumados a chegar

às 7h30, muito pouco tempo restava mesmo para aqueles que achavam que

estariam dentro do horário. Embora as turmas fossem pequenas, havia sempre um

aluno retardatário que chegava às 7h40 ou pouco depois. Para desespero destes,

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eu pedia para escreverem o nome na folha de prova e a recolhia sem que nenhuma

questão tivesse sido respondida. Para compensar, passei a relacionar 12 questões,

cada uma valendo um ponto. Houve um ano em que fui pego: Bruno Moczydlower,

brilhante aluno, respondeu 11 questões corretamente. Fiquei devendo um ponto.

Na segunda avaliação, tive que ser extremamente rigoroso para que ele merecesse

nove, ficando, assim, com dois dez.

Em uma oportunidade, um aluno entrou na sala faltando pouco menos de dez

minutos para o fim da prova. Apressou-se em procurar rapidamente responder

algumas questões e, ao término do prazo, recolhi as provas. Na aula seguinte,

divulguei as notas. Esse aluno tirou zero. Ele veio reclamar dizendo que havia

escrito e calculado algumas coisas e que, portanto, não merecia zero. Concordei com

ele, e acrescentei: “Realmente você não merece zero. Porém, a Universidade não me

permite lançar notas negativas e, portanto, você foi beneficiado: vai ficar com zero.”

Pintava o horror, mas, consultando os veteranos já formados, os alunos ficavam

sabendo que sempre passavam e que aquela nota não era para valer. Entretanto, meu

objetivo era alcançado, pois não mais chegavam depois das 7 horas em minhas aulas.

minhA primEirA viAgEm

Minha primeira viagem de trabalho após a formatura, já como engenheiro, foi aos

locais onde posteriormente foram implantadas as hidroelétricas de Marimbondo

e Porto Colômbia, no rio Grande, limite estadual entre São Paulo e Minas Gerais.

Fomos eu e o engenheiro Humberto Pate, meu chefe imediato.

Viajamos em um pequeno avião de Furnas (PT-CEZ) até a usina de Furnas

e daí à obra da usina de Estreito, as duas também no rio Grande. De Estreito

em diante, fomos em um avião ainda menor (PT-BXS) pilotado pelo Morato, que

contava histórias inverossímeis. Para leitores jovens, o que é relatado a seguir vai

também parecer inverossímil, pois a região em que os acontecimentos ocorreram,

atualmente, dispõe de excelente infraestrutura, com atividade econômica pujante.

Ao sobrevoarmos o local de Marimbondo, Morato deu voos rasantes sobre a

pequena vila mineira de Fronteira, município de Frutal, para que um velho Ford que

servia de táxi se deslocasse até a pista de pouso que ficava na vila paulista de Icém,

na outra margem do rio. Quando finalmente vimos que o velho Ford se deslocava

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204 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

para Icém, sobrevoamos a pista de pouso, evidentemente não pavimentada. Como

a pista ficava no meio de um pasto, novos rasantes foram necessários para afastar o

gado. Depois do sobrevoo sobre a área da hidroelétrica e de tantos rasantes, eu já estava

mareado. Meu consolo é que o Pate estava muito pior.

Ao pousarmos, dependemos da habilidade do Morato, que teve que driblar os montes

de cupim que estavam na pista. Para mim foi uma viagem inesquecível. Eu tinha estudado

o projeto e os relatórios dos que nos antecederam, inclusive de expedição do Instituto

Geológico e Geográfico de São Paulo, que encontrou no local uma sucuri de 12 metros

de comprimento. No sítio do aproveitamento cheio de ilhas, o rio Grande caía em duas

cachoeiras, a da margem direita chamada de Patos Mineiros e a da margem esquerda,

Patos Paulistas. Logo a jusante dessas cachoeiras o rio se dividia em dois canais unidos

pelo canal do Chupador, cujo fluxo, conforme a descarga afluente, mudava de direção.

A jusante do canal do Chupador, o canal da margem direita era denominado de canal

do Ferrador, no qual a maior parte da vazão era escoada em corredeira de impressionante

violência; e o canal da margem esquerda era de baixo gradiente, denominado Braço

Morto, que despencava na cachoeira das Andorinhas a jusante da qual os dois canais

voltam a fluir juntos na mesma calha natural.

