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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

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Objetivo do estudoNeste módulo, você se deterá sobre um tema central do qual esperamos que continue a ser objeto de suas reflexões, pois se trata de um assunto extremamente relevante. Trata-se da questão: o que é o conhecimento?

A ela estão associadas várias outras. Que conhecimento se faz confiável? Por onde se inicia o conhecimento? Podemos estar sendo sistematicamente iludidos, como Platão defendeu em sua alegoria da caverna?

A tradição particular em que fomos criados pode fazer as vezes de uma caverna como a que iludia os habitantes do mito platônico? A experiência que temos do mundo basta ou é exatamente dessa experiência que temos de desconfiar se aspiramos a um conhecimento mais universal? Como podemos sair de um estado de imersão num mundo ilusório para um outro que nos esclareça do caráter parcial e fragmentado de nossas crenças iniciais? A filosofia nos ajudaria neste processo de afastamento do senso comum para uma consciência reflexiva? Ou estarão os nossos sentidos, muito adequadamente, nos alimentando de informações sobre um mundo a cujo estudo deveríamos nos manter fiéis? Quais os objetivos do conhecimento? Eles se mantêm os mesmos ou foram imaginados de diversas formas ao longo da história?

No primeiro tópico, veremos por qual atitude o conhecimento forçosamente se inicia e que obstáculos uma sociedade que se organiza em torno da técnica como “visão de mundo” pode oferecer a esta atitude tão importante. No segundo, você será convidado a conhecer a forma com que Platão imaginou o conhecimento. Para ele, o conhecimento verdadeiro em tudo se opõe à experiência sensível. Platão localiza no chamado “mundo das Idéias” o objeto da procura de Sócrates: o universal. O mundo das Idéias não pode ser captado pelo olho sensível. Esse mundo é eterno e incorruptível.

Platão deixava claro que quem não soubesse geometria, não deveria adentrar sua escola, a Academia. Isto porque é exatamente à luz dos objetos da matemática que ele pensará a natureza do mundo das Idéias. Os universais platônicos do Bom, do Belo e do Justo, eles próprios, só podem ser contemplados pela razão. A experiência que temos do mundo sensível é, portanto, o grande obstáculo para o conhecimento, segundo Platão. É se afastando do mundo da experiência que a alma pensa melhor – longe, portanto, da “prisão do corpo”. Já Aristóteles, como você verá no terceiro tópico, vê nas sensações um degrau necessário para o conhecimento. O homem não está lutando contra uma ignorância imposta pelo mundo sensível, na concepção aristotélica. O conhecimento, por mais afastado que, ao final, se mostre do plano das sensações, na visão de Aristóteles, guarda uma relação de continuidade com este último.

O questionamento sobre a relação entre conhecimento e experiência sensível é recapi-tulado, bem mais tarde, no século XVII entre dois grandes grupos de filósofos. Afinal, o conhecimento deveria partir da experiência ou deveria se colocar em guarda contra ela? O grupo conhecido como “empiristas” defendem a primeira via; os “racionalistas”, a segunda. A Revolução Científica, ocorrida na virada do século XVI para o XVII, pelo menos, na interpretação que a ela dá o historiador Alexandre Koyré, aponta para o fracasso do empirismo como um bom guia para a construção do conhecimento. A idéia é de que Galileu precisa recusar as evidências fornecida pelos sentidos para sustentar o heliocentrismo. Este tópico será explorado no quarto tópico.

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No quinto topico, por sua vez, procura descrever a ciência como um processo que tem na testagem a mais rigorosa das hipóteses sua característica definidora. É com Karl Popper, pensador do século XX, que procuraremos afastar definitivamente a visão com que nos familiarizamos acerca de como se inicia o conhecimento. O ponto é que o conhecimento não se inicia pela observação pura. Na verdade, essa expressão nem faz sentido. Toda observação que efetuarmos já implica pressupostos, crenças, teorias adotadas tacitamente etc. Se quisermos obter conhecimento objetivo, devemos buscar criticar nossas idéias da maneira a mais severa e não imaginar que podemos partir de dados puros e neutros.

Ao final deste Módulo II, com o cuidadoso e empenhado estudo do material que tem em mãos, você já poderá se orientar diante de algumas questões epistemológicas. A Epistemologia é exatamente a área da Filosofia que se detém sobre o conhecimento, problematizando-o. É uma área fundamental, pois quem não gostaria de começar a refletir sobre as diferenças entre um conhecimento do mundo que se orienta pela crítica e um falso conhecimento que repousa ou no dogma ou em justificativas sofríveis?Bom estudo!

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Aula 1 - O ato de admirar-se(tò thaumázein) como condição para a busca do conhecimento.Há um verbo grego com que se nomeia a condição necessária a toda reflexão filosófica: tò thaumázein. Esse termo refere-se à ação de se deixar espantar pelo que nossa forma instrumental de lidar com a vida já trivializou.

Quer-se com ele fazer referência a uma atitude vital para o pensamento: voltar-se a ver o nosso mundo com o frescor de quem desperta para o reconhecimento de sua estranheza

ou com a gravidade de alguém que está diante de algo que assombra. Entrar no domínio do conhecimento é saber se manter como um eterno estrangeiro na sua própria terra.

Você já reparou como é nosso olhar quando visitamos um lugar distante?Um olhar de assombro, que se volta maravi-lhado para tudo o quanto se nos mostra.

