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Filosofia & Espiritismo Este é um espaço destinado a discussão sobre os pontos de encontro entre a filosofia, como disciplina especializada, e o Espiritismo. Nosso principal objetivo é contribuir para o estudo das questões filosoficamente relevantes dentro do modelo teológico e filosófico representado pelo Espiritismo. Alguns temas receberão tratamento técnico, enquanto outros serão contemplados com ensaios destinados ao leitor leigo. Espero que gostem. Muita paz.

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Filosofia & Espiritismo

Este é um espaço destinado a discussão sobre os pontos deencontro entre a filosofia, como disciplina especializada, e oEspiritismo. Nosso principal objetivo é contribuir para oestudo das questões filosoficamente relevantes dentro domodelo teológico e filosófico representado pelo Espiritismo.Alguns temas receberão tratamento técnico, enquanto outrosserão contemplados com ensaios destinados ao leitor leigo.Espero que gostem. Muita paz.

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Confúcio, o organizador do leste

Chow Yun Fat como Confúcio

O sábio deseja ser lento ao falar e rápido ao agir[1]

Há cerca de 2600 anos atrás a China vivia temposturbulentos e decadentes que em muito lembravam asociedade atual. Assim como os gregos do mesmo período, oschineses viviam em uma sociedade fragmentada onde barõese pequenos lordes possuíam quase todo o poder econômico, eos governos nacionais eram distantes e indiferentes àsdificuldades do interior e do campo. A confluência de riqueza,produzida pelo alto grau de urbanização e pela divisão doscampos em unidades controláveis pelos barões, e corrupçãogerada pela falta de fiscalização sobre estes mesmos barões,ocasionou todo o tipo de excesso dos magnatas oligarcas,que, então, dispunham impiedosamente da vida doscamponeses e citadinos, além de se entregarem a víciosinumeráveis.

Lao Tzu, abismado com a perversão dos mandatáriosestabelecera já em 700 a.C. a mais liberal de todas asdoutrinas políticas, postulando que o melhor bem por partedos governantes seria não agir. Ele certamente não teria seescandalizado mais se visse hoje um país com numerosospolíticos cuja única função é a de alterar nomes de ruas evotar aumentos a si próprios, mas talvez não deixasse de nos

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olhar com justa repugnância por elegermos jogadores defutebol, comediantes e cantores como nossos representantes.

Enojado ou resignado o mestre Lao proporiaindubitavelmente um maior afastamento da vida mundana edos interesses rasteiros do comércio e da política comosoluções para o descalabro. Como Vergílio e Rousseau,desesperara-se com a vida urbana e imaginava uma bucólicarestauração da vida campesina, se possível selvagem.

Confúcio, entretanto, era de lavra inteiramente diferente domestre. Ele entendia ser o papel do sábio a reforma dasociedade, não o isolamento dela. Sem fazer julgamentos devalor quanto a estas duas atitudes, até porque o estilomonástico de Lao Tzu não deixa de despertar em nós infinitareverência, é preciso reconhecer a coragem de Confúcio emabraçar uma tarefa insólita tal qual a de reformar a ordemmoral de uma cultura que sucumbia.

Antes mesmo de saber que estava grávida, a mãe de Confúciohavia recebido a visita de um espírito avisando-lhe quehaveria de dar a luz a um grande sábio.[1] E durante a suaadolescência, diz-se, já recebia discípulos de várias partesque nele buscavam orientação para uma vida perfeita.

Confúcio se considerava um ministro de Deus na terra,embora quase nunca falasse de Deus. Sua doutrina lembraalgo entre o estoicismo e o espírito clássico grego, conforme omanifestam Pitágoras ou Parmênides. Seu Deus não é um paiamoroso como o do Cristo ou um Uno de pura beleza como ode Platão, mas um Soberano bem ao estilo do VelhoTestamento, e ainda mais distante. Confúcio via nos céusuma majestade da qual não se deveria falar em excesso, epara quem a piedade é a virtude impoluta do servo.

Não estranha que sua divindade seja tão estranha aos olhosocidentais, ainda hoje. Enquanto os europeus seassemelhavam aos selvagens mais primitivos e os própriosgregos andavam nus e organizavam bacanais, a China era

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um lugar repleto de burocratas, funcionários públicos comcamisas de mangas longas e colarinho apertado; a nudez,mesmo parcial, parece ter desaparecido há vários milhares deanos. A imoralidade e a violência eram comuns, masreservadas a ambientes próprios como os haréns dosimperadores, os campos de batalha e os bordéis. O pudordentro ou fora de casa, a compostura e a etiqueta eram aregra de uma substancial parte da população. Daí ser o seuDeus uma expressão da decência, da honra e da nobreza deespírito, uma mistura de Jeová, Zeus e algo mais reservado,mais civilizado.

Quanto aos sacrifícios os chineses sempre se ativeram abusca por boa sorte, mais do que por barganhas. Suasoferendas e rituais são propiciatórios, não expiatórios.[2] Nósainda hoje fazemos nossos sacrifícios na forma de promessasaos santos e deuses – Se eu obtiver isso, te pagarei com umavela! – , etc. é uma relação de desconfiança para com osdeuses, e demonstra uma índole comercial, talvez herdadados judeus. Parece-nos tolo investir em rituais que podemnão dar em nada... Com os chineses é e sempre foi diferente.Os principais sacrifícios e oferendas são oferecidos antes dosempreendimentos. Não há desconfiança no caráter dosdeuses e espíritos, e se o pedido não for respondidoadequadamente a responsabilidade é apenas do fiel. A relaçãoé a da mais absoluta confiança nos seres divinos. – Se queroalgo, pedirei a proteção dos deuses para a empresa, se eu amerecer e/ou pedir corretamente eles me concederão algumagraça.

Isso não significa que os chineses dessem menos valor aosseus rituais. De fato eles parecem lhes dar muito mais valor,e antes da revolução comunista praticamente ninguém fazianada sem antes se certificar de estar devidamente munido deamuletos, augúrios e rituais apropriados para garantir a sortee o sucesso.

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A ética chinesa não nos soa menos estranha. Escassa deromantismo, ela não nos instiga a admiração ou o amor, maso respeito. Esta diferença provém de um senso práticoprofundo. Admiração e amor podem ser impossíveis, mas orespeito está ao alcance de qualquer um. Podemos respeitarnossos semelhantes por apreço a nossa própria educação,como muitos ocidentais sempre fizeram. Podemos ver emalguém um cretino, um torpe, e seria preciso uma grandeelevação espiritual para o apreciar em algum sentido, maspodemos nos educar o bastante para não o desprezar,humilhar ou punir pelo incômodo que nos causa. Ao passoque Lao-Tzu recomendava fazer o bem aos inimigos, Confúciose abstinha de lhes fazer mal, e dizia: “Se retribuirmos o malcom o bem, com que haveremos de retribuir o bem?”[3].

Esta dureza moral tem, como sempre, bases metafísicas naconcepção de Deus que acabamos de expor. O Deus deJesus, Lao Tzu ou Platão é um Deus da compreensão e damisericórdia, pois é o jardineiro de todos os seres. O Deus deConfúcio e de Moisés é o juiz ou rei que impõe a lei social eespera o seu cumprimento. Os maus não são nossos irmãosem aprendizado, senão os súditos ingratos de um soberano aquem tudo devem.

Uma moral mais dura e legalista acarreta em maior interessesobre a vida prática. Na verdade ela quer ser o braço da leidivina no mundo, corrigindo as mazelas e endireitando ospecadores para que tudo volte à ordem original. Estaperspectiva poderia ter ocasionado inúmeros problemas erevoltas como os que a expectativa do Messias insuflou naPalestina, mas Confúcio lhes deu uma fórmula tão brilhanteque o instinto de indignação se converteu, não em revolta,mas em esmero. Ao contrário do Deus guerreiro de David, amajestade confuciana é servida exclusivamente pela ordem.Não há como produzir ordem através da desordem, e paracombater o mal é preciso nada menos do que a perfeição daconduta. Nem a caridade que converte o mau por amor, nema guerra santa que o expurga pela espada dos justos. A

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religião de Confúcio inaugurou no mundo uma formainteiramente distinta de lidar com o mal, e que consiste emanulá-lo. Desta forma o enfoque moral não está em perseguirou transformar a maldade em bem, mas em impedir que elaseja possível.

Desde o começo esta ideia deve ter soado utópica, e Confúcioestava tão ciente da estranheza que sua proposta causariaque a embasou na mais cristalina razão prática, social epolítica, impedindo-a de cair no plano teórico onde soariabela, sem produzir qualquer fruto. Ao contrário do Estadoutópico de Platão, a ordem social de Confúcio não exige umrei filósofo ou qualquer outro expediente que possa serfrustrado. Ela deita, bem ao contrário, sobre a cultura, aeducação pública, a religião institucional e todos osmecanismos mais objetivos de regulação do comportamento,ignorando aqueles aspectos espirituais da ética (osentimento), da política (a justiça) e da religião (a mística).

Esta filosofia inteiramente “mundana” podia ser facilmentecompreendida e praticada por qualquer um, e aí a sua força.A religião, sobretudo, foi organizada, sintetizada ereformulada de tal maneira a expressar o ethos confuciano derespeito, moderação e disciplina. A teoria política aproximou-se do legalismo, diminuindo os desmandos e arbitrariedadesdos governantes e instaurando, não um Estado de Direito,mas uma cultura do direito. Suas reformas sociais ampliaramtanto a classe letrada que, na prática, formou-se o que osteóricos da democracia concluiriam vinte e quatro séculosdepois sobre os benefícios da ampliação da classe médiacomo mecanismo de controle sobre a nobreza.

Ao invés de uma igreja nacional, o estado inspirado porConfúcio construiu escolas públicas. O templo confuciano é aescola de administração pública.

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Ao realizar estas reformas Confúcio criou um sistema quaseinfalível de preservação da cultura. Ele tem a vantagem,sobre todos os outros sistemas políticos, de ser realista emeritocrático. É realista porque reconhece que muitos nãodesejarão ou poderão participar da vida política, por isso nãoexige a sua participação. O povo comum não se interessa porpolítica, e arrastá-lo para ela traz sempre consequênciasdesastrosas. Os poderosos, por sua vez, sempre existirão, e éimatura criar um sistema que tente impedir os ricos oumilitares de, eventualmente, tomarem o poder.

É, certamente, uma filosofia pessimista, que objetiva maisanular o mal do que promover o bem. Afinal, para Confúcio, anatureza humana é essencialmente fraca e corrupta: “Jamaisconheci um homem que amasse mais a virtude do que asmulheres.”[4]

A melhor solução, portanto, é criar um sistema tal em que opoder seja distribuído pela classe dos burocratas. Assim otirano detêm uma parcela grande de riqueza e poder, masdepende do sistema legal e burocrático para que as coisasfuncionem. Os generais se sentavam no trono após um golpede estado para descobrir de maneira frustrante que suasordens não eram mais expedidas imediatamente por seusemissários e subordinados, mas submetidas a conselhos,atreladas a rituais e acareações que podiam, ao gosto dosfuncionários, impossibilitar o governo. Tiranos benquistos ecom mais habilidade política conquistavam conselheiros efuncionários rendendo-lhes o devido respeito, bem aosmoldes de hoje, e assim conseguiam governar. O camponês, osoldado, o comerciante e o artesão nada precisavam saber depolítica, e também não podiam se revoltar sem antes aturaruma boa dose de meses de leitura. Com isto a política estavavirtualmente livre da insensatez das massas.

É bem esta tônica que se encontra nas passagens principaiscomo: “Se governas o povo pela lei, e os mantêm em ordempelas penas, ele evitará a pena, mas perderá o senso de

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vergonha. Mas se os governares pela tua excelência moral eos mantiveres em ordem pelo decoro da tua conduta, o povoreterá seu senso de vergonha, e se esforçará por viverconforme os padrões.”[5]

Este é bem o tipo de moral que não nos arrebata osentimento ou conquista nossa esperança romântica, mas oseu realismo racionalista e o seu zelo refinado não nos deixaapáticos. De fato, esta e outras manifestações de um“puritanismo maquiavélico" nos constrangem e fascinam.

Também as afamadas paciência e resiliência chinesasencontram nos Anacletos suas melhores expressões: “Omestre disse: Aos quinze assentei minha mente na sabedoria;aos trinta eu perseverava; aos quarenta fui libertado dasdúvidas; aos cinquenta entendia as leis celestiais; aossessenta tinha um ouvido dócil; aos setenta podia seguir osdesejos do coração sem transgredir a lei.”[6]Quem chamariaisto de otimismo? Que ocidental colocaria o conhecimentocelestial e décadas de labor intelectual e moral comopressupostos a simples capacidade de adequar o coração aodireito? De fato, há poucos cristãos imbuídos desta índolepascalina, pois a juventude de nossa raça faz de nós ouindiferentes ou excessivamente empolgados com a vida moral.Ou supomos orgulhosamente estarmos assentados naperfeição moral, como os fanáticos cristãos e islâmicos queimaginam agradar a Deus imediatamente após a conversão,passando a zelar pedantemente por regras que nãovivenciam; ou executamos nossas cerimônias com aindiferença de quem não tem outra opção.

Como verdadeiro filósofo, Confúcio entende que não háconcessões e exceções em se tratando de moralidade. O certoe o errado não são relativos, nem podem ser suspendidosconforme nossas conveniências. “O homem honrado jamaisse esquece da virtude, mesmo no momento das refeições. Emtempos de pressa, ele se apega a ela; na época de grandeperigo, ele se apega a ela.”[7]

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Inúmeras passagens demonstram que este conceito devirtude se resume na cordialidade. O recente filme sobre avida de Confúcio, uma obra prima extremamenterecomendável, nos dá esta imagem peculiar da santidadechinesa. Não sentimos em momentos algum o espírito heroicoeuropeu ou a aura mística dos judeus. Não é uma história demilagres ou de grandes sacrifícios. Confúcio vive bem,embora com frugalidade, não desafia as instituições, comoCristo, mas procura atrair para si os que estão dispostos a secorrigir. A imagem do sábio, na profunda interpretação dogenial Chow Yun Fat, é a da gentileza, paciência e maisextrema polidez. Sua energia nos dá a mesma impressão dostextos, a de uma constância inabalável. Em Jesus asantidade é serena, mas expansiva. Há rompantes de tristeza,indignação e admoestações severas e imediatas aos erros dosdiscípulos. Em toda a personalidade do Cristo vemos ocaráter mediterrâneo de um herói e de um líder nato, dealguém que sem o menor receio assume a postura de profeta;a santidade coincide com bravura de um chefe ou patriarca.Em Confúcio, como em outros mestres chineses, vemos asantidade quase tímida, temerosa de se afirmar. As emoçõesestão internalizadas naquela forma tipicamente oriental quenos soa indiferente ou ensaiada. O santo ouve os maioresdisparates e observa as piores injustiças com expressãoimperturbável, para só depois pedir licença para falar commuitas reverências com as mãos e a cabeça. O ensinamentoprincipal não é o discurso que se segue, mas estecomedimento, esta etiqueta que a tudo resiste; a santidadecoincide com a civilidade.

O desenvolvimento deste tipo asiático de santidade não se dáatravés de experiência e provação, mas de paciente estudo.“Quando vires um homem de valor, pensa em subir ao seunível. Quando vires um homem sem valor, olha para dentro eexamina a ti mesmo.”[8] Desta forma não há desculpa para afalta de educação moral. Para se obter um aprendizado moralconstante basta a companhia de duas pessoas. Olhamos para

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uma e vemos uma qualidade que podemos imitar; logoolhamos para a outra e vemos um defeito que podemos evitarreproduzir. [9]

Quanto a vida prática, Confúcio era frugal, mascriterioso. Podia comer somente arroz, mas não aceitava nadaque não fosse fresco e bonito, e recriminava os que qualquercoisa consumiam. Suas roupas podiam ser velhas e rotas,mas limpíssimas e cuidadosamente conservadas e dobradas.Dizia-se que seu vestuário era o de um mendigo, mas seuasseio e posturas os de um nobre. Por diversas vezes dormiuem estábulos e cavernas, mas os limpava e saneava pormuitas horas antes de se instalar. A vassoura era uminstrumento permanente da bagagem do santo. Esteselementos estão entre os que com mais sensibilidade foramretratados no filme.

O que talvez tenha ficado marcado como a parteprincipal de seu ensino e personalidade, contudo, foi otradicionalismo. As passagens que louvam a piedade filial, ocuidado e o respeito para com os idosos e o amor ao templo eaos rituais se repetem de forma quase entediante. Dezenas deanedotas falam da visitação a funerais, e insinuam umacompaixão especial por pessoas em luto. Viuvez, orfandade e,principalmente, pais que perdiam os filhos pareciam aConfúcio as situações mais dignas de compaixão econsideração. A morte de amigos também era consideradauma dor terrível.

Em relação aos espíritos era econômico e pragmático:“Se ainda não comecei a entender os vivos, como esperar queeu compreenda os mortos.”[10] Deixava, portanto, osassuntos escatológicos e místicos aos discípulos de Lao Tzu,que neste campo se especializavam. Esta disciplina emmanter o foco pragmático de sua investigação ressoavirtuosamente com a própria força prática do ensinamentoque ele queria transmitir.

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Justiça seja feita, o pragmatismo confuciano nãosignifica desprezo pelos assuntos espirituais ou abstratos, esua importância se comprova pelo fato de agora, vinte e cincoséculos depois, continuar a ser o sistema mais estudado ecelebrado da China. Os últimos trinte ou quarenta anosviram uma impressionante renascença confuciana quepromete crescer nas próximas décadas. Com o retorno daChina ao ponto culminante da civilização terrena, estepensamento deverá se tornar cada vez mais parte do nosso.

Referências:

CONFUCIUS. Analectos. By William Edward Soothill.Yokohama: Fukuin, 1910.

Obs: Este livro é o melhor de quarto edições consultadas. Oorganizador apresenta uma primorosa introdução contendoinformações históricas e biográficas, e acompanha o textoprincipal com meticulosas análises linguísticas que justificama escolha das palavras para a versão inglesa.

Confúcio, o filme. 2010. Obs: uma superprodução que sededicou intensamente a reproduzir o quadro cultural e apersonalidade de Confúcio. A biografia parece ter sidomontada com base em relatos dos discípulos e comentadoresposteriores, além dos textos principais.

Metafísica da subjetividade: Metáforas para o espírito.

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A desintegração do sujeito iniciada por Nietzsche e pelosantropólogos culminou na perda da dimensão íntima, aomenos na meditação filosófica. Desde o século XX vigora avisão do homem “como ele é”, sem os encargos de projeçõesidealizadas, mas esta é uma visão limitada por seus próprios(e muitos) pressupostos ideológicos. A pauta filosófica não é ada observação imparcial, mas a de uma que, para ser“científica” e “madura”, precisa ser antirreligiosa, amoral eintegralmente relativista quanto à estética e o conhecimento.Mas esta falsa objetividade de análise já recebe, contudo, asua merecida parcela de crítica, especialmente por parte deum movimento de restauração da metafísica que algunsnomeiam como Metafísica da Subjetividade, linha que sebaseia no resgate do foco principal da tradição filosóficamoderna, representada por Descartes.

O bombardeio mais pesado contra esta tradição foilançado por Heidegger em seu programa de combate intensivoà metafísica ocidental. Nele Heidegger pretende ummovimento épico e teatral, bem ao estilo de Nietzsche, depuxar o véu que encobre dois mil e quinhentos anos dementiras e enganos, véu que é representado pela metafísicade Sócrates ao século XX, e que encobre justamente oproblema real da filosofia, o de que somos finitos, o de que sótemos contato com um ser que se apresenta em todas as suaspartes como imediato e dado, e de que toda a especulação,por mais racional que seja, não senão uma fantasia sobre umoutro estado de ser que nunca experimentamos. Como éevidente, esta crítica não apenas desonra os vinte e cincoséculos de atividade intelectual humana, fazendo o cortejo desábios de todos os tempos passar ou por uma trupe de bobos,ou por uma gigantesca conspiração contra a verdade, mastambém nega um campo vasto da experiência, provavelmentemaior do que qualquer outro, que é o da vida religiosa.

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A crítica de Nietzsche a Descartes é a de que este teriainaugurado um ser apartado do real, um ser transcendente eabstrato, um sujeito puramente espiritual em oposição aomundo e à vida. A nova metafísica não quer escamotear tantoquanto fazer justiça a esta interpretação. Nela o sujeito deDescartes não se opõe ao mundo, mas o mundo é que seconstitui de dois princípios, sujeito e matéria. Nossaexperiência do mundo nos informa de uma realidade materiale de uma realidade psicológica, como Nietzsche e Heideggerpercebem, mas o enfoque no meio ou na relação entre ambos,que a ontologia de Heidegger como a do materialismoconsideram obrigatório, não é mais do que um enfoquepossível. Ainda mais grave, quando este enfoque pretendedestruir e negar todos os produtos da introspeção elecompromete seus próprios resultados, já que a introspeção éconstitutiva da realidade, do mundo, ainda que limitada àsua parte subjetiva.

Uma análise ontológica ou existencial do “ser no mundo” nãopode prescindir ou opor-se à uma análise da subjetividadesem deixar de ser existencial e ontológica. A intencionalidadeque revela uma constituição do ente psicológico comointeiramente voltado para objetos é veraz, mas não tratasenão da periferia da subjetividade, de seus membros maisgrosseiros, por assim dizer, onde a subjetividade está emcontato direto com o mundo. Isto deixa em sombras, parausar um termo de Jung, o núcleo da subjetividade, que é aparte necessariamente mais afastada da instrumentalidadepsicológica que se volta para o corpo e o mundo.

O materialismo peca ainda mais ao querer afastar-se atémesmo da existência, o espaço de ligação entre sujeito eobjetos, buscando antes falar da matéria “em-si”, ignorandotodas as exigências críticas do conhecimento.

O que os novos metafísicos da subjetividade, em especialDieter Henrich, perceberam foi que a desconstrução dosujeito em favor de esferas mais afastadas da experiência, a

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da realidade material e existencial, produziu uma respectivaperda de identidade e uma diluição da pessoa humana emsuas funções instrumentais e relações sociais. Esteafastamento se justifica por uma revolta contra o sujeitoextramundano da filosofia moderna, mas este não é, segundoHenrich, mais que ilusório e provocado por uma ânsia deobjetificar a filosofia, tornando-a ciência, ou submetê-la aantropologia.

Reafirmar a irredutibilidade da experiência subjetiva não é,portanto, produzir um sujeito extramundano, apenasreconhecer a prioridade da filosofia sobre as ciências e ahermenêutica, já que é pela subjetividade em últimainstância que se julga o mundo, nosso lugar nele e oscritérios para qualquer análise supostamente exterior daprópria subjetividade. E nisto não basta a subjetividadeengajada de Heidegger, que precisa ser apanhada em seupróprio movimento, mas é imprescindível acertar as contascom a fundamentação do saber pressuposta por estasanálises fenomenológicas ou hermenêuticas.

O sujeito não é extramundano, ou irreal, mas ele certamenteé algo de radicalmente imaterial; sua existência não sepermite conciliar com a mecânica, e tudo o que sabemossobre esta é subsidiado por informação sensorial, um estágioulterior e altamente incerto. Esta é a grande descoberta deDescartes e seu método introspectivo. A filosofia tem de sermetafísica, pois as regras da subjetividade, os critérios eprincípios que regulam a interpretação da experiência, são aparte mais próxima do juízo, enquanto as regras da matéria,da fisiologia e da psicologia empírica já são derivadasdaquelas primeiras, e qualquer virada interpretativa quepretenda pôr o sujeito sob o escrutínio destes elementosderivados tem de falsear de alguma forma as origenssubjetivas de sua própria pressuposição.

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Esta discussão toda gira em torno da repercussão quemetáforas com ao do timoneiro produzem sobre as diferentesinclinações psicológicas.

Nietzsch e e Heidegger se revoltam contra a ideia de queum piloto caído dos céus conduza o corpo como a um veículo,mas sua solução é pior, ao considerar o ser como sistemafechado composto por barco e tripulação, onde esta última, aparte subjetiva, não sobrevive no oceano do ser sem o seucorpo, a parte objetiva, eles concluíram que a subjetividadepossui uma existência real (em função do barco) e umafantasmática (as vidas íntimas dos tripulantes).

Ainda seguindo este exemplo o materialismo privilegia, nasubjetividade, a equipe dos remadores, que pelas suas mãossentem o peso e a fluidez da água, conforme lhes écomunicado pelos remos (os órgãos sensoriais), além de, éclaro, imprimir movimento à nau. A vida do capitão équestionada, bem como sua autoridade, e o vigia no topo domastro é tido por elemento efêmero, dispensável ouimaginário. O materialista sabe perfeitamente que há umadiferença entre o barco e a tripulação, o corpo e a psicologia,mas atribui à tripulação um ser emergente a partir do barco,já que este como matéria inanimada se associa melhor aomundo que a todos circunda; suposição metafísicamuitíssimo audaciosa, para dizer o mínimo; sabe tambémque a água, ou o ambiente, só é acessível à tripulação porintermédio de instrumentossui generis, os remos, âncoras eoutros aparatos. E que as impressões da tripulação,subjetivas, podem não corresponder bem à realidade da água.Neste exemplo nossa subjetividade jamais poderia saber, porexemplo, que a água é molhada, salgada, fria ou quente, etc.,o que nos parece uma informação essencial sobre suanatureza. Não obstante, o materialista confia na experiênciasecundária dos aparatos para concluir que a tripulação sabe,não apenas o suficiente sobre a água, como boa parte do queela verdadeiramente é.

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Com o existencialismo surgiu uma perspectiva inteiramentenova. Identificando a bruteza dos remadores e o afastamentodo vigia em relação à realidade horizontal do barco,concentrou-se no capitão, o ser plantado no convés, mas quetem uma visão do conjunto. Sua função é dar rumo ao barco,e para isso organiza as demais partes da tripulação. Ele é aintencionalidade no quadro maior da subjetividade.Certamente um elemento chave, mas que sozinho nãopermite as conclusões tiradas pelos existencialistas, nosentido de anular a perspectiva do vigia.

A tradição metafísica, que é a filosofia propriamente falando,concentrou-se sempre no vigia no topo do mastro. A suaexistência é inteiramente diferenciada da do restante datripulação que vive sobre o convés. Ao passo que o capitão sedistingue dos demais pela função, compartilha com eles aperspectiva horizontal. Em outras palavras, as partes dasubjetividade que se orientam para funções práticas desobrevivência, interação, entretenimento e mesmoconhecimento, estão fatalmente condicionadas a estas.Somente o vigia goza de uma propriedade peculiar da visãoque lhe permite discernir, mesmo que vagamente, o planogeral do navio e da viagem. Somente ele percebe a confusãoreinante abaixo de si, divisa os escolhos no rumo e as sutisvariações atmosféricas. Este espaço mais íntimo dasubjetividade é o responsável pela eleição dos valores, peloscritérios e princípios do saber. Por força de sua própriaperspectiva diferenciada, ele pode e deve sintetizar o sentidoda viagem e prescrever alterações na rota.

Entretanto, como é ao grupo no convés que cabe a decisãofinal, como é a parte funcional da subjetividade que age, éperfeitamente possível ignorar os conselhos do vigia.

A razão vivencial que se bate com as tarefas concretas domanejo, da percepção e da locomoção nada quer saberdaquela razão que tudo vislumbra das alturas, relativamenteindiferente aos problemas do convés. A vingança da

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tripulação contra este elemento imune às agruras do dia-a-dia foi ignorá-lo como porta-voz da irrisão, mas com isso onavio apenas perde o auxílio e a fiscalização de sua visãodiferenciada, aquela mesma que que o priva dos descaminhose de enormes perdas de tempo.

A razão “livre” do século XX produziu filósofos capazes deapoiar o nazismo e o comunismo tão bem como o capitalismomais destruidor e as fugas da realidade proporcionadas pelacontra-cultura. Idolatra-se hoje os pensadores de Frankfurt,que confessavam só escrever sob efeito do fumo, e osrelativistas absolutos que renegam séculos de edificaçãointelecto-moral. Verdade tornou-se palavra proscrita novocabulário destes pseudo-sábios, e moral ou valores estãoabaixo do ridículo.

A função da subjetividade, de fiscalizar e significar a vida, éconsiderada preconceito cultural obsoleto, dando lugar a umpensamento que fala sem cessar da identidade, ao passo quejamais logra dela se aproximar.

Mas o distanciamento da subjetividade pura não significa asua dissociação do restante do patrimônio subjetivo. Omastro está plantado no convés, e o vigia pertence ao sistematotal do navio tanto quanto qualquer dos tripulantes, destesdependendo e a estes orientando. É pelo seu afastamento daesfera instrumental, temporalizada e contextualizada, que épossível a sua visão peculiar, essencial na economia da nau.

A metafísica jamais tratou de produzir um sujeitoextramundano, apartado do ser, senão de dar voz a umaparte diferenciada da subjetividade. O esforço da metafísicapor encontrar um terreno seguro, que permita o julgamentodo restante de nossos conhecimentos e ações, deriva dapercepção empírica de que esta perspectiva é possível,natural e mesmo automaticamente dada.

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O erro de Nietzsche

Um dos problemas capitais enfrentados pela filosofiahodierna é o de definir sua própria fase de existência. Afinal oque significam as divisões em filosofia moderna econtemporânea, tal como se nos apresentam-nas no quadrodidático do magistério? Seria a filosofia contemporâneamarcada pela pós-metafísica, ou pós-modernidade; mas nestecaso, o que exatamente resta de filosófico na filosofia, se elaassumidamente renuncia ao esforço de remontar às causasúltimas e sintetizar o real numa fórmula compreensível?

É tão precária a divisão da filosofia em etapas que osespecialistas discutem ainda seriamente onde começa eterminam a Era Moderna. Certamente a Modernidadecultural se inicia no século XVII com Bruno, Descartes,Bacon, Galileu, Copérnico e Kepler, ou melhor dizendo, com arevolução científica, que acompanhou também o processoestético-cultural de formação das línguas nacionais. Bemmais difícil é saber se a filosofia acompanhou imediatamenteesta revolução, ou se, como pensam alguns, permaneceuescolástica e subordinada à teologia até Hume e Kant, maisde um século depois. E isto é essencial para definir de quema filosofia contemporânea quer se diferenciar.

Na visão mais ortodoxa a modernidade filosófica seenquadra entre Descartes e Hegel, aproximadamente, períodomarcado pela metafísica da subjetividade. Cum grano salis,os pensadores deste período compartilham o ponto de vistasubjetivo da fundamentação do saber e do ser, terminando

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por identificar a ambos. A partir do positivismo, do marxismo,da psicanálise e, com mais propriedade filosófica eprofundidade, de Nietzsche, inicia-se o processo de críticaantropológica da metafísica moderna, substituindo-se ascertezas metafísicas por explicações sociais, econômicas,linguísticas, psicológicas, etc. Se com Comte e Marx afilosofia foi “substituída” pela “ciência” social, ocorrendo omesmo em relação a Freud, com Nietzsche vemos a implosãoda filosofia a partir de sua própria autoanálise, ainda quecom forte comprometimento do reducionismo antropológico.Nietzsche decretou o erro de Descartes como sendo aabsolutização do sujeito em uma forma pura, imaterial, eextramundana, e a metafísica que se lhe seguiu nada maisseria do que uma insistência nesta elevação esquizofrênica dasubjetividade ao estado divino, puro.

O jovem Nietzsche

Tal diagnóstico se cercou não apenas de toda a vastacrítica antropológica disponível, como da análise do próprioNietzsche sobre os processos de abafamento culturalempreendidos pela tradição cristã. Com sua invulgarerudição, Nietzsche discerniu perfeitamente os movimentosda arte, da religião e da ciência na Antiguidade clássica e emsua mutação no ideal ascético estóico-cristão, vendo nisto umprocesso de decadência, o que não é de todo incorreto.

Neste particular a afirmação cartesiana de um purismoda subjetividade soou-lhe como retrocesso ou continuaçãoacrítica do pensar medieval, pelo que a condenou duramente.Nietzsche viu em Descartes a desumana separação entreespírito e corpo, entre intelecto e vida, entre sujeito e mundo,reivindicando um retorno à vitalidade de uma filosofiacomprometida com esta existência, a concreta. Segundo océlebre teocida, ao contrário de uma alma matemática,

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puramente abstrata e em oposição ao corpo, era precisoresgatar o ideal heroico grego de uma alma dotada depaixões, de pulsões vitais, de amor pelo corpo e pelo mundo.O espírito para Nietzsche é o regulador da saúde humana, asensibilidade absolutamente encarnada que frui ao máximo ador e a alegria, a beleza e a tragédia da existência. Por issomata ele o Deus arquiteto, o puro intelecto, em prol de umretorno dos deuses gregos da música e da dança, do sorriso eda lágrima, deuses, enfim, que afirmem a vida humana, aoinvés de a negar.

A belíssima contribuição de Nietzsche à reavaliação doserros do cristianismo convive, entretanto, com um errocapital, a saber, o de malbaratar a compreensão correta dasubjetividade cartesiana e, por consequência, de toda ametafísica moderna. Enquanto Nietzsche e seus parceiros, ossociólogos e psicólogos, viam na metafísica da subjetividadeum mero rearranjo das concepções escolásticas e platônicas,a crítica mais moderna resgata já em Platão e especialmentena metafísica moderna o sentido preciso da subjetividade,não como elemento isolado, mas região distanciada ouprofunda da vida mental.

O que incomodava aos críticos do século XIX e XX eranaturalmente a concepção de imortalidade da alma e a suaoposição ao corpo, bem como a consequência ética de que avida não se justificava na existência atual, mas somente emreferência a uma outra. Ora, os sociólogos queriam esgotar odrama da existência na realidade socioeconômica atual, omesmo valendo para a psicologia em seu campo de ação. Oque a nova visão da metafísica demonstra, no entanto, é queeste medo materialista não tem razão de ser diante da visãomais completa e acabada da subjetividade, visão esta queestava implícita em toda a tradição metafísica.

A crença na imortalidade da alma, ou sua defesaracional, não é mais do que um momento secundário dapercepção compartilhada pelo materialismo de que há uma

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esfera subjetiva irredutível aos processos explicativos darealidade material. O que mesmo o naturalismo mais durodos dias de hoje admite, uma “certa dificuldade” de reduzir osubjetivo ao fisiológico, é a atestação empírica de que há umaduplicidade ontológica radical, talvez intransponível. É combase nesta percepção universal que metafísicos desdePitágoras afirmaram a possibilidade, quando não a certezada, imortalidade, já que a constituição da subjetividade é, aosolhos de todos, distinta da constituição transitória epuramente formal da matéria. Uma vez que o sujeito não estásujeito à causalidade mecânica, identificando intuitivamenteem si o livre-arbítrio, não tem o seu ser determinado pela suaforma, sentindo-se essencialmente como sensível, intencionale referencial, conclui-se tão somente quanto a sua nãosujeição às regras do corpo, como o ser perecível.

Mas enquanto esta conclusão tem força de prova para oracionalismo, de diversos tipos, é bem verdade que isto nãobasta para concluir favoravelmente a sua existência de fato.Nisto religiosos e materialistas estão errados. Há umargumento racional e imbatível em favor da existência daalma, e isto têm de reconhecer os materialistas, mas estesargumento pode ser puramente válido no âmbitoespeculativo, sem que se constate sua vigência na realidade,e isto têm de reconhecer os religiosos. A solução ortodoxada religião foi pressupor, pela fé, um bom Deus que garante oacerto de nossos juízos. A solução espírita foi buscar umabase empírica para esta alegação puramente especulativa deimortalidade. Em ambos os casos o materialista pode reagir:negando-se a depositar fé no bom Deus, ou questionando aforça das evidências empíricas apresentadas pelo Espiritismo.

O que o materialista não pode fazer, contudo, éconfundir o recurso do religioso ao argumento de fé ou a umaconvicção empírica na veracidade do argumento daimortalidade, com uma crença ingênua e/ou psicológica nasua imortalidade pessoal. Foi precisamente o que Nietzschefez em relação a Descartes. Tal como Marx, Freud e outros

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pensadores antropológicos, reduziu o argumento filosófico auma crítica externa, depositando não apenas a razão dodualismo cartesiano em motivos culturais e psicológicos,como ignorando a fonte empírica, inteiramente não cultural enão psicológica da dupla constituição do ser.

(continua em Metafísica da Subjetividade)

Pontos metafísicos do Espiritismo

As críticas de Kardec aos sistemas especulativos produziramuma impressão errada sobre sua postura diante dametafísica. É comum interpretá-lo como filosoficamentealinhado ao positivismo, doutrina francamente inimiga dametafísica. A maioria dos estudiosos da filosofia espírita,contudo têm como certa a separação de Kardec das correntesfilosóficas de sua época, o que se justifica não apenas pelainsistência no modelo próprio, que ele definia “filosofiaespiritualista”, como igualmente pela ausência de umposicionamento mais claro em relação àquelas correntesentão em voga. – Houve quem por isso o enxergasse como umautor avesso à filosofia.

Uma filosofia prática como a de Kardec, conforme expusemosno artigo Qual é a filosofia espírita, não precisa lançar suaprópria fundamentação teórica, embora sempre pressuponhaalguma. Ora, a filosofia pressuposta pelo Espiritismo jamaispoderia ser a positivista. Em primeiro lugar porque oprogresso no positivismo é substitutivo: da mentira para averdade, enquanto no Espiritismo é melhorista: verdadesintuídas e expressas por alegorias se confirmam e

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aperfeiçoam com a chegada das ciências. Em segundo lugarporque o Espiritismo acolhe explicitamente a noção religiosade revelação. Por fim, mas não por último, porque oEspiritismo depende inteiramente de certos “pontosmetafísicos”, tidos como superados pelo positivismo. Estetambém é um dos motivos da condenação de Kardec porparte de outros pesquisadores do espiritismo ao longo doséculo XIX, já que ele agredia a concepção positivista ecientificista da época ao lançar mão de elementos demetafísica que lhe permitissem formar uma filosofia geral aoinvés de permanecer na experimentação física.

Kardec também declara na introdução de O Livro dosMédiuns, que antes de tornar alguém espírita é preciso fazê-lo espiritualista. Isso não nos deixa espaço para dúvidas; afilosofia de fundo do Espiritismo é o espiritualismo, doutrinaessencialmente metafísica. O positivismo adere ao corpoteórico espírita como contributo metodológico ao processopropriamente científico ligado à mediunidade.

Convencidos de que o Espiritismo é filosofia espiritualista,precisamos ter diante dos olhos o quadro do espiritualismofrancês de princípios do século XIX. Tratava-se de umespiritualismo genericamente amparado pela filosofiaracionalista de Descartes, expandido pela meditação ética epsicológica do pensamento francês dos séculos XVII e XVIII,enamorado do Romantismo em ebulição, amadurecido peloecletismo e, por isto mesmo, associado às pesquisas culturaissobre religiões antigas.

A melhor forma de confirmar este diagnóstico é olevantamento dos pontos metafísicos do Espiritismo. E oprimeiríssimo destes pontos é a certeza cartesiana.

Kardec pertence a melhor parte da filosofia francesa, quemanteve as condições críticas da filosofia cartesiana semrecair na metafísica sistemática. Neste sentido ele estáalinhado a Descartes, Pascal e Rousseau, e separado deMalebranche, Leibniz e Spinoza. A percepção de que o

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pensamento, como fato incontroverso da consciência,pressupõe sempre automaticamente um sujeito, apesar deextremamente sólida, constitui um posicionamentometafísico, já que o ceticismo extremo pode ainda fugir a estaconclusão.

Assim a afirmação da objetividade de um sujeito, para alémde impressões epifenomenais ou vícios de linguagem, énaquela época tanto quanto hoje uma afirmação dossimpatizantes da metafísica. A diferença está apenas napredominância que esta visão tinha sobre a materialista.

Como em Descartes, o Espiritismo também se defende daingenuidade racionalista evocando uma hipótese ético-epistemológica, a de que Deus não permitiria nosso enganoem relação aos elementos essenciais do conhecimento. Comisto a fé na razão não é uma fé dogmática, mas postulada porumaesperança num Deus bom e inteligente que nos garante asaúde da razão. Em outras palavras, a razão assenta desde oprincípio sobre a fé (ponto que é compartilhado pelopragmatismo).

Incontáveis materialistas tentaram perverter esta relaçãoidentificando a “aposta razoável de Descartes” como umarecrudescência da filosofia medieval, em favor de um dogmada existência de Deus e da eficácia da razão. Afundamentação de Descartes permanece, no entanto, comopedra fundamental da filosofia moderna, sustentandoduplamente a vigência da razão e a sua própria autocrítica,numa fórmula extremamente imparcial de “confiançalogicamente necessária”.

A cosmologia espírita pressupõe igualmente a divisão deDescartes, por sua vez bastante platônica, entre o elementoextenso e o pensante. Mas, conforme disse certa vez meumentor Luís Dreher: “É um erro comum atribuir a Descartesuma filosofia dualista, quando, na verdade, ele mantém umesquema de três substâncias, como todo bom jesuíta. Asubstância primeira é Deus, sendo as duas outras por Ele

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criadas e dele distintas.” Esta interpretação agrada aindamais ao Espiritismo, que faz desdobrar de Deus o princípiomaterial e o princípio inteligente, que podem se contraporentre si, estando sempre, contudo, subordinados a Deus. Oque também não deixa de diluir em muito o dualismo, agoraclaramente unificado pelo vértice que a substância divinaproporciona, resolvendo com isto inúmeros problemasmetafísicos ligados à descontinuidade de um mundo dividido.

As especificidades da substância pensante e da material sãotambém largamente expostas em O Livro dos Espíritos, sendoimpossível classifica-las em qualquer outra denominação quenão a de elementos metafísicos. O estudo dos argumentos deKardec e dos espíritos demonstra também que odesenvolvimento destes pontos segue o método investigativoda metafísica tanto quanto sua definição final. Há todo umcuidado em diferenciar e contrapor propriedadesontologicamente conflitantes, unificando-as, ao mesmotempo, em processo dinâmico de contraposição positiva. Oscomentários dos espíritos parecem frequentemente abusar dadialética platônica e/ou da redução do conceito à funçãodeterminativa das coisas. Que outra forma de validar um tipode filosofia poderia ser mais direta do que esta?

Não convém estender demasiadamente a lista, mas oEspiritismo também recorre sem reservas a conceitosabsolutamente inverificáveis pela experiência e que sópossuem importância especulativa. Exemplos clássicos são:mônadas, karma e o próprio períspirito (Afinal é uma terceirasubstância criada, ou, como parece, um ponto de contatoentre a inteligente e a material?). Qualquer destes elementosé útil para a solução de problemas sistemáticos, e por issomesmo têm sua justificação metafísica garantida, mas já nãopermitem mais aproximações entre o Espiritismo e oPositivismo com “P” maiúsculo, de Comte. Pode-se, quandomuito, investigar a ligação entre o método de Kardec e opositivismo histórico do contexto da época.

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Quanto à metafísica, ela sempre esteve presente nostrabalhos filosóficos dos estudiosos do Espiritismo, e porqueo Espiritismo quer falar das causas últimas, sempre estará.

Kant e Kardec, mais do que o K em comum.

Immanuel Kant, o maior de todos os filósofos da EraModerna, tem uma recepção problemática por parte doEspiritismo. De uma lado ele atacou a metafísica dassubstâncias, que constitui um elemento prioritário dametafísica espírita (pense-se em fluido cósmico universal,períspirito, centros de força e coisas semelhantes), de outrolado ele fez uma crítica direta ao fenômeno da vidência,manifestado com grande alarde por outro Emanuel, oengenheiro e místico Swedenborg.

Kant errou, como todos, em alguns pontos, mas tomá-lo por antagonista é mais do que uma má estratégia filosófica:para quem queira sustentar alguma forma de racionalismomoderno, é suicídio.

Contudo, há boas razões para afirmar que o uso deKant por parte de adversários do Espiritismo é mais motivadopor ignorância do que por qualquer outra justificativa, e omesmo vale para o incômodo de pensadores espíritas emrelação ao pensador de Königsberg.

Se o mundo viu um homem imparcial nos seusjulgamentos, este foi o eremita e cientista prussianotardiamente convertido à filosofia. Ao ouvir falar de umvidente sueco que recebia mensagens dos espíritos e se

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afirmava capaz de se desdobrar em viagens astrais, Kant seabsteve de ambas as reações típicas dos demais sereshumanos; nem condenou como louco o vidente, nem orecebeu instantaneamente como taumaturgo fantástico.Dedicou-se, ao contrário, a uma terrivelmente trabalhosaanálise que objetivava aclarar a possibilidade de ocorrênciade tais fenômenos, e da validade dos relatos a eles ligados. Oresultado é o famoso livroSonhos de um visionário.

Mas com o livro de Kant permaneceu o problema.Alguns afirmavam ter visto nele a condenação definitiva doespiritualismo, pois o filósofo afirmava que tais condiçõesjamais poderiam proporcionar conhecimento científico.Outros diziam ser Kant um defensor e mesmo um crentefervoroso nos fenômenos espirituais, já que ele afirmavaserem muitos deles dignos de fé. Onde a verdade?

A célebre frase que futuras edições colocaram nacontracapa dá o tom de ambiguidade, e a dimensão dodrama:

Qual Filósofo não esteve uma vez entre, o juramento de umapessoa sensata e convicta testemunha ocular, e a resistênciainterior de uma dúvida inolvidável? Deve ele negarcompletamente a veracidade de todos os fenômenosespirituais? O que o deve conduzir aos fundamentos de suaposicão acerca deste assunto.[1]

Ao menos não se o pode acusar de não tratarseriamente a questão. O livro coleciona relatos detestemunhas dos fenômenos produzidos por Swedenborg,críticas e apologias de algumas das pessoas mais envolvidasno assunto, proporcionando grande erudição sobre o contextoda questão na época. Logo a mente sintética e crítica dopensador chega a uma definição conceitual extremamenteeconômica, subdividida em duas perguntas sem as quaisnada se pode concluir sobre a mediunidade: 1- Qual é a

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natureza dos Espíritos? 2- Qual é a relevância objetiva de umtestemunho pessoal, não verificável?

O próprio Swedenborg não possuía um método, comoKardec posteriormente viria a elaborar, sendo apenas ummédium muito ostensivo e homem de grande instrução.Assim Kant não tem como colher do vidente caracteresfilosóficos que lhe permitam uma confrontação. Ele éobrigado a fazer todo o trabalho filosófico de fora, sem apresença do médium e sem condições similares que lhefavorecessem a solução das mais pequenas dúvidas. Kardecteve o privilégio de operar com condições bem mais cômodas,e somente por este motivo já temos para com Kant umaobrigação de reconhecer que os seus resultados superam emmuito o esperado.

Em suma, Swedenborg não tinha boas respostas paranenhuma das grandes questões levantadas por Kant, o quenão fez com que o último desautorizasse imediatamente adoutrina do primeiro. O filósofo teve de trabalhar de maneiraespeculativa, usando os conceitos metafísicos vigentes desubstância, alma, espírito, etc.

Em alemão a palavra para espírito, geist, significa tambémmente, e há um bloqueio cultural quanto a relacionar oespírito a um ser corpóreo, dotado de sensações, motricidadee localidade. Espírito é o intelecto, quando muito asmemórias, e as expressões populares para aparições deespíritos são sempre interpretadas pejorativamente,relacionadas a fantasmagorias. Por isso, mas também porrazões filosóficas, Kant julgava precária a definição deespíritos como seres perfeitamente corpóreos, com suasvestimentas e idiossincrasias, tais quais os relatados porSwedenborg. Esta imagem parecia mais compatível com adefinição de alma, que evoca sempre noções mais ou menosmateriais, embora de uma materialidade sutil, fluídica ouetérea. A conclusão sensata de Kante é a seguinte: ou osespíritos são materiais, e, portanto, mensuráveis e

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comandados pelo princípio mecânico de causa e efeito, ou sãoimateriais, e, assim, não há como vê-los, ouvi-los ou mesmopensá-los, pois o que não é material não possui forma ousubstância para serem apreendidas.

Pois bem, os espíritos de Swedenborg tinham forma,impressionavam os sentidos e pareciam de todo modomateriais, mas isso os colocaria na classe dos fenômenosestudados pela ciência, e isto não se verificava. Caímos noproblema da medição, pois como os espíritos não podem serobservados com método científico, suas aparições exclusivasa um ou outro indivíduo não podem ser confirmadas como“conhecimento”, são apenas testemunhos.

Este julgamento é puramente epistemológico, nãoestabelecendo valores de bom ou mau, certo e errado ouverídico e inverídico. Dizer que algo não é científico nãosignifica dizer que seja falso, e dizer que as pessoas nãopodem considerar o relato de Swedenborg comoconhecimento válido, não significa desautorizá-las de crerneste relato e viver conforme ele.

Na verdade é exatamente isto que Kant recomenda emSonhosde um visionário; ele reconhece que muitos dos relatos devidentes são plausíveis, respeitáveis do ponto de vista moral eproferidos por pessoas do mais inquestionável caráter. Aindaassim nada do que dizem pode ser verificado, de modo que sólhes podemos conceder ou não nosso voto de fé.

Kant conclui que, a respeito dos contatos com os mortos,deve-se proceder como em qualquer ocasião em que umindivíduo profere ter vivenciado experiências que ninguémmais teve ou pode ter. A plateia deve julgar com sua própriarazão e sensibilidade a plausibilidade do relato, a idoneidadeda testemunha e chegar a uma conclusão subjetiva, comvalor de convicção, sobre ele. O filósofo tece até um exemploalegórico bem humorado: supõe-se que um náufragochegasse a uma ilha deserta e lá visse coisas admiráveis.Improvisando uma jangada ele consegue escapar, mas não é

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capaz de dizer ao certo a localização da ilha, e outros não apuderam encontrar posteriormente. Os relatos do náufragosão sóbrios e detalhados, e ele é conhecido como ajuizado,consciencioso e honesto. Como devem proceder os ouvintes?Decerto alguns crerão no amigo, mas a ninguém ocorreráacrescentar a narrativa aos livros de ciência.

Esta conclusão foi tida como fulminante contra as pretensõescientíficas do espiritismo pré-kardequiano, mas seria umatolice temê-la ou empregá-la após o método desenvolvido pelocodificador. Estamos convictos de que aqueles que ainda hojeempregam o Sonhos de um visionário como crítica aoEspiritismo desconhecem os elementos mais básicos destadoutrina, enquanto que os espíritas que se sentemincomodados com a crítica kantiana falham em compreendero contexto, para o qual a conclusão do filósofo eracorretíssima.

Médiuns houve muitos, fenômenos idem, sempre e emquantidade. Nada disto, entretanto, faz uma ciência, se nãohouver um cientista que organize os fenômenos segundo ummétodo, e que os ponha a prova. Kardec foi o executor desteprojeto árduo e ingrato de fundar uma ciência do oculto,ainda hoje estigmatizada pela ortodoxia acadêmica. Elecomeçou por duvidar, tão ou mais do que fizera Kant, dosfenômenos que se lhe apresentaram, e somente passou atomá-los como base para sua nova ciência quanto respondeusatisfatoriamente os dois problemas levantados por Kant.

Ao problema da substância, que desde o início atormentouKardec, responderam os próprios fenômenos sob a força darepetição e da diversificação de experimentos. Ao princípiointelectual, que não pode responder à causalidade mecânica,nem apresentar forma ou mensurabilidade, e ao elementomaterial, dotado de todas estas características, observou-se oelemento intermediário que pode constituir o períspirito, umfluido ainda material, mas passivo de comando do espírito. Asqualidades sui generis do “fluido cósmico universal”,

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escapando das categorias dualistas da metafísica, ofereceuma resposta teórica para o questionamento acerca daimpossibilidade de contato entre espíritos e seres encarnados.Mas o mais interessante ainda é o fato de este conceito ter-sedesenvolvido por experimentação, não por especulaçãometafísica, e esta experimentação só foi possível porqueKardec resolveu o segundo problema kantiano, o da validadedos relatos dos médiuns.

Certificado empiricamente da veracidade dos fenômenos, ocodificador do Espiritismo (só agora com a letra maiúscula donome próprio) não se precipitou em declarar como ciência asua coletânea de fatos. Elaborou uma ferramentametodológica digna dos fundadores das ciências humanaspara averiguar a universalidade dos relatos. Só assim podiaeliminar a subjetividade dos testemunhos individuais dosmédiuns e atingir a almejada imparcialidade para aconceituação dos fenômenos espíritas e das ideias que osespíritos por eles transmitiam. A ciência material dosfenômenos físicos e psicológicos foi amplamente reproduzidadesde a época aos dias de hoje, mas a ciência puraproporcionada unicamente pelo controle universal doensinamento dos espíritos, e que produziu um verdadeirosistema crítico para a comunicação com o outro mundo, é otraço peculiar dos esforços de Kardec.

Há, portanto, duas ciências espíritas, uma localizada entre afísica e a psicologia, pertinente aos fenômenos mediúnicos, euma outra que se aproxima das ciências sociais, ainda queinteiramente diferenciada, pertinente aos processos decontrole estatístico e crítico das ideias apresentadas pelosespíritos.

Não há como saber qual o grau de familiaridade de Kardeccom as críticas de Kant, mas estas últimas são inteiramentecompatíveis com os padrões de qualidade e inovaçõesmetodológicas apresentadas por Kardec. Não havendo outracrítica igualmente precisa do Espiritismo como método

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científico, estamos a aguardar de seus opositores análises tãojudiciosas quanto a de Kan

A lucidez do pragmatismo americano

O final do século XIX parecia trazer grandedesesperança para os filósofos. Os especialistas e sábiosdividiam-se entre a metafísica idealista ou romântica, estaúltima influenciada pelo darwinismo e dando origem aovitalismo moderno, e, de outro, um completo niilismomarcado pela desesperança na razão e adoção de ummaterialismo cínico aos moldes de Nietzsche e Marx.Filosofia, num sentido estrito, não havia, pois ao lado destesmodelos estéticos e elaborados com o maior rigor lógicocarecia-se da postura imparcial necessária ao fazer filosófico.

A fabulosa conquista da perspectiva transcendental deKant havia se engessado em uma metafísica dogmática apósa morte de Hegel, o último descendente de Kant a fazerfilosofia ao invés de defendê-la como bandeira ideológica, e asprimeiras brilhantes intuições de Nietzsche, que o levaram aquestionar a cultura ocidental de uma forma nunca antesimaginada, acabaram não sendo levadas por ele mesmo àcondição de proposição útil à renovação do pensamento; seutrabalho se resumiu lamentavelmente aos aspectosdestrutivos do que ele mesmo definia “filosofar com omartelo” ou aos floreios poéticos que enchem os olhos doestudante, deixando na mesma o pesquisador.

Neste cenário um tanto quanto negativo surge afilosofia vigorosa da nova cultura gestada entre Boston e

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Chicago, nas palavras de William James “um novo nome parauma velha forma de pensar”: o pragmatismo.

William James, o primeiro grande pensador das Américas.

A cultura americana, ou melhor dizendo, do nordestedos Estados Unidos, no período pós a guerra civil era emtodos os aspectos estuante. O país deu em cinquenta anosuma arrancada da periferia para o topo da economiamundial, o que não deixou de ser acompanhado por umcrescimento tecnológico, científico e humanístico igualmenteimpressionante. As universidades americanas se dividiam,em matéria de filosofia, entre a replicação do utilitarismoinglês e a replicação do idealismo germânico conformepropagado na Grã-Bretanha. Filosofia nacional era um termoinaplicável antes de 1880, embora já houvesse umapercepção geral de que um modo de pensar tipicamenteamericano estaria já presente nos inspiradores da República.

William James foi um dos responsáveis pelamaterialização da forma arrojada de pensar que caracterizariateoricamente o que na prática tão bons resultados produzia: oempreendedorismo, a liberdade, a representatividade e oespírito objetivo da cultura americana.

Ninguém o teria feito melhor que James, pois poucosindivíduos reúnem o gênio à mais completa educaçãodisponível em seu tempo, ambos necessários ao trabalho queviria a iniciar. Vindo de uma família de intelectuaisespiritualistas, teve desde cedo contato com a alta cultura ecom uma fé profunda na liberdade religiosa e intelectual. Seupai, conhecido adepto do swedenborguianismo, transmitiu-lhe uma abertura inusitada para as questões metafísicas eespirituais; os estudos de filosofia feitos na Alemanha lhe

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deram segurança no trato dos mais difíceis problemasconceituais da época; sua formação como médico na tradiçãoinglesa, finalmente, propiciou-lhe um senso empíricoimpecável. Mas não foi a nenhuma destas inclinações que elededicou a parte principal de suas reservas psíquicas, senão àpsicologia, o campo desconhecido e controverso porexcelência, que antes mesmo de Freud abarcavapraticamente tudo o que há do esoterismo à anatomiacerebral, da filosofia sensualista à estética transcendental deKant. James foi um dos poucos a assumir a estafante tarefade pôr ordem a este amplo universo, e o que melhoresresultados apresentou em língua inglesa.

Pragmatismo ou empirismo radical era a forma comoJames definia a sua “velha forma de pensar”, nomes quetambém eram empregados por Peirce e Dewey, embora comconotações e agendas completamente distintas. O diferencialdesta filosofia era a intenção de escapar do problema dospressupostos, um problema lógico gravíssimo que ronda todaa filosofia desde sempre, e que se apresentava especialmenteincômodo na época, dividida entre as metafísicas e oceticismo dogmáticos.

Comicamente James propôs uma revolucionáriasolução após participar de uma discussão de acampamento arespeito de um esquilo. O grupo de amigos dividia-se em duasfacções munidas de argumentos filosóficos com distintosgraus de seriedade. O caso em questão: um colega que haviatentado encarar um esquilo preso a uma árvore. O esquilocorria sempre para o lado oposto, evitando o inconvenienterapaz, que tinha sempre o tronco entre ele e o animal, semlograr alcançá-lo, apesar de circundar completamente aárvore O problema que surgiu entre os amigos foi o de saberse o rapaz circundou o esquilo. Um grupo afirmava que oesquilo, embora circundando a árvore, havia sido por sua vezcircundado pelo rapaz como num par de círculosconcêntricos. O segundo grupo afirmava que, estando o

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esquilo sempre do lado oposto ao do rapaz, este jamais teriasequer alcançado, quanto mais circundado o esquilo.

Com a chegada do sábio o grupo o incumbiu desolucionar o enigma, e James partiu para a desambiguação.Há duas perspectivas simultaneamente corretas econtraditórias. A primeira estipula a noção de circundarcomo ato de estar a norte, depois a leste, depois a sul, depoisa oeste e finalmente de novo ao norte do esquilo. Nestesentido ele foi circundado. A segunda perspectiva é a de ter oesquilo à sua frente, depois à direita, então por trás, àesquerda e finalmente de novo à frente. O rapaz não efetuoua circunvolução neste sentido. Ou seja, James transferiu oproblema lógico para o da definição; naquele a contradiçãoera insolúvel, neste é legítima, mas irrelevante.

A grande ideia do pragmatismo é a de que a verdadenão depende de uma essência metafísica ou fórmula lógica,senão da perspectiva segundo a qual as ideias sãoformuladas. Trata-se de um relativismo, mas um muitodiferente do que se pratica vulgarmente. Verdadescontraditórias podem coexistir, sem que, ao final, as coisassejam indiferentes.

Na questão do esquilo os grupos se dividiam entre duasnoções de espaço, uma absoluta, com o esquilo circundado, euma subjetiva, com o esquilo mais astuto que seuperseguidor. James negou ambas as posições filosóficasclássicas e relativizou o espaço segundo os critérios ditadospelos “interesses” dos dois grupos.

O pragmatismo ganha daí o seu nome. A verdade é o que elasignifica na prática, e por trás disto não há uma verdadeabsoluta, ao menos nenhuma que o homem possa captar.Com isto se satisfaz os céticos, pois nenhuma verdade épressuposta dogmaticamente, sem que se percam asverdades instrumentais necessárias à vida, que é o problemado ceticismo irredutível. A verdade relativa do pragmatismo é,

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portanto, uma verdade válida, uma certeza conveniente quedeve ser sustentada para critérios práticos.

Para sentir o peso desta revolução vamos criar um cenáriofictício.

O cético e o metafísico passaram séculos numa discussão arespeito de Deus.

Deus existe _ afirma o metafísico_ porque é um sernecessário. A ordem do mundo não funciona sem ele. Alémdisto, nossa vida moral também exige um juiz absoluto, semo que o mal não seria compensado ou punido, e o bem seria amenos compensadora das opções.

O cético replica _ Nossa vida moral pode ser fruto deinteresses egoísticos e ilusões sociais, neste caso a garantiada moral não faz qualquer sentido, pois ela mesma é efêmera.Nosso olhar sobre o cosmo também pode estaressencialmente errado, de modo que a lei e a ordem queenxergamos não signifique nada no universo em-si.

Antes que a discussão se alongue indefinidamente opragmatista intervém. _ A verdade ou as verdades destaquestão não podem ser definidas de imediato, pois tantonossa razão quanto nossa experiência são limitados demais.Tudo o que podemos fazer é confiar numa perspectivarazoável, adotando-a por convicção, e modifica-la quando elase mostrar infrutífera. Se Deus responde às nossasnecessidades de um arquiteto cósmico, convém afirmar suaexistência como verdadeira para critérios de compreensão docosmo. Se duvidar da harmonia universal nos ajuda aeliminar a ingenuidade no campo científico, duvidemos dela ede qualquer outro princípio de segurança, e em suspendendotodas as noções metafísicas conseguimos, de fato, enxergarcom novos e mais desanuviados olhos a realidade que semostra. Vocês estão ambos corretos, pois a existência ouinexistência de Deus serve aos propósitos dos dois.

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Isto é uma desonestidade! _ trovejam os velhos espíritos dafilosofia em uníssono. _ Seu arbítrio nos deixou na mesma, enão inaugura critério algum para decidir o que é verdadeiro.A verdade é o que te convém em cada circunstância.

Não, não, meus amigos. O pragmatismo aceita como verdadeo que funciona, não apenas o que convém aos distintosindivíduos. Vamos apenas tomar ambas as perspectivas comoválidas enquanto não houver meio de bater o martelo, mas aexperiência segue correndo, e vamos observar como arealidade responde às nossas verdades, qual delas produzmais e melhores frutos, quantas outras verdades se associama cada partido e quantas pessoas encontram sentido nesta ounaquela perspectiva. Se em algum momento a vida decidir acontrovérsia, um dos partidos deverá ser extinto. Assim comona ciência, a filosofia deve subordinar-se ao progresso e àrefutação de suas teorias.

Mas então _ declaram novamente ambos _ a filosofia jazdevorada pela ciência.

Mais uma vez não, pois onde a ciência para a filosofia seguedesinibida. O método é semelhante ao da ciência, mas oobjeto radicalmente diverso, e assim também a avaliação.Uma verdade funcional pode não gerar qualquer efeitomensurável ou objetivo, mas apenas efeitos subjetivos,emocionais ou ideais. Uma pessoa diz que sua religião aconforta na dor, a outra jura que um ritual lhe deu coragem,um terceiro confirma que a arte transformou-lhe a vida. Sãoalegações desprovidas de sentido para a ciência, mas quepodemos qualificar filosoficamente como verdades válidas,funcionais. E o teste destas verdades não será feito pelaciência, e sim em foro íntimo por cada consciência ao longoda vida.

De fato é uma visão diferente, _diz o metafísico_ mas prefirocontinuar com a minha. Estou convicto de que a razão écapaz de desvendar verdades essenciais, não apenas estasfuncionais. Acho que vocês dois estão errados.

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Também admiro tua inovação, pragmatista, _completa ocético _ e permaneço, contudo, igualmente na dúvidametódica que me parece melhor do que esta aceitação de“verdades convenientes”.

Aí também o pragmatismo se diferencia do dogma e dadúvida, _conclui o pragmatista _ pois esta perspectiva nãoexclui as outras. Para que o ceticismo esteja correto, é precisoque todas as certezas sejam abolidas, e para que a metafísicaesteja correta, é imprescindível que toda a dúvida sejasuperada. Nós temos ao mesmo tempo certeza e dúvida, masambas estão numa tal tensão que é impossível a realizaçãocompleta de qualquer uma delas. Tanto o cético quanto ometafísico pode estar com a razão, numa proporção maior doque a nossa. O pragmatismo não é um espaço intermediário,ele se põe fora da questão, como juiz da luta, não comoparticipante. Esta é uma posição confortável e privilegiada,mas nos impede de concorrer ao troféu da vitória. Nósregulamos o método, mas cada um segue suas intuiçõesentre dúvidas e certezas. Um de vocês deve vencer, ou talvezambos lutem eternamente, e eu estou aqui apenas para evitarque haja trapaças e confusões no embate.

***

Como se vê, a virada pragmatista traz interessanteselementos para a revitalização do pensamento em geral.Estando extremamente próximo da ciência, ajuda-nos a evitaruma filosofia que, pelo distanciamento dos dados positivos,se desmoralizasse em face da cultura estabelecida. Ao mesmotempo, o pragmatismo oferece um tratamento sério e emprimeira mão das questões metafísicas, éticas, psicológicas ereligiosas, impedindo que o reducionismo científico e/oumaterialista desqualifique a concretude destes aspectos davida humana.

Embora tendo relativamente poucos adeptos declarados, foiuma das escolas de maior impacto sobre o pensamento doséculo XX em diante, com amplas consequências em

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pensadores como Popper e correntes como a analítica, quebebem da fonte pragmatista praticamente sem o reconhecer.

O pragmatismo é o substituto crítico, aperfeiçoado eaprofundado do positivismo, no sentido de se oferecer comofilosofia compatível com a mentalidade científica. Ospositivistas liberais, ecléticos e moderados se assemelham naíntegra à índole pragmatista. E com isto chegamos aconclusão de que um estudo mais atual do programacientífico-filosófico de Kardec deveria se haver com o seusímile posterior, o pragmatismo.

Obs: Para conhecer o pragmatismo todas as obras de WilliamJames são recomendadas, mas as que tratam maisdiretamente do método são: Pragmatism e The meaning ofTruth.

Qual é a filosofia espírita?

Da compreensão geral de que o Espiritismo é ou temuma filosofia surge a necessidade de explicitá-la. Os seusadeptos reproduzem com acerto os seus aspectos filosóficos, eos separam com habilidade adquirida pelos estudoskardequianos daqueles outros científicos e religiosos. Etambém o caráter filosófico de uma doutrina qualquer ésempre mais discernível e menos controverso do que um seupossível elemento científico. Estas são razões pelas quais sefala numa filosofia espírita com alguma segurança.

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Entretanto, a academia possui no que tange à filosofianão menos exigências e regras do que às que competem àprática das ciências. Afinal, então, o que é e como se sustentaa filosofia espírita? Tentaremos mais problematizar do queresponder a este questionamento.

Do ponto de vista da filosofia como especialidade, oEspiritismo apresenta-se como filosofia popular, o queequivale a dizer, como razão argumentativa, mas nãofundamentadora. Esta qualificação não precisa ser pejorativa,e mesmo algumas das melhores filosofias tiveram um cunhoacentuadamente popular, como em Voltaire, Rousseau eNietzsche. É também uma visão filosófica válida e oficial a deque a razão já está desde sempre em jogo com seusproblemas específicos, e não pode ou não requerfundamentação. Ainda assim, a maior parte do que seproduziu sob o título de filosofia na história humanadestinava-se à fundamentação do conhecimento.

São mentes analíticas e interessadas nafundamentação das certezas a de Platão, a de Descartes, aLocke e a de Kant, alguns, portanto, dos maiores filósofos.Segundo estes a atividade filosófica não se faz propriamentesem o esforço exaustivo de sua própria crítica, de modo quequalquer filosofia digna do nome ou vai até as últimasconsequências ou compra um método que já o tenha feito. Osbons filósofos populares o são por seu interesse prático(moral ou político), sem que dispensem o concurso de umaboa base metodológica. E se Kardec foi um bom filósofopopular, o que acreditamos razoável afirmar, devemosencontrar em sua prática os princípios de algum ou algunsfilósofos mais analíticos, para não dizer sistemáticos (nomeque à época não soava bem).

O primeiro indício de que Kardec não é um filósofosistemático está em ele lançar mão de múltiplos conceitos eaxiomas sem os justificar. Esta atitude pode significar, comodito, tanto o descompromisso com a filosofia quanto uma

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adoção prévia de métodos filosóficos bem estabelecidos. Enão há a mais remota dúvida de que os conceitos e axiomaspressupostos por Kardec correspondem à visão eclética dosaber filosófico de princípios do século XIX. Em primeirolugar porque todos estes pressupostos pertencem à alaortodoxa da filosofia francesa, requerendo assim pouca ounenhuma exposição sistemática; em segundo lugar porqueestas conquistas em especial eram classificadas comoconquistas da ilustração e todos os autores da época estavamhabituados a assumir os elementos deste grande edifícioeclético e enciclopédico como ponto de partida. Pensadorestão importantes como Benjamin Constant, Madame de Staël eTocqueville jamais se preocupam, assim como Kardec, emfundamentar o conceito de razão, ou analisar a constituiçãometafísica da liberdade. Ao invés disto eles os tomam do poçoda filosofia iluminista e os aplicam com habilidade defilósofos práticos aos seus interesses.

Para elencar alguns dos pressupostos essenciais daclasse ilustrada francesa e/ou européia dos anos 1800 a1840 podemos citar resumidamente:

1- A fundamentação do pensamento porDescartes, com a respectiva separação entre o princípiopensante do princípio material, a constituírem os modos deser.

2- A ideia platônica de que a matemáticacorresponderia ao modus operandi da natureza. Noçãorenascentista que foi solidificada por Galileu, Bruno eDescartes.

3- O atomismo de Diderot, que copiandoDemócrito e Epicuro postulou todas as leis da física comoconsequências das leis que regem as partículas elementares.

4- A noção de liberdade como direitogarantido por Deus, uma ideia cristã que se desenvolveu emséculos de teologia e filosofia, casando-se com as noções

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gregas de liberdade e culminando no axioma da liberdadehumana conforme Locke, Voltaire e Rousseau.