Atravessar o canal do Ferrador era um ato de heroísmo, pois era feito em pequenas

cestas puxadas por cordas e penduradas em cabos de aço. Só mesmo para pescadores

fanáticos. Tivemos oportunidade de ver jiboia, cascavel, anta e capivara. Não vimos,

mas havia jacarés.

Quando retornei ao Rio de Janeiro, esperei o almoço de domingo, quando toda

a família ficava reunida para contar as aventuras. Ao concluir, minha avó, de saúde

invejável, me disse: “Flavio, não se atreva a tomar banho de rio na Tabacana, que fica

no início do canal do Ferrador, bem em frente ao canal do Chupador. A correnteza é

muito forte. Não vá também ao salto das Andorinhas ao cair da tarde, pois ali há muitos

mosquitos.” Para meu espanto, ela havia estado em Marimbondo ainda no século XIX.

Minha aventura ficou esvaziada.

DiA DOs pAis

Ainda bem que o Dia dos Pais cai sempre aos domingos. Quando meus filhos

eram pequenos, havia sempre um evento no Colégio Santa Marcelina, situado no

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Alto da Boa Vista, bairro do Rio de Janeiro. Como barrageiro, mesmo mais voltado

para estudos e projetos, eu sempre viajava muito. Percebi isso quando, em um desses

eventos de Dia dos Pais, o Colégio Santa Marcelina, onde meus filhos estudavam,

organizou uma exposição de desenhos. Cada criança deveria desenhar o próprio pai.

O desenho que o meu filho fez era de um homem com uma mala na mão.

DAr O pAís DE vOltA AOs ínDiOs

A expressão em inglês usada por americanos se algo pode dar errado apesar de

ser óbvio, “we might as well give the country back to the indians”, pode ser aplicada

ao Brasil na época do início do governo Collor. O Departamento Nacional de Obras

de Saneamento (DNOS) foi um órgão federal que, entre 1940 e 1990, implantou

diversas obras hidráulicas no País. O DNOS foi originado de uma comissão, criada

em 1933, com o objetivo de sanear a então insalubre Baixada Fluminense.

Nesse período sobressaiu-se seu diretor, engenheiro Hildebrando de Araújo

Góes. Posteriormente, após 1940, dentre as principais obras hidráulicas implantadas

destacam-se construções visando a produção de energia elétrica, abastecimento

de água, irrigação, drenagem, controle de cheias, paisagismo urbano, controle de

estuário e regularização de descargas. Esses projetos e obras distinguiram muitos

dos mais destacados engenheiros nacionais, entre os quais Paulo José Poggi Pereira

e Otto Pfafstetter.

Como regra geral, as obras hidráulicas, após concluídas, tinham a sua gestão

transferidas para órgãos estaduais ou municipais. Ou, ainda, para empresas estatais.

Um dos primeiros atos do governo Collor foi extinguir o DNOS sem que tivesse

havido qualquer preocupação a respeito da gestão das obras que ainda estavam sob

a responsabilidade da instituição, mesmo aquelas que ainda estavam em construção.

Uma dessas obras era a Barragem Norte, principal unidade do sistema de defesa

contra inundações do vale do rio Itajaí-Açu. A barragem é um maciço de 1,58 milhão

de metros cúbicos de terra compactada com 63 metros de altura, com capacidade de

reter 263 milhões de metros cúbicos. Pouco antes do final de construção, a barragem

abandonada foi ocupada pelos índios da área, que, por muitos anos, exerceram seu

controle sem a menor formação técnica para tal. Esse e outros casos daquela época

levavam a se pensar que estaríamos vivendo o início da devolução do País aos índios.

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206 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

mOrtOs hOmEnAgEADOs

Engenheiros, principalmente os civis de obras de infraestrutura, estão entre

os que mais se arriscam na profissão. Em épocas passadas, em que as condições

de deslocamento eram menos seguras do que as atuais, os falecimentos eram

mais frequentes. O primeiro engenheiro do Departamento Nacional de Obras de

Saneamento (DNOS) a falecer em serviço foi José Maia Filho, morto em um acidente

de avião em 1950, no Rio Grande do Sul. Seu nome foi dado a uma barragem

construída pelo DNOS em seu estado natal, o mesmo em que perdeu a vida.