Pois bem, deveríamos nos manter assim no domínio do conhecimento: continuamente curiosos. Não falamos aqui de uma curiosidade pueril e passageira, mas de uma inquietação cultivada. Seria possível uma nova pedagogia do espanto, uma pedagogia do thaûma, que

se contrapusesse à experiência de codificação do mundo que nossos olhares treinados e nossos hábitos mortificadores justificam a todo o momento?

Hoje, como jovens e adultos socializados nas regras de um mundo burocrático e imediatista e vigiados continuamente para nos mostrarmos eficientes na conquista de metas já traçadas, esse espanto, que se traduz pela curiosidade filosófica, soa deslocado: perda de tempo ou coisa de quem não tem algo mais importante para fazer. A vida já foi

loteada e a nova ordem histericamente nos obriga a lutar por um espaço num mercado cada vez mais agressivo. A filosofia insiste: o conhecimento pode ser entendido como mais do que o domínio de uma técnica que nada tem a ver com nossas vidas.

O ponto incontornável é que tanto o cientista quanto o filósofo necessitam cultivar esse estado de abertura expresso no espanto diante do mundo. (Na verdade, todos nós precisamos: viver em um mundo sem conhecer tal atitude é estar nele de maneira mutilada, é experimentá-lo de maneira particularmente empobrecida.) Como o cientista consegue gerar com seu saber uma forma de domínio sobre o mundo, a curiosidade que exprime por meio dos problemas que formula consegue ainda se ver prestigiada.

Em nosso tempo, a razão operatória, aquela que submete o real aos propósi-tos mais utilitários do homem, é continuamente elogiada. Mas o espanto do

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filósofo não serve à técnica. O filósofo não pode se contentar em ser um mero funcionário, sob condição de, em o fazendo, deixar de pensar filosoficamente. Seu pensamento deve incomodar mais do que servir. Lembre-se, aqui, da descrição de Sócrates por si mesmo, na Apologia, de Platão, como um mosquito que perturba a nossa tendência ao sono.

Tamanha é a vitória da visão técnica do pensamento, que se tem não só perdido o contato com essa experiência do espanto filosófico, mas passou-se também, com um desdém indisfarçável, a dispensar essa forma de estar no mundo. O assombro de que falamos aqui foi substituído não simplesmente por interesses práticos os mais rasos, mas principalmente por uma visão do mundo inteiramente modelada a partir do progresso da técnica. É como se a técnica primeiro houvesse se autonomizado (como se ela tivesse se transformado em algo que existe por si mesma) e depois tivesse passado a gerir nossa maneira de pensar o mundo. Evidentemente, se nossas vidas se organizarem em torno da técnica como um fim em si, a experiência humana do mundo como potencialidade de problematizações soará mesmo um pouco estranha.

No entanto, não precisamos nos mostrar convencidos do esgotamento do sentido de nosso pensamento em limites tão estreitos. Não necessitamos nos satisfazer com uma noção de racionalidade tão pobre. Entre outras coisas, a filosofia serve para fazer frente ao que tomamos como inevitável, serve para ampliar nosso sentido do possível para lembrar o caráter aberto da experiência humana. Podemos, como reação à tal banalização de nosso estar no mundo, desejar saber como viemos a conceber nossas vidas em termos de valores tão reduzidos. Podemos desejar saber a que forças serve essa visão de mundo que se esgota na dimensão técnica do pensamento. Isto, é claro, significará nos espantarmos diante do empobrecimento de nossos imaginários contemporâneos. Significará retomar o espanto contra aquilo mesmo que não cessa de tentar diminuí-lo.

Descobriremos talvez que a técnica agora pode estar sendo instrumentalizada para consagrar continuamente um modelo de mundo e um modelo de sujeito. Esses modelos tomam forma numa cultura de valores mercantilistas que, baseada numa coercitiva moral do consumo de novidades, como discutida na Unidade I, implica um verdadeiro programa de destruição da memória coletiva, alienando-nos de obras de cultura e de tradições inteiras de pensamento. O gozo com as novidades, a cuja produção contínua a técnica serve, está nos alienando do próprio compromisso com o passado histórico, o qual não deveria ser imaginado como dimensão com que deixamos de ter quaisquer laços orgânicos.

Defendemos aqui que o conhecimento de tais obras e tradições precisa ser entendido e sentido, por todos nós, como necessário. E isto assim o teria de ser não porque tal conhecimento possa ajudar em nossas carreiras ou porque “agreguem valor” à nossa formação profissional, mas porque é ele que nos permite o envolvimento num processo de humanização mais amplo e abre caminho para uma contextualização mais elaborada de nossa situação como seres pensantes.

Só será possível refletir sobre uma perda do sentimento de espanto por parte de um homem tiranizado pelo gozo com a técnica e com o imediatismo dos objetivos cultuados na sociedade de consumo quando aprendermos a estranhar de novo o território em que nos encontramos na vida contemporânea.

É importante que se perceba um ponto: aqui não estamos a criticar a existência ou a

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relevância da técnica, mas a sua elevação à condição de uma verdadeira visão de mundo. Se, por um lado, é mesmo verdade que a evolução da técnica nos leva a um crescente progresso na expansão de muitas de nossas potencialidades, por outro não deve ser tomada como verdadeira a afirmação de que, quando nos referimos ao progresso técnico, estamos nos referindo a um concomitante aperfeiçoamento da capacidade humana de pensar. É isso exatamente que desejamos sublinhar. À medida que a racionalidade técnica se tornar sinônima do próprio ato humano de pensar, sua única forma relevante de expressão, já teremos esquecido o quão amplas são as possibilidades da reflexão.