5- A positividade da experiência comofundamento do saber, desenvolvida por Comte eimediatamente diversificada e adaptada por inúmerospensadores e cientistas.

Poderíamos citar outros pontos, mas isto só aumentaria ovolume de uma defesa que consideramos suficientementeestabelecida.

Está claro ao filósofo contemporâneo que a segurança dealgumas destas pressuposições foi duramente abalada,durante o próprio século XIX e especialmente no XX. O itemmais controverso hoje é o da equivalência entre matemática enatureza, ainda defendida com certa ingenuidade por muitosfísicos e francamente proibida pela filosofia da ciência. O quese pode dizer hoje com sobriedade filosófica é que hajaalguma correspondênciaentre as leis que postulamosmatematicamente e o funcionamento da natureza, masprecisar a exatidão desta correspondência seria consideradouma postura dogmática.

Basta, contudo, o conhecimento do contexto histórico paralembrar que a nova filosofia responsável por questionar ascertezas iluministas é de matriz alemã, e não estavaplenamente acessível aos franceses da primeira metade doséculo XIX. Apesar de estar entre os poucos falantes dealemão da sociedade francesa da época, Allan Kardecprovavelmente compartilhava da crença geral de seu povo arespeito dos germanos: a de se tratarem de um povo grosseirorecém chegado às raias da civilidade e que ensaiava suasforças intelectuais numa filosofia prolixa, mas essencialmenteinfrutífera.[1]

O posterior sucesso da filosofia alemã com todo o seuaparato crítico, a restauração da metafísica pelo Idealismo e

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as reviravoltas teológicas marcou para sempre a face dafilosofia, um fenômeno que a vaidade francesa ainda digerecom atraso.

A filosofia sistemática viu sua tocha ser cedida daFrança para a Alemanha, e desta para o mundo globalizadodo pós-guerra. Resta saber em que medida isto depõe contraas filosofias práticas e populares.

Neste particular uma comparação entre Kardec e osoutros filósofos populares franceses é indispensável. Amaioria deles, exatamente por ser popular, sofreuminimamente com a transformação da filosofia sistemática, ea popularidade dos pensadores políticos e religiosos, dospsicólogos e moralistas franceses continuou tão irretorquívelsob a luz dos sistemas alemães como quando em seu terrenonatural do Iluminismo autóctone.

Redefinidos os fundamentos dos conceitos de razão eliberdade, sobre bases mais críticas e rigorosas, continuarama viger na esfera prática as conclusões e intuições sóbriasque a análise social e psicológica francesa ou inglesa haviamefetuado em dois ricos séculos de modernidade.

A filosofia atual se esforça por refinar a fundamentaçãometafísica e epistemológica da razão, de Deus, da liberdade eda relação entre sujeito e objeto, etc., mas no campo prático epopular a maioria dos postulados iluministas continua aviger como moeda válida de interpretação dos fenômenosnaturais e sociais. Em muitos aspectos, mudaram oscaminhos, mas permaneceram os resultados da filosofia. Ébem mais ingênuo ver algo de “errado” em Platão, porincompatibilidade de seus métodos com os recentes, do quedispensar os métodos recentes na apreciação de trabalhosfilosóficos pregressos; e a história da filosofia continua a serfonte de inspiração principal para os que pretendemreelaborá-la com vistas ao futuro.

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Qual é, então, a base filosófica do Espiritismo, se oecletismo espiritualista francês e o positivismo que oconstituíram estão agora em cheque? Precisamente a mesmabase que continuou a sustentar as outras filosofias práticas epopulares após a substituição da Ilustração francesa, seuecletismo e positivismo, pela filosofia crítica alemã.

Procurai então os defensores de Pascal, Voltaire, Rousseau,Staël e Tocqueville, e achareis o caminho para sustentar emlinguagem atualizada aqueles mesmos pressupostos quefomentam o método kardequiano. E os caminhos para estarevisão técnica da filosofia espírita podem ser muitos, comomuitas são as correntes mais recentes. O pragmatismo deJames, a filosofia liberal e crítica de Popper e mesmo umaforma revisada da analítica existencial de Heidegger, como foiintentado por Herculano Pires, podem ser boas soluções.

Particularmente acho que a forma mais apropriadaseja a daMetafísica da Subjetividade, uma variante ecléticaque se apropria de praticamente todas as outras correntescontemporâneas numa forma ao mesmo tempo clássica ecrítica da metafísica, permitindo a validade dos conceitos-chave de Deus, imortalidade, razão e liberdade.

Do século das luzes (crítica literária)

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Despontou no mercado editorial uma obra como hámuito não se via. No geral um romance histórico, que desfiladramas pessoais e guarda belas lições morais, mas por detrásdesta bem conhecida configuração da literatura mediúnicaguardam-se algumas jóias filosóficas: teorias sobre a história,a sociedade e a liberdade, que nos fazem lembrar os grandesclássicos de Emmanuel. Nada do mundo espiritual, nemvampirismos ou licantropia, magia negra e xamanismos ouqualquer destes atrativos da imaginação que abarrotam asestantes, desonrando conceitos sérios em paródias infantisredigidas em péssimo português.

Do século das luzes, de Rafael de Figueiredo, é umaobra sóbria do começo ao fim. Simples, no melhor sentido dapalavra, junta o virtuosismo literário à clareza que o tornaacessível a todos os leitores. Uma obra com camadas, quecomove pela narrativa, alimenta a curiosidade ou retrata umafase pouco conhecida dos primórdios do espiritismo; ou umpouco de tudo isto junto.

Mesmo o seu processo de redação traz peculiaridadesdignas de nota. O autor revela no prefácio que o panoramageral do livro lhe surgiu em sonhos muito vívidos, e queinúmeros espíritos colaboraram para o seu desenvolvimento,de modo que é relativamente vaga a autoria espiritual.

Uma outra característica que salta aos olhos é apresença de citações diretas de outros autores do período,algo incomum para o gênero psicográfico, e que no caso daobra de Rafael parece cair como uma luva. O desenvolvimentopsicológico das personagens batem rigorosamente com odesenvolvimento da sociedade nas décadas que antecedem aRevolução Francesa, e os estudos feitos por elas a respeito defilósofos como Rousseau, Voltaire, Kant e Platão lançamnovas e instigantes perspectivas sobre o papel deles naemancipação intelecto-moral da humanidade, sem o que oEspiritismo e outros avanços do século XIX seria impensável.

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O livro revela também partes da vida e do caráter deMesmer, com quem conviveram brevemente os protagonistas;incomoda pela descrição vívida dos terrores do Santo Ofícioem fins do século XVIII e na pátria do progresso; arrebata aalma através do desenrolar da vida de Jean, santo anônimocomo as figuras humildes e grandiosas de Emmanuel;transporta-nos, enfim, para a vida campestre e monástica daFrança absolutista, fazendo-nos conhecer bordéis e salõescom tanta riqueza de detalhes que, não se tratasse de obraespirita, deveria garantir prêmios e títulos ao autor.

Mas o que mais nos motiva a celebrar este livro é o fatode termos encontrado nele algumas das teses principais quedefendemos aqui neste caderno virtual. De certa forma elepreenche uma das muitas pequenas lacunas que tentamoscobrir com um estudo histórico e filosófico do Espiritismo. Aslinhas de conexão entre o Iluminismo e o Espiritismo são aíevidentes. Os conflitos graves experimentados porintelectuais e almas nobres vinculadas ao catolicismo, tendode rever muitas de suas posições fundamentais graças aoprogresso realizado por aquele século, retrata perfeitamente aguerra ideológica ainda vivida entre o novo e o velho, aliberdade e a autoridade.

Agradecidos, guardamos a esperança de receber outrasobras tão ilustradas da mediunidade florescente de Rafael deFigueiredo

Lamennais e Kardec II

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Figurando entre os pais do socialismo, Lamennaisabstinha-se das utopias da economia planejada e domonopólio do Estado sobre os destinos individuais,defendendo a dignidade dos esforços da livre iniciativa.

É assim que nosso padre combate as utopias do estadopaternal dos socialistas utópicos com a mais forte defesa daliberdade. Seu aviso parece prenunciar a escravidão do“socialismo” soviético, chinês e cubano:

Não vos deixeis enganar por palavras vãs... A liberdade não éum cartaz que se lê na esquina. É um poder vivo que se senteem si e ao redor de si... O opressor que com seu nome seencobre é o pior opressor. Une a mentira à tirania, e aprofanação à justiça... Sois vós que quem escolheis os quevos governam, os que vos ordenam que façam isto e nãoaquilo? E se não sois vós, como sois livres?

Podeis exercer o vosso culto sem serdes perturbados, adorara Deus e servi-lo em público de acordo com vossaconsciência? E se não podeis, como sois livres?

Podeis dispor de vossos filhos como bem entenderdes, confiara quem vos agradar o cuidado de instruí-los e formar seuscostumes? E se não podeis, como sois livres?

Os próprios pássaros do céu e os insetos reúnem-se parafazer juntos o que nenhum deles poderia fazer sozinho.Podeis vos reunir para juntos tratar dos vossos interesses,para defender vossos direitos?

Podeis, ao deitar-vos à noite, estar certo de que ninguém virádurante o vosso sono vasculhar os lugares mais secretos davossa casa, arrancar-vos do seio da vossa família e jogar-vosno fundo de uma masmorra, porque o poder em seu medodesconfiou de vós? E se não podeis, como sois livres?

A liberdade brilhará sobre vós, quando, à força de coragem eperseverança, vos libertardes de todas estas servidões.

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A liberdade brilhará sobre vós... quando, para vos tornardeslivres, estiverdes prontos a tudo sacrificar e sofrer.

A liberdade brilhará sobre vós quando, ao pé da cruz na qualCristo morreu por vós, jurardes morrer uns pelos outros.[1]

Quantas desgraças não poderiam ter sido evitadas noséculo XX, e ainda hoje, se os pseudosábios atentassem aestas palavras ao invés de beber o vinho da revolução? Quedecepção para os cristãos verdadeiros que impulsionaram oideário socialista do século XIX, ao descobrirem da pátria dosespíritos que suas ideias não vingaram sequer entre os fiéis,pois os agito e o imediatismo de Marx, Che e Lênin falarammais alto às paixões ávidas de sangue da multidão. Tudoporque no espírito partidário os socialistas imaginaram devertudo sacrificar por uma justiça que se alienou das conquistasigualmente sagradas da liberdade.

Ainda contra as utopias de um estado “padrinho”,liderado por intelectuais que “sabem o que é melhor para opovo”, escreveu o nosso padre:

O povo é incapaz de atender aos seus interesses; para seubem deve ser mantido sempre sob tutela. Não cabe aos quedetêm as luzes conduzir os que carecem de luz? Assim fala amultidão de hipócritas que quer conduzir os negócios do povoe engordar com a substância do povo.

Sois incapazes de administrar a pequena propriedadecomum, incapazes de saber o que é bom ou ruim, deconhecer as vossas necessidades e supri-las; e, por isso,enviam-vos homens bem pagos, à vossa custa, que gerirãovossos bens segundo lhes convier...

Sois incapazes de discernir a educação adequada para vossosfilhos; e por amor a vossos filhos, eles os lançarão em cloacasde impiedade e maus costumes. (O autor se refere aqui aosistema público de ensino, que na época pregava o

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positivismo, o materialismo e o desprezo das antigastradições associadas à religião. Ele temia o monopólio doensino pelo Estado tanto quanto pela Igreja, considerandoque uma única instituição jamais deveria deter a totalidadedos meios de instrução)

Se o que diz essa raça hipócrita e ávida fosse verdadeestaríeis bem abaixo dos animais, pois estes sabem tudo oque, segundo eles, não sabeis...

Existem animais estúpidos que são fechados em estábulos ealimentados para o trabalho... Existem outros que vivem noscampos em liberdade, que não é possível domar para aservidão, que não se deixam seduzir por caríciasenganadoras, nem vencer por ameaças ou maus tratos.

Os homens corajosos assemelham-se aos últimos; oscovardes são como os primeiros.[2]

Mas nações inteiras se assemelharam àquela classe deanimais que oferece a cabeça para a coleira. E convencidos deque ter o sustento garantido pela mão do Estado seria melhordo que arriscar-se na luta pelos interesses próprios,trilharam os passos da profética revolução dos bichos deOrwell.

Assim termina nosso estudo da doutrina social deLamennais. Estando de todos os lados e de nenhum, nãoassusta que Lamennais tenha terminado com mais desafetosdo que afetos. Os socialistas o consideraram liberal demais,estes últimos o tinham por socialista, a Igreja o considerouum herege, e os materialistas um fanático. Não tinha mesmocomo vingar uma doutrina política tão apartidária e tãohumana quanto a de Lamennais.

Sua veia profética, a qual nos dedicaremos agora, estána mais perfeita sintonia com seus trabalhos políticos, já quesua visão do apocalipse, do advento do consolador e da

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divisão do joio e do trigo eram essencialmente visões de umareforma da sociedade, com o fim do absolutismo, a vitória dademocracia e do estado de direito.

Enquanto o pensador político reúne em si o liberalismoe o socialismo, a responsabilidade pessoal e a necessidade dereforma institucional, também o pensador religioso pareceempreender a difícil síntese entre a ética e a profecia, oanúncio dos novos tempos e o estudo da natureza humana.

A alegoria número um arranca o leitor de sua vidacomum, de seu ambiente monótono ou irritadiço, para lançá-lo em mundo mágico inteiramente desconhecido.

Que aquele que tem ouvidos ouça, que aquele que tem olhos,abra-os e observe, pois os tempos se aproximam. (...)

O Filho prometeu enviar o Espírito consolador, o Espírito queprocede do Pai e dele, e que é seu amor recíproco: ele virá erenovará a face da terra, e será como uma segunda criação.

Há dezoito séculos, o Verbo espalhou a semente divina, e oEspírito Santo a fecundou. Os homens viram-na florescer,saborearam alguns de seus frutos, frutos da árvores da vidade novo plantada na pobre morada dos homens.

Digo-vos que entre eles foi grande o júbilo quando viram a luzsurgir, e todos sentiram-se penetrados pelo fogo celeste.

Hoje a terra tornou a ser tenebrosa e fria.

Nossos pais viram o sol declinar. Quando ele desceu por trásdo horizonte, toda a raça humana estremeceu. Depois houvenesta noite algo que não tem nome. Filhos da noite, o poenteestá negro, mas o oriente começa a aclarar-se.[3]

Esta passagem de tom familiar às profecias espíritascontidas em A Gênese de Karde nos dá a entender o porquêde ter sido chamado Lamennais a falange do Consolador, mal

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havia esfriado seu corpo no túmulo. Está aí um bom exemploda universalidade da mensagem espírita, intuída duasdécadas antes por Lamennais.

Na alegoria vinte e seis o filósofo já nos desvela umaparte do mundo espiritual que tem diante dos olhos. Parecehaver dois mundos, em cuja fronteira Lamennais transitasem dificuldades:

O que os vossos olhos veem, o que as vossas mãos tocam,não passam de sombras, e o som que atinge os vossosouvidos não passa de eco grosseiro da voz íntima e misteriosaque adora, e ora, e geme no seio da criação.

Pois toda a criatura geme, toda criatura está em trabalho departo e esforça-se por nascer para a vida verdadeira, porpassar das trevas a luz, da região das aparências para a dasrealidades (referência óbvia a Platão)

Esse sol tão brilhante, tão belo, não passa de roupagem, deemblema escuro do verdadeiro sol que ilumina e aquece asalmas. (sol das almas é um conceito de Fénelon)

Esta terra tão rica, tão verdejante, não passa de pálidosudário do natureza: pois a natureza... Sob esse espessoinvólucro do corpo, assemelhai-vos ao viajante que, à noitena tenda, vê ou acredita ver fantasmas passando.

O mundo real está velado para vós. Aquele que se retira parao fundo de si ali o entrevê como algo longínquo. Poderessecretos, que nele dormitam, despertam por um momento,erguem uma ponta do véu que o tempo retém com a sua mãoenrugada, e o olho interior encanta-se com as maravilhas quecontempla.

Estais sentado à beira do oceano dos seres, mas nãopenetrais em suas profundezas.[4]

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Já não há mais dúvidas. Lamennais está mais do quehabituado aos transportes extáticos de Paulo, Plotino eTeresa. Ele não apenas vislumbra o mundo espiritual, masviaja por ele como Böhme e Swedenborg. Ao chegarmos aofim do livro, e encontrando a revelação de sua experiênciamística, entendemos melhor a fonte de suas profecias:

E a pátria me foi mostrada

Fui arrebatado para acima da região das sombras e eu via otempo carregá-las com velocidade indizível através do vazio.Eu subia e continuava subindo; e as realidades, invisíveis aosolhos da carne, apareceram para mim, e ouvi sons que nãotem eco neste mundo de fantasmas.

E o que eu ouvia, o que via, era tão vivo, minha alma captavatudo com tamanho poder que me parecia que tudo o que euanteriormente acreditara ver e ouvir não passava de vagosonho noturno.

O que direi, pois, aos filhos da noite, e o que eles conseguemcompreender? Vi como um oceano imóvel, imenso, infinito, enesse oceano, três oceanos: um oceano de força, um oceanode luz, um oceano de vida; e estes três oceanos,interpenetrando-se sem se confundir, formavam um único emesmo oceano.

E essa unidade era Aquele que é... E esses três eram um, eesses três eram Deus, e eles abraçavam-se e uniam-se numsantuário impenetrável da substância uma... E nasprofundezas desse oceano infinito do ser, nadava, flutuava edilatava-se a criação: tal como uma ilha que dilatasseincessantemente suas margens em meio a um mar semlimites.

E eu via os seres encadeando-se aos seres e produzindo-se edesenvolvendo-se em sua variedade inumerável, abeberando-se, nutrindo-se de uma seiva que jamais se esgota, da força,da luz e da vida d’Aquele que é.

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Livre dos entraves terrestres, eu ia de mundo em mundo,assim como aqui embaixo o espírito vai de um pensamento aoutro pensamento; e sentia o que é a pátria; e embriagava-mede luz, e minha alma, carregada por ondas de harmonia,adormecia sobre as ondas celestes, em um êxtaseinenarrável.

E depois eu via o Cristo à direita de seu Pai, radiante deglória imortal. Santo, Santo, Santo é aquele que destruiu omal e venceu a morte.

E o Filho inclinou-se sobre o seio do Pai, e o Espírito cobriu-os com sua sombra, e houve entre eles um mistério divino, eos céus em silêncio estremeceram.

Por conta de Palavras de um homem de fé e outrosescritos, Lamennais angariou o ódio declarado de seus maisíntimos amigos e de seu irmão. Interpelado inúmeras vezespela santa Sé, acabou esgotando sua enorme paciência, efinalmente abdicou da interminável mea culpa,desligando-sede suas funções sacerdotais para viver exclusivamente comoescritor. Neste campo, contudo, era ainda mais detestado eperseguido pelos monarcas, a quem tão ferrenhamentecombatia, e em seus quase sessenta anos de idade, o que naépoca e com uma vida agitada era uma avançadíssima conta,foi premiado com um ano de prisão

Apesar do abatimento da saúde, dirigiu publicações apartir do cárcere. Após o término da pena, dedica seusúltimos anos a uma tradução da Divina Comédia de Dante, aAssembleia Constituinte de Paris e a exercíciosparlamentares, morrendo em 1854.

Napoleão III intercede para que o enterro seja rápido esecreto, buscando evitar a comoção popular. Desaparecia domundo um dos pouquíssimos homens que conseguiu ungir-se de santidade no século das afetações.

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É impossível que Kardec não estivesse muitofamiliarizado com as ideias de alguém tão popular econtroverso em sua própria época. Foi certamente ummissionário que abriu caminho para renovação social ereligiosa, com o que continuou a contribuir cinco ou seisanos após o falecimento, integrando a falange do consolador erespondendo por uma parte significativa das comunicaçõesdas obras básicas e da Revista Espírita.

Nossos artigos sobre Pascal, Rousseau e Agostinhodemonstram bem o método que propusemos para este estudocomparativo, de modo que achamos desnecessário elencar ascomunicações de Lamennais como espírito. Terminamos aquia série filósofos e Kardec, embora outros pudessem serinseridos. Nosso objetivo era apenas o de endossar osparalelos entre o pensamento destes autores em vida e os queeles expressam em ditados espirituais, além de confirmar sesuas vidas práticas respondem aos critérios da autoridademoral que se exige de espíritos mentores.

No caso de Lamennais, como nos outros, parece nãohaver dúvida quanto a afinidade de ideais e posturas entre ohomem e o espírito.

Bibliografia:

LAMENNAIS, Félicité de. Palavras de um homem de fé. SãoPaulo: Martins fontes, 1998.

Lamennais e Kardec I

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O interesse dos espíritas por Félicité de Lamennais deveser máxime. Primeiramente por tratar-se de um dos espíritosque mais se comunicou com Kardec; em segundo lugar porter sido em vida o exemplo do cristão perfeito. Sem o brilhode Pascal ou Fénelon, Lamennais teve a vantagem de não secontaminar por doutrinas estranhas e de época. Teve a sortede vir após o Iluminismo, e com isso sua obra está livre detodos os laivos de ortodoxia, dogmatismo e superstição,despontando, contudo, um acentuado teor místico e atéprofético, ao estilo do Velho Testamento e do Apocalipse.

Personalidade humílima, debatia em público como umpolítico. Engajado em ataques intermitentes contra a Igreja, asociedade e o Estado, não apresentava a altivez e a dureza dequem se habituou ao combate mais aguerrido.

O sereno agitador

Lamennais nos lembra as personalidadesinconfundíveis de Paulo, Huss e Gandhi. Transformadoresavessos à revolução, inimigos do erro, mas jamais indispostoscontra pessoa alguma, combateram o mal sem odiar os maus.

Sua vida jamais foi fácil. A cada instante este homemsimples e bondoso enfrentou decepções amaríssimas efracassos que fariam revoltar o homem comum. A juventudefoi melancólica, mas não por ressentimentos pessoais, senãoporque as injustiças sofridas pelos outros lhe torturavam. Aideia de que os pobres careciam de proteção do Estado era-lhe um pensamento obsessivo. Contemporâneo de Marx, foitambém socialista, mas de uma muito distinta estirpe. Semapologias à revolta armada, e alheio à filosofia materialista,

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não acreditava nas soluções econômicas que ainda hoje sepropagam com ares utópicos. Entendeu que para além dosonho, a realidade só poderia ser construída pela reforma docaráter individual, e olvidando os matizes políticos eeconômicos, inaugurou o socialismo espiritual, que em toda asua elevação não foi ainda compreendido pelos partidáriosdas soluções exteriores.

No rebuliço do caldeirão cultural em que se formou etrabalhou, Lamennais adotou tardiamente o hábito clerical.Tinha a veia religiosa, mas abominava os movimentos deépoca que coroavam a infalibilidade papal. Via a hipocrisia eo indisfarçado cinismo prático dos padres e bispos emescandalosa contradição com as teorias pregadas por elesmesmos nos sermões. Ainda assim, em meio a dúvidasquanto a carreira a seguir, uma voz falou-lhe à consciência:“Chamo-te para carregar a minha cruz, apenas minhas cruz,não te esqueças.”[1]

Lamennais não se esqueceu, e sua já piedosa índole seinflamou de uma disposição para o trabalho que cresceriamais e mais ao longo dos anos. Nas décadas de 1820 e 1830surgem inúmeros tratados sobre sociedade e filosofia.Recluso, vivendo uma vida monástica mais auto imposta doque compatível com suas obrigações, Lamennais produz semcessar. Mas não é de seu estilo alongar-se em argumentos eperspectivas. Suas obras são concisas e curtas, dominadaspor imagens fortes e poéticas que ele tecia sob inspiração dosacontecimentos políticos e sociais, mas que quase sempretinha um pano de fundo bíblico. Fundou mais de um jornaldurante a vida, onde, aí sim, era escritor prolixo. Em 1837assume o imortal Le Monde, que quase não sobrevive apóssua saída.

Dividimos os trabalhos de Lamennais segundo seuduplo viés filosófico-profético. Na primeira parte falaremos dafilosofia política e social, e na segunda das visões do autorsobre a vinda do consolador. Mas como a primeira parte é de

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longe a mais extensa, dividimo-la em tendências socialistas eliberais. Lamennais é um dos pais do socialismo, de modoque o primeiro artigo será sobre este tema. No segundo artigofecharemos a filosofia política deste autor falando um poucosobre sua veia liberal, e trataremos panoramicamente de seusescritos proféticos.

De todas as suas obras uma se destaca como a coroaçãode suas ideias e energia psíquica. Palavras de um homem defé, possui um tom só comparável a de Jeremias e doApocalipse. Obra evidentemente inspirada, é uma coletâneade sonhos e imagens que Lamennais tinha em meditaçãoprofunda, e que ele habilmente transportava para a formanarrativa.

Democrata irredutível, Lamennais escreve seu terceirosermão ilustrando a ideia de que o gênero humano foitrancafiado numa caverna escura, enquanto os reis e nobresgozam dos frutos da terra vasta:

“E fui transportado em espírito para os tempos antigos,e a terra era bela, e rica, e fecunda; e seus habitantes viviamfelizes, pois viviam como irmãos.” Este primeiro trecho temum quê de inocência romântica, bem ao estilo do mito daperda do paraíso e das teorias utópicas de Rousseau sobre o“bom selvagem”. Mas a continuação é mais simbólica do quefilosófica.

E vi a Serpente esgueirar-se entre eles: fixou em muitos seuolhar poderoso, e a alma deles perturbou-se, e elesaproximaram-se, e a Serpente sussurrou-lhes ao ouvido.

E após ouvirem a palavra da Serpente ergueram-se edisseram: Somos reis!

E o Sol empalideceu e a terra adquiriu coloração fúnebre,como a da mortalha que envolve os mortos.

E ouviu-se um murmúrio surdo, um longo lamento, e nofundo do coração todos tremeram. (...)

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O Medo foi de cabana em cabana, pois palácios ainda nãohavia, e a cada um disse coisas secretas que lhes provocavamarrepios.

E os que haviam dito: Somos reis, empunharam suasespadas e acompanharam o Medo de cabana em cabana. (...)

Amedrontados, os homens exclamaram: O assassínio voltouao mundo. E foi só isso, pois o Medo transitara-lhes a alma eimpedia o movimento de seus braços.

E deixaram-se acorrentar, a si, a suas mulheres, e a seusfilhos. E aqueles que haviam dito: Somos reis, escavaramuma grande caverna, e ali encerraram toda a raça humana,assim como se encerram animais num estábulo. (...)

E compreendi que deveria haver um reino de Satanás antesdo reino de Deus. E chorei e esperei.

E a visão que tive era verdadeira, pois o reino de Satanásrealizou-se, e o reino de Deus se realizará também; e os quedisseram: Somos reis, serão por sua vez encerrados nacaverna com a Serpente, e a raça humana dali sairá; e, paraela, será como um novo nascimento, como a passagem damorte à vida. Que assim seja.[2]

Vários pequenos detalhes nos chamam atenção. Oprimeiro e mais relevante é que este processo ainda pareceestar em curso, apesar de finda há algum tempo a era dosdéspotas. Com todos os avanços da justiça, do direito, dademocracia e da liberdade individual, ainda parece pertencerao século seguinte o banimento da raça dos déspotas parafora da Terra.

Cenas da mente de Lamennais

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Também é belo observar como a indignação não setraduz em revolta, nas palavras de Lamennais. É comum veros agitadores políticos usarem como pólvora a indignação,incentivando a desordem, a rebelião e até o banho de sangueque é a revolução. Mas o socialismo espiritual de Lamennais,“espera e chora”, pois onde a palavra lúcida não pudertransformar, o grito não haverá de colaborar. O quão tocanteé o sentimento de Lamennais, mas quanto ainda se oconfunde com indiferença, com passividade...

Na quarta alegoria Lamennais diagnosticaimpecavelmente a causa da injustiça na ausência dafraternidade cristã. Esta sim a alavanca social capaz desolapar todo o mal. Assim ele diz: “Amai-vos uns aos outros, enão temereis nem os grandes, nem os príncipes, nem osreis.”[3] Que forma estranha de lutar pela justiça! Pensarãomuitos. Não é outra, entretanto, que a forma do Cristo, daqual se esquecem muitos os que imaginam associar oevangelho a um socialismo de fundo materialista epuramente econômico.

E nosso padre continua atacando o nacionalismo: “Nãodigas: Aquele é de um povo, e eu sou de outro povo... Se ummembro é atingido, o corpo todo sofre.” E a indiferença: “Nãosejais como os cordeiros que, se o logo captura um, sentemmedo por um momento e em seguida tornam a pastar. Pois,pensam, talvez ele se contente com a primeira ou com asegunda presa: e porque deveria me preocupar com aquelesque o lobo devora? Sobrará mais pasto para mim.”

O curto sermão número cinco contém uma comparaçãoentre os criminosos e os condenados, aos quais todosconsideramos dignos de prisão e pena, e Jesus Cristo, umpreso e condenado, a quem toda a multidão gritava “matem”.Por isso, conclui Lamennais, tende mais cuidado quandotodos acusarem um condenado e o julgarem digno de castigo,pois pode ocorrer de ser ele um mártir e um inocente. E ainda

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que seja culpado, como a mulher adúltera, não declarou oCristo que ela saísse sem qualquer punição?

No sermão número sete o profeta moderno cria estaforte parábola:

Um homem viajava pelas montanhas e chegou a um localonde uma grande rocha rolara sobre o caminho e o tomarapor inteiro, e fora do caminho não havia outra saída, nem àesquerda, nem à direita.

Ora, esse homem, ao perceber que não poderia continuar suaviagem por causa do rochedo, tentou movê-lo para abrirpassagem e cansou-se muito com esse trabalho, e todos osseus esforços foram vãos.

Percebendo isso sentou-se cheio de tristeza e disse: O queserá de mim quando a noite cair e me surpreender nesteermo sem alimento, sem abrigo, sem qualquer defesa, nahora em que as bestas ferozes saem em busca de suaspresas?

E, enquanto estava absorto em seus pensamentos, surgiuoutro viajante, e este, depois de fazer o mesmo que o primeirofizera e apercebendo-se também impotente para mover orochedo, sentou-se em silêncio e baixou a cabeça.

E depois deste chegaram muitos outros, e nenhum delesconseguiu mover o rochedo, e o temor de todos era grande.

Finalmente um deles disse aos demais: Irmãos, oremos aonosso Pai que está no céu: talvez ele se compadeça de nósnesta aflição.

E suas palavras foram ouvidas, e eles oraram de todo ocoração para o Pai que está no céu.

E depois de orarem aquele que dissera: Oremos, disse ainda:Meus irmãos, aquilo que nenhum de nós conseguiu fazersozinho, quem sabe não conseguiríamos fazer juntos?

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E eles se ergueram, e todos juntos empurraram o rochedo, eo rochedo cedeu, e eles seguiram seu caminho em paz.

O viajante é o homem, a viagem é a vida, o rochedo são asmisérias que ele encontra a cada passo em seu caminho.

Nenhum homem conseguiria erguer sozinho o rochedo, masDeus calculou seu peso de tal modo que ele nunca detenhaos que viajam juntos.[4]

Este texto tão singelo capaz de nos comover tãoprofundamente parece ter sido extraído do evangelho. Diantede alegorias como esta caem todas as pompas da vaidadeintelectual, que os filósofos sustentam nos seus intrincadosjogos de palavras, e que geralmente a nada conduzem. Aparte que mais nos toca é relativa à falta de percepção dosviajores, que não encontram a solução óbvia para o problemaque a todos aflige. Mas um deles lembra-se de orar e pedirpor inspiração. O que a frágil mente humana não equaciona,pode sempre tomar do repositório infinito da sabedoriauniversal. E a resposta dos céus veio aos ouvidos destemesmo homem que previamente já inspirado sugeriu aoração. Uma resposta que nada contém de mágico ousobrenatural, consistindo numa simples conclusão lógica.Quase todos os problemas poderiam ser assim solucionados.

Ainda no campo da teoria social Lamennais escreve ooitavo sermão com uma gravidade assustadora:

Deus condenou todos os homens ao trabalho, e todos têmsua labuta, quer do corpo, quer do espírito; e aqueles quedizem: não hei de trabalhar, são os mais miseráveis.

Pois, assim como os vermes devoram os cadáveres, os víciosos devoram, e se não são devorados pelos vícios, sãodevorados pelo tédio.

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E quando Deus quis que o homem trabalhasse, escondeu umtesouro no trabalho, porque é pai, e amor de pai não morre.(...)

E Deus ainda lhes ditou esse preceito: Ajudai-vos uns aosoutros, pois entre vós existem os mais fortes e os mais fracos,os enfermos e os saudáveis; e entretanto todos devem viver.

E, se assim fizerdes, todos viverão, porque recompensarei acompaixão que tiverdes por vossos irmãos, e tornarei fecundoo vosso suor.

E o que Deus prometeu sempre se atestou, e jamais se viucarecer de pão quem tivesse ajudado seus irmãos.

Ora, em outros tempos viveu um homem malvado eamaldiçoado pelo céu. E esse homem era forte, e odiava otrabalho, de modo que disse: O que farei? Se não trabalhar,morrerei, e o trabalho me é insuportável?

Então, em seu coração introduziu-se um pensamentoinfernal. Saiu durante a noite, capturou alguns irmãos seusenquanto estes dormiam, e cobriu-os de correntes.

Pois, dizia, com varas e chicote eu os forçarei a trabalharpara mim, e comerei do fruto do trabalho deles.

E fez o que pensara; e outros, ao verem aquilo, fizeram omesmo, e não houve mais irmãos, passou a haver senhores eescravos.

Esse foi um dia de luto em toda a terra.

Muito tempo depois veio um homem mais malvado que oprimeiro... e disse consigo mesmo:

Talvez fosse possível eu acorrentar alguns e força-los atrabalhar para mim; mas seria preciso alimentá-los, e issoreduziria meu ganho. Façamos melhor; que trabalhem pornada! Na verdade, morrerão, mas como o seu número é

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grande, acumularei riquezas antes que eles diminuam muito,e sempre restará um número suficiente deles.

Tendo-se pronunciado daquela maneira, dirigiu-se emparticular a alguns e disse: Trabalhareis durante seis horas eganhareis uma moeda pelo vosso trabalho. Trabalhareidurante doze horas, e ganhareis duas moedas, e vivereis bemmelhor...

E eles acreditaram.

Ora, disso decorre que, tendo a quantidade de trabalhodobrado sem que a necessidade de trabalho fosse maior, ametade dos que viviam outrora de seu labor não encontroumais ninguém para empregá-la.

Então o homem malvado, em que haviam acreditado, disse-lhes: Darei trabalho a todos vós, contando que trabalheis pelomesmo tempo e eu só vos pague a metade do que vos pagava;pois desejo prestar-vos esse serviço...

E como tinham fome, eles, suas mulheres e filhos aceitaram aproposta do homem malvado e abençoaram-no, pois – diziam– nos dá a vida.

E eles morriam por carência do necessário, e outros corriama substituí-los, pois a indigência se tornara tão profundanaquela terra que famílias inteiras se vendiam por um pedaçode pão.

E o homem malvado que mentira a seus irmãos acumuloumais riquezas que o homem malvado que os acorrentara.

O nome deste é TIRANO; o outro só tem nome no inferno.[5]

Este texto ressalta a situação desumana dostrabalhadores de fábrica e camponeses do início da eraindustrial, um problema que incomodava sobremaneira aMarx e outros ideólogos do socialismo ao longo de todo o

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século XIX. É difícil imaginar como uma situação tão injustase mantinha, em gritante distonia não apenas com nossaépoca de direitos trabalhistas, salário mínimo e outrasconquistas do século XX, mas também em comparação com oestado dos servos medievais e citadinos da renascença, queera, apesar de tudo, bastante melhor.

Esta situação atípica na história mundial, que muitosoutros também consideravam pior que a escravidão,despertou críticas de todos os grupos, liberais ou socialistas,padres ou filósofos, burgueses ou mesmo nobres,encontrando finalmente na equação moral-econômica deTocqueville a fórmula da perfeita justiça social.

O que nos fere a sensibilidade contemporânea não é ofato de ter havido, num momento de turbulência política eabsolutismo, um tal estado de coisas, mas que ele tãoimediatamente nos evoque imagens do trabalhador fabril naChina ou na Índia, do sertanejo brasileiro ou do pescadorcaribenho, do pastor africano e do carvoeiro russo, indivíduosque em pleno século XXI permanecem esmagados pelamesma indigência, pela mesma desumanidade por parte deestados, empresas e, principalmente, sociedades para osquais são invisíveis.

O aspecto transtornador do socialismo de hoje é o ser elepraticado por funcionários públicos, cujos vencimentos sãosuperiores a quatro, cinco, inúmeros salários mínimos, sem omenor compadecimento para os que têm de se contentar commuito menos. Que as greves de hoje não sejam pelostrabalhadores escravos na Amazônia, pelas crianças dascarvoarias e mandiocais ou pelos boias-frias, mas para oaumento dos salários de quem já ganha o bastante para terum carro e viajar nas férias.

Todos queremos melhores condições, mas a comparaçãonão pode ser feita apenas com os que estão acima, ou oresultado será a escandalosa cegueira das nossas atuaislutas sociais, por aumentos de benefícios para nossos

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próprios grupos, a exemplo dos políticos e juízes que nosdespertam repulsa votando salários cada vez maiores para si.

Quem quer que queira ser um socialista da lavra deLamennais deveria dedicar ao pobre todas as suas forças eeconomias, para só depois exigir dos outros a mesmapostura. Mas o que se vê, bem ao contrário, é um discursohipócrita e vergonhoso que atribui responsabilidades aoEstado, aos ricos, a quem quer que seja, que não nósmesmos. E enquanto cada classe luta por seus interesses,seguindo a recomendação de Marx, ninguém trabalha emfavor do próximo, olvidando as sábias recomendações deLamennais.

E se Lamennai nos dá o tom de um socialismo digno eenobrecido, faz o mesmo com o liberalismo, unindo-os nateoria social superior do cristianismo: liberdade e justiça;responsabilidade e solidariedade. Ensinando ao dualismopartidário que só há uma humanidade.

(Continua em Lamennais e Kardec II)

Bibliografia:

LAMENNAIS, Félicité de. Palavras de um homem de fé. SãoPaulo: Martins fontes, 1998.

________________________________________

[1] Isto nos narra André Derval, responsável pela introdução epelas notas da moderna edição de Palavras de um homem defé, o livro mais célebre de Lamennais.

[2] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg. 9.

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[3] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg.11.

[4] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg.18.

[5] Félicité de Lamennais. Palavras de um homem de fé. Pg.21

Agostinho e Kardec III

Em A Cidade de Deus, Agostinho declara sem rodeios ser afilosofia platônica a preferencial entre os cristãos:

Se Platão disse ser sábio quem imita, conhece e ama a Deus,de cuja participação depende ser feliz, que necessidade há dediscutir as outras doutrinas? Nenhuma se aproxima da nossamais do que a doutrina de Platão.[1]

Compreenderam os platônicos, a quem vemos, nãoimerecidamente, antepostos aos demais em glória e fama, quenenhum corpo é Deus. Por isso, transcenderam todos oscorpos em busca de Deus. Compreenderam, além disso, queo mutável não é supremo Deus. Entenderam também quetoda espécie, de qualquer modo mutável, graças à qual todoser é o que é, seja qual for o modo e seja qual for a natureza,não pode proceder senão de Quem verdadeiramente é porqueé incomutavelmente.

(...)

Por causa da imutabilidade e simplicidade entenderam queEle fez todas as coisas e não pôde ser feito por ninguém.[2]

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Mas após esta defesa intelectual do platonismo, Agostinhoataca duramente a doutrina da comunicação com osespíritos. Entre os platônicos, Apoleio destacou-se pordesenvolver uma cosmologia complexa, objetivando descrevertodos os pormenores da vida e atividades dos “demônios”.Estes seres desencarnados, por terem vivido na terra eestando ainda materializados por suas paixões, seriamintermediários entre os deuses, seres já perfeitos pela práticada filosofia, e os homens viventes na Terra. Apuleio se excedenos contornos fantasiosos de suas descrições dos espíritos,mas apresenta alguns pontos lógicos no que toca a motivaçãodesta estrutura cosmológica em camadas hierárquicas.

Agostinho levanta-se indignado contra esta que pensa ser amais anticristã de todas as crenças, defendendo que osespíritos, por serem imperfeitos, seriam intermediáriosperigosos entre Deus e os homens. Desta forma, o queApuleio e inúmeros platônicos defendem como argumentocosmológico, da ordem ascensional de perfeição dos espíritos,Agostinho rebate um tanto quanto impropriamente atravésdeste argumento moral. Estaria a partir de então “corrigido” oplatonismo, para servir aos propósitos do Cristianismo emsua forma católica.

Por fim Agostinho investe com todas as forças contra aopinião de Porfírio, segundo a qual se deveria invocarespíritos dos mortos para aconselhamento, estudo eintercessão de favores. Porfírio havia desenvolvido estadoutrina junto aos magos caldeus[3] adeptos da teurgiaegípcia, país este em que vivia, e foi inclusive capaz deseparar os espíritos em categorias, conforme suas atividadese grau de adiantamento moral. Conta-se até que Porfírio teriapresidido cessões de materialização.

Plutarco afirmava, baseando-se principalmente nos relatossobre Sócrates, que os espíritos não possuem língua, mas secomunicam exclusivamente pelo pensamento. Porfírio eProclo discordariam veementemente desta afirmação,

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garantindo que tanto anjos quanto demônios utilizavam-se dalíngua local. Proclo, que experimentou diretamente diversosoráculos e videntes, diz que os espíritos se comunicam emsua língua pátria, mas podem também se comunicar nalíngua do médium. Em raros casos observara a xenoglossia, epareceu muito impressionado que uma médium fosse capazde falar em uma língua desconhecida (o armênio).[4]

Estas ideias eram, portanto, atribuídas a todos os platônicos,embora nem todos realmente defendessem acomunicabilidade com espíritos. Por isso Agostinho seinsurgiu contra o platonismo em geral, a propósito de suacorreção desta doutrina.

A obra continua com altos e baixos. Argumentos brilhantesse misturam a ataques malfadados à filosofia e a outrasreligiões da época, quase sempre com base no argumento deautoridade das escrituras. Em nenhum ponto é feita umadefesa teórica da autoridade da Bíblia sobre a razão ou sobreoutras espécies de tradições religiosas, mas puramente sesustenta serem as escrituras “claramente mais autorizadas”.Em vista de uma defesa dogmática das absurdidades doVelho Testamento, tem nosso santo de rejeitar a razão emfavor dos relatos do Gênese.

Entre um assunto e outro retornam os ataques àreencarnação, defendida então ainda por inúmeros cristãos,apesar da condenação pelo concílio de Nicéia, realizadodécadas antes da redação de “A Cidade de Deus.”

Outro tema recorrente é a explicação filosófico-teológica dabondade de Deus e da exclusividade de Sua ação na criaçãodo mundo, elemento este em que foi realmente virtuoso.Tanto o vigor de sua lógica quanto a fidelidade a todos osvalores e princípios da fé cristã se coadunaram, novamente,na defesa da ineficiência do mal. O mal seria dotado denatureza defectiva, ao passo que somente o bem seria efetivo.Desta forma, somente o bem operaria, enquanto o mal secaracterizaria pela falência ou corrupção de

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empreendimentos e coisas, incapaz de criar e engendrarobras. Completando as ideias expostas nas Confissões, estasanálises ajudariam em muito o estabelecimento de umaperspectiva otimista para a moral e a cosmologia cristãs,apesar da também presente defesa da doutrina do pecado, aoqual se deu posteriormente desmedida importância.

A filosofia de Agostinho diagnostica e decreta o fim da eraclássica e o início da Idade Média. Para o homem modernoisso soa mal, mas para a época foi uma alternativa benéficapara o caos absoluto. A era da razão havia dissolvido asociedade. A que levou toda a filosofia e ciências greco-romanas? Que ordem social havia se estabelecido com oauxílio do intelecto? Quais eram as glórias do Império? Aescravidão grassava, os bárbaros choviam de todas as partessobre as terras já não tão produtivas, as elites perdiam amedida da baixeza e da impiedade; ávidos por novas paixões,todas as classes pediam mais excessos nos circos da morte,nos festins de glutonaria e embriaguez, nas orgias e nosmúltiplos relacionamentos amorosos, desprovidos dequalquer humanidade e consideração pela própria saúde ouintegridade.

A ética e a teoria haviam feito sim inúmeros progressos.Contudo, as turbas ensandeciam enquanto os filósofoscultivavam o espírito em jardins afastados dos centospopulosos. Os santos e sábios gregos vagavam comomendigos maltrapilhos pelas ruas opulentas. Vergados peladescrença em qualquer possibilidade de renovação danatureza humana, mantinham-se cada vez mais céticos ecínicos, adjetivos estes que inclusive nomearam duas dasescolas mais famosas da época.

Os pensadores cristãos identificaram neste estado decoisas uma falência da inteligência humana diante dosproblemas pertinentes a vontade e ao sentimento. Agostinhofoi um dos que melhor perceberam o problema, e quemelhores soluções propôs. Num mundo onde a razão não

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podia mais oferecer suas contribuições luminosas, somente areforma dura, mesmo que artificial e imposta, do caráterpoderia oferecer algum paliativo à desordem. As disciplinasmonásticas se desenvolveram a partir deste precedente. Umaaversão natural ao período clássico surgiu, não comodesprezo pela virtude dos filósofos, mas como incredulidadeem sua capacidade de promover o bem geral.

A Idade Média não foi um momento de queda. Nasceu de umasaciedade, um esgotamento de um meio de vida que de modoalgum podia se sustentar. Assim como ela mesma foisuperada pelos seus excessos e erros, a era da fé tomou asrédeas de uma condução errada, ansiosa por fazer melhor.

A pergunta 495 de O Livro dos Espíritos contém umaresposta à quatro mãos; as de São Luís e as de SantoAgostinho. Espíritos afins, é possível que estejam de plenoacordo neste tocante e tenham redigido juntos o segmento,mas em nosso estudo particular sobre Agostinho ressalta asua afinidade sui generis com o tema e estilo de investigação.Só um mestre do solilóquio poderia imbuir uma explicação decores tão vivas, de um tão marcante conhecimento de causa.Acresce que a famosa “voz” do episódio da conversão einúmeras das meditações reveladas em Confissões são pordemais semelhantes ao que ele aqui expõe. A doutrina dosanjos guardiães também conta entre um dos princípiosdefendidos por Agostinho em suas obras:

Não vos parece grandemente consoladora a ideia de terdessempre junto de vós seres que vos são superiores, prontossempre a vos aconselhar e amparar, a vos ajudar naascensão da abrupta montanha do bem; mais sinceros ededicados amigos do que todos os que mais intimamente sevos ligam na Terra? Eles se acham ao vosso lado por ordemde Deus. Foi Deus quem aí os colocou e, aí permanecendopor amor de Deus, desempenham bela, porém penosamissão. Sim, onde quer que estejais, estarão convosco. Nemnos cárceres, nem nos hospitais, nem nos lugares de

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devassidão, nem na solidão estais separados destes amigos aquem não podeis ver, mas cujo brando influxo vossa almasente, ao mesmo tempo que lhes ouve os ponderadosconselhos...

Mas, oh! quantas vezes, no dia solene, não se verá esse anjoconstrangido a vos observar: “Não te aconselhei isto?Entretanto, não o fizeste. Não te mostrei o abismo? Contudo,nele te precipitaste! Não fiz ecoar na tua consciência a voz daverdade? Preferiste, no entanto, seguir os conselhos damentira!” Oh! Interrogai os vossos anjos guardiães;estabelecei entre eles e vos esta terna amizade que reinaentre os melhores amigos. Não penseis em lhes ocultar nada,pois que eles tem o olhar de Deus e não podeis enganá-los.(LE. Cap. IX, pergunta 495)

Dentre as numerosas e extensas comunicações de Agostinhodirigidas a Kardec o quão revelador já não nos é este curtofragmento. A beleza aludida pelos espíritos é a da presençados seres amáveis e amados junto de cada homem, digno ouindigno, nobre ou corrupto. Doutrina esta tão cara aosorientais em seu culto aos antepassados, e que aqui nos éapresentada com uma sutil analogia entre olhar de Deus e odos espíritos protetores. O juízo de Deus, elemento poderosoda moral dos povos, é tão mais sentido quanto mais forte é acrença de que Ele tudo vê. Mas aqui não se está apenas aafirmar a onipresença de Deus, que nossa mente ainda nãocompreende e que muitas vezes acha vaga, como também apresença e ciência de parentes e amigos sobre nossos maispequenos atos e pensamentos.

Sabedor deste processo, o homem pode divisar comclareza a seriedade de sua vida moral, devassada por seresque o conhecem e que lhe são caros. A lembrança do pai, dosavós, da mãe, dos irmãos ou filhos, dos melhores amigos,envergonha o homem no íntimo quando nem a visão de Deuso havia feito retroceder de seus crimes. É que o Altíssimo é

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visto como distante, sua perfeição moral inalcançável,enquanto a lembrança de alguém honrado enche de vergonhaaquele que se precipita. A Deus o homem exclama comhipocrisia: “Tu me fizeste assim; não reclames!”, mas ante apresença ou lembrança de um amigo impoluto a farsa édesbancada. Os filhos pródigos do mundo provam a força doesforço pessoal e a possibilidade da regeneração; os bons dãotestemunho da divindade que há em cada homem, e nós jánão podemos encará-los sem corar, sabedores de que ohomem, podendo ser perfeito, permanece com gosto em seusvícios.

Além disto, o apelo que a presença de entidadessimpáticas possui sobre o coração do homem é umaferramenta poderosa que Deus usa em favor de ambos. Oespírito sente a importância de sua individualidade quando épela sua intercessão que um pecador irredutível dá brechasao arrependimento. Esta mesma magia da afinidade pessoaldá aos protegidos uma especial sensibilidade para captar asideais e sensações que lhe tentam transmitir seus numestutelares.

No célebre ditado sobre o autoconhecimento, Agostinhoreafirma seu poder introspectivo em sentenças da maissimples e profunda psicologia:

Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia,interrogava a minha consciência, passava revista ao quefizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algumdever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar. Foiassim que cheguei a me conhecer e a ver o que em mimprecisava de reforma... Dirigi, pois, a vós mesmos perguntas,interrogai-vos sobre o que tendes feito e com que objetivoprocedestes em tal ou tal circunstância, sobre se fizestesalguma coisa que, feita por outrem, censuraríeis, sobre seobrastes alguma ação quenão ousaríeis confessar. Perguntaiainda mais: “Se aprouvesse a Deus chamar-me nestemomento, teria que temer o olhar de alguém, ao entrar no

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novo mundo dos Espíritos, onde nada pode ser ocultado?”(LE. Cap. XII, pergunta 919)

Aqui novamente a grandiosa ideia do olhar da justiça,cuja falta insubstituível tanto limita os princípios da éticamaterialista. Grifamos as palavras não ousaríeis confessar,imaginando que elas não apenas resumem o dever do homempara com Deus, mas para com sua própria razão. A famosaCrítica da Razão Prática, pela qual Immanuel Kantimortalizou-se no apogeu da ética universal, não contemoutro ensinamento.

A moral é, até certo ponto, relativa. Ela demanda, assim, umimperativo da razão, um princípio segundo o qual nossasnoções subjetivas de bom e mau possam se converter numdever objetivo para com os outros. Para arrancar doensimesmamento as noções de bem e de justiça, forçoso édar-lhe caráter público. O que nas sombras do anonimatonossa alma esconde, não pode escamotear sob a luz dapublicidade. Eis, pois, o segredo da filosofia moral: imaginarque todas as ações pudessem ser públicas. Se isto fazemos,prontamente tememos revelar o que até pouco julgávamosinocente. Nosso comportamento se esconde na moral relativade não causar danos imediatos, mas se por omissões ementiras sustentamos esta situação, é falsamente que nosinocentamos, pois a retidão exige de nós a pureza deconsciência independente do tempo.

Uma outra máxima completa e emula esta: Agir de forma talque minha ação, ao ser imitada pelos demais e/ou aplicadapor outros a mim mesmo, receba o meu total consentimento.Enquanto a primeira elimina o autoengano, esta combate oegoísmo. Quem não se revoltaria com o adultério cometidocontra si mesmo? Quem anui de boa vontade que lhemintam, mesmo nas pequenas coisas? Ainda que repudiemosestas ações, encontramos boas motivações para fazê-las, oque caracteriza nosso profundo egoísmo.

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Como se a pouco tivesse folheado a Crítica da Razão Prática,Agostinho continua:

Mas, direis, como há de alguém julgar-se a si mesmo? Nãoestá aí a ilusão do amor-próprio para atenuar as faltas etorná-las desculpáveis? O avarento se considera apenasprevidente; o orgulhoso julga que em si só há dignidade. Istoé muito real, mas tendes um meio de verificação que nãopode iludir-vos. Quando estiverdes indecisos sobre o valor deuma de vossas ações, inquiri como a qualificaríeis sepraticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não napodeis ter por legítima quando fordes o seu autor, pois queDeus não usa de duas medidas na aplicação de sua justiça.(LE. Cap. XII, pergunta 919)

Com isto se explana a filosofia moral, sem que cheguemosperto de mandamentos positivos como o defazer aos outros oque gostaríamos que nos fizessem. Esta máxima do Cristoexige a caridade, enquanto que a da ética apenas a cordura ea honradez. Mas que dificuldade em cumprir apenas estaética negativa, que restringe o nosso mal sem nos exigir osacrifício e a renúncia. E que mundo se formaria ainda quesomente esta primeira parte fosse realizada em nossasconsciências.

Agostinho é, para parodiar a ele mesmo, toda umacidade espiritual digna de mapeamento cuidadoso. Somente oespírito de Agostinho, em seus ditados a Kardec, merecerialongos e graves estudos. Mas finalizamos esta análiseacreditando ter levantado algo da personalidade histórica deum dos grandes autores da Codificação. A comparação entresua obra em vida, salvo todas as limitações de época ecomprometimentos com a dogmática da Igreja, e os ditadosfeitos a Kardec parecem revelar, mesmo que para o críticomais descrente, uma profunda afinidade de ideias esentimentos.

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[1] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 306.

[2] Santo AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Pg. 308.

[3] Atual Iraque.

[4] Helmut ZANDER. Geschichte der Seelenwanderung inEuropa.

Agostinho e Kardec II

Continuando a sequência do primeiro texto que visavaintroduzir e contextualizar o papel de Agostinho, passamos aum sobrevoo por sua obra prima.

Assim se inicia este livro magistral, com nada menos do queum dos mais belos parágrafos que a cultura humanaproduziu:

Sois grande, Senhor, e infinitamente digno de ser louvado. Égrande o vosso poder e incomensurável a vossa sabedoria. Ohomem, fragmentozinho da criação, quer louvar-Vos; - Ohomem, que publica a sua mortalidade, arrastando otestemunho do seu pecado e a prova de que Vós resistis aossoberbos. Todavia, esse homem, particulazinha da criação,deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossoslouvores, porque nos criaste para Vós e o nosso coraçãorepousa inquieto, enquanto não repousa em Vós. [1]

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Paulo de Tarso, o grande ídolo de Agostinho

No terceiro capítulo do livro sétimo, Agostinho inicia umaescalada lírica que reveste o profundo processo psicológico desua conversão. Este fragmento denota o assombro diante dasdificuldades de retorno à origem:

Por que assim, ó Senhor, Deus meu, quando Vós próprio soisa vossa alegria eterna, e tudo o que está à vossa volta sealegra em Vós? Por que é que esta parte das vossas obrasoscila em alternativas de queda e de progresso, de ofensas ede reconciliações? Será esta a sua condição? Só lheconcedestes isso, quando da altura dos céus até os abismosda terra, do princípio ao fim dos séculos, do anjo ao maispequenino verme, do primeiro ao último movimentodispúnheis todas as variedades de bens e todas as vossasobras justas no seu lugar, e as determináveis no seurespectivo tempo? Ai de mim! Quão alto sois nas alturas equão profundo nos profundos abismos! Nunca vos apartaisde nós e, contudo, com que dificuldade nos voltamos paraVós.[2]

E a dificuldade estava exatamente no seguinte:

O inimigo dominava o meu querer, e dele me forjava umacadeia com que me apertava. Ora, a luxúria provém davontade perversa; enquanto se serve à luxúria, contrai-se ohábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-se umanecessidade. Era assim que, por uma espécie de anéisentrelaçados – por isso lhe chamei cadeia –, me seguravaapertado em dura escravidão. A vontade nova, que começavaa existir em mim, a vontade de Vos honrar gratuitamente e dequerer gozar de Vós, ó meu Deus, único contentamentoseguro, ainda se não achava apta a superar a outra vontade,

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fortificada pela concupiscência. Assim, duas vontades, umaconcupiscente, outra dominada, uma carnal e outraespiritual, batalhavam mutuamente em mim. Discordando,dilaceravam-me a alma.[3]

Como contrariar a verdade desta revelação? Acasoalguém já devassou mais profundamente o mistério davontade? Quem pode negar que o “inocente” hábito, ao qualnos permitimos por fraqueza e com consciência, seja a causade todas as necessidades que depois nos escravizam? Osvícios, as compulsões e obsessões, as patologias maisabsurdas começam com os maus hábitos, frágeis e discretosem sua raiz, mas por isso mesmo é tentador justifica-los,defender sua inocuidade, “permitir-se”, como na linguagemadulterada de nossa geração.

Não há hoje palavra mais celebrada que o permitir-se.Como se todo o comedimento, toda a privação, remontasse auma repressão tirânica, um exagero do pudor. A psicologiadesviada prega, a cultura exalta, as personalidades,especialmente as que hoje se denominam “artistas”,idolatram a nova deusa. Permissividade é o seu nome;honestidade e autenticidade são seus falsos distintivos deautoridade, ficar “de bem consigo mesmo” é a sua mentirosapromessa.

Mas o clímax que hoje se vivencia não é mais que umretorno das mil Babilônias da história. Roma com sualicenciosidade escandalosa, com seus cidadãos pervertidos ase considerarem livres das amarras do passado virtuoso. AParis e a Londres das festas e das orgias. Ricos e pobrescultuando a vadiagem e a depravação como conquistas dacivilização e do progresso. Nossa época teve muitosprecedentes. Só a generalização e internacionalização daimoralidade é uma novidade. É que a alma tem em suanatureza este conflito, com potencial para elevar-se ou decair,e os meios se multiplicaram, tanto para a queda como para a

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ascensão; preferindo as criaturas lamentavelmente a opçãoque lhes é mais próxima da realidade mental e dos hábitosarraigados.

Esta dicotomia da alma tem, entretanto, uma polaridade maisforte do que a outra, como se uma das tendênciasmanifestasse o determinismo universal do progresso,enquanto a outra constitui meramente um elemento deresistência. Bem e mal, de forma neoplatônica, são umapolaridade assimétrica. Todo o criado é limitado, fraco, mas asua parte divina, aquilo que faz dela a imagem do criador, ésempre mais forte. Não obstante, este conflito não é simples,porque apesar de constituir a parte mais fraca, a escuridão éa predominante na natureza humana, saída do lodo e a elehabituada. A ascensão para a luz é estranha ao homem,mesmo que a própria treva de onde ele tenta, ou não, sedesgarrar seja produzida pela luz.

Semelhante ao que dorme num sonho, sentia-me docementeoprimido pelo peso do século. Os pensamentos com que emVós meditava pareciam-se com os esforços daqueles quedesejavam despertar, mas que, vencidos pela profundeza dasonolência, de novo mergulham no sono. Não há ninguémque queira dormir sempre. A sã razão de todos concorda queé preferível estar acordado. E contudo, quando o torpor tornaos membros pesados, retarda-se, as mais das vezes, a horade sacudir o sono, e vai-se continuando, de boa vontade, aprolonga-lo até ao aborrecimento, mesmo depois de haverchegado o tempo de levantar.

(...)

Mostrando-me Vós, por toda parte, que faláveis verdade, eu,que já estava convencido, não tinha absolutamente nada queVos responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Uminstante, um instantinho, esperai um momento”. Mas este“instante” não tinha fim, e este “esperai um momento” ia-seprolongando.[4]

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Este período de lutas desemboca na conversão, onde toda asensibilidade de Agostinho se transubstancia da guerra aolouvor bem-aventurado. O crente deseja cantar em altosbrados a sua alegria, a sua libertação, e, naturalmente, só opode fazer através dos Salmos. Assim enche-se o nonocapítulo com os cânticos de adoração dos judeus, suaherança maior para a humanidade. Com destaque para osalmo 4.

“Filhos dos homens, até quando sereis duros de coração?Para que amais a vaidade e buscais a mentira?”[5]

“Está gravada dentro de nós a luz do vosso rosto, Senhor.”[6]

“Oh! Estarei em paz! Oh! Viverei em paz no seu mesmoser!”[7]

“Deus do meu coração, minha glória e minha vida”[8]

“aproveis esta oblação voluntária da minha boca.”[9]

Tão bem encadeada é a narrativa e tão orgânicos se tornamos salmos dentro deste edifício que se diria ser o mesmoautor o das confissões e o dos mais belos cânticos. Chega-se,afinal, ao livro X, e a religião se encontra com a filosofia, masnão mais em choque. Divinamente aparentadas, ambas asdisciplinas se fortalecem. Mas uma forte soberania da fésobre a razão é a chave para estas bodas.

O capítulo contém, pouco após o seu início, umesclarecimento sobre a necessidade da confissão. Nelaressalta-se uma compreensão lúcida da sabedoria paulina.

Vós, Senhor, podeis julgar-me, porque ninguém “conhece oque se passa num homem, senão o seu espírito, que nelereside.”[10] Há, porém, coisas no homem que nem sequer oespírito que nele habita conhece. Mas Vós, Senhor, que o

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criastes, sabeis todas as suas coisas. Eu, ainda que diante deVós me despreze e me tenha na conta de terra e cinza, sei deVós algumas coisas que não conheço de mim. “Nós agoravemos como por um espelho, em enigma, e não ainda face aface.”[11] Por isso, enquanto peregrino longe de Vós, estoumais presente a mim do que a Vós. Sei que em nada podeisser prejudicado, mas ignoro a que tentações posso ou nãoposso resistir. Todavia, tenho esperança, porque sois fiel enão permitis que sejamos tentados acima das próprias forças.Com a tentação, dai-nos também os meios para a podermossuportar.[12]

Confessarei, pois, o que sei de mim, e confessarei também oque de mim ignoro, pois o que sei de mim, só o sei porqueVós me iluminais; e o que ignoro, ignora-lo-ei somenteenquanto as minhas trevas se não transformarem em meio-dia, na vossa presença.[13]

E chegando a um dos pontos mais altos de toda estaestonteante obra, vislumbramos a definição agostiniana deDeus. O filósofo-santo-poeta pergunta a tudo, céu e mar,animais e plantas, estrelas e elementos, e tudo é impotentepara dar-lhe a imagem de Deus. Mas toda a criação exclama:“Foi Ele quem nos criou.”[14] Como nas ancestraisUpanixades, a busca ansiosa de Agostinho não é frustrada,apesar de ele não chegar ao Arquiteto do qual tudo se origina.Pois, para o assombro dos céticos, a natureza responde emfesta ao interrogatório, e o crente reconhece sem esforço nãoser o sol o seu Deus, mas a luz do sol; não o vento, mas a suacarícia; não as aves, mas o seu canto.

“...Amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e umabraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume, alimentoe abraço do homem interior, onde brilha para a minha almauma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma vozque o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que otempo não esparge, onde se saboreia uma comida que a

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sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que asaciedade não desfaz. Eis o que eu amo, quando amo o meuDeus.”[15]

Insaciado, Agostinho prossegue investigando ascriaturas do universo, e tudo lhe é ao mesmo tempoinsuficiente e promissor. Obras e virtudes anunciam oCriador, mas ele não se apresenta diretamente. E num dosmomentos de maior elevação do gênero humano, Agostinhoequaciona toda a teoria estética numa sentença que um diaainda deverá balizar a arte do futuro: “A minha perguntaconsistia em contemplá-las; a sua resposta era a suabeleza.”[16]

Chagamos a parte propriamente filosófica do livro, onde asdificuldades metafísicas, epistemológicas e psicológicasexigem um tratamento mais vagaroso e técnico. Este trecho,respectivo ao poder da memória, torna-se a pedra angular dacompreensão agostiniana da alma, de suas faculdades, e emespecial da liberdade.

A memória armazenaria imagens e conhecimento. Asimagens sendo aquelas impressões sensíveis dos objetos,como cópias deles, meramente destinadas a informar, eacessadas pela mente com a função de referenciar o que sãoas coisas e situações. O conhecimento não se refere aosobjetos, e, portanto, não se resume a cópia do que foipercebido. Ele encerra a classe de realidades mentaisindependentes dos objetos exteriores, como a matemática.Enquanto a imagem é uma reprodução mental de uma coisa,o conhecimento é uma lembrança de uma lei, um padrão ouum princípio, não podendo ser afetado pela confusão.

Agostinho se revela um mestre da psicanálise. Elereconhece que há memórias tão obscuras, “escondidas emcavidades secretíssimas da mente”, que só podem de lá serarrancadas por força de um agente externo, como algo que se

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refira diretamente àquelas lembranças perdidas. Percebeuque a memória lembra-se de lembrar, como quando fazemosnotas mentais para não esquecer algo, e mesmo nosrecordamos de nos ter programado para recordar algo. E omais impressionante, a memória pode trazer, contra todo ojuízo dos materialistas, uma sensação contrária a queexperimentamos agora. Pode o homem em meio ao prazeravivar a memória de suas tristezas e dores, ou em meio aoócio sentir em si as agruras do trabalho, ou ainda, padecendode enfermidade, ter a sensação de gozar de perfeita saúde,tudo isto contradizendo as sensações mais fortes que o corpolhe comunica naquele instante. É por esta propriedade que ohomem pode viver espiritualmente, não apenas no planoabstrato, mas até no plano sensível e emocional, dandomenor importância ao que experimenta presentemente ocorpo.

Este mesmo poder de representar e evocar elementosausentes da percepção exerce o mais importante papel navida humana, a lembrança da felicidade. Pergunte-se aqualquer homem se é plenamente feliz, e excetuando-se pelosdesacostumados a maiores reflexões todos responderão quenão, ainda. Falta-lhes algo, que os vulgares imaginam sermais saúde, dinheiro ou a presença de pessoas pelas quaissão enamorados, e os mais sensatos saberão dizer: “não sei oque me falta, mas sei que há algo do qual depende minhafelicidade”.

O homem sente a falta de uma felicidade que jamaisexperimentou. Como pode ser assim? Agostinho imagina terencontrado a resposta na memória do esquecimento. Àsvezes, quando nos esquecemos de algo, temos a sensaçãodeste esquecimento. Ele não é completo, e embora não noslembremos do quê, sabemos haver esquecido de algo. Quemnão experimentou esta sensação de achar ter algo ausente desua memória, algo importante, mas sem poder inferir omenor detalhe sobre este?

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O homem tem um tal esquecimento radical na suaalma. Algo perdido que precisa reencontrar, e sem o que nãoestá completo. Mas, a tragédia, ele sequer sabe o que perdeu.Só pode confiar no instinto que lhe diz: “Encontrai este algo esereis feliz”. Sabemos todos que a felicidade existe, e distotemos uma certeza profunda, mas a ninguém ocorre ondepossa estar.[17]

Ora, a felicidade só pode estar no fundo da alma,naquilo que ela tem de mais próprio, no seu ser. E não éoutro senão Deus este fundo.

Poderemos então concluir que nem todos querem ser felizesporque há alguns que não querem alegrar-se em Vós, quesois a única vida feliz? Não; todos quere uma vida feliz. Mascomo a carne combate contra o espírito e o espírito contra acarne, muitos não fazem o que querem, mas entregam-seàquilo quepodem fazer. Com isso se contentam, porque aquiloque não podem realizar, não o querem com a vontade quantaé necessária para o poderem fazer.[18] (grifo nosso)

É por isso que muitos reconhecem, com razão, estartoda a moderna psicologia contida nas investigações deAgostinho. E na sequencia ele consegue aprofundar-se aindamais:

Pergunto a todos se preferem encontrar a alegria na verdadeou na falsidade. Todos são categóricos em afirmar que apreferem na verdade, como em dizer que desejam ser felizes.A vida feliz é a alegria que provém da verdade... Encontreimuitos com desejos de enganar outros, mas não encontreininguém que quisesse ser enganado...

Por que a verdade gera ódio? Porque é que os homens têmcomo inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vidafeliz, que não é mais que a alegria vinda da verdade? Talvezpor amarem de tal modo a verdade que todos os que amamoutra coisa querem que o que amam seja a verdade. Como

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não querem ser enganados, não se querem convencer de queestão em erro. Assim, odeiam a verdade, por causa daquiloque amam em vez da verdade... Não querendo ser enganadose desejando enganar, amam-na quando ela se manifesta eodeiam-na quando ela os descobre.[19]

Não é este o processo que a psicologia atual denominaracionalização? E como se poderia explica-lo melhor do quenestes termos: “os homens, por tanto amarem a verdade,enganam-se quando ela é contra eles, porque o que fazem ouquerem, não o querem associar ao erro, e sim a verdade”?Assim cada homem pensa estar sempre com a razão, no quetodos a contrariam. Esta a fonte de todas as disputas, no larou no templo, na vida pública ou na intimidade da própriaconsciência.

Pobre do homem que em seu orgulho foge da verdade paranão se permitir ver a si mesmo como um tolo. Quanto mais ofaz, mais mergulha na própria tolice, e menores são suaschances de escapar a este destino vicioso, pois quão maisfunda é a sua condição, quanto mais radical é o erro que elesustenta, mais terrível será para o seu orgulho ter deconfessá-los.

É também por isso que os filósofos, especialmente osfranceses, do século das luzes se associavam, em teologia, àcorrente dos agostinianos. A luz da razão, precursora daverdade, não pode luzir na presença das máscaras que oorgulho forja para ocultar as enfermidades da alma, fazendo-as parecer belas e nobres.