Anos depois, houve um abaixo-assinado para que fosse dado o nome a uma

barragem que iria ser construída no Ceará ao ex-diretor-geral do DNOS, engenheiro

Raimundo Cláudio Correia Leitão, que era cearense. A barragem havia sido projetada

pelo professor Fernando Emmanuel Barata, que na época do projeto era engenheiro

júnior. O diretor-geral do DNOS encaminhou a intenção da diretoria ao engenheiro

Cláudio Leitão, alvo da homenagem. Ele recusou a homenagem, registrando na sua

resposta que preferia permanecer vivo, uma vez que havia uma lei que não permitia

dar nome de pessoas vivas a obras do governo.

Pouco tempo depois, o destino possibilitou a homenagem que os membros do DNOS

queriam proporcionar, pois o engenheiro Cláudio Leitão faleceu em serviço em um

acidente de avião. Só então foi dado oficialmente o nome de Cláudio Leitão à barragem.

plAnEJAmEntO EnErgéticO DA hiDrOElétricA DE itumbiArA

No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, floresciam os primeiros modelos

matemáticos aplicados em planejamentos energéticos para definição de projetos

hidroelétricos. Destaque naquela época, o engenheiro Sérgio de Salvo Brito, chefe do

Departamento de Planejamento Energético de Furnas, subordinado à diretoria de operação,

estava desenvolvendo a análise de alternativas de projeto da hidroelétrica de Itumbiara.

A diretoria técnica era favorável a uma alternativa de projeto com maior

conteúdo energético e barragem mais alta, alterando a partição de queda que havia

sido recomendada pelos estudos de inventário feitos pela Canambra, eliminando

hidroelétricas a montante no rio Paranaíba e em afluente, aumentando a capacidade de

regularização de descargas no próprio reservatório e beneficiando as usinas a jusante.

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 207

O modelo matemático, entretanto, indicava que deveria ser mantida a partição de

queda que havia sido recomendada pela Canambra e era essa a posição do Sérgio Brito.

Em uma reunião na Eletrobras, com a participação do engenheiro Léo Amaral

Penna, diretor de engenharia e planejamento, em vez de a discussão ser voltada

para a modelagem, para desespero do Sérgio Brito, Léo Penna iniciou a reunião

perguntando: “Lyra, me diga como é o dam site”. Daí para frente a reunião progrediu

em discussões sobre hidrologia, hidráulica fluvial, geologia, geotecnia, arranjos

gerais, esquemas de desvio de rio, estruturas e equipamentos. Sérgio fazia “caras e

bocas” e não conseguia desviar o assunto dos dois famosos engenheiros de gerações

anteriores, que se deliciavam em discussões de engenharia civil e eletromecânica.

A alternativa adotada foi a da barragem alta, como queríamos na diretoria

técnica. Confesso que a decisão foi na base da intuição, admitindo que as

conjunturas nacional e internacional poderiam vir a ser alteradas no futuro. Não

muito tempo depois, no final de 1973, aconteceu o primeiro choque do petróleo.

Já no ano seguinte, Sérgio Brito retomou os estudos energéticos com novos

parâmetros devidos aos preços de referência. E concluiu que a alternativa que

havia sido adotada com barragem alta tinha passado a ser a mais interessante.

Hoje, com os novos projetos hidroelétricos sendo desenvolvidos com operação a fio

d’água, em que os reservatórios são minimizados e desprovidos de capacidade de

regularização de descargas devido a objeções de opositores que se autoproclamam

ambientalistas, a seleção da alternativa com barragem alta em Itumbiara se mostra

como tendo sido fundamental.

O rAciOnAmEntO

Em janeiro de 2013, o País vivenciava sucessivos grandes apagões que

envolveram, ao mesmo tempo, vários estados em amplas áreas do País (seis a partir

de final de setembro de 2012) e a perspectiva de racionamento de energia elétrica

por estar o conjunto de reservatórios dos sistemas Sul e Sudeste Centro-Oeste

atingindo a curva de aversão ao risco mesmo com todas as usinas termoelétricas

operando a plena carga. Nessa época, foi realizada em Brasília uma reunião do

Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico.