Podemos continuar?

A apreensão perplexa do mundo; a problematização.

Aristóteles, filósofo grego do século IV a.C., sobre o qual iremos falar mais à frente, julgava essencial esse espanto, essa admiração, para o exercício da filosofia. Ele diz, a respeito, no capítulo II do Livro I de sua Metafísica:

Metafísica: Foi, com efeito, o espanto que levou, como hoje, os primeiros pensadores à especulação filosófica. No início seu espanto dizia respeito às dificuldades que se apresentavam em primeiro lugar ao espírito; depois, avançando pouco a pouco, estenderam sua exploração aos fenômenos mais importantes, tais como os fenômenos da Lua, os do Sol e das estrelas, e enfim à gênese do universo. Ora, perceber uma dificuldade e espantar-se é reconhecer a própria ignorância (1972).

Num diálogo de Platão intitulado Teeteto, a delicada mensageira da palavra dos deuses, Íris, é mencionada como a filha do titã que personifica justamente o assombro. O que se quer dizer com essa forma mais poética de pôr as coisas é que o assombro, o espanto, antecede o conhecimento de algo que se eleva da opinião comum: tal conhecimento deriva diretamente dele. Assim, lemos na aludida passagem (a saber, no passo 155c-d do Teeteto): Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens.Sócrates: Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a Filosofia. Ao que parece, não foi mau genealogista quem disse que Íris era filha de Taumante (Platão, 2001, p. 55).

Mas como esse espanto, essa admiração se traduz mais concretamente? Fernando Savater, num livro chamado As perguntas da vida, cuja leitura nunca cansaremos de recomendar, ajuda-nos a entender, com exemplos, essa prática do estranhamento tal como exercida pelo filósofo. Ele o faz citando uma passagem de Uma breve introdução à Filosofia, de Thomas Nagel, um filósofo contemporâneo e bastante influente.

A principal ocupação da Filosofia é questionar e esclarecer algumas ideias muito comuns que todos nós usamos todos os dias sem pensar sobre elas. Um historiador pode se perguntar sobre um determinado momento do passado, mas o filósofo perguntará: o que é o tempo? Um matemático

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pode investigar as relações entre os números, mas um filósofo perguntará: o que é um número? Um físico irá perguntar do que são feitos os átomos ou o que explica a gravidade, mas um filósofo perguntará: como podemos saber que existe algo fora de nossas mentes? Um psicólogo pode investigar como uma criança aprende uma linguagem, mas um filósofo perguntará: por que uma palavra significa algo? Qualquer um pode perguntar se é mau furar a fila do cinema sem pagar, mas um filósofo perguntará: por que uma ação é boa ou má? (Savater, 2001, p. 8-9).

Observe, com base na passagem acima, que o espanto do filósofo se dirige para questões que já são vistas como solucionadas ou como não merecendo problematização, seja da parte do cientista, seja da parte do senso comum. O espanto do filósofo se traduz em questões de natureza mais abrangente. É bem verdade que esta é apenas uma das formas de caracterizar a curiosidade do filósofo: a busca por definições essenciais com que Sócrates imaginou a agenda filosófica. Há outras maneiras de caracterizá-la, sem dúvida. Por enquanto, fiquemos com esta, e comecemos a nos perguntar: como podemos imaginar o conhecimento? A que ele se dirige? Quais suas fontes? Terá o conhecimento sua fonte na experiência concreta ou é justamente numa forte oposição

Teeteto http://pt.wikipedia.org/wiki/Teeteto

Indo além

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a ela que o conhecimento se tornará possível? Será possível chegar a uma certeza com o conhecimento que construirmos? Existe algum tipo de conhecimento que atinge essa certeza? Saibamos, pois, nos espantar diante desse assunto comumente trivializado.Chegamos ao final do primeiro tópico de estudo do Módulo II.É importante que tenha compreendido todos os assuntos aqui abordados, para que possa continuar.

Referências

ARISTÓTELES. Metafísica, Livros I e II. Trad. Vincenzo Cocco. São Paulo: Abril Cultural, 1972.PLATÃO. Teeteto/Crátilo, 3ª ed. revisada. Belém: EDUFPA, 2001, p. 55.SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Trad. Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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ReferênciasFRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia. Tomo I. 3ª ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1971.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed., revista e aumentada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

LUCHESI, Cipriano Carlos; PASSOS, Elizete S. Introdução à Filosofia: aprendendo a pensar. São Paulo: Cortez, 2004.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

PESSANHA, José Américo Motta. As delícias do jardim. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SILVA, Sandro Luiz da. A ética das virtudes de Aristóteles. Dissertação de mestrado. Unisinos - Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2008.

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Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos

Bloco de notase anotações

Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada.

Importante:Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades.

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Aula 2 - O conhecimento como ascensão do domínio ilusórioO conhecimento como ascensão do domínio ilusório. A alegoria da caverna, do livro VII de A República, de Platão.