Mas há esperança:

Quando estiver unido a Vós com todo o meu ser, em partenenhuma sentirei dor e trabalho. A minha vida será entãoverdadeiramente viva, porque estará toda cheia de Vós.Libertais do seu peso aqueles que encheis. Porque não estoucheio de Vós, sou ainda peso para mim.[20]

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Só na grandeza da vossa misericórdia coloco toda a minhaesperança. Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o quequiserdes.[21]

E ainda que o acusem de moralismo, não é o pedantequem encontramos nas Confissões, senão o homem honestoque se abre em público à devassa de suas fraquezas:

Mandais-me, sem dúvida, que me abstenha daconcupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e daambição do mundo... Mas na minha memória vivem ainda asimagens de obscenidades que o hábito inveterado lá fixou.Quando, acordado, me vêm à mente, não têm força. Porém,durante o sono, não só me arrastam ao deleite, mas até àaparência do consentimento e da ação. A ilusão da imagempossui tanto poder na minha alma e na minha carne, que,enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a ações aque, nem sequer as realidades me podem persuadir.

Meu Deus e Senhor, não sou eu o mesmo nessas ocasiões?..

Onde está nesse momento a razão que resiste a taissugestões quando estou acordado e permanece inabalável,quando as próprias realidades se lhe introduzem?[22]

Acusam-no de exagero e rigorismo, mas ele está a todo omomento confessando não praticar um regime estóico. Emrelação à gula comenta:

Sendo a saúde o motivo do comer e beber, o prazer junta-se aesta necessidade... Ora, o limite não é o mesmo para ambosos casos, pois o que basta à saúde é insuficiente para oprazer...

Ouvi ainda outra voz “Aprendi a contentar-me com o quepossuo; sei viver na abundância e sofrer a penúria. Tudoposso naquele que me conforta”[23] Eis como fala um soldado

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dos acampamentos celestiais, que não é o pó que nóssomos.[24]

Este é um dos inúmeros trechos em que Agostinho revela suareverência absoluta por Paulo. Aqui também se descreve aimoderação com conhecimento de causa, e o fato detransparecer sua humildade diante do apóstolo dos gentiosrevela a dificuldade de seguir-lhe o exemplo. “Quem será,Senhor, que não se deixe arrastar um pouco para além doslimites da necessidade? Se alguém há, como é grande!... Euporém não sou deste número.”[25]

Muito teríamos de dizer sobre o capítulo seguinte, acerca dotempo. Agostinho teve o mérito inolvidável de considerar otempo como grandeza psicológica, conquista que só foiamplamente retomada por Kant, treze séculos depois.

Mas já esgotamos o espaço que poderíamos dedicar a estamonumental obra do santo de hipona. A seguir veremos aslinhas gerais de outra de suas obras principais, A Cidade deDeus, e a reaparição do célebre teólogo nos anos daCodificação.

(Continua em Agostinho e Kardec III)

Bibliografia:

AGOSTINHO, santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural

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Agostinho e Kardec I

Aurélio Agostinho, Agostinho de Tagaste, Agostinho deHipona, ou Santo Agostinho, como é mais conhecido, foi umadas personalidades marcantes da história humana. OCristianismo seria irreconhecível sem a marca de seu gênio.Católicos, protestantes, ortodoxos e mesmo espíritas, estesdissidentes tão distantes de seus primos da tradição, todostêem em Agostinho um guia e referencial da pureza cristã, dozelo na defesa da fé, dos cuidados com a vigília incessantedas obscuridades da alma e de um ardor poético no louvor aDeus.

Aurélio Agostinho

Falar de Agostinho significa assumir diversos riscos; riscosque preferiríamos evitar se não fosse tão grande anecessidade de trazê-lo mais para perto de nós. Sem medo desermos prolixos, dividimos este artigo em três partes,referentes respectivamente à vida e conversão, àsConfissões euma última referente à Cidade de Deus e a presença dele naCodificação do Espiritismo. É que Agostinho não nos permiteum gasto menor de espaço e esforço para apresentação desuas ideias, nem pode seu pensamento, como o da maioria,ser separadas para fins didáticos, com o que se mataria suaessência rica de propósitos e referências cruzadas. Em outraspalavras, só se compreende sua doutrina através de umcontato com sua biografia.

Agostinho era um cidadão romano, pertencente a umaclasse média. Numa sociedade complexa e diversificada, suaposição não distava muito da dos jovens de hoje, com seusdivertimentos coletivos, caça às garotas e totaldespreocupação com o futuro. Sem serem ricos, Agostinho e

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os seus não tinham preocupações materiais. O pai era umadúltero assumido, e vivia conforme um homem de boaposição na sociedade romana. A mãe, sendo cristã, esperavasem ressentimentos ou perturbações, convencida de queDeus iria converter o filho pervertido e compensá-la pelosseus desgostos após a morte.

Agostinho via no pai a força e a liberdade do estilo devida romano, com sua consciência desimpedida, e na mãe afigura dos fracos de espírito, com sua crença de escravos eperdedores. Apesar disto, uma parte de si a admirava na suaresignação estóica e na sua perseverança nos seus simplóriosideais.

Aos 18 anos viu-se pai de um filho, ao qual chamavajocosamente “filho dos meus pecados”. Aos 29, hábil nasletras e na retórica, decidiu mudar-se para Roma, em buscade melhores vencimentos e prestígio. A mãe, receosa de queisto agravasse seus desregramentos, decidiu ir junto.Agostinho fingiu aceitar, e no dia da viagem, enganou-a,deixando-a numa capela enquanto partia às pressas.[1] Masela não desistira de resgatar a alma corrompida do filho, eanos depois o alcançou em Milão.

Abraçou a doutrina do maniqueísmo, que deixaria marcaspermanentes na sua e na visão de muitos outros cristãos.Adorava Cícero e os filósofos de seu tempo. Não fazia muitoscomentários sobre os poetas, mas a julgar pela sua própriahabilidade lírica deveria conhecê-los razoavelmente bem.Como retor era imbatível.

O problema de Agostinho com o Cristianismo era todofilosófico. Não admitia que aquele modelo simplório dedescrição do mundo pudesse competir com a lógica dafilosofia e o rigor das ciências e das artes liberais. Desde suaestadia em Roma já não era mais o hedonista e cínico dajuventude, mas enxergando seus erros, voltava a cair nomesmo abismo ao qual estava acostumado.

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A vida de Agostinho era tudo menos monótona. Convencidopela mãe, cuja fé simples e sincera admirava, ouvia aspregações de santo Ambrósio em Milão. A seguir fugia destesflertes com o Cristianismo para não despertar o deboche doscolegas da academia. Mantinha diversos credos sem poderabraçar nenhum definitivamente.

Enfim o encontro com o platonismo e o neoplatonismo lhepropiciaram o contato com uma filosofia que ansiava pelaproximidade com a religião.

Neste ambiente intelectualmente agitado, foi Paulo quem aospoucos conquistou seu espírito. Nos textos do velhoconvertido Agostinho reconhecia o pecador com quem podiase identificar; o arrependido que abandonara o orgulho daciência do mundo e se transformara em santo.

Will Durant nos dá a seguinte descrição de suas crisespsicológicas e de sua solução:

Cortejou durante algum tempo o ceticismo da academia. Eraum homem de emoções fortes, portanto não demorava muitoem pender por um ou por outro julgamento. Estudou Platão ePlotino em Roma; o neoplatonismo integrou-seprofundamente em sua filosofia e, por intermédio dele,dominou a teologia cristã até o tempo de Abelardo. Tornou-separa Agostinho a porta de entrada para o Cristianismo...Certo dia, estando sentado num jardim de Milão com seuamigo Alípio, pareceu-lhe ouvir uma voz a repetir-lhe muitasvezes no ouvido: “lê, lê” Agostinho pôs-se a ler um trecho dePaulo: “Não vos entregueis a orgias e libações, não sejaisambicioso nem estroina, não sejais belicoso nem invejoso;entregai-vos a Nosso Senhor Jesus Cristo e não procureissatisfazer os desejos carnais.” Esta passagem trouxe aAgostinho uma grande transformação de sentimentos eideais; havia alguma coisa naquela fé que era mais ardente emais profunda que toda a lógica da filosofia. O Cristianismolhe surgiu dando-lhe uma satisfação profundamente emotiva.Renunciando ao ceticismo de sua inteligência, encontrou,

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pela primeira vez em sua vida, um estímulo moral e paz parao espírito.[2]

Esta é, aliás, a história de toda a conversão espontânea. Umfenômeno que acontece nos raríssimos momentos em que umser humano sente aquilo que está lendo de um livro sagrado.

Começava a carreira de escritor e pregador cristão, comum brilhantismo que em muito ofuscava sua já reconhecidaposição de retórico. Os alunos desta disciplina continuavam achegar ao longo da vida de Agostinho, mas muitos seconverteram ao Cristianismo através destas aulas. Poder-se-ia dizer que até então Agostinho brilhara pelo seu agudointelecto; agora brilhava ainda mais, atingindo fama mundialcom este mesmo intelecto alimentado por um fogo divino dosentimento e da fé exaltados.

Caracterizou-se pela defesa mista da liberdade e da graça naeconomia da salvação, pelo rigor de seu ascetismo e pelaforça inflamada com que defendia o Cristianismo de seusinúmeros perigos reais ou imaginários. Reforçou a doutrinado pecado, e de como a posição do homem exigia dele a maisprofunda entrega a Deus. Este último traço de maniqueísmoo fazia enxergar apenas preto e branco nas questões morais eexistenciais, ignorando circunstancias e relativismosculturais ou pessoais numa apologética irredutível de umcristianismo monástico.

De todas as suas disputas a mais malfadada, do ponto devista espiritual, foi a que travou contra Pelágio, o herege queconseguiu furar todas as proibições do catolicismo e chegaraos grandes pensadores do Renascimento e do Iluminismo.

Durant narra da seguinte maneira esta saga:

Veio da Inglaterra o mais forte de seus oponentes, Pelágio,um monge independente, o qual defendeu com veemência aliberdade do homem e o fato de que ele podia salvar-se pela

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prática de boas ações. Na verdade, diz Pelágio, Deus nosauxilia, dando-nos Sua lei e mandamentos, o exemplo epreceitos dos santos, purificando-nos com a água do batismoe o sangue de Cristo. Deus não faz pesar a balança contra anossa salvação ao fazer a natureza humana inerentementemá. Não houve pecado original, tampouco a queda dohomem; somente aquele que comete o pecado é que serápunido; sua culpa não recai nos filhos. Deus não predestina ohomem para o céu ou o inferno, não escolhe arbitrariamenteaquele que será condenado ou salvo; Ele deixa a nós mesmosa faculdade de escolhermos nosso destino. A teoria de que adepravação é inata na natureza humana, disse Pelágio, é amaneira covarde de se atribuir a Deus a culpa pelos pecadosdo homem. O homem é dotado de razão e, por isso,responsável pelos seus atos: “se devo fazer uma coisa éporque poso fazê-la.”

Pelágio chegou a Roma por volta de 400, viveu com famíliasreligiosas e granjeou a fama de se muito virtuoso... Umsínodo realizado no Oriente julgou o monge e declarou-oortodoxo; um sínodo africano, convocado por Agostinho, nãoaceitou esta decisão e apelou para o papa Inocêncio I, o qualdeclarou Pelágio um herético.

A disputa só foi concluída alguns anos depois com oConcílio de Éfeso, em que Pelágio e toda a sua doutrina formacondenados para sempre. Esta marca haveria de sertransmitida do catolicismo ao protestantismo, e jamais oCristianismo aceitaria pacificamente a salvação pelo esforço emérito, a inocência original do homem e a capacidade darazão de julgar o caminho mais apropriado para a fé. Graçasa Agostinho, razão e fé se tornaram realidades irreconciliáveisna tradição cristã. Por mais que Agostinho estivesse satisfeitoem abandonar sua promiscuidade e vaidade intelectual, estesque ele considerava sérios pecados nunca produziriam tanto

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mal para o mundo quanto a defecção da salutar doutrina dePelágio.

Pelágio

Seus erros e virtudes se misturam de tal modo que seriaimpossível, talvez, separá-los. Um menor ardor poderia terarrefecido em excesso a índole combativa, fonte de suaprodutividade; e uma tolerância mais filosófica poderia darum ar pagão que desmereceria seus escritos aos olhos doclero, diminuindo seu impacto. Se Agostinho errou muito noque toca a sua intransigência, foi o espírito necessário numtempo de caos, pluralidade de doutrinas esdrúxulas edecadência final da sociedade romana que desaparecia anteas marés bárbaras. Um homem menos convictoprovavelmente teria sido engolido pelas sombras do olvido,como ocorreu a maioria de seus opositores.

Feita esta apreciação, tem todo o cristão a obrigação de votara ele a mais sincera gratidão pelos escritos edificantes quelegou ao mundo. Nas Confissões, livro que imita o costumeprimitivo de se confessarem os cristãos uns aos outros empúblico, Agostinho deixa de lado suas inúmeras disputasideológicas para alçar vôos de introspecção. São estesescritos, certamente, que lhe deram a palma posterior deautoridade máxima nos assuntos referentes aoautoconhecimento.

(continua em Agostinho e Kardec II)

Bibliografia:

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DURANT, Will. A História da Civilização IV: A Idade da Fé. Riode Janeiro: Record, 2002.

________________________________________

[1] Will DURANT. A História da Civilização IV: A Idade da Fé.Pg. 59.

[2] Will DURANT. A História da Civilização IV: A Idade da Fé.Pg. 59.

Pascal e Kardec II

Continuamos com nossas considerações sobre Pascalexemplificando o demérito com que ele considerava o mundoe seus assuntos. Só assim podemos entender o “eremita” pordetrás dos Pensamentos.

Vejamos o que pensa ele da política:

Costumamos imaginar Platão e Aristóteles usando grandestúnicas de pedantes. Eram pessoas honestas e, como asoutras, riam com seus amigos; e, quando se divertiam emfazer as suas Leis e a suaPolítica, fizeram-nas brincando. Eraa parte menos filosófica e manos séria de sua vida. A maisfilosófica consistia em viver simples e tranquilamente.

Se escreveram sobre política foi como para pôr em ordem umhospício; e, se fizeram menção de falar dela como de umagrande coisa, é que sabiam que os loucos a quem falavamjulgavam ser reis e imperadores; entravam nos seusprincípios para moderar a loucura deles na medida dopossível.[1]

Não é esta a opinião mais justa possível sobre estestrabalhos? Não é mais veraz do que a dos críticos da filosofia

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política que atacam com tamanhas carrancas os velhosmestres, imaginando estarem também eles completamenteenervados e excitados durante a redação de seus escritospolíticos? Filósofo como os da Antiguidade, Pascal enxergabem a diferença entre a índole dos que educavam e a dosmodernos teoristas, que pretendem mudar o mundo. E apretensão maior disto tudo está exatamente em querer mudaro mundo, corrigi-lo, quando só se corrige o caráter individual.Todas as utopias nascem da ignorância acerca desta simplesverdade.

Faltando bases e objetivo para se aplicar ao estudo domundo, o homem deve voltar suas forças ao estudo de suaalma imortal e das condições de sua salvação. A religião nãoé eleita por preferência, ou por gosto temático, mas porprincípio de razão. A famosa aposta de Pascal está longe deser o fim dos Pensamentos, mas é certamente o seu clímax. Oargumento é por demais extenso e intrincado, e nos exigiriaaqui uma exposição integral seguida de comentários, mais doque dobrando o volume já excessivo deste artigo.Basicamente, portanto, são as seguintes as ideais implícitas:

1- O conhecimento humano é incapaz de decidir entre aexistência ou inexistência de Deus; o mesmo vale para aalma; e o mesmo para a situação da alma após a morte. Senosso conhecimento é incerto e inconclusivo só nos restaapostar. Crentes e ateus, portanto, são essencialmenteapostadores, nenhum possuindo mais conhecimento dosfatos do que o outro.

2- Se nos cabe apostar, é possível ainda calcular asconsequências da aposta, deduzindo assim quais são asvantagens de ambos os partidos. Pelas vantagens, mesmoque apenas especulativas, pode-se proferir um juízo racionaldo que seja a aposta preferível.

3- A primeira opção, crer em Deus e na imortalidade daalma, direciona nossa vida ao bem, nos desvia dos vícios etorpezas. Tornar-se homem de bem, piedoso e justo,

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perdendo-se com isto somente os prazeres inconstantes efrugais do corpo, é uma atitude recompensadora mesmo quenenhuma das esperanças de imortalidade se concretize.Apostar na religião é, assim, uma escolha onde não se precisaabrir mão de nada essencial, não acarretando senão embenefício do próprio convertido.

4- Ademais, a escolha entre uma vida que termina com amorte ou uma que conduz a outra vida, eterna, não oferecequalquer vantagem para os partidários da primeira opção.Qual é a razão de se preferir uma vida à duas, uma limitada efinita à uma outra limitada e finita acompanhada de umasegunda infinita e beatífica? Os que optam pela imortalidadenão perdem nada da vida mundana, e ganham uma extra.

5- Por fim, se abdicamos da imortalidade e vivemossomente para esta vida, certamente nos comprometemos coma outra, se houver. Mas se seguimos uma vida pia e virtuosa,podemos ganhar tudo numa possível vida espiritual no além.Se, por outro lado, não houver vida após a morte, o ateu nãoganha com isto mais do que o crente, já que nenhum érecompensado por crer ou descrer de algo.[2]

Pascal chegou desta forma à conclusão final de que, do pontode vista da lógica dos apostadores, os descrentes passam portolos. Mas, condescende ele, a maior parte dos descrentesnão atingiu este estado por cálculo, e sim por inclinação, eeles próprios o confirmam. É-lhes anormal ou inconvenientecrer, e provavelmente estão certos nesta afirmação, pois ohomem crê naquilo que está habituado a enxergar, pensar,conversar e fazer. O argumento da aposta provavelmente falaalto à inteligência, mas o descrente permanece afastado dareligião pelo coração e pela vontade.

Para isso há ainda outra solução, que nada tem de teórica,mas exige uma dose maior de boa vontade. É precisohabituar-se ao comportamento da fé, de modo a nutrir a alma

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com as inclinações e o gosto pela religião. Somente aeducação dos hábitos pode converter aquele que pela próprianatureza se indispõe a algo. Pascal sugere, então, com muitasabedoria, a entrega compulsória a uma vida justa, aoscostumes da religião cristã, às leituras e conversaçõesreligiosas, através dos quais a alma aos poucos se adapta aoque antes lhe era antinatural.

Após conhecer um pouco do pensador, assombra-nos aindamais a personalidade do espírito comunicante. Quão difícilseria copiar-lhe o estilo, em caso de fraude. Que maestriaseria necessária, a ponto de aumentar a dignidade docharlatão, ao invés de a diminuir. Se uma das médiuns ou opróprio Kardec o plagiou, deveria este ser elevado à condiçãode filósofo e santo. Contudo, como a análise da autenticidadedestes ditados não nos interessa aqui, passemosimediatamente ao seu conteúdo.

Mestre da introspecção, é a Pascal que cabe oaconselhamento sobre como garantir a proximidade e ocontato com os bons espíritos, no seguinte ditado presenteem O Livro dos Médiuns:

Quando quiserdes receber comunicações dos bons Espíritos,importa vos preparardes, para esse favor, pelo recolhimento,por sadias intenções e pelo desejo de fazer o bem, tendo emvista o progresso geral; porque lembrai-vos que o egoísmo éuma causa de atraso a todo o adiantamento. Lembrai-vos deque se Deus permite a alguns dentre vós receberem ainspiração de certos dos seus filhos que, pela sua conduta,souberam merecer a felicidade de compreenderem a suabondade infinita, é porque quer, pela vossa solicitação e emvista das vossas boas intenções, vos dar os meios de avançarem seu caminho; assim, pois, médiuns, aproveitai estafaculdade que Deus quer vos conceder. Tendes fé namansuetude do vosso Mestre; tende a caridade sempre emprática; não deixes jamais de exercer esta sublime virtude,assim como a tolerância. Que sempre vossas ações estejam

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em harmonia com a vossa consciência, é um meio certo decentuplicar vossa felicidade nessa vida passageira, e de vospreparar uma existência mil vezes mais doce ainda.

Que o médium entre vós que não sinta força para perseverarno ensinamento espírita se abstenha; porque nãoaproveitando a luz que o ilumina, será menos escusável doque um outro, e deverá expiar a sua cegueira. (Cap. XXXI:Dissertações Espíritas)

E em quais capítulos de O Evangelho Segundo oEspiritismoKardec destaca comunicações de Pascal?

Há uma comunicação no capítulo Amar o próximo como a simesmo, e exatamente sob o subtítulo egoísmo:

Se os homens se amassem com mútuo amor, mais bempraticada seria a caridade; mas, para isso, mister fora vosesforçásseis por largar essa couraça que vos cobre oscorações, afim de se tornarem eles mais sensíveis aossofrimentos alheios. A rigidez mata os bons sentimentos; oCristo jamais se escusava; não repelia aquele que o buscava,fosse quem fosse: socorria assim a mulher adúltera, como ocriminoso; nunca temeu que a sua reputação sofresse porisso. Quando o tomareis por modelo de todas as vossasações? Se na Terra a caridade reinasse, o mau não imperarianela; fugiria envergonhado; ocultar-se-ia, visto que em toda aparte se acharia deslocado. O mal então desapareceria, ficaibem certos.

Começai vós por dar o exemplo; sede caridosos para comtodos indistintamente; esforçai-vos para não atentar nos quevos olham com desdém e deixai a Deus o encargo de fazertoda a justiça, a Deus que todos os dias separa, no seu reino,o joio do trigo.

O egoísmo é a negação da caridade. Ora, sem a caridade nãohaverá descanso para a sociedade. Digo mais: não haverá

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segurança. Com o egoísmo e o orgulho, que andam de mãosdadas, a vida será sempre uma carreira em que vencerá omais esperto, uma luta de interesses, em que se calcarão aospés as mais santas afeições, em que nem sequer os sagradoslaços da família merecerão respeito. (Cap. XI)

Este curto ditado revela inúmeros elementos deinteresse geral. O que primeiro desperta a atenção é a escolhade Pascal para um tema tão caro ao Cristianismo, o amor aopróximo. Além disso, a forma com que o assunto é abordadonão demonstra senão a mais pura intimidade. É compropriedade e segurança que o espírito comunicantetransmite a mensagem que, elaborada por outros, nãoguardaria a firmeza do conhecimento de causa. E o que sedepreende da exortação para tomar o Cristo como modelo detodas as ações? A de que o autor, salvo no caso de serhipócrita, já o faz. E isto já nos diz muita coisa sobre quem éo espírito que encarnou como Pascal.

Por fim, do ponto de vista filosófico, encontramos umainfinidade de conceitos mesclados. As doutrinas sociais sãoimplicitamente desacreditadas, pois a solução para a“segurança da sociedade” é a reforma do indivíduo. Odiagnóstico dos problemas sociais aponta para o orgulho e oegoísmo, não para questões econômicas, políticas ouinstitucionais. Além disso, uma análise cuidadosa da atituderecomendada revela a indiferença e a malícia, sob a alcunhado desdém, como desafio a ser superado. Isto se justifica, erealmente dota de sabedoria esta reflexão, porque o desânimoe o desgosto são os fatores de impedimento da tomada deconsciência transformadora, muito mais do que o combatedeclarado, que despertando nossa índole combativa, quasesempre nos serve de estímulo. Ao vermos nossos esforçosdesperdiçados pelo desdém, minam-se nossas forças maisíntimas, não temos por onde reagir ao indiferente ou ao

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debochado, e amargamos a frustração dos mais caros ideais,revestindo de espessa “couraça” o coração.

O homem de hoje conhece estes males mais do quequalquer de seus antecessores. O crime hoje não é maior,mas é mais numeroso, seja pelo aumento drástico dapopulação, seja porque os meios de informação nos notificamprontamente de todas as desgraças e abominações de que anossa mente tem forme. Esgotado pelas notícias dos malesinfindáveis, perde a esperança, toma por ínfimos e inúteistodos os esforços que constituem a saúde da alma, e perde-a.

Se ao menos pudesse acumular os bens do espírito aoinvés de correr atrás das mesquinharias terrenas... Sobreeste assunto prossegue o pensador em seu ditado sobre Averdadeira propriedade, no capítulo XVI, Não se pode servir aDeus e a Mamon:

O homem só possui em plena propriedade aquilo que lhe édado levar deste mundo. Do que encontra ao chegar e deixaao partir goza ele enquanto ali permanece. Forçado, porém,que é a abandonar tudo isso, não tem das suas riquezas aposse real, mas, simplesmente, o usufruto. Que é então o queele possui? Nada do que é de uso do corpo; tudo o que é deuso da alma: a inteligência, os conhecimentos, as qualidadesmorais. Isso o que ele traz e leva consigo, o que ninguém lhepoderá arrebatar, o que lhe será de muito mais utilidade nooutro mundo do que neste. Depende dele ser mais rico aopartir do que ao chegar, visto como, do que tiver adquiridoem bens, resultará a sua posição futura. Quando alguém vaia um país distante, constitui a sua bagagem de objetosutilizáveis nesse país; não se preocupa com os que ali lheseriam inúteis. Procedei do mesmo modo com relação a vidafutura; aprovisionai-vos de tudo o de que lá vos possaisservir.

(...)

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Os lugares aqui não se compram: conquistam-se por meio daprática do bem.

(...)

De linguagem simples, esta comunicação guarda nos detalhesuma enorme força. Pela sua clareza, pela forma como apela àinteligência, agrada ao senso de justiça, desvela em poucaspalavras o reino de Deus diante de nossos olhos, tem ela umvalor didático e evangelizador inestimável para ilustração dogênero humano. Do extenso segundo parágrafo retiramossomente esta frase que o sintetiza. É o espírito de Pascalevocando, como em vida, o despertamento da alma para asquestões que mais haviam de interessá-la: a de seu destino, ade sua verdadeira natureza e condição.

O ano de 1863 foi o mais frutífero em ditados de Pascal,embora a maioria deles só viria a despontar na RevistaEspírita de 1865. Aí vemos três textos volumosos, dos quaisos dois primeiros muito específicos para nossa análise. Já oterceiro artigo, sobre a verdade, é inteiramente filosófico:

A verdade, meu amigo, é uma dessas abstrações para asquais tende o espírito humano incessantemente, sem jamaispoder atingi-la. É preciso que ele tenda para ela, é uma dascondições do progresso, mas sua natureza imperfeita, e sópor isso que é imperfeita, não poderia alcança-la. Seguindo adireção que segue a verdade em sua marcha ascendente, oespírito humano está na via providencial, mas não lhe é dadover o seu termo.

Compreender-me-ás melhor quando souberes que a verdadeé, como o tempo, dividida em duas partes, pelo momentoinapreciável que se chama o presente, a saber: o passado e ofuturo. Assim também há duas verdades: a verdade relativa ea verdade absoluta. A verdade relativa é o que é; a verdade

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absoluta é o que deveria ser. Ora, como o que deveria sersobe por degraus até a perfeição absoluta, que é Deus, segue-se que, para os seres criados e seguindo a rota ascensionaldo progresso, só há verdades relativas. Mas porque umaverdade relativa não é imutável, não é menos sagrada para oser criado.

Vossas leis, vossos costumes, vossas instituições sãoessencialmente perfectíveis e, por isso mesmo, imperfeitas;mas suas imperfeições não vos libertam do respeito que lhesdeveis. Não é permitido adiantar-se ao seu tempo e fazer leisfora das leis sociais. A humanidade é um ser coletivo quedeve marchar, senão em seu conjunto, ao menos por grupos,para o progresso do futuro.

(...)

Porque o Espiritismo foi revelado entre vós, não creais numcataclismo das instituições sociais; até esse dia ele terárealizado uma obra subterrânea e inconsciente para aquelesque eram seus instrumentos. Hoje que ele aflora ao solo echega à luz, a marcha do progresso, nem por isso, deve ser deuma lenta regularidade. Desconfiai dos espíritos impacientes,que vos impelem para as vias perigosas do desconhecido.

(...)

Lembrai-vos disto: O Espírito humano se move e se agita soba influência de três causas: a reflexão, a inspiração e arevelação. A reflexão é a riqueza de vossas lembranças, queagitais voluntariamente. Nela o homem encontra o que lhe érigorosamente útil para satisfazer as necessidades de umaposição estacionária. A inspiração é a influência dos Espíritosextra-terrenos, que se mistura mais ou menos às vossaspróprias reflexões, para vos impelir ao progresso, é aingerência do melhor na insuficiência da passagem; é umaforça nova, que se junta a uma força adquirida, para voslevar mais longe que o presente, é a prova irrecusável de umacausa oculta que vos impele para a frente, e sem a qual

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ficaríeis estacionários; porque é regra física e moral que oefeito não poderia ser maior que sua causa (...) A revelação éa mais elevada das forças que agitam o espírito humano,porque vem de Deus e só se manifesta por sua vontadeexpressa; ela é rara, por vezes mesmo inapreciável, algumasvezes evidente para o que a experimenta a ponto de sentir-seinvoluntariamente tomado de santo respeito. Repito, ela érara e ordinariamente dada como uma recompensa à fésincera, ao coração devotado.

(...)

Eis, meu amigo, tudo quanto te posso dizer sobre a verdade.Humilha-te ante o grande Ser, por quem tudo vive e se movena infinidade de mundos, que seu poder rege; pensa que senele se acha toda a sabedoria, toda a justiça e todo o poder,nele também se acha toda a verdade.

Esta impactante comunicação traz todos os caracteresda autenticidade. É um trabalho filosófico e religioso a um sótempo; retira da razão toda a sua força de decidir quanto aoque seja a verdade absoluta, mas respeita e valoriza os seusméritos em face das verdades relativas; é trágica, masimpregnada de um perfume de esperança evangélica; reduzas forças humanas, afirmando que a reflexão não proporcionao avanço, mas não deixa de incutir a ideia deresponsabilidade na atração e no cultivo da inspiração e darevelação, que apesar de serem, nas suas palavras, a forçaexterior, só se manifesta na presença do mérito da fé, dapureza da alma e na elevação do pensamento. Trata-se de umtexto pascalino nos mínimos detalhes.

Há outras mensagens ao longo da Revista Espírita, bemcomo outros textos de Pascal em vida. A quem interessar elesservem maravilhosamente ao propósito de educar ainteligência e enaltecer os sentimentos. Esperamos ter

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contribuído o suficiente para despertar o interesse por estasleituras.

Bibliografia:

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores; SãoPaulo: Nova Cultural, 1999.

________________________________________

[1] Blaise PASCAL. Pensamentos. Pg. 118.

[2] Os argumentos da aposta são bem mais ricos e complexos,tomando um capítulo inteiro dos Pensamentos.

Pascal e Kardec I

Blaise Pascal, o orgulho da raça humana, só não brilhoumais alto no desfile da cultura porque sua morte precoce,

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devido a uma doença que também o debilitou, e o seu zelocristão em apagar a própria personalidade impediram que asmultidões, ávidas de acontecimentos impressionantes, não sepermitiu guardar as marcas de seu gênio sutil.

Entre os primeiros franceses, Pascal é também um nome quemarca a distinção eterna desta nação no cortejo dos povos. Édestes homens que nos dão a impressão de terem contribuídomais do que povos inteiros, só não sendo isto verdadeiroporque os padecimentos e trabalhos dos simples angariamaos poucos o mérito da regeneração pela expiação daspaixões.

Gênio e santo no sentido mais profundo dos termos; criançaprodígio como nenhuma outra, deduziu sozinho e semqualquer instrução os princípios de Euclides em tenra idade.Adolescente, escrevia tratados científicos de impactopermanente sobre o conhecimento. Inventou aos dezenoveanos a máquina de calcular, primeiro computador eficienteda humanidade. Repetiu os experimentos de Torriceli e osaperfeiçoou, destacando-se no estudo do vácuo, e, graças aesta última contribuição, inseriu-se na ponta dos debatessobre a natureza da matéria e dos átomos. Como matemáticoestá ao lado de Descartes e Laplace, tendo desenvolvido ocálculo de probabilidade, para o jogo de dados, e criando asbases do cálculo infinitesimal, de Leibniz e Newton, atravésde seu estudo sobre a exponenciação. Como filósofo, foi umdos pais do Iluminismo na contramão do movimentoracionalista, embora mestre dos métodos empregados peloRacionalismo. Estimulou o iluminismo da religião, os estudospsicológicos e morais, e desenvolveu a imortal aposta que levao seu nome. Como homem religioso conseguiu o tremendofeito de destacar-se ainda mais. É um dos maiores defensoresda fé que a humanidade já viu. Entre as primeirasinteligências do mundo, soube esquivar-se da vaidadeintelectual, considerando-se, inclusive, muito pobre eapagado; e tendo vivido sem pecado ou qualquer falha moraldurante toda a sua vida, apontou ao mundo somente seus

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defeitos e fraquezas, deixando como único conselho o métodoque usava para desvelar a parte corrompida da própria alma.Não há dúvida de que, numa pátria que se destaca pelos seussantos, ombreia com os maiores nomes da religião.

Pascal. Olhar lúcido e sereno.

Como qualquer outro homem, no entanto, Pascal cometeuerros, e, embora todos fossem desculpáveis pelo contexto eépoca em que vivia, as pessoas mesquinhas sempreencontram alegria na descoberta dos pontos falhos, que logoampliam na esperança de rebaixarem as mais dignas figuras,evitando com esta técnica o confronto com a virtude que asconstrangeria.

Devido ao clima fascinado do Racionalismo,especialmente febril na França de Descartes, nosso autorbuscou refugio numa espécie de conservadorismo fideístadaquele período, o Jansenismo. Graças a esta influência, eletornou-se defensor ferrenho dos dogmas e rituais da religiãocatólica, em consciente contradição com a razão, na qual tevereduzidas a confiança.

Incapaz de encontrar o meio termo entre o exagero doRacionalismo, preferiu escorar-se unicamente na fé; e apesarde ter contribuído com a domesticação das pretensõesintelectuais humanas, se excedeu ao afirmar ser preferível aadoção incondicional da religião revelada.

Mais tarde, com a intensificação do confronto entre fé erazão, desenvolveram-se respostas mais completas esatisfatórias, onde ambas as partes da querela puderam sernovamente entendidas como elementos de um mesmo todoharmônico. Mas seria demais cobrar também isto do pobreBlaise.

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Pascal sozinho deveria garantir para a França a posição deliderança na cultura mundial; se ao menos as pessoas oconhecessem. O leitor não espere que este artigo pobrementeescrito lhe faça jus, e nem mesmo sirva como boa introduçãoao seu pensamento. O que se pode fazer sem um estudoespecializado desta figura fascinante é caminhar em suasombra, e talvez com isso possamos guardar vaga de suagrandeza.

Sua obra principal são os Pensamentos, uma sequênciade aforismos conectados pela temática, mas fragmentadospela falta de estrutura. Pascal morreu antes de completar oque deveria ser a sua segunda maior obra, ou talvez atémesmo a primeira, a Apologia, que teria o objetivo de fazeruma defesa da religião cristã e sua excelência. Mas osPensamentos, ainda que dividindo espaço com umainfinidade de críticas sociais, psicológicas e consideraçõesfilosóficas e literárias, já cumpre muito bem a função dedefender filosoficamente o Cristianismo.

Sua tese mais primária é a da divisão do espírito em duasexcelências, o espírito de geômetra e o de finura. O primeirocorresponde a razão, enquanto o segundo ao sentimento. Masos medíocres e os homens falsos não possuem nenhum dosdois, e raciocinam geralmente errado, enquanto os quepossuem uma destas virtudes geralmente têm dificuldade empensar da outra forma. Aos dotados de fineza, os argumentosde razão parecem estéreis e incapazes de produzir, em seusresultados, verdadeira satisfação. Aos dotados de razão, osargumentos da intuição e do sentimento parecem loucos eobscuros, pois são incapazes de dissecá-los e identificar comclareza suas origens.

O sentimento vê as coisas de um só golpe, precisa navegarentre as nevoas com segurança. A razão enxerga às claras, esó apreende o objeto divisado à distância e pacientementeanalisado. Ambos se afastam e se desgostam da atividade quenão lhes é típica, como procedem os medíocres em relação

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aos dois. É que, como em tudo, aprecia-se somente aquiloque se sabe e faz. Dito de forma direta pelo próprio autor:

Os Geômetras que são somente geômetras possuem o espíritoreto, desde, porém, que lhes sejam bem explicadas todas ascoisas por definições e princípios; de outro modo, tornam-sefalsos e insuportáveis, pois são retos apenas em relação aosprincípios bem esclarecidos.

E os sutis, que são simplesmente sutis, não são capazes dapaciência de descer aos primeiros princípios das coisasespeculativas e da imaginação, que nunca viram no mundo eque estão completamente em desuso.[1]

Naturalmente o ideal seria desenvolver ambas asvirtudes, e somente com ambas se pode atingir uma vidamoral e religiosa verdadeira. Contudo, já é muita coisapossuir-se uma propensão para uma única virtude, o quedenota enorme progresso realizado, e ainda que dotadoapenas de razão ou de sentimento, o homem pode se tornarum homem de bem, por noção do dever ou pela compaixão.

Enquanto não possui as duas virtudes, ou nenhuma, oespírito deve cuidar de educar-se, o que se realizapreferencialmente pela conversa. A conversa é o pontoprofundo do contato com outros humanos, e é por ela que seatingem as virtudes ou vícios de outrem com maior precisão.Por isso as conversações com cafajestes e patifes écorruptora, enquanto a presença dos nobres e bons cidadãosé sempre edificante. Que verdade mais simples e completa. Equão evidente não é a ligação estreita entre a atualdegeneração do caráter e a vulgaridade do vocabulário, nasmúsicas e nas conversações, o estímulo incessante pelostemas revoltantes, pelos crimes hediondos, pelos escândalos,pelas torpezas dos artistas e pessoas públicas, que nosprovocam uma excitação patológica caracterizada pelasconversas raivosas, pelos comentários vingativos, pela

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vontade de sobressair na conversa com um tema maispicante, um crime mais bárbaro...

A formulação exata de Pascal é:

Do mesmo modo como se corrompe o espírito, corrompem-seo sentimento. O espírito e o sentimento são formados pelasconversas. O espírito e o sentimento corrompem-se pelasconversas.

Dessa maneira, boas ou más conversas formam-no ou ocorrompem. Escolher bem, para formá-lo ou corrompe-lo é omais importante de tudo; e somos incapazes dessa escolha sejá não o formamos, sem o corromper. Isso compõe umcírculo, e são bem-aventurados aqueles que dele escapam.[2]

Mas após esta explicação técnica ele desfia inúmerosexemplos valiosos. Quem já não esteve, em nossos tempos,envolvido num debate sobre pedófilos, assassinos, terroristas,traficantes, etc; e não disse ou ouviu: “– Se fosse comigo eumatava.” Ou ainda “– Tínhamos de ter pena de morte.” Aemoção não teria se convertido em rancor se não fosse pelaconversação inapropriada, pela forma deseducada como éconduzida. E é pelo mesmo motivo que tão difíceis e tãoenfadonhos nos parecem os textos ou comentáriosapresentados na norma culta da língua, com desenvolvimentocomplexo ou exigências de vocabulário. Joanna de Ângelis éum dos alvos preferidos deste tipo de crítica, e isso dentro deum ambiente onde a leitura e a disciplina do pensamento sãocontados entre as virtudes maiores.

No fio da navalha entre a disciplina da linguagem (que éindiretamente a do pensamento e da emoção) e a moralidade,está a modéstia. Esta última é o termômetro da moralizaçãoda fala. “Quereis que falem bem de vós? Não o faleis vósmesmos.”[3] Ou no sentido ainda mais preciso do Evangelho,a boca fala do que está cheio o coração.

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Maledicência e xingamento são vícios tão arraigadosque praguejar contra Deus e a “má sorte” deve estar até emsegundo lugar. E se isso fosse tudo, não estaríamos tão mal.Não, temos ainda de elogiar a nós mesmos, não somente porum trabalho bem feito, mas nossa inteligência, nossa virtude,nossa bondade, ainda quando ninguém o faça. “Aos homensnão se ensina a ser homens de bem, e tudo o mais se lhesensina; e de nada se gabam mais que de ser homens de bem.Só se jactam de saber o que não aprenderam.”[4]

Poucas coisas, segundo Pascal, nos são mais aversivas.O ridículo dos homens não é apresentar inúmeros defeitos,mas sua pretensão, sua arrogância, sua empáfia emimaginar-se excelente onde é mais carente. “Como explicarque um coxo não nos irrite e um espírito coxo nos aborreça?É que o coxo reconhece que andamos direito, e um espíritocoxo afirma que nós é que mancamos; se assim não fosse,teríamos piedade e não raiva.”[5]

Há um fio sutilíssimo entre os males que praticamoscom consciência e os em que somos dirigidos peloinconsciente, e poucos traçaram esta linha com maiormaestria do que Blaise Pascal. Primeiramente, pode-se dizerque o espírito é mais consciente quanto mais voluntária sejaa ação, e inconsciente quando a ação for involuntária, frutode hábito ou instinto. A vontade é, assim, elementoconstitutivo da consciência, e o exercício do poder da vontadeaumenta ao mesmo tempo a consciência.

Há diferença universal e essencial entre as ações da vontadee todas as outras.

A vontade é um dos órgãos principais da crença, não porquea forme, mas porque as coisas são verdadeiras ou falsas deacordo com o ângulo pelo qual as vemos. A vontade, que sesatisfaz mais em um do que em outro, afasta o espírito daconsideração das qualidades que não deseja enxergar; desorte que o espírito, marchando de comum acordo com a

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vontade, detém-se a olhar do ângulo que esta aprecia. Julga-se desse modo pelo que se vê.[6]

Nada é mais difícil do que educar a vontade; aí está oproblema. Para melhor compreender o dilema, devemosanalisar a compulsão automática da vontade, a inclinação deconservação e bem-estar de si, o amor-próprio. E aqui vaitodo um tratado:

A natureza do amor-próprio e desse eu humano é não amarsenão a si e não considerar senão a si. A que pode conduzir?Será incapaz de impedir que o objeto do amor apresente-serepleto de defeitos e misérias: deseja ser grande e se julgapequeno; quer ser feliz e se acredita miserável; pretende serperfeito e acha-se cheio de imperfeições; quer ser objeto deamor e da estima dos homens e nota que seus defeitos nãomerecem senão repulsa e desprezo. Esse embaraço produznele a mais injusta e criminosa paixão que se possa imaginar;porque cria um ódio mortal contra essa verdade que orepreende e o convence de seus defeitos. Seu desejo seriadestruir essa verdade; não podendo destruí-la em si mesmo,a elimina quanto pode em seu conhecimento e no dos outros;isto é, coloca todo o seu zelo em encobrir os próprios defeitosa si mesmo e aos demais, e não suporta que lhe façam vê-los,nem que os vejam.

Sem dúvida, é um mal possuir tão numerosos defeitos; mas éum mal ainda maior tê-los todos e não desejar reconhece-los,porque então se lhes acrescenta também uma ilusãovoluntária. Não queremos que os outros nos enganem; nãojulgamos justo que pretendam ser estimados por nós mais doque merecem; não é, assim, igualmente justo que osiludamos e queiramos que nos estimem mais do quemerecemos.

Dessa maneira, quando os outros apenas vêem em nósimperfeições e vícios, os quais na verdade temos, é evidente

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que não nos provocam danos, uma vez que não são eles oscausadores dessas imperfeições, e que nos fazem um bem,porque nos auxiliam a nos livrar do mal que é a ignorânciadas imperfeições. Não devemos nos zangar porque eles asconhecem e nos desprezam, pois é justo que nos conheçampor aquilo que somos e que nos desprezem se somosdesprezíveis. Esses seriam os sentimentos naturais de umcoração cheio de retidão e justiça.

(...)

Há diferentes graus nessa repulsa à verdade; é possível dizer,porém, que até certo ponto ela existe em todos, porque éinseparável do amor-próprio. Assim, essa falsa delicadeza éque obriga aqueles que têm necessidade de repreender osdemais a optar por tantos rodeios a fim de não os magoar.Precisam amenizar nossos defeitos, fingir que os desculpam,mesclar elogias e testemunhos de afeição, de estima. Mesmoassim, tal remédio não deixa de ser amargo ao amor-próprio.Tomamos dele o menos possível, e sempre com aversão, emuitas vezes com um secreto despeito contra os que nosmostram a ele. Por isso ocorre que, quando alguém seinteressa em ser amado por nós, foge de prestar-nos umserviço que, sabe, nos é desagradável; trata-nos comoqueremos ser tratados: odiamos a verdade, a verdade nos éocultada; desejamos adulação, a temos; gostamos de serenganados, engana-nos.[7]

E além de nos cercarmos de amigos lisonjeiros, ao invés dossinceros, que detestamos como inimigos, buscamosavidamente pelos vícios nos grandes, para desculpá-los emnós mesmos; mesmo quando não existe vício algum.

Jesus comia carne, dizem uns; bebia vinho, os outros. Muitonatural em quem tem de escolher entre uma refeição comcarne ou o pão puro todos os dias. Mas hoje chega ao infinitoa variedade de alimentos naturais ou sintéticos, locais ou

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importados, quase todos mais baratos do que a carne quecusta a vida de um ser indefeso.

“– O próprio Cristo molhava o pão no vinho!” É uma verdade,e disto temos relato em duas ou três passagens dosEvangelhos. Mas espere; que nos garante que estas nãoforam as únicas ocasiões nos três anos de ministério? E qualé a passagem que relaciona este ocasional consumo àembriaguez, ao entorpecimento do juízo, que é quase o únicoobjetivo dos que bebem por esporte? Nenhuma. Ainda assim,o desavergonhado que rola pela sarjeta identifica nos santosamigos de copo. Eis a natureza humana. A madame jamais seconvence de que uma nobre ação não seja secretamenteimpulsionada por algum interesse fútil, por umaoportunidade de aparecer. O político em tudo vê a mentira e amalícia; nenhuma ação lhe parece virtuosa, sobretudo seempreendida por partidários dos grupos alheios. Ovagabundo jura para si que todos os trabalhadores sãoprofundos infelizes; hipócritas que se gabam da escravidãovoluntária de se desgastarem em atividades outras que adiversão e o ócio. E assim, ao final, estão todos satisfeitos,pois mentem a contento para si próprios, e acreditam-se, aoinvés de viciados, em perfeita consonância com o restante dahumanidade.

Decorre daí que o jogo e a conversa das mulheres, as guerras,os altos empregos sejam tão disputados. Não que existafelicidade verdadeira nisso, nem que se imagine que a realbeatitude constitua-se em possuir o dinheiro que se podeganhar no jogo, ou na lebre que se persegue: nada disso nosinteressaria se nos fosse oferecido. Não é essa vida indolentee tranquila que nos proporciona tempo para refletir sobrenossa infeliz condição, que buscamos; como não são osperigos da guerra, nem os aborrecimentos dos empregos; é oruído, que nos afasta da reflexão acerca da nossa condição enos diverte.

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Por isso os homens amam tanto o ruído e a agitação; por issoé a prisão um suplício tão horrível; por isso o prazer dasolidão transforma-se em algo incompreensível. E por isso,finalmente, ser o maior objeto de felicidade da condição dosreis essa preocupação constante dos outros em diverti-los eem proporcionar-lhes todo o tipo de prazeres.[8]

(...)

Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seuúnico filho e sujeito ao tormento de tão grande dor, por quenão está triste neste instante, e o vemos tão desprovido detais pensamentos dolorosos e inquietantes? Não há por queestranhar: acabam de entregar-lhe uma bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar umponto. Como pretendeis que medite sobre seus tormentosquando tão nobre assunto o ocupa? Trata-se de uma ação,com efeito, digna de encher sua grande alma e de expulsartodos os demais pensamentos de seu espírito. 69

Chegamos, sem o percebermos, do autoengano à diversão.Talvez porque esta passagem seja realmente imperceptível,mas, reconhece Pascal, a diversão não precisa ser evitadasempre. Consciente de que ela é um paliativo para seusproblemas, o homem deve moderar o seu emprego, mas,enquanto é homem e não anjo, a ele é permitido entregar-seocasionalmente à diversão quando seus problemas nãopossam ser resolvidos, ou quando suas dores não possam sercompreendidas pela reflexão e pela piedade.

Outra forma mais sutil e prejudicial de autoengano é avaidade, esta sim desprovida de qualquer aspecto positivo.

Não nos satisfazemos com a vida que temos em nós e nonosso próprio ser: desejamos viver na ideia dos outros umavida imaginária, e, para isso, esforçamo-nos por fingir.Trabalhamos incansavelmente para embelezar e conservarnosso ser imaginário e negligenciamos o verdadeiro. E se

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temos tranquilidade, ou generosidade, ou fidelidade,apressamos em fazê-lo saber a todos, a fim de relacionarestas virtudes a esse nosso outro ser; e de bom grado asdestacaríamos de nós para uni-las a ele; e seríamosprazerosamente covardes para adquirir a reputação doscorajosos.[9]

E finalmente atingimos a conclusão essencial do iníciodos Pensamentos, a de que a vontade tem em seu patrimônio,pelo poder de ceder ou impor sua própria determinação, omóvel central da vida moral.

Não é vergonhoso para o homem sucumbir à dor e é-lhevergonhoso sucumbir ao prazer. E isso não decorre do fato devir-nos a dor de outra parte, enquanto buscamos o prazer,pois podemos procurar a dor e sucumbir a ela sem essabaixeza. De onde vem, então, que seja glorioso para a razãosucumbir sob o esforço da dor e vergonhoso sucumbir peloesforço do prazer? É porque não é a dor que nos tenta e atrai;nós mesmos é que a buscamos por vontade própria edesejamos que nos domine; de sorte que somos senhores dacoisa; nisso é o homem que sucumbe ante si próprio (ohomem animal sucumbe ante a imposição do espiritual); nooutro caso, é ante o prazer que o homem sucumbe. Ora, só odomínio e o império dão a glória, e a servidão dá avergonha.[10] Obs: O comentário entre parênteses é nosso.

Nunca antes o estoicismo fora defendido com tamanhaclareza, com tão inescapáveis consequências lógicas. Àsalmas que ainda não haviam sido convertidas pelo perfumede nobreza do sacrifício, foi agora ofertada a prova ética dasuperioridade da abnegação no patrimônio da vontade. Muitotambém se pode aprender com Espinosa e Kant a esterespeito.

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Observe-se, contudo, que Pascal não demoniza o prazer, nãoo proíbe. O prazer possui também o seu mérito na economiada saúde psíquica. Mas de quanto prazer precisa o homem?O que ele está disposto a condenar em troca do prazer? Aqual dever, qual compromisso está pronto a abdicar? Nistoestá o aspecto abominável do prazer, pois na encruzilhadaentre o certo e o errado, entre o dever e o escândalo, ele cede,por fraqueza, ao caminho da queda, desde que ao final destese encontre um pequeno prazer.

A alma se inclina, por sua natureza animal, ao prazer, quelhe está ferreamente associado como condição desobrevivência da vida biológica. A comida, o sexo, o descanso,o domínio sobre outros, e inúmeros outros elementos lhe são,enquanto animal, necessários, e, por isso, prazerosos. Mas ohomem já não é integralmente animal. Ele está lapidado pelasociedade, pela religião, pela ciência, já começou a divisarpela inteligência outros fins e outros propósitos mais nobres,mas que quase invariavelmente contrariam a disposição dacarne. A disciplina exigida pelo estudo contraria o instinto deconforto e divertimento, a dignidade diante da instituiçãomoral, não a social, do casamento o compunge a respeitar oregime monogâmico, os obrigações profissionais, das quaissempre depende o bem-estar de outros, nos convidam aosacrifício do próprio descanso, da fortuna, da fama... Mas aisto nada nos inclina. Não há necessidade biológica associadaao dever, e por isso ele não nos atrai naturalmente. Todo oseu apelo é espiritual, ou seja, intelectual, consciente. Se noshabituamos a ceder ao prazer quando nos cabia vencer a suainclinação em favor da consciência, permanecemos nasnévoas da animalidade, do instinto, da escravidão aosimpulsos que não cessam e não possuem qualquerorientação.

Só assim se compreende e avalia com justiça certasproposições de Pascal, ou de outros moralistas, que de outraforma pareceriam dogmáticas. Estas mesmas sentençasparecem, ao contrário, tão suavemente justas e equilibradas

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à luz da doutrina como um todo, que não se pode despertarqualquer animosidade contra as suas elevadas exigências.Portanto:

Se o homem fosse feliz, ele o seria tanto mais quanto menosse divertisse, como os santos e Deus. – Sim; mas não é serfeliz ver-se confortado pelo divertimento? – Não, porque elevem de longe e de fora, e assim é dependente e, portanto,sujeito a sofrer a perturbação de mil acidentes, que tornamas aflições inevitáveis.[11]

Se não fosse pelo divertimento nós perceberíamos umconstante incômodo, e este nos levaria ao esforço árduo docrescimento. Mas como encontramos a cada instante umanova distração, um novo prazer, conseguimos caminharinsensivelmente para a morte. As agruras da vida, enviadaspor Deus para nos despertar, quase não surtem efeito. Oinstante de incômodo, especialmente o incômodo com nósmesmos, desaparece com a excitação que corremos para apróxima distração (nada melhor do que filmes, jogos emúsica...) e finalmente chegamos à morte adormecidos, comodesejamos, apesar de pequenos desafios que ameaçaramnosso sono.

Por tudo isso, a razão leva o homem mais e mais para umestilo de vida religioso, o que será o objeto de nosso próximoartigo sobre Pascal.

(continua em Pascal e Kardec II)

Bibliografia:

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PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores; SãoPaulo: Nova Cultural, 1999.

Rousseau e Kardec

Enfim chegamos a um dos pontos que era o objetivodeste espaço desde a sua criação. A partir daqui veremos aolongo de alguns meses coletâneas de biografias e ideias dealguns dos filósofos que participaram da Codificação doEspiritismo junto a Kardec. Dentre os inúmeros espíritos quese destacaram na liderança do movimento de revelação, ossantos e pensadores ocupam posição privilegiada.Entenderemos um pouco do trabalho de alguns dosrepresentantes da segunda classe, de modo que a suaatuação na falange do Consolador se torne não apenas maisclara, como justificada a sua presença.

Começamos por um personagem controverso, JeanJacques Rousseau, que em aspectos morais e psicológicosnão parece figurar entre a camada superior das almasesclarecidas. Não obstante, seu impacto sobre o mundo ocoloca no rol limitado dos homens que pelo pensamentomudaram os rumos da civilização. E não se pode negar quemuitos dos conflitos experimentados pelo escritor estãodiretamente associados à sua condição de inspirado esensitivo, como se defere inclusive de seus escritosbiográficos.

Rousseau foi excepcional desde a infância. Tendo afelicidade de nascer na região de Genebra, um dos rarosbastiões onde a liberdade e o progresso não encontravam osentraves da Igreja ou do próprio Estado no século XVIII, omenino revelou-se desde cedo amante das letras, com notáveltendência para o gênero de fantasia, típica preferência

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nutrida pelas almas cujo pensamento certamente estáhabituado a outros ambientes mais amplos que os da Terra.

De índole sensível e impetuosa, experimentou quasetudo o que era dado ao homem de seu tempo; mendicância,aventuras amorosas, patronagem por parte de autoridades,perseguição e exílio, incompreensão e loucura.

Foi sempre um inspirado, tomado quase queobsessivamente pelas ideias de justiça, sinceridade e dafelicidade possível na Terra. Todos os seus escritos inflamamo espírito, como que a exigir uma atitude imediata por partedo leitor.

Negativamente pesa-lhe a defesa da vontade da maioria,teoria que descambou nas absurdas ideologias do comunismoe do fascismo, com prejuízos humanos para todas asminorias e indivíduos não alinhados com a vontade dasmassas, muitos deles simplesmente por participarem desde oberço de uma classe discriminada. Esta discriminação dasaristocracias e dos ricos, enquanto não violenta por parte dopróprio autor, incentivou muitas atrocidades por parte dealmas sanguinárias que souberam se aproveitar dareivindicação por justiça. Acresce a isto o temperamentoinconstante que tanto lhe dificultou a vida prática, a paranoiae a indiferença para com os filhos. Por fim, a ideia de que ohomem é bom em seu estado primitivo, responsabilizando acivilização pela sua corrupção, é não apenas infundada comoperigosa, pois serviu para alienar gerações de pessoasinsatisfeitas com a sociedade, as quais passaram a buscaruma fuga dela ao invés de sua correção.

Contam entre seus méritos a inauguração na culturahumana do amor a natureza, que alimentou o romantismo eposteriormente a ecologia; o despertamento para anecessidade de transformação e combate a injustiça, que nemsempre se realizou de forma revolucionária e obscura, e aforma inovadora de fazer filosofia, que abriu caminho parauma inédita filosofia do sentimento e da intuição em plena

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era de racionalismo. Finalmente, suas teorias sobre aeducação, ao passo que simplórias, tiveram preciosacolaboração no desenvolvimento da pedagogia humanizadada atualidade.

A leitura de todas as obras do pensador é umanecessidade para os que se interessam por qualquer destestemas. Como nosso espaço não permitiria analisar emdetalhe o discurso sobre a desigualdade ou a biografia dogênio, limitamo-nos ao Emílio, sua obra mais completa etambém mais religiosa. Isto nos permitirá vislumbrar umpouco do que foi o homem, para que possamos compará-lo aoespírito comunicante do Livro dos Médiuns e da RevistaEspírita.

No aspecto moral, identificamos facilmente a índolesocrática, com equilíbrio entre epicurismo e estoicismo, euma relativa predominância do espiritualismo platônico. Emmeio a esta mediação, o que se observa no resultado final éuma teoria sóbria, simples e que soa muito forte aos ouvidosde todas as pessoas, independente de sua orientaçãoideológica. Os conceitos de moderação e prudência, daAntiguidade, parecem finalmente revividos como que trazidosà tona por uma alma daquela época gloriosa:

De onde vem a fraqueza do homem? Da desigualdade que seencontra entre sua força e seus desejos. São nossas aspaixões que nos tornam fracos, pois fora preciso, paracontentá-las, mais forças do que nos dá a natureza. Diminuípois os desejos; será como se aumentásseis as forças: quempode mais do que deseja, as tem, de resto; é certamente umser muito forte.[1]

Indo um pouco mais fundo, o pensador identifica no amorpróprio a origem primeira da vontade. É pelo divino instintode conservação e autoestima que o homem busca o prazer, opoder e mesmo a felicidade. Mas este mesmo instinto,

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virtuoso por natureza, pode corromper-se, hipertrofiar-se emegoísmo, e nisto está inteiramente certo nosso sábiogenebrino. A neutralidade natural se converte em malícia.Conforme um fragmento do Emílio:

A fonte das paixões, a origem e o princípio de todas as outras,a única que nasce com o homem e não o deixa nuncadurante sua vida, é o amor a si mesmo; paixão primitiva,inata, anterior a qualquer outra e da qual todas as outrasnão são, em certo sentido, senão modificações. Assim, sequisermos, todas são naturais. Mas essas modificações emsua maioria têm causas estranhas sem as quais nãoocorreriam nunca; e essas modificações, longe de nos seremvantajosas, nos são nocivas; mudam o primeiro objeto e vãocontra o seu princípio.[2]

A parte em que a psicologia de Rousseau desliza é quando eletenta propor uma solução para a corrupção humana.Responsabilizando exclusivamente a civilização, ao invés dopróprio homem, ele acredita que o combate aos víciosconsiste apenas em reformas sociais, exteriores ao problema.Afastados os vícios, em melhor ambiente, o homemautomaticamente manifesta todas as virtudes, que lhe sãonaturais. Não existe esforço ou mérito neste cálculo, e muitasdas utopias sociais que se seguiram estavam baseadas naexpectativa e crença nesta simples solução. Afastemos apropriedade privada, e tudo se conserta, depois afastemo-nosdas cidades, para as comunidades alternativas, e em todo olugar, a experiência o provou, continuam os crimes e osvícios.

Mas talvez esta seja apenas a nossa interpretação deRousseau. Aliás, a única unanimidade sobre ele é a de queseus textos se contradizem, são ambíguos e vagos, às vezesaté incompreensíveis.

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Novamente o que perdoa nosso revoltado filósofo é ofato de que ele vivia exatamente numa sociedade em que ainjustiça parecia triunfante, o poder desmedido e cruel, asociedade dividida em privilegiados e expoliados. Estaindignação fica evidente em certas passagens muitosemelhantes a algumas das que figuram noEvangelhosegundo o Espiritismo:

Os homens não são naturalmente nem reis, nem grandes,nem cortesãos, nem ricos; todos nascem nus e pobres, todossujeitos às misérias da vida, às tristezas, aos males, àsnecessidades, as dores de toda espécie.[3]

Mas logo a seguir, no mesmo capítulo, ele modera o discursoe defende a tolerância e a compaixão para com os maus,assemelhando-se muito mais ao discurso liberal do que aorevolucionário, mais ao Cristianismo do que ao socialismo:

São nossas paixões que nos irritam contra as dos outros; énosso interesse que nos faz odiar os maus; se não nosfizessem nenhum mal, teríamos por eles mais piedade queódio. O mal que nos fazem os maus leva-nos a esquecermos oque fazem a si mesmos. Perdoaríamos mais facilmente seusvícios, se pudéssemos conhecer quanto seu coração os pune.Sentimos a ofensa e não vemos o castigo; as vantagens sãoaparentes, o tormento interior... As paixões que partilhamosnos seduzem; as que chocam nossos interesses nos revoltam,e, por uma inconseqüência que nos vem delas, censuramosnos outros o que desejaríamos imitar.[4]

Como compreender semelhante teoria, que ao passoque nos desperta a sede de justiça, nos admoesta a não odiaro injusto? Como compreender um pensador político e moralque serve de inspiração ao liberalismo e ao socialismo, adoutrina da tolerância e a da justiça, quando todos ospensadores políticos os compreendem como realidades

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opostas e irreconciliáveis? A resposta, segundo nossa própriacompreensão, está em ser o nosso respeitável autor umacontradição para o mundo, escândalo para os doutos eprudentes, louco de pedra para a razão terrena. Suasabedoria é divina, sua teoria política é cristã, absurdidadepara todos os ideólogos. Solidariedade para com o pobre,compreensão para com o rico; sede de justiça, e comurgência, mas não por ódio, e sim por amor ao gênerohumano. Nem uma classe, nem outra, mas uma fraternidadehumana em que o rico, ao invés de eliminado e perseguido,conscientize-se de seus vícios e modere os seus abusos, emque o pobre, ao invés de invejoso e violento, se movimenterumo a justiça, ao invés de contra o injusto.

Se Rousseau cometeu inúmeros erros de conceito econtradições, ele deixa ao menos transparecer estasuperioridade da intenção, que só não se revela ao mais cegoe mais fanatizado leitor.

Esta perspectiva diferenciada tem tudo a ver com aepistemologia exótica de Rousseau. Mais do que cética, ela ésocrática, em um sentido que só foi ressuscitado graças aDescartes, Pascal, Fénelon e Voltaire, os mestres dasobriedade intelectual da Era Moderna, responsáveis por todaa luz de Paris. Assim diz Rousseau pela boca do vigário deSaboia:

Consultei os filósofos, folheei seus livros, examinei suasdiversas opiniões; achei-os todos orgulhosos, afirmativos,dogmáticos, mesmo em seu pretenso ceticismo, nadaignorando, nada provando, zombando uns dos outros; e esteponto comum a todos se me afigurou o único em que todostêm razão. Triunfantes quando atacam, carecem de vigorquando se defendem... Pequena parte de um grande todocujos limites nos escapam, e que seu autor entrega a nossasloucas disputas, somos bastante vãos para querermos decidiro que seja esse todo em si mesmo e o que somos em relação aele.[5]

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Esta decepção e desânimo com a razão não se refletemem irracionalismo, ou em cinismo, apesar de ambos estaremmuito próximos. O que de fato acontece é que o sentimento,para Rousseau, é forte o bastante para arrancar o homem daincerteza, e conduzi-lo por onde não pode o entendimento. Éassim que a continuação do argumento do vigário é maisesperançosa:

Sei somente que a verdade está nas coisas e não em meuespírito que as julga, e quanto menos ponho de mim nosjulgamentos mais certo estou de aproximar-me da verdade:assim, a regra de entregar-me ao sentimento mais do que àrazão é confirmada pela razão.[6]

Ao chegar propriamente a sua filosofia da religião,Rousseau associa sua sobriedade e ceticismo filosóficos àhumildade tipicamente cristã diante dos mistérios da criação.Numa linha agostiniana ele começa:

Percebo Deus por toda parte em suas obras; sinto-o em mim,vejo-o ao redor de mim; mas logo que quero contemplá-lo,logo que quero procurar onde se acha, o que é, qual suasubstância, ele me escapa e meu espírito perturbado nãopercebe mais nada.[7]

Não poderia ser um trecho das Confissões deAgostinho? Este tipo de meditação se tornou,afortunadamente, muito comum na França entre os séculosXVII e XIX, quando ela era para todos os efeitos a verdadeiraherdeira dos apóstolos.

Nosso Grand Finale não poderia ser outro que a defesa daliberdade:

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Nenhum ser material é ativo por si mesmo, e eu o sou...minha vontade é independente de meus sentidos; consinto ouresisto, sucumbo ou sou vencedor e sinto perfeitamente emmim mesmo quando faço o que quis fazer ou quando não façosenão ceder a minhas paixões. Tenho sempre o poder dequerer, não a força de executar... o sentimento da minhaliberdade só se apaga em mim quando me depravo e impeçoenfim a voz da alma de erguer-se contra a lei do corpo...Quando me perguntam qual é a causa que determina minhavontade, eu me pergunta qual é a causa que determina meujulgamento: porque é claro que essas duas causas não sãosenão uma; e se se compreende bem que o homem é ativo emseus julgamentos, que seu entendimento não é senão o poderde comparar e julgar, vê-se que seu orgulho é apenas umpoder semelhante ou derivado daquele; escolho o bom comojulgou o verdadeiro, se julga errado, escolhe o mal. Qual é acausa que determina a vontade? Sua faculdade inteligente,seu poder de julgar; a causa determinante está em simesmo.[8]

Esta apologia do juízo pode ter muito a ver com a educaçãoprotestante de Rousseau. Num curto comentário de suasconfissões ele expõe com sarcasmo a sua estranheza dianteda religião católica, a qual só conheceu após abandonar apátria em busca de aventura: “Naturalmente os protestantestendem a ser mais instruídos que os católicos. A doutrina dosprimeiros exige discussão, a dos segundos submissão.“

Em resumo, Rousseau parece ter englobado todas asquestões e atividades de sua época. Além de pensador políticodestacado, literato virtuoso, poeta, cientista natural comimenso impacto sobre os estudos botânicos, era um profundocristão, talvez não exemplar, mas envolvido com a própriatransformação a ponto de experimentar as fortes angústiasdo conflito interior que caracteriza todas as almas em buscade regeneração.

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Como espírito, parece ter participado secundariamenteda Codificação do Espiritismo. Seu papel é duplamente o deapresentar sua opinião, enquanto filósofo, e, com isso,reforçar a autoridade do Espiritismo através de seu “aval”,enquanto celebridade intelectual. A sua dissertação em OLivro dos Médiunscontém, além de referências tambémimportantes para a interpretação de sua obra, uma pequenaconfissão quanto a reencarnação:

Penso que o Espiritismo é um estudo todo filosófico dascausas secretas, dos movimentos interiores da alma, poucoou nada definidos até aqui. Explica, mais ainda do quedescobre, horizontes novos. A reencarnação e as provassofridas antes de chegar ao objetivo supremo não sãorevelações, mas uma confirmação importante. Estou tocadopelas verdades que este meio coloca às claras. Disse meiocom intenção, porque, ao meu pensar, o Espiritismo é umaalavanca que afasta as barreiras da cegueira. A preocupaçãopelas questões morais está inteiramente para ser criada;discute-se a política que examina os interesses gerais;discutem-se os interesses privados, apaixona-se pelo ataqueou a defesa das personalidades; os sistemas têm seuspartidários e seus detratores; mas as verdades morais, as quesão o pão da alma, o pão da vida, são deixadas na poeiraacumulada pelos séculos. Todos os aperfeiçoamentos sãoúteis aos olhos da multidão, salvo o da alma; sua educação,sua elevação são quimeras aptas pelo menos para ocuparemo ócio dos padres, dos poetas, das mulheres, seja na condiçãode moda, seja na condição de ensino.

Se o Espiritismo ressuscita o Espiritualismo, dará àsociedade o impulso que dá a uns a dignidade interior, aoutros a resignação, a todos a necessidade de se elevarem atéo Ser supremo esquecido e desconhecido pelas suas ingratascriaturas.[9] (Capítulo XXXI, Dissertações espíritas.)

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Aqui está Rousseau inteiro: sua religião empolgada eempolgante, livre de dogmas e interiorizada, a indignaçãocom o estado da humanidade, e uma evocação ao seu poderinato de renovação, e, finalmente, todos os esforços voltadospara a investigação das sutilezas do mecanismo moral, emseus aspectos psicológicos e metafísicos. O comentário sobrea reencarnação dá o que pensar. Teria ele nutrido crenças eintuições sobre ela, ou apenas fazia alusão à popularidade dotema em meio aos sábios em geral?

No ano de 1861 ele apresentou uma dissertaçãomediúnica sobre o estado da literatura no ano anterior,lastimando a degeneração da alta cultura na França, apesardos avanços na pintura e nas ciências. O filósofo consideraque este empobrecimento das obras filosóficas e literárias sedeve, sobretudo, ao despreparo dos jovens franceses.

É de lamentar que Rousseau não tenha se comunicadomais, especialmente no que se refere às suas teorias políticas.Isso poderia ter ajudado muito a esclarecer os espíritasquanto ao seu papel de cidadãos e atores políticos, mas,naturalmente, a proposta das comunicações feitas a Kardectinha objetivos específicos e já extensos demais.

Fica em nós o desejo de ver este espírito publicar,através da mediunidade ou encarnado, novos de seusbrilhantes tratados.