Dada a sua importância para a economia nacional, o assunto era notícia em todos

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208 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

os meios de comunicação. Uma avalanche de jornalistas se dirigiu ao Ministério de

Minas e Energia. Eles esperaram o término da reunião com esperanças de poderem

colher muita matéria para seus veículos de comunicação. Ao final, a assessoria da

pasta informou que o ministro Edison Lobão responderia somente a oito perguntas.

Um dos jornalistas presentes disse: “Já começou o racionamento.” Diante da

perplexidade de todos os outros, que pensavam que ele tinha um furo de reportagem,

ele adicionou: “Calma, gente, por enquanto o racionamento é só de perguntas.”

cOntAbiliDADE inOvADOrA

Quando assumiu o governo do estado de São Paulo, uma desagradável surpresa

aguardava o engenheiro Mário Covas: seu antecessor, Luiz Antônio Fleury, havia

vendido e recebido antecipadamente, após ter concedido descontos incentivadores,

a energia que ainda seria gerada pelas empresas paulistas de energia elétrica,

nomeadamente CESP, CPFL e Eletropaulo. Assim, essas empresas tiveram que

gerar sem receber durante expressiva parte do governo Covas.

O mesmo esquema engenhoso foi utilizado em 2013 pelo governo federal, na

ânsia de conceder abatimentos nas tarifas de energia elétrica ao antecipar receitas

correspondentes aos recebíveis de Itaipu por meio de financiamento do BNDES,

em uma operação classificada como contabilidade inovadora ou alquimia fiscal. O

contribuinte, mais essa vez, passou a pagar pelo usuário.

rEAçãO pArAguAiA

Vinte e três senadores paraguaios consideraram que o senador Victor Bogado

não havia incorrido em nenhum erro ao nomear a babá de sua filha para uma

posição na Itaipu Binacional, empresa detentora da maior hidroelétrica do mundo

(apesar de não ser a de maior capacidade instalada).

Ancelmo Gois relata em sua coluna no O Globo em novembro de 2013 que, sob

questionamento, a votação no senado paraguaio foi esmagadoramente contrária

à perda da imunidade do parlamentar. A partir daí, vários estabelecimentos

comerciais estamparam em suas vitrines que os 23 senadores não eram bem-vindos

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 209

e passaram a ser postos para fora das lojas, postos de gasolina, restaurantes etc.

O senado voltou atrás e votou, por unanimidade menos um voto, a cassação

da imunidade parlamentar de Victor Bogado. O exemplo paraguaio, infelizmente,

ainda não é seguido por aqui: o deputado estadual Gustavo Perella empregou

na Assembleia Legislativa o seu piloto Rogério Antunes, que foi pilhado no

helicóptero de Perella, abastecido com combustível pago pela Assembleia, com 445

quilos de cocaína. Demitiram o piloto. No mesmo mês, o Congresso brasileiro, na

calada da noite e sem quórum regimental, anulou a sessão que depôs o presidente

João Belchior Marques Goulart da presidência da República em 1964. No O Globo

comentei o fato lembrando Roberto Campos, segundo o qual: “No Brasil nem o

passado é previsível.”

vErbA E rEcursO

Assim que a Light foi estatizada no governo Ernesto Geisel, a Eletrobras

convocou uma reunião com os dirigentes da Light para colocá-los a par do jeito

estatal de gestão empresarial. A mais importante mensagem, referida com a maior

ênfase, era que nenhum contrato poderia ser iniciado sem que houvesse verba

a ele destinada. O engenheiro Wilson D’Andrea, um dos superintendentes da

Light, manifestou sua surpresa quanto ao descaso administrativo e financeiro:

“Na Light canadense era diferente: qualquer contrato, além da verba assegurada,

só podia ser iniciado se, e só se, houvesse um carimbo do tesoureiro situado no

segundo andar da sede em São Paulo, garantindo que o recurso integral estava

garantido e em caixa.”

EngEnhOsiDADE

A usina hidroelétrica de Curuá-Una foi implantada em um afluente do rio

Amazonas para o suprimento da cidade de Santarém (PA). Sua fundação é

constituída, basicamente, por uma formação de rocha arenítica e de areia, ambas

de elevadas permeabilidades. As estruturas de concreto possuem galerias para as

quais afluem as águas que percolam em subsuperfície, captadas por uma cortina de

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210 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

drenagem. A vila de operadores da usina se situa em uma das margens do rio e é

abastecida por bombas de recalque que captam água na margem do rio.