No Módulo I, vimos que Sócrates não se conformava com as noções cotidianas empregadas normalmente. Isso porque percebeu que o uso dessas noções não se fundamentava em nada; tratava-se apenas da passiva repetição de palavras com cuja definição as pessoas nunca se preocuparam. Vimos também o quanto a “virtude” (a areté), entendida como “excelência da ação”, era o foco de suas preocupações filosóficas. Era em função desta excelência que Sócrates empreendia sua busca por definições (agora não mais locais, e sim universais) de noções como “justiça”, “piedade”, “coragem”: desejava que sua prática de vida fosse governada por esses conceitos cuja essência deveria ser racionalmente alcançada.

Como lembra F. M. Cornford, em seu Antes e depois de Sócrates, “a moralidade da aspiração instituída por Sócrates implica um constante esforço da alma com relação a um ideal de perfeição”. E mais à frente escreve:

A visão clara do ideal é o conhecimento, a ser obtido apenas pelo pensamento árduo. Na prática de Sócrates, esse pensamento árduo assumia a forma de tentativas de definir o significado essencial dos termos comumente empregados para a descrição da conduta correta. Todos concordam que algo como a justiça, por exemplo, existe. O que queremos dizer com esse nome? Se considerarmos e compararmos as ações designadas como ‘justas’ ou ‘corretas’ por diferentes povos e comunidades, encontraremos um surpreendente conflito de opiniões. Os costumes considerados certos por um país são condenados por outros como errados. Quem vive segundo a velha moralidade da coerção social dirá que seu costume local é certo para ele; um costume diferente será certo para seus vizinhos. Mas a nova moralidade da aspiração é universal. Só pode haver um ideal de perfeição comum a toda a humanidade, um padrão segundo o qual todos os costumes e ações devem ser avaliados (Cornford, 2001, p. 54-55).

É aqui que podemos começar a ver como Platão, o discípulo maior de Sócrates, introduziu, a partir da moral de aspiração socrática, a inovação maior de sua filosofia: esse grande mestre do pensamento ocidental localiza o fim dessa pesquisa de Sócrates em um domínio apartado de toda a contingência humana e de toda a corrupção e parcialidade a ela associado – o Mundo das Ideias. O Mundo das Ideias é um mundo de universais, de elementos ideais: mesmo que todo o universo físico fosse destruído, ele continuaria a existir. Se novos universos viessem a ser criados, todo aquele ser que aspirasse à racionalidade deveria se submeter a ele. O mundo das Ideias abriga a Verdade e, exatamente como no mundo da matemática, seu conhecimento independe de objetos concretos. Sua existência é puramente abstrata, formal. É a própria ideia do triângulo que se encontra nele, e não as ocorrências particulares da ideia que podemos ver representadas espacialmente. Essas ocorrências particulares podem ser vistas por

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nossos olhos sensíveis. A Ideia, ela mesma, só pode ser contemplada pelo intelecto, por aquilo que Platão metaforicamente chamou de “o olho da alma”.

Como diz Cornford, em continuidade a esse raciocínio:

Segue-se que (assim inferiu Platão) um termo como ‘justiça’ tem um sentido universal, independente de todas as várias coisas que são chamadas de justas em várias épocas e locais. Esse sentido absoluto pode ser definido e conhecido. É o que Platão chamava de ‘forma’ ou ‘ideal’ (2001, p. 56).

Observe, portanto, a introdução de um novo elemento na filosofia platônica (apesar de, nos textos posteriores de Platão, Sócrates continuar a ser a personagem que expõe essa filosofia). O objeto do éros filosófico é um Ser incorruptível: a própria realidade despida de sua ilusão sensível.

Platão faz da filosofia uma busca metafísica, ou seja, uma busca por uma Verdade que está além da mera experiência que o corpo pode captar. O comum dos homens, sem esse esforço de racionalidade para ascender ao mundo das Ideias, terá como destino conviver com um mundo fictício dentro do qual está encerrado sem o saber. O conhecimento é uma elevação e uma purificação (askesis) das paixões violentas, dos sentidos dominadores e da opinião vulgar com a qual normalmente nos conformamos.

Para Platão, a alma deveria se purificar das ilusões que a acorrentam à opinião particular e ascender em direção ao conhecimento uni-versal e eterno. Se corretamente conduzida, essa alma reconheceria na contemplação e no convívio com o Bom, o Belo e o Justo a condição de sua própria imortalidade. A parte da alma que aí se reconhece é imortal. É por isso que o Sócrates platônico pode beber,

com serenidade ímpar, no texto platônico Fédon, o preparado venenoso que lhe dão: ele já se identificara integralmente com algo imperecível.

Reiteramos o ponto principal deste tópico: para Platão, conhecer é um ato de ascensão da experiência sensível, uma purificação dos elementos mundanos e fragmentados com que a alma se confundia inicialmente. O destino da filosofia é o conhecimento do Ser. Para Platão, a filosofia é incontornavelmente metafísica.

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A alegoria da caverna, do livro VII de A República, de Platão

Numa bela entrevista a Émile Noël, já mencionada no Módulo I, o filósofo francês François Châtelet retoma, a certa altura, o sentido da filosofia platônica do conhecimento: “Platão dá o nome de doxa às opiniões múltiplas desenvolvidas pelo bom senso democrático. Mostra que essas opiniões (...) são em grande parte produto das paixões, dos interesses, dos desejos e das circunstâncias”. A esse domínio das meras opiniões fundamentadas tão-somente no mundo sensível Platão opõe o Mundo das Ideias, “realidade essencial, [que] permanece imutável, enquanto as aparências não cessam de mudar, à mercê do devir”. Como resume Châtelet, se o mundo das aparências é confuso e variável, “o Mundo das Idéias, por essência, é estável e transparente” (Châtelet, 1994, p. 37-38).