Bibliografia:

ROUSSEAU, Jean Jacques. Emílio, ou da Educação. SãoPaulo: Difel, 1979.

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Budismo: o cinismo compassivo.

Por bastante tempo adiamos a necessidade de incluir oBudismo em nosso estudo comparado das religiões esistemas filosóficos. Este atraso é de certa forma um ato derespeito em relação a uma tão grande e complexa tradição, oque não admite senão um estudo minimamente atencioso deseus textos clássicos e de sua historiografia. A parte final dostextos canônicos nos caiu em mãos recentemente, e aquiestamos.

Para começar a tratar do Budismo como um todo énecessário limitá-lo o mais rigorosamente possível à doutrinaoriginal de Siddharta Gautama, ou Buda Sakyamuni, vistoque os desmembramentos desta acabaram por se tornar maisvariados e contraditórios do que os de qualquer outra religiãoou filosofia, com possível exceção do platonismo.

Mesmo atendo-se aos fundamentos mais elementaresdo Budismo há que se lidar ainda com o problema de suaextensão. Afinal o mestre viveu e ensinou por muitasdécadas, e seus primeiros discípulos eram numerosos eletrados o bastante para nos garantir uma vasta herança já apartir do primeiro século após sua morte. Semelhantementeao Cristianismo, o Budismo dividiu-se quaseinstantaneamente em seitas e grupos que disputaramacirradamente a autoridade sobre a doutrina, de modo queheresia e ortodoxia se confundiram como em nenhuma outraescola. Em vista disto é possível dizer quase qualquer coisasobre o Budismo primitivo, sem que se possa expressarminimamente algo de seguro sobre o pensamento íntimo doiluminado.

O que se pode dizer com segurança, contudo, é que oBudismo é uma linha filosófica extremamente crítica,fundada nos Upanixades, e que pretendia contestar todos os

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elementos ritualísticos e dogmáticos da religião instituída. Ébem plausível crer que Buda era mais Sócrates do que Cristo,mais intelectual do que santo, e ao menos tão cínico quantocompassivo.

A imagem que posteriormente se criou, no entanto, é ade um Buda deus, figura angélica de adoração e santoprotetor para o qual se dirigem as orações da maioria dosfiéis. Relações que se estabeleceram em contato com oxamanismo primitivo do Tibet, da China e da Birmânia.

O famoso Budismo tibetano do Dalai Lama é talvez apior expressão da doutrina original do Budismo, ao menosem sentido teórico e doutrinário; e com ampla aplicação defórmulas mágicas, clericalismo e ortodoxia, representa tãobem a liberalidade do Budismo primitivo quanto a Igrejaromana faz juz à simplicidade dos apóstolos. Isto dizemossem olvido dos méritos e da verdadeira santidadeapresentada por membros isolados de seu corpo sacerdotal.

O Budismo é mais do que cético, é cínico. Ele nãoapenas põe em questão os valores e os elementos doconhecimento, senão anula completamente o seu papel naeconomia filosófica e religiosa.

Platão era cético; ele exigia provas sólidas paraqualquer espécie de afirmação e desprezava opiniões e ideiasparticulares. Buda provavelmente desprezaria a própria ideiade provas e argumentos, defendendo que Platão estava tãopróximo da verdade quanto qualquer um desprovido dosconhecimentos que ele propagava. Não obstante o Budismoconserva uma única verdade dogmática, derivada daobservação empírica. Esta verdade desdobrada em quatropartes consiste unicamente na existência radical einevitabilidade do sofrimento, e por isso mesmo as demaissoluções teóricas e religiosas lhe soam sempre pueris. Afinal,se o sofrimento persiste entre sábios e sacerdotes, seu sabernão pode valer tanto quanto eles pretendem.

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O ponto alto desta ausência de conhecimento é adoutrina da não-alma, ou não-mente, que muito se confunde,tanto lá quanto cá, com a aniquilação da individualidade. Aprimeira aparição da doutrina do anatman (não-alma) foi notratado Samiutta-Nikaya,[1]onde se afirma que tudo o quesofre é irreal, pois transitório, de modo que corpo, mente,consciência, sendo fontes de sofrimento, só podem ser irreais.Em absoluta semelhança à proposição junguiana sobre o egoe o self, o Budismo ataca a egoidade presente na consciência,na mente e no corpo como a fonte de toda a sombra. Ao dizerque o self é impessoal, o budismo não está a negar o espírito,senão a alma, no sentido da personalidade egóica que seentende como autosubsistente e bastante.

O ponto alto do tratado lida com o monge Yamaka, cujaa alegação herética foi „Assim como entendo a doutrina doabençoado, o monge que obteve a dissolução do corpo nãoexiste após a morte, e é aniquilado juntamente com tudo oque constituia seu sofrer.“ Tal alegação foi consideradaescandalosa, e um grupo de monges liderados pelo velhoSariputta. O sapiente monge iniciou sua exortaçãolembrando: „Não traduza com tuas palavras o abençoado, ohYamaka, pois o abençoado não deve nunca ser traduzido paraos nossos termos.“ E prosseguiu assim:

„De acordo Yamaka, com a doutrina original, toda aforma, seja ela passada, presente ou futura, subjetiva ou comexistência exterior, sutil ou grosseira, pérfida ou excelente,longínqua ou imediata, a visão correta segunda a altadoutrina é „isto não me pertence, isto não sou eu... Digaagora Yamaka, você considera a forma como sendo o santo?

Não, absolutamente, irmão.

Você considera, Yamaka, o santo restrito à formas?

Não, absolutamente, irmão.

Você considera o santo distinto de forma?

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Não, absolutamente, irmão.

Que então é o santo, Yamaka, se não é corpo, mente,sensação, consciência; seria por acaso a união destes osanto?

Não, absolutamente, irmão.

Considera então Yamaka, que tu falhas em estabelecer aexistência do santo na vida presente; é razoável dizer „Assimcomo entendo a doutrina do abençoado, o monge que obtevea dissolução do corpo não existe após a morte, e é aniquiladojuntamente com tudo o que constituia seu sofrer.“?

Irmão Sariputta, foi devido à minha ignorância que eu difundiesta louca heresia, mas agora que recebi a tua instrução eu aabandono, pois adquiri a verdadeira doutrina.

Mas e se ocorrer, irmão Yamaka, de te perguntarem o queocorre com o monge após a dissolução do corpo, o que dirás?

Eu responderei, irmão, da seguinte maneira: a forma eratransitória, e isto que era transitório era mau, e o mau cessoue desapareceu. Assim, sensação, percepção, predisposições econsciência eram transitórios, e o que é transitório é mau, eestes males desapareceram ou cessaram.“

A lógica é fina, mas não tão complexa a ponto depermitir uma interpretação literal. Está claro queverbalmente Yamaka continua professando aproximadamentea mesma doutrina, mas ela agora elevou-se e qualificou-se demodo extraordinário. As alegações budistas sobre a cessaçãonão permitem, portanto, a tradução „aniquilação“,especialmente se objetivam o self original, fonte desconhecidae inefável do ente transitório e concentrado, que desapareceucom a iluminação.

Este tipo de filosofia não apresenta dificuldades para opensamento ocidental. Místicos como Goethe associam o

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conhecimento ao elemento concentrado, sombrio e grosseiroque podemos discernir, isolar e compreender. Todos esteselementos, contudo, incluindo nós mesmos, são as partesvisíveis de um ser mais dinâmico que quer libertar-se daconcentração egoística material e expandir-se em um outroelemento livre, indeterminado, indiscernível e, portanto,incompreensível. Nossa mente, estando limitada, está fadadaa apenas perceber o limitado. Mas a mente liberta podevislumbrar o todo indeterminado e incognoscível, o qual, pornão ser compreendido, nomeamos através de uma linguagemnegativa, simbólica e obscura.

Esta noção trágica das filosofias negativas estáintimamente associada à temporalidade e ao estado definitude humana, ambos variações da perda ou restrição daliberdade. Como o yoga e outras vertentes da filosofiaindiana, o Budismo é libertarista, esperando não menos doque a liberdade sem restrição, e lamentando tudo o que aconstrange. Às vicissitudes do corpo e da mente, asflutuações ininterruptas dos acontecimentos e sensações, sãoimputadas as causas do sofrimento. O Budismo eleva tanto anoção trágica da temporalidade e da espacialidade queprecisa escapar para a esfera do “Nada” onde há possibilidadede serenidade real. Mas ao contrário do que possa parecer,esta libertação do movimento não é o fim do espírito, mas asua supremacia, já que a realidade sensória, que deve sereliminada, corresponde a um círculo vicioso e corrupto domovimento, o tumulto, a perturbação.

“O Buda ensinava o caminho e os meios demorrer para a condição humana, para a escravidão e osofrimento, a fim de renascer para a liberdade, a beatitude eo incondicionado do nirvana. Hesitava, porém, em falar desseincondicionado para não cair em contradição, pois ele haviaadmoestado os brâmanes e os ascetas justamente porquediscorriam muito sobre o inexprimível e pretendiam poderdefinir o Si... Tudo que se pode dizer do habitante do nirvana,é que ele não é deste mundo.”[2]

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O mais importante da percepção _ aliás, corretíssima _ deEliade sobre os ensinamentos diretos de Buda, é que elesjamais apontam para um ateísmo, como interpretam algumasde suas correntes tradicionais e, em geral, como é entendidono ocidente e no sul asiático. A evasiva de Buda em descrevero estado de liberação é uma proteção epistemológica que visaevitar a mistificação dos temas que ele reconhecia comoincompreensíveis. Qualquer descrição deste estado seria nãoapenas redutiva, como igualmente contraditória, visto que asdefinições matam a essência do indefinido, doincondicionado.

Supor, no entanto, que este “nada” epistemológicorepresente um Nada ontológico é um erro grave. Traduzindode maneira mais direta: O nirvana é um nada para oconhecimento, porque os conceitos, limitados, não ocomportam, mas não é um nada no sentido de se opor ao Ser,ao Real e a Verdade, e é lamentável que o budismo em geralseja associado a esta segunda orientação.

O monge vietnamita Thich Nhat Hanh, renomadopacifista do século XX, afirmava que o conhecimento budistasobre a realidade é inteiramente negativo, e que equivale àsconcepções da física moderna sobre as partículasfundamentais da matéria. Em última análise estas definiçõesapontam para a nossa ignorância e incapacidade de descrevera realidade, não para uma irrealidade[3].

O “Sutra do Diamante” (Prajna-Paramita) e a coletâneacanônica do Dhammapada, que formam a base dos ensinosbudistas primitivos, versam unicamente sobre este assunto, enão há uma única referência em que Buda aponte para umanão-realidade ou ausência absoluta, referindo antes sempreum desconhecido, um estado tão radicalmente distinto detoda a limitação espacial, temporal e conceitual que se tornaimpronunciável e se apresenta como um incognoscível.

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No fundo místico do budismo há um “grande coraçãocompassivo” para o qual os budistas dirigem suas orações. Éa este conceito e a esta experiência que se deve valorizarquando falamos que a verdade é Espírito, para todos os seresiluminados, não para o conceito de um Deus pessoal ou paraum teísmo em que Deus se apresenta como substânciadistinta da criação.

Se tudo o que o homem entende de Deus é o ídolo, o conceitoque ele mesmo cria e adora conforme o ponto de vista maismaterial, então a compreensão deste homem está fadada avoltar-se contra este deus antropomórfico, que estará semprenuma posição inferior ao próprio homem, visto que é suacriação.

Este indivíduo pode, inclusive, abandonar toda a concepçãoconceitual de Deus e voltar-se para o Deus “em ato”, que serevela na disciplina do monge, na instrução do sábio e naação caritativa do santo, mesmo que este aspecto muitoverdadeiro de Deus, por inabilidade filosófica de seusseguidores, seja nomeado como Universo, Humanidade ouNada.

Em “A Caminho da Luz” revela-se a natureza originaldo Budismo em sua verdadeira pureza, fundado na percepçãoda existência de um Deus tão grande e absoluto, queincompreensível. Esta percepção nunca foi alheia a inúmerospraticantes e correntes budistas, e inclusive já está em cursocomo que uma renascença do monismo budista, através detrabalhos como o de Masao Abe, que afirma a correlaçãoestreita entre o Zen Budismo e a mística alemã de Eckhart eJakob Böhme.

Para o mestre Abe esta mística mostra que Deus, em últimaanálise, é profundo mistério, um vazio ou nada para nossaconsciência, mas é deste nada aparente que brota tudo, eesta contradição mostra claramente que o nada aparente éalgo desconhecido, mas efetivo. Abe chega a afirmar que oBudismo é panenteísta, ou seja, enxerga tudo-em-Deus, a

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partir da consciência de que o abismo profundo é a fonte doser.

Diogo Feijó, o pai espiritual do Brasil

Um século depois dos EUA, o Brasil também veria surgir emseu solo uma figura de intenso magnetismo pessoal, distintapela excelência de suas virtudes e pelo brilho de suainteligência.

Como no caso de Benjamin Franklin e dos pais da pátria daAmérica do Norte, Diogo Feijó educou-se integralmente noseu país, mais especificamente no interior de São Paulo.Considerando-se que a capital deste estado provavelmentenão estava entre as três cidades mais importantes do Brasil,pode-se inferir que os estudos no interior do estado serealizaram em ambiente rural de acentuadas dificuldades.Não obstante, o padre obteve ilustração invulgar através dadedicação pessoal e do espírito autodidata, pré-requisito quepor muito tempo e lamentavelmente foi obrigatório para todosos letrados do Brasil.

Feijó foi, com todas as limitações de sua formação, umaluz na educação dos jovens. Primeiro a introduzir os estudosde filosofia com seriedade no país, tendo precária, mascorajosamente confrontado o currículo básico da Igrejacatólica com lições sobre Kant, o iluminismo e os ideaislibertários, sua influência e valor cultural vão muito além doapagado papel que os livros de história geralmente lheatribuem.

Os Cadernos de Filosofia, que presentementeanalisamos, contêm uma doutrina moral complata aos

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moldes da filosofia iluminista. Se não é original, ao menoscontribuiu para a inserir em língua portuguesa e territórionacional princípios distintos dos que se pregava nosseminários de então, e em todas as páginas o vigor e adesenvoltura com que a inteligência de Feijó apresentam otema deixam claro a excelência de sua própria meditação.

Em nossa economia moral íntima, conforme as leiturasdo padre-regente, duas propensões naturais teriam o papelde motores do automatismo do comportamento humano.Estas propensões seriam o amor de si, o que hoje quasesempre qualificamos como egoísmo, e a estima de si, uminstinto nobre e solidário, correspondendo à decêncianatural, não adquirida por educação ou esforço, que todo oindivíduo tem em si pelo simples fato de ser filho de Deus.

O amor de si ou amor próprio é a fonte básica de todos osmales, na medida em que pelo seu mau uso ou exagero é queo homem ultrapassa os interesses de seus semelhantes, econtraria a vontade de Deus. De essência positiva, porquenatural, o amor de si tem na sua forma espontânea e limitadaa nobre função de preservar o animal biológico que por assimdizer serve de hospedeiro para a alma. Garantindo areprodução da espécie, a saúde do corpo ou o direito apropriedade adquirida, o amor de si cumpre sua elevadafinalidade; o que deixa de ocorrer somente quando seextrapola a medida do necessário, provocando excessodanoso ao corpo (p.ex. sexual, alimentar, etc) ou invadindo oespaço em que também deve vigorar o amor próprio deoutrem, prejudicando este último na obtenção de seus finslegítimos.

A estima de si, em contrapartida, é a propensão natural dapersonalidade humana ao bem. Enquanto a primeira busca oprazer, medida da satisfação da vontade na preservação doeu, esta segunda propensão é o instinto inato do dever, dorespeito que deve o indivíduo a seus semelhantes, e mesmo

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da necessidade de por eles devotar-se ou abnegar-se. É decerta forma o instinto gregário ressaltado por Aristóteles.

Estas propensões automáticas naturalmente nãogarantiriam a vida ética do sujeito, não fosse o concurso darazão esclarecendo o indivíduo sobre o funcionamento desteautomatismo da vontade, e oferecendo-lhe a opção dedirecionar sua volição não mais conforme as propensões,senão conforme a regra da conduta estabelecida por ela (arazão). A volição inconsciente das propensões passa assim àvolição racional e, portanto, livre.

Mas aqui há uma diferença fundamental para com a agendailuminista que ele reproduz quase na íntegra. Aquém dafunção da inteligência em dar a norma de comportamentocorreta para a vontade, Feijó reforça a preponderância dapiedade sobre a norma, observando que a consciência podeinclusive vacilar diante de apuros e dilemas teóricos ouéticos. Nisto, contudo, pode auxiliá-la a revelação, que comolei objetivada que corresponde à lei subjetiva escrita naconsciência. A revelação é a voz de Deus prometendo atravésdos profetas e do Filho a perfeita justiça. O que a consciênciasugere, mas não pode garantir, a revelação promete comfirmeza: “Sê virtuoso e serás feliz!”[1] É o mote fundamentalde toda a religião.

Certificado pela revelação, o homem tem a força necessáriapara enfrentar todas as privações que as grandes tarefaspodem exigir. Se uma vida de agrura e sacrifício se fazemnecessária ao cumprimento do dever, especialmente se esteinclui o bem coletivo, a promessa da felicidade eterna é oúnico lenitivo com o qual pode consolar-se.

Pois bem; o que garantiria então a correção docomportamento, se apesar do que apontavam razão erevelação a vontade permanecia em posse de todo o poderdeliberativo? Não poderia o homem enxergar o certo e desejar,ainda e contudo, o erro? Não, responde o pensador brasileiro,pois tanto a razão quanto o sentimento de piedade aplicariam

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sobre o sentimentos do homem o aguilhão do arrependimentoe da consternação sempre que a vontade teimar em ignoraros avisos da mente e do coração. A regra moral que Deuspermite aos homens desvendar por estudo e experiência nãoapenas sugere o bem, mas pune o mal. É preciso, portanto,estudar quais são as condições em que nossa consciênciaexerce sobre nosso organismo moral esta imputação.

As exigências morais que o padre iluminista impunha a simesmo, e aconselhava aos demais, eram das mais rigorosas.Praticamente qualquer desvio da intenção, do pensamento oudo desejo poderia ser imputado moralmente ao homem.Omissão, conivência e negligência do dever seriam tãoimputáveis quanto a própria execução do crime, embora emgrau menor. Jamais uma participação, mesmo queinconsciente, numa falha moral pode ser ignorada do juízo daconsciência, quanto menos do divino. O indivíduo só estariaisento da participação no mal se ele além de não o desejartiver feito todos os esforços a sua disposição para o evitar erepudiar, inspirando nos demais o mesmo zelo. Observemosnas próprias palavras do magnífico regente a tábua dasimputações em todos os seus detalhes:

... quando o homem faz quanto pode para corrigir seushábitos e moderar suas paixões; quando o arrependimento dopecado retrata o efeito desses hábitos e paixões, eu não seicomo se lhe pode imputar semelhantes ações ou omissões.

As ações praticadas com diminuição de liberdade serão maisou menos imputáveis, segundo a força do sentimento moral emotivos mais ou menos obrigantes oferecidos pela razão,segundo temperamento e educação...

Como muitos podem ser autores de uma só ação deve-seexaminar-lhe o grau de influência que cada um teve nela,para se-lhe imputar.

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Pode o autor ser causa única ou cooperadora; cooperarigualmente ou com desigualdade; ser causa principal ousubalterna; ser causa próxima ou remota; imediata oumediata.

Pode influir no entendimento suscitando a ideia da ação, porconselho, exemplo ou por qualquer sinal. Pode influir navontade mandando, ameaçando, rogando facilitando ouaprovando.

(E por último o motivo que todos reconhecem ser opredominante) Pode influir na ação deixando de fazer o quedevia para embaraçá-la.[2]

Em relação aos deveres para consigo mesmo, que se dividemem deveres para com o corpo, a vontade e o espírito, todoscompartilham a recomendação da disciplina e educação doshábitos. O esforço de repetição do comportamento virtuoso,saudável ou feliz, garantiriam, para Feijó a adequação docorpo, da vontade e do espírito às tarefas elevadas,descondicionando o homem de seus padrões atávicos einstintos incultos.

Por fim o dever da beneficência extrapola completamente oâmbito da ética restritiva e exige uma noção positiva. Abeneficência é a obrigação de fazer ao próximo o quegostaríamos que nos fizessem, o que não se confunde com aslimitações do nosso comportamento visando não o prejudicar.O dever da beneficência, mais que isso, exige o sacrifício, acaridade e o devotamento do indivíduo aos demais, sem outrointeresse que não seja o do bem alheio e coletivo. É de acordocom este dever que se executam as ações heroicas esantificadas que marcam uma comunidade no curso dahistória, e é o cumprimento dele que mais ressalta umindivíduo aos olhos de Deus.

Saindo do plano teórico da filosofia moral para o aspecto maisprático da edificação e da confissão de fé, nosso patrono

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espiritual revela ainda maior familiaridade e grandeza notrato dos assuntos pertinentes à reforma interior.Reproduzimos a seguir pequenos trechos do texto Retrato dohomem de honra e verdadeiro sábio:

O sábio e homem honrado põe a sua felicidade em temer aDeus, e em lhe ser fiel; olha o pecado como o maior dos malese quisera antes perder tudo que cometê-lo.

Fala sempre com o maior respeito de Deus, de religião, dascoisas santas, e dos maiores: nem murmura deles, nem oconsente fazer, se pode. Não se envergonha de ser devoto,nem de o parecer; mas evita exteriores, que faria ridicularizara piedade.

Nenhum interesse é capaz de o fazer mentir e faltar àverdade; mas não jura por ela: e sabe guardar segredo atempo, e sem mentir jamais...

É dócil e afável até com os pequenos: nunca mostradesigualdade de humor e de gênio, que o faça odioso einsuportável; tem sempre um rosto sereno, e esta amávelalegria, companheira da inocência e da bondade do coração;naturalmente é civil e político com todos e se contrafaz paranão molestar alguém...

Seu gosto é fazer bem, antes que lho peçam, e quando nãopode, se desculpa em termos tão sinceros e corteses, queobriga e encanta; e jamais se jacta do benefício que faz; nemse esquece do que lhe fazem... Não tem inveja da fortuna dosoutros... Sabe se acomodar-se a todos os espíritos e a todosos gênios, quando a decência e a sabedoria o permitem; e seporta de modo que a ninguém desagrada...[3]

O texto completo é longo, mas todo ele marcado pelamesma dignidade. Seria conveniente que todo o gênerohumano o conhecesse mais de perto. Para resumir, noentanto, observamos que a ninguém é dado falar e escrever

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com um força que não possui, e se nosso sábio e piedosoautor nos encanta com o retrato do modelo de homem moral,é porque pôde retirar de si esta viva imagem, que para nósquase como utopia se apresenta. Todos os que que sehabituaram a ler discursos morais e religiosos sabem o quãodetestavelmente vazios e evidentemente hipócritas são ostermos daqueles que pretendem emular uma virtude que nãopossuem; e tentando imitá-la, deturpam-na.

Em toda a sua vida Feijó nos apresentou este mesmoretrato da retidão. Renunciando ao poder que muitoscobiçavam e que ele aceitou como obrigação do dever, deu aprova de que em nenhuma circunstância estava à venda asua consciência. A dedicação com que exerceu o cargo deregente do Império, motivado exclusivamente por amor àpátria e ao povo, deveria envergonhar para sempre todos oshomens públicos que sequer pensaram em os desonrar. Esteque foi provavelmente o nome mais ilustre dentre os que nosgovernaram, não obteve o cargo nem por direito, como osimperadores, nem pelo voto, como os presidentes, mas, comopara destacar-lhe a distinção, foi escolhido em situação deurgência, quando a nação necessitava de uma figura dotadade inquestionável caráter e destacada competência. A quem,em nosso atual cenário público, poderíamos apontar?

Ao lado do cortejo inumerável de infelizes réprobos dapátria, elevados pelo seu poder ou pela irresponsabilidadedas multidões ao papel de líderes, restará sempre o nome deFeijó como símbolo do orgulho coletivo. Nele podem osbrasileiros, como em muito poucos outros indivíduos denossa memória, buscar a inspiração para o cumprimento dosdestinos do país.

Bibliografia:

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FEIJÓ, Diogo A. Cadernos de Filosofia. Ed. Miguel Reale. SãoPaulo: Grijalbo, 1967.

Benjamin Franklin, o pai espiritual da América

Quando as nações se organizam e assumem um papel efetivona história, é invariavelmente por intermédio de certos gêniosdo campo político, cultural, econômico, religioso ou militar. Apassagem de uma população de seu estado informe e caóticopara a ordem de estado, com certos valores e leis instituidos,requer sempre, o que é comprovado pelo estudo histórico, orecurso do carisma pessoal e do sacrifício de alguns noinstante crucial de fundação da pátria.

A vida de Benjamin Franklin é uma daquelas que maisservem de repositório inesgotável de aprendizado e admiraçãopor parte daqueles que a analisam, reforçando a tese de quenão é pelo acaso nem a qualquer um dada a glória de orientarum povo em sua marcha pelo deserto, rumo ao descanço naterra prometida.

De origem extremamente pobre, tendo de instruir-se poresforço próprio, trabalhando desde o início da adolescência,como era comum aos jovens da época, e saindo ainda muitojovem pelo mundo em busca de oportunidades de estudo ecarreira, Benjamin expressava sem ressalvas os sinais dogênio universal que haveria de se tornar.

Escritor de panfletos, artigos jornalísticos e satíricos; pioneironas pesquisas sobre a eletricidade, figura de liderança emqualquer associação que gozou da graça de sua presença,patrono da insurreição contra a Grã-Bretanha em favor daindependência, organizador e inspirador mor da constituição,

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filantropo destacado, moralista e delegado científico ediplomático dos EUA na Europa, o pai da pátria americanaparece ter exercido não apenas todos os encargos de prestígiosocial e intelectual, como os fez sempre com uma forçaincomparável, o que garantiu os resultados duradouros detodas as suas diversas iniciativas.

A sociedade de ciências médicas de Paris teria pronunciadosobre ele: “Se um americano, um filósofo de terras selvagens,solucionou alguns dos maiores desafios da ciência europeia,a razão há de ser mesmo algo universal.”[1] Veja-se que atéos franceses o elogiavam.

Ao invés de citar suas evidentes contribuições políticas,gostaríamos de destacar uma obra filantrópica que, emboracom muito menos projeção, demonstra ainda melhor ocaráter caritativo que logo lhe tornou respeitado em todo opaís. Falamos da primeira biblioteca pública estabelecida nasAméricas.

A organização da biblioteca da Filadélfia, por volta dos anos1730, foi um dos eventos mais relevantes para odesenvolvimento da cultura americana, e uma prova do vigordos ideais puritanos e iluministas no Novo Mundo. Sem ainiciativa de Franklin e outros amigos por ele selecionados,que não apenas organizaram, como inclusive doaram de seuacervo pessoal a maioria dos livros, a iniciativa jamais teriase concretizado. O espírito dos Estados Unidos dava aí umamostra da iniciativa e da capacidade de associaçãocomunitária que logo lhe garantiria o sucesso econômico epolítico que conhecemos. Em nenhum momento ocorreu aosidealizadores da biblioteca solicitar apoio de entidadesgovernamentais ou instituições. Ao invés disto organizaram efinanciaram todo o empreendimento de uma entidadepública, somente com o trabalho dos indivíduos, nem sempreabstados.

Naquela época, quase toda a ilustração política em línguainglesa estava limitada aos Dois Tratados sobre o Governo, de

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John Locke, e mesmo este título era desconhecido da maioriados americanos. Após a organização da biblioteca porFranklin, este tornou-se rapidamente um dos livros maisrequisitados, e foi tão impactante a sua repercussão que novedos delegados responsáveis pela assinatura da Declaração deIndependência afirmam só ter lido a versão doada porFranklin.[2] Este fato é mais que suficiente para alertar-nospara as dificuldades gigantescas de se obter livros nasAméricas do século XVIII. Os desafios enfrentados peloslatino-americanos devem ter sido bem mais graves.

A biblioteca da Filadélfia acabou tornando-se mais do que umrepositório de livros; Franklin observou logo que parte doatraso científico da América se devia aos altíssimos preços daaparelhagem científica, cujos itens eram sem exceçãoimportados. Para que o pesquisador americano nãopermanecesse impedido de prosseguir com seus estudos, asociedade de amigos fundadores da biblioteca dispôs tambémuma linha de fundos para a compra deste equipamento.

Já é bem conhecido, por outro lado, o papel de Franklin comocientista. Sua célebre experiência com a pipa foi apenas ofinal de uma longa série de estudos com diversos materiais, oque só se pôde efetivar com aparelhos inventados econstruídos por ele. A guerra entre as correntes empirista eracionalista acerca da eletricidade foi permanentementedesequilibrada em favor dos primeiros, tudo graças aoimpacto do trabalho de Franklin. Por quase dois séculos (atéas revoluções de Einstein), a filosofia foi expulsa doinvestigação científica; fato que, conquanto doa aos amantesda filosofia, foi extremamente benéfico naquele momentohistórico.

Mais interessante do que seus inúmeros trabalhoscaritativos, empresariais, científicos e comunitários são suasmeditações éticas e religiosas. O cronograma diário do pai dapátria era dominado por oito horas de trabalho “obrigatórias”,onde naturalmente a obrigação era voluntária, pois ele era

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dono do próprio negócio, duas horas de intervalo paraalmoço, que incluía a leitura de jornais, um momento após otrabalho para a “questão do entardecer”, momento em que elese perguntava sempre a mesma coisa: “Que bem fiz eu no diade hoje?”. Em sua busca por uma disciplina de vida quasemonástica ele estabeleceu também os horários inalteráveispara o sono, as refeições, a música e eventuais conversações.

Por volta desta mesma época, o sábio criou para si umatábua de virtudes; mandamentos que ele se comprometia aseguir no melhor de suas forças, juízo e possibilidades.Começando pelas que ele considerava mais fáceis de cumprir(difícil dizer se para si ou para todo o gênero humano) eterminando nas virtudes heroicas da castidade e dahumildade, que ele considerava só serem apresentadas pelossantos. Esta última teria uma única regra: “imitar as vidas deJesus e Sócrates”. Regra que, no entanto, o pai da Américaconsiderava virtualmente impossível de se cumprir à risca.

Entre as virtudes primárias ele elenca o comedimento, oumoderação, e o silêncio, ambas essencialmente formas deautocontrole e disciplina. Mas através destas simples virtudeso homem pode não apenas educar-se para outras maiorescomo evitar inúmeros males para si e para os que lhe estãopróximos.

Exatamente como o outro herói pátrio que analisaremos aseguir, Antônio Diogo Feijó, Benjamin relaciona intimamentea virtude ao dever cívico. A moralidade não é, para estesgigantes, uma regra de conduta ou amadurecimentopessoais, senão os meios para o bem geral. Ambos moralistase políticos, combinação que nos soa tão estranha atualmente,acreditavam ser o papel dos homens reformarem-se o maisrápida e completamente possível, para que o destinolongamente ansiado e preparado pela Providência possa seconcretizar.

Daí o fato de ser para Franklin a humildade a virtude maior.Somente aqueles capazes de devotamento e abnegação podem

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empreender grandes feitos públicos. Se um indivíduo desonrasua nação, nos mais pequenos detalhes, se tem seusinteresses ou mesmo ideias em primeiro plano, jamais poderálevar consigo a liderança moral da sociedade, estando suasobras fadadas a expirar na memória coletiva. Os grandesfeitos só se eternizam quando escorados pela autoridademoral que a todas as almas cativa, em todas as épocas.Somente estes podem realmente alimentar a chama do ideal edo sacrifício coletivo com que se estabelece o progresso. Semisto todos os líderes são agitadores e hipócritas, capazes deexcitar e manobrar por um momento o ânimo das massas,mas desprovidos de força para arrastar consigo os coraçõesao martírio.

________________________________________

[1] Carla MULFORD. Cambridge Companion to BenjaminFranklin. Pg. 79.

[2] Carla MULFORD. Cambridge Companion to BenjaminFranklin. Pg. 13.

O vazio de um mundo sem sonhos.

Como ser de liberdade, condenado a escolher seus própriosrumos e diretrizes, o homem não tem outra missão senãoaquela que impõe momentaneamente sobre si mesmo.

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Enquanto as provas são inerentes à vida, derivandodiretamente dos desafios que ela a todos impõe, e ao passoque a expiação dos males está a cargo do automatismo da leimoral quanto física de causa e efeito, a tarefa missionáriadiferencia-se por sua dependência total da adesão voluntária.

Num sentido menos espiritual, como o da filosofiaexistencialista, o homem pode propor-se qualquer espécie deprojeto de vida, sendo sua realização pessoal um subprodutoda aplicação deste projeto. A desgraça, para a popularfilosofia existencialista do século XX, estaria em não sepossuir um projeto, situação na qual o homem, não tendoreferenciais externos de julgamento, perderia a capacidade devalorizar e julgar os fatos de sua existência.

O que podemos aproveitar desta filosofia, mesmo quandoacreditamos em valores essenciais e conhecíveis, é arealidade psicológica desta afirmação, uma vez que a grandedescoberta do existencialismo está em saber que a posição dohomem em relação ao mundo está na razão direta da formacomo ele escolhe reagir e se relacionar com ele.

Ora, isto é perfeitamente admissível ao homem religioso,particularmente ciente da esterilidade da crença na ausênciado compromisso. Ideias e valores tem a sua força na medidaem que os assumimos e com a energia com que osassumimos. Fora isto não há ressonância entre a crença e avida prática, entre o que aceitamos com a opinião e o queacolhemos com a vontade e o sentimento.

Nossa vida tem o sentido que fazemos, e tal é emconsequência a importância dos projetos. É pelos nossosprojetos que organizamos todo o nosso ser _ intelectual,volitivo e sentimental _ para o enfrentamento dos desafios domundo. Sem um projeto, ou vários, nossa existência émeramente automática; a inteligência se limita a entender,sem criar; a vontade se restringe ao desejo, sem inflamar-sediante dos grandes desafios ou renovar-se para a persistêncianos trabalhos árduos; e o sentimento, pobre e lastimável,

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atrofia-se em órgão destinado ao entretenimento, despertosomente por estímulo exterior e casual, perdendo toda a suafunção dignificadora e embelezadora que, aplicada a umpropósito qualquer, torna-o um sonho, um ideal.

O combustível do projeto idealizado para o futuro nãodemanda refinamento para dar partida no motor da vontadehumana. A mais simples meta tem poder suficiente paraorganizar e focar o turbilhão dos desejos dissonantes em umobjetivo de vida, ainda que temporário; o pensamento reagedeixando de vagar em perturbação, e fixa-se alegremente nosplanos e análises das condições de execução; o homem ontemperdido na sucessão das ideias e interesses desencontrados,mero receptor de notícia, estímulo e influencia, passainstantaneamente a produtor destas e de outras relações.

Imagine-se um homem que, assolado pelo desânimo da faltade perspectivas, tem toda a sua ação limitada à manutençãodo corpo e à cata de distração que lhe mantenha o espíritolonge do desgosto de pensar em seu estado. Ponha-se umaúnica meta de difícil realização a este indivíduo e o veremostransformar-se como por encanto. Logo o cidadão é todoplanos, fala de seus objetivos com empolgação, esquece-se doprazer imediato e poupa, ou estuda, ou se exercita em algumesporte ou arte. Visto de fora este homem recebe comfrequência críticas maliciosas por voltar suas forças para finstão mundanos como a aquisição de um carro, o progresso naginástica ou a conclusão de um pequeno curso, mas sesuspeitassem dos benefícios que o mesmo colhe, se tivessemem mente que há pouco este alegre e dedicado indivíduoestava mergulhado em marasmo e talvez a beira dadepressão, outra seria decerto sua atitude.

Qualquer cometimento sério é meritório, diríamos mesmo queé sagrado, pelos resultados que traz ao indivíduo que se lançaao trabalho. O milagre de resgatar uma vida do vazio e daparalisia, tornando-a útil à coletividade e saudável para o seudono, é também um milagre da fé, visto que a fé é, entre

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outras, a forma básica da confiança e do comprometimentoexistencial consigo mesmo e com o mundo. Convença-se umhomem de que o mundo está contra ele, de que todos os seusesforços não serão recompensados, de que ele não possuivalor ou capacidade, e ele não alimentará sonho algum.Desperte-se nele, ao contrário, uma autoconfiança inabalável,fazendo desta criatura humilde o herdeiro da divindade,coloque-se diante de seu olhar um universo benigno que oampara em todos os seus projetos mais nobres, e logo eleestará com a mente fervilhando das mais elevadasconcepções.

Quando a fé mingua, o sonho esmorece com ela, e quando osonho, que é o compromisso com a transformação, deixa deorientar o projeto de vida de um indivíduo, este perde a partemelhor da liberdade, a sua força criativa e expansiva. Restasomente uma liberdade ética, de escolher entre o certo e oerrado, mas não há mais liberdade para crescer, para seexpandir.

A conduta moral correta é por si só meritória, mas ela éimprovável se não estiver constantemente impulsionada peloespírito de sacrifício e dedicação extremos que somente a fénum projeto nobre proporciona. Por isso é tão importante ter-se um referencial; ele não constitui uma virtude por simesmo, mas cria em nós um vigor, uma disposiçãopsicológica e existencial para superar barreiras internas queantes pareciam maiores.

É de pouca importância o resultado final de umprograma grandioso. Se o sonho se realiza ou não, é questãosecundária. O valor de sonhar está em fazer crescer diantedos olhos da imaginação o próprio valor, e com ele a própriaresponsabilidade. Não há que se desacreditar da importânciada colheita, pois também ela é necessária para a economia domundo, quanto para a do espírito, mas no estágio em que ahumanidade se encontra o exercício é muitas vezes maisessencial do que os seus resultados, de modo que lançar-se a

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um objetivo fútil e banal agora prepara o homem paraesforços maiores no futuro. Com que outro propósito poderiaa ordem do mundo dispor-nos a tantas ocupações vãs? Porque afinal tem a Suprema Inteligência tanto gosto em nosdeixar entregues à nossa própria liberdade, se em todas asnossas ínfimas e simplórias atividades não estivéssemostambém sutilmente envolvidos numa tarefa grandiosa?

Tal tarefa não há de ser outra que a construção de nósmesmos, e para ela concorrem decerto todos os nossosesforços num cenário em que nem o mundo nem ahumanidade parecem tirar grande proveito deles.

O filosofia moral do liberalismo (o político, não o econômico)diz que o valor de um homem está no grau de exigência queele impõe sobre si mesmo. Se a exigência é mínima, o seuvalor é equivalente, mas se nossa exigência for extrema,também elevado será nosso valor, pois nosso esforço produzsempre resultados proporcionais. Esta percepção coincidecom a velha sabedoria das religiões e filosofias que pregam odesapego, considerando os frutos aparentes sempre comoconsequências condicionadas a outros fatores exteriores aotrabalho do indivíduo. Garantidos, no entanto, são os frutosinteriores que toda atividade enseja pelo simples fato de nosocuparmos dela com persistência.

A disciplina, a força de vontade, o conhecimento, o hábito, ahabilidade, a simpatia, o gosto, o apreço e a sabedoria seadquirem com esforço, mesmo quando o propósito deste nãoestá a altura de sua função engrandecedora do espírito. Porisso podemos dizer com desassombro serem as metas maisvulgares sumamente úteis para o crescimento interior.

Mas, ao passo que toda a atividade justa é proveitosa, osobjetivos elevados guardam para nós recompensas aindamais desejáveis. E se nos desembaraçamos de compromissoscom os resultados, nada nos obsta a traçar limites cada vezmais altos às nossas exigências pessoais, já que a frustraçãopelo eventual insucesso deve desaparecer na medida em que

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dermos mais valor ao comprometimento do que aos seusprodutos visíveis.

As pessoas mais exitosas no cultivo do espírito sempre foramas que se dedicaram aos ideais mais elevados. A arte, aciência, a religião, a justiça, a humanidade, a saúde, aeducação, o progresso, a ordem; estes os objetivos das almasque mais crescem aos olhos de Deus. O empenho de qualqueração em prol destes fins exige uma cota extra de sacrifício,paciência, estudo, tolerância, devotamento e transformaçãoíntima, de modo que a existência aparentemente mais fugaz eapagada aos olhos do mundo pode ter sido a mais radiantepara a aquisição do patrimônio eterno. Além disso o simplesfato de almejar os objetivos mais elevados coloca a mente emestado diferenciado, minorando instantaneamente osmalefícios da visão acanhada da vida presente e dascircunstâncias isoladas. O ideal alarga os horizontes dofuturo e enobrece o passado e o presente. As conquistas dohomem tornam-se mais evidentes, e menos relevantes osseus vícios e misérias. A grandeza do espírito nunca é maisevidente do que quando nos deparamos com ideias erealizações de alta complexidade em tempos remotos.Imagine-se a complexidade da matemática, o talento doescultor, o gênio do político, a grandeza do santo de há doismil anos, e nosso ser não pode experimentar senão assombroe admiração, reverenciando intimamente aqueles que com tãopouco tanto fizeram.

Quanto mais alto elevar-se nossa visão, mais nosobrigaremos a subir. Até o ponto em que nos parecerá viáveldesejar o que estas grandes almas desejaram. Seconseguirmos manter esta expectativa sobre nós mesmos,não de uma forma tirânica, mas com a consciência de queesta é uma meta auto-imposta, as nossas energias logosaberão organizar-se numa frequência correspondentementemais intensa.

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Moral não!

Este texto pretende responder a um questionamento geralquanto ao propósito dos estudos meramente teóricos doEspiritismo. É de conhecimento comum entre os adeptosdesta filosofia o fato de haver alguma divergência entre osadeptos de uma versão intelectualista e os de uma outra maisevangélica da Doutrina Espírita.

Muitas pessoas, inclusive parentes e amigos queacompanham esta página, observaram que ela pode estarexcessivamente voltada para a pauta teórica do Espiritismo,dando a entender, esperamos que erroneamente, umdesinteresse nosso pelas questões mais propriamente morais.Queremos defender por este texto a alegação de que, muito aocontrário, as questões morais, práticas e evangélicas ocupamo topo do pódio de nossas preocupações, o que está de certaforma implícito em todo o nosso trabalho, mas que, de fato,exige um esclarecimento específico.

Ocorre que não queremos ferir a inteligência do leitor,nem desonrar a sua confiança, desviando-nos para objetosalheios ao nosso domínio.

A exposição teórica exige tão somente leitura, que porsua vez não demanda mais do que a mera alfabetização,disponível à maioria. A exortação à bem-aventurança nãoprescinde da autoridade moral que só a vivência proporciona.Não reconhecendo em nós esta vivência, soa-nos sempre malrecomendar a virtude. Por isso nos esforçamos para não ofazer, ou fazê-lo estritamente conforme a recomendação deterceiros, devidamente citados como os autores da prédiga.

Um antigo ditado dos sábios medievais afirma que o própriosatanás, apesar de toda a sua malícia, tem pudor de falar dascoisas sagradas, que inclusive o constrangem. O mesmo pode

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ser aplicado a qualquer pessoa que se sinta hipócrita aodiscursar sobre virtudes que não possui; e até os falsosprofetas, cujo deleite é a dissimulação da aura de elevação,não são capazes de a emular, tratando exclusivamente dasbençãos mais materiais e das ameaças do inferno. Nadaconhecendo da verdadeira pureza, não a podem encenar.

Observe-se se não é assim que os falsos cristãos de hojepregam, com a linguagem afetada e um apego excessivo àsmetáforas mais grosseiras das escrituras. Acreditamos sereste o caminho inevitável de um discurso divorciado dalucidez que somente a experiência assegura.

É por isso que não fazemos e não recomendamos que se façaprosélito da virtude, salvo no caso de se a possuir. Os riscosenvolvidos ao se falar daquilo que se desconhece é o detransmitir informação errônea ou de contradizer-se, pelocomportamento, aquilo que foi dito. São riscos demasiadograndes para quem guarda respeito pelo objeto do discurso, eem relação ao que é divino nosso pudor deve ser ilimitado.

Não há, contudo, do que nos lamentarmos, as pessoasautorizadas a falar da virtude com conhecimento de causasão em número suficiente. Basta-nos reproduzir os seusrelatos e recomendar os seus escritos, e com isto fazemosmuito, sem nos comprometermos. O Espiritismo tem acontento os seus próprios santos e santas, e assume ainda osde outras tradições com igual veneração. Mas ah, quantos denós e quão frequentemente lhes ouvimos as palavras eseguimos o exemplo. Muito pelo contrário, se nos oferecem aprópria experiência os acusamos de vaidosos.

Cito o caso de Divaldo Franco, de quem já ouvimospessoalmente ou por vídeos os inúmeros exemplos diretos deexercício das mais altas virtudes sacrificiais e deperseverança. Quantas não foram as vezes que constatamoscom tristeza os comentários jocosos de outros ouvintes desteexplêndido orador e herói moral.

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_ Vê!_ diz o galhofeiro_ o homem aponta a si mesmo comoexemplo. Que orgulho.

Infeliz do que assim procede, pois se tivesse maiscomedimento em destilar semelhante veneno poupar-se-ia deinúmeros compromissos nefastos, típicos de quem semeia aintriga pelo verbo indisciplinado. É tão raro surgir entre ospobres homens um que ostente dois ou três traços de umcaráter mais depurado. E quando surgem e o exercem semmácula por muitas décadas, ainda é com modéstia que odivulgam, cuidando para que diminua ao máximo o méritopessoal e cresça, às vezes exageradamente, o mérito da boainspiração. Tais homens e mulheres levantam o ânimo dosvacilantes e dão a prova concreta da grandeza de espírito quea disciplina e a dedicação de muitas vidas pode produzir nosindivíduos; também em nós outros. Se um destes homens debem fala abertamente sobre uma provação que viveu ou umgesto de nobreza que praticou é estritamente, não o duvideis,para enternecer no íntimo o ouvinte, e porque o exemplo,quando pode ser dado em primeira mão, é invariavelmentemais forte do que ao ser reproduzido em segunda.

Não é por outro motivo que o Cristo veio ao mundo viver asmisérias humanas, pois se outro pudesse causar o mesmoefeito, bastaria a leitura dos feitos dos profetas. E quantasvezes não lembrou o messias da importância de estar eleconosco, vivendo e exemplificando sua doutrina, e de que logoapós a sua partida seria esquecido?

O espírito dos que habitam a Terra é por demais frágil, suamemória é por demais nebulosa para que ele retenhafirmemente o que aprendeu por relato. É preciso ver, ouvir etestemunhar a virtude face a face, sem o que nosso ser nãose confrange. É preciso que venham ainda muitos santos eprofetas, que vivam os dons celestiais diante de nós, e quefalem com a voz da autoridade, antes que comecemos aseguir-lhes os passos.

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Quando e enquanto os tivermos diante de nós, sejamos todoouvidos, seja a nossa atitude de pura recepção, para queimantados a um destes espíritos mais maduros possamosimitiar-lhes o comportamento, uma vez que entre as criançasa imitação consiste o melhor recurso de aprendizado.

O monstro democrático e a espada da justiça.

Alexis de Tocqueville em seu livro Democracia na América,seguramente o mais importante tratado sobre a democraciajamais escrito, escreve estas palavras tão atuais quantonunca:

A sociedade está quieta, não porque esteja ciente de sua forçae bem-estar, senão, ao contrário, por acreditar-se fraca efrágil; ela teme morrer ao menor esforço. Todos sentem quetudo vai mal, mas ninguém possui a coragem e a energianecessárias para buscar algo melhor; temos desejos, mágoas,sofrimentos e alegrias que não produzem nada duradouro,semelhantes às paixões do idoso que fenecem naimpotência.[1]

Não, o autor não conheceu o Brasil. Ele se referia aosEstados Unidos em um de seus melhores momentos, em finsda década de 1830, quando o erudito pensador políticovisitou a grande jovem nação sob o encargo de analisar omodelo jurídico e especialmente o sistema carcerário dosamericanos.

A análise se aplica, entretanto, ao caso brasileiro, como aoutros em que a inspiração democrática dos Estados Unidos

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vingou, apesar dos pesares, e o quadro um tanto quantotristonho pintado por um idealista que via pela primeira vez arealização política somente concebida pelos filósofos é atécerto ponto um sintoma positivo do vigor da democracia.

Ocorre que este estado angustiante de coisas descrito porTocqueville inexiste sob o governo aristocrático, onde o povotem apenas a opção de servir ou rebelar-se. Na democraciarevolução e servidão não fazem o menor sentido. É umautopia falar de revolução para uma sociedade democrática,pois cada indivíduo já goza de uma liberdade, ou da posse deuma certa quantidade de bens, que torna qualquer sonhorevolucionário um possível pesadelo para o cidadão mediano;e a mera possibilidade de criar um pesadelo é ameaçasuficiente para que as pessoas desistam de qualquer sonho,no que agem com muito acerto. A servidão, como obediênciacivil absoluta, também não encontra eco onde as pessoas jáprovaram o gosto da liberdade, por menor que seja. Ahumanidade viu apenas progresso da tirania para ademocracia, jamais um retrocesso, pelo que se pode suporque este movimento seja irreversível.

Alexis de Tocqueville

Entretanto, como observa o perspicaz escritor político,uma nova variação do mal social é inaugurado com ademocracia, a ditadura intelectual das massas. Não é maisuma elite que exerce o governo absoluto da opinião, mas amassa irrefreável, que com o poder do voto, da opiniãopública e das instituições democráticas exerce coerção quaseirresistível sobre as opiniões minoritárias. Se a maioria ésocialista, logo a escola extrapola sua função educacionalpara ser palco ideológico do professor adepto. Se a maioria ématerialista, a mídia debocha da profissão de fé e dasquestões de foro íntimo que só competem ao indivíduo. Se a

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maioria é amante do futebol, os recursos públicos sãovoltados para este esporte, asfixiando os sonhos daqueles queapresentam maior talento para o vôlei, a dança ou aginástica. De todas as formas, não importa qual seja aideologia dominante, ela apropria-se indevidamente dasinstituições democráticas e desvia capacidades e recursos desua verdadeira função. A massa é burra, porque não temindividualidade, é desumana, pelo mesmo motivo. Seusinteresses são os genéricos, pois ela não tem alma, mente oucoração próprios, mas é antes uma coisa amorfa que seapossa das almas, mentes e corações, tornando tudoimpessoal para atingir seus fins.

A única proteção contra esta ditadura invisível damassa é o rigor na defesa dos direitos individuais. Para que aminoria não seja esmagada por uma ditadura da opinião dasmassas, é preciso restringir a democracia aquelas questõesque ultrapassam o foro íntimo e o direito do indivíduo, ou emoutras palavras, aquilo que não interessa ao público. Minhasidéias, crenças pessoais, religião, posição, propriedades,corpo e trânsito devem ser rigorosamente protegidos de umsúbito assalto da opinião pública, pois esta, não sendoracional, previsível ou disciplinada em nenhum aspecto, podequerer apossar-se de qualquer um destes valores dos quaissomente eu sou o senhor legítimo. Após me usar para seusfins temporários e instáveis, a massa seguirá para outrosinteresses, encontrará outro alvo para a histeria coletiva quesempre se justifica com o moralismo sofistico dos justiceiros,mas deixará para trás o rastro de destruição das vidasindividuais.

Nos lugares em que a ditadura da maioria seestabeleceu sem nenhuma restrição, como a União Soviética,Cuba e China, as vidas de dezenas de milhões de pessoasforam brutalmente arrancadas das mãos às quaispertenciam. Crianças instruídas nas escolas a denunciar ospais, desaparecidos ou condenados pelo fato de falar ouescrever contra o partido, e todos os horrores da tortura e da

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castração foram perpetrados por não haver restrição àarbitrariedade da massa ensandecida. E mesmo nos EUA,onde os direitos individuais encabeçam desde sempre asdiretrizes da constituição, o coro das massas, em seusmodismos e simplismos, conseguiu arrebatar de algunsaqueles mesmos direitos fundamentais que as leis preservam,mas que a sociedade pode sempre denegrir.

Com a relativa vitória do modelo americano sobre aditadura oficializada das massas, espraiaram-se os valores doestado de direito, da necessidade absoluta de umaconstituição efetiva, da preservação dos direitos universais docidadão e da democracia inclusiva, isto é com preservação davoz das minorias.

Ainda assim, como ocorre desde a sua fundação nosEUA, a democracia representativa moderna carecepermanentemente de vigilância e regulação para nãodescambar em ditadura da opinião, o que poderia fazer comque, solapadas as leis e instituições, uma ditadura de fato seinstaure.

Combater este processo é a obrigação de todo o cidadãolivre e racional, e para isto pode ele contribuir zelando paraque a opinião pública não extrapole os seus limites delegitimidade. Ao professor cabe formar um cidadão apto a teruma opinião própria, não formar a opinião. Ao divulgadorcabe trazer a notícia e, na medida do possível, apresentar osdistintos partidos, seus prós e contras, não aderir a umaposição, pelo que deixa de ser comunicador para serpropagandista. O funcionário público deve repartir osrecursos e gerar facilidades de acordo com as necessidadesde todos e de cada um, jamais segundo suas crençaspessoais e interesses partidários. São diretrizes quase ideais,visto que poucos as aplicam, mas não há dificuldade na suacompreensão ou execução, requerendo apenas mudança deatitude de nossa parte.

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Se nos preservamos de abusar dos cargos e acesso àsinstituições, podemos exercer nossa crença, ideologia eopinião com uma qualidade diferenciada, bafejadas pelanossa própria autoridade como sujeitos livres e idôneos. Estaé a força legítima de que qualquer um pode lançar mãoresponsavelmente, e todos os verdadeiros reformadores dahumanidade não usaram mais do que ela.

Mas para além destas diretrizes éticas o direitoindividual não encontra outra proteção contra o abuso datirania democrática que não a do poder legislativo.

Somente o poder legislativo está imune aos ataques dehisteria, irresponsabilidade ou indiferença da opinião pública,pois o judiciário guarda uma distância segura do voto,mecanismo sempre corruptível pelas massas. Por isso é tãofundamental que o judiciário tenha um papel destacado naconstituição, o que não acontecendo redundará emcapitulação absoluta do direito à arbitrariedade da massa.Numa democracia como a do Brasil, onde o judiciário é fraco,a impunidade impera, o desmando dos poderosos édesavergonhado, o cinismo dos que se sustentam naestupidez da massa é total. Nos EUA, apesar de todos os seusdefeitos, o judiciário é temido pelos vigaristas, não importa oquão alto estejam, o crime tem o pudor de não se mostrar àluz do dia, e até mesmo a cultura se habituou, pela força eindependência do judiciário, a considerar imperdoáveis asinfrações mais leves. O cidadão comum julga em foro íntimoos políticos, e uma vez condenados pela consciência dosindivíduos, os homens públicos renunciam intimidados. Nós,por outro lado, não temos enraizada esta convicção nasupremacia da lei sobre os poderes circunstanciais, e tanto ocidadão ignora o descalabro, dando-o por natural, como ocriminoso perde a medida da discrição e da própria malícia.

É neste sentido que Tocqueville escreveu ainda emmeados do século XIX:

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Quando, após examinar a organização da Suprema Corte emdetalhe, você considera as atribuições que lhe foram dadas,você facilmente descobre que jamais constituiu-se tão imensopoder judicial entre qualquer povo.

A Suprema Corte jaz acima de qualquer outra conhecida,tanto pela natureza de seus direitos quanto pelo tipo deobjeto do seu julgamento.

Em todas as nações civilizadas da Europa, os governossempre mostraram grande relutância em permitir quesistema judicial ordinário decidisse questões que envolvessemo próprio governo. Tal relutância é certamente maior quantomais absoluto for o governo. Na medida em que a liberdadecresce, ao contrário, o círculo das atribuições das cortessempre se amplia; mas jamais uma nação europeia cogitoude que toda a questão judicial, não importa sua origem, deveser deixada para os juízes da lei ordinária.[2]

Este trecho luminoso requer uma muito demoradameditação. Como procedeu-se esta revolução radical dajustiça terrena, que ainda não foi suficientemente absorvidapela minoria que seja das nações? A Europa e as recémindependentes nações americanas levaram décadas paraassimilar parte dos preceitos do federalismo, da democracialiberal e do estado de direito americano, e ainda hoje é comressalvas sérias que o Brasil pode ser consideradodemocrático quando um cidadão comum nem em sonho podeprocessar o governo e as grandes empresas amparado apenaspor seus direitos.

Como aqueles homens rústicos da América colonial, poucosdeles realmente bem educados e ainda assim mais homenspráticos, empresários, do que pensadores, puderam elaborarum sistema em que uma enorme liberdade para ascomunidades dos estados coincide com a força da união; umsistema em que a democracia é garantida, não pelo

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mecanismo intuitivo da vontade da maioria, mas pelalimitação e regulação sábia desta vontade por vezes tirânica,restrição esta que é exercida pelo órgão máximo da defesadas leis contra todas as arbitrariedades pessoais e/oucoletivas, o judiciário. Talvez este povo tivesse mesmo, comoacreditava, os seus delegados guiados do alto por uma forçamaior do que a de seus juízos individuais. Entregues a umideal que inauguraria no mundo as primícias da era daliberdade, eles provavelmente ali estavam por escolha eamparo daquela em que depositavam a razão e a esperançade todos os seus esforços: a mão da Providência.

________________________________________

[1] Alexis de TOCQUEVILLE. Democracy in America. Pg. 22.

[2] Alexis de TOCQUEVILLE. Democracy in America. Pg. 244.

Adolfo Bezerra de Menezes, o profeta filósofo do Ceará.

A cada século e em cada nação Deus permite nasçam homense mulheres especiais, que pela sua depuração completa eascensão intelectual arrastam multidões; verdadeiros clarõesna noite, fazem valer as palavras poéticas de Atos:

“Porque erahomem de bem e cheio do Espírito Santo e de fé. E muitagente se uniu ao Senhor”. (Atos, 11:24)

Conhecido como doutor, renomado pela caridade com queprocedia no atendimento dos mais pobres que acorriam àscentenas ao seu consultório, o gênio cearense radicado por

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muitas décadas na capital imperial não era menos notado emsua própria época pela estatura intelectual.

Dominando à perfeição línguas clássicas e modernas, compredileção pelo francês e pelo latim, estendendo suacompreensão a todas as sutilezas da ciência médica e dafilosofia espírita, tendo elaborado um tratado minucioso sobrea influencia espiritual nas patologias psiquiátricas e um nãomenos brilhante estudo filosófico-teológico que engloba temastão melindrosos quanto a filosofia alexandrina e um extensodomínio da teologia e da história da Igreja católica, o nossopensador completo e profícuo bem mereceria também aalcunha de filósofo, e isto no sentido mais tradicional daAntiguidade, quando o nome indicava a posse de um saberpanorâmico.

Bezerra de Menezes popularizou-se como doutor, mas épossível que tenha trabalhado mais como deputado evereador em seus vários mandatos; e se o seu papel políticonão foi o de um Rui Barbosa ou de um Rio Branco, é bemverdade que participou de forma decisiva na melhoria dascondições urbanas do Rio de Janeiro. Palestrando eestudando os problemas da causa abolicionista, defendendopioneiramente os direitos trabalhistas, preocupando-se emproteger os trabalhadores contratados com a obrigatoriedadedo aviso prévio de 30 dias, apoiando as causas da saúdepública e da educação, chegou a exercer grande influêncianas câmaras em que atuou. Foi talvez o primeiro a seincomodar seriamente com a poluição causada pelo lixourbano. Enfim, um dos membros da vanguarda do partidoliberal.

Como empresário tomou parte de diversos programas,presidindo alguns deles, que em muito contribuíram para aimplantação de linhas férreas e bondes em todo o estado doRio de Janeiro.

É fácil aparentar humildade quando não se possui nemtítulo, nem reconhecimento, nem cargos de relevo ou

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autoridade. Qualquer um imagina-se modesto perdido namultidão. Ser reconhecido como sumidade da cultura,doutor, Sua Excelência, ostentando publicamente os brasõesdo mérito pessoal e da sociedade, e ainda assim manter-se decenho grave e atitude servil é tarefa para pouquíssimos.

Cícero e Goethe foram pensadores universais; ambosacumularam as atividades de político, poeta, cientista efilósofo, enriquecendo para sempre as comunidades em queviviam e tudo dedicando à glória de seu povo. Não souberam,entretanto, esquivar-se da vaidade pessoal ou conciliar abenemerência que praticavam no campo da cultura àcaridade cotidiana no trato com subordinados ou para comos mais simplórios que não podiam desfrutar de suasconquistas sofisticadas no campo das letras e das ciências.

Também entre os santos e mártires, em contrapartida, nãonos ocorre um único que tenha conciliado de modo tãocompleto a virtude estoica e o sentimento compassivo à umaestatura intelectual de impacto sobre a cultura e asinstituições.

Bezerra de Menezes deve ser ainda descoberto em sua inteiragrandeza, ficando como marco referencial para as geraçõesfuturas que, conforme acreditamos, buscarão resgatar a suabiografia na intenção de extrair dela um dos modelos maisperfeitos para a evolução do espírito humano.

A fé, mãe da razão.

Um nobre ditado romano diz: “Volenti nihil difficile” o quesignifica aproximadamente “a quem quer, nada é difícil”. Estaé uma verdade controversa nos dias de hoje, e não é sem

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justiça que muitos se revoltam contra ela. Com todas asvantagens que temos em relação à Antiguidade,especialmente no tocante ao esclarecimento e à ciência, énotória a raridade com que se encontra hoje homens emulheres dotados daquele caráter de mármore tão típico dostempos de Sócrates e Cícero, João Batista e Paulo.

É por isso que uma exortação mais entusiástica nos soa tãoinapropriada; pensamos querer, e uma vez que não logramossucesso nos rimos do entusiasmo dos santos e mártires, dosestóicos e dos idealistas. Querer, para aquela espécie dehomem que viajava a pé com uma sacola de figos à cinta, nãose resume a desejar, como para nós, ou a empreender duastentativas, com a índole revoltada a insinuar que o universoestá a receber uma segunda oportunidade de se curvar aonosso capricho. Há dois mil anos, ou mesmo há menostempo, o querer pressupunha antes de qualquer coisa osacrifício, a perseverança de toda uma vida, o renovardesgastante da luta frente a obstáculos diários, alguns delesjá nem tidos como tais, tal a dureza de que se revestiam opovo no geral e os seus heróis em especial.

Imagine-se um Diógenes, que abandonou uma vidaconfortável para viver como um cão (daí o nome cínico, desua escola, pois kinis em grego significa cão), dormindo aorelento, sempre seminu e faminto. São conhecidas asanedotas sobre seu encontro com Alexandre, sua caneca eseus passeios noturnos com a lanterna, que mais pelaexcentricidade do que pela admiração moral acabaram setornando lendárias. A verdade é que este pensador tudosacrificou pelos outros, fazendo de si um exemplo daabnegação, do abandono material e do desprendimento de si.Uma vida absolutamente miserável, sustentada pela fé de queo seu exemplo haveria de incomodar o seu próximo e fazê-lorefletir.

Diógenes queria, assim como Sócrates soube querer a justiçae a verdade a ponto de tomar um cálice de veneno por elas;

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ou como o Cristo quis a reforma da humanidade a ponto denão se esquivar do suplício da cruz. Todos foram derrotados,de um ponto de vista material, porque o mundo realmentenão se dobra à nossa vontade, mas todos são vitoriosos doideal, e provaram que querer é perseverar sendo aquilo que seelegeu no íntimo.

Àquele que quer, nada é difícil, porque saberá transportempestades e dissabores, incompreensões e fracassosexteriores, vencendo, no entanto, quanto aquilo queinteressa, a fidelidade à sua própria escolha. Mas este quererdeve ser espiritual, o único compatível com nosso poder,circunscrito ao nosso império. Queira-se as conquistasmundanas, as posses de bens e pessoas, os títulos, e mesmoos triunfos serão temporários e efêmeros.

Nesta era de cupidez, mesquinharia e vaidade não é o quererque arrefeceu, mas o seu propósito e significado que foramcorrompidos. Fora de si, o homem busca o que não lhepertence, e fica entre o padecimento da decepção e o gozoensandecido seguido pela perda. A vontade está espoliada deseu patrimônio, não porque abrandou-se a chama do espírito,senão porque os enganos do mundo deslocaram as suasforças para uma região sob a qual ela não exerce o seuimpério.

Fala-se no “segredo”, fórmula de sucesso dos vãos e dosgananciosos. Cientistas pseudo-sábios apresentam asmaravilhas da “física quântica” em linguagem “espiritualista”.Tudo entre muitas aspas e com muitas ressalvas, pois se aciência e a religião, a matéria e o espírito hão de encontrar-senuma grande síntese, esta só pode ser uma que integre suasdiferenças, ao invés de subjugar a irredutível liberdade doespírito a uma magia materialista.

Mas ainda não é disto que queremos falar. Primeiro é precisoexpurgar toda a sombra de animalidade dos temasespirituais. Vontade, liberdade, razão, são as partes maisnobres e depuradas das potências que podem servir às

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necessidades materiais do homem, como desejo,individualismo e astúcia. Feita esta separação inicialprecisamos subir a um outro nível de discursocorrespondente à elevação do objeto contemplado.

A fé, espiritualmente falando, é o poder pelo qual o indivíduosustenta a sua iniciativa, seja ela uma ação física, moral oupuramente teórica. Sempre que o homem espera umresultado para as suas ações, precisa ele prestar oferenda deconfiança a si mesmo e/ou a Deus. Se a força de vontade é aenergia bruta que move toda ação, a fé é a posturaexistencial, voluntária, de confiar no êxito da empreitada. A fénão move os membros ou o pensamento, mas ela dáconvicção intelectual, firmeza de espírito e segurançaemocional para que a vontade se desdobre na direçãoalmejada. Com a vontade o homem caminha, com a razão eleplaneja o percurso, e com a fé ele se convence de que oviagem é realizável.

O oposto da fé não é a dúvida, e sim a desconfiança. Aprimeira é uma ferramenta intelectual que pode ter empregopositivo. A segunda é uma postura existencial que paralisa oindivíduo impedindo-o de agir ou, na melhor das hipóteses,diminuindo o seu empenho e dedicação. Duvidar nãoprejudica a fé; desesperar sim. E é perfeitamente possívelmanter-se em dúvida e, não obstante, lançar-secorajosamente num caminho incerto que se elegeu. A fé,aliás, prova a sua força na presença da dúvida, pois docontrário a sua convicção não encontra desafios.

Nenhuma escolha filosófica é possível sem a fé, porque afilosofia, enquanto questionamento radical acerca doselementos e fundamentos primeiros, baseia-secompletamente na liberdade interpretativa. Qualquerproposição de verdade é, segundo a filosofia, umapressuposição, jamais um dogma. E uma vez que se admite ocaráter volitivo e hipotético de todas as doutrinas, cada umadelas exige de seus partidários um voto inicial de confiança.

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Por mais que se afirme haver razões, experiências ouintuições pessoais que justificam a adoção de uma doutrinaem detrimento das demais é inevitável reconhecer que ospartidários de doutrinas opostas evocam estas mesmasprerrogativas, e a escolha está sujeita, em última análise, àconfiança ou fé que o sujeito tem em seu próprio julgamento.Há motivos racionais para se ser isto ou aquilo, inclinaçõespessoais para tal ou qual concepção da vida, da ciência, dajustiça, e se este impasse fala mais alto do que a confiançanos rumos assumidos, o desespero se instala, e nenhumfundamento mais pode ser lançado.

Por mais que a concepção vulgar de fé e razão instaure entreelas a cizânia, é filosoficamente impossível a existência dasegunda fora da primeira. A eficácia da razão ao invés docaos, a confiança de que as regras de nosso entendimentorealmente coincidem com as regras da natureza, nãoconstituindo apenas uma impressão do nosso ponto de vista,e a convicção de que haja um valor intrínseco na ordem que atorne preferível à irracionalidade são problemas que osfilósofos só puderam resolver através do estabelecimento depressupostos fundamentais, proposições de fé.

Sócrates combateu o relativismo dos sofistas postulando a fénos critérios e princípios lógicos de julgamento. Eledemonstrou que esta confiança na razão é uma questão deopção, e que não pode ser imposta dogmaticamente, mas quesem ela não se poderia encontrar regras imparciais segundoas quais o conhecimento pudesse ser avaliado. Para que sepossa questionar e debater livremente é preciso que osprincípios da argumentação sejam independentes daspessoas envolvidas nelas. Em outras palavras, precisam seruniversais.

Descartes resolveu sua dúvida radical postulando aexistência de um Deus garantidor da eficácia da razão. Senão houver esta pressuposição de fé, segundo ele, seriaimpossível escapar da circularidade destrutiva da dúvida

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metódica. A razão não elimina a dúvida, e não pode enfrentá-la com a força da persuasão argumentativa. A validade darazão precisa ser postulada, acreditada por princípio, paraque o seu poder de convencimento passe a valer.

Kant operou sua famosa crítica da razão reconhecendo que aescolha entre desconfiança ou confiança no conhecimento éuma escolha pragmática. O conhecimento é válido porqueassim nos parece, e porque se não o for não podemosprosseguir com empreendimento algum. Não podemos jamaissaber como é a verdade, mas, limitados à nossa perspectivahumana, podemos ao menos trabalhar com o que nos pareceser.

Esta fé não é sempre nem necessariamente uma fé em simesmo apenas. Ela pode ser e frequentemente é uma fé emsentido religioso, uma fé metafísica na estrutura da natureza,na garantia de um Deus bom e justo, uma pressuposição deque um espírito criador não poderia incutir em nós umainteligência falha e sem correspondência com a verdade.

Assim como há razões para se ter fé, é preciso fé para se terrazões, de modo que a convicção proporcionada peloentendimento e a convicção no próprio entendimento sedependem e alimentam mutuamente. Os que crêemprescindir da fé por possuírem a razão cometem assim umatentado lógico aos fundamentos de suas convicções, poistudo o que for eleito como critério tem o crédito que lhe foratribuído voluntariamente, por fé.

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Visão a partir do centro da natureza: A “heresia” mística nosegundo século do Protestantismo.

