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José Carlos S. de Almeida Filosofia – 10º ano Sumários desenvolvidos

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Jos Carlos S

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Jos Carlos S. de Almeida

Filosofia 10 ano

Sumrios desenvolvidos

Ano lectivo de 2011/2012

FILOSOFIA 10 ano

Programa / Contedos

- Abordagem introdutria Filosofia e ao filosofar- A aco humana: anlise e compreenso do agir- Os valores: anlise e compreenso da experincia valorativa- Dimenses da aco humana e dos valores: a tica e a Poltica- Dimenses da aco humana e dos valores: a Esttica- Temas / problemas do mundo contemporneo

ndice

O que a Filosofia? O que filosofar?1. A definio de filosofia2. O que nos diz a etimologia da palavra filosofia3. A. Do mito aos primeiros filsofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de descrio e explicao quase racional do real3. A filosofia filha da polis4. O filsofo, distrado ou preocupado?5. A alegoria da caverna de Plato e a atitude filosfica5. A - Caractersticas da atitude filosfica6. Historicidade7. Radicalidade7-A. Universalidade8. Autonomia em relao cincia e religio9. O carcter discursivo do trabalho filosfico10. Filosofar argumentar11. reas e temas abrangidos pela Filosofia

O homem construindo-se atravs da ao12. O que leva o homem a agir13. Sentidos usados na linguagem quotidiana que no devero ser considerados neste mbito14. A ao humana constitui uma interveno planeada e pensada14-A. Devemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ao da reao15. A conscincia e a vontade so elementos que caracterizam necessariamente a ao humana16. A importncia da presena dos elementos conscincia e vontade no agir do homem17. Movimento / acontecimento e ao18. A rede conceptual da ao: ao intencionada e ao causada19. Perspectiva determinista e perspetiva baseada na ao intencionada20. Combinando causas e intenes; o homem simultaneamente livre e determinado21. Aces voluntrias, atos involuntrios e reflexos22. O agente da ao e a relao causal23. O estabelecimento de um motivo responde ao porqu e explica e legitima a ao24. Inteno e motivo

25. O trabalho humano e a atividade dos animais26. O trabalho enquanto forma particular de ao. Trabalho e projecto

27. Ao livre e responsabilidade28. A culpa29. Algumas notas sobre o existencialismo30. Classificao das vrias condicionantes da ao humana31. Diversos tipos de determinismo31 A. A crena no destino como forma de determinismo32. Conscincia, vontade e responsabilidade

O mundo no indiferente ao homem: os valores33. O que so os valores34. O percurso da ao aos valores 35. No h aes gratuitas, isto , sem a presena dos valores36. Caractersticas dos valores

A experincia tica e poltica da vida e do mundo38. Relativismo moral e relativismo cultural e tolerncia39. A dimenso da tica e da moral39 A. Distinguir tica e moral39 B. Distinguir moral e religio40. Inteno e norma41. Distino conceptual entre moral e tica quadro-resumo42. Dimenso pessoal e social o si mesmo, o outro e as instituies

43. Teorias acerca da fundamentao da moralidade: a perspetiva deontolgica de Kant 44. Teorias acerca da fundamentao da moralidade: a perspetiva consequencialista de Stuart Mill44 A. Confronto entre as teorias deontolgicas e as teorias consequencialistas45. A relao entre a tica, o direito e a poltica46. O Estado enquanto problema da filosofia poltica47. O homem e o Estado: a perspetiva clssica: Aristteles48. O homem e o Estado: a perspetiva contratualista moderna: John Locke do estado de natureza natureza do Estado49. A teoria da justia de John Rawls49 1. Conflito e cooperao nas sociedades contemporneas; a relao entre a liberdade e a igualdade 49 2. Rawls critica o utilitarismo49 3. A escolha racional dos princpios da justia

A experincia esttica da vida e do mundo50. A experincia esttica50 1. Quando um acontecimento se torna numa experincia para o sujeito50 2. Caraterizao da experincia esttica50 3. Atitude e sensibilidade estticas50 4. Objetivismo e subjetivismo na experincia esttica50 5. Teorias acerca da natureza da Arte e da obra de arte

NotaEstes sumrios desenvolvidos constituem um determinado momento no nosso trabalho que passa tambm pela nossa investigao e reflexo e pelo dilogo mais ou menos frutuoso com os alunos. Enquanto representam um momento desse trabalho, estaro sempre sujeitos a serem revistos e substitudos por outros textos considerados mais ajustados ao fim em vista. Trata-se de um texto em permanente reelaborao e reconstruo, mas no esse o destino de qualquer texto de cariz ensastico?[footnoteRef:2] [2: Sobre a natureza do ensaio, ver Fernando Savater, ***** e Eduardo Prado Coelho, ******.]

1.A definio da filosofiaO incio da aventura filosfica sempre marcado por uma pergunta fatal: o que a filosofia? Ningum gosta de embarcar numa viagem sem saber para onde vai, sem saber o que vai encontrar. De qualquer modo, perguntar sobre o que a filosofia sempre uma questo mais interessante que perguntar sobre para que que serve a filosofia. No entanto, h tambm quem faa essa pergunta sobre a utilidade da filosofia. Ora, quando soubermos o que a filosofia, tambm chegaremos resposta sobre a sua utilidade. O que no podemos fazer condicionar a pergunta sobre o que pergunta para que que serve. O problema da utilidade da Filosofia no se situa no mesmo plano que perguntar pela utilidade dum chapu-de-chuva ou duma estrada.H quem considere que o primeiro problema da Filosofia a questo da definio de Filosofia. E o problema adensa-se porque no existe uma resposta nica a esta questo, como tambm poderamos dizer que esta questo no tem sentido no caso da Filosofia. Saber o que a Filosofia um dos seus primeiros problemas. Existem vrias respostas a esta questo, respostas que tm variado de filsofo para filsofo, de poca para poca. De tal maneira que seria mais rigoroso falar de Filosofias do que de Filosofia.Contudo, apesar dessa variao e variedade em torno da resposta pergunta sobre o que a Filosofia, variao e variedade que tambm existe acerca do valor da filosofia, podemos avanar com algumas ideias muito gerais sobre o que possa ser a filosofia, sendo certo que cada um ir construindo a sua viso pessoal do que a filosofia.Assim, poderamos dizer, em primeiro lugar, que a Filosofia constitui-se como uma reflexo racional e crtica sobre os problemas fundamentais da condio humana considerada em si mesma e do homem face aos seus semelhantes e realidade. Uma reflexo sobre o homem na sua universalidade, mesmo que partindo duma situao concreta e particular em que sempre se encontra. Trata-se de uma definio que proposta neste momento, suficientemente vaga e provisria, para que cada um a v enriquecendo ao longo deste caminho. que, por outro lado, como dizia o poeta espanhol Antnio Machado, no existem caminhos, fazem-se a caminhar.

2. O que nos diz a etimologia da palavra filosofiaUma das maneiras de esclarecermos o significado duma palavra ou dum conceito compreendermos a origem e evoluo dessa palavra. A etimologia da palavra filosofia diz-nos que filosofia significa, originalmente, amor da sabedoria (filos + sofia). Repare-se que no se diz que tipo de sabedoria , nem que a filosofia consiste na posse do saber. O que a etimologia nos diz que a filosofia , sobretudo, amor ou amizade pelo saber[footnoteRef:3], movimento ou trnsito para o saber, caminhar na direco do saber e no propriamente um instalar-se no seio do prprio saber, isto , possuir o saber. Sublinha-se, deste modo, o caminho ou o processo, a aventura em direo ao saber, e no tanto o resultado ou ponto de chegada. E no ser a desmesurada nsia por chegar a qualquer lado uma forma de nos desinteressarmos ou no estarmos atentos s maravilhas do caminho? Se ao empreendermos uma viagem estivermos obcecados pelo ponto de chegada, pelo destino, no teremos olhos para as paisagens que acompanharo a viagem, para a viagem em si mesma[footnoteRef:4]. [3: O amor ou amizade deve ser entendido no contexto da cultura grega antiga.] [4: Vale a pena, a este propsito, ler o poema taca de Constantin Cavafy. Estabelecendo um paralelo entre a taca e a filosofia, poderemos dizer que, se no fim da viagem, achares pobre a filosofia, devers contudo compreender que foi graas Filosofia que te puseste a caminho e assim adquiriste as riquezas que foste encontrando e comerciando nos portos que visitaste. A pobre Filosofia ter-te- dado a maior riqueza: a viagem com tudo o que vai acontecendo no caminho e que s poderemos fruir se no partirmos com ideias preconcebidas sobre o que iremos encontrar.]

3 A.Do mito aos primeiros filsofos. O mito enquanto primeiro ensaio duma tentativa de descrio e explicao quase racional do realO mundo sempre foi fonte de curiosidade e inquietao. Olhando sua volta, so muitas as perguntas que surgem no esprito do homem. Uma dessas perguntas prende-se com a origem e funcionamento da realidade. Desde muito cedo que o homem se interrogou sobre como tudo teria comeado. Observando a realidade, as coisas vivas que nascem e morrem, desde logo conclui que tudo tem um incio, que as coisas evoluem, vo ganhando novas formas. Tambm dever ter sido assim com o meio envolvente. Por isso, desde muito cedo que os homens procuraram explicar a realidade, fornecer um sentido aos mltiplos acontecimentos que ocorriam sua volta. As condies rudimentares dessas primeiras tentativas de resposta, levaram os homens a fazer intervir nesses ensaios explicativos seres fabulosos, dotados de capacidades extraordinrias e mgicas. Nas primeiras explicaes do mundo, os homens recorrem aos feitos fabulosos dos deuses e aos atos criadores dos heris, de figuras sobre-humanas, dotadas de poderes sobre-humanos. Os mitos so, precisamente, tentativas de explicao da origem quer do mundo (mitos cosmognicos), quer de outras formas particulares de existncia, mas de importncia vital para a comunidade, como por exemplo, a origem do homem, duma aldeia, dum rio, duma montanha, da chuva. Essas tentativas de descrio e explicao tm de particular a interveno de seres fabulosos.No caso dos mitos cosmognicos, o que a se tenta descrever e explicar a origem do mundo que, em muitos casos, o resultado duma luta primordial entre as foras do mal e as foras do bem, entre o caos e cosmos, a desordem e a ordem. Essas explicaes fantsticas so perfeitamente assumidas e vividas, na medida em que descrevem a vitria da ordem e o mundo est a para demonstrar a vitria dos deuses e do mundo ordenado.A descrio da origem do mundo que feita no Livro do Gnesis do Velho Testamento um bom exemplo dum mito cosmognico.