Como ocasionalmente as bombas apresentavam problemas, a manutenção não

era eficiente e substituições de peças eram difíceis, ocorria com certa frequência

desabastecimento de água à vila de operadores. Em uma inspeção técnica de

segurança, foi detectada a solução adotada pelos operadores para esse problema:

como a cortina de drenagem captava as águas percoladas pela fundação, já filtradas,

as extremidades superiores dos drenos foram todas entupidas, menos a de uma deles,

que foi conectada por uma tubulação flexível à caixa-d’água da vila de operadores

situada em cota elevada. Sem ter consciência do perigo, os operadores elevaram

em muito a subpressão, importante elemento desestabilizador da barragem. Os

inspetores propiciaram a rápida desobstrução dos drenos.

pAulO AfOnsO E O prAgmAtismO AmEricAnO

Na cachoeira de Paulo Afonso o rio São Francisco despencava por sobre uma espessa

rocha granítica em vários braços, com uma vazão média superior a 2.000 m³/s. A

primeira imagem da cachoeira foi captada em 1647 pelos pincéis de Franz Post, notável

pintor holandês, vindo na comitiva de Maurício de Nassau. Dom Pedro II, por ocasião de

sua visita à cachoeira no dia 20 de outubro de 1859, reproduziu a lápis a deslumbrante

paisagem que via das imponentes quedas d’água. Na primeira metade do século passado,

a cachoeira permanecia impressionando os que a visitavam. Alceu Amoroso Lima

relatou no periódico O Jornal declarações de três estrangeiros que estiveram com ele a

admirar a pujança das quedas: um francês disse “C’est très chic”, um hindu exclamou “It is

just wonderful” e um americano perguntou “How much hydropower is lost here every day?”

DElmirO gOuvEiA

Em 1903, o cearense Delmiro Augusto da Silva Gouveia (1863 - 1917), após desgastes

políticos e econômicos em Recife, fixou residência em Pedra (AL), a 23 quilômetros da

cachoeira de Paulo Afonso.

Depois de ver seus mais ambiciosos planos serem desfeitos pela obtusidade política,

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FLAVIO MIGUEZ DE MELLO • 211

planos estes relatados a seguir, que, no início do século passado, teriam modificado todo

o Nordeste, Delmiro Gouveia, por conta própria e com muito esforço, implantou em um

dos braços da cachoeira de Paulo Afonso uma pequena hidroelétrica com potência de

1.500 HP (1.102 kW), com três unidades geradoras sob 42 metros de queda bruta. A

casa de força encravada na encosta rochosa da margem alagoana da cachoeira abrigava

equipamentos adquiridos por Delmiro em viagem à Alemanha, Suíça e Inglaterra.

Ele contratou engenharia italiana e francesa para projeto e montagem da usina, que

foi inaugurada no dia 26 de janeiro de 1913, tendo sido denominada de Angiquinho,

a primeira hidroelétrica do Nordeste. Para vencer os opositores em Pernambuco

e na capital federal, contou com o apoio político do governo de Alagoas e de pessoas

influentes, como Alfredo de Maya e o deputado Demócrito Gracindo.

A hidroelétrica fornecia energia para a fábrica de linhas de costura de Delmiro

Gouveia em Pedra, para a vila operária e para o recalque de água para abastecimento, ao

abrigo de concessão dada pelo Estado de Alagoas, e operou até 1960 quando, atingida

por uma grande enchente do rio São Francisco, foi desativada. A partir de 30 de

novembro de 2006, as edificações e os equipamentos foram tombados pelo Patrimônio

Histórico, Artístico e Natural do Estado de Alagoas e hoje podem ser visitados por

estudiosos e turistas.

Os planos grandiosos que teriam modificado o Nordeste e que não puderam ser

implantados são relatados a seguir. Em 1909, Delmiro Gouveia recebeu sigilosamente

um grupo de engenheiros americanos para estudar a potencialidade hidroenergética

da cachoeira de Paulo Afonso. Na época, americanos e canadenses já haviam iniciado

a exploração do potencial de Niagara Falls, na fronteira dos dois países. Delmiro e

Mr. Moore, capitalista americano, pretendiam promover, em associação, a exploração

do potencial de Paulo Afonso, possibilitando o fornecimento de energia a diversas

cidades e o fomento da industrialização da região pela ampla oferta de energia elétrica.