A tarefa do filósofo, dentro dessa concepção, não é outra senão a busca racional por esse mundo incorruptível e, mais ainda, pela Essência ou Ideia Suprema, a qual ilumina todas as outras. Conforme Châtelet, uma vez mais: “Platão diz que esse mundo é tão belo, tão profundamente inteligível, de uma transparência tão brilhante, que mal se pode falar dele com as palavras do mundo sensível” (2001, p. 40).

Em sua célebre obra A República, em que Platão desenha um modelo de cidade-ideal com funcionamento, a propósito, bem mais parecido com o de Esparta do que com o de Atenas, temos, a certa altura – mais precisamente no Livro VII

–, o desenvolvimento da concepção desse pensador acerca da condição humana e do exercício de elevação do mundo ilusório a que a racionalidade filosófica, segundo ele, pode conduzir. Todo o percurso de uma consciência pré-filosófica (representada pela visão limitada dos prisioneiros, dos jogos em que estes se engajam e dos prêmios a cuja obtenção se consagram), passando pela construção de uma consciência reflexiva (a ascensão sempre dolorosa do sujeito, habituado que estava a uma única posição e ao conforto da escuridão, para fora da caverna), até a contemplação da luminosa Ideia pelo indivíduo que se liberta (a metáfora da própria Verdade) é simbolizado numa grande alegoria.

Trata-se de uma coleção de metáforas a qual se deve dar atenção redobrada para que seus elementos possam ser decifrados. Não pequena atenção deve também ser dispensada a um eventual aviso aos antigos companheiros, ainda consagrados aos hábitos da caverna, por parte do sujeito que ao dali sair reconhece, então, no mundo anterior, apenas um cenário de ilusões. Este último, é claro, é o filósofo. Ele toma para si o compromisso pedagógico de procurar esclarecer os demais prisioneiros de sua condição de habitantes de um mundo ilusório. Mas lembremo-nos aqui de que ele terá de enfrentar uma série de novos obstáculos: já não está acostumado à escuridão e procurará iniciar um diálogo com indivíduos que avaliarão suas ideias com base no contexto de crenças e de valores da própria tradição confinante em que se encontram. Terá êxito garantido, portanto, na tarefa pedagógica que põe para si?

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A Alegoria da Caverna (Leia o Texto complementar) Atenção! Procure identificar nessa imensa coleção de metáforas conhecida como “alegoria da caverna” estes elementos da filosofia platônica: a oposição entre o mundo sensível o inteligível, entre o corpo e a alma, entre a razão e as paixões cegas, entre a opinião (doxa) e o conhecimento (epistéme). Procure entender os motivos por que, segundo Platão, a experiência imediata é entendida como um obstáculo ao conhecimento (aquilo que chamamos de “obstáculo epistemológico”).

Alegoria da caverna – Vídeohttp://www.youtube.com/watch?v=69F7GhASOdM

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Dúvidas

http://www.youtube.com/watch?v=UQfRdl3GTw4&feature=related

ATENÇÃO ! Antes de assistir ao vídeo, leia o texto complementar sobre a Alegoria da Caverna.Obs: Embora o vídeo esteja em inglês, o narrador segue, na integra, o texto complementar apresentado no link anterior.

Indo Além

Referências

CHÂTELET, François. Uma história da razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.CORNFORD, F. M. Antes e Depois de Sócrates. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.PLATÃO. A República, 9ª edição. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

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Texto complementar

A Alegoria da Caverna Livro VII de A República, de Platão

– Imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens dos “robertos” colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

– Estou a ver – disse ele.

– Visiona também ao longo desse muro homens que transportam toda espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.

– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.

– Semelhantes a nós – continuei. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?

– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?

– E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?

– Sem dúvida.

– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam?

– É forçoso.

– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos tran-seuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?

– Por Zeus, que sim!

– De qualquer modo – afirmei –, pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.

– É absolutamente forçoso – disse ele.

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– Considera, pois – continuei –, o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?

– Muito mais – afirmou.

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?

– Seria assim – disse ele.

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até a luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse por ser assim arrastado e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?

– Não poderia, de fato, pelo menos de repente.

– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras; depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água e, por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

– Pois não!

– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

– Necessariamente.

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.

– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.

– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?

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– Com certeza.

– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prêmios para o que distin-guisse com mais agudeza os objetos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e aquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba” , e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?

– Suponho que seria assim – respondeu –, que ele sofreria tudo de preferência a viver daquela maneira.

– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas ao regressar subitamente da luz do Sol?

– Com certeza.

– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista a custo a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que no mundo visível foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública (Platão, 2001, p. 315-319).

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Anexo - Atividades Estudos Socio-Antropológicos

Bloco de notase anotações

Este espaço é para você anotar suas observações com relação a disciplina estudada.

Importante:Leia todas as orientações passo a passo no “Tutorial do Aluno” de como realizar suas Atividades.

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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

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Aula 3 - A valorização dos sentidos e do estudo da naturezaContinuando...

Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) foi discípulo de Platão (nasceu em Estagira, na Macedônia, e chegou à cidade de Atenas aos dezoito anos, ingressando na Academia e só a deixando com a morte do mestre, em 347 a.C.), mas suas ideias, em sua maturidade, ganham contornos bastante próprios. É por esta razão que, em uma primeira apresentação do pensamento do criador do Liceu (fundado em solo ateniense em 335 a.C.), costuma-se lembrar-lhe a seguinte afirmação: “Sou amigo de Platão, porém ainda mais amigo da Verdade”. A noção de alma e sua relação com o corpo, a importância do mundo empírico para o filósofo (recusado à investigação pela tradição místico-matemática iniciada por Pitágoras e retomada por Platão), a confiança na disposição da natureza humana para o conhecimento, em tudo isto Aristóteles se mostrará bastante inovador.

Sou amigo de Platão, porém ainda mais amigo da Verdade - Esta afirmação, apesar de inúmeras vezes repetidas, não se encontra no corpo de sua obra. Mas uma afirmação bem próxima pode ser encontrada na Ética a Nicômaco.

Saiba mais

Neste tópico, mostraremos um pouco do quanto o pensamento de Aristóteles se distancia do pensamento de seu antigo mestre.

Podemos começar?

Comecemos então pela noção de alma. Para Platão, alma e corpo travavam uma espécie de guerra civil. Eram entidades distintas. O corpo era aquilo de que a alma precisaria se separar. Não será assim para um filósofo apaixonado pelo mundo natural como Aristóteles. Ele redefiniu em seus próprios termos naturalistas a psyché. A alma, aqui, deixa de ser a exilada num mundo que lhe é hostil a seu destino de contemplação da Verdade; ela agora se identifica com o próprio funcionamento do vivo. Tudo quanto é vivo realiza a busca de um fim, de um objetivo (télos). Plantas crescem, animais movem-se e reproduzem-se; a alma é a atividade do corpo na realização desse fim. O corpo de um ser vivo é organizado por conta exatamente da ação diretora da alma. Como essa alma está a formar um corpo, a ordená-lo organicamente, Aristóteles diz que a alma é que responde pela forma do corpo. De forma mais simples e lapidar, ele escreveu, lembrando essa função estruturante da psyché: “A alma é a forma do corpo”.

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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

As comparações feitas pelo próprio Aristóteles em seu Tratado da Alma permitem que vejamos essa alma como mortal, pois ali se diz dela que está para o corpo assim como a visão para o olho, o que significa dizer que, sem o suporte material, a alma passa a inexistir. O sinete, para explorar outra comparação de Aristóteles na referida obra, para que possa ser reconhecido, precisa forçosamente da cera onde se imprime. Como poderia, então, uma forma qualquer se imprimir sem haver um corpo?

Contudo, a questão não é tão simples: no mesmo Tratado, Aristóteles informou de uma parte da alma “não misturada” ao corpo. É por onde a imortalidade da alma humana se infiltra nesse complexo sistema de pensamento – não sem nos deixar aturdidos, tentando conciliar o Aristóteles naturalista com esse outro que vê numa porção racional da alma humana, o intelecto agente, um destino diverso daquele experimentado pelas formas organizadoras de todos os outros seres vivos. Tentar entender o modo com que a sobrevivência dessa alma pôde ser aí imaginada abrange uma discussão que se desdobra por muito tempo na filosofia e não com poucas implicações. Por ora, concentremo-nos na imagem do mundo aristotélico – em particular dos seres animados.

Cada espécie, ocupando um lugar fixo numa verdadeira escada dos seres (imagem que influenciou vivamente o pensamento biológico posterior, mas que hoje não faz qualquer sentido),

procura atingir seu princípio de perfeição. Move-se, portanto. Esforça-se na consecução desse fim. Todas as espécies encontram-se assim dispostas, de tal modo que parecem se elevar, mas nunca passando de um degrau para o outro, até o mais organizado dos seres, um em que não há mais por que se mover em busca de um fim, pois ele já é puro Noüs. Esse ser é Deus, responsável por todo o universo estar se movendo em sua direção, embora permaneça imóvel, uma vez que nele já se encontra realizada a própria perfeição.

O modelo de um mundo de seres hierarquizados e explicados em termos de causas finais é hoje insustentável. O darwinismo, no século XIX, destruiu por completo essa visão finalista do mundo. A biologia imaginada por Aristóteles pode certamente ser tomada como admirável, mas seus princípios são indefensáveis. A teoria da evolução vigente hoje é ostensivamente não-teleológica – a ciência como um todo abre mão desse tipo de explicação finalista, progressivamente, desde a tradução mecânica do mundo operada pela Revolução Científica.

De qualquer forma, Aristóteles incluiu na agenda filosófica uma preocupação com o mundo natural. Passar dias na descrição de um molusco não é tarefa vã, pois para o estudioso atento a Natureza permite ver o fim para que concorrem aquelas estruturas todas. Debruçar-se sobre o mundo natural é perceber o esquema de ordenação de um universo. Estudar a natureza volta a ter uma nobreza que a tradição místico-racionalista a que pertenciam Platão e Pitágoras recusara.