3.A Filosofia filha da polisA Filosofia, segundo a generalidade dos autores e pensando no mundo ocidental, nasceu na Grcia Antiga por volta dos sculos ****. Ora, isto deve-nos colocar a seguinte questo: porqu na Grcia e no noutro lugar da Europa? O que h assim de especial com a Grcia daquele tempo que fez com que nesse stio, num determinado momento, se comeasse a produzir uma reflexo que consideramos ser a origem da Filosofia, quando no j a prpria filosofia? Vrios factores contriburam para isso, desde condies polticas e culturais, at factores geogrficos. O extraordinrio florescimento cultural que ocorreu durante a poca que corresponde quilo que ficou conhecido como o milagre grego, o extraordinrio desenvolvimento da literatura, da cultura e arquitectura e do teatro, o fim da guerra com os Persas instituindo um duradouro perodo de paz social e o desenvolvimento da democracia, regime poltico que, apesar das suas limitaes, favorece a expresso e a troca de ideias. A situao geogrfica da Grcia tambm favoreceu o desenvolvimento da filosofia. Se o Mediterrneo era o umbigo do mundo, a Grcia, ou o Mar Egeu, ocupava um lugar central nesse mesmo umbigo, situando-se no cruzamento de rotas comerciais oriundas do norte de frica, Prximo Oriente e Pennsula Ibrica, ligando trs continentes. O grego esteve pois, desde sempre, em contacto com outras comunidades, outras culturas, outras ideias. O comrcio das coisas tambm significou o comrcio das ideias. O contacto com outros povos e outros costumes tornou-o mais aberto para a diferena e mais flexvel em relao queles que eram diferentes e pensavam de modo diferente, com os seus hbitos e costumes prprios. Este contacto com a diferena tambm deve ter espicaado a sua curiosidade e a sua vontade de reflectir sobre esse mundo novo. Por outro lado, uma extensa linha de costa, um territrio completamente exposto ao mar e virado para fora, onde o homem era, por natureza, um ser dado comunicao, iluminado por uma luz solar que favorecia o desenvolvimento da racionalidade, tudo estes factores geogrficos e climticos tambm favoreceram o eclodir dum pensar curioso, crtico e racional[footnoteRef:5]. Todos ns, uma vez ou outra, devemos ter sentido esse apelo do mar para a reflexo. Diante do mar, contemplando o movimento das suas ondas, essa eterna impermanncia e diferenciao constante que ao mesmo tempo identidade e diferena, uma continuidade diferenciante, uma identidade que se mantm atravs da sua presena simultaneamente diferente e igual, impossvel que o Grego se mantivesse indiferente e no sentisse o aguilho da curiosidade e o impulso para pensar. Diante da extensa linha do horizonte, contemplando o mar e essa longnqua linha, cujo espao para l dessa linha interpela o homem curioso, somos levados a pensar no que est e existe para l do que visvel. [5: Para alguns autores, o surgimento duma cultura predominantemente ligada escrita tambm determinante para o eclodir do pensamento racional filosfico. As culturas marcadas pela predominncia da oralidade, no conseguem estabelecer uma distncia suficiente entre o texto e as condies da sua enunciao, estando assim demasiado marcado afectivamente pelas circunstncias que rodearam a sua enunciao. Cf. a este propsito, Pierre LVY, As tecnologias da inteligncia, Lisboa, Instituto Piaget, pp. 118-119.]

Finalmente, a polis, a cidade, verdadeiro espao emancipador, criou e alargou os espaos pblicos de discusso e deliberao democrticos, onde se reflectia sobre a essncia do homem e da comunidade, os seus problemas, o seu futuro e o que, nesse sentido, se devia fazer, determinando o surgimento duma nova atitude racional e crtica e dum novo saber que se foi delineando como filosfico.

4.O filsofo, distrado ou preocupado?Num dos textos da Grcia Antiga onde pela primeira vez se refere a filosofia[footnoteRef:6], descrevem-se umas festas tradicionais, onde apareciam uns homens que vinham vender mercadorias, outros que vinham comprar e, finalmente, havia uma terceira classe de indivduos que no vinham fazer nem uma coisa, nem outra: estes eram os filsofos. Deste modo, caracterizam-se os filsofos como algum desinteressado, que no est preocupado com os interesses materiais. A ideia que relaciona a filosofia e a sua gratuitidade com um certo desinteresse em relao s preocupaes materiais est tambm, de certa maneira, presente numa anedota que se contava acerca de um dos primeiros filsofos, Tales de Mileto[footnoteRef:7]. Contava-se que este sbio, andando to distrado com certos problemas que o levavam a caminhar de cabea no ar, no reparou num poo que estava diante de si e acabou por cair l. Queria-se, com essa histria, dizer que o filsofo era um indivduo to distrado com problemas transcendentes que nem reparava num elementar obstculo colocado aos seus ps. No contestamos esta interpretao, porque acerca do mesmo Tales de Mileto tambm se contou que, observando constantemente os astros celestes (chegou a prever um eclipse), conseguiu antecipar um ano de extraordinria produo de azeitona, pelo que procedeu ao aluguer de todos os lagares de azeite da cidade. Aquando da colheita das azeitonas e tendo-se verificado esse extraordinrio aumento da produo, os agricultores foram ter com Tales para que este lhes subalugasse os lagares de azeite, onde iriam colocar essa produo. Deste modo, Tales acabou por ganhar muito dinheiro. Ora, daqui tambm se pode concluir que, de facto e aos olhos dos outros, talvez parecesse que Tales andasse distrado ao olhar para o cu; o problema que os outros no conseguiram ver o que ele via e por isso no conseguiram prever esse bom ano agrcola. Enquanto Tales fazia previses acertadas, os seus contemporneos s conseguiam ver que ele andava distrado![footnoteRef:8] Ou ento, como se afirma num provrbio chins, enquanto o sbio com o dedo para a Lua, o tolo apenas olha para a ponta do dedo. Tales olhava para a Lua, mas os seus conterrneos, que se julgavam muito espertos, apenas viam nisso um comportamento bizarro. [6: Trata-se um texto de origem pitagrica.] [7: Curta biografia de Tales de Mileto, um dos sete sbios da Grcia Antiga.] [8: Como recordava Goethe, ningum consegue ser heri para o seu criado de quarto!]

Isto deve-nos levar a uma ideia importante sobre a Filosofia. que esta, mesmo que nos parea estranha[footnoteRef:9], tem a ver com a realidade e, sobretudo, com a nossa vida. Apesar da sua estranheza, convenhamos que uma frmula matemtica, com os seus smbolos esquisitos, bem mais estranha. S no o achamos, porque sabemos que com a matemtica se podem construir pontes e casas. Essa utilidade imediata, afasta logo qualquer ideia sobre o carcter estranho e abstracto da matemtica. Ora, a filosofia no tem a ver com pontes e casas, mas com as pessoas que habitam as casas e passam nas pontes. E, de certo modo, tambm poderemos dizer que a Filosofia tambm tem a ver com pontes, a Filosofia permite lanar pontes entre o passado e o futuro, entre o oriente e o ocidente, o individuo concreto e o Homem na sua universalidade. Pontes bem importantes, por sinal! [9: Tambm se poderia dizer sobre a Filosofia que primeiro estranha-se, depois entranha-se!]

5.A alegoria da caverna de Plato e a atitude filosficaRecordemos o que nos conta Plato a alegoria da caverna do livro VII da Repblica. Em primeiro lugar deparamos com um grupo de homens agrilhoados no fundo de uma caverna, habituados a contemplar as sombras que iam sendo projetadas na parede de fundo para a qual estavam virados desde sempre. Esses homens, os prisioneiros da caverna, viviam numa situao ilusria, pois tomavam essas sombras como a nica autntica realidade existente. No entanto, as sombras eram o reflexo da realidade exterior caverna, de homens e mulheres que passavam no exterior. As sombras eram imagens, representaes empobrecidas (no eram a cores, no possuam densidade) da verdadeira realidade. Os prisioneiros viviam iludidos, enganados quanto verdadeira natureza da realidade. Consideravam que era real o que era apenas reflexo do real. At que um desses prisioneiros se liberta.O prisioneiro liberta-se quer dos grilhes que o acorrentavam permitindo que ele iniciasse a caminhada difcil para o exterior, como tambm se vai libertando, agora num ritmo mais demorado, da iluso em que vivia, simbolizado pelo mundo semi-obscuro em que estava(m) mergulhado(s). A sua libertao uma caminhada em direo verdadeira realidade, o mundo exterior caverna, que iro proporcionar um conhecimento verdadeiro. realidade autntica corresponde um conhecimento verdadeiro, tal como realidade ilusria correspondia um conhecimento iludido. uma caminhada para a luz, de tal modo que ter, no incio, dificuldade em enfrentar a luz. Plato quer-nos assim chamar a ateno para as naturais dificuldades que residem na via do saber; conhecer uma tarefa rdua, porque neste caso corresponde tambm a enfrentar e a superar as iluses com que se tinha desde sempre vivido. muito complicado ter que abandonar as nossas certezas e convices que se tinha sobre o mundo em que se vivia.No entanto, o prisioneiro que se liberta e ascende ao mundo exterior contempla com admirao e gozo a verdadeira realidade. At o seu prprio rosto contemplado pela primeira vez. A clebre divisa de Scrates, conhece-te a ti mesmo, aqui evocada atravs desse momento original em que o prisioneiro v, pela primeira vez, a si mesmo, descobre a figura do seu rosto. Este prisioneiro que chega ao verdadeiro mundo e ao verdadeiro conhecimento representa a figura do filsofo, tal como Plato a entende. Ele um indivduo excecional, que se libertou da condio em que vive a maioria das pessoas, presos nos seus dogmas e convices. O prisioneiro enfim libertado, o filsofo, chega pois ao verdadeiro mundo, bem distante do mundo de trevas e ignorncia em que se encontrava antes de proceder a esta ascenso. Apesar da beleza do mundo que descobre e da alegria que isso provoca, o prisioneiro recm-libertado no se esquece dos seus antigos companheiros de jornada. E decide regressar ao interior da caverna a fim de lhes transmitir a sua experincia e os convencer a acompanharem-no para o exterior. No entanto, a generosidade do filsofo no recompensada; antes pelo contrrio, os seus anteriores colegas, perante o que ele lhes transmite, vo julgar que ele est doido, vo ficar transtornados ou indispostos com o que ele lhes conta e vo mesmo chegar a vias de facto e tentaro elimin-lo. Plato sabe, pelo que aconteceu a Scrates, o seu querido mestre condenado morte pelo poder poltico de Atenas, que o filsofo corre sempre o srio perigo de ser incompreendido, de os outros no aceitarem o que ele lhes diz porque vai pr em causa as suas convices e certezas de sempre, que tinham formatado a sua mente e a sua maneira de ser e estar. No entanto, o filsofo tem responsabilidade para com os outros, sente que existe uma misso e um compromisso da Filosofia para com a comunidade humana. E por isso tenta reiteradamente fazer passar a sua mensagem libertadora. Mas h saberes que no podem ser transmitidos pelo discurso. H saberes que so to essenciais que apenas podem ser adquiridos atravs da prpria experincia. A libertao do Homem no um efeito do discurso, por mais belo que o discurso seja. Aqueles prisioneiros, os homens que ns somos, s se libertaro libertando-se. Uma verdade simples, uma evidncia diante dos nossos olhos, mas que mesmo assim nos escapa na maioria das vezes. Ora, uma das lies da alegoria da caverna de Plato que a libertao do homem passou por uma nova maneira de estar, em que ele prprio construiu o seu caminho, traduzindo-se esse esforo numa converso do olhar. Os outros continuaram prisioneiros na medida em que o seu olhar continuou dirigido para o mesmo lado; o seu olhar permaneceu igual ao que sempre foi desde o incio da sua vida. O que verdadeiramente os prende no so os grilhes e as cadeias, mas um olhar que se fixou, que cristalizou, que foi incapaz de acompanhar o movimento subtil da realidade.A atitude filosfica , se bem interpretamos o texto de Plato, uma mudana de perspetiva, o adquirir uma nova maneira de olhar e analisar e criticar a realidade.