Jakob Böhme: sapateiro e visionário, considerado por Hegel opai da filosofia alemã.

Jakob Böhme não é um autor que dispenseapresentações no Brasil. Ele influenciou toda a mística daIdade Moderna, da Maçonaria ao Espiritismo (via teosofia). NaTeologia ou na filosofia alemãs ele tem um papel de destaque,embora também marginalizado a partir do século XIX emfunção da predominância da “desmistificação”. Este é, aliás, oproblema com Böhme, ele era um alquimista, em parte umcabalista, e definitivamente um escritor esotérico, e não oajuda muito dizer que ele era tudo isto “no bom sentido” daspalavras. Nosso tempo simplesmente não o perdoa porassociar-se a Paracelso e a uma linguagem bíblica profética esimbólica.

Não obstante Böhme foi um dos pensadores que abriu omundo protestante para a revisão da ortodoxia luterana,dando fôlego à interpretações liberais, pessoais e plurais doProtestantismo que hoje se traduzem em ampla liberdadeinterpretativa, espiritualismo, inclusão de gênero, liberalidadepolítica, etc, dentro do ambiente ocidental, que de uma formaou de outra é marcado pela vitória intelectual doProtestantismo sobre o Catolicismo.

Além disto, aquele que supõe ser um pensador irrelevantepelo simples fato de ele ter uma visão animista ou mesmomágica do mundo, deve, logo de saída, eliminar de suabiblioteca Newton, Kepler e Bruno. Do contrário terá deaceitar que razão e fé, ao menos numa época mais eclética doque a nossa, conviviam harmonicamente, e completavam-seno exercício de revelação das leis naturais. E neste tocantesomos forçados a rever aquelas concepções que nossa cultura

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julgou por bem excluir sem um cuidadoso exame,observando-se, com isso, que há boas razões para considerá-las superiores, em diversos aspectos, àquelas queprevaleceram.

Jakob Böhme é um destes pensadores que indubitavelmentepesou na balança histórica da formação do espírito moderno,seja pela sua atuação no campo da filosofia, exaltando oestudo da natureza, seja pela sua atuação no campo dateologia, apresentando uma concepção filosófico-mística deDeus em confronto com a dogmática estabelecida por Luteroe dando importantes passos para conciliar o determinismoprotestante com a noção de liberdade individual. Taltendência para o pensamento sintético e o fato de ter escritoem alemão lhe garantiram o reconhecimento e muitas vezes otítulo de primeiro filósofo teutônico.

O sapateiro de Görlitz, entretanto, jamais pretendeu elaborarum sistema de ciência, filosofia ou teologia, tendo sidoarrastado a este ministério por força de suas visões místicasespontâneas iniciadas pouco após o término de seuaprendizado na guilda dos sapateiros e que culminaramnuma invocação para o início imediato de seu ministériocomo escritor, em 1610. A primeira destas visões se deu naforma de um homem que posteriormente Böhme identificariacomo um anjo, a lhe profetizar a sua missão. Eis a descriçãodo místico e amigo Franckenberg acerca desta primeirarevelação de Böhme:

Enquanto ele dava conta de fechar a loja após a últimaencomenda, ouviu um homem chamá-lo pelo seu nome debatismo, o que ninguém ali deveria saber. Encarou o homemde porte vistoso e olhos brilhantes, que lhe disse: Jacob, vocêé pequeno, mas será grande e tornar-se-á uma pessoa e umhomem totalmente distinto, de modo que o mundo seespantará contigo! Em vista disso seja piedoso, tema a Deus ehonre a Sua palavra; de resto leia sempre a sagradaescritura, de onde terás consolo e orientação, pois você terá

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de sofrer muita miséria e desolação, mas tem confiança efirmeza, porque tu és amado de Deus e ele te abençoa! Ohomem desapareceu das vistas de Jacob, mas ele jamais seesqueceu de sua feição ou de seu aviso...

Terminada a sua aprendizagem de sapateiro, aos 25 anos, eleteve outra visão: Foi conduzido de Görlitz ao centro danatureza, de onde vislumbrou o móvel do mundo e encontroumuitos amigos e seres simpáticos desconhecidos.[1] *

Böhme não era douto, senão de suas intuiçõesoriginais. Mas apesar disto, não era tampouco um ignorante.Conhecia muito bem a Bíblia e leu Paracelso, Schwenkenfelde Weigel. O diferencial dele em relação à mística, o que faz desua doutrina uma teosofia, é o fato de que ele não foge domundo, vendo nele, ao contrário a “carne de Deus.”[2]

O transporte místico de Böhme ao “centro da natureza”é fenômeno incontroverso na literatura religiosa. Paulo parecetê-lo experimentado (Segunda aos Coríntios: 12), Plotinoescreveu um extenso tratado sobre como atingir o transportemístico, santos de várias religiões o relatam, e Swedenborgafirmava obtê-lo sem grande esforço. Todos estesprivilegiados garantem que a união mística transformaradicalmente a compreensão que se tem da realidade. Mas oque mais chama atenção no relato de Böhme é o terencontrado muitos seres amigos e simpáticos, emboradesconhecidos.

Este relato é interessante por estar livre dainterpretação simbólica que os santos católicos geralmenteempreendem através dos arquétipos dos santos e anjos, e quealguns místicos protestantes repetem em certa medida. Adescrição de Böhme, ao contrário de suas teorias, pareceestar purificada de simbolismo esotérico. Também é peculiaro fato de não haverem figuras conhecidas, sem que issoimpedisse a automática identificação, por simpatia, com estes

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seres amigos. A memória do inconsciente profundo,responsável pelos registros emotivos, ou o simples processode sintonia lhe conduz a esta conclusão que o entendimentonão sabe discernir analiticamente. Não é este o fenômeno devisualizar a fisionomia de um completo estranho e nelereconhecer um amigo, ou o processo análogo pelo qual doisdesconhecidos “reconhecem-se” instantaneamente comoamantes?

A sensibilidade para este tipo de percepção é tão raraquanto bem aceita em linguagem científica, mas a literatura eo instinto popular desimpedido depõem a favor dela. Místicosfamosos como Dante e Kepler encontraram em sonho seusguias e patronos espirituais. Vergílio no caso do primeiro,Arquimedes no segundo. E em ambos os casos os ilustresescritores afirmam ter experimentado aquela tomada deconsciência que só o sonho ou a visão mediúnicaproporcionam, de ver-se alguém pela primeira vez e saberintimamente de quem se trata, e de que este é um amigo delonga data.

Mas voltando a Böhme, seu mérito está principalmentena forma como seguiu a risca a orientação recebida atravésde suas visões. A tradução para linguagem mundana destaexperiência de vislumbrar o fundamento de tudo é umafilosofia mística.

Para o sapateiro, todo ente é um universo completo em simesmo, e guarda a “mensagem” ou a “assinatura” de suasorigens. Assim, a pesquisa científica de qualquer elementonatural é autoconhecimento, e o autoconhecimento revela,por sua vez, as leis intrínsecas da natureza.

A mística de Böhme é um tratado especulativo sobreum elemento imponderável, a vontade, não um dizerassistemático e obscuro sobre algo desconhecido.Naturalmente que não se trata também de uma filosofiacrítica, pois o conhecimento da vontade divina é dado porrevelação imediata que, embora universalmente acessível,

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nem sempre está concretamente presente em todos osindivíduos. O ar de mistério desta filosofia provém daincapacidade de conceituar a vontade, mas ela é sempreperseguida por Böhme até os limites da cognoscibilidade.

Na sequência de seus seguidores, como Leibniz (emparte), Goethe e o Idealismo, a vontade torna-se a matéria-prima do mundo, o intelecto é a ordem que estrutura estavontade em inúmeras formas e assim a mística assume oduplo papel de reconhecimento da assinatura de Deus emtudo (processo intelectual idealista) e escolha pelo essencial,liberdade de ser real (processo voluntarista místico). Assimdescreve ele a liberdade da vontade:

Mas isso deves saber, que no regimento da tua alma tu és osenhor de ti mesmo; não se levanta nenhum fogo a partir docírculo do teu corpo e espírito, tu o despertas por ti mesmo.Verdadeiro é isto, todos os teus espíritos fluem para ti e seelevam de ti; e na liberdade um espírito tem mais força em tido que outros.

Se uma fonte do espírito se eleva, isto não está oculto à alma:Ela pode imediatamente acordar as outras fontes do espírito,que se opõem ao fogo insurgente, e podem apagá-lo. [3]

O que ele chama de espíritos são os ânimos da alma.Nenhum deles se levanta sem que o indivíduo o saiba. Não hácomo se esquivar da responsabilidade sobre o ânimo, que é ofluxo inconsciente da vontade, pois nós não apenas oidentificamos, como podemos usar outro ânimo conscientecontra aquele que não nos convém. É a mais pura psicologiaanalítica, não espantando que Jung fosse um admirador dalinguagem alquímica.

Os ânimos se levantam sem aviso, pois são muitos emuitas são as suas causas. Motivos corpóreos, atávicos,vícios, memórias conscientes ou não. Mas o espírito podedespertar de seu estado passional, em que os ânimos vem e

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vão sem controle, para o estado “vivo”, em que o ânimo écriado ou modelado conforme o esforço e buscando certosfins.

Este despertamento é mais propriamente um renascimento,na linguagem dos místicos, e o seu outro nome é fé. A fé nãoé, portanto, uma crença em conteúdos dogmáticos ouhistóricos, podendo-se inclusive submeter estes à crítica. Elaresume-se numa transformação do caráter, numa decisão porassumir o controle da vida, ou melhor dizendo, dos conteúdosemotivos e volitivos da alma, direcionando-os com zelo edevoção. Devotamento, aliás, é a palavra chave para a féverdadeira, pois se ela não depende da crença em dogmas,alinhando-se antes como estado existencial, a sua relaçãocom o divino deixa de ser teórica para ser vital. A fé viva éuma postura de doação, ato livre de oferta das forças,pensamentos, sentimentos e ações do indivíduo.

A fé, ou renascimento, como tal exige muito mais doque uma adesão à doutrina Cristã (ou possivelmente outrareligião), senão uma completa e voluntária transformaçãoíntima, que não se resolve num instante, precisando sersustentada com lutas e sacrifício a longo prazo. Böhme está,assim, na linha dos pietistas que iniciaram um processocolossal de revisão do Protestantismo. Em oposição à fé quesalva sem obras, e que já naquele primeiro século pós-Reforma produziu uma certa complacência moral, elespregavam a necessidade da reforma íntima, a importância dolivre-arbítrio e da luta constante contra o mal moral.

Esta luta da vontade consigo mesma pelo controle doseu ânimo, dos seus sentimentos, é dificultada pelos hábitosancestrais do homem, já que ele esteve quase desde sempreentregue à dissolução e dispersão provocada pelas paixões.As paixões em si não possuem tanta forca, mas elas geramimagens que as estimulam ainda mais. No animal as paixõessão limitadas à necessidade e sua satisfação, mas no homem,como a alma quer satisfazer suas necessidades com mais

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urgência do que no reino animal, criam-se imagens, desejos,que estimulam a paixão para muito além de sua forçanatural. A imagem é o estado normal da mente humana,desacostumada a reflexão profunda, à disciplina e educaçãodos sentimentos e pensamentos, e assim a mente estáconstantemente tomada por imagens que estimulam asensualidade, a violência, o orgulho, a ganância, o ócio, eassim por diante.

A imagem possui um imenso poder, pois além de a menteestar mais habituada a ela do que ao pensamento livre,imparcial e regrado, e de ela estar já perfeita esimbioticamente associada a energia emocional que querestimular, a sua afluência à mente é ininterrupta, pois amente entende que precisa ocupar-se sempre de algo,evitando com isto o entorpecimento da vida. O mecanismonatural e salutar que dificulta a fixação de idéias estimulandoa troca emocional e a dinâmica mental torna-se empecilho aomovimento posterior de focalização do espírito e educaçãosentimental, mas toda passagem bio-psicológica para umnível superior é marcada pelo confronto entre o velho,estabelecido, e o novo, que precisa estabelecer-se comesforço.

As duas fontes de orientação do espírito, razão evontade/sentimento, conduzem a Deus. A primeira revela emtudo a assinatura do Criador, e persuade o homem pelainteligência a adotar o bom caminho e a conhecer o livro danatureza, autobiografia e romance de Deus. A segunda revelano interior do homem o poder de Deus, como conhecimentointuitivo e imediato do “fogo divino” que há em tudo. Se estepoder estiver passivo, será regido pelos desejos de prazer epoder em suas múltiplas variações. O homem pode,entretanto, tomar-se a si mesmo a partir do uso ativo destemesmo poder, deixando de ser escravo das imagensproduzidas pelas paixões, e emergindo do caos e doturbilhonamento para a ascensão gloriosa de seu ser como

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vontade individual, focada na ação e na criação, àsemelhança de Deus.

*Todas traduções são nossas.

Bibliografia:

BÖHME, Jakob. Schriften Jakob Böhmes. Organizador, HansKanser. Leipzig: Im Insel, 1923.

BERDIAEFF, Nikolas. Jakob Boehme Mysterium Magnum:Études sur Jakob Böhme. Paris: Aubier, 1945.

________________________________________

[1] Abraham von FRANCKENBERG. LebensbeschreibungJakob Böhmes.Schriften Jakob Böhmes (S. J. B.) Pg. 24-25.

[2] Nikolas BERDIAEFF. Études sur Jakob Böhme. Pg. 7.

[3] Jakob BÖHME. Aurora. S. J. B. Pg. 156-157.

Carta ao Materialismo

É a filosofia materialista a causa do consumismo, dohedonismo e de uma atitude existencial pautada nasuperficialidade? Esta a pergunta que exige resposta, emvista do recente artigo “Materialismo é Consumismo?”, deDaniel Alves da Silva Lopes Diniz, publicado no sitewww.abiblioteca.webs.com sobre a posição Espírita acerca dafilosofia materialista. Escrevi ao site pedindo um direito de

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resposta, e fui atendido positivamente, confirmando minhaimpressão inicial de tratar-se de um espaço de debate ondese destacam a civilidade e a probidade.

Antes de qualquer pormenor gostaríamos de afirmarenfaticamente: o materialismo não tem ligação necessáriacom o consumismo, a falta de ideais e valores, ou com oautoritarismo dogmático; mas esta relação é possível efrequente, aumentando na proporção direta em que o seuproponente possua mais fervor doutrinário e menossobriedade filosófica. O mesmo se pode dizer da religião emgeral; sua relação com a superstição, o obscurantismo e omoralismo pedante não é obrigatória, mas lamentavelmenterotineira.

Ao apresentarmos uma forma de pensamento énecessário estabelecer o ponto de vista segundo o qual se ajulga. É o da teoria pura? Então cabe discutir se há faláciasenvolvidas, quais são as premissas e axiomas a partir dosquais se desenvolvem os argumentos. É o da manifestaçãosocial, na forma de credo ou doutrina? Então nos cabediscutir as consequências desta doutrina para a vida prática.São esferas distintas onde cabem críticas igualmenteindependentes.

No artigo publicado por este site, pareceu-me haveruma correta distinção entre a crítica filosófica doMaterialismo, apresentada por mim no livro Genealogia doEspírito, e a crítica ao materialismo como movimento social eformador de padrões de comportamento, feita por SuelySchubert em seu livro Mentes interligadas e a Lei de Atração.Mas mesmo tratando-se de recortes, tanto de meu textoquanto daquele referente à autora, é digno de nota o fato de oMaterialismo não ser apresentado de forma jocosa. E a máimpressão que o segmento possa provocar não me parecejustificada diante dos textos na íntegra. A título deesclarecimento, portanto, confirmo o tom condenatório dostrechos destacados, sem que com isso admita, no todo das

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obras, qualquer discriminação ou condenação doMaterialismo.

Prefiro, de toda maneira, falar somente sobre o escritodo qual sou autor e pelo qual sou responsável, pois somenteem relação a ele posso proferir um juízo definitivo. EmGenealogia do Espírito não se pode encontrar uma passagemque discrimine o Materialismo, ou qualquer outra doutrina.Isso seria contrário aos fundamentos basilares doEspiritismo, que pregam o respeito a todas as crençassinceras.

Isso não significa que eu me abstenha da crítica. Euas tenho, aliás, em quantidade, como também as tenho paracom diversas religiões, ideologias políticas e idéiasindependentes, o que inclui o próprio Espiritismo; e estouconvencido de que a crítica é o nosso instrumento mais eficazde aproximação, desde que tenha sempre um cunhoconstrutivo. Igualmente crítico é o referido artigo“Materialismo é consumismo?”, mas a crítica severa que eleimpõe aos textos analisados e ao Espiritismo enquanto tal é,não obstante, respeitosa e civilizada. O que não consideroapropriado em nenhuma circunstância é o desprezo pelas e acondenação das idéias alheias, e isso jamais fizconscientemente.

Minhas ressalvas filosóficas quanto ao Materialismose resumem no fato de que ele se cristalizou como doutrinadogmática, especialmente na associação com o Cientificismoe o Ceticismo dogmáticos. Este é um acontecimentoideológico que em nada depõe contra o Materialismo críticode pensadores conscientes e moderados como HerbertSpencer e Carl Sagan. O Socialismo igualmente desenvolveu-se como ideologia dogmática em sua forma marxista,pregando uma distinção de classes sociais, uma boa e outramaléfica, à semelhança de um racismo transferido para aesfera social. Isto não significa, também, que devamoscondenar o Socialismo como filosofia, conforme foi proposto

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com muita correção e tolerância pelos filósofos de Frankfurt,ou pelos espiritualistas franceses da era pré-Marx. Oproblema todo está em se pregar aquilo que não se faz. OMaterialismo é uma doutrina, como o Espiritismo, oSocialismo, o Budismo, o Catolicismo e até mesmo oCeticismo, enquanto este último tem uma forma normativa epersuasiva; e toda doutrina é construída pela razão humana,limitada pelas nossas carências e condicionamentos.Nenhuma doutrina teórica pode afirmar-se na posse daverdade, em detrimento de outras elaborações que ainterpretam de diferente maneira. Todas representamesforços humanos na busca pela verdade; são, em termos defilosofia da ciência, especulação.

Qual é a origem do Materialismo? É a mente humanaelaborando uma concepção de mundo a partir de suaexperiência, inclinação pessoal e vontade. Qual é a origem doEspiritismo? Exatamente a mesma; só mudam a experiência,a inclinação pessoal e a vontade, que direcionadas paraoutras vivências e interesses justificam outra doutrina. Qualé então o problema com o Materialismo? É o fato de elecomumente negar esta origem na mente humana, comoproposta interpretativada realidade, e afirmar-se, aocontrário, na posse de prerrogativas especiais, geralmentebaseadas no respaldo da ciência. A ciência, contudo, não ématerialista, senão neutra e imparcial, independente dadoutrina filosófica que queira figurar o mundo comopuramente material ou povoado de espíritos. Ao tentarem seapropriar do método científico como se fosse este um produtoda filosofia materialista, os materialistas cometem um crimecontra a ciência e contra sua própria doutrina, que perde adignidade filosófica de que goza por direito como umaproposta racional de interpretação do mundo.

Assim pervertida, a doutrina materialista seassemelha à instituição da Igreja, que ao monopolizar ainterpretação da revelação bíblica, o único acesso a verdadereconhecido na Era Medieval, condenava à marginalidade

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todas as demais idéias. Mas não é preciso que se procedadesta forma. As religiões podem respeitar-se no campo dainterpretação das Escrituras, reconhecendo-se limitadas aocampo da proposição de teorias religiosas. O Materialismoigualmente pode conviver com outras filosofias que busqueminterpretar os dados da ciência, ao invés de condicioná-los aoseu esquema doutrinário. A este Materialismo que reconheçaa possibilidade de uma doutrina filosófica alternativa, mesmoque a considere pior do que ele mesmo, só poderíamos renderlouvores. Ao Materialismo que execra e espezinha aexperiência pessoal de fé e sentido das demais doutrinas, queacredita-se o intermediador oficial entre ciência e filosofia, talqual a Igreja atribuía-se a exclusividade da interpretaçãobíblica e da intermediação entre Céus e Terra, verdade eteoria, contra este têm de se revoltar todas as pessoasintelectualmente honestas.

O que fazer quando as sumidades e as figuras maisrespeitáveis do Materialismo atual, como Richard Dawkins,adotam exatamente a postura fundamentalista e dogmáticade condenar “com respaldo da ciência” outras filosofias quenão as suas? E o que pensar quando os partidários doMaterialismo aderem em massa a este tipo de ditaduraideológica?

Estamos no século XXI! Os embates entre filosofiacrítica e ideologia já foram travados. A ciência já desceu deseu pedestal positivista para o papel de formuladora falível dehipóteses a serem confrontadas com a experiência (Popper).Não é mais cabível o materialismo ideológico, o único que mepermito criticar. Nem se justificam mais as idéias retrógadasde que a arqueologia desmente a Bíblia (relato essencialmentesimbólico e desde sempre desprovido de função científica), deque o darwinismo comprova a inexistência de Deus ou deforças vitais que possam atuar em paralelo com o processo deseleção natural, de que o Big Bang foi provocado pelo acaso...

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As teorias científicas versam sobre nossa experiência sobre omundo, não sobre questões filosóficas de por que ou para queele funciona desta ou daquela forma. As doutrinas filosóficas,por outro lado, têm o direito e o dever de elaborar respostasespeculativas para aquelas e outras questões que extrapolamas possibilidades de observação. E neste âmbito todas aspropostas devem ser respeitadas e criticadas com base emsua lógica interna e adequação à experiência. Jamais podeuma doutrina apropriar-se da ciência, ou da revelaçãoreligiosa, ou de qualquer outra esfera de conhecimento, parasustentar uma autoridade inquestionável em detrimento deoutras. Mas todas as doutrinas, infelizmente, o fazem, pois amanutenção da postura crítica é um esforço constante edesgastante demais para a maioria dos partidários dequalquer uma delas. Devemos temer o olvido e o relaxamentocrítico por parte de qualquer doutrina, mas especialmentequando ela está culturalmente associada a instituições depoder político ou um programa cultural reconhecido comoforo privilegiado de julgamento da verdade. Ocorre de oMaterialismo ser a doutrina especulativa mais próxima, namentalidade geral, da ciência, que é o nosso foro privilegiadode julgamento na Era Moderna. Somente por isso gera-me elemais desconforto do que outras doutrinas especulativasdesprovidas de prerrogativas especiais.

Minha opinião sobre os materialistas? Sãorepresentantes de uma doutrina racional e sóbria, dedicadosao progresso do saber, mas constantemente ameaçados pelatentação dogmática; e isto é reforçado pela crença geral denossos tempos de que a ciência é materialista, assim como jáfoi dominante a crença de que o Cristianismo fosse católico.O materialista não é per si desprovido de valores morais, masestá mais sujeito ao desespero existencial, ao niilismo e aocinismo do que pessoas religiosas, já que crença numaobjetividade moral imprime nos últimos uma forte sensaçãode responsabilidade diante de um juiz absoluto. Contra todosestes revezes deve e pode conscientizar-se e preservar-se.

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Acredito sinceramente ser possível defender aconvicção espírita e empreender crítica ao materialismo, namedida em que temos o direito de expor de modoargumentativo a nossa posição, nossos agrados e desagradospor estas ou aquelas idéias. Esperamos receber críticassemelhantes dos materialistas, uma vez que, na condição debuscadores da verdade, tenham interesse em nos esclarecerquanto ao seu ponto de vista, raciocínios e vivências. A defesade nossos pontos de vista e a avaliação crítica dasperspectivas alheias não implica, contudo, que não possamosnos valorizar mutuamente, aproveitando os esforços coletivosrumo ao progresso do saber.

Psicologia: a ciência da alma.

Embora a psicologia moderna seja uma ciência com método eobjetivos próprios, sua fundamentação doutrinária requerainda uma boa dose de filosofia, o que infelizmente só éadmitido por uma parte dos grandes sistematizadores dapsicologia. Toda doutrina, as ciências incluídas, pressupõemum ponto de partida filosófico que lhe define a validade. Nasciências naturais este papel é desempenhado, geralmente,por premissas positivistas genéricas, ou, mais recentemente,pela filosofia da ciência enquanto disciplina específica. Jácom as ciências humanas, por outro lado, pode-se observaruma discussão qualificada com a filosofia, mas ainda assimhá distinções entre os pensadores que confessam estaherança, como Jung em relação a Kant e Goethe, e os quenão a mencionam, como Freud em relação a Schopenhauer eoutros românticos.

De qualquer modo interessa-nos sobremaneira a relaçãoentre psicologia e filosofia, já que ambas se completam nadescrição e análise da subjetividade humana. Uma

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predominantemente debruçada sobre a manifestaçãoempírica da alma em sua economia vital, a outra maisorientada para a especulação sobre as estruturas invariáveisdo espírito.

Quem primeiramente empreendeu uma unificação relevantedestas abordagens foi o filósofo e médico estóico Posidônio(135 a.C. – 51 d. C.), cuja obra foi lamentavelmente perdida,restando dela apenas citações e fragmentos reunidos poroutros autores. Mesmo que seu nome não tenha alcançadogrande destaque no mundo antigo, sendo conhecidobasicamente pelos estóicos e investigadores da natureza, seuimpacto profundo sobre a medicina de Galeno e a filosofia deCícero e Sêneca tornou populares as suas idéias centrais.

Posidônio

Posidônio se confrontou com os dois grandes psicólogos desua época, Epicuro, representante das paixões: prazer epoder, e Crísipo, defensor da tese de que todas as açõeshumanas resumem deliberações racionais. Posidônio pareciachocado com o fato de ambos os grandes filósofos seremincapazes de entender o lado oposto da questão, eestabeleceu uma síntese em sua doutrina, na forma das trêsafinidades humanas, poder, prazer e razão. As primeirascorresponderiam ao aspecto animal da alma, a última aoaspecto espiritual e divino. Nas palavras do próprioPosidônio: Algumas pessoas equivocam-se ao pensar queaquilo que pertence aos poderes irracionais da alma, comoseus fins naturais, são fins naturais sem qualificação; o queestes não apreendem é que prazer e poder em detrimento dopróximo é a meta do aspecto animal da alma, enquanto asabedoria, bem como tudo o que é bom e moral, são os finsdo aspecto divino e racional.” (Fi6iEK)[1]

Esta hierarquia, no entanto, implicava o governo darazão sobre as volições, não um desprezo destas últimas, sem

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as quais a vida perderia toda a sua concretude. O mérito dePosidônio está em não apenas reconhecer a existência daspaixões, mas reconhecê-las como forças positivas (pois, paraos estóicos, tudo o que é natural é correto e bom). Como emPlatão ou Aristóteles, bem e mau, num sentido moral, nãosão categorias relacionadas às paixões, e sim à razão. Aspaixões podem ser boas ou más na ausência da razão, e sãosempre boas na sua presença. Posidônio evoca a metáforaplatônica da alma como uma biga puxada por dois cavalos,prazer e poder, e conduzida pelo cocheiro, a razão. Sem ocondutor ela estaria desgovernada e perderia seu objetivo;sem os cavalos ela perderia sua força motriz, ficando inerte einútil.

O ponto complexo desta dinâmica psicológica é o fatode que, para Posidônio, a razão tem uma influência mínimano estímulo ou repressão das paixões. Ela tem grande poderde compreensão, mas pouco poder para disciplinar a paixão.Desta forma, muitas vezes os cavalos tentam mudar a direçãoimposta pelo condutor, complicando a viagem.

Este conflito é provocado por dois motivos: o primeiro,correspondente ao erro de Crísipo, é desconsiderar ainfluência das paixões sobre a própria deliberação racional. Arazão escolhe, mas é auxiliada na escolha pelos interessessemi-independentes das paixões. E o segundo corresponde aoerro de Epicuro em desconsiderar o poder da razão em elegerfins capazes de satisfazer as paixões. Se isso fosse verdade sórestaria reprimir as paixões com um racionalismo artificial,ou entregar-se a elas; ou convento ou carnaval. Com istoPosidônio atingiu uma compreensão avançada daconstituição psicológica humana e de seus desdobramentosna vida prática, percebendo que os elementos ou forças damente são ao mesmo tempo distintos e comunicantes. Emoutras palavras, a razão podia elaborar justificações parainteresses das paixões, e as paixões poderiam ter “interessesespirituais”, educados pelo consórcio com a razão.

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Para moralizar é preciso transformar a emoção tantoquanto a razão. Cada pessoa carrega em si todas as forçasque nela geram conflitos e são responsáveis pelo bem ou mal,de modo que o indivíduo é responsável pelas emoções quedeixa despertar em si ou descontrolar no contato com oestímulo externo. Se a emoção, por outro lado, estiver emcontato íntimo com a inteligência, não será por meraargumentação que a alma se inclinará para o bom caminho,senão antes porque a inteligência soube falar à emoção emsua linguagem, despertando nela a consciência de que suaprópria realização depende de tal ou qual fim. É inútil tentaragredir ou olvidar a emoção no esforço moralizador. O que seobterá com isso, repetimos é uma adesão artificial à lei moral,que termina com revolta contra esta lei imposta. Conventoseguido de carnaval, se a razão reprimiu o prazer, ou pior,moralismo ditatorial, se a razão corrompeu a vontade depoder.

Um quadro simbólico e simplificado do comportamentohumano poderia ter este formato.

Vontade de prazer Vontade de poder

Sob opressão do intelecto. Culpa, repressão.Moralismo, vaidade.

Sem intelecto. Hedonismo, vício. Violência, medo.

Em consórcio harmônico com o intelecto. (estoicismo)Alegria. Segurança, coragem.

O esquema dispensa maiores explicações. Há versõesintrovertidas e extrovertidas de cada disfunção. Culpaquando o intelecto quer abafar o prazer, mas não o logra,repressão quando é bem sucedido; moralismo quando se

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logra abafar a vontade de poder, vaidade quando ainteligência a estimula. E assim por diante.

Posidônio diz, segundo Galeno, que devemos silogisar daseguinte maneira: “Coisas que não dão a mente grandeza deespírito, confiança inabalável ou paz de espírito não são bens.Riqueza, saúde e semelhantes não produzem estascaracterísticas mentais. Portanto não são bens.” ( E maistarde Posidônio acrescenta que o que nos conduz a estascoisas é o acaso, e não há bem proveniente da arbitrariedade.O bem é sempre algo exercido, pois assim a sua realizaçãodepende exclusivamente de quem o persegue; as coisascasuais, por outro lado, são aquelas que não podemosrealizar por nossa forca apenas, logo são exteriores.

Devemos votar-lhes apenas um interesse moderadodespreocupado, já que não nos são nem inerentes, nemconstantes. Tudo isso pode ser facilmente provado pela razão.Quão ridículo é aquele que persegue a riqueza ou a saúdesem os obter, e não percebe que a sua posse dependegrandemente de sorte, destino e condições do ambiente. Quãoigualmente ridículo não é aquele que possui riqueza e poder ese acha o único responsável pelo seu gozo, orgulhando-se desua pretensa capacidade, até que um vento do destino tudolhe arranca. Estes são inclusive piores do que os primeiros,porque enquanto fruem de bem-estar acham-se melhores queos demais. O homem racional não se deixa perturbar nempelo orgulho, quando frui de conforto, nem pela lamentação,quando é dele privado. Se esforça por obter prazer e poder,mas sem desesperar-se ou acomodar-se por eles. Sabendo dacasualidade das condições materiais, tenta espiritualizar suabusca por prazer e poder. Logo o seu prazer se torna o deleiteda alma, e o poder se direciona do exterior para o interior,para o governo da própria vida.

Este pensamento teve enorme impacto sobre o estoicismo,modificando significativamente o seu tratamento dapsicologia e espraiando-se daí para o cristianismo nascente.

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Perdeu, entretanto, sua riqueza de detalhes, na medida emque sua obra não pode ser conservada, o que logo extinguiu ointeresse por um estudo aprofundado de suas teorias.

O mesmo esquema parece só ter surgido dois mil anos depoiscom a psicologia junguiana, que acomoda as distintas fontesde energia da alma, o prazer identificado por Freud e avontade de poder identificada por Adler.[2] A estereconhecimento de uma dupla modulação da energia psíquicao sábio suíço acrescenta uma significativa síntese entre estasforças imanentes da alma e a razão, reconhecidamenteatravés de Kant e de Goethe,[3] que lhe permitem elaborar oconceito de símbolo, onde a razão não está mais isolada,senão perfeitamente acomodada às necessidades e interessesanímicos.

Com excepcional sensibilidade para os marcos de fronteiraentre as distintas partições da alma, sem, contudo, permitirque as diferenciações se traduzissem em uma insípida rigideztécnica, o psicólogo mais completo do século XX apresenta oquadro vivo da dinâmica psíquica, com ampla valorização dasexpressões religiosas e morais, que até então não haviam sidojustamente reconhecidas em sua relevante função de sentidoe nas peculiaridades de sua experiência.

Embasados nesta excelência que nos dispensamos depormenorizar, os numerosos estudos comparativos entre apsicologia de Jung e o Espiritismo, ressaltando-seindubitavelmente a obra de Joanna de Ângelis, revelam-sepertinentes e apreciáveis no que tange a formulação de umafutura e mais ampla ciência da alma.

De nossa parte observamos nas obras desta autora umafantástica sensibilidade para as nuanças psicológicas quenão necessita estar vestida sob um tecnicismo aparente, , aocontrário, experiência e ciência abrangentes dos fenômenosmais variados da vida psíquica. Aos críticos da linhapsicológica de Joanna de Ângelis, alguns dos quais alegamque a obra não atinge o objetivo de estabelecer uma

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psicologia espírita, escapam as prerrogativas e premissaslucidamente declaradas nas entrelinhas do texto, as quaisinvertem de maneira satisfatória estas mesmas críticas.

Esperam os polemistas que Joanna parta de Jung para oEspiritismo, quando ela insiste em fazer o inverso,escapando, assim, de aplicar ao Espiritismo uma ciênciacujos fundamentos conceituais são extremamente vagos. Nãoé preciso grande conhecimento sobre o assunto parareconhecer que as dificuldades quanto a credibilidade deJung estão na fundamentação de sua análise, o queigualmente se aplica a Freud. Os resultados saltam aos olhos,a perspicácia revela assombrosa intuição e poder deobservação, mas o ponto de partida carece de umajustificação filosófica exaustiva, comprometendo tanto asolidez teórica. Com o Espiritismo ocorre o oposto; já que apsicologia é inteiramente desdobrada de uma bemestabelecida filosofia prévia. Na ordem teórica seguem-se ajustificação da validade do conhecimento espírita em geral, acosmologia e o estudo do sistema da natureza em seusdetalhes (incluindo a natureza da alma humana) e só entãochega-se ao interesse nos detalhes da vida prática. Apsicologia está, desta forma, amplamente escorada sobreuma visão de mundo onde o homem encontra-se elucidadocomo ser espiritual, radicado na carne e a ela conectado porum corpo energético. Este ser está contextualizado nummundo que possui fundamento moral objetivo, sendo por issoafetado por choques de realidade no contato com valoresconcretos que traz em seu íntimo, e possui um histórico devidas pretéritas cujos efeitos podem ser rastreados paracritério de esclarecimento de tendências e situações críticasdo presente. Todos estes elementos estão ausentes namoderna psicologia atual que se vê em conflito com a visão demundo materialista da ciência a qual quer pertencer. Porisso, mesmo ao negar esta concepção de mundo, uma teoriacomo a de Jung acaba por abdicar da fundamentação por elamesma exigida, abstendo-se de afirmar qualquer coisa sobre

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sua proveniência, condenando-se a posição de sistemaexcelente, mas cujas bases precisam ser lançadas como quedo nada, e a critério de confiança.

Até onde podemos ajuizar, o que não significa queassim seja realmente, Joanna de Ângelis está a lançar diantede nossos olhos um projeto psicológico inteiramentefundamentado pela metafísica e cosmologia espíritas, e istohá décadas sucessivas, sem que alguém se dignasse desecundá-la no esforço de sistematizá-lo em linguagemacadêmica; os terapeutas e investigadores espíritas parecemacolher com muito mais satisfação as precárias e quasedogmáticas formulações da psicanálise ou da psicologiaanalítica ao invés de assumirem uma psicologia integrada aum sistema de conhecimento plenamente fundamentado, eque lhes está à disposição. Será que o fazem por imaginarque a disciplina acadêmica seja mais criteriosa do que adoutrina não acadêmica do Espiritismo? Ou apenas porque alinguagem destas escolas soa melhor em público, enquanto alinguagem do Espiritismo fica melhor restrita ao âmbitoprivado? Seja qual for o motivo, uma coisa é certa: do pontode vista filosófico o Espiritismo permite a análiseintrospectiva de acordo com sua visão de mundo, a maioriadas correntes de pensamento contemporâneo não o faz. Comisto elimina-se a primeira pergunta. A segunda deveriaigualmente descaracterizar-se, na medida em que as idéiasmais bem fundamentadas deveriam sempre soar melhor doque as vacilantes, em qualquer círculo social.

Bibliografia:

JUNG, Carl G. A dinâmica do inconsciente. Petrópolis: Vozes,1984.

JUNG, Carl G. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 1997.

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JUNG, Carl G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes,1980.

KIDD, I. G. Posidonius: III. The translation of the fragments.Cambridge: Cambridge University Press, 1999.

________________________________________

[1] KIDD. Posidonius: III. The translation of the fragments.Pg. 19.

[2] C. G. JUNG. Psicologia do inconsciente.

[3] O que nos parece implícito em A vida simbólica e Adinâmica do inconsciente.

O lugar do Espiritismo no pensamento brasileiro

Ao mesmo tempo em que se insere num contexto globalda história humana, o Espiritismo guarda também aparticularidade de uma profunda associação com a culturabrasileira. Historicamente não se pode desconsiderar o fatode ter ele prosperado no Brasil em proporções e efeitosimensamente maiores do que em outras terras.Filosoficamente deve haver também razões para isso. Emambos os casos, no entanto, estamos lidando com umalacuna constrangedora em termos de pesquisa.

Se já impressiona o fato de haver pouquíssimos estudosespíritas sobre a relação e situação de sua doutrina frente àfilosofia e religiosidade nacionais, quão mais impactante não

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é descobrir que o Espiritismo, elemento exótico para ageneralidade da cultura ocidental e que tanta influênciaexerce sobre a religiosidade e o pensamento brasileiros, nãopossui a mais rasteira menção nos tratados destinados aesgotar a genealogia cultural do país.

Na vasta obra de Antônio Paim, o mais excelentehistoriador do pensamento brasileiro, não há uma únicamenção aos filósofos espíritas, ou tampouco ao papel domovimento espírita na construção das raízes morais e noimaginário religioso do povo brasileiro. Também nos estudosantropológicos de Meira Penna, ilustríssimo pesquisador dacultura, só se encontram referências redutivas eestereotipadas da prática espírita, para não dizercondenações preconceituosas, prejudicando assim suaanálise final do espírito da nação. Estes são, apesar disto, ospensadores que rendem ainda algum respeito à religião,sendo por isso inapreciavelmente mais completos do que oshistoriadores e sociólogos que, por orientação ideológicamarxista, excluem logo de saída o elemento espiritual dacultura, ou condenam-no como dejeto cultural do arcaísmoportuguês e do primitivismo africano e ameríndio a serbrevemente superado.

Este desprezo pelo papel do Espiritismo comomovimento filosófico e força moralizadora da sociedadebrasileira é injustificável em face da generalidade da crençana reencarnação, que é estatisticamente maior do que emqualquer outra nação ocidental, do trâmite entre religiõesafro-brasileiras e catolicismo, muitas vezes mediado filosófica,teológica e socialmente pelo Espiritismo, em cujo quadrodoutrinário estão santos católicos e fenômenos animistaslado a lado, da função social destacada e em francadesproporção com o seu percentual na população, exercidaatravés de instituições de caridade e iniciativas comunitárias,e dos números expressivos do mercado editorial espírita,também discrepante com sua participação na população. Nasestatísticas atuais do IBGE os espíritas ocupam a primeira

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posição em anos de instrução, enquanto judeus eagnósticos/ateus disputam a segunda posição. É precisomais do que conveniência pessoal para ignorar dados comoestes e limitar-se a reproduzir o juízo herdado da Igreja ou daacademia de que tudo isso não passa de uma superstiçãomuito popular. Trata-se de uma transcrição da honestidadecientífica.

Por outro lado, não se pode culpar unicamente opesquisador que lança uma visão externa sobre o tema, se daprópria tradição não surgem respostas qualificadas a estetipo de atitude. Todo intérprete tem suas peculiaridades deestilo e interesse, quando não uma ideologia própria comagenda propagandística. É necessário, portanto, que osespíritas saiam de sua área de conforto junto à própriacomunidade e escrevam para o público leigo e/ou acadêmico.Enquanto esta função permanece até certo pontodiscriminada no seio do movimento espírita, ora taxada comodesperdício de energias, ora como perda de enfoque motivadapor orgulho e pretensões mundanas do fiel, é natural que osantologistas e enciclopedistas da cultura ignorem o que sópuderam conhecer indiretamente.

Para se ser ouvido em certos meios não basta que seseja por natureza apropriado à temática, ou gozar de umdireito conquistado pelo mérito no exercício das funções emquestão, mas é preciso também dominar a linguagem queaquele meio exige. O Espiritismo é um movimento filosóficorico e dinâmico por si mesmo, aqueles que a ele se dedicambem o sabem, mas ele tem falhado em dialogar com alinguagem filosófica corrente. Tem também uma vinculaçãoprofunda com a história do Brasil e com a formação daidentidade nacional, mas insiste em interpretar a si próprio ese apresentar como elemento transplantado da França, semum embate adequado com os elementos nativos quepermitiram a sua rápida difusão e sua permanência. Se oEspiritismo não aclara suas origens junto às figurasestabelecidas do pensamento brasileiro à época de sua

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chegada ao país, como esperar que estas mesmas figurastenham nele um ponto de identificação? Conquanto sejacomum às novas filosofias o ímpeto de se destacarem datradição como uma novidade revolucionária, é obrigatórioreconhecer que nenhuma novidade se estabelece sem que oterreno esteja previamente preparado por idéias semelhantes.Kardec o fez esplendidamente em relação à cultura francesa,mas o mesmo não foi até hoje empreendido a contento pelospensadores espíritas brasileiros.

O que gostaríamos de oferecer neste ensaio sãopequenas referenciais que auxiliem o culturalista brasileiro aenquadrar mais corretamente o Espiritismo, ou sirvam deestímulo ao pesquisador espírita/do Espiritismo naformulação de teses e coletâneas aptas a relacionar oEspiritismo ao quadro geral da cultura brasileira, comdestaque para a filosofia, mas apenas porque este é o campoonde nossas limitações pessoais são menos completas.

Primeiramente é forçoso assumir que o Espiritismoconta com poucos filósofos de profissão, ou estes não sededicaram minimamente a estabelecer ligações com atradição filosófica em geral. Muitas vezes os filósofos espíritaspartem de uma formação autodidata focada nas filosofiasfrancesa e antiga, talvez por um instinto mais ou menosconsciente de emulação de Kardec.

Até onde sabemos, os dois únicos escritores com formaçãoem filosofia a se dedicarem a este mister foram Carl du Prel,professor de Leipzig em fins do século XIX, e José HerculanoPires, professor de filosofia da USP nos anos 60 do séculopassado e membro do Instituto Brasileiro de Filosofia,também tendo atuado como professor de psicologia esociologia. O primeiro desenvolveu um aparato filosófico epsicológico muito elaborado a partir das obras de Kant,Schopenhauer e Fries, que era complementado por estudossobre fisiologia, hipnotismo e mesmerismo, tambémpopulares na Alemanha de fins do século XIX. A teoria de du

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Prel teve enorme influencia sobre Jung, que replicou aabordagem kantiana da psicologia, abrindo espaçosignificativo para uma ciência subjetiva do numinoso, oelemento de mistério intuído pelos limites do conhecimentohumano. O segundo tratou resumidamente de Descartes,Bergson e Heidegger, identificando nos dois primeiros umafundamentação da independência do espírito em relação amatéria, e reinterpretando o último de forma extremamenteoriginal. Para Herculano Pires, o pensamento ontológico deHeidegger na sua busca pelo modo de constituição do ser éuma descrição perfeita do espírito conforme apresentado peloEspiritismo. As limitações de Heidegger quanto à finitude daexistência humana são, para Herculano, perfeitamenteválidas, na medida em que ao ser humano só estejamdisponíveis as experiências desta vida, mas graças aofenômeno da mediunidade é possível estender de formacrítica o estudo fenomenológico da existência aos aspectosnão-corpóreos, mas ainda perfeitamente descritíveis pelaanalítica existencial. Em outras palavras, com afenomenologia mediúnica a existência extra-corpórea passa aser concreta, não abstrata.

Ainda é muito pouco, mas já é um começo para estudos queobjetivem o enquadramento da filosofia espírita emcomparação às linhas e escolas de maior renome.

Do ponto de vista da genealogia cultural brasileirabasta dizer que o Espiritismo tem ligação com todos osprincipais movimentos do período imperial. Por um lado bebeele fartamente da tradição espiritual agostiniana (Pascal,Fénelon, Lammenais e o próprio Agostinho são consideradosespíritos patronos da revelação espírita). Como produtofrancês, ao menos em certa medida, estava tambémperfeitamente integrado ao quadro da elite intelectualbrasileira, extremamente ligada à Paris. O Espiritismo podeainda ser referido ao ecletismo espiritualista do século XIX,

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com sua apologia à perfectibilidade humana, e sua tese geralde que todas as revelações guardam uma parte de verdade, etodos os movimentos históricos contribuem para a marcha doprogresso dos indivíduos e da sociedade. Por fim, oEspiritismo está desde o começo ligado ao positivismo, aoliberalismo e ao socialismo franceses, todos movimentoscapitais para a formação do pensamento brasileiro. Bastalembrar que eram espíritas assumidos o renomadoastrônomo Camille Flammarion e o escritor socialmenteengajado Victor Hugo.

Visão histórica e cultural do Espiritismo

Até aqui foram apresentados pequenos ensaios sobrereligiões e filosofias de diferentes povos, com destaque para aAntiguidade, objetivando responder as nossas própriasexigências traçadas no texto introdutório sobre a perspectivacrítica do Espiritismo. Reunimos algumas poucasinformações sobre assuntos diretamente ligados à abordagemculturalista e metafísica do Espiritismo, mas não apenasfaltam estudos específicos sobre o Espiritismo na África, naRússia, no xamanismo americano, australiano ou indonésio,como seria preciso um tratamento competente sobre os temasque bisonhamente apresentamos. Não obstante, nossoesforço principal era o de ilustrar o quão viáveis são estesestudos, e o quanto se poderia avançar em história e filosofiaespírita se levarmos a sério a sua pretensão deuniversalidade, não considerando-o um produto do séculoXVIII.

Por outro lado, e ao mesmo tempo, toda a teoriacientífica, paradigma filosófico e descoberta de fenômenos atéentão ignorados ou mal interpretados não apenas pode, masprecisa estender a sua validade para além de quaisquerlimites temporais ou geográficos. O Espiritismo o faz semesforço e com muita força de persuasão; diria até que o fazmelhor do que qualquer outra filosofia, na medida em que,

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sem excluir nenhum dos problemas e fenômenoscompreendidos nas demais, tem a vantagem de explicarrigorosamente um amplo espectro de outros problemas efenômenos patentes e até então sem o mínimo tratamentoconceitual.

Do ponto de vista teórico, ensaios sobre história dopensamento, filosofia ou religião comparada atestam deforma excepcional a abrangência e consistência de umadoutrina; e do ponto de vista prático este contatointerpretativo com outras tradições viabiliza a aproximação, acompreensão e a tolerância para com elas. Isso já é verdadeaté para as perspectivas reducionistas, que negam a base dasfilosofias ou religiões alheias por reduzi-las a um elementocomum. Com as teorias afirmativas, como é o caso doEspiritismo, este efeito é potencializado ao extremo, já que astradições alheias não são reduzidas segundo um elementocomum, mas integralmente afirmadas e valorizadas em seusvalores essenciais. As inúmeras leituras espíritas sobre oVelho e o Novo Testamento demonstram bem este caráterpositivo de uma teoria mais abrangente que explica mais semdesmentir as alegações do sistema anterior. Os santos eprofetas continuam santos aos olhos do Espiritismo, suasrevelações e experiências não são desmentidas, mascomplementadas. E como bem sabemos, o mesmo pode seraplicado ao Hinduísmo, Budismo, Taoísmo e ao Islamismo.

Um dos motivos principais de fazermos aqui uma pausapara esclarecimento está na impressão que o site possa tertransmitido, por nossa culpa, de que o propósito destacoletânea seja enciclopédico. Se isso fosse verdade nãoestaríamos oferecendo serviço algum, visto que todos osensaios aqui desenvolvidos não superam em detalhamento asenciclopédias virtuais mais vulgares e às quais hoje todostêm acesso, como a Wikipédia. Nosso objetivo não é de formaalgum apresentar uma enciclopédia da filosofia e da religião,ou sugerir que o leitor deva se ilustrar sobre todos estestemas a fim de fazer um estudo filosófico do Espiritismo. Ao

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contrário, nosso único propósito é demonstrar que, pela suaprópria natureza fenomenalista, racionalista e fraternalista,por sua combinação não sectária de ciência, filosofia ereligião, o Espiritismo pode ser “enxergado” em toda a parte,o que faz dele uma verdadeira e completa cosmovisão.

Outra questão relevante neste “balanço” do site até aquié a prioridade dos estudos sobre a Antiguidade. Um estimadoamigo que analisou estes ensaios nos chamou atenção para ofato de que alguns deles não são voltados nem para oEspiritismo, nem para a filosofia, o que em princípio fere aproposta temática deste site. Só nos resta anuircompletamente. Afinal o que o judaísmo arcaico ou a filosofiamilenar chinesa podem ter a ver com o Espiritismo? Nada! OEspiritismo, por outro lado, pode e deve ter a ver com asexperiências religiosas e teóricas mais antigas, pois é elequem pretende englobar as doutrinas isoladas e superar suascontradições num modelo mais abrangente. Não se podeesperar que tradições cuja intenção básica seja a debastarem-se a si mesmas dêem partida a iniciativasagregadoras. É ao Espiritismo que cabe ir de encontro a elas,pois é ele quem está constituído como proposta explicativa ecomplementadora.

Caso esta seja realmente uma necessidade oupretensão da doutrina espírita, ela não precisa se desgastarno estudo dos detalhes de uma história da filosofia ou umahistória da cultura. Basta-lhe demonstrar sua aplicabilidadeaos princípios gerais, e para isso nada é mais efetivo do queretornar à matriz de cada cultura e linha de pensamento. Selevantamos uma correspondência sólida entre o Espiritismo eas bases do pensamento indiano, por exemplo, não énecessário um estudo pormenorizado de inúmero autoresdesta tradição, pois as afirmações válidas para a matrizpodem ser generalizadas com alguns reparos às suasramificações.

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Na teoria interpretativa do Espiritismo parecem estarpressupostas duas teses fundamentais sobre a cultura: aprimeira se refere à universalidade da revelação espiritual emtodos os povos e épocas, o que é uma tese arrojada, maspossível de sustentar diante das similaridades entre crenças efilosofias religiosas; a segunda se refere à absolutidade docristianismo, ou seja, a capacidade do Cristianismo deabranger todas as outras crenças e filosofias ou ao menosapresentar uma equivalência satisfatória. Embora estas tesesnão sejam diretamente declaradas elas podem ser inferidasde tudo o que o Espiritismo prega no âmbito de sua históriada cultura. São paradigmáticas as palavras do Espírito deVerdade no sexto capítulo do Evangelho segundo oEspiritismo: “...reuni o bem esparso no seio da humanidade”.

Este posicionamento possui, como qualquer definição,um aspecto agregador e um aspecto segregador, pois oconceito mais abrangente precisa também separar edistinguir para não se confundir com uma afirmação vazia. Asua parte positiva é que, ao reconhecer o gérmen de verdadena essência de todas as filosofias humanas, reúne-as edignifica-as. A sua parte mais delicada e possivelmentedanosa é que a afirmação de um caráter especial doCristianismo pode dar a entender que as demais crenças efilosofias não passem de formas primitivas e/ou decadentesdele. Expurgar esta impressão é tarefa do Espiritismo bemcomo do Cristianismo, ao que são obrigados pela sua teoriaexplicativa abrangente, e esta tarefa só pode ser posta emprática através de uma atitude legitimadora diante dasdemais crenças e religiões.

É comum ouvirmos expressões de suposta tolerânciapor parte dos espíritas, discriminando sua própria doutrina atítulo de exemplo de humildade. Este comportamento não émais racional ou louvável do que o de considerar as demaisposições como estágios infantis da religião, correspondentesao espírito menos amadurecido dos que as professam. Não épreciso desvalorizar-se para valorizar os outros, nem negar

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sua própria virtude para agir com dignidade. Espiritismo eCristianismo podem com toda a segurança afirmarem a suaautoridade universal enquanto tomarem todos os sereshumanos por filhos de Deus, louvarem todos os santos,profetas e guias espirituais de outras religiões e posicionaremos praticantes dignos de outras crenças na dianteira dospraticantes indignos de sua própria. Com isto distinguem-se,no geral, de quase todas as outras doutrinas filosóficas ereligiosas, que junto a excelentes verdades guardam quaseinvariavelmente o sectarismo das idéias de origem puramentehumana.

A doutrina oficial do catolicismo e o seu escalão políticosediado no vaticano são um perfeito exemplo de quãopersonalista pode se tornar a religião. O próprio Cristianismonão sobreviveu à soberba da teologia exclusivista, dos rituaisespúrios e hierarquizados, da máquina econômica e políticada igreja romana. Que pensar de uma filosofia que ponha osseus adeptos no paraíso e os seus opositores no inferno; aosseus a verdade e aos demais o engano e a mentira? E pormais absurdo que seja não é assim que procede a maior partedas religiões sob a Terra?

É, portanto, perfeitamente razoável afirmar que oEspiritismo, ou outras doutrinas semelhantes, qualifica-se edistingue-se de outras crenças e filosofias pelo seu caráterprogressista, universalista e crítico. Enquanto o Espiritismotoma diversas referências católicas como Francisco de Assis eVicente de Paulo como modelos de perfeição humana, omesmo não se pode dizer da postura católica em relação aoEspiritismo, que desde o princípio direcionou-se para aassociação da prática espírita com a magia negra, a queimade livros no auto de fé de Barcelona e a discriminaçãoostensiva. Não há contradição em abraçar o universo da fécatólica num gesto conciliador e, ao mesmo tempo, condenara sua postura e estrutura obsoletas e anti-cristãs. Aliás,chega a ser uma redundância lógica pregar a tolerância erepudiar o partidarismo.

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É preciso enfrentar diretamente temas deste tipo paraevitar as ambigüidades no julgamento e a inconsequência deopiniões. A natureza do saber humano é progredir através dareformulação de teorias que nos ajudem a agrupar osdiferentes aspectos da vida, e estas teorias não nos oferecemnada se não puderem incluir de modo proveitoso as teoriasprévias. Não cabe aqui um verniz de tolerância politicamentecorreta que ao final se traduza em indiferença, pois se tudo éindiferente, igual ou dependente do gosto de cada um não háqualquer critério racional para efetuar um julgamento, eestamos confessando escolher com base em dogmas prévios.Uma vez que não o queremos mais, precisamos definirfronteiras e pontes claras entre as diversas estruturas depensamento.

A filosofia de Jesus

O Espiritismo tem na pessoa de Jesus o ideal e exemplo dedesenvolvimento máximo do espírito; as demaisdenominações cristãs o tem como Deus-Filho, pessoa daTrindade Divina; os estudiosos dedicados a uma análisehistórico-crítica do Novo Testamento, nem sempre movidospor compromissos de fé, tomam-no por seu papel social, nãoignorando, porém os seus dotes e capacidades singulares;islâmicos consideram-no um dos mais importantes profetas;budistas e hinduístas diversos já se pronunciaram sobre Elecomo sendo um grande iluminado, guru e mesmo um serdivino. De qualquer que seja a perspectiva adotada, seriapreciso desconsiderar completamente o relato dos Evangelhospara desprezar ou mesmo reduzir ao plano de pensadorcomum a figura de Jesus. Faz sentido, portanto, supor queum indivíduo tão universalmente admirado e respeitado pelo

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seu ensino, a ponto de influenciar sobremaneira a culturaocidental, com reflexos sobre outras, tenha uma filosofiaprópria.

Tratar da filosofia de Jesus, no entanto, continua a ser umtrabalho extremamente ingrato, porque paradoxalmente estecomplexo e inesgotável pensador é tido pela maior parte datradição filosófica como revelador religioso apenas, ao qualnão se aplicariam as categorias do discurso filosófico. Aindaque esta conclusão absurda tenha sido contestada porinúmeros nomes ilustres, a concepção vulgar, incluindo acultura acadêmica, repete os papéis estereotipados atribuídospelos teólogos mais ortodoxos, sejam os católicos ouprotestantes, de Cristo e dos apóstolos em seus papéisdogmáticos.

Estranhamente o pensador que orienta toda a ética,metafísica e psicologia do Ocidente, especialmente queridopelos racionalistas de todos os tempos, teve a suaprofundidade filosófica pervertida pelas disputas clericaisiniciadas pouco após a sua morte. E com isso não quero nemme referir aos pontos em que evidentemente Jesus possuiascendência absoluta sobre o pensamento humano, taiscomo a questão da imortalidade, a ética, a dignidadehumana, a teologia, o autoconhecimento, etc. Prefiro levantarum dos problemas mais graves da metafísica e ontologia,onde suas ideias tão frutíferas continuam a oferecerilimitados contributos, sem que sejam ainda reconhecidas.

Um daqueles pontos nos quais a razão parece estar emconflito consigo mesma, para reproduzir a feliz expressão deKant, é o conflito entre livre-arbítrio e determinismo. Questãoque deve a sua formatação moderna, senão a sua essência,aos problemas e soluções levantados pelo pensamento deJesus. Em nenhum outro pensador os dois elementos estãotão presentes, tão harmoniosamente unificados, de modo quese qualquer outra influencia tivesse sido determinante nestaquestão, a filosofia deveria ter pendido para um dos dois. Se

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estoicos ou epicuristas tivessem prevalecido na orientação datradição europeia, tenderíamos para o determinismo. Se oplatonismo ou o aristotelismo tivessem prevalecido, seríamosexcessivamente confiantes no nosso poder. A síntese de Jesusequilibrou de tal modo esta questão que o conflito passou aser, ou insolúvel ou marcado pela igualdade complementardas duas forças, correspondendo esta última variante ao quese produziu de mais elevado na filosofia e teologia humanas.

A defesa que Jesus faz do livre-arbítrio transcende todas ascategorias segundo as quais se havia julgado o poder dohomem, elevando-o às alturas da Divindade, fazendo dohomem até então visto como animal, ou na melhor dashipóteses cidadão, o herdeiro do Deus único e absoluto. É tãogrande a liberdade, na concepção de Jesus, que a fé dohomem pode transportar montanhas, e todas as forças desua alma estão sob o seu controle.

A fé, aliás, é exaltada sem qualquer restrição, sendo que“tudo o que for pedido com fé, será obtido”[1], e o rabi galileuatribuía as curas e milagres à fé dos requerentes, lembrando-lhes que “fora feito segundo a sua fé”[2]. Em nenhummomento Jesus diz aos discípulos que eles são incapazes derepetir os seus feitos por ausência de talento ou habilidade,mas garante-lhes, ao contrário, que nada lhes é impossível, eos repreende sempre por não terem a fé suficiente para talensejo.[3]

Quanto ao patrimônio íntimo Jesus inovava colocando todosos sentimentos e pensamentos sob a tutela da consciência.Enquanto a ética lidava até então com atos, Jesus ressalta aliberdade de consciência, estendendo a nossaresponsabilidade aos “pecados cometidos em pensamento”[4].Recomendando a vigilância, estava ele afirmando anecessidade de regrar as emoções e ideias. Transformando oamor em mandamento, ele contrariou completamente a ideiade um amor passional ou fruto de inclinação, gosto,tendência e lançou as bases ainda incompreendidas da

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reforma emocional. Ao impor o amor a Deus e ao próximocomo mandamento maior, assegura-nos de que qualquerpessoa tem o governo de seus sentimentos, sendoresponsável pela amargura, aridez ou floração interior.Pregou a verdade que liberta, e afirmou que os homensandavam até então como escravos de seus pecados[5],estando libertos a partir de então pela revelação de que oespírito é senhor de seu destino, a par de todos os hábitos,costumes, instintos, atavismos e compromissos sociais.

Ao mesmo tempo e sem diminuir em nada esta prerrogativade liberdade, Jesus apresentou uma visão da Providencia tãoabsoluta, onipotente e imanente a todos os fenômenos dacriação que mesmo os Judeus se espantavam com a suaconvicção de que todas as coisas são determinadas por Deus.Recomendou a resignação incondicional às agruras da vida eàs provações enviadas pela divindade. Apontou Deus como oPai e Senhor da vida, em cujas mãos devemos nos depositarcom desassombro, sem preocuparmo-nos com o dia deamanhã.[6] Reuniu no sublime Sermão da Montanha ascondições da iluminação com destaque para a entrega,abnegação e confiança na direção que Deus dá ao mundo,dando a entender que o futuro está em Suas mãos. Orousempre a Deus que tudo transcorresse conforme a Suavontade[7]. Baseou a própria grandeza na destruição davontade pessoal e na submissão a vontade do Pai,apresentando-se assim como revelação máxima de Deus, naexata medida em que não reconhecia ser nada fora Dele.[8]

Esta doutrina de implicações oceânicas gera há dois mil anosum estarrecimento da razão. Os que a aceitaram de modohumilde encontraram nela a serenidade e a consolação dodeterminismo divino e a responsabilidade e grandeza daliberdade individual. Os muitos que tentaram equacionar assuas intrincadas estruturas reduziram-nas as própriaslimitações e enfatizaram os polos correspondentes as suaspreferências.

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Santo Agostinho concentrou-se na ideia de Deus, depositandoNele, causa de tudo, a decisão sobre a salvação humana, edeixando ao livre-arbítrio apenas a decisão entre aceitar ounão a eleição. Pelágio, enfocando a divindade eresponsabilidade do indivíduo, colocou nas mãos do homem asalvação ou queda, confrontando a ideia de Agostinho sobre aeleição pela Graça de Deus, e estabelecendo a necessidade deobras para a elevação do espírito. Graças ao poder político dobispo de Hipona, Pelágio foi fortemente perseguido efinalmente julgado como herege, pesando fortemente sobre osombros do santo africano a responsabilidade pelodesequilíbrio filosófico e doutrinário do Cristianismo.

Lutero e Erasmo, o reformista protestante e o católicorespectivamente, repetiram a mesma disputa mais de milanos depois, dando sinais de que a humanidade poucoevoluiu na interpretação da filosofia de Jesus. EnquantoLutero condenou o livre-arbítrio em seu livro De servo arbitrio(Sobre o arbítrio escravo), Erasmo o exaltou em seu livro-resposta De libero arbitrio(Sobre o livre-arbítrio). Luteroacreditava que a única coisa em poder do homem é a suaentrega a fé. Se o fizesse, o homem converter-se-ia por forçado poder de Cristo, e a fé revelada o transformaria. As boasobras seriam uma mera consequência desta conversão.Erasmo, racionalista e liberal, rebatia que haviam muitasinterpretações conflitantes sobre as escrituras, e que eraimpossível distinguir com certeza a fé correta da equivocada,a aparente da sincera, e que por isso a razão deveria fiscalizara fé, e o homem deveria manter o seu livre-arbítrio e juízocrítico, embora aceitando a orientação das escrituras. Erasmotambém enxergava passagens em que Jesus sugere o livre-arbítrio, e por isso concluía que, na dúvida, o homem deveriaagir como se a salvação dependesse de suas obras,esforçando-se por si mesmo como se não estivesse salvo, aoinvés de entregar-se a ideia dogmática de estar garantido pelafé.

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Ainda outras vezes a história da teologia e da filosofiapolarizou-se numa dicotomia do pensamento de Jesus, emdetrimento da completude magnífica que a sua sínteseharmônica oferecia. Mas conquanto estas diástoles dopensamento tenham provocado contendas, foi tambémimportante para o exercício do raciocínio que estas divisõesdidáticas e simplificadoras da dialética cristã ocorressem. Seao menos pudermos aprender com este processo de evoluçãohistórica, podemos evitar a continuidade desta cisão, ereconstituir a metafísica de Jesus em sua potenciaintegradora original, onde livre-arbítrio e Providenciaimplicam-se mutuamente, ao invés de se contradizerem.

________________________________________

[1] MATEUS 21:22; MARCOS 11:24.

[2] MARCOS 5:34; LUCAS 7:50 & 8:48; MATEUS 9:22.

[3] Como no episódio em que Pedro caminha sobre as águas,bem como na exortação de JOAO 10:34.:“vós sois deuses, etudo o que eu faço também podeis fazer, e ainda mais” E emMarcos 9:23.:“Tudo é possível para aquele que crê”.

[4] MATEUS 5:27.

[5] JOAO 8:33-34.

[6] MATEUS 6:28

[7] Não só na oração do pai nosso como também em MATEUS7:21 & 12:46-50; JOAO 4:34, e muitas outras passagensmais indiretamente.

[8] JOAO 5:19-38 & 14:8-10

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A absolutidade do Cristianismo

É indiscutível que o pensamento ocidental tenha surgido naGrécia. O helenismo é o traço marcante de todas as culturasmediterrâneas após o reinado universal de Alexandre daMacedônia, e esta predominância do espírito grego só fezcrescer com a expansão do Império Romano.

Os críticos religiosos e exegetas querem acusar Paulo de“platonizar” o cristianismo. Há inúmeros tratados, cada qualcom sua cota de verdade, sobre como o pequeno movimentojudaico transformou-se sob a influência de inúmerosintelectuais gregos numa filosofia abrangente. Todos ignoram,entretanto, que o ambiente cultural e intelectual da Palestinaà época de Augusto já era marcadamente helenizado.Historiadores mais cuidadosos como Eduard Zeller noslembram de que o popular movimento místico e moralizadordos essênios nada mais era do que uma síntese do judaísmocom as filosofias gregas, particularmente o estoicismo e oplatonismo; que a Septuaginta nasceu numa comunidade dejudeus helenizados do Egito, acrescentando à Bíblia o nadajudaico Eclesiastes; que não apenas Paulo, como a maioriados doutores da lei dominava o grego e o latim; que a Síria, aCapadócia, a Lídia e as ilhas gregas eram morada de grandescomunidades judaicas já muito helenizadas, a ponto de setornarem, algumas seitas distintas, outras ecléticas obastante para abraçar elementos do esoterismo persa, dosmistérios caldeus ou da mitologia egípcia. A imagem quePaulo nos passa pelas suas epístolas é a de um enormecosmopolitismo onde a convivência com todos esteselementos era natural e inevitável. Seria muito ingênuoimaginar que estas influencias não existissem à época deJesus, mas fossem onipresentes quinze, vinte anos após acrucificação.

A evidência da presença grega na Palestina e na vidaintelectual israelita é importante indício de que Jesus, se não

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amplamente versado em filosofia grega, era ao menosfamiliarizado com o intercâmbio entre esta e a sua cultura.Os relatos de suas discussões com os sacerdotes do templode Jerusalém ainda na infância, o domínio das escrituras e aerudição apresentados nos debates com os fariseus, comPilatos e com Nicodemos atestam a educação invulgar deJesus. Por fim, mas não menos importante, a boa convivênciacom samaritanos, romanos, gregos, sírios e toda a espécie deinterlocutor, sem restrições ou distinções, frequentementevalorizando estrangeiros não judeus em detrimento dossacerdotes (como na parábola do bom samaritano), oumulheres em detrimento dos homens, demonstram ouniversalismo da mensagem de Jesus, em franca contradiçãocom a ortodoxia hebraica e suas tradições. Não foi comesforço ou alterações que Paulo estendeu a Boa Nova aosgentios, senão graças a sua própria essência universalizante.

Não fosse a doutrina de Jesus universal, jamais poderiapretender-se absoluta, e esta é uma exigência das maisessenciais para a religião cristã. A absolutidade docristianismo, com seus matizes, prós e contras, dependeintegralmente de sua mensagem não estar restrita acomunidade judaica. Nenhuma das chamadas religiõesmundiais, aliás, merece este posto enquanto restringe aatuação de seu deus ou salvação a um grupo étnico oucultural. Esta é uma premissa metafísica básica das religiõesmundiais: o seu deus precisa ser universal, onipresente. E ocristianismo não quer apenas afirmar a universalidade de seudeus, mas o caráter absoluto da sua revelação.

Este tema torna-se extremamente problemático com oadvento da modernidade e o confronto com outras religiõesmundiais. Mas ainda mais dramático é o confronto entre aexigência de absolutidade do cristianismo e o fundo cético erelativista da modernidade. A crítica histórica e científica dassagradas escrituras gerou o célebre conflito entre ciência ereligião, típico e exclusivo da cultura ocidental, embora agorajá absorvido por todos os demais povos civilizados. A

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resistência do clero (não do cristianismo enquanto tal) contrao avanço do esclarecimento e a reação deste, consistindonuma equivalente exclusão do diálogo com a religião,provocou a cisão do espírito ocidental responsável ainda hojepela fragmentação do pensamento, perda dos valores ereferenciais coletivos, deterioração das noções básicas deidentidade histórica dos povos ocidentais, entre outrasdificuldades.

Uma delimitação precisa da natureza absoluta docristianismo faz-se, portanto, urgente. Sem esta seriamelindroso lidar com qualquer aspecto da religião crista, sobrisco de desintegrá-la e reduzi-la a uma proposta moralrelativa, compatível com as expectativas e exigênciasfilosóficas atuais, ou retrogradar ao estado dogmático eautoritário do absolutismo cristão conforme pregado pelaortodoxia predominante em todas as denominações (romana,grega e protestante) até meados do século XVIII.