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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

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O caráter mais linear e cumulativo da aquisição do conhecimento em Aristóteles

Recordemo-nos de que, conforme Platão, o verdadeiro conhecimento se opõe àquilo que nos informam os sentidos. Conforme a imaginação platônica, é somente quando devidamente eximidos da miopia e da miséria da visão sensível que poderemos, através do “Olho da Alma” – metáfora cara tanto ao texto do Banquete quanto à famosa alegoria da caverna, no Livro VII de A República –, nos mostrar capazes de capturar, num exercício de pura contemplação, as Formas perfeitas e imóveis do Bom, do Belo e do Justo.

Recordemo-nos de que, conforme Platão, o verdadeiro conhecimento se opõe àquilo que nos informam os sentidos. Conforme a imaginação platônica, é somente quando devidamente eximidos da miopia e da miséria da visão sensível que poderemos, através do “Olho da Alma” – metáfora cara tanto ao texto do Banquete quanto à famosa alegoria da caverna, no Livro VII de A República –, nos mostrar capazes de capturar, num exercício de pura contemplação, as Formas perfeitas e imóveis do Bom, do Belo e do Justo.

É bem verdade que Platão, em certos textos particularmente, exalta o sentido da visão. Contudo, à ideia da visão como “verdadeira dádiva dos deuses”, a este grande elogio expresso no Timeu pode-se contrapor facilmente inúmeras outras passagens que atestam a descrença de Platão quanto ao valor da visão corpórea. De pronto basta, por exemplo, lembrar, na anteriormente referida alegoria da caverna, do mundo de completo engano em que estão envolvidos os prisioneiros, os quais confiam plenamente na informação primeira dos sentidos. Pode-se recordar, ainda e exatamente com o mesmo objetivo, sua não menos desconhecida hostilidade às artes miméticas, especialmente à pintura.

Não nos equivoquemos, portanto: o conhecimento em Platão faz-se sempre contra o obstáculo dos sentidos – incluindo-se aí, também, o sentido da visão. Como Cornford escreve, não é com os olhos que a alma vê; enquanto o faz através deles, aquela sempre verá mal: “Os olhos e os ouvidos não são, para o platônico, as janelas da alma abrindo-se para a realidade. A alma vê melhor quando essas janelas estão fechadas e mantêm uma silenciosa conversação consigo mesma na cidadela do pensamento” (2001, p. 76).

sempre contra o obstáculo dos sentidosAssim Platão se expressa no Fédon: “E o que dizer quanto a adquirir a sabedoria: é ou não o corpo um obstáculo quando aceitamos associá-lo nessa procura? Mais concretamente: há alguma dose de verdade naquilo que os homens aprendem, por exemplo, pela vista e pelo ouvido ou (como até os poetas por aí repetem à saciedade...) nada do que vemos e ouvimos é seguro?”. Seja ainda sublinhado que, se Platão já mostra para com esses sentidos uma atitude de desconfiança, para com os demais, tidos como menos nobres, tal disposição em muito mais se acirrará. Acerca, pois, de sua avaliação sobre a confiabilidade desses outros sentidos, prossegue, dizendo, no mesmo passo da obra citada, àquele discípulo Símias: “E refiro-me apenas aos sentidos da vista e do ouvido, porque, se estes não são seguros e exatos, os outros muito menos o são, dado serem, suponho, ainda mais falíveis” (Cf. Platão, 2000, p. 41).

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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

Mas é você quem deverá observar esse caráter mais contínuo e suave do conhecimento, em Aristóteles, desde as sensações até a ciência. Você se recorda do quão dolorosa foi para o prisioneiro da alegoria da caverna, de Platão, a superação de sua consciência confinada nas primeiras impressões? O quanto lhe foi custoso o conhecimento?

Leia o texto a seguir (ele é o primeiro capítulo do Livro I da Metafísica, de Aristóteles) e observe que o homem, para este filósofo, já parece estar aparelhado para o conhecimento. Observe que o prazer dos sentidos é a evidência, para Aristóteles, desse desejo natural de conhecer. Sim, aqui os sentidos não se opõem ao conhecimento, mas iniciam o seu processo de obtenção. Trata-se de uma posição que é chamada de empirismo. Será o empirismo uma boa resposta acerca de como o nosso conhecimento se constrói?

A Metafísica de Aristóteles (Leia o Texto complementar)

Indo além

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Dúvidas

Contraste-se tal atitude de Platão com a seguinte passagem do texto de Aristóteles selecionado para a leitura adiante: “Não apenas com vistas à ação, mas mesmo quando não se pretende ação alguma, preferimos a visão, em geral, a todos os outros sentidos. A razão disso é que a visão é, de todos eles, o que mais nos ajuda a conhecer coisas, reve-lando muitas diferenças”. Parece então que o processo de conhecimento, na imaginação aristotélica, se faz de forma bem menos descontínua para com a experiência sensorial do que se fazia no esquema platônico.

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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

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Texto complementar

Primeiro capítulo do Livro I da Metafísica, de Aristóteles

Por natureza, todos os homens desejam o conhecimento. Uma indicação disso é o valor que damos aos sentidos; pois além de sua utilidade são valorizados por si mesmos e, acima de tudo, o da visão. Não apenas com vistas à ação, mas mesmo quando não se pretende ação alguma preferimos a visão, em geral, a todos os outros sentidos. A razão disso é que a visão é, de todos eles, o que mais nos ajuda a conhecer coisas, revelando muitas diferenças.