5. A Caractersticas da atitude filosficaCom a expresso atitude filosfica pretende-se referir no um discurso ou um saber estruturado, mas antes uma maneira de estar e de olhar a realidade e os outros. Neste pargrafo nossa inteno descobrir o que h de especfico e prprio na atitude filosfica e que a distingue de outros saberes e olhares.Vejamos, ento, algumas das caractersticas da atitude filosfica.

6.HistoricidadeEsta caracterstica tem a ver com o facto de a filosofia, ou filosofias, serem determinadas pela poca que as viu surgir. Como qualquer produto cultural, tambm a filosofia se relaciona com os problemas prprios de cada poca, com as necessidades e anseios da sociedade. Se h problemas que so perenes, que nos vm desde os Gregos, o modo como so formulados tem sofrido modificaes. O problema da existncia ou no de vida para alm da morte e o problema da imortalidade da alma, tem sofrido alteraes no modo como tem sido colocado pelas diferentes pocas histricas e, consequentemente, pelos diferentes sistemas filosficos. Por outro lado, h outros problemas que so prprios das diferentes pocas histricas. O problema da liberdade nunca se colocou aos Gregos, enquanto na poca que antecede a Revoluo francesa, a questo da liberdade uma questo central. Hoje, os problemas ticos que a manipulao gentica da vida humana coloca constituem uma rea nova de problemas que nenhuma outra poca colocou. Noutro sentido, a historicidade uma caracterstica da atitude filosfica porque o homem que objecto da sua reflexo um homem situado, que s pode ser entendido enquanto ser rodeado de circunstncias prprias. O homem um ser de circunstncia, ou como dizia Ortega y Gasset, eu sou eu e as minhas circunstncias, querendo dizer com isso que o homem s se entende na relao que estabelece com o mundo que o rodeia. Dizia Marx[footnoteRef:10] que os filsofos no nascem como os cogumelos. Para o filsofo alemo, os filsofos no so um produto espontneo, mas sim o produto determinado da sua poca. Cada filosofia respira o ar do seu tempo, est impregnada pelo esprito do seu tempo, bem como recolhe das filosofias que a antecederam, a experincia e a riqueza da reflexo acumulada. nesse sentido que a historicidade constitui tambm o seu modo de ser. [10: Inserir referncia biogrfica.]

7.Radicalidade Com esta caracterstica pretende-se salientar o facto de a filosofia no se estruturar como uma viso superficial e acrtica da realidade, tal como o senso comum. Ao contrrio desta viso comum e emprica da realidade, a filosofia uma reflexo aprofundada e racional da realidade, que no se contenta com os aspectos superficiais que a constituem. Como a palavra indica, a filosofia vai at raiz dos problemas, investigando a primeira causa, o ltimo porqu, no se contentando com respostas imediatas e superficiais. Partindo do pressuposto que a essncia das coisas no reside na sua aparncia, mesmo que esta a constitua, o conhecimento da verdade implica uma ateno e vigilncia constantes, bem como uma postura inquieta e insatisfeita, que a leve constantemente a ultrapassar esse plano imediato da aparncia. Como afirmava Heraclito, a essncia das coisas gosta de jogar, no sentido de um permanente ocultar-se. A radicalidade enquanto caracterstica da atitude filosfica significa, igualmente, que a filosofia ope-se ao senso comum, no se prendendo s informaes imediatas dos sentidos. que para captarmos a verdadeira essncia das coisas no podemos ficar pela aparncia que dada aos sentidos, mas devemos fazer uso da razo crtica. Como afirmava um provrbio chins, enquanto o sbio aponta para a Lua, o tolo olha para a ponta do dedo, querendo com isso significar que existe aqui uma diferena essencial de perspectiva de encarar a realidade.

7-A.UniversalidadeA Filosofia ajuda-nos a desenvolver uma viso do mundo, uma concepo do mundo. Uma viso que ultrapassa a nossa vivncia quotidiana e a perspetiva imediata que da decorre.A viso do mundo que desenvolvemos reflete sobre o homem enquanto ser universal, reflete sobre a condio humana. Mesmo que se parta dum homem concreto e situado e do seu viver circunstancial, a filosofia eleva-se ao universal ao refletir sobre a condio humana no homem particular que vive, sofre e se emociona, a Filosofia v a Humanidade viva, sofredora e emocionada. A Filosofia e a sua reflexo, atravs duma perspetiva totalizadora, elevam-nos ao universal.

8.Autonomia em relao cincia e religioA filosofia apresenta-se como um saber distinto da cincia e da religio. com base nesta distino que podemos falar de autonomia da atitude filosfica. A filosofia no uma cincia, distingue-se da cincia por possuir um mtodo e um objecto que so distintos dos mtodos e objecto das cincias. Em relao ao mtodo, verificamos que as cincias se foram constituindo enquanto saberes especficos na medida em que construram mtodos prprios, baseados no mtodo experimental. A filosofia um saber especfico que no pode recorrer experincia; a filosofia, em termos gerais, baseia-se no mtodo reflexivo a reflexo racional e crtica o seu mtodo. Tambm ao nvel do mtodo a reflexo filosfica exibe a sua especificidade. Enquanto que cada cincia foi delimitando um objecto prprio e especfico e que correspondia a uma zona delimitada do real, a reflexo filosfica faz da totalidade, o ser enquanto ser, a realidade em si mesma, a condio humana, o seu objecto. Diz-se que o todo o objecto da filosofia, enquanto que cada cincia tem como objecto uma determinada parcela do real.Mas a atitude filosfica tambm se constitui autonomamente em relao religio. As religies, monotestas ou politestas, sempre fizeram da f a caracterstica essencial da postura do homem religioso. Uma f que lhe permite relacionar-se com uma entidade que lhe apresentada dogmaticamente. Ora, a atitude filosfica no apela f, mas antes baseia-se num exame livre e racional dos seus postulados. E estes postulados estaro sempre sujeitos ao livre exame.

9.O carcter discursivo do trabalho filosficoA Filosofia no pode deixar de trabalhar com a palavra e com os textos que corporizam a(s) palavra(s). Por isso nos referimos ao carcter discursivo da Filosofia e do trabalho filosfico. A Filosofia vive de textos. assim que os filsofos expem as suas ideias, discutem as ideias dos outros, tomam posio sobre os problemas. Oral ou escrito, o texto filosfico essencial para a reflexo. E, atravs dos textos, os filsofos argumentam, justificam e adiantam razes que apoiam as ideias (as teses) que defendem. O carcter discursivo da Filosofia implica uma definio to rigorosa quanto possvel das palavras e dos conceitos que utiliza, bem como coerncia na articulao entre os conceitos.

10.Filosofar argumentarO que argumentar? Argumentar apresentar razes em defesa de uma determinada tese, duma determinada posio [ver Posies de L Althusser].O texto filosfico por essa razo, um texto eminentemente argumentativo, que avana argumentos. Na filosofia, porque no estamos diante duma cincia exacta, as posies que se tomam no so evidentes, nem podem ser demonstradas matematicamente. Portanto, temos que argumentar. Ora, o que um argumento? Basicamente, um raciocnio que encadeia premissas e concluses, onde as concluses se retiram das premissas apresentadas, ou onde, uma vez aceites determinadas premissas, somos conduzidos pela fora mais ou menos persuasiva da ligao (concatenao) estabelecida entre as premissas e as concluses.

11.reas e temas abrangidos pela FilosofiaTendo a totalidade como objeto da sua reflexo, logo possvel constatar que so mltiplos os assuntos e os temas que cabem na discusso filosfica, originando-se, por essa razo, disciplinas filosficas, tambm elas variadas para darem conta dessas variadas problemticas. No campo da reflexo sobre o homem enquanto membro de um grupo e vivendo numa dada sociedade[footnoteRef:11], podemos indicar algumas disciplinas filosficas que sero a pertinentes: a axiologia que se dedica ao estudo dos valores, a tica que estabelece e conduz reflexo sobre os princpios que devero orientar a ao humana e a filosofia poltica, que perspetivar o homem como um animal poltico refletindo sobre o futuro da comunidade humana. [11: J Fichte afirmava que o homem s homem entre os homens Das man ist nr ein man unter den Menschen. ]

J no campo da reflexo sobre a linguagem, a sua origem e natureza ocupa um espao prprio na reflexo filosfica. A v-se delimitar algumas disciplinas filosficas como sejam a filosofia da linguagem, a filosofia analtica e a hermenutica.No campo do conhecimento vemos discutir-se desde a natureza do conhecimento, existncia ou no de uma ruptura entre o conhecimento do senso comum ou conhecimento vulgar e o conhecimento cientfico (e as suas implicaes ticas) e o problema da verdade. Esta constelao de problemas gerou o surgimento de vrias disciplinas filosficas como sejam a gnoseologia, epistemologia e a teoria do conhecimento.A experincia humana, enquanto conjunto de acontecimentos humanos significativos, tambm objeto da filosofia. A experincia poltica, do homem enquanto cidado, habitante da cidade (polis), a experincia esttica, do homem enquanto produtor e espetador do belo artstico e a experincia religiosa, do homem relacionando-se com a transcendncia, afirmando-a ou negando-a, tambm geram disciplinas no seio da filosofia: tica, esttica e filosofia da religio.Finalmente, cabe tambm Filosofia a reflexo sobre a natureza e estatuto de entidades que se situam para alm do mundo fsico, que o do nosso viver dirio. Disciplinas como a metafsica e a ontologia movem-se precisamente nesse mundo inteligvel.

12.O que leva o homem a agir? Segundo Fernando SAVATER, o perptuo inacabamento da realidade humana a essncia da nossa condio humana; a inquietude o corao do nosso corao e ser humano consiste em procurar constantemente a frmula da vida humana[footnoteRef:12]. O homem nasceu cedo demais, antes de estar desenvolvido e preparado para enfrentar o mundo. A sua interveno, desde muito cedo, no meio que o rodeia intenta colmatar essas insuficincias que o homem traz consigo, esse inacabamento, esse ser-em-vias-de. A imperfeio inicial obriga o homem a agir. Por isso, o homem tambm projeto, ser que se lana para diante ou permanentemente lanado para diante, para o seu futuro. [12: Cf. Fernando SAVATER, A coragem de escolher, Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 2004, p. 30.]

O homem, desde sempre, que tentou construir um mundo mais habitvel, medida das suas necessidades, dos seus desejos e projetos. O meio que ele encontra no incio, nem sempre est disposto da forma mais favorvel aos seus intentos. A hostilidade do meio leva o homem a ter que agir. Por isso, ele tem que transform-lo de acordo com as suas necessidades, tem que torna-lo mais amigvel, mais habitvel tem de agir. A cultura representa esse esforo incessante que resulta do confronto do homem com a Natureza e o resultado dessa aco transformadora. Esse esforo traduz-se no trabalho, num conjunto de actividades tendentes a transformar a Natureza, produzindo coisas novas e transformando as j existentes. O homem age, produz o seu prprio mundo, trabalha e por toda a parte deixa marcas da sua actividade. O mundo a sua casa, mas o homem tem de vencer a hostilidade inicial desse mesmo mundo.