Os americanos investiriam no projeto se, e só se, houvesse expressa concordância e

autorização dos governos estaduais.

Entretanto, o governador de Pernambuco, Dantas Barreto, mesmo com a promessa

de que a eletrificação chegaria a Recife, categoricamente recusou: “O negócio que o

senhor propõe é tão vantajoso para o Estado que deve envolver alguma velharia.”

Sem os americanos, a eletrificação foi conduzida apenas por Delmiro Gouveia, em

dimensão muito mais reduzida, com a implantação da pequena usina de Angiquinho.

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212 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

EugêniO guDin x pAulO AfOnsO

Eugênio Gudin, ícone da engenharia e da economia, era ministro da Fazenda

no governo do general Eurico Gaspar Dutra na segunda metade dos anos 1940.

Lideranças nordestinas sob a batuta de Apolônio Sales, ministro da Agricultura

– ministério em que a energia elétrica era incluída –, pressionavam o governo

federal para que fossem iniciados o projeto e a obra da hidroelétrica de Paulo

Afonso, no rio São Francisco.

O consumo de energia elétrica no Nordeste era extremamente incipiente, ao

passo que havia intensa carência de energia elétrica na Região Sudeste, onde se

concentrava o desenvolvimento nacional. Com recursos federais limitadíssimos e

tendo em vista as grandes dificuldades da obra proposta no rio São Francisco, aliadas

à falta de experiência da engenharia nacional, Gudin era favorável que recursos

fossem prioritariamente dirigidos para a Região Sudeste. Apolônio Salles conseguiu

vencer a queda de braço e a hidroelétrica de Paulo Afonso I foi implantada.

Embora na época não fosse quantificada, havia no Nordeste incrível demanda

reprimida, que fez com que a energia de Paulo Afonso I fosse rapidamente absorvida,

dando origem a ampliações no mesmo local, denominadas Paulo Afonso II, III e IV.

Passadas quase duas décadas da decisão favorável à implantação da hidroelétrica,

Eugênio Gudin, com modéstia ímpar e rara nos dias atuais, se retrata em entrevista

ao jornal O Globo em 8 de maio de 1963:

Quando em 1945 foi discutida na Comissão de Planejamento a questão da utilização da cachoeira de Paulo Afonso, eu declarei que dava meu voto com reserva de ser um voto político, já que economicamente, dizia eu, a obra dificilmente se justificaria. Passados quase 20 anos, devo confessar o meu erro. A experiência demonstrou, tanto quanto eu posso apurar, que a obra foi também economicamente proveitosa.[...] É possível, e mesmo provável, que tenha havido erros e falhas nos dados em que me baseei e sobretudo na sua interpretação por um velho engenheiro já enferrujado. [...] Outros que tenham a bondade de corrigi-los. O Brasil deve felicitar-se por esse empreendimento de tão grande alcance econômico e social.

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A históriA sE rEpEtiu Em xingó

A história se repete. A jusante da cachoeira de Paulo Afonso, o rio São Francisco

escavou profundo cânion cujas paredes verticalizadas, compostas por rochas

graníticas, são de elevada resistência geomecânica e atingem cerca de 200 metros

de altura. Essas características são ideais para a construção de uma hidroelétrica.

Em 1951, o engenheiro Gerdes, da Kaiser Engineers, vislumbrou a implantação

de uma grande hidroelétrica nesse cânion, represando águas até o canal de fuga da

usina de Paulo Afonso I, já em operação na época. A indústria americana Reynolds

Metals propôs a construção dessa usina, composta por uma barragem em arco e

casa de força subterrânea, em uma parte estreita desse cânion denominada Xingó.

A usina teria como finalidade a geração de grandes blocos de energia elétrica

para uma unidade fabril de produção de alumínio que seria implantada na região.

A concessão como autoprodutor seria por 30 anos e a usina seria revertida para

a posse da União por volta de 1985. Houve intensa oposição política pelos que

bradavam que a usina não atenderia os interesses do País e do Nordeste, oposição

esta capitaneada pelo político baiano Clemente Mariano e pelo industrial e político

paulista José Ermírio de Moraes, que na época era investidor em indústria de

alumínio em Minas Gerais. Os principais argumentos eram que a indústria a

ser implantada competiria com a incipiente indústria nacional de alumínio e que

a fábrica de alumínio absorveria muita energia elétrica com pouco emprego de

recursos humanos. Com essa oposição dita nacionalista, a usina e a sua grande

hidroelétrica não foram concretizadas.