De forma sintética a parte “podre” da absolutidade docristianismo está na sua exclusividade dogmática, que nãodista em nada da exclusividade e absolutismo de qualqueroutra religião dogmática, resumindo-se na ideia de que esta éa revelação final e exclusiva para a salvação. No cristianismoortodoxo isto é tão presente quanto nas mitologias primitivas,já que o conceito mais fundamentalista de trindade afirmauma supremacia da pessoa de Jesus sobre todas as demaisrevelações. Neste aspecto não há distinções significativas emrelação ao judaísmo, o islamismo ou o hinduísmo, tambémnotadamente absolutistas. Este aspecto negativo e dogmáticofoi duramente combatido durante toda a Era Moderna, emesmo antes dela.

Os que melhores resultados apresentaram contra aabsolutidade dogmática do cristianismo foram os neo-protestantes, também conhecidos como protestantes liberais.Este grupo, conforme definido pelo historiador das religiõesErnst Troeltsch, é composto por inúmeros membros de um

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movimento tardio de “reforma da Reforma”, que inclui críticashistóricas, racionalismo filosófico e científico, e uma teologiacristã mais pluralista. Seus expositores mais reconhecidossão Spinoza (embora não fosse cristão), Lessing, Herder e oIdealismo alemão, mas no sentido de Troeltsch este neo-protestantismo engloba movimentos contra-reformistascatólicos (Fénelon, Lammenais, Rousseau, etc),espiritualismo de vários tipos (incluindo o Espiritismo, osRosacruz, a Teosofia, etc), orientalismos amalgamados aocristianismo e outras manifestações contemporâneas decrença, viabilizadas pelo espírito individualista e libertário dareforma protestante. Enquanto o protestantismo ortodoxo,por assim dizer, elaborou uma nova base dogmática para ocristianismo, o neo-protestantismo ou protestantismo liberalé a proliferação de interpretações livres do cristianismo,baseada na nova concepção moderna de que o espírito críticode interpretação individual da religião é tão melhor quantomais independente da ortodoxia das igrejas. Neste movimentoestá também implícito um retorno ao cristianismo primitivoda época “pré-clerical”. Os seus adeptos defendemferrenhamente a necessidade de independência para ainterpretação do “espírito” das escrituras, e que toda a formade ortodoxia corresponde a um condicionamento à “letra”,seja a original, seja a estabelecida pela teologia dogmática.

Arejado pelo confronto com a crítica racional, histórica ecultural, o cristianismo reestrutura-se ainda, apesar debolsões conservadores como os do fundamentalismo neo-pentecostal (nossas famosas igrejas “evangélicas”) e católico.Dentro do protestantismo de alto nível, representado peloLuteranismo, Presbiterianismo e outras facções sectáriascomo os Quaker, predomina o espírito liberal, pluralista etolerante que nos países católicos acaba restringindo-se aosgrupos mais heterodoxos como o Espiritismo. De qualquerforma, a presença de grupos cristãos liberais já é tãodifundida, e tão precária é a situação das instituições maisconservadoras, que o fim do absolutismo dogmático cristão

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está praticamente consumado entre as camadas maiseducadas da população do mundo ocidental.

Uma supremacia arrogante não é mais tolerável entre oscidadãos razoáveis da era do conhecimento e da liberdade,não obstante, a natureza do cristianismo não se permitaprivar de uma força absolutizante intrínseca à especificidadede sua revelação. Para compreender o aspecto positivo daabsolutidade do cristianismo é preciso identificar as suascaracterísticas elementares, ou melhor dizendo, aquelas queprescindem de uma apologia dogmática e podem encarar asexigências e critérios modernos sem se desgastar.

Importantíssimo, entretanto, é que este discurso não se privedo viés crítico e pluralista que engrandeceu o cristianismomoderno e o purificou de todo o seu aspecto dogmático que,ao contrário, nivelou-o com as crenças mais mundanas e osectarismo típico das ideologias de supremacia étnica ecultural. Um sintoma inconfundível desta patologia é omenosprezo das demais tradições religiosas, e por isso é tãoimportante a estima e o zelo respeitoso por todas as crenças,vistas como revelações da verdade e dignificadas por estaperspectiva. Este é um dos motivos pelo qual apresentamosaqui, em diversos artigos, uma análise apreciativa dediferentes culturas da Antiguidade, de modo que a nossaapologia da absolutidade do cristianismo não soe exclusivistaou sectária.

A revelação cristã distingue-se das demais sem confrontá-las.É absoluta por incluí-las, não por negar a sua validade.Poder-se-ia mesmo dizer que é absoluta na exata medida emque reconhece todas as demais e se integra a elas. Ocristianismo é absoluto enquanto afirma a divindade de todasas criaturas, a salvação universal, o amor a Deus e aopróximo como mandamento central, a paternidade de Deusem relação aos homens, o perdão incondicional das ofensas,a caridade estendida até aos inimigos, a eficácia da intençãoe do sentimento sobre os dogmas e técnicas. Ele traz a

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revelação da imortalidade geral, da misericórdia irrestrita deDeus, e da ascensão do sentimento sobre a crença, da fécomo atitude existencial sobre a fé como adesão a um dogma,da reforma do comportamento pela intenção, não pelaexigência social ou ritual.

Mas todas estas características, conquanto sublimesatestados da divindade de sua origem, não o distinguemtanto da parte superior e eminentemente espiritual de outrasgrandes religiões. A humanidade produziu a contentoexemplos de santidade, concepções abrangentes de Deus,explicações complexas e consoladoras sobre o destinohumano e o significado da vida. Aquilo que diferenciaradicalmente o cristianismo em sua absolutidade sãobasicamente dois eventos: a ressurreição e a revelação do Paina figura do Cristo.

A ressurreição é o acontecimento ímpar na história mundialque comprova a vitória sobre a morte. Nenhuma outrarevelação lhe é equivalente, pois os profetas e fundadores dereligião sempre gozaram de visões ou audições especiais,privilegiadas, comunicadas aos seus discípulos sob exigênciade confiança nestes relatos. A ressurreição é a exposiçãopública e notória da imortalidade do espírito e da suaindependência do corpo, compartilhada irrestritamente diantede uma multidão de discípulos de Jesus no evento daascensão aos céus.

A conversibilidade de identidades entre Deus e Jesus, e aauto-revelação deste segundo como o exemplo e semelhançado Pai, conforme repetidamente afirmado no Evangelho deJoão, é a revelação completa e final de Deus, sem superaçãopossível no passado, presente ou futuro. Toda a revelação deDeus foi e é feita a um profeta, que a transmite em palavrashumanas para a comunidade. Somente com Jesus arevelação foi integralmente exposta em espírito e verdade, jáque ao responder à exigência de Filipe, “mostra-nos o Pai”,Jesus deu-se a si mesmo como a concretude de Deus diante

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dos olhos e ouvidos de todos, em exemplo de conduta,pensamento e sentimento perfeitamente divinos. Enquantotodos os profetas e iluminados falaram de sua experiênciacom o sagrado, Jesus atualizou em si esta experiência,personificando e encarnando os atributos divinos em suamáxima expressão possível neste mundo. Ao trazer o Deusextraterreno e misterioso das alturas para a forma familiar doPai, converteu-se no Filho modelar imediatamente presente epassível de imitação por parte de seus discípulos, estreitandoassim a relação entre o homem e Deus e criando uma pontepermanente entre a Terra e os Reino dos Céus. Enquantotodos os emissários de todos os povos se reconheciamjustamente como mensageiros, Jesus espelhou diretamente aglória de Deus, aproximando das inteligências mais simples edos sentimentos mais duros a presença divina, e é destaforma que ele responde a Filipe: “Filipe, há tanto tempo estouconvosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê oPai. Como dizes tu: Mostra-nos o Pai?”.

A essência do judaísmo

O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel definiu a essência dojudaísmo como a consciência da separação entre o homem ea sua origem. Na figuração personalista do deus de Israel, ohomem encontra-se “face a face” com um antagonista, ou“outro” com quem tem uma relação de temor e louvor. Aconsciência do judaísmo seria, para este filósofo, uma etapamuito avançada da descoberta espiritual humana, pois, emcomparação com outros povos, os hebreus teriam a vantagemde reconhecer o drama da diferença. Mesmo as civilizaçõesmais avançadas, a exemplo dos gregos, não teriam noentender de Hegel uma consciência clara da diferença. Osdistantes deuses olimpianos ou as deidades indianas, ligadas

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também a distintos elementos da natureza, falhariam emcriar este sentimento concreto de distancia e separação tãoclaro no Velho Testamento.

Ao contrário dos panteões politeístas, onde os deuses nãoconseguem ocultar seu mistério, já que estão diretamenteligados a coisas ou atividades distintas, o Deus Supremo deIsrael é o inteiramente “outro”, grande e incompreensíveldemais para a mente humana. Seus atributos sãoefetivamente espirituais, e não se resumem a patrocinar estaou aquela profissão, fenômeno natural ou emoção; elestranscendem o mundo, e o homem está no mundo; os deusesdo panteão também.

A essência do cristianismo, ainda segundo Hegel, sópoderia ter nascido das entranhas do judaísmo. Isto porque ocristianismo tem como missão reunificar o que estavadistinto, unir o separado, e nas religiões onde não haviadrama e conflito entre Deus e os homens não havia tambémsentido em uma reunião. Não diminuindo os méritos dasoutras religiões, o judaico-cristianismo tem uma poderosavantagem filosófica, aclarando a diferença intrínseca dasubjetividade em relação ao divino, e reconciliando-os.

Até onde está certo o filósofo? Difícil dizer. Masdevemos nos inteirar da essência do judaísmo, seja ela qualfor, se quisermos compreender o cristianismo.

O judaísmo é definitivamente a religião do deus que serevela ao mundo; não conheceu em suas origens aespeculação. E um deus que se revela o faz sempre por ummotivo ético, ou seja, mostra-se para influenciar de algumaforma o comportamento daqueles a quem se revelou. Cientesde que o seu deus não se havia revelado apenas para serconhecido, os hebreus guardaram firmemente as noções depromessa e destino. O Senhor falou aos homens, não paradizer eis-me aqui, mas para enviar-lhes mandamentos,promessas e consolação. Em resumo, Ele mostrou-se paramudar o mundo, não para notificá-lo de Sua presença.

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Todas estas idéias estão entre os fundamentos pétreosdo judaísmo. Os mandamentos: aquilo que o deus espera denós; as promessas: aquilo com que o deus garanterecompensar os que cumprem seus mandamentos e semantêm fiéis a ele; e a consolação: a aliança que deus fazcom o seu povo, de estar sempre presente com ele.

Mas o Velho Testamento inclui muito mais do que arevelação de Deus. Poder-se-ia dizer até que ele éminimamente dedicado à narrar a revelação, emajoritariamente voltado para outros assuntos. Cada umdestes assuntos segue seus próprios critérios, lógica einteresses, e os críticos ou defensores da Bíblia cometemverdadeiras barbaridades ao tentarem fazer dela um textouniforme e coerente.

Entre as funções dos distintos livros que compõem o VelhoTestamento estão: 1- O resumo de toda a cultura de todo umpovo.2- História, não apenas dos judeus, mas de povosvizinhos; 3- Leis;4- Sabedoria (o mais próximo de umafilosofia judaica); 5-Poesia(Salmos e cânticos); 6- Profecias.

Pois bem, profecias seriam as revelações do deus de Israelaos seus eleitos, versando sobre assuntos propriamentereligiosos, como mandamentos, promessas e consolações, ouassuntos de utilidade pessoal e comunitária. Todos os outroscinco elementos são de origem humana, e não é precisomuita argumentação para provar isto. Que os registroshistóricos estejam apenas secundariamente ligados arevelação divina é uma evidência de princípios. Não obstante,tanto judeus quanto cristãos de diversas denominaçõesincluem elementos da história, leis sociais e costumesdescritos pelas escrituras sob a égide da teologia, prestandocom isto um terrível desserviço a esta.

A maior parte dos ataques à Bíblia, todos sabem, objetivasuas narrativas mitológicas, registros históricos imprecisos eleis sociais correspondentes a uma vida pastoril muitoprimitiva. Embora estes aspectos não tenham nenhuma

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relação direta com a revelação profética, o fato de a religiãooficial estabelecer um vínculo entre as diferentes funções dasescrituras gera uma dificuldade tremenda no julgamento porparte de pessoas não especializadas quanto à validade e oscritérios de verdade do Velho Testamento. Ainda pior, a formairresponsável de homogeneizar o Velho e o Novo Testamentocomo um texto único acaba por denegrir o último, tambémdesmerecido em função dos problemas do primeiro.

É, portanto, obrigatória uma leitura teológica, históricae filosoficamente crítica da Bíblia, sem o que a compreensãodos detalhes se torna impossível, e o conjunto, erroneamenteindiscernível, se torna obscuro e irracional.

Para começar, a história concreta do povo de Israel sócomeça a ser cientificamente comprovável a partir de Moisés(+ou – 1500 a.C.). É difícil saber qualquer coisa sobre operíodo anterior ao do cativeiro no Egito. Só podemosacreditar que o relato é mais ou menos próximo da realidade,e as histórias de Abraão, Isaac e Jacó foram bem preservadasoralmente. Até Moisés, as mensagens transmitidas aospatriarcas não eram muito distintas das que os religiososcaldeus, gregos e egípcios recebiam. Os anjos eram bemconhecidos dos babilônicos antes dos judeus, e os egípcioseram os únicos a acreditar num Deus único.

Os judeus não eram monoteístas, o que é muito óbvio naleitura do Velho Testamento, inclusive até a época de Elias.Eles tinham na melhor das hipóteses um deus único para opovo hebreu,que se destacava em poder e qualidade emrelação aos demais deuses, constantemente demonizados, ecada povo possuía como seu protetor um destes outrosdeuses. Foi provavelmente no Egito que Moisés, ou um grupode patriarcas judeus, aprendeu a idéia do Deus único (agorasim com “D” maiúsculo), criador do mundo. Assim Moiséspôde desenvolver uma história coerente que inclui a gênesedo mundo por Deus e as origens do povo judeu.

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Naturalmente, a mitologia desenvolvida no Gênese tem o seugrande valor simbólico, como também as mitologias de outrospovos, e nos permite não apenas olhar para uma visão demundo primitiva da criação e funcionamento do cosmos,como também e principalmente extrair informações valiosassobre a filosofia, as revelações e as intuições dos primeirosprofetas judeus.

Também é Moisés que recebe de Deus para criar leis e regraspara o seu povo. Ele estabelece algumas sob inspiraçãodivina (mandamentos) e se esforça para criar outras conformeseu juízo e capacidade. Depois de Moisés, os heróis e profetasde Israel passaram a transmitir informações orais,novamente, com exceção dos Salmos, que eram escritos comopoemas de louvor.

Quando Davi se torna rei de Israel, Deus revela-se a ele coma disposição para uma nova aliança com os hebreus. Amensagem diz que chegou o tempo de os judeus viverem emcidades, não mais vagando pelo deserto. Assim exige-se aconstrução de grandes templos para as atividades religiosas,em torno dos quais devem fixar-se para sempre as tribos.

Repetimos, até aqui poucos destes relatos eram escritos.Havia algumas leis, partes do Pentateuco e salmos em papiro,mas a tradição e histórias mais importantes continuaram aser transmitidas oralmente, até que a primeira versão daescrituras foram compiladas durante o exílio na Babilônia,em 515 a.C. Desde então acrescentaram-se ainda livrosdiversos, como Jeremias e Isaías.

Após este curto esforço “iluminista”, voltando a essência dareligião judaica, a linha mestra da religião judaica é amanifestação de Deus aos seus escolhidos, os mais fiéis entreos fiéis. Ele garante a descendência de Abraão, salva Noé esua família, conduz Moisés pelo deserto, alça Davi do pastoao trono, é a segurança dos profetas; mas a nenhum delesDeus garante a sua bênção gratuitamente, de modo que anecessidade do mérito é cristalina em todas as passagens.

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Escolhidos pela virtude, permanecem sob o amparo divinoenquanto se mantêm nesta virtude. Não encontram tampoucofacilidades mundanas, mas amargam vidas ásperas ondefome, miséria, doença e perdas de entes queridos são umaconstante (chegando ao extremo com o exemplo de Jó). Nãohá enganos e falsas promessas ao eleitos do Senhor; seusméritos são espirituais, e assim também sua recompensa;ouvem a voz dos céus, recebem visitas dos anjos, têm sonhospremonitórios, manifestam sinais diante da multidão, mastudo isto é pela obra, e os judeus mais antigos estavamplenamente cientes disto, na medida em que não glorificamos profetas e patriarcas pelos seus milagres, mas Deus que oselevou e glorificou.

De todas as figuras simbólicas da Bíblia a mais primitiva e amais direta, resumindo todas as demais passagens, é a deSansão. O herói não era apenas forte. Era invencível. Podiaenfrentar um exército. E a sua incomparável fortitude lhe eragarantida tanto quanto ele se mantivesse fiel ao contrato quetinha com Deus: um acordo simples de uma única regra.

O intérprete das escrituras não se deve deixar enganar peloaspecto infantil da narrativa. O essencial na questão não éocomprimento dos cabelos, senão o próprio contrato, apromessa. Sua lição moral é a de honrar a palavraempenhada e dignificar a expectativa de Deus em relação aospoderes que lhe foram concedidos. Todo o fiel deve enxergar-se como um Sansão; deve espelhar-se nos patriarcas eprofetas, e seguir a risca os mandamentos, que são a formapública do contrato com os céus.

Nosso esclarecimento científico e a crítica filosófica damodernidade nos fizeram desprezar os simbolismos bíblicos,mas estes ataques só ferem o sentido literal do VelhoTestamento. É claro que no sentido fundamentalista doscriacionistas e das massas ingênuas que ainda acreditam nasfábulas do Gênese, da arca, de Jonas na barriga da Baleia, aBíblia contradiz frontalmente a razão e tudo o que

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descobrimos sobre o mundo. Mas no seu simbolismo moral,que encerra o seu real propósito, ela continuará sempre atuale rica de significado.

Na simplicidade das imagens bíblicas está o homem colocadodiante de seu Criador, com a opção de cumprir as regras queEste transmite ao mundo, de acordo com a compreensão daépoca e de cada indivíduo. A fidelidade humilde e o zelosincero são as palmas da vitória quanto a tudo o que se refereao elemento religioso da vida. E aqueles que souberemmanifestar estas virtudes nas pequenas coisas estarãopreparados para as grandes missões e provações.

Os mistérios de Elêusis

Elêusis é uma vila antiquíssima, mesmo para os padrõesgregos, nas proximidades de Atenas, famosa por seusantuário dedicado a Deméter e pelo culto de iniciados que alise formou. Estes iniciados dos mistérios eleusianos eramfrequentemente pessoas de grande renome e faculdadesdestacadas, de modo que a inferência geral de que o cultoselecionava as almas mais nobres da nação era inevitável. Sóeste precedente já seria suficiente para garantir a fama doculto de Elêusis, em analogia com as sociedades secretasmodernas, que ao reunirem líderes, artistas e cientistas sob oseu brasão acabam por adquirir uma aura especial.

Cavernas de Elêusis, onde os rituais ream realizados.

O culto torna-se ainda mais interessante quando nosnotificamos de suas especiais características e simbolismos, ede que a sua influencia foi incomparavelmente maior sobre aspersonalidades da elite intelectual grega do que sobre a elite

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política e econômica. Enquanto o oráculo de Delfos era oponto de peregrinação dos reis e celebridades na busca deorientação, com suas profecias geralmente divulgadas semmaiores precauções, o santuário de Elêusis prescrevia umvoto de segredo absoluto sobre todos os seus preceitos. Dopúblico geral somente o mito de Perséfone era conhecido, esem a sua chave de leitura ele não passa de uma históriaparcamente interessante. O motivo principal deste olvido estáno rigor com que eram punidos os levianos que divulgavamos mistérios para o público geral. Em caso de evidente má féo traidor poderia ser punido com a morte, mas raramente sechegava a tanto, bastando na maioria das vezes o banimentoda Ática, confisco dos bens e propriedades e o desprezo erepudio públicos. É notório o exemplo de Alcibíades, quebebeu em excesso e imitou para uma plateia tambémembriagada as cerimônias iniciáticas, tendo recebido todas aspunições sociais e materiais cabíveis.

Com isto perderam-se os princípios essenciais e as ideiasmais complexas do culto, especialmente aqueles que sedenominavam altos mistérios e eram restritas aos veteranos.A falta de registro e a fidelidade ao voto de segredo, nãoimpedia, contudo, que os seus membros se declarassempublicamente. Grandes nomes da vida espiritual grega, comoÉsquilo, Sócrates, Platão e Xenofonte, sabidamente membrosdo culto, garantiam-lhe a fama, apesar de seremdesconhecidos os seus postulados. Posteriormente, com aascensão de Roma, os mistérios tornaram-se vulgares eempobrecidos, sendo palco de cerimônias pomposas dasquais tomavam parte os imperadores e senadores. Destaépoca provêm quase todos os detalhes conhecidos sobre ascerimônias, mas elas já não correspondem senão palidamenteao que o culto de Elêusis pregava em sua época áurea, entre800 e 200 a.C. Cícero, o maior e mais completo intelectualromano, conheceu Elêusis já tardiamente, em sua fase dedeclínio, e ainda assim afirmou que os seus mistérios

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constituem a maior contribuição de Atenas para ahumanidade.

Com todas as restrições à divulgação dos mistérios, restamapenas duas fontes de acesso ao seu ensino original, a saber,o mito de Perséfone e a comparação das doutrinas de seusmembros conhecidos. O primeiro é público, e faz parte doacervo mitológico e religioso da Grécia, enquanto a doutrinados membros famosos apresenta interessantes similaridadesem pontos peculiares, dando indícios razoavelmenteconfiáveis do que os seus membros compartilhavam.

De uma forma muito resumida faremos uma exposição dafilosofia e religião de Elêusis, como chave de leitura para omito de Perséfone apresentado em seguida.

Basicamente tudo nos mistérios é derivado do processo dereencarnação, comparado às estações do ano e às fases davida. Este processo é entendido como o intercâmbio entredois mundos, sendo o mundo das almas a pátria verdadeira eoriginal, enquanto o mundo material seria uma extensão ousubproduto do mundo espiritual. A vida no mundo materialseria uma espécie de punição, comparada ao outono einverno, quando a natureza morre e enfrenta a dureza do frioe da desfolha. A vida no mundo espiritual seria a primavera everão da alma, e o indivíduo só seria feliz neste outro mundo.O objetivo da vida material seria o de enfrentar agruras ebatalhas para o fortalecimento do espírito, assim como oinverno serve prepara a natureza para um renascimento naprimavera, selecionando neste processo as plantas e animaismais fortes e hábeis. O problema do mundo material nãoestá, portanto, nos seus desafios, que proporcionam ocrescimento, mas sim no esquecimento que as almas fracasexperimentam em contato com a matéria. Os iniciados deElêusis não são ensinados a crer neste processo, mas se“lembram” sozinhos desta realidade por força de suagrandeza espiritual. Acreditavam também que eram atraídosuns aos outros por similitude, como estrangeiros no mundo

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material que se reconhecem facilmente pelas suas diferençasem relação aos nativos. Era esperado naturalmente que nãose espantassem jamais com os ensinos, mas que osencarassem como óbvios ou até já os conhecessem antes deserem admitidos no culto. Outro sinal característico dosmistérios era a ênfase na pluralidade dos mundos habitados,na possibilidade de se transmigrarem as almas para estesoutros mundos, o que os conduzia a teoria da panspermia, ouseja a disseminação universal da vida ao redor de todas asestrelas do universo.

Quando Emmanuel nos apresenta as personagens Líviae Basílio em seu magnífico romance Ave Cristo, ele nos dá aentender que o ancião teria tido contato com os mistérios deElêusis e de Alexandria, e a canção das Estrelas revela nãoapenas um conhecimento exato de Emmanuel acerca dosmistérios como nos traz contribuições ímpares para o seuresgate. Eis a primeira estrofe da canção:

Estrelas – ninhos de vida,

Entre os espaços profundos,

Novos lares, novos mundos,

Velados por tênue véu.

Aladas rosas de Ceres,

Nascidas ao sol de Elêusis,

Sois a morada dos deuses,

Que vos engastam nos céus.

A canção segue com ricas revelações sobre a harmoniauniversal, o propósito das lutas terrenas e exaltações àsvirtudes estóicas da paciência, abnegação e retidão. Todos

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são cristãos em essência, mas há boas razoes para crer queeram elementos retirados do culto de Elêusis, motivo peloqual Emmanuel deu especial ênfase a ele no primeiroparágrafo. Vejamos, as moradas celestiais estariam “veladaspor tênue véu”, exatamente como os eleusianos pregavam. Asalmas mais antigas e experimentadas não fariam esforço pararemontar pela razão, memória ou sugestão os pontosessenciais do conhecimento que tinham no mundo espiritual.“Aladas rosas de Ceres” é talvez o verso mais revelador, já queCeres é o nome romano para a deusa Deméter, adorada noculto de Elêusis. Por que Basílio teve especial interesse emdedicar sua canção aos mundos espirituais à deusa Ceres, aprincípio responsável pela agricultura?

Os únicos que viam um papel diferenciado em Ceres ouDeméter eram os iniciados de Elêusis. O próximo versoconfessa diretamente a proveniência da informação, já que asestrelas não poderiam nascer literalmente em Elêusis. Sópodemos supor que o autor está se referindo à revelação feitanaquele local sobre estas coisas. “Sois a morada dos deuses,que vos engastam nos céus” coincide também com o ensinodos espíritos quanto à formação das galáxias e sistemasestelares sob a direção dos espíritos superiores, aquientendidos como os deuses. Lembramos que muitosiniciados, incluindo Sócrates e Platão, alegavam mantercontato com os deuses e daímones, estes últimoscorrespondendo a intermediários entre os deuses e osencarnados. Platão também afirma que os deuses são almasde homens como nós, desenvolvidas até a perfeição, e que pornossa vez seremos também deuses, conforme se observa nostrechos que destacamos no artigo anterior sobre a“mediunidade e a literatura clássica”.

Com todo este aparato de leitura histórico, sutilmenteconfirmado por Emmanuel, podemos abordar com segurançao mito fundador dos mistério.

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Deméter, deusa da agricultura e da fertilidade, viviafeliz com sua filha Perséfone, um verdadeiro encanto doOlimpo. A jovem era perfeita e despertou o desejo de Hades,senhor do mundo dos mortos. Este, com a permissão de Zeuse consentimento dos demais deuses, raptou Perséfone e alevou para o mundo das sombras subterrâneas. Deméterficou revoltada com o rapto da filha e com o consentimentodos demais deuses, e afastou-se do Olimpo, indo parar emElêusis. De lá a deusa puniu todo o mundo com uma secatremenda que ameaçou com a fome todos os seres e matou ogado que era sacrificado aos demais deuses. Arrependido,Zeus pediu a Deméter para extirpar a maldição, e em trocadevolver-lhe-ia a filha. Desta vez foi Hades quem se sentiutraído, mas não podendo contrariar a ordem de Zeusentregou Perséfone. Antes de despachá-la do mundo inferior,contudo, deu-lhe de comer sementes plantadas lá, o quecriou em Perséfone um vínculo com o mundo da escuridão.Assim que Perséfone retornou ao Olimpo, Deméterperguntou-lhe se havia comido algo de lá, e ao ouvir aconfirmação foi tomada de profunda tristeza, embora nadamais pudesse ser feito para remediar o feitiço. Perséfone ficouassim condenada a passar metade do ano nas sombras deHades, e a outra metade estaria liberta para viver com osdemais deuses no Olimpo. Analogamente, o mundo passariaa apresentar uma época de declínio e infertilidade (outono einverno), quando Deméter entristecida pela partida da filhaamargaria a solidão, e uma época de frutificação e claridade(primavera e verão), correspondente ao retorno de Perséfone ea alegria de Deméter, que distribuiria então pelo mundo suasbênçãos.

O mito é rico de significado, mas não chega a ser difícilde interpretar. Perséfone está vinculada a dois mundostotalmente distintos, a morada de felicidade do Olimpo e oexílio sacrificial no mundo inferior da escuridão e da dor.Este movimento não era realizado uma vez, mas inúmeras,indicando que a alma estaria repetidamente alternando uma

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existência nas alturas e outra nas trevas inferiores. Esteestágio no mundo de sofrimento tinha, contudo, o seu ladopositivo, pois mesmo com um período de infertilidade no ano,a alegria de Deméter ao rever a filha criava anualmente umaépoca de grande abundancia para todo o mundo. A alma,similarmente, aprenderia nas agruras do mundo material aamar e valorizar as belezas da pátria espiritual. A saudadecom que Perséfone aguarda o fim de seu período nas sombrastambém é muito representativa. Ela indica a saudade doespírito exilado na carne, que se lembra de suas origenssublimes e não se entrega à existência vulgar dos habitantesdo mundo inferior. Perséfone é eternamente uma estranha noabismo do Hades, e assim também as almas nobres jamais serebaixam ao nível do mundo das ilusões materiais, massuspiram por seu retorno à pátria verdadeira, tudosuportando com desinteresse e indiferença. Perséfone jamaisse deixa confundir com os habitantes do Hades, sendo emtodos os aspectos a imagem da perfeição, candura egenerosidade a contrastar com o vale dos dementados eagonizantes. Este seu papel no mundo inferior é o deatenuante dos seus horrores, pois a partir de sua estadia láexiste sempre a esperança de encontrá-la em meio ao país daamargura e do esquecimento.

Muito mais poderia ser dito sobre o mito de Perséfone eas sutilezas dos mistérios de Elêusis, mas a nossa ignorânciaultrapassa em muito o que sabemos, de modo que é arriscadotentar especulações mais elaboradas, correndo-se sempre orisco de afastarmo-nos dos fatos perdendo-nos no devaneiode hipóteses inautênticas. Fica, portanto, o convite à releituradestes poucos elementos divulgados, enquanto novas e maiscompletas revelações de historiadores e dos próprios espíritosseguem o seu passo lenta, mas seguramente.

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O espiritualismo de Aristóteles

Após o nosso texto sobre Platão permaneceu no ar umaexigência de fazer justiça a Aristóteles. Afinal, aquele outrotexto inspirado em Popper e em renomados platonistascontemporâneos coloca o discípulo principal da Academia sobpesadas acusações, que podem ofuscar a importância ímparde Aristóteles no desenvolvimento do pensamento humano,da religião Cristã, do realismo ético, da lógica, da estética, dediversas ciências... Aristóteles é também combatido devido aincompreensão que se tem sobre seu conceito de ciência,especialmente no tocante a física e a astronomia. Seusavanços e contribuições preciosas são sistematicamenteignorados em favor da paródia infantilizada de uma ascensãoapoteótica das ciências durante a Renascença, como seHiparco, Euclides, Arquimedes, Hipácia, Anaxágoras,Aristóteles e outros pesquisadores antigos fossemsupersticiosos, irracionais e incapazes de uma observaçãocrítica da natureza.

É bem verdade que Aristóteles seja mais dogmático doque Platão, mas ele não o é num sentido do dogmatismoreligioso, por exemplo, nem pode ser considerado maisdogmático do que a maioria dos demais filósofos. O seu é umdogmatismo racional, o que quer dizer que ele acreditava nopoder da razão para resolver todas as questões, e isso nãosignifica a adoção de máximas e crenças transmitidas porautoridade, como no dogmatismo que as igrejas costumampropagar. Além disto, é possível que Aristóteles seja um dosindivíduos que mais contribuiu com as ciências em todos os

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tempos, ao lado de Galileu, Newton, Pasteur, Darwin ouEinstein, e em relação a maioria destes tampouco ele poderiaser considerado um dogmático. A maioria dos cientistasacredita firmemente no poder da matemática e da sua lógica,na invariabilidade e objetividade da observação. Estas sãocrenças que fazem mal ao filósofo dedicado à epistemologia,mas que são moedas válidas nas ciências, úteis até certoponto, na medida em que é necessário uma certa fé naprática e no método para se prosseguir com uma linha depesquisa. Claro, Aristóteles não possuía um método científicotão rigoroso, ou estava aberto a competição com outrasteorias, mas as suas observações criteriosas e a sua lógicaimpecável propiciaram tanto avanços no conhecimentoquanto na doutrina do método.

Muito do que nos soa anti-científico não passa depropaganda da ideologia materialista, aquela que o vulgoassocia à ciência, e que condena impiedosamente hipótesesespiritualistas como a necessidade de um arquitetointeligente para o cosmo e a existência de uma força viventedirigindo a vida para o desenvolvimento de suas formas. Sãohipóteses explicativas para problemas legítimos queAristóteles encontrou na natureza, e que desde o século XIXpassaram a ser descartadas “por questão de princípio”. E éisto que queremos agora resgatar.

Aristóteles é incompreensível sem um amplo eminucioso estudo da filosofia e da história da Academia dePlatão. Esta é a sentença fundamental para um acerto decontas com as discrepâncias e injustiças cometidas contraAristóteles, dentre as quais a maior delas é a suposta“separação” ou “briga” entre ele e o mestre, o que jamaisocorreu ou se justifica. Os mitos quanto ao confronto derivamquase todos dos comentários do Aristóteles maduro sobre omestre, décadas depois da morte deste, e que se baseiam nasdistinções naturais que o caminho próprio de Aristótelesnecessitava enfatizar. Este desenvolvimento pessoal eindependente da filosofia, coisa que Platão sempre incentivou

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e esperou de seus discípulos, corresponde integralmente aodistanciamento que o próprio fundador da Academia tevepara com seu ídolo e mestre da juventude. O quadro dodistanciamento entre Aristóteles e Platão, portanto, seassemelha ao mesmo quadro entre Platão e Sócrates, comuma semelhança impressionante de características.

Em primeiro lugar o Platão poético da juventude, comseus diálogos realmente combativos, metáforas, simbolismose estreita vinculação entre a estética e a epistemologia, quasecorrespondendo nele o arrebatamento estético ao acessointelectual à verdade, já era tido como fase terminada esuperada na época em que Aristóteles ingressava naAcademia. O ambiente liberal do mestre, seuamadurecimento e o próprio contato com outros alunos eprofessores haviam transformado o ensino platônico. Ocavaleiro solitário do Fédon, da Apologia, doBanquete e doGórgias, que vingava intelectualmente a morte de Sócrates ebuscava preservar o seu legado, era agora o filósofo mais bemestabelecido e sucedido do mundo, sem necessidade nem docaráter combativo nem da nostalgia de uma época áurea desuas conversações com o mestre. Ele próprio era agora omestre para o qual discípulos de todas as partes do mundoviajavam na esperança de obter sabedoria e virtude. Ele eraentão a figura de quem se esperava as respostas, e não umjovem modesto cantando as proezas de seu mentor. A estasdiferenças de postura somam-se as profundas experiênciasda Academia e de suas viagens. Dotado de inigualávellucidez, Platão não demorou a absorver as críticas que lheeram dirigidas e adaptar seu método a elas. Alunosbrilhantes de todas as partes, entre eles muitos matemáticos,ajudaram a expandir o seu saber sempre aberto à inovação emudança. Ao mesmo tempo, as exigências que ele mesmo e oseu papel de referencial universal da filosofia lhe impunhamtornaram-no muito mais cuidadoso, técnico e afirmativo nosseus pronunciamentos.

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Nesta época chegava a Academia o jovem Aristóteles,enquanto ela iniciava uma nova fase com a escrita do Teeteto,um diálogo já mais voltado para a especulação analítica doque para a busca de consensos gerais. O caráter cético ejovial do jovem Platão era abertamente ironizado e criticadona Academia, talvez por ele mesmo, de modo que o estilológico e a minúcia da análise de categorias que tantoinfluenciou Aristóteles não está em contradição com o que eleentão via na Academia. O mestre inclusive desaprovava ostrabalhos dos alunos que copiavam pedantemente o seuestilo e doutrina, fomentando justamente as inovações, asparticularidades e a originalidade de cada aluno. Aristótelesfoi desde cedo um dos que mais correspondeu a estaexpectativa do mestre, confrontando-o com competência eforçando sempre os limites de sua filosofia. Esta postura nãofoi o que os separou, mas pode-se até imaginar, foi a causada admiração do mestre desde o princípio.

Platão chegava de suas viagens com novos problemas sobrefísica, medicina e antropologia que ele mesmo não tinhatempo ou interesse em trabalhar, mas que transmitia aosseus alunos, muitos dos quais se ocupavam destasdisciplinas já antes de ingressarem no colégio. Não foi demodo algum Aristóteles quem criou as novas disciplinas, ouque combateu o diálogo platônico, ele apenas continuou umaruptura e desenvolvimento que correspondiam a toda acomunidade da Academia, e que era diretamente patrocinadopelo mestre. O sistema de Platão permaneceu coerente eharmônico, mas havia crescido tanto para além dos diálogosda juventude, eram tão distantes as suas fronteiras daquelasmais estreitas e monótonas do passado, que a supostarevolução de Aristóteles não foi mais do que um passo paraalém destas fronteiras já muito largas. Distante do jovemPlatão, estava ele ainda bem próximo do velho.

O primeiro dos escritos aristotélicos é um diálogo que lembramuito oFédon, Eudemo. Neste livro expõe o estagirita comproeza uma crítica aos materialistas e a doutrina de que a

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alma seria apenas uma harmonia de funcionamento do corpofísico. Aristóteles defende tão convictamente a imortalidadeda alma quanto o mestre em seu escrito original. (JAEGER1923, p.38) Aristóteles começa lembrando que a harmonia éum conceito dependente de um oposto, a desarmonia, e quealma não possui um conceito oposto como uma não-alma.Enquanto a desarmonia é claramente identificada numconjunto, um oposto para a alma não existe nem naexperiência nem no pensamento. Não havendo para ela umpólo oposto, não pode ser submetido ao conceito deharmonia, ou outro predicado qualquer que possuam umestado contrário, só podendo então ser uma substância. Se aalma é uma substância, não pode ser dependente do corpo,que é uma outra substância, desta vez material, provando-seassim a imortalidade da alma.

Este argumento tem ainda validade, e mesmo restringindo aalma ao conceito de mente, não se escapa das implicações deque ela deve ser uma substância, pois o oposto de umasubstância é sempre o nada. Uma não mente, ou nãoespírito, só são pensáveis como ausência de suas funções equalidades, e tudo aquilo de cujo oposto só podemos pensar aausência é por princípio uma substância. O materialismo emgeral tenta passar por cima desta conclusão lógicareafirmando que a alma é sim uma harmonia entrepropriedades fisiológicas, o que, no entanto, só poderia serassumido como verdade se para isso houvesse uma provaconclusiva. Na dúvida, a hipótese mais lógica é a de que aalma seja uma substância, pois a hipótese contráriaapresenta este conflito de terminologia descoberto porAristóteles.

Também se encontra no Eudemo uma defesa dapersonalidade da alma após a morte, baseada na memória,que é um atributo intelectivo da alma. A permanência damemória seria então o critério para que a personalidadesobrevivesse, em contradição com um princípio intelectualapenas, conforme defendido por muitos filósofos. Não apenas

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neste texto, mas ainda em outros defendeu Aristóteles apreexistência da alma antes da sua conexão com o corpo e aconseqüente possibilidade de reminiscência deconhecimentos anteriores ao nascimento. A interpretação deque Aristóteles negaria estes pontos está muito mais ligadaao condicionamento das interpretações católicas do que aosestudos clássicos do filósofo. Em outro fragmento o filósofoafirma: “A alma penetra visionariamente o futuro ao libertar-se do corpo, durante o sono ou na proximidade da morte, eentão percebe sua verdadeira natureza e é arrebatada pelofirmamento estrelado.” (Frag. 10 R)

O protréptikos é o outro texto destacado da fase platônica deAristóteles, guardando enorme número de conceitos de suafilosofia posterior, como as noções de potencias e ato,desenvolvimento das formas, a função ética do conhecimentoe a impossibilidade de se combater a filosofia. O primeiroargumento significativo é em favor da filosofia como únicaforma de legitimar a vida humana. Uma vida precisa defilosofia para afirmar qualquer escolha ou projeto existencial,e igualmente é preciso filosofar para combater a filosofia. Nãose pode legitimar qualquer conclusão sem umdesenvolvimento lógico e dialético, de modo que paraqualquer posicionamento consciente e justificado é precisofilosofar. Aristóteles também especifica sua noção desubstancia em relação ao platonismo. Enquanto este últimotem a substância como a essência já dada das coisas, a suaorigem ideal, Aristóteles acrescenta a ideia de evolução edesenvolvimento, télos, de modo que a essência das coisas sóse revela na sua ação, não numa análise sobre elas. Umanimal não se permite definir somente pela sua forma eatributos, como pensou Platão, mas principalmente pelo seupapel, pelo que ele faz. Um Leão é, desta forma, além de umanimal quadrúpede, forte e feroz, um predador. Esta últimacaracterística é a única relacionada à sua ação, e a maisimportante. Um homem não tem a sua essência medida pelosseus talentos, origem, aparência e disposições, mas pelo que

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ele realmente faz e realiza. Enquanto Platão definiria umhomem como bom pela sua natureza, ideias e inclinações,Aristóteles diria que esta definição só pode ser dada ao finalda vida, como observação dos atos deste homem. A essêncianão pode ser apreendida inteiramente no estado inicial, ela serevela no desdobramento da existência dos seres. Asubstância não é assim apenas a estrutura a partir da qual éfeita uma coisa ou ser, mas a sua destinação, a essência nãoé o quê, mas para quê.

Pouco depois da morte de Platão, Aristóteles deixa aAcademia e inicia um ciclo de viagens que vai culminar naMacedônia, onde ele inicia a educação do então não tãogrande Alexandre. Nesta fase marca-se ainda mais a suacisão com a escola platônica num ponto que é em quasetodos os aspectos um avanço, a abjeção das Ideias. E oequívoco aqui é imaginar que esta esteja ligada ou acarretenuma negação da imortalidade da alma e de um mundoespiritual que lhes correspondesse. Os dois primeiros escritosconfirmam que Aristóteles não cogitava em associar o “além”ao mundo das ideas. Este último seria somente umaabstração epistemológica e metafísica do platonismo, nadamais. Uma metáfora a qual Aristóteles continuou a recorrerpara exemplificar a independência da teoria das coisasmundanas, mas sem atribuir qualquer existência às ideiascomo formas reais, existindo por si próprias num mundoideal. As essências das coisas, sua parte intelectiva,princípios organizadores, deveria estar estreitamentevinculada à própria coisa. Não haveria, portanto, ideia e leisnum “lugar” esperando para se unirem a matéria e formarcoisas. As coisas já teriam em si leis e matéria como partesinseparáveis e constituintes. A matemática, por exemplo, nãoteria nenhuma realidade em si, existindo num mundoindependente de figuras, fórmulas e grandezas, mas seriauma proporção das coisas, ou entre as coisas. Real everdadeira, mas dependente deste mundo e desta realidade.

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Novamente a difundida conclusão de que isto eliminaria apossibilidade de vida após a morte é errônea, pois o mundodos mortos e as próprias almas não compõem uma “outra”realidade em contradição ou diferenciação com a nossa, masseria parte da mesma realidade, apenas invisível para nós. Asalmas não seriam ideais, mas reais, daí a famosa conclusãode Aristóteles de que elas não teriam existência imaterial, jáque tudo o que existe tem substância, matéria. A confusãocom a terminologia de Aristóteles é produzida por umainterpretação platônica fraca, que associa o material aomundano, e o ideal ao espiritual. Quando Aristóteles fala dematéria não está se referindo a corpos sólidos e grosseiros,mas ao “conteúdo” das formas, aquilo que diferencia umacoisa hipotética de uma real. Platão atribui realidade àsideias, como se a dor fosse uma entidade com significação eexistência em si mesma. Aristóteles diz que a dor só possuirealidade se for concreta, vivenciada, a ideia de dor nãopossui esta realidade, é uma representação derivada da coisareal, que precisa ser entendida e experimentada. ParaAristóteles toda a realidade é matéria intelectualizada, forcaorganizada. Não há separação de mundos e realidades emoposição. O corpo é matéria e energia organizadas segundoscertas leis, a alma é outra forma de matéria e energiaorganizada segundo outras leis.

Esta diferenciação não deprecia nenhuma das duas visões,pois está claro que Aristóteles não desenvolveu conceitosconflitantes com suas origens platônicas, senão apenas novose complementares. A teologia platônica consistia em afirmar asupremacia absoluta do espiritual sobre o material. O mundodas ideias existiria, desta forma, por antecipação e emcompleta independência. Seria imóvel e inalterável aestrutura das ideias. O mundo material seria uma cópiaimperfeita e decadente, e a matéria um princípio grosseiro,sombrio e desprovido de qualquer qualidade positiva. Se amatéria possui organização e vida é porque uma forcaespiritual a habita, porque o reflexo das ideias lhe dá ser e

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qualidades positivas, como beleza, utilidade, equilíbrio oujustiça. Aristóteles, por outro lado, não apenas não vê asideias separadas da matéria, como não admite um princípiovil e pernicioso no universo. Tudo tem sua razão de ser, e,portanto, o seu bem. O universo não é dividido em mundodas ideias e das coisas, com as primeiras sendo eternas e assegundas criadas, mas é inteiramente criado por Deus.Somente Deus estaria fora da cadeia de causa e efeito quetudo regula.

Assim desenvolveu Aristóteles a primeira e talvez ainda hoje amais consistente teoria da criação. Ele percebeu que adefinição de movimento é mecânica, transmissão de forca deum para outro objeto, uma cadeia de causalidade sem ator,apenas com elementos passivos. Esta definição revela-seinsustentável quando buscamos a origem do movimento, enos deparamos com uma série infinita de corpos movidos poroutros, sem que nenhum seja o responsável final pelo iníciodo movimento. Embora muitas pessoas até ilustres aindaacreditem na hipótese do movimento eterno, ela é umaparadoxo, logicamente inaceitável como hipótese científica oufilosófica. O Big Bang também não resolve nada, pois a tãopropagada singularidade que teria dado origem ao universonada mais é do que a maior prestidigitação da ciênciamoderna, que varre para debaixo do tapete a série decausalidade afirmando que o primeiro movimento surgiu“espontaneamente”. Afirmar que o movimento é eterno ounegar o problema da sua origem nada resolve, pois a suaconceituação não permite qualquer outra definição senão ade que é preciso um ator no início da cadeia. Explicar omovimento a partir da passividade é uma faláciaassombrosamente popular, mas insistir nisso não a tornaracional. A energia inicial precisa ser criada, não pode “estarsempre aí”, pois a transmissão mecânica é passiva, não temuma existência fundamentada em si mesma, senão pordefinição uma existência derivada. Foi então que concluiAristóteles, o movimento exige uma causa ativa, uma forca

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autônoma que não seja influenciada por outra, o que sóprolongaria o problema da cadeia mecânica. Este primeiromotor universal, que deu origem a todas as coisas, é a causaintencional de todos os movimentos do universo.

Foi Aristóteles quem deu a Deus o papel de criador emtermos filosóficos irrefutáveis. Até então este papel só eraatribuído de maneira mitológica a Deus, como no Gênese, ePlatão não conseguiu justificar bem o papel de Deus noprocesso da natureza. É por isso que o filósofo peripatéticoafirma: “Deus é espírito, se não for algo ainda mais elevadoque o espírito.” (Frag. 49 R) Fora da cadeia mecânica,passiva, ele é o sujeito que por sua vontade segundo seu juízoescolhe ativamente dar existência ao mundo.

Referências:

GILL, Mary Louise & LENNOX, James G. Self-Motion fromAristotle to Newton. New Jersey: Princeton University Press,1994.

JAEGER, Werner. Aristoteles: Grundlegung einer Geschichteseiner Entwicklung. Berlin: Weidman, 1923.

Oráculo de Delfos: mil anos de experiência com amediunidade

Sobre a história antiga do oráculo pouco se sabe, e todas asinformações se misturam a lendas. É quase certo que omonte Parnaso era originalmente um santuário de Gea, adeusa terra, e é impossível saber quando o templo de Apoloque deu fama ao lugar foi construído. Mesmo depois destareformulação, a história do oráculo é muito controversa,sendo que somente com Homero iniciam-se os relatos diretose mais elaborados. Ainda assim, embora Homero e Ésquilofossem certamente iniciados nos mistérios gregos, suas

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informações são muito pouco confiáveis, já que não podemser distinguidas de elementos poéticos e fantasiosos típicosda composição de cenário das tragédias e dramas. Comocritério geral convém considerar verdadeiro somente aquiloque é unânime ou muito frequente nos relatos de diferentesautores, mas com isto sobram pouquíssimas informações.

O que se pode afirmar com certeza é que o oráculo eradirigido por um sacerdote homem, responsável final pelaintermediação com os devotos. Era este sacerdote queinterpretava a pítia, acertava os preços das adivinhações,quando eram cobradas, e decidia se a Pítia deveria ou não serconsultada conforme a gravidade e pertinência do assunto.Não por acaso muitos, inclusive no mundo antigo, atribuíamas profecias e adivinhações a este sacerdote, apresentando aprofetisa como sua marionete ou uma hábil atriz sob cujafachada o sacerdote principal do templo buscava manipular aelite grega. A esta tese chamaremos “tese conspiratória” dooráculo.

Um segundo fato amplamente comentado é a existência decavernas nos arredores do monte Parnaso que supostamenteexpeliriam um gás com propriedades alucinógenas. Emboramuitos materialistas trombeteiem esta tese como a tãoaguardada “explicação científica” para as profecias, ela foi naverdade levantada por Plutarco, que conhecia profetisasromanas que se valiam do mesmo recurso próximo a fontestermais e vulcânicas na Itália. A hipótese em geral é bastantesólida, pois desde a antiguidade remota fontes de gásvulcânico eram usados em diferentes países como santuáriosproféticos, e o entorpecimento provocado por ele pode sim terum papel relevante nos ritos dos antigos gregos. Isto inclusivereforça os indícios de que o oráculo de Delfos teria sidoanteriormente um santuário em honra a deusa terra, pois oslocais escolhidos para este mister eram preferencialmente osdotados destas fissuras e cavernas profundas, ou fontes

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vulcânicas. Esta seria a “tese materialista” de explicação dooráculo.

Apesar de que as teses conspiratória e materialista possamcontribuir para a compreensão de muito do que se sabe sobreo oráculo, sendo razoavelmente verdadeiras em certo sentido,elas não fazem jus às principais e mais famosas passagens dahistória que nos são relatadas pelas fontes mais sérias ecriteriosas, como os filósofos e historiadores. Nenhuma dasduas nos permite compreender como certas adivinhaçõesimprováveis eram feitas com sucesso e relativa freqüência. Aideia de um grupo supersticioso e mal intencionado dirigindoa comunidade crédula é também ridícula quando se observaa infinidade de relatos dos maiores intelectuais gregosatribuindo ao oráculo as sentenças mais sábias e as ideiasmais complexas. No mínimo há que se convir que o grupoenvolvido nas atividades proféticas compunha uma eliteintelectual competente o bastante para ser reconhecida pelosmaiores nomes da cultura grega.

Se por um lado há razões para suspeita quanto a naturezamediúnica das profecias, pois elas eram eventualmentepagas, envoltas em enigmas e simbolismos, e inclusive seconheciam muitos casos de charlatanismo e encomendas defalsas adivinhações, é também verdade que em certas épocasPítias e sacerdotes de Delfos foram admirados comosumidades intelectuais e referencias de honradez, e suasmais famosas profecias não poderiam ser plausivelmentecreditadas ao charlatanismo ou ao delírio.

O papel da Pítia também está coberto de mistificaçõesgrosseiras, associado ao posterior culto das vestais romanas,que eram jovens geralmente virgens envolvidas em atividadesestritamente ritualísticas. A Pítia grega era sempre eleita porvolta dos 50 anos ou mais para um mandato vitalício. Quasesempre era esposa e mãe, não correspondendo àsidealizações que a retratam como uma jovem virginal.Trajava, entretanto, um manto alvo como símbolo de sua

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pureza, pois era proibida de manter relações sexuais apósassumir o ministério. Também era forçada a abandonar afamília que tivesse, não podendo sequer revê-los. Habitava otemplo e era a partir de então considerada noiva de Apolo, emforte consonância com a vida monástica das freiras católicas.As Pítias eram rigorosamente selecionadas pela condutaimpecável, vida devocional e por “ligações conhecidas com osdeuses”. Em geral a figura da Pítia é a da mulher de meia-idade respeitada na comunidade por seus ascendentesmorais e piedade, comumente uma conselheira da aldeia, dequem se sabia já ter tido visões ou ouvido vozes dos deuses.

Sobre o estado profético há inúmeras descrições, sendo amelhor deles a de Plutarco, que observa que nas Pítiasmudanças expressivas de voz durante as mensagens. Outrasfontes ainda certificam que a Pítia não falava por enigmas, eque os sacerdotes seriam responsáveis por converter amensagem em uma charada. Esta informação éprovavelmente verídica, pois fontes históricas segurasrelatam a fúria vingativa dos reis e tiranos ao receberemprofecias contrárias a sua vontade. Convertendo as profeciasem charadas os sacerdotes produziam uma ambigüidade quegarantia a sua imunidade contra os requerentes, transferindopara eles a responsabilidade de interpretar a profeciaconforme a sua própria capacidade e/ou preferência. De umacerta forma poderíamos dizer que o oráculo falava porparábolas, ocultando assim o seu ensinamento para os maissensatos.

Por suas prerrogativas de excelência na seleção das Pítias esacerdotes, e por seu histórico de adivinhações corretas erecomendações prudentes, o oráculo tornou-se um elementopolítico e social irrefutável. Os reis ouviam atentamente osseus pronunciamentos, e a maioria das pessoas religiosasnão cogitava de lidar com um assunto grave sem umaconsulta, se ela fosse possível. Licurgo, rei de Esparta eorganizador da constituição desta cidade teria recebidoinspiração do oráculo nas linhas principais da sua carta de

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direitos. Pausânias, também rei de Esparta, teria recebidomensagens semelhantes sobre as leis apropriadas para acidade. Esta intimidade entre o oráculo e os reis éamplamente documentada por Aristóteles, Heródoto eDiodorus Siculos. Parte da mensagem que o rei Licurgo teriarecebido diz: “Tão longo honrardes as vossas promessas eoferendas ao oráculo, renderdes perfeita justiça uns aosoutros e aos estrangeiros, dignificando pura e santamente osanciãos de vossa terra... Zeus senhor dos céus vos poupará esalvará... Somente o amor ao dinheiro, e nenhuma outracausa, há de destruir Esparta.”

Também Atenas foi agraciada com uma profecia sobre suaépoca áurea, marcada pelo século de Péricles. Pouco antesdeste período conclusivo para a cultura humana e no iníciodos embates entre Atenas e Esparta, o oráculo profetizou: “ÓAtenas, bastião guerreiro, após muito sofrimento, sacrifício edor, se perseverares contra todos os infortúnios o teu nomeserá alçado à altura do vôo das águias, onde permanecerápara sempre.”

O oráculo também fez fama por suas parábolas morais, dasquais uma foi habilmente registrada por Sólon. Segundo estesábio, o oráculo difundia ocasionalmente mensagens de teorinstrutivo acerca das coisas divinas e das leis naturais, emcaráter extraordinário em relação as suas atividades normaisde adivinhação. Numa destas histórias os irmãos Biton eCleobis preparavam um carro para conduzir a mãe,sacerdotisa, de Argos para o templo de Hera. Por que asbestas de carga não chegavam, os irmãos tomaram sobre sios arreios e arrastaram a carruagem pelas cinco milhas emeia até o templo. A mãe maravilhada abençoou-os assim:Recebem a maior bênção que os deuses possam conceder aoshomens. Os irmãos voltaram alegremente para casa, eamanheceram mortos no dia seguinte (presumivelmente nãopelo esforço). A lição que Sólon retira da anedota é a de que alibertação da vida terrena é a maior benção possível.

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Heródoto conta uma outra passagem de cunho moral,quando Estrabo perguntou a Pítia se deveria mudar-se paraCorinto, e ela teria respondido: “Corinto é abençoada comimensa fortuna, mas eu por mim ficaria em Tenea.”Referindo-se a humilde cidade em que Estrabo já vivia, e queera conhecida pela conduta digna de seus habitantes.

É conhecido que o oráculo possuía em seu pórtico a inscrição“conhece-te a ti mesmo”. Esta é, contudo, apenas a inscriçãomais famosa. As três frases apareceram por volta de fins doséculo VI a.C. e são atribuídas aos sete sábios, mas o maisprovável é que sejam dos próprios sacerdotes de Apolo compossíveis influencias dos sete sábios do século VI. Além dasentença mais famosa havia também “Nada em excesso” e “Sevais confiante encontrarás rápido a tua destruição”.

Quanto ao poder divinatório do oráculo nenhuma passagem oatesta mais do que a do matuto que tentou ridicularizar ooráculo colocando um pássaro vivo em um saco, e propondo-se a perguntar ao oráculo se a ave estava ou não viva. Caso ooráculo afirmasse que sim, ele sufocaria a ave, e se o oráculodissesse que ele estava morto, ele liberaria a ave viva. A Pítiafoi capaz de captar-lhe o pensamento e proferiu: “Amigo, tupodes mostrá-lo vivo ou morto, pois a resposta está em seupoder.”

Por estes fragmentos já se percebe o quão ricos são estesregistros. A papirologia atual conta com mais de 600 registrosdiretos de perguntas feitas ao oráculo em quase oitocentosanos de atividade, contendo as respectivas respostas. Osassuntos são os mais diversos, desde perguntas pessoaissobre doenças e casamentos até projetos de fundação denovas cidades (notadamente Siracusa) foram apresentados aooráculo. Também por inúmeras fontes históricas e poemastemos retratos mais ou menos fiéis deste que foi o centro dareligiosidade grega em seu auge.

Seria desejável, e aqui deixo o convite, que uma pesquisaextensa fosse feita incluindo todo este material e

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organizando-o conforme as categorias desenvolvidas naCodificação. Daí surgiria um retrato muito claro dosprocedimentos da prática mediúnica, do conteúdo do ensinotransmitido através das Pítias e das implicações sociais,culturais e históricas desta que afinal foi uma instituiçãopública, amplamente conhecida, de “endereço fixo” eduradouro a operar o intercambio entre o nosso mundo e dosdeuses.

Referência:

PARKE, H. W.; WORMELL, D. E. W. The delphicOracle.Oxford: Basil Blackwell, 1956.

A filosofia chinesa

A China é um continente a parte, com população, tamanho ecomplexidade cultural mais que suficiente para se igualar aEuropa, ao Oriente Médio e a Índia no que se refere ao seupapel no desenvolvimento da civilização. Englobando a Coréiae o Japão, seus filhos espirituais, e estendendo sua influenciasobre o Vietnã, o Camboja e o Laos, com menor presençasobre os demais países do Sudeste Asiático, compõe o grupocultural majoritário ao lado do conjunto que denominamos“Ocidente”.

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A recente ascensão econômica e tecnológica da China e detodo o Extremo Oriente forçaram a mentalidade ocidentalpara fora de sua área de conforto, que alcança até opensamento indiano do qual proveio a cultura e o povoeuropeu, de modo que o papel dos povos orientais noprogresso técnico e no refinamento da civilização tornou-seagora, imprevisível e extraordinariamente, uma realidadepara nós.

As dificuldades de tradução e compreensão permanecem, noentanto, imensas e quase insuperáveis. Enquanto a filosofiaindiana foi escrita em sânscrito, a mãe de todas as línguaseuropéias, e está baseada nos adjetivos e verbos, como afilosofia européia, o pensamento chinês está radicado na sualíngua simbólica. As filosofias indo-européias possuem doisquestionamentos básicos. O primeiro deles é se os adjetivospertencem intrinsecamente ao sujeito, como sua essência ouse são acidentes. O segundo deles está relacionadoprincipalmente com o verbo “ser” e suas variantes (tornar-se,poder ser, permanecer, etc). Isto é a base da lógica e dametafísica ocidental e indiana, a saber, a análise deafirmações com a finalidade de confirmar se algo é aquilo quese afirma sobre ele, se a essência ou o ser de alguma coisapermanece com as suas mudanças e transformações. Alíngua chinesa não possui nem os mecanismos complexos depredicação nem o verbo “ser”, impedindo completamente odesenvolvimento da lógica e da metafísica. A gramáticapraticamente não existe, e faltam-lhe elementos que qualquerlinguista ocidental consideraria vital para a expressão dospensamentos mais básicos. Ainda assim, a Chinadesenvolveu uma filosofia toda própria que assombra efascina os que dela se aproximam.

Para começar a tratar da filosofia chinesa é preciso ter emmente esta diferença radical da língua escrita e falada,especialmente da primeira. Os chineses não têm comodesenvolver argumentos lógicos a partir de sua língua, porisso refinaram a expressão de ideias inteiras por meio de

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imagens. Seus argumentos são representativos, ao invés dedemonstrativos. Imagine-se, por exemplo, expressando a ideiade que a casa de seus pais era bonita, e que sua mãe foitambém muito bonita na juventude. Você seria obrigado adizer: “casa de meus pais bonita”, deixando o interlocutor nadúvida se ela ainda é ou se foi apenas no passado.Provavelmente você deveria acrescentar alguma informaçãopara deixar claro que a casa não existe mais, ou está feiaagora. O mesmo valeria para sua mãe, você teria que dizer:“Minha mãe jovem bonita”. O pensamento chinês não époético e singelo por opção. Ele não tem outra alternativa.

Com isso a filosofia chinesa adaptou-se desde muito cedo àsmáximas e axiomas, buscando sempre a definição perfeita deideias e coisas. A vantagem deste processo é permitir umagrande precisão e sobriedade no trato das questões. Nãoexiste pensamento abstrato, ideias em si ou princípiosmetafísicos. Tudo é o que é e mesmo as coisas maisesotéricas são apresentadas como concretas. A desvantagemé a perda de dimensão crítica, pois as línguas indo-européiaspermitem com a sua especulação sobre o “ser” das coisas umquestionamento quanto a sua realidade. Os chinesesapresentam grande dificuldade em separar o que é real doque é possível ou hipotético, de modo que ou aceitam ideiasmágicas e místicas como absolutamente concretas, ou comoabsolutamente falsas. Os inúmeros episódios da história daChina mostram a guerra entre facções religiosas e céticas,num extremismo raro entre as classes intelectuais da Europae da Índia. Enquanto os sábios ocidentais e indianos temcomo certo o relativismo, um certo grau de dúvida e aconvivência entre múltiplas hipóteses razoáveis, os sábioschineses estão em perpétua discordância quanto aoselementos mais básicos da civilização. Um outro reflexo destamenor capacidade crítica das línguas orientais é oconservadorismo. Se Confúcio estava certo não há porquerever o seu ensino. A doutrina é aprendida, não desenvolvida.Assim pensavam os próprios fundadores das escolas

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religiosas e filosóficas. Todos acreditavam estar reproduzindoo pensamento anterior, jamais inovando.

Os ideogramas possuem ainda uma particularidade digna denota. Quase todos são montados a partir de outros maissimples. Os famosos termos Ying e Yang, por exemplo, podemser formados por diversos ideogramas, mas um deles éparticularmente sugestivo. O ideograma para Ying, quesozinho representa gelado e escuro, junto com o ideogramado sol formam o Yang. Esta simbologia é muito interessante,pois o Yang (princípio da luz e da ação) é formado a partir doseu oposto mais o sol. Desta forma oYang representa tambémo “reflexo” do sol no elemento passivo que é o Ying. Oschineses adoram desdobrar os ideogramas ou comparar assuas formas entre si, e consideram os resultados destascombinações uma verdadeira investigação filosófica. Acharuma semelhança entre os símbolos para “Brasil” e “quente”não seria considerado uma coincidência para a maioria deles,mas uma revelação de que a natureza da língua escondemistérios simbólicos.

Por estas linhas gerais se percebe que o pensamento chinêsconvive em paz com o dogmatismo. Isso não apenas propiciouo surgimento das superstições, ritualismo e mitos, comotambém abriu espaço para o comunismo, a superstiçãotravestida de ciência social. Mas seria uma inconsequênciabárbara supor que esta antiga e requintada civilização nãopossui compensações e contrapesos que a tornam em váriosaspectos superior à nossa. O país do meio, como seautodefiniu por quase três mil anos, teve o seu primeirogrande código legal com Fo Hi, por volta de 3.500 antes deCristo. Esta assombrosa data era considerada pelos chinesesdo século VI a.C como a Idade Antiga, enquanto o períodoiniciado por volta de 1200 a.C. seria a Idade Moderna,coincidindo com a fixação dos judeus na Palestina após afuga do Egito e a guerra de Tróia.

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A época que marcou definitivamente o pensamento chinêsfoi a decorrida entre os séculos VII e IV a.C, também emparalelo com idades de ouro da Índia e da Grécia. Éimpressionante imaginar que Buda e Patanjali na Índia,Tales, Pitágoras, Heráclito e Sócrates na Grécia e Confúcio eLao-tsé na China dividiram o mesmo período. Até então aChina era composta por uma grande diversidade de crenças epolíticas mais ou menos uniformes. A religião era baseada emtrês princípios: a mitologia, responsável pela educação básicados elementos da natureza e do caráter humano, geralmentecom deuses ligados aos fenômenos celestes, aos ventos, aosol e a lua; a ética, que era tanto um princípio político derespeito às leis quanto uma recomendação religiosa; e o cultoaos antepassados.

Os sábios da era clássica trabalharam com todos estesconceitos, dividindo-se quase naturalmente por áreas deinteresse. Lao-tsé, que conta como o maior mestre religiosoda história chinesa, desenvolveu uma ética naturalista,racionalizou a natureza e organizou a religião segundo osprincípios de uma união mística genérica com a natureza e osdemais seres humanos. O taoísmo desenvolvido a partir deleconservou a doutrina da serenidade, da paciência e tolerânciaacima de todas as motivações terrenas.

Lao-Tsé.

Lao-tsé pregava a necessidade de afastamento da vida sociale uma vida ascética e extremamente frugal, onde apenas asalegrias da paisagem bucólica e do autocultivo deveriamocupar o espírito. Identificou o silencio como a técnica maisperfeita de meditação e instrução. Via a energia divina emtodas as coisas, a harmonia completa, a beleza e a perfeiçãoem todas as pessoas, objetos e fenômenos.

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Confúcio opôs-se ao mestre por desejar uma filosofia maisterrena e mais de acordo com as necessidades do mundopolítico e social. Para isso deu absoluta importância aoconceito de justiça, baseado nas máximas de “não fazer aosoutros o que não gostaríamos que nos fizessem”, e “nãoaplicar aos subordinados regras que nós mesmos nãogostaríamos de seguir”. Desinteressado das questõestranscendentais, concentrou-se exclusivamente nocomportamento humano. Não tinha pretensão de formarsantos, como Lao-tsé. Almejava apenas a educação docidadão comum de modo que cada indivíduo optasselivremente por converter-se em célula obediente e produtivada sociedade. Confúcio foi sumamente realista, prudente ereto, exigindo metas simples e possíveis de serem atingidaspelas massas. Sua filosofia, segundo ele mesmo, só possuía aautoridade de seu próprio exemplo. Não reconhecia-se eruditodos textos antigos ou portador de uma mensagemrevolucionária. Acreditava e pregava, ao contrário, ser apenasum seguidor fiel das tradições e leis, cujo único mérito eraesforçar-se para honrar a educação recebida de seus pais eavós. Pragmático, dizia que a reforma do cidadão em homemhonesto era a máxima felicidade que a civilização poderiaoferecer, e o único recurso garantidor da paz, daprosperidade e da segurança.

Confúcio também foi, juntamente com os legalistas, o pai dosconcursos públicos. Seus discípulos conseguiram aplicar aideia em algumas províncias, o que se tornou para sempreuma das maiores conquistas da China.

Confúcio.

Os funcionários do governo de todas as nações eram atéentão escolhidos pelos soberanos e pela aristocracia. Com aideia de concursos públicos baseados no mérito os chinesesconseguiram estabelecer uma casta burocrática cujacompetência era medida pelo conhecimento dos textos ao

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invés do agrado aos soberanos. Esta casta burocrática nãoapenas garantiu uma educação contínua e permanente namaior parte da China, pois os pais desejavam educar os seusfilhos para ascensão social através dos concursos, comogarantiu a estabilidade e a qualidade das leis contra o arbítrioe até a insanidade dos soberanos. Enquanto Roma via seusloucos imperadores perverterem as noções básicas de direito,sendo sucedida pelos selvagens regentes bárbaros da IdadeMédia, a China, embora submetida a autoridade absoluta deseus monarcas, preservou sempre uma culta eliteadministrativa a ditar altas e polidas normas de conduta.

A terceira força do pensamento chinês clássico é o legalismo,que sequer possui uma figura de destaque. Pode-se dizer atéque o legalismo existiu desde sempre, como forma básica dacultura oriental, mas ele também experimentou grandedesenvolvimento por volta dos séculos V e IV a.C. O legalismoprega basicamente a incapacidade do homem de promover aprópria educação moral, de modo que as leis e o governopossuem um papel essencial na garantia da moralidade dosindivíduos. Por mais anti-liberal e alienígena que nos pareçaesta ideia ela teve um papel muito importante na culturachinesa, e não difere tanto do pragmatismo ocidental quantoàs leis. Longe de ser um dogmatismo ou uma prescrição depassividade apenas, o legalismo tenta conscientizar osindivíduos de que a vida coletiva não pode ser organizadasem a abdicação de parte da liberdade dos cidadãos. Estesprecisam se apagar em nome do Estado, ou a ordem nãopassará jamais de uma utopia. Por isso o legalismo prega queas leis devem ser seguidas não importa o quão erradas elaspareçam. A moral da consciência individual deve serreprimida, pois os indivíduos discordam uns dos outrosproduzindo o caos. Somente a moral do governante érelevante, já que ela distingue na prática quais punições erecompensas estão em vigor.