13.Sentidos da palavra ao usados na linguagem quotidiana e que no devero ser considerados neste mbitoQuando falamos aqui de ao estamos a referir-nos a ao humana. No entanto, no dia-a-dia, referimo-nos tambm ao dos animais e ao dos elementos. Trata-se dum uso imprprio. Como veremos mais adiante (15) a ao humana corresponde a algo que fazemos de forma consciente e voluntria. Isso no est presente no comportamento dos animais. O co que abana a cauda, no o faz porque isso resulte duma deciso do co ao ver o dono trata-se no duma ao, mas antes duma reao do animal Do mesmo modo, podemos falar da ao da chuva ou da ao erosiva do vento. Porm, nem a chuva nem o vente agem: no actuam segundo a sua vontade nem muito menos tm disso conscincia.

14.A aco humana constitui uma interveno planeada e pensadaAo contrrio do animal que age por instinto, irreflectidamente e de acordo com a sua memria gentica, o homem age reflectidamente, analisa, pondera e decide de acordo com a avaliao que faz do meio que o rodeia, das oportunidades e obstculos, bem como das suas capacidades e instrumentos postos sua disposio.A ao humana, em sentido lato, significa a produo de efeitos, o que implica que algo modificado ou transformado. Com efeito, agir tem como consequncia, na maioria das vezes, uma modificao da realidade que cerca o sujeito. Nesse sentido, a ao humana constitui uma interferncia do homem no decurso dos acontecimentos, a produo e provocao de efeitos na realidade que o cerca. Foi atravs da ao dos homens que o mundo se foi tornando num lugar mais acolhedor, de acordo com as suas necessidades, desejos e projetos.No entanto, devemos entender que a ao no se caracteriza apenas pela produo de efeitos externos. Por exemplo, podemos falar duma ao interior, do sujeito sobre si mesmo. Por outro lado, a aco, enquanto algo de exterior e visvel corresponde exteriorizao e concretizao do pensamento. Embora possamos dizer que h pessoas que em determinados momentos agem sem pensar, tal afirmao no rigorosa; o que se deveria dizer que o pensamento que antecedeu a aco foi insuficiente ou desadequado em relao realidade onde pretendia intervir. Na maioria dos casos, o homem antecipa o que pretende fazer e tenta agir de acordo com o que planeou. Se as coisas no correm como planeado, tal deve-se a diversos fatores, desde uma insuficiente ou desajustada anlise e ponderao at interveno de causas inesperadas ou imponderveis.14. - ADevemos distinguir o plano do agir do plano do acontecer e a ao da reaoNo sentido de percebermos o que a ao, devemos proceder a algumas distines e esclarecer melhor o que o agir. Na nossa vida so muitas as coisas que nos acontecem. Por exemplo, ficarmos constipados ou cair-nos uma bola na cabea. Isso so acontecimentos, no so aes do sujeito, mas algo que aconteceu ao sujeito. Tambm acontece que nalgumas situaes temos reaes automticas, instintivas. Por exemplo, quando algo nos passa inesperadamente diante dos olhos e, automaticamente, os fechamos, como defesa. Trata-se, no de uma ao, mas de uma reao, algo que fizemos sem pensar ou planear. Se tivssemos que pensar e planear a nossa resposta perante o inseto voador que se dirigia para o nosso rosto, acabaramos por no responder convenientemente a essa ameaa. Pensemos tambm, a ttulo de exemplo, nas reaes que podemos ter quando andamos de bicicleta e um obstculo surge inesperadamente nossa frente: ns reagimos automaticamente, desviando-nos desse obstculo ou travando como uma reao por instinto. Se pensssemos na resposta que devamos dar perante o surgimento do obstculo, perdamos o tempo til de resposta e acabaramos por no conseguir evitar o choque. Do mesmo modo que distinguimos o plano do agir do plano do acontecer, tambm devemos distinguir o que uma ao do que uma reao.

15.A conscincia e a vontade so elementos que caracterizam necessariamente a ao humana; o agir pressupe uma atividade consciente e voluntriaAs nossas aces so algumas das coisas que ns fazemos. Nem tudo o que fazemos constitui uma aco. O fazer abrange um campo de actividades e acontecimentos mais amplo que aquele que designado pelo agir. Tudo quanto realizamos parte da nossa conduta, mas nem tudo o que realizamos constitui uma aco. Fazer coisas um aspecto de que se reveste a aco, mas no a esgota. Realizamos coisas inconscientemente, enquanto dormimos; no temos conscincia de que as realizamos isto no so aces. Por outro lado, h coisas que fazemos, mas que no correspondem a uma deliberao da nossa vontade. H coisas que fazemos conscientemente, mas sem inteno, ex.: tiques nervosos, actos reflexos realizamos isso involuntariamente, apesar de termos disso conscincia, constatamos isso enquanto espectadores e no enquanto agentes. O que fazemos involuntariamente tambm no constituem aces. Reservamos o termo aco para as coisas que realizamos consciente e voluntariamente e que, nalguns casos mobiliza um saber e um poder tcnicos. A conscincia e a vontade so elementos integrantes e caracterizadores da aco. S devemos chamar aces aos aspectos da nossa conduta de que damos conta (de que temos conscincia, que fazemos conscientemente) e que efectuamos intencionalmente, isto , com inteno, ou seja, voluntariamente.Portanto, as aes correspondem quilo que realizamos consciente e voluntariamente, no sendo aco do homem o que este realiza estando apenas presente uma daquelas caractersticas. Actos do homem so aquilo que realizamos ou sem termos conscincia disso ou sem que isso corresponda nossa inteno ou vontade. As aces humanas tm que ser, simultaneamente, conscientes e voluntrias. Conscientes, isto , quando o sujeito age, ele tem de saber que est a agir e que a sua aco corresponde ao que projectou e desejou. Voluntrias, isto , as suas aes devero ser a concretizao da sua vontade, da sua inteno, fazendo aquilo que quis ou desejou.

Diz-me o que fazes e dir-te-ei quem sQuando escolho o curso ou a profisso que quero seguir, no sou apenas o autor das aes que se seguiro em funo dessa escolha, como me irei definindo atravs dessas aes. Aquilo que farei ir contribuir para o desenvolvimento da minha identidade. Eu no sou apenas aquilo que fao e que escrutinado pelos outros, mas tambm a soma dos meus desejos e projetos, bem como das minhas frustraes, daquilo que tentei fazer e no consegui. A minha identidade, o que eu sou, um processo, um permanente movimento, onde as minhas aes constituem elementos determinantes para essa construo da identidade.

16.A importncia da presena da conscincia e da vontade no agir do homemQual a importncia da presena dos elementos conscincia e vontade na ao humana? Para responder a esta pergunta vamos analisar as trs situaes seguintes, partindo do princpio que te caber a ti avaliar e julgar o comportamento dos sujeitos implicados. Imagina, por exemplo, que s o juiz destes processos e eras que proferir uma sentena

17.Movimento / acontecimento e acoDizer: estico o brao para mostrar que dou uma volta produzir um enunciado que no pode situar-se na mesma categoria que o enunciado o brao levanta-se: este descreve um movimento, aquele uma aco; este descreve um movimento que observado por um espectador, o segundo descreve uma aco do ponto de vista do agente que a fez.[footnoteRef:13] [13: Paul RICOEUR, O Discurso da Aco, p.13]

Movimento e aco no so o mesmo. Dum ponto de vista dinmico, no movimento est implicada a noo de causa com um sentido meramente mecnico, enquanto que na aco est presente a noo de motivo. Do mesmo modo, como j vimos, a ao no um acontecimento, isto , algo que acontece. O que acontece um movimento enquanto observvel, desprovido de inteno ou motivo. Se o homem surge a implicado no o enquanto agente, entidade activa, mas enquanto sujeito passivo. Conduzir um automvel corresponde a uma aco que eu realizo. Ter um furo algo que me acontece, um acontecimento para o qual eu no tive nenhum contributo, onde no se manifesta a minha inteno. Matar uma galinha corresponde a uma ao. A galinha morrer constitui um acontecimento, um facto.

18.A rede conceptual da ao: ao intencionada e ao causadaUma ao intencionada ser uma ao que desenhada de acordo com a nossa inteno. Com os fins que desejamos atingir e com a nossa vontade ao servio da concretizao desses mesmos fins.Uma ao intencionada uma aco onde est presente a conscincia do indivduo, a ponderao de opes, onde existe uma escolha entre diferentes vias, uma deciso que se associa igualmente nossa vontade, inteno e motivaes. Como afirma William JAMES, a procura de fins futuros e a escolha dos meios prprios para o alcanar so, assim, a marca e o critrio da presena da mentalidade num fenmeno. Diferente o caso de uma ao causada. Esta uma ao explicada por determinantes genticas, ambientais, histrico-culturais ou outras , onde o elemento intencional, racional e tico no visvel, ou se encontra diminudo ou eliminado face ao peso e influncia daquelas determinantes.Consoante o peso que atribumos influncia daquelas determinantes ou influncia da nossa vontade, assim se formaram duas perspectivas opostas acerca da dependncia da nossa aco em relao s causas exteriores ou em relao deliberao da nossa vontade.

19.Perspectiva determinista e perspectiva baseada na aco intencionadaSegundo a perspectiva determinista ns somos determinados por causas, somos o produto de causas; toda a aco humana explicada e determinada por factores que tm a ver com a nossa natureza animal, com os nossos genes, com a nossa biologia, por um lado; e com factores que tm a ver com a sociedade, a poca, a educao ou ainda com factores externos de diversos tipos e que nos ultrapassam (acasos, acontecimentos, obrigaes ditadas por outras pessoas, et.). A nossa liberdade est assim condicionada por esses factores que acabam por funcionar como os verdadeiros autores daquilo que fazemos e das nossas aces. O sujeito como que se apaga diante desses factores.Pelo contrrio, quanto perspectiva baseada na aco intencionada, h dentro de ns e nas nossas aces factores racionais, graus de liberdade, elementos que ultrapassam as causas em si mesmas; h projectos e h intenes; logo, o indivduo est acima das condicionantes ambientais, biolgicas ou outras, escapa desses factores e como que age exclusivamente partindo da sua vontade imune a esses factores e ao meio onde o sujeito est.