Os estudos nacionais para a definição dessa hidroelétrica só foram iniciados

em 1975 e as unidades geradoras foram progressivamente colocadas em operação

de 1994 a 1997, restando ainda hoje a serem instaladas as unidades da segunda

etapa da casa de força que deverá ser uma ampliação futura. A construção da usina

de Xingó foi feita mais a jusante do inicialmente previsto, em vale mais aberto.

O governo vivia na época da construção extrema dificuldade financeira. Como

pode ser deduzido do acima exposto, além de ter produzido energia, alumínio,

emprego, impostos e riqueza por mais de 30 anos, no meado dos anos 1990, quando

finalmente entrou em operação, a hidroelétrica já teria sido revertida para a União

pelo término da concessão há mais de dez anos, sem qualquer custo para o governo

federal pela sua implantação.

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214 • EPISÓDIOS DA ENGENHARIA (E DA POLÍTICA) NO BRASIL

Esse episódio da política nacionalista foi divulgado em palestra promovida pela

Chesf por ocasião do XIX Seminário Nacional de Grandes Barragens, realizado

em Aracaju, em 1991, e foi relatado com inacreditável orgulho.

gEtúliO Em sãO pAulO

“No Maracanã, até minuto de silêncio é vaiado”, dizia, com muita propriedade,

Nelson Rodrigues. Muitas vaias já foram registradas em campos de futebol. Entretanto,

antes do advento do Maracanã, o campo do Vasco da Gama em São Januário foi usado

por Getúlio Vargas algumas poucas vezes, sem que tivessem sido registradas vaias.

Mais recentemente, o presidente Lula, na época detentor de grande prestígio popular, se

aventurou no Maracanã e recebeu estrondosa vaia. Em 2013, por ocasião da inauguração

da Copa das Confederações, a presidente Dilma Rousseff compareceu ao estádio Mané

Garrincha em Brasília e também foi saudada com estrepitosa vaia e, a partir daquele dia,

instaurou-se uma crise política sem precedentes em todo o País, envolvendo multidões

em passeatas e distúrbios da ordem pública que revelaram insatisfações diversas em

muitos campos da administração pública. Em 1954, pouco antes de estourar a grave crise

que o levou ao suicídio, o presidente Getúlio Vargas, que nunca havia caído inteiramente

no gosto dos paulistas, compareceu ao Jockey Clube de São Paulo em companhia do

governador do estado, Lucas Nogueira Garcez, renomado engenheiro formado pela

USP em 1936 e que muito contribuiu para o desenvolvimento do estado, especialmente

pela implantação de obras de infraestrutura que garantiram condições apropriadas de

transporte e de fornecimento de energia elétrica. O prestígio de Garcez em São Paulo

se traduzia pelas suas atividades profissionais e didáticas, tendo criado o Departamento

de Águas e Energia Elétrica, a Uselpa, desenvolvedora das hidroelétricas do vale do rio

Paranapanema, tendo inaugurado as hidroelétricas de Salto Grande, Limoeiro, Euclides

da Cunha e Barra Bonita. Foi presidente da CESP e da Eletropaulo, autor dos livros

Hidrologia e Engenharia Hidráulica e Sanitária. Recebeu os títulos de Professor Emérito

da USP em 1964 e de Eminente Engenheiro pelo Instituto de Engenharia, em 1968.

Tão logo foi notada a presença do presidente no Jockey Clube, os que estavam

presentes no hipódromo não pouparam pulmões e cordas vocais para promover

estrondosa vaia. Getúlio, irônico e, como sempre, calmo, acostumado às adversidades

políticas, disse para Garcez: “Lucas, não imaginava você assim tão impopular.”

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A chEsf, sAntA tErEzinhA E sãO frAnciscO

No final do Estado Novo, Apolônio Sales, ministro da Agricultura, pasta à

qual a energia elétrica estava subordinada, pressionava o governo federal para

que a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) fosse fundada. Apolônio

havia solicitado a Getúlio Vargas que a fundação da Chesf fosse feita no dia 30

de setembro, por ser ele, Apolônio, devoto de Santa Terezinha, que na época era

festejada naquela data.