Como uma reação natural ao tradicionalismo dos legalistas ede Confúcio, o sábio Mozi desenvolveu uma linha de

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pensamento que prioriza a moral individual. Mozi considerouhipócritas os conservadores e pragmáticos que almejavam aordem social, e os acusou de perverterem a moral natural emfavor do interesse político. Sua doutrina pregava então oamor universal a todas as criaturas, a busca da justiça e dobem a qualquer custo, mesmo que fosse necessário lutarcontra o governo, os sacerdotes e a própria família. Apesardisto não tinha menos interesse pelas questões sociais do queseus contemporâneos. Ele acreditava que a bondadeindividual seria o melhor método de garantir a ordem e a paz,pois estas últimas seriam produzidas automaticamente. Aoinvés disto, as escolas éticas concentradas nas leis e norespeito a tradição não seriam capazes de reformar oindivíduo, produzindo uma paz ilusória e temporária.

Mozi.

Este enfoque prático das filosofias chinesas facilitou aproliferação do budismo que chegou ao país em princípios doséculo IV. Mais tarde a China acomodou também o Islamismoe o Cristianismo, ambos com expressivo número deseguidores, embora conservando as suas formas maisortodoxas e rígidas. Se por um lado o diálogo não é o forte dafilosofia chinesa, originando esta multiplicidade de variaçõesestanques e cristalizadas de tradicionalismo, é tambémverdade que o pensamento chinês vai fundo aos conceitos eproduziu algumas das imagens mais poéticas da religião,alguns dos mandamentos mais veneráveis da moral e algunsdos princípios mais sóbrios da política de todos os tempos.

Quando Lao-tsé se deparou com a ideia de unidade danatureza, não foi através de um argumento lógico que ele no-la apresentou. Sua sabedoria foi formulada em duas linhasdesprovidas sequer de um elemento de ligação, mas quecompõem apesar disto um quadro completo:

Folhas caindo tocam-se umas as outras;

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A chuva toca a chuva.

Deve interessar-nos uma profundidade poética e filosóficaque independe de toda a estrutura que tomamos porimprescindível, a exemplo de como pode a mesma mentehumana elaborar distintos caminhos que se completem rumoà verdade. Além disso são dignas de nota as semelhançasentre o pensamento padrão do Extremo Oriente e oEspiritismo. Desde o budismo, mas talvez antes são gerais osconceitos de reencarnação e carma. A noção de energia vital éincontestável em todas as nações sob a área de influenciachinesa, com destaque para o Japão onde a força vital édiretamente associada ao poder da vontade. É a partir destaenergia bioplástica, o Chi ou Ki, que se originam osfenômenos paranormais. Acredita-se que os parentesinteressam-se pelas suas famílias e continuam a protegê-lasdo além, crença esta que originou o culto aos mortos eentidades protetoras do lar. Os místicos orientais mais do queacreditam na possibilidade de comunicação com os mortos,eles a tem como amplamente comprovada pela experiência.

A par das diferenças de concepção, a experiência iguala demaneira impressionante as crenças de todas as civilizações.

Mistificação e esoterismo: Os riscos do espiritualismo

Todo o tipo de espiritualismo, que não deve ser confundidocom religião, possui vantagens e desvantagens muitoparticulares. Isto porque o espiritualismo é um conjunto deprincípios filosóficos que se propõe a explicar o cosmo emcontraposição ao materialismo. Esta contraposição resume-se

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tão somente em defender a existência de um elementoespiritual no universo, seja intelectual ou apenas volitivo.

Schopenhauer e Nietzsche, embora ateus, não são de modoalgum materialistas, senão marcadamente espiritualistas,pois acreditam numa força imaterial (e, portanto, espiritual)intrínseca ao universo, a vontade. O Budismo, além deapresentar vertentes ateístas nega também uma realidadeconcreta ao intelecto e a vontade conforme as entendemos,mesmo assim também pode ser considerado espiritualista,pois para os budistas a matéria é um subproduto danatureza mental-volitiva do eu. A maioria dos espiritualistas,porém, crê em Deus ou numa força absoluta, dotada derealidade concreta.

Os espiritualistas concordam quanto à insuficiência dossentidos na apreensão da realidade. Para eles, é necessáriauma espécie de intuição ou sensibilidade especial para oelemento sutil da vida enquanto tal que transcende amaterialidade, e, portanto, os sentidos físicos. Nietzscheidentificava através desta sensibilidade metafísica umapulsão vital, a vontade de poder, que orientaria a evoluçãodas espécies e produziria formas cada vez mais fortes, atéculminarem no super-homem. Já os Yogis acreditaminvestigar diretamente a energia sutil através de técnicasrefinadas de meditação e controle respiratório, de modo aadquirirem suas habilidades extraordinárias, especialmente aresistência a todo o tipo de desconforto e privação material.Judeus, cristãos e muçulmanos acreditam numa espécie decapacidade intuitiva para reconhecer a validade dos profetas,de modo que o “espírito reconhece o espírito”, e suasescrituras compartilham um elemento bem seletivo queidentifica as almas propensas à recepção da mensagemdivina como dotadas de “olhos e ouvidos espirituais”. OEspiritismo leva ao extremo o enfoque na sensibilidadeespiritual, apontando para o intercambio permanente entre omundo físico e o além, para a interconexão entre todos os

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seres, vivos ou mortos, e enfatizando a capacidade universalde movimentar energias sutis através de qualquer ato mental.

Todas as formas de espiritualismo, exatamente portrabalharem com esta sensibilidade para os fenômenos maisdiscretos e sutis da natureza, correm o risco de superexcitara imaginação, dando margem a todo tipo de superstição ecrendice. É, portanto, um risco grave para os espiritualistas afalta de cautela em relação a novidades, modismos epersonalismos. O Espiritismo em particular prega o tratocientífico dos elementos espirituais da natureza, buscandoevitar exatamente a proliferação de crenças e dogmasconflitantes quão ineficazes. E conquanto seja difícil manter oEspiritismo sob a tutela de rigores científicos, estando eledifundido em todas as camadas da sociedade, as referenciasmínimas ao método crítico permanecem questão de urgênciase o que se pretende é evitar a progressiva fragmentação emseitas esotéricas.

Fique bem entendido que não apoio qualquer discriminaçãocontra grupos que comportam novidades e particularidades,mas a definição de esotérico é a mais apropriada neste caso.Isto porque esotérico corresponde àquelas comunidadesprivilegiadas por um conhecimento que outros não possuem,ou com tradições, práticas e regras que só são conhecidas ourestritas a esta comunidade. Esotérico não é um equivalentepara insensato ou irracional, mas para alguém ou algumasociedade que acredita estar em posse de uma revelaçãoespecial. Embora isto seja possível, não é recomendável, poisquem se acredita na posse de um privilégio destes não temcomo averiguar sua veracidade de forma racional.

O Espiritismo nega firmemente a ideia de uma revelaçãorestrita ou especial para um grupo étnico ou religiosoqualquer, e isto por motivos científicos e filosóficos.Científicos porque um fenômeno natural tem de apresentar-se universalmente, e não apenas para os crentes. Filosóficoporque este privilégio contraria a justiça divina, senso

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absurdo supor que um conhecimento benéfico ao gênerohumano fosse reservado a um grupo de eleitos. Quando osromanos se queixaram a Paulo, alegando que os judeustinham uma tradição profética que facilitava a vida regrada, oapóstolo dos gentios rebateu como absurda a ideia de queDeus só revelara suas leis aos judeus:

“Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eternopoder como também a sua própria divindade, claramente sereconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidospor meio das cousas que foram criadas. Tais homens são porisso indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deusnão o glorificam como Deus... antes se tornaram nulos emseus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coraçãoinsensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos, emudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança daimagem do homem corruptível, bem como de aves,quadrúpedes e répteis... Pois eles mudaram a verdade deDeus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugardo Criador...” ROMANOS: I, 20.

O que Paulo já estabelecia nas epístolas só aumentacom o surgimento da ciência e a Idade da Razão. A revelaçãonão pode contrariar o conhecimento comum, nem a fécontradizer a lógica e a observação mundana. Por mais quehaja formas complementares de conhecimento, todos devemsubmeter-se aos critérios de validade pública para quepossam integrar um corpo doutrinário coerente. Ao assumiruma revelação exclusiva estaremos cortando os laços com oscritérios de validade universal do conhecimento, queconsistem na exposição e discussão pública dos fenômenos.O fenômeno mediúnico já é por demais melindroso para quedescuidemos de uma averiguação cuidadosa.

Para evitar os personalismos e a criação de facçõesesotéricas, cada qual pretendendo gozar de informaçõesespecíficas e privilegiadas sobre o mundo dos espíritos,

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Kardec formulou cláusulas científicas e racionais muitoprecisas. Entre elas citamos só de passagem o controleuniversal do ensino dos espíritos e as repetidas afirmações deKardec e dos espíritos sobre o privilégio da dúvida sobre acerteza.

O controle universal do ensino dos espíritos é o fio dabalança científica de Kardec. Como a maioria dos fenômenosé de caráter intelectual, e a sua medição física impossível, ojulgo científico da doutrina espírita não pode prescindir deum controle comparativo das comunicações em si. Ao tempode Kardec já haviam inúmeras teorias e até mesmo crençasenraizadas sobre a natureza do mundo espiritual, de modoque ele identificou suas contradições e os perigos demistificação inerentes a prática da mediunidade. A respostatécnica para o problema foi o da amostragem geral dascomunicações espíritas em diferentes cidades e países, pordiferentes médiuns e preferencialmente através decomunicações espontâneas. Desta forma elimina-se toda apossibilidade de personalismo, pois os julgamentos sãobaseados na maioria dos resultados, e não naquelespeculiares a este ou aquele grupo. A semelhança ouunanimidade em relação a temas muito complexos, aidentidade de terminologias, metáforas, exemplos e hipótesesvindos de médiuns desconhecidos e em condiçõesincomunicáveis, depõem contra qualquer possibilidade deadotar-se uma concepção formulada por influencia do meioou da personalidade dos médiuns.

Adicionalmente ao controle universal das informaçõesKardec propunha a postura crítica mais rigorosa mesmo emrelação aqueles conhecimentos que parecessem unânimesmajoritários entre os médiuns. Longe de adotá-los apenassegundo o critério “democrático” do controle universal,expunha-os ao crivo da razão e questionava a suapertinência, coerência, aplicabilidade e se a teoria em questãoacrescentava algo ao que já se sabia.

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Sem condenar o esoterismo, podemos afirmarcategoricamente que ele não pertence à prática espírita, e queinclusive a confronta. Por estas razoes somos forcados areconhecer que toda a forma de esoterismo constitui umaagressão dos princípios mais básicos do Espiritismo. Nãoobstante, as influencias esotéricas são perceptíveis e atéfrequentes entre adeptos do Espiritismo.

Com base na definição feita até aqui discriminamoscom segurança alguns dos elementos esotéricos que nãopoderiam figurar entre os ensinos e práticas dos espíritas:

1- Os rituais: Pois todo tipo de ritual é, por definição, umaimposição comportamental que prescinde de justificação. Opasse a fluidificação da água, por exemplo, são amplamentejustificados dentro dos conceitos espíritas referentes aosfenômenos naturais, e se estabeleceram por confirmação deseus resultados positivos através da experiência. Apreferência por roupas ou adereços da cor branca, por outrolado, não possui nenhuma destas prerrogativas, sendodifundida de modo dogmático e ritualístico, por forca detradição e argumentos de autoridade. É, pois, uma práticaesotérica, na medida em que seus defensores alegam haverrazões para o seu uso, mas estas "razões" não sãojustificáveis de forma realmente lógica, apenas aceitas comorevelação dos espíritos.

2- Todas as revelações provenientes de uma só fonte: Umavez que só podemos garantir uma análise racional deinformações amplamente verificadas através de váriosmédiuns sem predisposição prévia a determinadas ideias.Assim, todas as informações extras transmitidas por viamediúnica devem ser colocadas primeiramente sob suspeitaaté que se comprove a sua suficiente justificação racional,não importando para isto o renome do médium. Desta forma,a revelação dos casos de licantropia, claramente umacréscimo em relação às informações de que já se dispunhana época de Kardec, só estabeleceu-se como plausível por sua

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concordância lógica com a Doutrina dos Espíritos, já que sesabe que o perispírito é elemento plástico submisso aopensamento e que imagens e fixações patológicas podemimprimir-lhe condensações energéticas de longo prazo, etambém porque esta informação foi repetida por múltiplasfontes seguras e independentes. Por outro lado, revelaçõesque não possuam sintonia direta com a Doutrina dosEspíritos e que se liguem exclusivamente a um médium ouespírito devem ser desconsideradas sem maiorespreocupações como não-espíritas. Enquanto não se firmeracional e empiricamente toda a inovação nas revelaçõesmediúnicas deve ser tida como esotérica, ou seja,incomprovada, restrita a classe de revelações especiais adeterminado grupo ou pessoa, o que não quer dizer que sejaobrigatoriamente falsa.

3- Toda a informação importada de outro sistema nãocientífico: É comum entre os espiritualistas flertar com outrasdenominações análogas. Mística indiana, sobretudo o yoga,acumpultura, tai chi, umbanda, xamanismo, cartomancia eoutras práticas são todas mais ou menos enquadráveis comoesotéricas. Novamente isto não implica a sua falsidade,apenas a sua insuficiência em justificar-se racional ecientificamente. Os seus praticantes e os espíritassimpatizantes devem ter a honestidade de não atribuir a estesprocessos o nome de ciência, a não ser de modo muitogenérico, como conhecimento e experiência adquirida. Algunsdestes possuem até um aspecto científico, mas abraçamelementos rituais, revelações não racionalizadas, simbolismose hábitos injustificados transmitidos por autoridade datradição, sendo desta forma, ao menos parcialmente,esotéricos. Na medida em que sejam esotéricas, nenhumadoutrina espiritualista possui afinidade com o Espiritismo.Isto não é uma condenação a estas práticas, mas umaexigência de que se apresentem despidas de seus elementos

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esotéricos, para que então possam ser aceitas de acordo comos critérios de racionalidade do Espiritismo.

É o Espiritismo um Panenteísmo?

Artigo publicado na revista Reformador, de Junho de 2006.De lá para cá o termo "panenteísmo" popularizou-semuitíssimo, sendo empregado em diversos artigos espíritas,embora nem sempre corretamente. Também surgiram porparte de católicos e protestantes "acusações de panenteísmo"contra o Espiritismo, escritos estes que deixam entrever umaconcepção antropomórfica tão grosseira que acabam por fazerapologia ao que pretendiam combater. Em geral opanenteísmo firmou-se como a concepção superior e maisavançada da teologia deste início de século, em todas asdenominações cristãs.

Desta forma temos hoje essencialmente as seguintesvariantes teológico-metafísicas: Dualismo, que defende aexistência de duas realidades distintas e independentes,algumas vezes ressaltando a incapacidade de Deus deinterferir na esfera material, com suas leis próprias.

O Panteísmo, que iguala completamente Deus e a Criação,afirmando ser o primeiro um termo que descreve o conjunto ea totalidade do segundo, ou que o segundo seria uma merailusão, resultado de uma visão parcial e falha do todo, que éDeus. Assim o panteísmo “mata” necessariamente a realidadede Deus ou do mundo, pois somente um dos dois pode serefetivamente real, enquanto o outro seria subordinado. Ospanteístas gostam de metáforas que diluem asindividualidades e particularidades como: cada pessoa ou

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criatura é uma onda do oceano universal, ela pertence e nadamais é do que um pedaço do oceano visto separadamente.

E por fim o Panenteísmo seria um esforço de unificar as duasconcepções anteriores, ou seja, a de que Deus e o mundo sãouma unidade orgânica e a de que ambos são, em certamedida, independentes e individuais. A dificuldade que ospanenteístas enfrentam atualmente é a de superar asdiversas conotações e ambigüidades lógicas deste em certamedida.

***

Tanto para a filosofia quanto para a teologia e mesmopara o misticismo a relação entre Deus e a Substância doUniverso é um dos pontos mais relevantes para uma teoria dareligião.

Antes mesmo de considerar as implicações morais daexistência de Deus enquanto supremo legislador é precisoinvestigar teoricamente as “condições de Sua existência”,tarefa que ocupou filósofos e teólogos desde o início dostempos, uma vez que destas concepções derivam os conceitose o entendimento mesmo da relação homem/Deus,Deus/Mundo, Deus/destino, e outras implicações queconstituem o cerne da Religião.

Para se ter ideia da importância deste assuntolembramos que o ateísmo é fruto da revolta contra umapéssima imagem de Deus, o Deus humano e exterior,escondido em algum recanto dos céus. Uma compreensãofilosófica simplista ou deturpada da natureza de Deus pode,portanto, resultar nos maiores absurdos quanto ainterpretação de Sua influência no Mundo, gerando doutrinas

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baseadas no medo, na expectativa, na dicotomia da vida, queresultam invariavelmente em angústia, descrença e rebeldia.

Ainda na raiz das tradições religiosas mais avançadasda Antigüidade, tais quais as da Índia, do Egito, daMesopotâmia, da Judéia e da Grécia, vê-se umamultiplicidade de perspectivas que variam entre o dualismoradical, doutrina que se manifesta ainda nas igrejas cristãsarcaicas e no Islamismo institucional, até as manifestaçõesmonistas mais complexas.1

Na tradição ocidental o dualismo, doutrina que operairreconciliável cisão entre espírito e matéria, Deus e Mundo,normalmente opondo-os, ocasionando inclusive desprezo edemonização do aspecto terreno da existência, foi sempreassociado ao antropomorfismo e a aspectos mais popularesda Religião. E a ideia de dois mundos, o dos deuses e o doshomens, com distintas naturezas, casou-se perfeitamentecom as elaborações primitivas de deuses humanóides, comtraços físicos e psicológicos similares aos humanos.

Por sua simplicidade estas idéias ganharam terrenoem todas as culturas, enquanto os princípios maisespiritualizados da Religião permaneceram nos cultosiniciáticos. De espírito simples, os homens daquele tempo,como muitos de hoje, precisavam representar por imagensfortes e distintas as duas esferas da realidade humana,usando a imaginação para preencher as lacunas deconhecimento sobre a vida espiritual, e opondo de maneirasimplista os “dois mundos”, como se fossem antagônicos, enão se dividiam também os deuses em forças do mal e dobem, do céu e da terra, estando esta última invariavelmenteentregue ao mal.

Mesmo nos textos de Platão, malgrado suacompreensão da matéria como cópia de modelos arquetípicospreexistentes, o que denota um monismo de princípio, nota-se uma certa depreciação do elemento material como impuroe oposto ao Bem.

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Tal concepção colabora com a imagem de um Deusseparado, alheio ao mundo material, como se a este nãohouvesse também criado e nele não se revelasse.

Foi decerto no Egito e na Índia que surgiu a idéia do Pan-en-teísmo2, expressão cunhada no século XIX por Karl C. F.Krause para designar a compreensão filosófica de Deussempre presente e atuante na Natureza, como mantenedor evivificador eficaz e perene de tudo o que existe. Não confundircom a doutrina do Panteísmo, que afirma que “Tudo-é-Deus”,e que foi rejeitada pelos Espíritos nas perguntas 14, 15 e 16de “O Livro dos Espíritos”, pois a afirmação de que tudo sejaDeus gera decréscimo ou de Deus ou do homem à algo semindividualidade definida, visto que sendo a mesma coisa umdos dois torna-se atributo do outro.

De um ponto perdido no tempo a Índia e o Egitoparecem ser os nascedouros da religião filosófica, e por nossoregistro cultural ocidental somos obrigados a nos concentrarno segundo de onde parte a ciência e a sabedoria de nossatradição. As marcas que o faraó Ramsés II, o Akhenaton, eHermes Trimegisto deixaram para a posteridade nos indicama sombra da sabedoria egípcia em seu esplendor original.

Fundamentado na consciência clara da ligação entre todas ascoisas da Natureza, sua dependência direta de Deus, o Soldos mundos, o Vivificador de Tudo, Trimegisto proclama quetodas as coisas são uma substância desprendida de Deus, eque as diferenças existentes entre as manifestações destaemanação se devem ao teor vibratório que elas atingiram, ouseja, o grau em que se agitam impulsionados pelacrescenteVontade que todos os seres possuem, a força davida que cresce neles até torná-los plenos de vida,pensamento, ação.

Após o contato com o Egito os judeus transformaram a suacrença patriótica do deus guerreiro numa religião avançada eespiritualizada. Embora a imagem antropomórfica apareçaem alguns livros da Bíblia, a Cabala hebraica conserva no

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conceito de Ensof a idéia de que Deus vive e atua em todos oslugares, todos os seres, todos os povos.

Na Gália, na Península Ibérica, na Britânia, na Germânia enos Balcãs adoravam-se os carvalhos, as flores, os porcos, oscervos e os trovões como divinos que são, obras das forçasharmônicas e presentes em tudo que eles não conceituavam,mas pressentiam como sendo a própria Natureza e o próprioUniverso.

Orfeu, poeta grego da era pré-clássica, bebeu desta fonte etrouxe à Grécia tanto a teoria da metempsicose quanto avisão de um Universo animado e sustentado pela VontadeAbsoluta.

Pitágoras aprendeu de Orfeu e dos próprios sacerdotesegípcios, com os quais viveu cerca de trinta anos, chegando aum extrato bastante puro da antiga sabedoria. Entendeu queas diversas substâncias do mundo se diferenciam pelo graude complexidade que atingiram, que uma harmonia perfeitase manifesta na natureza como Leis, e na mente como Razão.

Sócrates e Platão coroam o ensinamento antigo pré-cristãocom a moralização da doutrina panenteísta, vendo Deuscomo Sol das almas, a Verdade alcançável pelo intelectovirtuoso e conhecedor de si mesmo, que lança luz sobre assombras dos vícios e ilusões, extinguindo-os. Pregam areforma da personalidade como via de regeneração danatureza real da alma e divulgam a essência da filosofiaantiga para toda a coletividade.

Faltava ainda ao mundo o exemplo da vitória completa dapersonalidade e da possibilidade de se chegar a uma virtude epureza divinas. Quando Jesus veio ao mundo a humanidadeviu que a luz divina pode brilhar através de um de nós.Vislumbrou-se o destino das criaturas terrenas e a meta dolongo progresso. Seus apóstolos dão testemunho registradode sua doutrina e vida. Resguardadas as diferençasintrínsecas entre as duas esferas de existência, os apóstolos

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nos dizem que “vivemos e nos movemos em Deus”, que “nóssomos deuses”, que “os mansos herdarão a Terra”, tudo issoreferindo-se a este mundo. Uma visão bem diferente dopessimismo dualista que o enxerga como maldito e impuro.

Os heróis da era cristã tentaram resgatar a pureza e asublimidade da ideia filosófica de Deus que se apagou sob ojulgo da Igreja de Roma, malgrado os esforços de Plotino e daescola de Alexandria no início da Era Cristã. Francisco deAssis viu pedras, animais e plantas como seres divinos. NaRenascença uma série de intelectuais, sendo Bruno o maiordeles, reavivam as doutrinas da sabedoria antiga, do infinito,dos muitos mundos habitados, do Deus que se mostra emtodas as coisas. A Reforma nas mãos de Huss e Luteroproclamam uma vida cheia de Deus, a simplicidade dosevangelhos e a liberdade da consciência, dom divino quedignifica o homem e faz dele verdadeira imagem de Deus.

Na modernidade Paracelso, Böhme, mestre Eckhart, Espinosae Leibniz defenderam a ideia da unidade fundamental doMundo como substância emanada de Deus, em distintosgraus de perfeição, mas em harmonia entre si no Todo danatureza. A revolução silenciosa da religião na Europa, aocontrário de suas lutas intestinas em espaço público, levouquatro séculos para atingir seu apogeu na poesia de Goethe ena filosofia de Hegel, na Alemanha, e culminarem nasistematização da Doutrina Espírita na França.

A doutrina Espírita nos diz que o Espírito também écomposto de matéria, embora quintessenciada, que o vidadorme no mineral, para atravessar progressivamente ascarreiras vegetal e animal até despertar plenamente nainteligência do Espírito. André Luiz nos diz, em “Evolução emdois Mundos”, que o Universo é a condensação do hausto doCriador. León Denis nos fala claramente em “Depois daMorte”:

“O que a ciência derruiu para sempre foi a noção de umDeus antropomorfo, feito à imagem do homem, e exterior ao

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mundo físico. Porém, a essa noção veio substituir uma outramais elevada, a de Deus, imanente, sempre presente no seiodas coisas.”

Sim, o Espiritismo é também um Panenteísmo, pois afirmaque tudo promana de Deus, e portanto tudo é bom e divino.O desprezo pela matéria é despropositado em nossa doutrina.Ela também nos diz, como a antiga sabedoria, que vivemos enos movemos em Deus.

Bibliografia:

DENIS, León – Depois da Morte / FEB, Rio de Janeiro. 1974

DURANT, Will. _ A História da Filosofia. in: Os pensadores /Nova Cultural, São Paulo. 1996

_______, Will. _ O livro de Ouro dos Heróis da História /Ediouro, São Paulo. 2001

KARDEC, Allan _ A Gênese / FEB, Rio de Janeiro. 1999

______, Allan _ O Livro dos Espíritos / FEB, Rio de Janeiro.2003

REALE, Giovanni e Dario ANTISERI – História da Filosofia .Vol. II / Paulos, São Paulo. 1990

XAVIER, Francisco Cândido & André Luiz – Evolução em doismundos / FEB, Rio de Janeiro. 1977

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1 Doutrinas que professam a unidade e conexão de todas ascoisas a partir de sua origem em Deus.

2 Pan=tudo; Teo= Deus. Pan-en-teísmo literalmente significaTudo em Deus.

O Espiritismo na literatura clássica - Roma.

Outro artigo publicado na revista Reformador, de Dezembrode 2008.

***

Como bem se sabe, toda a cultura latina é uma expressãoampliada e adaptada da grega. De modo que somente pelascaracterísticas mais cotidianas e técnicas da vida sediferencia a alta cultura da Grécia Clássica e da RomaAntiga. No mais, a educação do patrício romano consiste noestudo dos clássicos, preferencialmente nos originais emgrego.

Não assusta que a sua literatura seja quase que umacópia daquela, onde o panteão de deuses, a mitologia, afilosofia implícita e os temas tendem a se repetir.

Assim que Cícero expressa crenças gregas,assumidamente adquiridas em contato com esta tradição.

“Pois que estou longe de concordar com aqueles quetardiamente promulgam a opinião de que a alma perece como corpo, e que a morte aniquila todo o ser, por outro lado, há

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que se valorizar a autoridade dos antigos, aqueles queestabeleceram ritos para os mortos, os quais certamente nãoseriam feitos com o pensamento de que os mortos estãototalmente desinteressados destas observâncias... ou aindasegunda aquela doutrina; que segundo alguns foipronunciada pelo oráculo de Apolo ao mais sábio doshomens, e que dizia não uma coisa hoje e outra amanhã,como fazem muitos, mas repetia sempre a mesma coisa,sustentando que as almas dos homens são divinas, e quesaem do corpo, que o retorno aos céus é acessível a elas, eque este retorno é direto e fácil na proporção de suaintegridade e excelência.”[1]

É interessante o caráter prático que distingue o povolatino da maneira de pensar grega, estritamente teórica, poisnenhum filósofo grego diria serem as tradições comprovantesdo interesse dos espíritos em nossas vidas. À mentalidadegrega agrada a teoria, a abstração, e o grego argumentarásempre que a alma aprecia o rito fúnebre porque há para issouma razão, e a explicará segundo a natureza da alma, a qualapraz a amizade, a lembrança.

Cícero, sendo pragmático, argumenta conforme osfatos. 1- Faz-se ritos aos antepassados. Logo alguém queinstituiu estes ritos sabia serem capazes de agradar aosespíritos. 2- Há doutrinas que falam da divindade humana eda relação entre pureza moral e libertação da alma. O filósofolatino procede por observação de fatos e relatos.

Em termos semelhantes se expressa Vergílio, embora nãofaça, como o filósofo, um elenco de argumentos. Como eracomum às tradições do passado, incluindo naturalmente aBíblia, a literatura clássica confunde criatividade e tradição,lenda e memória histórica da fundação dos povos e destinodas nações.

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A Eneida, que sem dúvida é a obra maior da cultura romana,é um relato fictício que guarda profundas intuições históricase espirituais sob suas metáforas. Tratando somente dassegundas, encontramos uma descrição impressionante dosuicídio de Dido, rainha de Cartago, ao ser abandonada porEnéas. Ainda no templo da pátria, durante a decisão dematar-se, “crê ouvir a voz e os gritos de chamamento do seumarido...”.[2]

Instantes antes do suicídio, Enéas vê em sonho a imagem deum deus “desconhecido”, que lhe diz:

“... não vês os perigos que te cercam no porvir? Ela, decididaa morrer, revolve em seu coração enganos e crime cruel, eflutua numa varia agitação de furores. Porque não fogesdepressa, enquanto ainda podes...”[3]

Atento a uma mensagem tão clara e direta, Enéas não receiaem lançar-se ao mar com seus marujos rumo à Itália,enquanto Dido, recebendo os informes do ocorrido, perfura-secom a espada da família. Entretanto não consegue morrer,porque literalmente está presa ao corpo, e agonizaterrivelmente.

“Então, a onipotente Juno, compadecida da sua prolongadador e da penosa morte, envia-lhe Íris, do alto do Olimpo, paralibertar aquela alma em luta com os laços do corpo. Pois,como sucumbia a uma morte não prescrita pelo destino nemmerecida, mas perecia, infeliz, antes do tempo e presa a umsúbito furor...”[4]

Temos aí uma página verdadeiramente espírita,relatando a aventura primitiva daquilo que se observa naspáginas de André Luiz ou Manoel Philomeno de Miranda. Aboa Íris tem o papel de verdadeira mensageira da luz,

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atuando em favor de uma transição menos terrível de Dido,que por sua vez não consegue libertar-se do corpo.

Mais tarde Enéas tem de descer ao Tártaro, nasmesmas condiçõesem que Ulisses havia feito na Odisséia deHomero. Enquanto o herói de Ítaca encontrava aí a sua mãe,Enéas vê o pai, Anquises, no mundo das sombras. Anquisesfala a Enéas:

“Logo que o dia supremo da vida deixou o corpo, osinfelizes não estão de todo desembaraçados do mal... e o malque longo tempo se acumula no fundo deles mesmos,necessariamente cresce... Por isso são castigados com penase sofrem... a seguir somos enviados para o amplo Elísio...Finalmente, depois que um longo dia, volvido o círculo dostempos, apagou a mancha profunda e purificou a origemceleste, faísca do sopro primitivo... o deus os chama para asbordas do rio Letes, a fim de que esqueçam o passado... ecomecem a querer voltar para corpos.”[5]

Esta página riquíssima aponta discretamente paravárias grandes verdades. Os espíritos que não sedesembaraçaram do mal são aqueles que o acumulam porlongo tempo em si mesmos, revelando a lei do mérito eindicando que há justiça e conhecimento de causa noprocesso de separação das almas condenadas. E o maisimpressionante, após os sofrimentos expiatórios de suasfaltas a alma se vê purificada, e é reconduzida ao corpo.

Estes dois exemplos, de Cícero e Vergílio, sãosuficientes para ilustrar o quão vivos estavam ainda osconhecimentos de Orfeu, Pitágoras, Platão e outros sábiosgregos, que a cultura romana então absorvia avidamente.

Nos anos que se sucederam os homens mais sábiosdo mundo romano já estavam envolvidos com o cristianismonascente, tanto que não há obras expressivas da literaturapagã após o ano de 60 d.C. aproximadamente.

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Os melhores elementos daquela cultura, entretanto,foram absorvidos e transmitidos à rica tradição cultural dosdois séculos posteriores, cumprindo assim a sua missão deeducar as populações latinas para o cultivo da virtude e dasabedoria.

Bibliografia:

CICERO, Marcus Tullius. Ethical writings of Cícero: DeAmicitia. Traduzido por Andrew Peaboy. Boston: Little Brown,1887.

VERGÍLIO. Eneida. São Paulo: Cultrix, 2001.

________________________________________

[1] Marcus Tullius CICERO. De Amicitia (Da Amizade).

[2] VERGILIO. Eneida. Pg. 81.

[3] VERGILIO. Eneida. Pg. 83

[4] VERGILIO. Eneida. Pg. 86.

[5] VERGILIO. Eneida. Pg. 127.

A mediunidade na literatura clássica - Grécia

Reproduzo aqui meu artigo publicado na revista Reformador,de Junho de 2008.

***

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Com este texto pretendemos abrir caminho para discussões eexposições de fatos incontestavelmente mediúnicos, seja naexposição de obras da literatura clássica, seja no processo desua escrita.

É bem conhecida a importância dos poetas e literatos detodas as épocas sobre a religião e a cultura. Muitas vezes sãoindivíduos positivamente inspirados, além de trazeremgrande bagagem de conquistas na área da sensibilidade e damemória, como frequentemente ocorre entre artistas. Avantagem da literatura está em que este campo da arte estána fronteira entre a pura arte, de um lado, e as ciênciashumanas e a filosofia, de outro. A argumentação tem,portanto, papel garantido nas grandes obras literárias.

Sob o termo literatura também se englobam relatos menosartísticos, ensaios e trabalhos de caráter mais teórico, demodo que os diálogos de Platão ou os livros da Bíblia estãoperfeitamente inseridos sob ele.

Uma boa mostra da forte presença da mediunidade entre osgregos, e que nos ajuda a compreender como eles tinhamconsciência do fenômeno, é a passagem do diálogo platônico“Timeu”, onde os ministros do Deus Supremo, os deusesmenores ou “demônios”, deveriam seguir a ordem de criar ocorpo humano de modo que ele fosse o mais próximo possíveldo Deus Supremo. Neste propósito deram ao homem umórgão (supostamente o fígado) que percebe a inspiraçãodivina, destacando-se que a inspiração não acomete aoshomens mais sábios, mas aos mais tolos ou que parecemloucos:

“Nenhum homem em sua sobriedade atinge o estado deinspiração profética, mas quando ele recebe a palavraprofética, ou a sua inteligência é afastada pela dormência, ouela se torna equívoca pelo estado de possessão, e aquele quequiser interpretar as palavras divinas, seja obtidas em sonho

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ou acordado, ou determinar racionalmente o significado dasvisões de aparições, compreendendo os resultados destesfenômenos para o bem ou mau dos homens, no passado,presente ou futuro, deve primeiramente recuperar suasobriedade.”[1]

No entanto, continua Platão. Nem sempre um homem selembra daquilo que disse em estado profético, de modo que éconveniente haver um ou mais testemunhas durante aprofecia e as visões. Assim, aqueles que estão em seu estadode perfeita sobriedade, podem interpretar melhor a narrativadaqueles que estiverem inspirados.

Observa-se claramente que Platão não estádefendendo um argumento, está meramente descrevendo umfato, tal era a naturalidade com que lidava com fenômenosdeste tipo.

Igualmente clara é a conclusão a que ele chega no “Íon”:

“E assim Deus arrebata a mente dos poetas, e os utilizacomo seus ministros, assim como também usa adivinhos e ossantos profetas, de modo que nós que os escutamos, sabemosque a sua fala não provém deles, e eles não pronunciampalavras vazias neste estado de inconsciência, mas é opróprio Deus quem fala, e através deles Ele conversaconosco.”[2]

Somando-se os dois relatos percebemos que o estadoprofético ou inspirado descrito pelo filósofo tem importantesimplicações científicas. Como Kardec ele (ou talvez seumestre Sócrates) parece ter avaliado rigorosamente oprocesso a ponto de formular uma compreensão teóricabastante correta da fenomenologia mediúnica. Estãoperfeitamente descritos o estado de passividade do médium eo fato de a comunicação não provir dele, o caráter

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transcendente da comunicação, a possibilidade de poder seprocessar no sonho ou no estado de transe, o fato de amediunidade ser, muitas vezes, uma missão atribuída aos“ministros de Deus.”

Platão também dava a entender, nestas e em outrasobras, que o estado profético destes inspirados podia serutilizado por outros para obter informações sobre a realidademaior, para além do mundo dos sentidos. Muitos dosconhecimentos platônicos parecem ter sido obtidos por estavia, conforme ele mesmo admite, embora os historiadoresprefiram imaginar que ele os obteve alhures, da Ásia Menor,da Índia, do Egito.

Lembramos também que era costume entre os gregosconsultar as pítias (ou pitonisas) seja no famoso oráculo deDelfos, seja em lugares e seitas menos famosos. Os relatos deHeródoto e a literatura grega deixam a entender que assacerdotisas do templo profetizavam tanto por “encomenda”quanto espontaneamente.

Também não nos perderemos na imensidão dosrelatos mitológicos, que entre uma fantasia e outra sugeremfenômenos de vista mediúnica, incorporação, previsões, etc;nem a evidência direta da inspiração através das “musas”.Atentamos tão somente, a título de exemplo, à obra madurade Homero, a Odisséia, onde ele dá importantes indícios deque as práticas mediúnicas lhe eram comuns.

No canto XI, quando Odisseu (ou Ulisses) tem dedescer ao Hades, ele encontra a sombra de sua mãe. Após asapresentações e explicações necessárias o herói tenta abraçartrês vezes a mãe, e não a podia tocar, percebendo que ela sedesvanecia como uma sombra ou como se fora “feita desonho”. Indignado ele pergunta a mãe o que ocorre, e ela lheresponde:

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“... Esta é a condição de todo homem mortal quando morre,pois os nervos já não unem mais carne e ossos:

A potente energia do fogo o consome todo quando toda a vidaabandona a branca ossada e o princípio vital se nos torna omesmo que um sonho.

Mas procura volver o quanto antes a luz, e recorda de tudoisto, de modo que possa contá-lo à tua esposa.”[3]

Percebe-se diversas características interessantesneste encontro. A primeira é o modo com que ambas aspersonagens se expressam sobre a substância da mãe, que“parece um sonho”, sugerindo claramente que a viagem deOdisseu ao Hades não foi feita em sonho, mas que ele estavadesperto diante dos mortos e podia constatar serem elesformados de outra substância.

A segunda informação importante é a recomendação da mãede que ele deveria recordar do que se passou, recomendaçãoimportante considerando-se que o próprio Platão já havia ditoem sua análise da mediunidade que “...ou a sua inteligência éafastada pela dormência, ou ela se torna equívoca pelo estadode possessão...”. Homero, muito antes de Platão, apresenta amesma idéia, sugerindo a necessidade de um esforçoposterior ao contato com os mortos, no sentido de se recordardo ocorrido.

Por fim não é menos importante, embora sutil, arecomendação da mãe de Odisseu para que ele “conte àesposa” o que se passou. É o caráter prático da comunicação,e denota o interesse caritativo do espírito em instruir e alertaros encarnados. Em toda a literatura, seja a mais artística oumais ensaística, os relatos mediúnicos geralmenterecomendam a divulgação ou a transmissão da informação aoutros. Só em raríssimos casos, quando a informação envolveriscos para alguém, há recomendações para que se mantenhao segredo.

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A obra de Homero tem duas grandes vantagens, a de ser umaobra de formação da própria cultura helênica, estabelecendoparadigmas da própria religião a partir daí, e a de expressarum virtuosismo literário até hoje admirável, dando idéia dequão impressionante ela deve ter sido para a Grécia nummomento em que ela sequer havia estabelecido a suacivilização.

A viagem de Odisseu ao Tártaro também tornou-se umparadigma na literatura ocidental. Vergílio faz o seu Enéiasdescer ao mundo dos mortos, cerca de oito séculos depois deHomero, e depois Dante descreve na “Divina Comédia” umaviagem do Inferno, passando pelo Purgatório, ao Céu,tomando a sombra de Vergílio como guia nesta inusitadaperegrinação, mais de mil anos depois de seu conterrâneo daRoma antiga.

Por este motivo a Odisséia tem a prerrogativa de terdespertado as intuições latentes de inúmeros outrospensadores e artistas, os quais a partir de então estariamsempre mais próximos de semelhante viagem ao mundo dosmortos.

Bibliografia:

HOMERO. Odisea. Buenos Aires: Planeta, 2007.

PLATÂO. Íon. Classical Library. Disponível em:

http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/8_Ion.htm.

______. Timeu. Classical Library. Disponível em:

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http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/17_Timaeus.htm

________________________________________

[1]http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/17_Timaeus.htm

[2]http://www.classicallibrary.org/plato/dialogues/8_Ion.htm

[3] HOMERO. Odisea. Pg. 195.

Método e epistemologia de Platão

Dentre todos os nomes que a história registrou sob acategoria de sábios, não foram Descartes ou Kant, Bacon ouLocke, Spinoza ou Leibniz que Kardec identificou comoprecursores do Espiritismo. Dentre tantos nomes ilustres aosquais poderia se associar com inúmeras vantagens sociais eacadêmicas, o mestre lionês escolheu Sócrates e Platão porpatronos, construindo sob a rocha os fundamentos filosóficosda Doutrina dos Espíritos. Tivesse ele eleito os gênios de suaépoca, e muito provavelmente o Espiritismo teria sidoabsorvido como subproduto das correntes filosóficas daquelemomento. Mas, ancorado no caráter heróico e na lucidezimperecível dos luminares da filosofia, resgatou sensatamentea conexão com as fontes do espírito filosófico mais puro,superando as transições de ocasião e modismos.

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Não obstante o reconhecimento oficial do Codificador e deinúmeros outros autores, as figuras emblemáticas dos paisda razão no mundo, Sócrates e Platão, parecemestranhamente esquecidas pela literatura e debates espíritasmais recentes, coincidindo com fenômenos de “simplificação”e massificação da mensagem kardequiana.

Tal estado de coisas é ainda mais lamentável quando osavanços da historiografia e filologia do século XX lançaramtantas novas luzes sobre estes sempre célebres pensadores.Esta revolução ainda está em curso, mas os estudos dePlatão já recomeçam a despertar interesse ao longo dos anos1980, e hoje já se pode dizer que retornaram ao centro dosinteresses filosóficos e teológicos. Para uma filosofia como aEspírita que aponta o platonismo como origem e fundamentofilosófico este fato é incontornável, e deve despertar o máximointeresse.

Idealismo platônico?

O primeiro ponto em que se precisa fazer justiça ao filósofonão se refere exatamente a uma das reformas interpretativassupracitadas, mas a uma questão mais básica, a saber, aconfusão entre idealismo e realismo em Platão. Se em sentidomuito genérico e abrangente a sua filosofia pode enquadrar-se como idealista, este não é definitivamente o caso setomamos o termo em seu significado técnico dentro datradição filosófica. Platão é um realista, acredita que nossoconhecimento corresponde a uma percepção do “Real” e não auma formulação mental independente da realidade. Oequívoco é oriundo do modelo ontológico (ou seja, darealidade) que o filósofo emprega, onde existe um mundofísico e um mundo das idéias ou formas originais. Muitosleigos e inclusive filósofos de profissão inferem que aexistência de um mundo ideal independente do mundo físico

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significa um irrealismo ou idealismo, quando na verdade ostermos da filosofia platônica deixam claro o fato de que omundo das idéias é real, independente da mente humana e,portanto, não existe idealismo.

Embora o senso comum rejeite fortemente a doutrinaplatônica das idéias é muito fácil provar a sua necessidadelógica, até certo ponto, partindo de uma idéia pura para cadaatributo. Platão demonstra em primeiro lugar que o atributotem que ser distinto da coisa, por reductio ad absurdum. Odedo anelar é maior do que o mínimo, mas menor do que omédio. Isto equivale a dizer que ele é maior e menor aomesmo tempo, dependendo dos outros objetos com os quaisfor comparado. Um objeto, portanto, não pode esgotar jamaisa definição de grandeza ou pequeneza. (Hippias 523a-524d) Oerro do filósofo Hippias no diálogo platônico que traz o seunome foi confundir a determinação com uma coisadeterminada, a predicação com o seu objeto. Mas é óbvio quenenhum objeto imaginável esgota completamente o princípiode uma predicação, já que é sempre possível imaginar outroobjeto que tenha o mesmo ou maior significado predicativo.

Apesar de todas as variações e discordâncias da filosofia estefoi um ponto jamais questionado, uma vitória permanente doplatonismo sobre as fases pré-filosóficas da racionalidade.Predicações são feitas a partir de critérios e princípios,independentes de coisas, que estão condicionadas a acidentese condições físicas. Que se aceite o mundo das idéiasplatônico, atribuindo uma existência separada para aspropriedades das coisas, ou derive-se as propriedades dascoisas mesmas, como faz Aristóteles, não se pode de modoalgum confundir a natureza incorpórea de uma propriedadecom a natureza condicionada do objeto, pois este segundoestá sempre em função comparativa aos outros objetos, e esterelativismo só desaparece no conceito enquanto tal. A ciênciamoderna, que assume estas determinações, nos apresentaexatamente uma visão da natureza composta dematéria epropriedades. Mesmo convivendo juntas, de modo

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aristotélico, elas não são exatamente a mesma coisa, e fazsentido tratar as propriedades de modo independente, comoprincípios matemáticos, ou falar de propriedades inabstracto, como a gravidade, a inércia, a evolução dasespécies, etc.

A essência do platonismo está nesta percepção sobre apossibilidade de estabelecer determinações, que dependedesta independência da propriedade determinativa emrelação às coisas. Os ataques sofridos pelo platonismogeralmente se originam da confusão entre o mundo dasidéias, um plano de existência efetivo e independente para aspropriedades das coisas, que é apresentada por Platão comouma “hipótese razoável”, e o assim chamado idealismoplatônico, que consiste neste problema de fundamentação doconhecimento reproduzido fielmente pela ciência e lógicacontemporâneas. Este segundo princípio poderia ser maisbem acolhido se a tradução geral de eidos (forma) como“idéias” fosse eventualmente modificada para o termo“propriedades”, que produz muito maior conforto ao ouvintematerialista. Claro que a tradução como idéia condiz com ahipótese do mundo das formas, mas se esta é uma hipótesesubordinada e a fundamentação do conhecimento é umaconquista permanente, convém adequar esta segunda àsterminologias em que ela pode ser melhor absorvida.

Platão em momento algum crê ser possível uma análise apriori das idéias, o que equivale a dizer que ele não é umidealista no sentido epistemológico, tanto quanto não é nosentido metafísico. O conhecimento das idéias dependeinteiramente daobservação do mundo, sem a qual a sugestãopara as definições das coisas e suas relações não poderia serdesperta (reminiscência). Conquanto haja um conhecimentoinato, ele só é disparado pelos sentidos, e a observação é tãoimportante quanto a razão pura na rememoração das idéias.

Lógica versus dialética.

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Com isto entramos mais diretamente na epistemologiaplatônica e seus problemas. Todos sabem que a filosofia dofundador da Academia é exposta em diálogos, e que o seumétodo de investigação é a dialética. Mas aqui há elementosde análise relevantes. O primeiro deles é distinguir lógica dedialética. A primeira trata da relação entre sentenças,orações. A lógica trabalha a congruência entre certaspremissas e certas conclusões. Se duas ou mais frases sãoaceitas como premissas válidas, é possível que umaconclusão lógica seja extraída delas. O que a lógica não podefazer é definir conceitos, pois não há como aplicar as suasregras de congruência se não houver vários elementos parauma comparação. Aí entra a dialética, que é a disciplinaespecializada na definição racional de conceitos. A dialéticanão busca a congruência, senão a distinção, a determinação(dar termo, fim) dos conceitos.

Enquanto a lógica busca as conclusões de um argumento, adialética define e elabora os termos exatos da argumentação,evitando que o equívoco entre as peças prejudique aarquitetura maior objetivada pela lógica. O problema dadialética é a sua imprecisão se comparada a da lógica. Alógica é infalível, pois pressupondo-se a veracidade daspremissas chega-se fatalmente à conclusão. A dialética éambígua por natureza, os contornos e fronteiras exatos entreum e outro termo são sutis, às vezes subjetivos, às vezesestão fora de nosso conhecimento atual, forçando-nos atrabalhar com definições provisórias. Isso produziu emAristóteles um desconforto em relação à dialética, e umapreferência pela lógica. Decisão que foi repetida pela tradiçãomedieval escolástica, e impregnou-se na mentalidademoderna, apesar dos esforços desta última para separar-sedaquela. A dialética, por pressupor a imprecisão doconhecimento, foi considerada um recurso vulgar e inferior,enquanto a certeza da lógica prevaleceu como regraepistemológica impulsionando o racionalismo e o positivismo.

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Ocorre que a suposta fraqueza da dialética era reconhecidapor Platão como a sua maior força, já que ela permaneciacomo lembrança constante dos limites da capacidadehumana.

Segundo a análise de Karl Popper, que éindiscutivelmente o maior filósofo do conhecimento do séculoXX, quiçá da história mundial, nos livros O mundo deParmênides e Conhecimento objetivo, Platão é o únicopensador crítico da história humana antes do século XX. Istoquer dizer, o único a combinar ceticismo e conhecimento deforma crítica, estabelecendo condições epistemológicasequivalentes às da ciência moderna, com espaço parafalseamento e refutação de suas conjecturas. E isto temmuito a ver com a dialética e com a forma de sua exposiçãopor diálogos.

Diálogo versus exposição.

O diálogo foi erroneamente interpretado como estilo literárioou opção estética de Platão. Mas já no século XIX EduardZeller, Friedrich Nietzsche e antes deles teólogos e filósofoscomo Schleiermacher atentaram para o fato de que o diálogocompõe parte essencial da epistemologia platônica. Ele teria oduplo efeito de evitar o conflito entre os personalismosfilosóficos e garantir uma observação plural dos fenômenos,de modo a aperfeiçoar a precisão dos termos. A dialéticadeveria ser preferencialmente feita em diálogo, e os termosdeveriam ser parcialmente definidos por análise, mas pelasua ambigüidade precisavam também ser consensuais.

Quando nos expomos ao diálogo alguém sempre levanta próse contras inesperados e em geral as pessoas se contrapõemnaturalmente, evitando as polarizações e extremismos nadefinição dos termos ideais. A convenção é a ferramenta idealde conhecimento, pois nela estão satisfeitos os interlocutores

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opostos, com suas diferentes perspectivas, e a proximidadedas idéias é a máxima possível. Isso chocou diversos filósofosque não queriam um conhecimento baseado em acordos econvenções estabelecidos em diálogo, mas em certezasabsolutas, mas é exatamente o que as metodologias depesquisa mais modernas pregam.

Por isso os diálogos apresentam sempre a deixa de Sócrates:Queremos um conhecimento universalmente válido dajustiça? etc, etc. Se o interlocutor diz: “Não, isso é impossívelSócrates!” então eles se despedem e seguem suas atividades.Mas se o interlocutor diz. “Claro! Não desejo outro senão ocritério que nos permita ajuizar sempre e em comum sobreeste assunto.” então preencheu-se a cláusula contratual dainvestigação dialógica, e os interlocutores estão trabalhandodentro das regras de um acordo.

O problema grave está em imaginar que estas etapas dosdiálogo são só cenário, quando na verdade não existe cenárioou elementos dispensáveis nos livros de Platão. Tudo temsentido e propósito. Cada frase, especialmente estasrecorrentes, é cuidadosamente colocada para ensinar aosalunos o método correto de filosofia e ciência. Nada ali tempapel literário ou estilístico.

Segundo Popper e Zeller, Aristóteles ficou tão enraivecido comalguns dos diálogos, e com o fato de parecerem infrutíferos,de não atingirem os consensos esperados, etc, queconsiderou o método uma ciência inferior. Ele refinou a lógicapara poder extrair as definições de termo dela, ao invés deaplicá-la só às relações de sentença como Platão propos. Comisto perdeu-se a idéia de consenso e a de dialética. Aristótelestambém acusou Platão de ser um dogmático e definir asIdéias conforme o seu próprio gosto, quando na verdade o seumétodo lógico absolutista é que o fazia. Assim Poppercondena Aristóteles pelo fim da tradição crítica e início dossistemas filosóficos dogmáticos. Ele não entendeu que ométodo dialógico e dialético do mestre só permitia estabelecer

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investigação quando os interlocutores concordassem com ostermos gerais, ou achou isto insuficiente, desejando umaespécie de garantia completa para o conhecimento. ParaPopper isto foi uma atitude intransigente de Aristóteles, eprova de sua incapacidade de tolerância e dúvida cética paraentender a parte relativista do platonismo.

O que é um pouco mais complicado é a demonstração de queeste pequeno relativismo, a idéia de um conhecimentodesenvolvido por consenso e acordo, não equivale em quasenada ao relativismo atual da assim chamada pós-modernidade. Esta corrente moderna generalizou a críticacética aos princípios do conhecimento, implodindo aracionalidade, e fechando o próprio acesso a umconhecimento da realidade. Segundo esta vertente da filosofiacontemporânea a importância lingüística, social e psicológicado saber é exagerada a ponto de ele tornar-se inteiramenteincerto e provisório. Isso certamente não equivale ao métodocrítico de conhecimento, que assume todas as possíveisimplicações exteriores sobre os conceitos e sobre aracionalidade, mas sem reduzir o espaço próprio destes e asua legitimidade.

De uma forma muito complexa Platão achava que os termosdefinidos em consenso eram os mais próximos da verdade emsi mesma, não uma convenção social desvinculada darealidade. Embora o mundo das idéias com seus arquétiposeternos de Bem e Justiça existam ontologicamente antes domundo físico, que é a sua conseqüência, estes arquétipos eidéias são reconstruídos com eficiência somente peloconsenso. É como se a mente isolada fosse frágil demais paraatingir a verdade, ao passo que o diálogo pudesseproporcionar um aperfeiçoamento da cognição individual,aumentando o grau de aproximação da verdade. Vou seguir alinha de descobertas de Popper para demonstrar isto.

A revolução do conhecimento matemático.

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Os responsáveis pela teoria das idéias são os pitagóricos.Foram eles que diagnosticaram o progressivo movimentoabstrativo dos demais pré-socráticos, caminhando deelementos arquetípicos como água, vento, infinito, etc,sempre para princípios menos materiais e difíceis de seconfundirem com os elementos naturais. Atingiram assim aconsciência de que os números e relações puramente mentaispodiam ser aplicados a tudo, sem se confundirem com nadade concreto, devendo assim constituir a essência final. Aolado deste e de outros grandes méritos, a escola de Pitágorasse congelou numa dogmática adoração da aritmética comointerpretação perfeita e infalível da realidade.

Os primeiros problemas surgiram quando se tratava dedízimas, pois eles não davam números exatos, mas isso foiresolvido com o astuto recurso de atribuir às dízimas umpapel simbólico de quase n Assim 0,99999... guarda apenasuma distância infinitesimal de 1, e pode ser descrito comoquase um, em sentido abstrato, já que em sentido concretonão poderia haver tal grandeza.

O problema ficou incontornável quando um dos membrosintroduziu problemas geométricos egípcios, muitodependentes de raiz de 2 e pi. Depois de tentarem contornaro problema como erro, a escola se escandalizou com apossibilidade da existência concreta dos irracionais, o queacarretaria numa incapacidade de descrever com certeza arealidade. Obcecados eles expuseram centenas de casasdecimais de pi e raiz de dois, para descobrir que não haviaregra nenhuma para prever a progressão. Não importa o quãobom fosse o matemático, um número infinito de casas estariapara sempre inacessível. A razão não poderia dominar sequera sua língua mais submissa e adequada, a matemática, e orestante do conhecimento estava comprometido.

Os pitagóricos abafaram a história, mas alguém vazou oproblema gerando grande furor entre céticos e sofistas, que

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apontavam para a inutilidade da razão. Platão resolveudefinitivamente o problema, unindo o juízo crítico de Sócratesao seu domínio de matemática. A solução não era reformulara matemática, mas a epistemologia. Logo de cara Platãoassumiu a geometria como a matemática superior, e colocoua famosa placa na porta da academia: “Aqui não entram osque não sabem geometria”. Isto porque a geometria, emacréscimo a aritmética, mostrava o mundo equilibrado entreordem e caos, sendo os irracionais a sua expressão perfeita,digna de louvor e adoração eterna. A possibilidade decontinuar a descoberta e precisar sempre mais os irracionais,e a percepção de que geralmente algumas poucas casas deprecisão eram suficientes para todos os fins práticos,levaram-no a conclusão de que os números eram conhecidose desconhecidos ao mesmo tempo. O conhecimento seria, aexemplo da geometria, suficiente, mas sempre imperfeito.(POPPER. Die Welt des Parmenides, 1998. p.337-338)

Isto não implica em relativismo, pois a geometria em si seriaexata e perfeita, havendo no plano da realidade um valor realpara os números irracionais. Somente o nosso saber seriaimperfeito e relativo, pois estamos condicionados aos nossossentidos muito limitados que nos impedem uma visãoabrangente e exaustiva dos fenômenos, bem como acompreensão plena dos princípios. Ao mesmo tempo em quea ciência nos revela a realidade, devemos guardar humildadeem relação ao nosso saber, pois ele é evidentementeimperfeito.

Tais correções sobre a metodologia científica de Platãosão importantes porque destacam a sua diferença qualitativaem relação aos demais filósofos, em termos de liberalidade,lucidez, crítica, embasamento empírico e garantias contraqualquer acusação de dogmatismo. A excelência do métodoem perfeita concordância com a mais avançada epistemologiamoderna engrandecem ainda mais os resultados teóricosalcançados por esta filosofia. Podemos então concluir que ofilósofo defensor da reencarnação, da comunicabilidade com

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os mortos, da evolução da alma humana através de suadesmaterialização, do livre-arbítrio, da moralidade justificadapela razão, de Deus como o Sumo Bem e do mundo dasidéias se diferencia de todos os demais por ser o quecombateu com mais seriedade o próprio personalismo econcepções prévias em favor de uma investigação imparcialda verdade.

Yoga e Espiritismo: As tecnologias do transe.

Georg Feuerstein foi até agora o único comentadorocidental a reunir profunda experiência prática em Yoga e odomínio intelectual da literatura em sânscrito sobre oassunto. Seu conhecimento seguro da filosofia ocidentaltambém lhe dá uma vantagem especial sobre os autoresindianos, que quase nunca conseguem transmitir as sutilezasde sua filosofia sem empobrecê-la ou fazê-la pareceresotérica. Somos, portanto, imensamente gratos ao autordaEnciclopédia do Yoga e de A tradição do Yoga, e a suadefinição de yoga como a tecnologia do êxtase tornou-se comtoda a razão lugar comum, fazendo apenas uma modificaçãode nossa parte e apresentando as técnicas comparadas deEspiritismo e Yoga como as tecnologias do transe, querendocom isto simbolizar suas técnicas exatas e eficazes detranscendência.

Fora do desenvolvimento da tradição intelectual européiaé difícil distinguir uma linha de pensamento que mereça onome de ciência, mesmo que reconheçamos os muitosméritos de diversas doutrinas asiáticas, africanas e nativo-americanas. O Yoga é talvez a única doutrina merecedoradeste título, embora ainda com diferenças essenciais do

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método desenvolvido entre a Renascença e a Era Moderna. Aexplicação para este caráter especial do Yoga está na culturaextremamente liberal da Índia, que sempre admitiu ainvestigação crítica, a dúvida, a diversidade de idéias e aimportância do confronto entre teoria e experiência, mesmonas épocas em que a Europa não gozava destas condições.Se uma ciência pode, além disto, ser medida pelo seu poderprático de modificar a realidade, então o Yoga merece aindamais o título, pois os seus efeitos concretos são indubitáveis.

Todas as religiões da Índia adotam o Yoga, único pontoem que concordam, quando ademais estão em conflito quantoa existência de Deus ou dos deuses, de quem e como é ou sãoas divindades, e quais as suas relações com o mundo.Somente o Yoga impôs-se por força dos fatos que ele produzcomo unanimidade, apesar das distintas interpretações quecada sistema aplicou a ele. O Budismo, ao passo que rejeitousimplesmente tudo da religião indiana, exceto a idéia dekarma/reencarnação, adotou todas as técnicas de Yoga: ameditação, os mantras, os exercícios respiratórios e físicos, opragmatismo e o empirismo. Os persas, geograficamentepróximos da Índia, sempre receberam sua influência, comdestaque para o Yoga. Enquanto a religião Islâmica rechaçavaqualquer influencia filosófica ou teológica, os místicos persasabraçavam o Yoga, absorvendo suas técnicas de transe e comelas constituindo o Sufismo, a mística muçulmana.

Os exercícios espirituais que não possuem nenhumainfluência do Yoga testemunham igualmente ao seu favorpela imensa semelhança que revelam para com ele. OEstoicismo, a mística espanhola de Ignácio de Loyola e SantaTeresa D’Ávila, os pietistas, os quakers, os taoístas e osprofetas hebreus, todos os grandes místicos compartilham oamor ao silêncio e ao isolamento, o ascetismo e a sobriedade,a concentração e a adoração que elevam a alma ao estado deêxtase. Reunindo todas as técnicas utilizadas por todos estesgrupos, quase sempre com grande superioridade, devido aoestudo milenar e ininterrupto que os sábios indianos lhe

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dedicaram, o Yoga é o vértice do conhecimento e da práticamística de toda a humanidade.

Quanto aos praticantes, é indiferente se são ateus oucrentes, se oram para um santo vivo ou fixam-se somente emum som, se fazem esforços moralizadores ou se dedicam-seao acúmulo de poder (os siddhis), todos concordam que oconhecimento relaciona-se à lei natural, não estandosubordinado a crença. Naturalmente, cada praticante tentarájustificar suas convicções pessoais dentro de seu métodomeditativo ou de ascese, mas concederá sempre que a técnicaterá ao menos alguma eficácia para qualquer usuário.Somente o materialismo impede a prática do Yoga, pois sendoa ciência do espírito, fundada na investigação empírica dofenômeno místico e iluminativo, é impossível e ilógico exercê-lo sem estar-se convencido de uma realidade espiritual. Isto opraticante do Yoga não toma como dogma, mas comoevidência derivada dos estágios mais elementares dosexercícios. Trabalhando a energia mental e sutil concentradanos chacras, modificando sua sintonia espontaneamenteatravés da disciplina respiratória, postural e psicológica,dominando os instintos e desejos através da intençãofortalecida pelos exercícios de controle psicossomático, o yogise certifica empiricamente da sua própria transcendência.Não existe nenhuma postulação da existência do espírito. Elaé simplesmente constatada e observada, tornando-se umaobviedade para os yogis.

O yoga das academias não lembra muito o dos ascetasindianos.

Uma outra característica marcante do Yoga é a suaênfase no livre-arbítrio. Mircea Eliade, o grande historiadordas religiões, diagnosticou imortalidade e liberdade como osconceitos centrais do exercício iluminativo, e estavacompletamente correto ao fazê-lo. Ao contrário dospensadores abstratos indianos, que eventualmente defendem

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uma visão de mundo determinista, o Yoga, bem como oBudismo e outros derivados, pressupõe e prescreve aliberdade por questão de princípios. A idéia de domínio sobreo corpo e a mente, de uma técnica disponível a todos, semquaisquer privilégios, é sumamente libertária e coaduna-seinevitavelmente com a convicção de que o destino pessoalestá em poder do indivíduo.

Jamais vingou entre os místicos indianos a idéia deGraça, como uma salvação por eleição divina. O esforçopessoal e a conseqüente responsabilidade são os únicoselementos reconhecidos no processo iluminativo. O Budismo,por exemplo, é enfático ao afirmar que o seu caminho de oitopassos é “perfeitamente praticável”. Ressaltando este caráterpragmático e menos dependente de crenças e dogmas, osyogis de diversas escolas são unânimes na sua convicção deestarem de posse de uma técnica eficaz, no sentido pleno dapalavra. Não existe motivo teórico ou moral para a prática.Nenhum yogi concordaria que a sua adesão ao método foiprovocada por argumentação, sugestão ou imposição religiosaou filosófico. Como bons empiristas, os ascetas indianos sóreconhecem o motivo técnico para a prática: “Praticamosporque funciona. Recomendamos porque traz resultados.”

Mas em que consistem estes resultados? É o que todosse perguntam. Poderíamos dizer resumidamente que o Yogase divide em aspectos físicos, psicológicos e espirituais. Noaspecto mais propriamente físico o Yoga objetiva comprovar acompleta submissão do corpo ao espírito. Esta etapa, emboraintrodutória, é comumente supervalorizada, especialmente noocidente, porque os resultados visíveis da ascese sãogeralmente muito impressionantes, incluindo resistência aofrio e ao calor, capacidade de jejum prolongado, diminuiçãodrástica das horas de sono por dia, resistência a dor, vigor edisposição ampliados, além da reconhecida capacidade desustentar posturas desconfortáveis.

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Numa espécie de plano intermediário entre a mente e ocorpo estão os exercícios respiratórios, que objetivam refinaro domínio do espírito sobre as funções físicas e mentais. Arespiração é a interface físico-psíquica por excelência, pois elaé uma função intermediária entre os atos involuntários e osvoluntários. Ao passo que qualquer pessoa está ciente de suacapacidade de alterar o próprio ritmo respiratório, a maioriadas pessoas vive sem o fazer, a semelhança dos animais querespiram inconscientemente. O controle e a conscientizaçãorespiratória têm assim o duplo papel de revelar este elementovoluntário nos atos aparentemente involuntários e exercitar.

Fio da navalha que separa a matéria do espírito, arespiração é o elemento chave para equilibrar a relação entreestes princípios. Se ela é automática, o indivíduo estáentregue ao instinto e aos desejos animais, na fase inicial doseu progresso espiritual, se ela é profunda, serena e benéfica,a inteligência predomina sobre o instinto e a vontade sobre oimpulso. Esta percepção não é exclusiva dos yogis, senão umreflexo do senso comum sobre o ritmo respiratório. Emqualquer lugar ou época uma respiração descompassada,ofegante, o ronco e a apnéia noturna, ou até em vigília, sãosinais de uma saúde comprometida e uma vida emdesequilíbrio.

Controlando uma função tão aparentemente involuntáriaquanto a respiração, aumentam em muito as chances decontrole da mente, o próximo passo do Yoga. Inaugurando apsicologia profunda três mil anos antes de Freud, os yogiscertificaram-se de que a mente é assaltada por conteúdossimbólicos, relacionados a memórias, hábitos e desejos,geralmente inconscientes. Aqui também observa-se auniformidade das práticas espirituais, pois todas elas emtodos os países diagnosticam esta flutuação incontrolada damente como o maior desafio a concentração, a oração e ameditação. O Yoga estabelece a disciplina física (incluindosexual e alimentar) e respiratória como os pré-requisitos dosaneamento psicológico, pois a vontade se fortalece pela

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ascese, e a consciência acostuma-se à vigília sobre os atosinvoluntários. Paralelamente é urgente a transformação éticado sujeito, sem o que a consciência de culpa e o estímuloconstante aos vícios de que é portador permanecem emespaço confortável. Pela força dos elementos atávicos doautomatismo humano, o relativismo moral é sempre umailusão, pois o nosso caráter primitivista impõe-seinvariavelmente sobre as propostas salutares e equilibradas.Urge assim uma reforma moral imediata e permanente, paraque o peso dos condicionamentos passados (karma) setransforme em herança positiva através da ação meritória.

Pode-se dizer que estas três etapas já garantem osucesso do yogi, e conduzem seguramente às demais. Ocuidado e estado de alerta constante em relação aocomportamento físico, respiratório e a conduta moraltransformam o sujeito de um repetidor inconsciente dosinstintos e condicionamentos adquiridos a autor livre e cientede todos os seus atos. A disciplina mental avança assim paraa meditação, que é lograda sem maiores esforços quando avontade já está fortalecida pela conduta reta e esmerada. Aconscientização quanto ao corpo, a respiração e a condutaética também dão à consciência um poder de concentraçãoinusitado, pois ela habituou-se ao esforço de vigilância, nãosendo nem ludibriada pelo inconsciente nem cedendo aosprimeiros sinais de fadiga em convite ao desforço. A mentefocada pela meditação adquire clareza e profundidade,constância e desenvoltura do “lixo mental” que obstrui amente destreinada. Resolvem-se assim problemas maissérios, possibilitam-se os esforços mentais prolongados e amanutenção de um padrão mental elevado, livre dosempecilhos e tropeços a que estão sujeitas as mentesentregues aos automatismos e desejos, tão cegos quantocaóticos.

O homem moderno aprendeu com a psicanálise aexistência dos elementos involuntários e inconscientes, eentregou-se passivamente a este diagnóstico, acreditando

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estar em seu poder apenas a aceitação do próprio descontrolesobre si. Abandonando a si mesmo a este “estado denatureza”, viu-se animalizar enquanto a tecnologia escalavaos ápices do progresso material. Quão infantil não é estepretenso homem civilizado comparado ao asceta de trintaséculos atrás, que não parou fascinado diante da descobertados seus determinismos inconscientes, mas educou avontade através de ingentes esforços, intelectualizando amatéria e trazendo a luz da consciência as marcas damemória atávica que até então o regiam, esperando apenasque ele amadurecesse o bastante para fazê-lo por si mesmo.

O Espiritismo tem muito a ver com o Yoga. A começarpela sua ênfase na predominância dos fatos sobre a crença,da razão sobre a tradição. O Espiritismo, também antes dapsicanálise, diagnosticou com segurança a funçãoinconsciente da mente, e detalhou a sua causa na vagareminiscência do pretérito e na influência sutil exercida poroutras mentes. Estabeleceu diversas técnicas de vigilânciavisando diminuir este predomínio do inconsciente sobre oconsciente, coroando a oração como estágio meditativoavançado de elevação do padrão vibratório da mente, exigindopara isto o abandono das fórmulas automáticas das “rezas” eimpondo o ato espontâneo, criativo e sincero da comunhãosentimental e intelectual com o plano do espírito.Desenvolveu uma ciência psico-físico-espiritual sobre osfluidos energéticos de natureza mental e semi-mental que noscaracterizam a vida, identificando os centros de força nosplexos solares nos mesmos locais que os yogis identificaramos seus chacras, relacionando as doenças destes centros àsmarcas provocadas por erros trágicos em vidas passadas, eincentivando a mudança especial de conduta em relação aosórgãos e funções lesadas, quais sejam: relacionamentosestáveis e dignos para os portadores de esterilidade oudisfunções sexuais, temperança alimentar e emotiva para osdeficientes do sistema digestivo, atitude compassiva para osque apresentam disfunções cardíacas ou imunológicas,

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disciplina para os que padecem dos males da fala e darespiração, responsabilidade para os atingidos portranstornos psíquicos.