20.Combinando causas e intenes; o homem simultaneamente livre e determinadoSomos, por um lado, produtos de genes e produtos da educao e de uma poca, logo, seres sujeitos a essas condicionantes. A nossa inteligncia, as nossas capacidades racionais tm limites. E isso permite ultrapassar, de certa maneira e a alguns nveis, as causalidades de base, as determinantes e condicionantes. Temos tambm livre-arbtrio, ou seja, capacidade de optar entre o bem e o mal. Em concluso, h, simultaneamente, causalidade e intencionalidade nas nossas aces. Somos livres sem o poder ser de uma forma absoluta. No podemos ou no conseguimos realizar tudo o que projectamos ou idealizamos. Por vrias razes. A comear, o nosso corpo , de certa maneira, um limite e uma limitao dos planos da nossa vontade. O meu corpo um limite minha liberdade, apesar de ser, igualmente, um instrumento e o meio atravs do qual eu posso realizar a minha liberdade.Mas a realidade que me rodeia tambm constitui uma limitao minha liberdade e, portanto, para a minha ao. Por mais vontade que eu tenha de ser pescador, se viver no interior, longe do mar ou de um lago ou de um curso de gua, o meu projeto de vir a ser pescador est fortemente condicionado. O meio, para alm de poder ser um manancial de oportunidades, tambm uma fonte de obstculos e dificuldades. [a continuar]

21.Aes voluntrias, atos involuntrios e reflexosAs aces intencionadas so aces voluntrias, ou seja, assentes no nosso querer, na nossa razo, no pensamento. Nisso distinguem-se das aces involuntrias e das aces reflexas. Parte dos nossos actos comandada por impulsos e desejos porventura divergentes e difceis de gerir. As nossas pulses agressivas e as nossas pulses sexuais so exemplos disso. Os actos que se associam aos nossos instintos, aos nossos reflexos, nossa natureza animal, ao nosso lado irracional e emocional, ou que nos so impostas por terceiros ou pelas autoridades, so actos involuntrios. Ao contrrio, as aces intencionadas so voluntrias.

22.O agente da ao e a relao causalToda a aco depende de um sujeito, isto , de um agente, tal como toda a inteno sempre inteno de algum. Do mesmo modo, procurar os motivos de uma aco leva-nos a interrogaes que nos conduzem ao agente. O agente , assim, uma espcie de causa da aco. Por isso, afirma RICOEUR que atribuir uma aco a algum , em primeiro lugar, identificar o sujeito da aco.[footnoteRef:14] Trata-se de saber a quem pertence tal e tal aco. A atribuio de um autor a uma aco pode ser uma tarefa simples, mas tambm pode ser uma tarefa complicada. Por exemplo, quando consideramos as consequncias longnquas de uma determinada aco. [14: RICOEUR, Paul, op. cit., p. 61]

Vejamos este exemplo:O Antnio est conduzindo um automvel a toda a velocidade para o Hospital da cidade, porque a sua mulher entrou em trabalho de parto. Entretanto, Manuel, que estava janela, v o automvel aproximar-se a toda a velocidade, ao mesmo tempo que em frente ao seu prdio dois midos jogam bola. Tenta avis-los e debrua-se da janela, caindo. Felizmente que Manuel cai em cima do toldo da mercearia e no lhe acontece nada. O seu velho tio, que estava na sala, assiste queda de seu sobrinho Manuel. Como est numa cadeira de rodas e no se pode deslocar no chega a saber que est tudo bem com Manuel, apenas uns estragos no toldo da mercearia do Sr. Jos. Graas queda, os midos param de jogar bola e o automvel de Antnio passa a toda a velocidade, sem acontecer nada. O mesmo no se pode dizer do pobre tio do Manuel. Ao ver o seu querido sobrinho cair da janela, teve um ataque de corao que foi fatal. Quando Manuel regressou a casa, encontrou o seu tio j sem vida.

Ser que podemos atribuir a Antnio, que despoletou este processo conduzindo a alta velocidade, as consequncias do mesmo, incluindo a a queda do Manuel e a trgica morte do seu tio. A quem que o senhor Jos da mercearia pode pedir que lhe paguem um novo toldo. esposa de Antnio? E porque no ao seu futuro filho que se lembrou de acelerar o seu nascimento? E poderemos acus-lo de homicdio involuntrio, ainda no tendo nascido? evidente que esta situao uma caricatura. Mas d para ver as dificuldades que podero existir na identificao de um agente da aco, bem como da importncia dessa mesma identificao, como neste caso de apuramento de responsabilidades. A tarefa pode ser complexa, mas h casos em que pode ser fundamental. Imagine-se um choque em cadeia em que entrem vrios automveis... Ou pensemos em situaes em que um crime cometido em regime de co-autoria, isto , onde vrios agentes concorreram para o cometimento da mesma aco e onde podero existir meros cmplices. fundamental saber quem so os autores da aco e determinar o grau de participao na aco de cada um deles de forma a poder, no caso do crime comparticipado, estabelecer a pena ajustada que ser necessariamente diferente para cada um deles.

23.Estabelecer um motivo responder ao porqu e explicar e legitimar a aoO estabelecimento de um autor para uma aco leva-nos a uma outra noo fundamental na estrutura da aco. Trata-se da relao causal, a relao entre dois acontecimentos, onde um causa do outro, e este efeito. Mas identificar a relao causal no o mesmo que estabelecer o motivo da aco, j que neste caso estamos diante de uma ligao mais ntima e/ou interior na aco que vem justific-la, torn-la legtima, necessria. O motivo, ao responder questo do porqu esclarece a aco, torna-a inteligvel. Entre os modos de tornar inteligvel uma aco relacion-la com normas. A razo de ser de uma aco no apenas a explica, como a legitima. nesse sentido que vai o texto de RICOEUR: [...] a relao causal uma relao contingente no sentido de que a causa e o efeito podem identificar-se separadamente e que a causa pode compreender-se sem que se mencione a sua capacidade de produzir tal ou tal efeito. Um motivo, pelo contrrio, um motivo de: a ntima conexo constituda pela motivao exclusiva da conexo externa e contingente da causalidade.[footnoteRef:15] [15: Paul RICOEUR, O Discurso da Aco, p. 51]

24. Inteno e motivo

Inteno e motivo so noes conexas; o motivo motivo de uma inteno. [...] A relao to estreita que, em certos contextos, motivos e intenes so indiscernveis, em particular quando a inteno explcita. [...] pode, no entanto, dizer-se que, inclusive, nos casos de extrema proximidade, inteno e motivo se distinguem em virtude de no responderem mesma pergunta: a inteno responde pergunta qu, que fazes? Serve, pois, para identificar, para nomear, para denotar a aco (o que se chama ordinariamente o seu objecto, o seu projecto); o motivo responde questo porqu? Tem, portanto, uma funo de explicao; mas a explicao, j vimos, pelo menos nos contextos em que motivo significa razo, consiste em esclarecer, em tornar inteligvel, em fazer compreender. (Paul RICOEUR, O Discurso da Aco, pp. 50-51)

25. O trabalho humano e a actividade dos animaisO que distingue o pior dos arquitectos da abelha mais habilidosa?O que distingue a aco humana da actividade dos animais?No homem ns temos presente a conscincia da sua aco, bem como dos resultados da mesma. O resultado da aco humana pr-existe idealmente, na cabea do agente, exteriorizao da mesma. O homem planeia a sua actividade e prev os seus resultados; existe no sujeito humano um trabalho de concepo mental que prvio sua execuo. Pelo contrrio, o animal age instintivamente, obedece aos seus instintos e actua no plano do imediato. O animal no ultrapassa o momento imediato, situa-se no plano do aqui e agora. O animal no age, antes reage. O homem no dominado pelos instintos, antes concebe e aplica um plano: o que a sua mo realiza foi concebido previamente pelo crebro. O trabalho manifesta a inteligncia criadora do homem sobre a realidade envolvente. Neste sentido, apesar de tudo, existe uma superioridade do arquitecto mais desastrado sobre a abelha mais capaz.Afirmava PROUDHON em Cration de lordre dans lhumanit: O trabalho a ao inteligente do homem sobre a matria. O trabalho o que distingue (...) o homem dos animais; aprender a trabalhar o nosso objetivo sobre a terra.

26.O trabalho enquanto forma particular de ao. Trabalho e projeto.Tal o trabalho humano: um plano que convida realizao, uma previso que leva efectivao, uma inteno que precede o acto, o interior do homem que se exterioriza e que, graas a essa exteriorizao, se enriquece e se reconhece. O trabalho humano une a mo e o crebro, o crebro tem necessidade da mo para se manifestar enquanto a mo no pode agir sem que o esprito a dirija.[footnoteRef:16] [16: Henri ARVON, A filosofia do trabalho, p. 43.]

No mbito da aco, o trabalho representa uma das suas formas particulares. Decerto, a mais essencial e fundamental, tendo em conta a longa caminhada da humanidade e o seu constante esforo no sentido de dominar a natureza e coloc-la ao seu servio.Existe no homem a dimenso do projecto.S o homem existe na dimenso do projecto. S o homem projecta. E projectando-se, projecta-se, o homem projecta-se. E porque se projecta que se pode rever na obra produzida. S h projectos para o futuro. O futuro o tempo prprio do projecto, mesmo quando este se formula no tempo presente.Ele encontra-se v-se a si mesmo na obra que realiza. O mundo sua volta, que obra sua, ainda o homem realizando-se. Quando olhamos para as coisas que fazemos, vemos nelas um pouco da nossa histria.

A obra reflete a imagem do esprito que a concebeu. Essa imagem permanece confusa enquanto a obra serve apenas a satisfao das necessidades vitais, torna-se ntida medida que a obra se desembaraa de toda a necessidade exterior para atingir a gratuitidade. ento que o trabalho, que descoberta do homem por si prprio, cumpre totalmente a sua funo.[footnoteRef:17] [17: Henri ARVON, A filosofia do trabalho, p. 41,]

O trabalho realiza o homem, exterioriza as suas expectativas, os seus desejos, os seus projectos. Tal como a aco manifesta o homem. O resultado da sua aco o homem exteriorizado.Ao agir, exteriorizo-me, manifesto a minha essncia, isto , aquilo que sou qualquer obra reflecte o seu autor e isso ainda mais evidente na criao artstica. Aqui, o agente criador, livre de toda a necessidade e presso, possui toda a disponibilidade para agir e criar de acordo com a sua vontade e imaginao, dando largas sua subjectividade. Nesse sentido, ser ao nvel da criao artstica que a obra melhor revela a essncia do seu criador. A sinfonia n 3 de Beethoven reflecte melhor a sua personalidade que o conjunto de listas de compras que ele tenha elaborado durante toda a sua vida. A obra de arte a obra que exprime melhor aquilo que o seu autor , pretende ser e / ou pretende que os outros vejam nele.