Não foi possível, o dia 30 passou. Apolônio voltou ao ataque no dia 3 de outubro:

“Presidente, amanhã é dia de São Francisco. Ele ficará muito contente vendo que

o senhor criou no Nordeste do Brasil uma companhia com o nome dele.” O dia 4

também passou, mas a Chesf foi finalmente criada no dia 5. Entretanto, Getúlio

teve o cuidado de datar o decreto como tendo sido no dia 4 de outubro de 1945.

O que Apolônio Sales nunca soube foi o que D. Darcy Vargas me disse, muitos

anos depois, sem necessariamente ter relação ao fato aqui narrado, mas num

cúmulo de incoerência, que ela, agnóstica como o marido Getúlio, não acreditava

em santos, mas detestava Santa Terezinha.

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Depoimentos

Flavio Miguez é um dos mais conhecidos peritos na engenharia de barragens brasileira. Sua formação em engenharia civil, com especialização em hidráulica e mestrado em geologia, explica a argúcia que ele tem mostrado ao longo de sua notável carreira profissional de quase 50 anos devotados ao ensino e à consultoria de barragens. As pitorescas crônicas da engenharia aqui reunidas e deliciosamente narradas por ele evidenciam sua cultura sobre as grandes barragens do Brasil e do mundo.

Alberto sayão Professor de Geotecnia de Barragens, PUC-Rio

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Além das significativas realizações na área técnica, o que mais me impressiona em Flavio Miguez de Mello é o seu desprendimento e dedicação à comunidade das Engenharias, sempre com ações que a engrandecem e agregam seus membros. É um profissional e um amigo que muito admiro e estimo.

luiz calôbaProfessor emérito COPPE/POLI/UFRJ e assessor científico da FAPERJ

Flavio Miguez de Mello conta casos ouvidos e vividos com grande maestria, revelando a história por trás da história da engenharia do século XX. Muitas dessas situações retratam a atuação de visionários engenheiros, como o próprio Flavio, que tiveram competência para idealizar e construir obras pioneiras.

Jerson KelmanDiretor-presidente da ANA (2001-2004), diretor-geral da ANEEL (2005-2008)

e diretor-presidente da Light (2010-2012)

Conheço o Flavio desde fevereiro de 1971, quando fui indicado para ser orientador da tese de mestrado dele na UFRJ. Por sorte, morávamos na época no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Depois tivemos muitos contatos sobre vários estudos e projetos de barragens sendo projetadas pela Enge-Rio, onde ele foi diretor e eu trabalhava na Eletronorte. Ao longo destes mais de 40 anos, tivemos também muitos contatos em congressos e outros encontros técnicos.

John D. CadmanPh.D., engenheiro civil e geólogo pós-graduado pela University of California,

ex-professor da UFRJ e da UnB, ex-integrante da equipe da Canambra e da

Eletronorte, consultor

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As qualidades de Flavio Miguez como engenheiro e memorialista da engenharia brasileira de barragens e recursos hídricos são por demais conhecidas e dispensam apresentações. Entretanto, ele sempre nos surpreende com registros de fatos e eventos que nos ajudam a entender e nos orgulhar da evolução de nossa arte.

brasil pinheiro machadoPresidente do Conselho de Administração da INTERTECHNE

O engenheiro e professor Flavio Miguez de Mello é um apaixonado pela engenharia de barragens. Ao longo de sua vida profissional, projetou e liderou grande número de importantes projetos dessa área da engenharia civil. Como professor, exerceu profunda influência na carreira de inúmeras gerações de barrageiros.

heloi José fernandes moreiraEngenheiro eletricista pela PUC-Rio, doutor pela UFRJ, professor e ex-diretor

da Escola Politécnica da UFRJ, ex-presidente do Clube de Engenharia

Convivo com o Miguez há cerca de cinco décadas. Tenho apreciado a sua capacidade técnica em estudar e resolver problemas de engenharia, notadamente na área de aproveitamentos hidroelétricos. Ele não só é um preparado engenheiro, como também é um notável e querido professor. Além de todas essas características, é um homem de boa memória e de grande espírito cômico.

francis bogossianPresidente do Clube de Engenharia

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