Ora, os animais nascem por natureza com o poder da sensação, daí adquirindo alguns a faculdade da memória, enquanto outros não. Por conseguinte, os primeiros são mais inteligentes e capazes de aprender do que aqueles que não podem se lembrar. Aqueles que não ouvem sons (como a abelha ou qualquer criatura semelhante) são inteligentes, mas não conseguem aprender; só são capazes de aprender os que possuem esse sentido, além da faculdade da memória.

Assim, os outros animais vivem de impressões e memórias e só têm pequena parcela de experiências; mas a raça humana vive também de arte (techne) e raciocínio. É pela memória que os homens adquirem experiência, porque as inúmeras lembranças da mesma coisa produzem finalmente o efeito de uma experiência única. A experiência parece muito semelhante à ciência e à arte, mas na verdade é pela experiência que os homens adquirem ciência e arte; pois, como diz Pólo com razão: “a experiência produz arte, mas a inexperiência produz o acaso”. A arte se produz quando, a partir de muitas noções da experiência, se forma um único juízo universal a respeito de objetos semelhantes. Julgar que quando Cálias estava sofrendo dessa ou daquela doença isso ou aquilo lhe fez bem, o mesmo acontecendo com Sócrates e vários outros indivíduos, é questão de experiência; mas julgar que a mesma coisa fez bem a todas as pessoas de certo tipo, consideradas como classe, que sofrem dessa ou daquela doença (por exemplo, os encatarrados ou biliosos que ardem em febre) é questão de arte.

Pareceria que para efeitos práticos a experiência não é de modo algum inferior à arte; com efeito, vemos homens de experiência tendo mais sucesso do que aqueles que possuem a teoria sem a experiência. A razão disso é que a experiência é conhecimento de coisas particulares, ao passo que a arte trata de universais; e as ações e os efeitos que produzem se referem ao particular. Porque não é o homem que o médico cura, senão casualmente, e sim Cálias, Sócrates ou alguma outra pessoa que tem igualmente um nome e é por acaso também um homem. Assim, se um homem tem teoria sem experiência e conhece o universal, mas não o particular nele contido, com frequência falha no seu tratamento, pois é o particular que deve ser tratado. No entanto, achamos que o conhecimento e a eficiência são antes questões de arte que de experiência e supomos que os artistas são mais sábios que os homens apenas experientes (o que implica que em todos os casos a sabedoria depende, sobretudo, do conhecimento), e isso porque aqueles conhecem a causa e estes não. Pois o homem de experiência conhece o fato, mas não o porquê, enquanto os artistas conhecem o porquê e a causa. Pela mesma razão, estimamos mais os mestres de toda profissão e achamos que sabem mais e são mais sagazes que os artesãos, pois conhecem as razões das coisas produzidas; mas achamos que os artesãos, como certos tipos de objetos inanimados, fazem coisas sem saber o que estão fazendo (assim como o fogo queima, por exemplo); só que, enquanto os objetos inanimados desempenham

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A filosofia e o conhecimento - Módulo 2 Filosofia

todas as suas funções em virtude de certa qualidade natural, os artesãos realizam as suas por hábitos. Assim, os mestres são superiores em sabedoria não porque podem fazer coisas, mas porque possuem uma teoria e conhecem as causas.

Em geral, o sinal de conhecimento ou ignorância é a capacidade de ensinar, e por essa razão achamos que a arte, e não a experiência, constitui conhecimento científico; porque os artistas podem ensinar e os outros, não. Além disso, não consideramos nenhum dos sentidos como sendo a Sabedoria. Eles são de fato nossas principais fontes de conhecimento sobre as coisas particulares, mas não nos dizem a razão de nada, como por exemplo, por que o fogo é quente, mas apenas que ele é quente.

É, portanto, provável que de início o inventor de qualquer arte que foi além das sensações ordinárias tenha sido admirado pelos companheiros, não apenas porque algumas das suas invenções fossem úteis, mas como uma pessoa sábia e superior. E à medida que mais artes iam sendo descobertas, algumas ligadas às necessidades da vida e outras à recreação, os inventores destas últimas eram sempre considerados mais sábios que os daquelas, porque seus ramos de conhecimento não visavam à utilidade. Daí, quando todas as descobertas desse tipo haviam sido plenamente desenvolvidas, inventaram-se as ciências que não se relacionam nem ao prazer nem às necessidades da vida, e primeiro naqueles lugares onde os homens gozavam de tempo livre. As ciências matemáticas surgiram na região do Egito porque ali a classe sacerdotal tinha tempo disponível.

A diferença entre a arte e a ciência, de um lado, e as outras atividades mentais análogas, de outro, foi exposta na Ética; a razão da presente discussão é que geralmente se supõe que o que chamamos Sabedoria diz respeito às causas e princípios primeiros, de modo que, como já vimos, o homem de experiência é considerado mais sábio do que os meros possuidores de uma faculdade sensível qualquer, o artista mais do que o homem de experiência, o mestre mais do que o artesão e as ciências especulativas mais doutas do que as práticas. Assim, está claro que a Sabedoria é o conhecimento de certas causas e princípios (apresentação e textos de Marcondes, 2000, p. 45-48).

ReferênciasCORNFORD, F. M. Antes e Depois de Sócrates. Trad. Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.PLATÃO. Fédon, Trad. Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Brasília/São Paulo: UnB/Imprensa Oficial do Estado, 2000.

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