27.Aco livre e responsabilidadeEm que condies que podemos falar de uma ao livre? Ora, a ao s livre quando o sujeito age de acordo com a sua vontade, consciente do que est a fazer e das consequncias que dessa ao resultem. O sujeito no age livremente porque no existam limites ao seu agir; antes pelo contrrio, o sujeito livre e age livremente porque reconhece as limitaes e joga com elas, tira partido dessas limitaes. Ora, a partir do momento em que o sujeito age livremente, pode ser responsabilizado pelo que acontea. responsvel pelos seus atos e suas consequncias.S o sujeito que age livremente que responsvel pelos seus actos e pelas consequncias dos seus actos. S aquele que age voluntariamente est em condies de assumir plenamente a autoria dos seus actos e s a esse sujeito que possvel exigir responsabilidades. Se a vontade do sujeito fosse manipulada ou adulterada, ento nunca poderia ser responsabilizado pela sua aco, mas seria sim aquele que dominaria a vontade do sujeito. Se apontam uma arma cabea do sujeito para que ele furte um sabonete do supermercado, no pode ser totalmente responsabilizado por esse furto. Se a sua vontade estava a ser condicionada dessa maneira, ao ponto desse sujeito agir contra a sua vontade, no se lhe podem assacar responsabilidades pelo furto do sabonete. A responsabilidade deve cair sobre quem apontava a arma.S um sujeito livre pode ser considerado responsvel e responsabilizado. Ser responsvel ou ser responsabilizado significa que deve arcar com as consequncias da ao, isto , do que acontece como consequncia da ao. Quando ele responsabilizado, vai arcar com o peso da sua deciso. Por isso, um sujeito que se sabe responsvel, no decide de nimo leve, de forma imediata, no ponderada. Ele sabe que a sua ao inicia uma srie de reaes em cadeia. Com o seu agir a realidade transforma-se e j no mais igual ao que era. por isso que, em termos do direito, a responsabilidade assume-se repondo a realidade tal como era antes da interveno do agente. S h lugar a indemnizao em dinheiro quando j no possvel a reposio da situao original[footnoteRef:18]. Em termos jurdicos (que segue de perto o significado filosfico) aquele que responsvel aquele que autor da ao e que deve repor o estado de coisas anterior ocorrncia da ao danosa. Por exemplo, se o meu automvel destruir o muro do vizinho e eu for responsabilizado por isso, ento serei eu o responsvel e quem deve repor o muro tal qual ele existia antes do automvel o ter destrudo (aco danosa). Portanto, ser responsvel significa ter que, aguentar com as consequncias. No caso, reconstruir o muro ou indemnizar o dono do muro, dando-lhe a quantia de dinheiro que compense o dono do muro do prejuzo que teve ou possa ter enquanto o muro no for reconstrudo[footnoteRef:19]. [18: Era o que aconteceria, por exemplo, se algum destrusse um quadro pintado por um pintor famoso. Seria impossvel repor a situao original.] [19: Imagine-se que, enquanto o muro est destrudo e aproveitando esse facto, fogem-lhe da sua propriedade, o rebanho de ovelhas que ele possua. Neste caso a indemnizao deve contemplar este prejuzo. Como tambm pode contemplar os lucros que o dono do muro deixou de ganhar. Imagine-se que durante o tempo que o muro est destrudo algum vem adquirir essa propriedade por um valor inferior por causa do muro destrudo.]

28.A culpa. Negligncia e dolo.Prximo da noo de responsabilidade temos a noo de culpa. A culpa o sentimento que o sujeito experimenta quando sabe que responsvel por determinada aco. Associada noo de culpa est a noo de inteno: o culpado da situao x aquele que teve a inteno de provocar a situao x. Isto quer dizer que agiu com a vontade de provocar a situao x. Ser, pois, culpado pela situao x. No sistema penal portugus distinguem-se dois graus de culpa: negligncia e dolo.Agiu com negligncia aquele que agiu descuidadamente, possuindo o dever de agir doutro modo, e nesse sentido responsvel pela situao criada. Imaginemos a seguinte situao: Antonieta, funcionria do jardim-escola no se apercebeu que uma criana que estava sua guarda tinha corrido para a estrada onde foi atropelada por um automvel. Veio a provar-se que Antonieta, naquele momento, estava a mandar uma mensagem pelo telemvel para a namorada. Neste caso ser culpada por negligncia. O que no o mesmo que agir dolosamente. Neste caso, agiu com dolo aquele que agiu com a inteno de provocar uma determinada situao.Veja-se o caso de uma funcionria do jardim-escola, Belarmina, que dissesse criana (filha de um ex-namorado que ela detesta) para ir brincar para o meio da estrada sabendo que assim iria ocorrer um acidente. Nas duas situaes existe culpa, mas em graus diferentes: Antonieta foi negligente, mas Belarmina atuou dolosamente. por isso que na atribuio de uma pena o juiz ir distinguir se o arguido agiu negligentemente ou dolosamente. A negligncia uma forma de culpa menos censurada ou penalizada que o dolo[footnoteRef:20]. [20: Para o nosso Cdigo Penal existem at atuaes que s sero crimes em caso de dolo; a negligncia no penalizada do ponto de vista do Direito. Como veremos mais frente, isso no significa que no haja um juzo de censura social e a negligncia no seja penalizada do ponto de vista moral.]

29.Algumas notas sobre o existencialismoO existencialismo uma filosofia qual est ligado o nome de Jean-Paul Sartre, como seu principal representante. As principais obras deste autor vieram a lume na segunda metade do sculo vinte.Para aquele filsofo distingue-se a essncia da existncia. No mundo das coisas, a essncia anterior existncia. Uma cadeira definida previamente na cabea do carpinteiro que a projecta e s depois a passa a existir. No caso da cadeira, primeiro esta (na cabea e nos planos do carpinteiro) e s depois que existe. A existncia da cadeira est condicionada e limitada por aquilo que o seu criador planeou previamente. No caso do homem, passa-se algo completamente diferente. Segundo Sartre existe no homem uma anterioridade da existncia sobre a essncia. Isto quer dizer que o homem primeiro existe e s depois que , quer dizer, s depois que se vai definindo, construindo as suas qualidades. Para Sartre, Deus no existe e, portanto, no existe nenhum ser que criou o homem. Ningum criou o homem. ele que se cria a si mesmo. Para isso, primeiro existe e s depois que a existncia anterior essncia. No caso do homem, ele no est limitado por nenhum plano prvio. O homem no tem que conformar a sua vida segundo o projecto de um Deus qualquer. Porque Deus no existe, o homem radicalmente livre, ele que se inventa a si mesmo, ele que cria a sua essncia, ele que constri o que quer ser. O homem no encontra nenhum sinal, nem nenhuma indicao a mostrar-lhe o caminho que deve seguir. Segundo o Existencialismo, cada homem livre para seguir o que quiser. Mais, como dizia o poeta espanhol Antonio Machado, no existem caminhos, fazem-se a caminhar. Se Deus existisse, o homem no era livre, pois a sua existncia estava determinada e ele teria que existir de acordo com essa essncia. Sem Deus, cada homem est s e sem desculpas ou como diz a cano no h estrelas no cu / a dourar o meu caminho. O homem livre para o fazer, como tambm responsvel e responsabilizado por isso. A todo o momento, o homem escolhe, mas no existe ningum a indicar-lhe um caminho. O homem s se escuta a si mesmo, ele que constri a sua essncia. Se Deus existisse e tivesse criado o homem, este poderia sempre admitir a vontade divina como responsvel por aquilo que ele e desculpar-se com isso. Deus d jeito a quem no quer arcar com o peso da responsabilidade, quem quer fugir diante das suas responsabilidades. Neste sentido, quem acredita em Deus v nele um bom refgio para demitir-se da construo da sua essncia e da prpria realidade. Quem no acredita, tem de ficar com o peso e as consequncias da sua escolha.

30.Classificao das condicionantes da aco humanaO homem um ser completamente exposto s influncias do meio social, cultural e natural, sempre aberto aos outros, completamente permevel s influncias do exterior. Por outro lado, um ser inacabado e imperfeito, donde a necessidade de agir, de se transformar e transformar a realidade de acordo com as suas necessidades. O homem no , assim, um ser fechado sobre si mesmo. Por isso se diz que o homem um ser de relao. Tambm no mesmo contexto de ideias, note-se a afirmao do Ortega y Gasset: Eu sou eu e a minha circunstncia. Com esta afirmao o filsofo espanhol quer-nos dizer que na identidade e no conhecimento de qualquer um teremos de ter em conta o contexto em que o prprio sujeito se encontra. O homem no se pode definir isolado da realidade e dos outros. A sua estrutura anatmica-fisiolgica aponta precisamente para essa interpenetrao do sujeito com a realidade que o envolve, seja a realidade fsica ou a realidade cultural ou ainda a realidade social. O homem est na dependncia do mundo, um mundo de coisas e pessoas, e este constitui fonte de limitaes para a sua aco, mas tambm um conjunto de oportunidades e recursos postos sua disposio. Esta situao particular de um ser dependente do mundo, aberto ao mundo e interagindo com o mundo, leva a que o homem no possa contar apenas consigo, mas tenha que levar em linha de conta com um conjunto de factores que envolvem o sujeito e que o definem.O sujeito no se compreende isolado dos outros, porque apenas se desenvolve na interaco com os outros. assim que acontece quando consideramos a perspectiva filogentica e a perspetiva ontogentica, isto , quer consideremos o homem na sua evoluo individual desde a fase de criana at ao estado adulto (filognese), quer consideremos a evoluo da prpria espcie humana e o processo de hominizao (ontognese). Nestes dois processos evolutivos o homem desenvolve-se na medida em que se relaciona com os seus semelhantes e realiza trocas com o meio exterior. Esta interdependncia entre o homem e o meio que o envolve faz com que a sua aco nunca possa depender exclusivamente da sua vontade. Todo este percurso acontece estando o homem mergulhado numa determinada situao que o rodeia e influencia sob diversas formas.Ele no age de uma forma absolutamente livre. Existem factores que condicionam e limitam a aco humana. Estas condicionantes da aco humana podem dividir-se segundo a seguinte classificao: condicionantes biolgicas, histrico-culturais, psicolgicas e fsicas.