Alargando o campo de estudo e esclarecimento sobre asrelações entre vontade e intelecto (espírito) energias e hábitos(mente) e saúde física (corpo), o Espiritismo tambémreproduziu a noção yogi de controle voluntário das formas-pensamento, a fluidoterapia e a manipulação direta dasondas mentais que nos constituem a realidade imediata(aura), popularizando inusitadamente a prática do passecomo recurso de transformação magnética e da “sintonia”como método garantido de controle do fluxo psíquico,regrando e aperfeiçoando os antigos hábitos de invocação dasmusas e gênios inspiradores. Na aplicação do passe, nareunião mediúnica ou no simples culto evangélico oEspiritismo desenvolveu a prática da focalização da mente empadrão superior, contribuindo sobremaneira para isto aconscientização quanto às idéias e emoções exteriores quetomam de assalto o indivíduo interessado no própriomelhoramento, e que se tornam desta forma compreensíveis,perdendo a sua influência na medida em que o indivíduo nãomais confunde-se quanto a sua proveniência.

Concluímos, portanto, que o Espiritismo reproduz aspráticas e conceitos das tradições místicas e ascéticasuniversais, com particular semelhança em relação ao Yoga, eque o caráter desmistificado de ambas as doutrinas,juntamente com o fato de atingirem tantos pontos deconcordância, contribui em muito para a validação de amboscomo métodos, senão científicos, ao menos cientificamenteeficazes.

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Filosofias da Índia

Segundo consenso geral, as primeiras formasorganizadas de religião, contando com códigos escritos,rituais regulares e princípios filosóficos elaborados foram asdo sub-continente indiano, na extensão entre o Indo e oGanges. Esta região era desde 12 ou 13 mil a.C. dominadapelos arianos, povo que recebeu este nome porqueantigamente se acreditava terem vindo do Irã. Ariano não émais do que a forma ancestral da grafia e pronunciaequivalente ao iraniano atual.

Países de língua indo-européia, em verde escuro, e híbridasem verde claro. (60% da população mundial)

Apesar de que já houvesse escritos religiosos, pois oshavia na China, na Mesopotâmia e no Egito, a civilizaçãoproto-ariana do norte da Índia, Paquistão e Irã orientaldestacava-se pela independência de que seu código e cultoreligioso gozavam frente à arbitrariedade de governantes,fossem religiosos ou políticos. Isto é importante porque as leissagradas e rituais essenciais mudavam drasticamente deacordo com o interesse dos déspotas em todas as regiões,sendo a primeira exceção a religião védica.

Os famosos Vedas nada mais são do que estes textosarquimilenares compilados a partir de cânticos e ditados atéentão transmitidos oralmente. A sua versão escrita,inaugurando a época das religiões organizadas, data de 1500a.C. aproximadamente. Mas os cânticos mais novos já tinhamséculos quando foram escritos, e os mais velhos podem datarde dois ou três mil antes de Cristo. Devotos e indólogos maisentusiasmados costumam defender uma cronologia míticacom cifras absurdas, às vezes de 50 mil anos ou mais. Nãoexiste, no entanto, nenhuma base empírica ou lógica paraestas afirmações.

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Com a popularização dos textos védicos e a instituiçãoda religião independente dos trânsitos de governo, proliferouna região uma cultura sacerdotal distinta de todas as demaisaté aquele período, que se caracterizava pela liberdade depensamento e especulação abstrata. Com isto, surgiram osUpanixades, originalmente como comentários elaborados einterpretativos sobre os Vedas. Mesmo sendo muito maisjovens do que os Vedas, os Upanixades ainda são tão antigosquanto às tábuas de Moisés, com aproximadamente 3400anos, alguns um pouco menos.

Enquanto os textos védicos são míticos, ritualísticos eimpregnados por uma linguagem autoritária que lembramuito o Pentateuco, em especial as leis, os Upanixades sãocompostos geralmente por alegorias refinadas e abstratas,especulação filosófica e poesia espiritualizada. Categorias quepodem ser encontradas em todas as tradições religiosas.

O Chandogya Upanixade, por exemplo, apresenta-nos aidéia de investigação filosófica das essências das coisas. Umpai tenta repreender o filho que se gabava excessivamente desua ciência. Ele lhe diz assim:

“Traga-me um fruto da árvore de nyagrodha

_Aqui está pai.

_Abre-o.

_Está aberto, pai.

_Que vês aí.

_Umas sementinhas.

_Abre uma.

_Ei-la aberta.

_Que vês aí.

_Nada.

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O pai disse: _ Meu filho, na essência sutil que nãopercebes aí, nesta essência está o ser da enorme árvorenyagrodha. Nisto que é a essência sutil, todos os seres têm oseu Eu. Isto é o verdadeiro, isto é o Eu, e tu, Svetaketu, tu ésisto...”[1]

Nesta alegoria de profundo valor reflexivo, o Upanixadedemonstra que os princípios ou leis são exatamente a parteinvisível e imponderável da realidade. E antes que o astutohomem moderno responda que o conhecimento científico jádesvendou a natureza do desenvolvimento da sementeatravés da estrutura de DNA, lembramos que o sábio pai dahistória não está excluindo a imanência da lei numaestrutura material, tanto que ele sabe perfeitamente que asemente, material, é imprescindível para o crescimento daplanta. Confrontado com a noção de DNA da semente eletambém admitiria que sem esta estrutura física o fenômenode metamorfose da planta seria impossível, mas ele estáconsciente de que é a ordenação da matéria, seguindoprincípios e leis, invisíveis e imateriais, enfim, é o fato dehaver uma lógica na disposição da parte material da sementeque a permite tornar-se árvore. Esta lógica e ordenaçãocompõem a parte imutável, permanente e espiritual de todasas coisas, e é para ela que a história está atentando.

Num aspecto mais moral as Upanixades se revelam aindamais instigantes. O Yogatattva Upanishad diz:

“As almas individuais são prisioneiras dos prazeres edesgraças que as afetam neste mundo; para livrá-las dailusão é preciso dar-lhes o conhecimento de Brahman (ASuprema Realidade, Essência do Universo), graças ao qual oindivíduo já não é mais afetado pela doença, nem pelavelhice, nem pela morte e não sofre mais o risco de renascer.E este conhecimento é adquirido com dificuldade, mas é umnavio que permite atravessar o rio dos renascimentos; pode-se atingi-lo por mil caminhos diferentes, mas ele é realmenteUm, refúgio supremo além do qual nada existe. Alguns

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procuram seu caminho na prática dos ritos ensinados nosescritos védicos: eles caem por ignorância nas malhas doritualismo. Nem os ritualistas nem os deuses (espíritossuperiores) podem explicar essa Realidade indizível; e comoessa forma suprema que só a alma conhece poderia serconhecida pelas escrituras?”[2]

Esta passagem impressiona pela liberalidade e pela grandeconsciência ecumênica e crítica. A crítica do ritualismo e doapego dogmático aos Vedas lembra a recomendação sábia dePaulo para transpor a letra e apreender o espírito dos textos.Mas considerando-se que o texto indiano antecede em maisde mil anos o do apóstolo de Tarso, e supera também afilosofia grega que permitiu ao judeu helenizado este grau detolerância intelectual, somos forçados a render homenagem erespeito a esta antiga filosofia, a qual muitos críticosocidentais ainda consideram desmerecedora do título deracional.

Os Upanixades, como toda grande filosofia espiritualista,prima pela unidade monista do universo em Deus. ODhyanabindu Upanixade, por exemplo, lembra que aquelaparte essencial e imortal de todas as coisas, o ser dos seres, éa força divina onipresente:

“E todos os seres que existem são atravessados pela Alma(Atman), como as pérolas por um fio. O espírito sereno, opensamento claro, assenta-se em Brahman (A SupremaRealidade. Essência ou Alma do Universo), quem o conhece.Sim, como o óleo nos grãos, o perfume na flor, a Alma está nocorpo do homem, e o envolve e habita!”[3]

O Hamsa Upanishad apresenta em feições ainda maispoéticas a unidade divina do universo desdobrado a partir dasubstância pensante absoluta:

“Ele entra em todos os seres, o Pássaro Migrador (Brahman),e torna-se presente neles como o fogo nas varetas de atritar.Ou como o óleo no sésamo. Saber isso é vencer a morte. (...)

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Ele é o Pássaro Supremo, resplandecente como a luz de dezmilhões de sóis e pelo qual todas as coisas forampermeadas.”[4]

As conseqüências éticas, ecumênicas e sociais desteespiritualismo místico são louváveis. O Sri Isopanixademostra, no sexto mantra, como a própria idéia de Deusproduz um ponto de vista universalista e espiritual:

“Aquele que vê que tudo está relacionado com o SenhorSupremo, que vê que todas as entidades vivas são suaspartes integrantes, e que vê que o Senhor Supremo estádentro de tudo, não odeia nada nem ninguém.”[5]

Não é minha intenção fazer uma análise cuidadosa dosUpanixades, motivo pelo qual termino esta curtíssima esuperficial exposição da vasta e complexa literatura sagradaindiana sem nem mesmo uma conclusão geral. Isto tambémtem a ver com o fato de que a Índia originou todas as grandeslinhas de pensamento que vemos em conflito na história dafilosofia ocidental: Diversos tipos de ateísmo, unsmaterialistas outros espiritualistas; monismos predominantespontuados por dualismos ou politeísmos de vários tipos;adoração dos elementos da natureza em expresso panteísmo,ou teísmos de Deus único com entidades subordinadas quelembram o catolicismo. Da teologia indiana vem inclusive aidéia de trindade, onde um Deus supremo se divide emdistintas pessoas, cada qual com uma existência real eindependente.

Por volta de 500 a 450 a.C., enquanto a Grécia via a formaçãoda escola pitagórica e a juventude de Sócrates, todas asformas imagináveis de especulação religiosa já haviam sidotentadas na Índia. As disputas sobre os meandrosdogmáticos e rituais, os conflitos entre as várias escolas,produziu a revolta cética baseada numa doutrina

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extremamente pragmática e desprovida de conteúdoteológico, o budismo. Na mesma época o sábio Patânjalitentou isolar a ciência indiana sobre práticas ascéticas,respiratórias e místicas das doutrinas religiosas.Semelhantemente a Sidarta Gautama, Patânjali achava que oexcesso de teorias religiosas era mais prejudicial do quebenéfico à elevação da alma, e criou um método rígido,racionalista e empirista para separar o Yoga, conhecimentoprático, de qualquer crença, dando origem à grande tradiçãode místicos treinados. Agnósticos por natureza, os yogispodem e geralmente aderem adicionalmente a uma religião,inclusive a islâmica, mais recentemente.

Patanjali, o compilador do Yoga.

De natureza totalmente distinta é a literatura épica formadaneste período tardio da cultura em sânscrito. O colossalMahabarata, contendo a história da guerra entre duasfamílias do mesmo clã, rico de considerações filosóficas edevocionais, é de muito longe a maior obra literária daantiguidade. Mais de dez vezes maior do que a Ilíada e aOdisséia reunidas. Um único e pequeno fragmento destelivro, o Bhagavad-Gita, contém virtualmente todo oconhecimento necessário para a vida santificada, e por issoacabou popularizando-se como um livro à parte.

O médico, político, filantropo e jornalista Adolfo Bezerra deMenezes, em sua obra Estudos Filosóficos, faz a análisedaquele magnífico livro indiano, dedicando-lhe páginaspoéticas e apaixonadas. Segundo ele: “o Bhagavad-Gita é umlivro tão elevado, tão luminoso, que nem mesmo a Bíblia podepretender estar acima dele.” [6] Vejamos de relance o que dáa este livro um aspecto tão elevado.

Logo na introdução o deus encarnado Krishna diz a seudiscípulo Arjuna: “Aqueles que são videntes da verdadeconcluíram que o não-existente (o corpo material) não

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permanece e o eterno (a alma) não muda. Isto eles concluíramestudando a natureza de ambos.”[7] A frase faz referencia àprática do yoga, considerada a ciência dos indianos,juntamente com a matemática, a medicina e a lógica. Cadauma destas seria responsável por revelar as leis que regem osdistintos fenômenos naturais, sendo o yoga particularmenteimportante por estar ligado à revelação das leis energéticas ementais mais sutis.

O conceito de reencarnação, presente desde eras remotasna religião e filosofia indiana, encontra no Gita a suaexpressão mais clara, quando Krishna diz: “Assim como,neste corpo, a alma corporificada seguidamente passa dainfância à juventude e à velhice, do mesmo modo, chegando amorte, a alma passa para outro corpo. Uma pessoaponderada não fica confusa com esta mudança.”[8]

O Gita segue instruindo Arjuna, o discípulo doiluminado, a desapegar-se dos frutos de suas ações, a agirconforme a posição em que foi colocado por Deus, a praticarausteramente a investigação de si mesmo, yoga, e a adorar aDeus em todos os pensamentos e ações.

Existem extensas enciclopédias que tentam reunir asfilosofias e a teologia indiana, mas nenhuma delas éconsiderada completa. As melhores em línguas ocidentaissão:

1. a história da filosofia na Índia de ShurendranatDasgupta, disponível em inglês em dois ou três volumes,dependendo da edição. Esta obra garante um contato emprimeira mão com um autor indiano dominante do sânscrito(que é uma língua morta) desde a infância e não apenasfluente, mas virtuoso no inglês.

2. Paul Deussen foi provavelmente o maior indólogo detodos os tempos, reunindo uma obra vasta sobre a Índia,onde se destacam Introdução geral da filosofia dos Vedas aosUpanixades.

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3. Mircea Eliade, o célebre historiador da religião, viveuanos num mosteiro indiano e doutorou-se também neste paíscom uma tese sobre Yoga. Seu conhecimento não é tão vastoquanto o dos indologistas, mas a sua competência filosóficapermitiu-lhe elaborar uma conceituação muito qualificadadas principais correntes. Estas teorias e experiênciaspessoais podem ser encontrados em Yoga: Imortalidade eLiberdade.

4. Também um escritor originalmente interessado emYoga, como Eliade, Georg Feuerstein também superou emmuito as necessidades de uma exposição dos exercícios eprincípios desta prática, apresentando adicionalmente umaanálise longa, sistemática e exaustiva de todas as religiões,filosofias e respectivos conceitos da macro-cultura indiana.

________________________________________

[1] Aldous HUXLEY. La Filosofia Perenne. Pg. 12.

[2] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textossagrados da antiguidade. Pg. 180-181.

[3] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textossagrados da antiguidade. Pg. 109.

[4] Carlos Alberto TINOCO. As Upanishads do Yoga: Textossagrados da antiguidade. Pg. 146-147.

[5] Swami PRABHUPADA. Sri Isopanisad. Pg. 29.

[6] Aliás, neste livro de dois volumes que é a coletânea deseus artigos publicados no jornal O Paiz, Adolfo Bezerra deMenezes nos surpreende como acirrado polemista, dotado devastíssima erudição sobre teologia, filosofia e história docristianismo primitivo e de outras grandes tradiçõesreligiosas, especialmente as da Índia e do Egito.

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[7] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é. Capítulo2, Verso 16. Pg. 92.

[8] Swami PRABHUPADA. Bhagavad-Gita como ele é.Capítulo 2, Verso 13. pg. 88.

Espiritismo no Islã

O Espiritismo apresenta-se como “uma ciência que trata danatureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suasrelações com o mundo corporal”, segundo a definição deKardec em O que é o Espiritismo, e isso pressupõe e exige anatureza universal destes mesmos fenômenos. Não é,portanto, o Espiritismo, comparável a qualquer conjunto decrenças religiosas, pois nenhuma delas coloca-se sob asmesmas exigências.

Apresentar-se como ciência e filosofia separa-oconclusivamente das demais religiões, mas isto não é apenasum privilégio e um mérito, como também uma permanentedesvantagem. Isto porque, ao afirmar-se como ciência,restringe-se e coloca-se sob risco a segurança da crença, quetoda a religião tem garantida por dogma.

Dentre os inúmeros riscos a que se expõe uma religião compretensões científicas está o de provar o caráter universal deseus fenômenos, e sua completa independência da respectivacrença neles ou numa filosofia que os apóie. Por isto é tãoimportante para os espíritas buscar a comprovação de seuspressupostos dentro de tradições religiosas distintas, umhábito ressaltado nas coletâneas e artigos de Kardec naRevista Espírita.

Poucas coisas podem beneficiar mais uma hipótese científicado que descobrir a presença de seus fenômenos numambiente em que eles são considerados impossíveis. Se aciência em questão é acusada de depender de uma disposiçãocultural, nenhuma outra descoberta é mais alentadora do

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que a de que seus fenômenos estão bem enraizados numacultura que a condena.

É o caso de religiões que possuem uma posturadeclaradamente contrária a fenômenos espíritas, como ocatolicismo e o islamismo. Encontrar estes fenômenos ou oselementos de uma filosofia espírita num tal ambiente é deporfortemente contra a idéia de uma explicação cultural parasua existência. E no presente texto quero falar da presençainconfundível de fenômenos e filosofia espírita entre osmuçulmanos, cujos conselhos oficiais negam a abominam osconceitos de reencarnação e comunicação com os mortos.

Muhammed Iqbal, poeta, pensador e político influentedo início do século XX propôs uma renovação espiritual doIslã, colaborando para a divulgação de místicos e filósofosmuçulmanos dos séculos passados numa perspectivaespiritualista arrojada. Para ele cada partícula do universo éum “eu”, um espelho do Criador buscando o seudesenvolvimento.

Entre os grandes mestres espirituais do Islã está o persaRumi, considerado por muitos o maior homem santo doIslamismo, abaixo do profeta Mohammed. Algumas de suaspassagens, escritas por volta de 1250, apresentam nãoapenas idéias reencarnacionistas, mas evolucionistas, numaforma tão elaborada como só foi vista novamente no séculoXVIII. Rumi diz:

“Toda a forma que tu conheces tem a sua origem no mundodivino. Se a forma desaparece, isso não tem conseqüências,porque o original perdura... Não temas, a água desta fonte éilimitada.

Quando tu vieste a este mundo dos seres criados, umaescada se fez diante de ti, de modo que tens de percorrê-la.Inicialmente tu foste um inanimado, então te tornaste planta;depois disto te modificaste em animal. Por fim chegaste ahumano, possuidor de conhecimento, inteligência e fé. Depois

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te tornarás anjo. Então este mundo estará terminado para ti,e o teu lugar será nos céus. Melhora-te também até no estadode angelitude. Passe para a profundeza gloriosa, de modo queaquela única gota, que és tu, possa tornar-se um oceano.”

O caráter de Rumi era tão impecável que seuscontemporâneos o chamaram de o homem perfeito, ouhomem sem pecado. E seus escritos eram tão apreciados queum ditado foi cunhado com os seguintes dizeres: “Rumi não éprofeta, e seus textos vêm dele mesmo. Não obstante, tudo oque escreve é tão sagrado quanto as próprias Escriturasreveladas.”

Rumi.

A doutrina de Rumi se baseava na idéia de que toda acriatura é a imagem e semelhança de Deus, portantoespiritual e santa. Tudo é divino, e tudo está permeado pelodivino. O cosmo está envolto numa força invencível, que é oamor de Deus. Esta força faz todos os seres subirem emdireção a Deus, passando por muitas fases evolutivas emdiferentes corpos e experiências, inclusive em outros mundosinimagináveis para o habitante da Terra. O amor de Deusarrasta tudo para o alto, para a profundidade e liberdade doespírito, e os seres se agrupam por semelhança numamarcha ascensional.

O homem santo também não se limitava a filosofar.Compôs toda uma doutrina de comportamento e purificaçãomística baseada no amor. Combateu a idéia de indignidadeda raça humana, que não via como pecadora, masinteiramente santa e divina. Difundiu em sua comunidadeuma mística do amor ao próximo e a natureza, muitosemelhante à renovação que Francisco de Assis tentoudesencadear na Igreja católica exatamente no mesmo período.

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Outro místico e filósofo importante é Al Farabi. Grandeleitor de Platão, Aristóteles e Plotino, criou uma cosmologiafilosófica muito complexa para o Islamismo, segundo a qualos seres seriam atraídos por um magnetismo espiritualconstante em direção ao “centro de si mesmos”. O resultadodeste processo de desenvolvimento seria o auto-conhecimento, coincidindo com o conhecimento de Deus queé a fonte do espírito.

Al-Farabi foi uma das maiores inteligências da história.Criou instrumentos e estilos musicais inovadores, provou aexistência do vácuo, reformulou a matemática e a lógica,chocou muitos pensadores muçulmanos ao afirmar que oCorão deve ser submetido ao crivo da razão e que o homempossui livre-arbítrio. Sua cultura era tão ampla e tão geralque o seu nome foi preservado inclusive na Europa,especificamente no idioma português, através da palavraAlfarrábio, sinônimo de escritos antigos, extensos e difíceis.

Uma homenagem aos sábios espiritualistasmuçulmanos não possui valor se deixar de fora a mençãohonrosa de Ibn Arabi. Este grande intelectual e místicoespanhol desenvolveu técnicas de respiração e meditação quelembram em muito as do yoga, objetivando o aumento daforça de vontade e do autodomínio através do controle severoda respiração. Também recomendava e praticava diariamentemeditações longas, baseadas na contemplação de Deus erepetição de suas glórias.

A vida mística de Arabi começou com uma estranhavisão. Ele viu-se repentinamente atirado para o alto, como sevoasse para os seus, mas sem sair do lugar onde estava. Viuaproximarem-se três figuras majestosas, que ele reconheceucomo sendo Moisés, Jesus e Maomé. Os três tinham umamensagem para ele. Jesus recomendou-lhe a vigilância,Moisés o estudo, e Maomé recomendou: “Esteja semprecomigo.”

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Arabi seguiu fielmente os três conselhos, o melhor quepodia, e estudou filosofia e religião. Anos depois, em fins doséculo VI, ele teve outra visão impressionante. Diante deledesfilaram em instantes todos os profetas e homens santosde diferentes religiões e ele os reconhecia sem que nenhumapalavra fosse dita. Ao despertar do transe uma única liçãoecoava em sua mente: “Todos os profetas foram enviados porDeus”.

A partir desta fase as visões se tornaram comuns paraArabi, mas não mais espontâneas. Ele desenvolveu umatécnica de concentração que lhe permitia entrar em transevoluntariamente, o que viabilizava visões mais longas.Algumas delas eram muito simbólicas, lembrando as visõesdo Apocalipse de João. Outras eram inteiramenterelacionadas à sua vida terrena. Nestas últimas incluíam-sevisões do futuro, seu ou de outros, intuições sobre o queoutras pessoas faziam a distancia e mensagens diretas,geralmente na forma de um comando ou conselho.

Fenômenos de vidência, premonição, vozes diretas,inspiração, aparições luminosas, curas espirituais e filosofiaespiritualista incluindo freqüentemente idéiasreencarnacionistas são comuns no Islamismo, emboraimpopulares. Sempre houve pessoas que defendiam práticasou a crenças espíritas, e costumeiramente elas eram tidascomo santas e respeitáveis. Nomes menos famosos do queestes podem não ter sido registrados na história, mas oestudo das tradições orais, ditados e lendas dos diversospovos islâmicos pode trazer interessantes revelações sobre oquanto de Espiritismo há nesta difundida cultura.

A virtude dos estóicos

A virtude essencial dos estóicos era a verdade. Eles nãopregavam sempre uma vida frugal e ascética. O rigor e a

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disciplina eram mais conseqüências do que postuladosfundamentais. Na base de tudo estava a preocupação de seatingir um estado de perfeita honestidade, de sinceridadeconsigo mesmo e com os outros. Todo o resto é secundário noestoicismo, mas evidentemente a maioria dos que se ocupamem manter um grau elevado de sinceridade encontrarãoobstáculos psicológicos que geralmente só podem sersuperados com uma disciplina heróica.

Os estóicos, como todos os socráticos, sãointelectualistas convictos, e acreditam no papel essencial darazão para a vida feliz. Os hedonistas e epicuristas, aos quaisse atribui popularmente uma espécie de inimizade em relaçãoaos estóicos, eram igualmente intelectualistas queacreditavam no papel preponderante da razão para evitar odesprazer, a frustração e o ressentimento. Todas as escolassocráticas, não importa a sua ênfase, tinham em comum aconsciência da fragilidade do conhecimento humano, o quelhes conferia a famosa humildade socrática de jamaisconsiderar suas posições como verdades absolutas, senãosempre como propostas sensatas, mas falíveis deentendimento da realidade. Também compartilhavam aimportante característica de se concentrarem todos sobre amoral. Considerando que o conhecimento é incerto e a vidauma realidade, convém não investir tanto tempo nainvestigação do mundo e voltar as forças do espírito para ameditação sobre a vida, e sobre como ela pode ser melhor.Naturalmente este esforço de reflexão sobre a possibilidade deuma vida melhor só faz sentido se houver uma crença préviade que a razão é eficaz nesta tarefa. Desta forma todas asescolas socráticas se ocupavam exaustivamente com acorreção do intelecto, pois atribuíam a maioria dossofrimentos da vida a erros de interpretação, expectativasilógicas e fantasiosas, auto-engano, desinformação e mentira.

A mentira ocuparia para os estóicos um papel maisimportante do que para os demais socráticos, pois eles aenxergavam como síntese de todas as demais fraquezas

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intelectuais. Seu diagnóstico apontava para o orgulho e amalícia como a fonte da mentira. Quem transmite umainformação é sempre responsável pela atitude com que o faz.Se a postura do comunicante é humilde e consciente, eleconfessará estar expressando uma opinião ou um raciocíniológico, mas falível. Se esta postura, entretanto, for de malícia,o comunicante tem interesse em enganar o ouvinte. Se apostura for arrogante, segura de si e dogmática, ocomunicante incute suas crenças e arrazoados nos ouvintes,revestindo-as de aparência de verdades absolutas.

Os estóicos eram excelentes psicólogos, e perceberam queestes erros de postura muitas vezes são inconscientes, frutode má educação ou hábito. Por isso propunham umaeducação filosófica muito semelhante a uma psicoterapia, emque o estudante buscava identificar em si as causas de seusenganos, idéias fixas, dogmas e vícios. Este exercício eramarcadamente liberal e individual, não havendo qualquertábua de valores ou normas que o praticante fosse obrigadoou mesmo aconselhado a seguir. Mais ainda do que opsicoterapeuta atual, o mestre estóico não interferia na auto-análise do discípulo, limitando-se a fazer a sua própria auto-análise pública. As aulas dos maiores mestres, comoEpicteto, consistiam exclusivamente em confissões públicasde seus defeitos e vícios e no método usado por ele paracorrigi-los. Os discípulos deveriam fazer uma análisesemelhante, raramente ou mesmo nunca recorrendo aomestre para orientação. Este método guarda semelhançasóbvias com as práticas de meditação dos yogis e budistas.

Epicteto.

O famoso livro “Meditações” de Marco Aurélio sequer foi feitopara publicação, sendo apenas um resumo de análises queele escrevia sobre e para si mesmo. As exortações contidas nolivro não são prescrições morais para um leitor, masdeterminações que ele dava a si mesmo, conforme sua

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própria índole e de acordo com os objetivos que ele mesmo seimpunha. Os estóicos eram famosos por ser muito tolerantese misericordiosos com os seus semelhantes, jamais exigindoposturas de disciplina ou condenando aqueles que não asadotavam. É, portanto, absurdo creditar-lhes uma posturataciturna e crítica, a não ser com base na prática popular doestoicismo, que muito lembrava a circunspecção das ordensmonásticas cristãs. Muitos estóicos, a exemplo do imperadorMarco Aurélio, tinham boa condição de vida e participavamplenamente da vida social, a qual nunca condenaram.

A idéia de que os estóicos fossem reclusos ou eremitas vemde uma confusão quanto as suas críticas dirigidas ao apego ea servidão aos bens materiais. Estas críticas eram motivadaspelo seu interesse esclarecedor em afirmar que tal apego nãoé necessário à felicidade, e pode tornar-se fonte desofrimento, e não do desprezo pelos bens ou estilo de vida emsi. O foco dos estóicos jamais foi a ascese do corpo ou apobreza, mas a transformação do ponto de vista. Algunsmestres consideravam em sua auto-análise ser essencial aruptura radical com a sociedade, e o faziam. Raramente,entretanto, o recomendavam aos seus discípulos, elembravam que este afastamento da vida econômica e socialera um traço de fraqueza pessoal em resistir ao domínio dasfacilidades e comodidades enganosas da vida.

O que se pregava efetivamente era a necessidade da correçãointelectual e psicológica sobre a vida. Riqueza ou saúde, famaou amizade podem esvair-se sem que o seu dono nada possafazer. A morte atinge inexoravelmente a todos, independentede sua posição, conhecimento, respeitabilidade ou poder. Abeleza que atrai agora pode esconder um caráter pérfido, emesmo que assim não seja desaparecerá com os anos.Entendida esta transitoriedade da vida, o filósofo estóicoconclui pela futilidade das amarras físicas e sociais, e se voltaprioritariamente para a sabedoria que não lhe escapa nashoras de infortúnio ou de distração.

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É a ilusão e o auto-engano que fazem os acidentes da vidaparecerem glórias. Que dizer de um imperador cujo direito degoverno e autoridade foi conferido por ter nascido? E não sãomaiores os méritos dos governantes eleitos, pois sendo amaioria dos homens estúpidos ou viciosos a vontade damaioria não representa qualquer superioridade. Por isso osestóicos lembram sempre do desinteresse prudente emrelação a qualquer honraria. Jamais deve o homem julgar-semerecedor de elogios e glórias, pois os que o fazem podem serapenas maus juízes, ou as glórias imerecidas, fruto do acaso.Somente o orgulho engana o homem e o faz pensar que a suagrandeza está em seu mérito. Nada, a não ser nossa opinião enosso comportamento, está em nosso mérito. Se o nossocomportamento resulta em fracasso ou sucesso, isso tem aver com fatores que vão desde o clima propício até ainfluencia de milhares de outras pessoas, e não se podejamais imaginar que a ação individual é responsável pelosresultados. Entendendo que muitas coisas não estão emnosso poder, os estóicos se libertam da ansiedade e daexpectativa de quaisquer resultados, novamente em exatarelação aos ascetas orientais.

Um estóico jamais persegue a glória, pois sabe que ela nemdepende dele, nem significa qualquer coisa além da opiniãoalheia sobre a grandeza. Se a glória lhe cai nas mãos, comono caso de Marco Aurélio, ele a considera um acidente ouuma vontade da Providencia, não tendo em ambos os casosde que se orgulhar. Age no seu melhor para que sua posiçãoseja bem exercida, e tem em conta que ela não é melhor oumaior do que a de um camponês ou pescador, pois o mesmodestino que lhe pôs no trono e ao pescador na sua choupanapoderia ter invertido os papéis. Também não foge da riquezaou da fama, a não ser que as considere prejudiciais ao seuestado de espírito. Age com a mesma naturalidade eimparcialidade com que agiria na pobreza e no anonimato.Respeita e honra o privilegio de que desfruta, como alguémque tem em conta algo de valor que lhe foi confiado. Nada

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considera seu, a não ser o que está em seu domínio, o seupróprio espírito.

Ninguém expressa melhor este sentimento de liberdade e estaresignação absoluta quanto ao que não pode ser mudado doque Epicteto. Escravo durante a maior parte de sua vida, ofilósofo tinha a certeza prática de que nossos atos e méritossão limitados de todas as formas possíveis. Ele não regulavao que comia, nem a que horas se levantava, nem ondedormiria, nem o que faria durante o dia ou com quempassaria seu tempo livre. Sua vida limitava-se a obedecer asdeterminações de um senhor severo e compartilhar seusmomentos livres com outros habitantes da casa, com osquais também não escolheu conviver. Não obstante era muitofeliz e dizia que nenhum homem possuía mais liberdade queele, já que na vida todos somos limitados por inúmerascondições da natureza e da sociedade. O homem ordinário,observava ele, geralmente é menos livre do que o escravofilósofo, pois pensa que é senhor de seu destino e estáescravizado pela própria mente, repetindo hábitos mecânicosquase invariavelmente.

Tal era a sua abnegação e resignação que ele sequer sentia-seatingido pelas desgraças mais amargas, pois, dizia, não sepode lamentar contra natureza ou a Providencia. Tudo o queestá fora de nosso poder deve ser aceito, o que está em nossopoder, deve ser mudado, sobre nada deve-se preocupar ouansiar. Tão real era esta convicção que certa vez ao receberbastonadas de seu senhor, o filósofo teria comentado comserenidade: “Senhor, assim quebrarás certamente a perna doteu escravo.” Como que indignado por esta observação eporque o escravo não demonstrasse medo, o amo bateu aindamais forte sobre a canela, que partiu-se com um grandeestalo. Após os primeiros instantes de dor, e observando noamo a expressão de arrependimento, Epicteto conclui semqualquer rancor: “Vês senhor, danificaste a tua propriedade.”

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Com a imensa popularidade dos estóicos entre as classescultas do Império Romano, é mais do que natural que osprimeiros cristãos absorvessem muito desta filosofia,especialmente pelo seu caráter menos abstrato e cunhomoralizador. Através do Cristianismo uma parte da filosofiaestóica sobreviveu, até nós.

Espiritismo e filosofia alemã.

Nos dias atuais é de impressionar o quão pouco se sabe sobreo papel dos filósofos alemães no desenvolvimento doEspiritismo. Certo é afirmar que, do ponto de vista cultural, aAlemanha é o único país a contribuir para a formação doRomantismo e do Idealismo, correntes de pensamentoessenciais ao desenvolvimento do Espiritismo na Europa.

Não quero falar tanto de como surgiram o Romantismo e oIdealismo, remeto o leitor ao meu artigo “O descobrimento daAlemanha por Madame de Stael”. Basta dizer que, exceto porRousseau, a França não teve colaboração nas fases iniciaisdestes grandes movimentos, e por mais que a França e a Grã-Bretanha tenham importância fundamental no progressocientífico da Era Moderna, suas bases filosóficas jamaispermitiriam aflorar uma filosofia como a do Espiritismo.Infelizmente, como comentei nos textos anteriores deste blog,a consciência histórica do Espiritismo tende a se limitarmuito a história da Roma antiga e da França moderna.

Para desfazer este mal entendido é preciso remontar aEuropa do século XVII, quando o racionalismo se estabelecia.Todos conhecem bem a importância de Descartes, dosempiristas ingleses e dos cientistas como Galileu, Copérnico eKepler. O que nem sempre é igualmente conhecido, foi osurto de misticismo e piedade religiosa ocorridos na

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Alemanha neste período. Enquanto as outras naçõescivilizadas da Europa entravam na Era Moderna pelocaminho da ciência, com uma filosofia mecanicista para anatureza, separada do espírito, compondo o famoso dualismocartesiano, a Alemanha formulava uma visão mais mística,embasada nas tradições do platonismo e do hermetismoegípcio, onde a natureza e o espírito eram a mesma coisa.

Embora o mundo latino também tivesse os seus expoentesmísticos no mesmo período, como Giordano Bruno, este tipode filosofia só era adotado com muitas ressalvas e restrições,enquanto na Alemanha, a reação à ortodoxia luteranaprovocou uma adesão mais geral ao surto espiritualista.Ocorre que o cânone luterano original fazia a salvação daalma depender exclusivamente da fé. Isso fez nascer nospaíses luteranos uma geração inteira de crentes formais, quese justificavam apenas pela sua adesão de fé a Bíblia, masque não possuíam uma vida cristã. A degeneração socialchegou a um ponto intolerável para as almas mais piedosas,que fizeram um movimento de restauração da piedade cristã.Este movimento conhecido como Pietismo, visava restabelecerem mundo protestante a pureza da mensagem sentimental emística de Jesus. Seus adeptos evitavam a igreja, cujo cultoconsideravam meramente social, e faziam encontros caseirosonde a Bíblia era lida de maneira mística e emotiva. Cadacrente visualizava as passagens do Evangelho como seestivesse presente nas cenas narradas, e vivenciavaefetivamente as curas, as repreensões morais e as exortaçõesà virtude feitas pelo Cristo. Com isto o crente sentia-se emuma comunhão profunda com o Messias e com Deus.

Filósofos iluministas como Wolff e Kant, que costumam termá fama entre os espiritualistas, eram pietistas convictos, eaderiam a estas práticas. Eles também contribuíram para daruma linguagem mais universal ao pietismo, evocando umamoral pessoal, vinda exclusivamente da consciência,independente de mandamentos externos. Também entre ospietistas existiam inúmeros indivíduos conhecidos por

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imensas obras de caridade. August Hermann Francke, porexemplo, criou uma cidade inteira voltada para a educação.Retirou crianças das ruas e da criminalidade, oferecendo-lheslares e ensinando-lhes profissões simples. Em sua escolaestudavam conjuntamente os filhos dos ricos e estes órfãosrecolhidos das ruas.

O ensino ia do pré-escolar até a pós-graduação em teologia, eera tal a sua excelência que pessoas vinham de longe paraestudar na escola e faculdade criada para aqueles ex-desabrigados. Por volta de 1700, Francke também instituiurevolucionariamente a educação para meninas em todos estesníveis, com o mesmo conteúdo que a dos meninos. Isto foifeito mais de cem anos antes da formação das escolaspúblicas na França.

Os pietistas se caracterizavam por uma religião privada emuito fervorosa, mas com grande liberdade e juízo crítico.Sem respeitarem hierarquias e dando pouca distinção aospastores, privilegiando o culto caseiro, eles ajudaram areformar a Alemanha com suas tradições conservadoras damesma forma que os céticos e livre-pensadores faziam nasdemais nações da Europa. A Alemanha pulou a fase atéia esensualista que caracteriza a França e a Inglaterra do séculoXVII, entrando na Era Moderna através de uma reformalibertária de cunho fortemente espiritualista.

O que distinguia os pietistas em dois grupos era a concepçãoda natureza. Uns a consideravam essencialmente material emecânica, como Kant, outros essencialmente divinizada evivente, como Böhme, Herder e Goethe. Todos, entretanto,eram reencarnacionistas.

A ideia de reencarnação na Alemanha não surgiu com Leibnizem 1714, conforme se pensa e divulga muito. Leibniz cogitouda ideia de palingenesia, mas considerava-a estranha aocristianismo. Sua filosofia das mônadas pressupõe sim umaevolução do princípio espiritual, mas esta só ocorreriadurante a vida na Terra e depois continuaria no mundo

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espiritual. Não haveria retorno a Terra. Foi Christian Wolffquem introduziu o conceito de reencarnação em 1730,usando exatamente o argumento da mônada de Leibniz. Como seu conceito de metempsicose racional, Wolff reformulou atradição Greco-egípcia sobre reencarnação acrescentando queas mônadas espirituais de Leibniz não esgotavam todas asexperiências na Terra em uma única vida. A Terra ofereceriauma quantidade tão variada de vivências e experiências que aalma poderia tirar muito proveito de um retorno constante aeste mundo, sem repetir os caminhos já trilhados.

Christian Wolff teve impacto imediato sobre a filosofia alemãem todos os aspectos e a reencarnação não foi o último deles.Lessing tornar-se-ia o primeiro e mais vigoroso defensor destaideia. Estabelecendo os princípios da teologia racionalprotestante. Entre outras reformas no sistema teológico,Lessing adotou a ideia de reencarnação e a de que JesusCristo não seria o filho único de Deus e sim o revelador deque todos somos um com o Pai. Ele não queria com isso umaredução da figura divina do Cristo, mas lembrar que amensagem do Evangelho é a de divindade universal de todose todas as coisas. Só existem seres divinos, e os conflitos, omal e o sofrimento só existem enquanto esta herança não éposta em ação.

Foi Lessing quem popularizou o conceito de palingenesia naAlemanha.

Outro seguidor de Wolff foi Kant, que estabeleceu em sua“teoria do céu” a doutrina dos corpos sutis. A alma teria, paraele, um corpo intermediário entre a natureza física e aespiritual. Este corpo sobreviveria depois da morte do corpofísico, conservando a memória, a sensibilidade e ascaracterísticas pessoais. Com isto, acreditava Kant, estariaexplicada a transmigração da alma pelos corpos com aconservação da personalidade. Ele também insistia que aevolução do espírito em razão e moralidade tornaria este

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corpo espiritual mais puro, de modo que a vida na Terra seriaprogressivamente mais difícil para estas almas, e elasdeveriam subir a mundos igualmente mais puros. Nestesoutros mundos, a alma teria corpos leves, podendo voar etransmitir o pensamento sem impedimentos da nossa esferamaterial. Mais tarde, entretanto, Kant chegaria à conclusãode que estas ideias não poderiam compor uma filosofiapropriamente dita, pois esta especulação era impossível deser comprovada com a experiência disponível, mas jamaisrenegou suas disposições em matéria de convicção pessoal.

Neste período, entre 1770-1780, tornou-se moda naAlemanha a leitura de Rousseau, o grande filósofo místico dalatinidade, traduzido em termos claros e populares dalinguagem iluminista. Rousseau iria influenciar sobremaneiraa Herder e Goethe, que colheram nele a sua filosofia dosentimento, juntando-a com a idéia alemã de reencarnação.Herder teve papel crucial na formação da doutrina dahistória, e dentro dela inseriu seu conceito de reencarnação.Ele vislumbrava a marcha das civilizações como a ascensãodo espírito ao longo de suas labutas no processo evolutivopara a perfeição divina. Assim, os progressos intelectuais emorais das distintas eras da história, seriam ocultamenteinfluenciados pelos progressos das nossas almas emconstante aprendizado, que reencarnando de uma para outracivilização, produziriam o progresso que aos olhos humanosse dá por meios meramente sociais.

Goethe, por sua vez, criou a primeira doutrina consistente demetamorfose e evolução biológica, mais de cinqüenta anosantes de Darwin, em fins do século XVIII. Ele inferiu que oprincípio vital dos seres organizaria e dirigiria a metamorfosedo embrião ao indivíduo adulto, da semente à planta, epoderia propiciar metamorfoses de um animal em outro, porevolução. Estas metamorfoses Goethe atribuiu, em parte, aoprocesso de reencarnação, que transmitiria as forças dasmônadas espirituais de um organismo para outro. Se oorganismo receptor não pudesse mais conter a força da

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mônada desenvolvida, ele deveria adaptar-se com umametamorfose, e esta seria a causa da evolução das espécies.

Não poderíamos terminar sem citar Heinrich von Schubert,médico e biólogo inspirado por Mesmer, Goethe e Herder. Porvolta do começo do século XIX, Schubert realizou pesquisasdiversas tentando cruzar a teoria do magnetismo animal deMesmer com as teorias reencarnacionistas alemãs.Lembramos que Mesmer era ateu e materialista, e acreditavaque o magnetismo animal era um fenômeno materialordinário. Schubert defendeu então em suas pesquisas que osono seria o desprendimento do espírito do corpo,propiciando os fenômenos de magnetismo divulgados porMesmer. O uso destes fenômenos em estado de vigília nãocontradiz esta teoria, pois o desprendimento do sono seriapossível, segundo ele, através de um transe ou estadoprofundo de concentração. Além desta ligação entre o sono eo magnetismo, Schubert também fez pela primeira vez aanálise dos sonhos com base numa teoria espiritualistaracionalizada. O sonho seria a recapitulação simbólica dasexperiências do espírito enquanto desprendido do corpo. Amesma idéia seria defendida por Kardec quarenta anosdepois.

É desnecessário prosseguir com a lista de nomes. O fato éque existe uma ampla documentação desta passagemhistórica do conceito de reencarnação via Romantismo daAlemanha para a França, por volta de 1805-1820. Enquantoeste momento histórico não for competentemente anexado àsobras de história do Espiritismo, estes importantes autorespermanecerão injustiçados.

Nossa herança oriental.

Quando Napoleão chegou ao Egito, narra Tolstoi em seu épicoromance Guerra e Paz, ele percebeu que a vastidão dos

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horizontes, o número imenso da população e o papel históricodos continentes africano e asiático tornavam-nos muito maisimportantes do que a Europa. Diante do caudaloso Nilo, eleteria percebido o quão patético parecia o seu exaltado Sena, ea idéia de governar o mundo a partir de Paris lhe pareceupela primeira vez uma infantilidade. Se uma nova ordemmundial pudesse realmente se estabelecer, não seria jamaisisolada na ponta da península européia, mas fincada nocoração do mundo, no Egito ou na Rússia.

Ainda segundo o brilhante escritor russo, esta súbitarevelação da irrelevância física da Europa foi o que causou noimperador dos franceses uma obsessão pela conquista daRússia.

Mais de um século depois, Hitler tentou levar a termo omesmo projeto de transposição do Cáucaso. No planoestratégico do Terceiro Reich os recursos e a posiçãointermediária entre Europa e Ásia tornavam a Rússia e oCazaquistão aquisições vitais ao projeto de superpotênciaalemão. A Alemanha deveria substituir a União Soviéticacomo a superpotência do eurocaucaso ou extinguir-se comonação.

O que os conquistadores perceberam com muita perspicácia éque a Europa só mantinha sua posição central no concertodas nações por uma condição temporária de liderançatécnica, cultural e política. Ambos anteviram a vulgarizaçãodas instituições que garantiam a ordem e do conhecimentoque propiciava a riqueza e o poder europeus.

Do ponto de vista geográfico a Europa não passa de umapenínsula da Ásia. Tão grande quanto a península indiana ouindochinesa, mas mais isolada, a ponto de permitir odesenvolvimento de uma cultura própria como em nenhumaoutra província asiática seria possível. Acrescenta-se a isto asvantagens combinadas de terras férteis, clima temperado, oque evita doenças tropicais, e a boa sorte de ter recebidoconstantes levas de populações arianas oriundas da Índia,

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Paquistão e Afeganistão. Povos estes que estavam entre osmais avançados nas eras primeiras da civilização.

Cruzando o tamanho reduzido com estas condiçõesprivilegiadas temos como resultado um ambiente exótico equase artificial de mescla de culturas, prosperidade agrícola eindustrial, além de obstáculos geográficos que permitiam aespecialização e evitavam o domínio de um império universal.Um exemplo disto é a linha divisória que se estende dos Alpesa foz do Reno, e que sempre dividiu os povos latinos egermânicos nesta região. Em qualquer outro ambiente daEurásia, exceto na Indochina que compartilha as mesmascaracterísticas, um espaço tão pequeno conservou-sepoliticamente fragmentado. Impérios como o persa, o mongol,o chinês e os da Índia somavam territórios bem maiores doque o de toda a Europa Ocidental. Mesmo o Império Romano,do qual os ocidentais tanto se orgulham, não conseguiu seestender senão por metade da península.

Esta fragmentação política garantiu a Europa mais vantagensdo que desvantagens. A principal vantagem foi a forte noçãode independência desenvolvida pelos povos europeus, quesentiam-se hábeis e livres evitando a incorporação porpotencias conquistadoras muito maiores. Com o isolamentonatural esta autoconfiança estabeleceu-se como umsentimento de liberdade que os povos da planície asiática,freqüentemente invadidos e incorporados por impériosestrangeiros, não compartilhavam. A desvantagem maisacentuada, por outro lado, é que a sensação de separação eisolamento das populações favorecia um sentimento dediferenciação racial e cultural, propiciando guerrasconstantes. No subcontinente indiano ou no Cáucaso, onde amiscigenação e a troca cultural sempre foram intensas,culturas notadamente mais tolerantes se desenvolveram, oque só é contrariado pela recente recrudescência doIslamismo xiita. Este último, por sua vez, ao contrário do quese pensa, constitui uma minoria mínima dentro do Islã, não

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passando de 16% do total de muçulmanos, e sua versãofundamentalista só intensificou-se no século XX.

Ainda falando em geografia imagine-se o mapa da Eurasia.Embora a Europa seja realmente o ponto mais ocidental docontinente, é errado defini-la simplesmente por “Ocidente”,pois o Oriente Médio cobre a parte sudoeste desta placacontinental. Visto a partir da Ásia Central, incluindo aEuropa neste quadro, o Oriente Médio é na verdade oOcidente, e a Europa só ocupa o noroeste. Numa definiçãocultural em que o Ocidente é a Europa, todos os demais setedireções cardinais são definidos como Oriente. E isto paranão falar na África, que estando ao sul, com muitas regiõesmais ocidentais do que a Itália e a Grécia, por exemplo, é emgeral definida também como Oriente.

Enquanto a definição de civilização ocidental é inconseqüentedo ponto de vista geográfico, ela tem pouco sentido do pontode vista histórico e cultural. As primeiras definições deoriente-ocidente remontam as grandes civilizações daantiguidade européia, a helênica e a romana. Ambas tinhamna Síria e na porção central da Turquia o marco do início doOriente. O Ocidente seria o espaço helenizado da costamediterrânea da Turquia até a Península Ibérica. Estaconcepção se acentuou muito com a divisão do ImpérioRomano em versões oriental e ocidental, estando a África sobadministração do Império Romano do Oriente, o quejustificava a classificação de regiões tão ocidentais comoCartago como sendo parte do Oriente. A posterior divisão daIgreja católica em Romana e Ortodoxa, uma ocidental e aoutra oriental, também acentuou a divisão da Europa e aconcepção de que o oriente começava nas fronteiras com aBulgária e a Ucrânia.

Excetuando-se, portanto, algumas concepções minoritárias, oOcidente foi em geral a definição da civilização crista, nãoortodoxa, da Europa central e ocidental. É comum até hojeouvir definições de europeus sobre a Rússia como sendo um

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país de costumes orientais. Com isto concluímos que, de umponto de vista conservador, o Ocidente é definido como aparte central e ocidental da Europa. Talvez principiando emSão Petersburgo e Odessa. De um ponto de vista muito maisgenérico e inclusivo, a parte européia da Rússia e até aArmenia poderia ser incluída nesta definição. De um ponto devista religioso e filosófico, por outro lado, todos os povos deorientação crista ortodoxa são orientalistas, sendo quesomente a Grécia costuma ser “perdoada”, pelo seu papelhistórico na formação do Ocidente, e é por isto que na nossaanálise faz mais sentido admitir uma visão conservadora dacivilização ocidental.

Não é preciso mais do que uma olhada rápida no mapa paradescobrir o quão insignificante é esta região que só cobreparte da Europa diante da África e Ásia que a cercam e afazem parecer uma península espremida em meio a doisverdadeiros continentes. O que assusta, entretanto, é que oimaginário do homem ocidental médio faz parecer o seumundo tão grande quanto o “Oriente”.

Nossos livros de história resumem, com poucas menções aoEgito e a Mesopotâmia na Idade Antiga e a outros países apartir do século XIX, a história desta célula geográfica que é aEuropa ocidental e central, e ainda assim com raríssimasreferências à Polônia, Romênia, República Tcheca e Hungria.E mesmo dando todo o crédito aos países da EuropaOcidental pelas suas conquistas determinantes nodesenvolvimento intelectual e moral do mundo, a suapretensão hegemônica no campo cultural é umamegalomania, para não dizer uma esquizofrenia coletiva.

Doa e quem doer, goste-se ou não, o que em geral definimoscomo Oriente é de longe a parte majoritária do planeta, empopulação e cultura. Estou convencido de que é preciso irainda além da valorização de Will Durant do papel dos povosasiáticos e africanos na formação do Ocidente. Em seubrilhante livro Nossa herança oriental ele afirma que o berço

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do Ocidente é o Oriente. Vou além e afirmo que o futuro doOcidente é também ser reabsorvido no Oriente, e isto nãoconstitui uma tragédia, mas um evento salvador quereabsorverá a nossa civilização no organismo maior dacultura humana. O insulamento que fez aflorar as magníficasculturas do Japão e da Europa Ocidental não é maisnecessário ou possível. Não é necessário, pois não há mais aameaça de invasões bárbaras. E não é mais possível porque oinsulamento não existe mais na era da livre informação e dolivre transito de pessoas. A América tampouco, que deteve atocha da civilização ocidental sob a forma dos valoresamericanos por menos de um século, pode sustentar esta“pureza” artificial. Suas ondas de imigrantes e seu acentuadofascínio pela Índia e pelo Extremo Oriente já abriram asportas à reintegração.

Sob todos os aspectos que consigo imaginar, não existevantagem ou sentido no prejuízo cultural e religioso contra oorientalismo. E o cristianismo não pode sustentar umapostura isolacionista em relação às demais religiõesuniversais, que igualmente não o podem fazer. Sairia nafrente daria o exemplo de boa vontade o grupo religioso quese dedicasse seriamente a uma proposta integradora maisampla. De modo algum isto significa a perda dasespecificidades de cada grupo, das conquistas e da identidadehistórica que cada fé e cultura possuem pela razão óbvia deter um local de origem. Mas no mundo unificado quecomeçamos a vislumbrar o mínimo que se espera de umsegmento cultural que não queira ser tomado de roldão. Estaagenda mínima de boa convivência e integração inclui, a meuver:

1- Ações positivas de diálogo interreligioso e ecumenismo.

2- Estudo comparativo das religiões, em todos os aspectos(filologia, história, teologia, filosofia, sociologia)

3- Fomento do cosmopolitismo e do esclarecimentoreligioso.

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É muito difícil imaginar uma cultura ou religião quesobreviva até o final deste século sem estas iniciativas, a nãoser como foco de atraso e conflito.

Acho que o Espiritismo tem exercido influencia louvávelnestes aspectos, com exemplos profundos de tolerância eengajamento social entre populações de crenças distintas,com o interesse e a aceitação de elementos pluralistas, aexemplo de autores russos e indianos na literaturamediúnica, do respeito e admiração declarados que a maioria,senão a totalidade dos espíritas tem por figuras católicascomo São Francisco, protestantes como Jan Huss, hinduscomo Gandhi, e assim por diante.

Entretanto, nunca é demais reafirmar estas questões elembrar do quanto é essencial a intensificação deste ritmointegrador numa época em que todas as mudanças ganhamvelocidade.

Perspectiva crítica do Espiritismo.

Se há algo em que a filosofia pode contribuir para amelhor compreensão do Espiritismo e sua inserção na pautade debates especializados é o enfoque histórico-crítico que elaviabiliza. Isto porque a filosofia é uma disciplina de crítica, aúnica, aliás. Enquanto a ciência é obrigada a pressupor o seuobjeto de estudo antes de investigá-lo e enquanto a religiãopressupõe um relacionamento possível com o Sagrado,preocupando-se estritamente em estabelecer as regras desterelacionamento, a filosofia é a única atividade humana que seesgota a si mesma. Ela coloca sob o crivo da razão suaprópria condição de existência, e uma mera definição do que

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seja filosofia não é o ponto de partida, mas o fim de todos osesforços filosóficos.

Por mais que isto choque o senso comum, as ciênciaspartem de dogmas fundamentais e não de um método crítico.Claro que o método científico é racional, eficiente e muitoelaborado, mas ele só apresenta os seus rigorosos critériosem confronto com os seus objetos de investigação: osfenômenos e as teorias sobre eles. A ciência jamais volta assuas armas contra si mesma, como a filosofia o faz, e todossão capazes de reconhecer os seguintes dogmas científicosbásicos:

1- Existe uma realidade objetiva garantindo a existência defato de tudo o que vivenciamos e experimentamos. Por outraspalavras, nossa existência não é apenas um sonho, mas estáradicada numa realidade independente de nós.

2- Somos capazes de investigar esta realidade com o poderde nossa observação judiciosa.

3- Para que o item 2 seja verdadeiro, devemos ser capazesde estabelecer exatamente o que é uma observação judiciosa.Temos, portanto, uma idéia bem definida do que é lógica,verdade, e outros elementos mentais necessários a este juízo.

Um cientista que duvide seriamente destas condições acabadesistindo do seu trabalho e torna-se um filósofo.

Aquilo que separa, portanto, a tarefa e a utilidade dostrabalhos científicos e dos trabalhos filosóficos é uma questãode princípios que, por sua vez, regulam interesses distintos.Se queremos discutir o que é possível conhecer, e como oconhecimento deve se organizar, devemos filosofar. Se, poroutro lado, desejamos sair desta enrascada inicial, e partircorajosamente por uma trilha menos fundamentada, mas quetraz muito mais resultados, devemos fazer ciência oumatemática.

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Não haveria crise entre estas duas grandes disciplinasracionais, filosofia e ciência, se ambas estivessem totalmenteconscientes deste papel. Mas o fato é que o impacto popular eemocional da ciência é incomparável devido aos resultadospráticos que somente ela proporcionou a humanidade.Duvidar e fundamentar o conhecimento garante segurançacontra todo o tipo de preconceito e posturas ingênuas, masnão nos traz conforto, segurança, saúde e diversão na mesmaproporção em que a tecnologia o faz. Isto produziu umproblema de julgamento inteiramente compreensível, de quea ciência seria um critério de verdade de maior validade doque a sua companheira mais velha, a filosofia, que eminúmeros séculos não pode apresentar os mesmosresultados.

Justiça seja feita, a filosofia produziu menos idéias frutíferas,do ponto de vista prático, do que a ciência. Ela monopolizou,por falta de alternativa melhor ao seu método, oconhecimento acerca da natureza, conduzindo muitas vezes alabirintos estéreis de teorias sem suficiente base decomprovação empírica. Por outro lado, ela fez muito com osmétodos que possuía, e se a ciência é de algum modo um dosfrutos da filosofia, esta última é também responsável pelosméritos que a nova disciplina colher. Ademais, agora quetemos o método científico para tratar de questões naturais, afilosofia volta suas forças sobre os temas que realmente podetratar de modo privilegiado, uma vez que não depende emnenhuma medida de investigação empírica, senãoexclusivamente de análise de princípios e julgamentos devalor.

Estes métodos são atualmente a teoria do conhecimento, queinvestiga exatamente as condições em que o conhecimento épossível, se é que o é; a ética, que investiga a possibilidade defundamentação de regras para a conduta, segundo valorescomo a felicidade, liberdade e a justiça; a estética, que sepergunta acerca da possibilidade de estabelecer valoresuniversais de julgamento da qualidade e natureza da obra de

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arte; a lógica, que se pergunta se é possível e como procedeuma análise inteiramente imparcial; ametafísica, vértice eguia das demais disciplinas, definindo que tipo derelacionamento é possível entre as demais esferas e em quesentido cada uma delas pode aspirar a uma realidadeobjetiva. Eles não englobam, contudo, todas as disciplinasfilosóficas encontradas nos manuais e nas universidades,mas as matérias restantes podem ser derivadas destasprincipais. Assim temos a filosofia da religião e a cosmologiaderivando principalmente da metafísica e da teoria doconhecimento, a filosofia política como uma expansão daética do indivíduo para a sociedade, e assim por diante.

Todas estas disciplinas contribuem em muito para o estudocriterioso de um conjunto teórico vasto e abrangente, como éo Espiritismo. Os seus muitos aspectos como religião, ciênciae filosofia, suas implicações éticas, suas teorias sobre arealidade e o papel do homem dentro dela, são só a ponta deum iceberg capaz de consumir gerações de estudos epesquisas. Mas, não obstante a filosofia esteja na raiz doEspiritismo como em nenhuma outra religião na históriahumana, a perspectiva filosófica nem sempre é aplicada entreos seus divulgadores, e eu diria até mesmo entre os seusteóricos. Para delimitar bem e exemplificar o que digo,escolho dentre as possibilidades que a filosofia permite, a deuma análise histórico-crítica do Espiritismo.

Quando falamos neste tipo de análise, queremos explicitar opapel do desenvolvimento histórico de um grupo de idéiasdentro do sistema orgânico da cultura, traçando suas origense linhas de influencia, seus desdobramentos e impacto, esituando geográfica e culturalmente o fenômeno observado.Neste tocante o Espiritismo vulgar mostra-sedemasiadamente carente, em contradição com a qualidade ea lucidez de algumas de suas obras basilares. Desta maneira,surge um abismo entre a consciência esclarecida de autorescomo Kardec, Denis, Bezerra de Menezes, Herculano Pires eautores espirituais diversos, e a idéia geral da inserção

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histórica do Espiritismo. Do lado dos primeiros temos umagenuína filosofia da história, por parte dos últimos temosuma crença ingênua quanto a exclusividade do Espiritismodentro do processo histórico, como se ele estivesse destacadodos acontecimentos gerais. Prova conclusiva em favor destaafirmação é o fato de que há décadas não há interesse empesquisa histórica do Espiritismo, ou ela se limita a temasevangélicos ou diretamente ligados aos primórdios doEspiritismo por começos do século XIX. Conquanto todosestes trabalhos sejam de suma importância, estamosconvencidos de que este cenário precisa mudar.

Em parte, o problema de consciência histórica do Espiritismopode estar relacionado com as obras históricas de autoresespirituais como Emmanuel e Humberto de Campos. Istoporque, apesar das insistentes afirmativas destes espíritos deque suas obrasA caminho da luz e Brasil: Coração do mundo,pátria do evangelho, respectivamente, tratam da história deum ponto de vista exclusivamente espiritual e insuficiente doponto de vista propriamente histórico, o público geral tende aignorar estas ressalvas e adotá-las como referencia histórica,sem maiores considerações.

Este erro de compreensão e recepção de obras como estas,criou uma consciência histórica sem contato com a realidadedo mundo, em franca contradição com as ressalvas feitaspelos autores citados, que não queriam uma substituição dotrabalho historiográfico humano, documentado,geograficamente situado, etc.

Dentre os inúmeros problemas causados por esta falha decompreensão, cabe citar a autocompreensao histórica demuitos espíritas como pertencentes a um movimento sembases na cultura de onde este é proveniente, ou seja, acultura francesa, católica, racionalista e positivista do séculoXIX, em sua maior parte, e seus contemporâneosprotestantes na Inglaterra e Estados Unidos.

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Para detalhar ainda mais a importância desta perspectivahistórica, basta ressaltar que apesar dos pesquisadoresespíritas renomados de diversas procedências, como Aksakof,Zöllner, Du Prel, Lombroso e Bozzano, o Espiritismo nãovingou minimamente em seus países de origens, apesar doentusiasmo de milhares de adeptos na Rússia, Alemanha eItália. Com isto se pode concluir, no mínimo, que odesenvolvimento do Espiritismo dependeu, ao menos emparte, das condições privilegiadas das nações mais liberais elaicizadas, tais quais as três primeiras citadas, e com isto jápodemos tirar inúmeras conclusões técnicas frutíferas.

Esta e outras questões de alta importância para um estudosistemático do Espiritismo são anuladas em seus pontos departida se abdicamos ou olvidamos do estudo filosóficoconstante desta tradição. Com isto, corremos o risco deperder o vínculo de identidade e verdade do desenvolvimentoda doutrina espírita, substituindo-o pela mitologia.

Bem entendido, mitologia não é necessariamente a descriçãodas idades recuadas sobre a formação do mundo eacontecimentos mágicos, senão a descrição de qualqueracontecimento histórico do ponto de vista exclusivamentedogmático. Se dizemos, portanto, que o Espiritismo é ummovimento de revelação dos espíritos, cuja época e formaforam assinalados por Deus, estamos abdicando de umaexplicação histórica e crítica para adotar exclusivamente umaexplicação mítica, ou seja, narrando um evento histórico deuma forma que não pode ser confirmada ou racionalmenteanalisada. Uma tal explicação das origens de umacontecimento não nos permite nenhum tipo de estudoracional sobre as idéias espíritas, obrigando-nos, aocontrário, a depositar fé incondicional e cega no dogma darevelação.

Esta perspectiva está em claro confronto com as bases daproposta espírita, que é a de uma fé racional, implicando comisto a dúvida sistemática e o julgamento criterioso de

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elementos revelados ou outras hipóteses explicativas. É,portanto, inaceitável a idéia de que o Espiritismo se resumenuma revelação. Sua natureza exige um duplo ponto departida, coisa extraordinária na história das religiões, queseria o de uma revelação dependente de condições históricas.Seus inúmeros formuladores compartilhavam destapercepção, afirmando sempre que a revelação generalizada doEspiritismo dependia inteiramente de certos progressossociais e científicos que permitissem uma compreensãomínima dos fenômenos naturais e morais implicados. Aomenos quanto a isto guardou-se no Espiritismo um sensohistórico profundo, a ponto de tornar-se senso comum aconcepção de que ele não poderia ter surgido em épocasanteriores, ou em outro lugar que não fossem os países maiscivilizados da Europa Ocidental. O conhecimento mínimo dehistória torna este preceito plenamente compreensível.

Como dito anteriormente, em nenhuma religião a revelaçãodivina depende de condições culturais prévias, e isto quasedescaracteriza o Espiritismo como religião segundo oscritérios de classificação existentes. Ele mesmo se reconhececorretamente como terreno de fronteira entre religião, ciênciae filosofia. Sem limitar-se a nenhum dos três, compartilhaelementos de todos, e isto lhe dá a sua exclusividade. Retirardele o seu senso histórico seria matar-lhe uma parte vital deseu aspecto filosófico, condenando-o a reproduzir os modelosdogmáticos de religião. E é por isso que cabe insistir numprojeto vigoroso e constante de crítica histórica doEspiritismo.

Conforme entendo, este projeto deveria conter ao menos asseguintes linhas de pesquisa:

1- Análise histórica do Cristianismo e do paganismohelênico e druídico;

2- Análise de religião comparada em torno dos conceitosprincipais do Espiritismo, como reencarnação,

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comunicabilidade com os mortos, justiça divina, progresso epluralidade dos mundos habitados;

3- Análise teológica e histórica da Reforma, doRenascimento e da Idade Moderna;

4- História da cultura, enfatizando a história da filosofia, daciência e da religião referentes à formação da mentalidadedos séculos XVIII e XIX.

Cada um destes temas possui naturalmente seusdesdobramentos, e nenhum deles deixou de ser explorado porautores espíritas. Não obstante, como em todos os demaistemas estes estudos devem prosseguir e jamais se podeconsiderá-los concluídos. Se a história de Roma ou do Egitoantigo ainda vêem novidades e descobertas intrigantesaflorarem nos dias atuais, após milhares de anos de estudos,como cogitar-se esgotar em poucas décadas a investigaçãosobre um movimento complexo numa época infinitamentemais rica de detalhes, contradições e inovações?

O desafio atual da filosofia.

A estrutura cultural sobre a qual os avanços técnicos esociais da Era Moderna foram edificados está em momento decrise. Este diagnóstico é tão mais certeiro quanto menos aspessoas parecem se preocupar com a filosofia e com todas asquestões de valores que orientam as suas decisões práticas eteóricas. A ciência enfrenta impasses, a política ensandece, a

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sociedade se esfacela e a ordem moral é diluída, originandotodos estes processos.

Não há que considerar este processo apenas do ponto de vistanegativo, pois ele tem o seu lado revolucionário, e toda atransformação exige destruição e reciclagem de elementosantigos. Mas imaginar que o grau sem precedente de“barbarismo cultural” praticado pela nossa era seja normal ejustificável é também ignorar as tragédias dos povos ao longoda história.

Enquanto períodos de anarquia, relativismo e degeneraçãosão comuns nas fases de transição pelas quais passam ascivilizações, é também fato que nunca foram enfrentadostantos desafios quanto os criados pela tecnologiacontemporânea. A poluição é o nosso refugo de todos ostempos, mas a indústria e os meios de vida atuais tornaram-na excessiva. A guerra é ameaça constante da humanidade,mas mesmo vivendo uma época de reduzidos conflitos,comparada a qualquer outra, os temores e ansiedadesprovocados pelas armas de destruição em massa e pelaproliferação do terrorismo alimentam os instintos perenes derevanchismo e agressividade. A miséria, conquanto sempretenha existido, faz contraste com a riqueza sem paralelogozada não mais pelos governantes apenas, mas porpopulações inteiras, tornando ainda mais amarga e revoltantea experiência daqueles que vêem faltar todo o necessário emmeio a uma sociedade que ostenta e desperdiça de maneirainsana.

Entretanto, nenhum destes desafios seria insuperável se nãofosse a conhecida estagnação de nossa capacidade moral,cujo desenvolvimento claramente não acompanhou o salto deentendimento e domínio da natureza. Não podendo dominar-se nem compreender-se, o homem intensifica muitas vezes osmales provocados pela técnica e pelos meios de vidamodernos, que poderiam ser atenuados ou inteiramentesuprimidos com uma parcela não tão grande de bom senso e

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sensibilidade. Carecendo do fio da balança intelecto-moral,materializado no mundo pela tradição e técnica filosófica, aciência confunde-se entre seu papel de investigação natural eo de ajuizamento quanto aos princípios do conhecimento e daação. Ao passo que a maior parte da humanidade permaneceagindo mais por instinto do que sob a tutela da razão, a parteesclarecida compra sem critério o engodo dos modelosexplicativos da comunidade científica, que em muitoextrapola o proveitoso papel da pesquisa científica, edescamba para as mais esdrúxulas cogitações filosóficas,carecendo, no entanto, para isto, de método e termosadequados que só a filosofia possui.

Em resumo, vivemos uma época em que a filosofia e a ciênciase confundiram, não só porque a primeira falhou em diversasdas suas especialidades quanto a uma explicação satisfatóriada natureza, mas principalmente porque a segunda julgouser isto motivo para tirar da filosofia o seu papelinsubstituível de elaborar uma síntese explicativa do mundo.Tanto o público leigo quanto inúmeros cientistasespecializados ignora que o materialismo, por exemplo,defendido como teoria científica, é em termos corretos umateoria metafísica, ou seja, uma teoria que tenta darexplicação final para a realidade, e por questões deprincípios, não por questões de fatos. Tanto o leigo quanto ocientista médio acreditam que problemas como o dofuncionamento da mente, a existência ou não de livre-arbítrioe mesmo a existência ou não de Deus são problemascientíficos, passíveis de serem solucionados com meio deexplicações genéticas, neurológicas, astronômicas, evolutivas,etc; quando na verdade são problemas filosóficos quenenhum avanço nestas áreas pode decidir.

Mesmo que muitos cientistas estejam conscientes destaslimitações de sua especialidade, a verdade é que umaideologia da ciência estabeleceu-se na sociedade com amesma força persuasiva que a ideologia católica exercia sobreo mundo medieval, dificultando o juízo claro e imparcial, já

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que tornou-se como que uma heresia discordar da ciência etentar delimitar o seu papel ao campo dos fenômenos que elase propõe a tratar. Neste contexto, a exposição, discussão e oesclarecimento básico sobre o que é e para que serve afilosofia se faz urgente.