O facto de o homem estar situado numa determinada sociedade e numa determinada poca coloca limitaes prpria actividade humana. A comear, devemos considerar as condicionantes scio-culturais ou histrico-culturais, ilustradas por todo um conjunto de produtos culturais e sociais que estruturam a sociedade e asseguram o seu funcionamento mais ou menos regular: hbitos, costumes, normas de convivncia social, leis, imperativos religiosos e morais, valores, tudo isto constitui uma constelao de princpios e regras que limitam a actividade humana. Condicionam, mas no so barreiras intransponveis, porque todos ns sabemos que, nalguns casos, a actividade humana vai contra esses princpios e regras. O Cdigo da Estrada assegura o regular funcionamento do trnsito na medida em que informa os condutores sobre o que se pode e no se pode fazer. Mas a existncia das normas do Cdigo da Estrada no asseguram s por si que no haja transgresses. Aquelas normas condicionam a aco dos condutores, mas no so limites absolutos.Mas existem outras limitaes ao exerccio da vontade. A estrutura e funcionamento do nosso corpo so tambm condicionadores da aco. Eu no posso estar debaixo de gua mais do que determinado tempo e por mais vontade que tenha em voar, eu sei que no o posso fazer. Existem, deste modo, outro tipo de condicionantes que designaramos como condicionantes biolgicas e que so transmitidas geneticamente. Trata-se de condicionantes que tm a ver com a estrutura e funcionamento do nosso corpo. De notar, contudo, que o nosso corpo possui um duplo sentido: por um lado constitui uma condicionante da aco humana, por outro lado com o corpo e atravs do corpo que eu ajo e intervenho no mundo. O meu corpo um limite, mas tambm um instrumento da vontade, o veculo para a concretizao do meu pensamento. atravs do meu corpo que eu exteriorizo as ideias da minha mente. Nesse sentido, eu realizo a liberdade atravs do meu corpo. O corpo um instrumento ao servio da aco, mas tambm limita a prpria aco, na medida em que eu no posso agir para l daquilo que o corpo me permite. O sujeito age dentro dos limites que so impostos pelo corpo, instrumento da aco, o corpo est ao servio da liberdade, porque atravs dele que eu manifesto o meu ser livre, mas ao mesmo tempo, o corpo condiciona a liberdade, ele a fronteira da vontade.Mesmo com uma vontade intensa e esclarecida eu no posso voar ou viver debaixo de gua. verdade que eu posso ir alargando esses limites, quer porque eu posso ir treinando o corpo, e ganhar mais destreza fsica, quer porque eu posso socorrer-me de meios mecnicos para ampliar esses mesmos limites (quando eu uso um telescpio eu amplio a minha capacidade de viso) contudo, alargar os limites do meu corpo no significa que alguma vez eu possa dispensa-lo da execuo da aco.As condicionantes biolgicas no esto fixas. Na evoluo da espcie humana, verifica-se que o homem progride na medida em que depende cada vez menos do corpo que foi transmitido geneticamente, construindo artifcios tcnicos que o ajudam a ultrapassar as suas limitaes biolgicas.Para alm do corpo, tambm a personalidade de cada um condiciona o seu modo de agir. Existem certas maneiras de ser que fazem com que o indivduo seja mais passivo ou indiferente face ao mundo e, nesse sentido, menos propenso a agir. A aco de uma pessoa, a sua interveno no mundo, pode ficar condicionada por causa de um temperamento mais envergonhado ou reservado. Neste caso, estamos a falar de condicionantes psicolgicas que se relacionam com o psiquismo humano.Finalmente, tambm poderemos entender que o meio fsico onde a aco se concretiza condiciona o agir humano. Pense-se, por exemplo, no trabalho agrcola e como ele est dependente e condicionado por um conjunto de factores, tais como a natureza dos solos, a existncia ou no e cursos de gua, a existncia ou no se solos apropriados ou terrenos acidentados, o clima. Quer isto dizer que poderemos tambm considerar a existncia de condicionantes fsicas ou ambientais.O vasto elenco de factores que condicionam a aco humana leva-nos concluso de que o homem e a sua vontade esto limitados por determinados factores que, contudo, no so obstculos intransponveis. Se assim fosse, no haveria nenhuma margem para a liberdade e vontade humanas. Ora, ns constatamos facilmente que o homem tem, em muitas ocasies, a possibilidade de escolher algo e de recusar algo. Todas as vezes que eu ajo, eu sei tambm que poderia ter feito mais ou menos do que fiz, que poderia sempre ter feito diferente. Todas as vezes que eu levo por diante uma aco, eu sei que escolhi e rejeitei alternativas, caminhos diferentes daqueles que acabei por seguir. Isso significa que o homem livre para escolher, mesmo que condicionado por inmeros factores.

31.Diversos tipos de determinismoA liberdade humana no absoluta. Como facilmente j vimos existem limitaes que incidem sobre o homem e a sua vontade. Segundo alguns autores o homem est submetido a diversos tipos de determinismo.Determinismo fsicoSignifica a concepo do universo em que os fenmenos ou acontecimentos esto de tal maneira relacionados uns com os outros que uma inteligncia, capaz de conhecer todas as circunstncias da evoluo do universo num momento dado, poderia prever qualquer acontecimento futuro. Todos os acontecimentos esto interligados entre si em termos de causa e efeito, todos os acontecimentos so causa e efeito uns dos outros e onde o homem acaba tambm por ser determinado pela realidade fsica. Neste sentido, o homem no livre pois acaba por agir determinado pelo turbilho da realidade externa. este determinismo que serve de base induo das leis cientficas.Determinismo biolgico a posio segundo a qual no h traos humanos que no sejam produto biolgico. A vida de cada homem seria condicionada por certas limitaes impostas pela herana biolgica. Haveria, por exemplo, alguns mecanismos neurofisiolgicos e modos de comportamento que seriam muito difceis ou mesmo impossveis de modificar. O homem seria consequentemente desresponsabilizado pelas suas tendncias e pelos seus actos, na medida em que tudo aquilo que ele faz deve ser explicado no pela sua vontade mas atravs do funcionamento do seu corpo. Para algumas tendncias mais radicais, como por exemplo no mbito da biossociologia, mesmo os valores, como o patriotismo, teria um fundamento biolgico.Determinismo psicolgico a tese segundo a qual todo o comportamento livre e espontneo determinado por antecedentes psquicos de ordem afectiva (crenas, desejos, temores, etc.) ou de ordem intelectual (motivos). Esta forma de determinismo nega a liberdade humana.

Determinismo sociolgicoConsidera que o comportamento do indivduo um produto da cultura, ou seja, dos hbitos colectivos, adquiridos por aprendizagem social e transmitidos de gerao em gerao. A cultura modela a personalidade, influencia os valores, as crenas e atitudes. Condiciona, portanto, a maneira de ser, de pensar e de agir do homem.

31 A.A crena no destino como forma de determinismoO homem que se afirma a si mesmo, assumindo a sua liberdade, afirma-se como senhor do seu destino. Mas h tambm quem afirme que o destino do homem j est traado de uma vez por todas e que tudo o que acontece no mundo corresponde Providncia Divina e vontade de Deus. Para esses, o homem no livre, uma espcie de marionete, cuja vida manipulada a partir do Alm. Esta posio tambm pode ser muito cmoda para quem no quer assumir a responsabilidade pela sua condio e situao. Atribuir a Deus a causa de tudo o que acontece afastar o homem do seu prprio caminho e da sua histria. Quem assim pensa tem, sobretudo, medo que os homens sejam senhores do seu destino e da sua vida e expulsem definitivamente os deuses da sua realidade.

32.Conscincia, vontade e responsabilidadeComo j atrs vimos, as aes humanas envolvem a conscincia e a vontade humanas. A conscincia e a vontade so elementos intrnsecos ao, sem os quais no poderamos dizer que estvamos diante de uma aco humana. A liberdade e a ao livre concretizam-se atravs de um processo em que o homem (o agente) sabe o que faz e faz o que deseja fazer. A ao s livre se o sujeito agir de acordo com a sua vontade, consciente do que est a fazer e das consequncias de que da resultam.O sujeito livre e age livremente, no porque no existam limites / limitaes ou barreiras sua ao, mas porque reconhece essas limitaes e joga com elas. A partir do momento em que o sujeito age livremente, de acordo com a sua vontade e consciente do caminho que iniciou, ento o sujeito tambm responsvel pelos seus actos e pelas consequncias destes. S um sujeito livre pode ser responsvel e responsabilizado. Se a vontade do sujeito fosse manipulada por indivduos estranhos, por exemplo, ento a responsabilidade recairia sobre estes e o sujeito nunca poderia ser responsabilizado. Se o sujeito livre e sabe o que faz, ento tambm responsvel, sobre ele que recaem as responsabilidades do que acontecer como consequncia directa do seu agir[footnoteRef:21]. Ser responsvel significa assumir as consequncias do que acontece devido sua iniciativa e sua ao. [21: Se no fosse a consequncia direta, ento poderamos cair numa situao absurda em que o sujeito seria responsvel por tudo o que acontecesse na sequncia dos seus atos, mesmo tratando-se de uma consequncia longnqua. Imagine-se que o senhor Albino provoca um acidente. Para alm dos acidentados que a aconteceram, seria tambm responsvel por situaes distantes como, por exemplo, pela vizinha do acidentado que escorrega na escada quando recebe a notcia do acidente!]

Quando o sujeito responsabilizado ele vai arcar com o peso da sua deciso. Por isso, em certas condies, um sujeito responsvel no decide de nimo leve. Ele sabe que a sua ao pode dar incio a uma srie de consequncias e reaes em cadeia. Com o seu agir a realidade transforma-se e j no mais igual ao que era. por isso que, em termos do direito, a responsabilidade assume-se atravs do pagamento de uma indemnizao que dever, na medida do possvel, repr a realidade tal como era antes da interveno do agente[footnoteRef:22]. Na medida do possvel, pelo que haver lugar a uma indemnizao pecuniria quando no for possvel a reposio da situao originria[footnoteRef:23]. [22: Isto no caso do ordenamento jurdico portugus. Noutros ordenamentos, onde as indemnizaes podem atingir valores astronmicos, a indemnizao tem tambm a funo de penalizar o infractor, com o objectivo de do dissuadir de voltar a praticar a ter uma conduta prejudicial.] [23: Por exemplo, quando da aco resulta a morte de algum ou a destruio de um bem original, infungvel. Nestes casos no ser possvel repr a situao anterior conduta negativa.]

H uma ntima ligao entre liberdade e responsabilidade. Se o sujeito no fosse livre, nunca seria responsvel. Nesse sentido, muitos olham a liberdade como uma espcie de condenao[footnoteRef:24]. Ento, optam pela moral dos escravos, porque no querem aguentar com o fardo da liberdade. Preferem ser mandados a assumir o peso da responsabilidade pelas suas decises. [24: Era Sartre que afirmava que estamos condenados a ser livres.]

S que o homem s se afirma a si mesmo assumindo a sua liberdade, afirmando-se como senhor do seu destino. Mas tambm aqui h quem afirme que o destino do homem j est traado de uma vez por todas e que tudo o que acontece no mundo corresponde Providncia e ao cumprimento da vontade de Deus. Para esses, o homem no livre, uma espcie de marioneta, cuja vida manipulada a partir do alm. Esta posio tambm pode ser muito cmoda para quem no quer assumir a responsabilidade pela sua condio e situao. Atribuir a Deus a causa de tudo o que acontece afastar o homem do seu prprio caminho e da sua histria. Quem assim pensa tem sobretudo medo que os homens sejam {ver o j impresso}

33.O que so os valoresNs, no dia-a-dia, falamos ou ouvimos falar muitas vezes de valores. Nomeadamente, j todos ns ouvimos falar da Bolsa de Valores, instituio onde se transaccionam aes e obrigaes, entre outros papis. Esses ttulos so valores, mas no nesse sentido que falamos aqui de valores.Os valores no so coisas materiais, mas representaes mentais que ns possumos e que justificam as nossas escolhas. Os valores no so uma realidade objectiva, material. Os valores so representaes mentais, projeces mentais, entidades ideais. Os valores so realidades subjectivas e expresso da minha subjectividade, da minha vontade, da minha escala de preferncias, que por sua vez so resultado da minha educao e da minha cultura e da sociedade em que vivo. Sem que isso queira dizer, no entanto, que no haja igualmente um movimento em sentido contrrio, atravs do qual explicamos como que os nossos valores tambm influenciam e transformam a educao, a cultura e a sociedade. Os valores so representaes mentais que eu projecto sobre as coisas, factos ou pessoas. isso que se passa quando eu realizo escolhas. Cada escolha a manifestao das minhas orientaes pessoais, a afirmao da minha subjectividade. Isto quer dizer que os valores variam de pessoa para pessoa, de grupo social para grupo social, so subjetivos. E variam devido a mltiplos factores de ordem cultural e educacional, nomeadamente. por isso que os valores vo mudando de poca para poca. Muda o seu contedo, como tambm muda a escala de valores que cada poca assume como sua. Na medida em que eu os projecto sobre as coisas, os valores no so caratersticas intrnsecas s prprias coisas, como o tamanho, a cor ou a densidade, por exemplo. As mesmas coisas podem ter valores diferentes no mesmo momento, dependendo isso dos sujeitos avaliadores. Uma pedra que eu guardo no meu quarto pode ter um elevado valor sentimental porque est associada a um momento afectivamente importante da minha vida, enquanto que para os meus pais aquela mesma pedra na estante do quarto representa apenas lixo. Como podem estar sujeitas a uma sucesso temporal de vrios valores. Porque os valores tambm esto sujeitos evoluo histrica das sociedades. Por isso, so portadores de uma variabilidade que depende de vrios factores, nomeadamente relacionados com a poca histrica, as caratersticas da sociedade, os projetos e expetativas da comunidade. As coisas no valem por si mesmas, mas valem em funo do homem que criador dos valores e duma sociedade que as avalia. Assim, houve pocas em que a honra e a vergonha eram valores da mxima importncia, que se foram desvalorizando com o passar do tempo. Neste sentido, podemos dizer que os valores so histricos, esto sujeitos historicidade. As mesmas realidades vo sendo valorizadas ou desvalorizadas com o passar do tempo.Para Sartre, ao escolher quando ajo eu estou a afirmar o que melhor para mim e para os outros. A minha escolha traduz uma concepo do que melhor para a Humanidade. Isso faz com que as minhas escolhas tenham um peso acrescido. Contudo, eu nunca tenho a certeza do que melhor para os outros. A incerteza que resulta dessa escolha geradora de angstia, porque apenas posso contar comigo mesmo para assumir as consequncias da minha deciso.A minha escolha, na aco, significa a eleio do que prefervel. Portanto, na ao esto sempre tambm concees do que correto e do que incorreto, do que est bem e do que est mal, do que melhor e do que pior e deve ser rejeitado. Em todas as aes esto presentes os valores. Agir tambm valorar, valorizar ou desvalorizar, atribuir valores, porque o sujeito nunca indiferente ao mundo que o rodeia. Ao agir eu realizo a minha tbua de valores, eu torno o mundo mais significativo para mim, porque ele vai adquirindo a minha marca[footnoteRef:25]. [25: Tudo isto sem prejuzo das consideraes que se podem fazer a propsito do conceito de alienao, dando conta de um mundo que progressivamente mais estranho para o homem e o homem que se sente um estranho entre os outros, precisamente porque que realidade sua volta se desumanizou.]

34.O percurso da ao aos valoresTodas as vezes que eu realizo uma ao, realizo determinadas opes, concretizo as minhas preferncias. Quando pratico uma ao, opto por seguir um determinado caminho e rejeito aqueles que no sigo. Porque sou livre, quando realizo uma ao eu sei que podia sempre ter agido de outra maneira. Por exemplo, depois de estudar, eu sei que podia ter estudado mais ou estudado menos, que podia ter estudado ou ter feito outra coisa diferente. Aquilo que fiz ou deixei de fazer foi resultado da avaliao e ponderao que fiz em relao aos valores e alternativas em presena. Porque o sujeito livre, todas as aes que eu levo por diante representam uma escolha e poderiam ter ocorrido de outra maneira. Quando agi, fiz uma opo, concretizei a minha liberdade. Todos os dias, de manh, levanto-me da cama. Decidir levantar-me da cama, foi essa a minha escolha. Mesmo sentindo sobre mim o dever e a obrigao de me levantar, fui eu, enquanto sujeito livre, que aceitei obedecer ao dever e seguir as minhas obrigaes profissionais e as minhas obrigaes sociais. Ao escolher levantar-me, rejeitei a opo de ficar a dormir. Assim, qualquer aco simultaneamente uma escolha e uma rejeio. Ora, porque que decidi levantar-me, ir trabalhar e enfrentar hordas de brbaros adolescentes, em vez de ficar a dormir e descansar mais um pouco? Porque entre aquelas duas opes, eu preferi ir trabalhar; naquele momento, pelo menos, dei mais valor ao trabalho que ao descanso foi essa a minha preferncia e que est de acordo com os valores da prpria sociedade burguesa e do esprito do capitalismo. Ou, ento, acabei por dar mais valor ao prprio cumprimento dum dever do que satisfao de no cumprir um dever (Fernando Pessoa). Ao agir duma determinada maneira eu estou a optar pelo que valorizo mais, estou a dar mais valor e importncia alternativa seguida que alternativa rejeitada (Claro que no temos aqui em conta o peso que pode ter o desejo de evitar consequncias negativas quando, por exemplo, ao comentar a escolha feita, afirmo que do mal o menos). Em todas as aces que realizo, eu fao uma escolha entre valores diferentes. Em qualquer ao existe, consciente ou inconscientemente, uma eleio entre valores algumas vezes opostos entre si; quando tomo uma deciso eu acabei de eleger o valor que naquele momento, face ao que est em jogo, para mim o mais fundamental. Eu ajo em funo dos valores que escolho e, escolhendo, aplico a minha tbua de valores. Enquanto mdico, se pratico ou no a eutansia, isso significa que me movimento entre dar valor autonomia do doente e qualidade de vida ou dar valor quantidade de vida que se prolongaria a todo o custo (obstinao teraputica). Se eu respeito o pedido do doente para morrer, isso quer dizer que eu dou mais valor autonomia do doente que manuteno da vida sem ter em conta a qualidade de vida que ele, o doente, ainda possui. Eu atuo segundo os valores que elejo. Imaginemos a situao dum mdico que necessita, para salvar um doente menor, de proceder a uma transfuso de sangue; entretanto, os pais recusam a transfuso sangunea por razes religiosas. Os valores que esto aqui em confronto so, pelo menos, dum lado o direito vida e, do outro, o direito livre manifestao da sua escolha religiosa, ou liberdade de culto. No s esto estes valores em confronto, como esto em confronto diferentes tbuas de valores: para o mdico a vida ser o valor mais importante, enquanto que para os pais do rapaz, a liberdade religiosa sobrepe-se ao direito vida. O seu comportamento, o que devem fazer a seguir, como reagir perante situaes-limite como esta algo que resulta da ponderao dos valores em presena. Qualquer deciso para agir surgir guiada, justificada e legitimada por uma opo de natureza axiolgica, isto , da ordem dos valores. Quer dizer, ento, que os valores guiam a minha ao, funcionam como uma espcie de farol, indicando-me o caminho a seguir. Os valores so, desta maneira, um critrio e uma justificao para a ao que os concretiza. Os valores surgem como um referencial para a minha ao, uma espcie de luz que ilumina e conduz a minha existncia e as minhas aes num certo sentido. Em todas as aes esto presentes um ou mais valores, porque todo o sujeito possui a sua escala de valores que, normalmente, a escala de valores do grupo social a que pertence, numa determinada poca histrica. As decises, mesmo colectivas ou com um sentido marcadamente social, no escondem nem apagam o individual contributo que existe em cada deciso colectiva. A liberdade um resduo que nunca se pode apagar em qualquer circunstncia.Vejamos ainda outro exemplo, outra situao. Se eu fao greve ou no fao greve, isso depender de vrios factores entre os quais a minha tbua de valores. Se o valor solidariedade for muito importante e pesar muito nas minhas decises ento, eventualmente, eu irei fazer greve, manifestando a minha solidariedade para com os meus companheiros. Pelo contrrio, se o individualismo se sobrepuser aos outros valores ento vou-me marimbar para a solidariedade, trato da minha vidinha e vou trabalhar para no me descontarem no vencimento. Portanto, os meus valores ajudam a perceber as minhas decises e a minha maneira de agir, como tambm explicam as posies que vou assumindo. Em cada ao do homem possvel identificar os valores que a esto presentes. No limite, se eu conhecer a escala de valores dum indivduo, conseguirei antecipar as suas decises e as suas escolhas. Veja-se a importncia que esse conhecimento ter para quem responsvel pelo marketing e pela publicidade dum produto; ou para quem se quer candidatar a um cargo poltico e preparar o seu discurso em funo dos valores do auditrio.

35.No h aes gratuitas, isto , sem a presena dos valoresNo h aes gratuitas, na medida em que todas as aes so movidas por um qualquer interesse, que no tem que ser necessariamente um interesse material ou um interesse consciente. Agir com interesse no significa ser interesseiro, mas apenas que eu actuo sempre com determinados objetivos, em funo de determinados valores que eu persigo e quero ver concretizados. Sempre que ajo, ajo em funo de qualquer coisa, de qualquer objetivo que pretendo alcanar. Mesmo que agisse por agir, agisse sem ter nada em vista, seria possvel descobrir uma inteno mais profunda e oculta.No h aes gratuitas, no sentido em que todas as aes tm um objetivo a alcanar, tm um determinado motivo que as dinamiza. Nunca o sujeito age por agir, nunca age sem inteno. Por mais ocultos que estejam, por poderem ser censurveis do ponto de vista individual ou social, existem sempre objetivos na ao. Contudo, existem vrios tipos de fins para a ao: eu posso agir tendo em vista objetivos exclusivamente espirituais, (a fruio esttica que resulta da contemplao dum quadro ou da audio duma pea musical) ou posso tambm agir tendo em vista objetivos materiais, isto , pretendendo obter vantagens materiais, que enriquecero o meu patrimnio. O filantropo (o benemrito) pratica o bem e poderia pensar-se que age desinteressadamente, sem interesse algum visvel. Mas tambm se pode dizer que ele no faz o bem para obter vantagens materiais, mas pode ter objetivos inconfessados: sentir-se bem consigo mesmo ou obter o reconhecimento da comunidade onde vive[footnoteRef:26], sem, no entanto, deixar de ser benemrito por essa razo. Assim, a sua ao benemrita no totalmente gratuita. A aparente gratuitidade da ao esconderia, afinal, objetivos que concorrem para benefcio do prprio sujeito. J o indivduo interesseiro seria aquele que apenas age se, antecipadamente, lhe garantirem determinadas vantagens. O indivduo interesseiro apenas age com a certeza e a segurana da obteno dos resultados pretendidos. Noutras situaes, o sujeito age em funo de motivos inconscientes, que ele prprio desconhece ou no reconhece imediatamente. Trata-se de motivos ou finalidades sobre as quais recaia um juzo de censura social que impede o sujeito de os assumir aberta e publicamente. Para Freud[footnoteRef:27] e para a psicanlise, existem objetivos e finalidades inconscientes e que foram objecto de um processo de recalcamento, pelo que o sujeito no tem conscincia dos motivos que o levam a agir duma determinada maneira[footnoteRef:28]. [26: De qualquer modo, estar ainda assim, muito longe daquele que, num determinado momento distribui electrodomsticos junto da populao mais carenciada. que este benemrito era candidato Cmara de Gondomar!] [27: Sigmund Freud, o criador da psicanlise.. [incompleto]] [28: o que acontece, por exemplo com os lapsos de memria (lapsus linguae) que Freud descreve na sua Psicopatologia da vida quotidiana.]

Portanto, no existem aes gratuitas, nunca o sujeito age por agir, de uma forma completamente desinteressada. Essa maneira de agir revela a abertura do sujeito realidade que o circunda e a diferente valorao que o sujeito faz dessa mesma realidade. Do mesmo modo que o sujeito age tendo em vista determinadas finalidades, tambm a realidade no lhe indiferente, fazendo com que o sujeito se mova e atu