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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA 1 FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA Marcos Aurélio Fernandes UnB – 2017_2 1 INTRODUÇÃO: DA CONTEMPORANEIDADE DA FILOSOFIA. Em vez de nos informar sobre a filosofia da contemporaneidade nos propomos, neste curso, como um exercício do aprender a pensar, a investigar e meditar a respeito da contemporaneidade da filosofia. O escopo, portanto, desse curso, não é alcançar informação sobre a “filosofia da contemporaneidade”; é, antes, ao contrário, buscar nos deixar introduzir, pelo exercício do aprender a pensar, na “contemporaneidade da filosofia” – e isso quer dizer: em uma nova dimensão de autoiluminação de nosso existir histórico 1 . Isso requer que pensemos, como pressuposto deste tema, a temporaneidade da filosofia e isso, por sua vez, quer dizer: sua historicidade. 1.1 TEMPORANEIDADE E HISTORICIDADE DA FILOSOFIA Aqui, logo de cara, torna-se necessária uma advertência: não se pode introduzir na filosofia, portanto, em sua temporaneidade e historicidade, logo, em sua contemporaneidade, a não ser no próprio movimento do filosofar. É em filosofando que, sempre de novo, nos introduzimos na historicidade da filosofia. “Só a filosofia é começo dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela própria; por fim, só ela pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela pretender introduzir, ou 1 Cf. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens . 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 9.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

1

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Marcos Aurélio Fernandes

UnB – 2017_2

1 INTRODUÇÃO: DA CONTEMPORANEIDADE DA FILOSOFIA.

Em vez de nos informar sobre a filosofia da contemporaneidade nos propomos,

neste curso, como um exercício do aprender a pensar, a investigar e meditar a respeito

da contemporaneidade da filosofia.

O escopo, portanto, desse curso, não é alcançar informação sobre a “filosofia da

contemporaneidade”; é, antes, ao contrário, buscar nos deixar introduzir, pelo exercício

do aprender a pensar, na “contemporaneidade da filosofia” – e isso quer dizer: em uma

nova dimensão de autoiluminação de nosso existir histórico1. Isso requer que pensemos,

como pressuposto deste tema, a temporaneidade da filosofia e isso, por sua vez, quer

dizer: sua historicidade.

1.1 TEMPORANEIDADE E HISTORICIDADE DA FILOSOFIA

Aqui, logo de cara, torna-se necessária uma advertência: não se pode introduzir

na filosofia, portanto, em sua temporaneidade e historicidade, logo, em sua

contemporaneidade, a não ser no próprio movimento do filosofar. É em filosofando que,

sempre de novo, nos introduzimos na historicidade da filosofia. “Só a filosofia é começo

dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela própria; por fim, só ela

pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela pretender introduzir, ou

1 Cf. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 9.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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explicá-la, ou justificá-la”2. Deste modo, não há uma passagem que permita que sejamos

introduzidos na filosofia e em sua contemporaneidade a partir da cotidianidade

mediana e de sua autoconsciência pública (aberta a todos), atual, hodierna. Ao

contrário, uma introdução na filosofia e em sua contemporaneidade requer, antes, uma

ruptura com esta autoconsciência atual, hodierna, e, a partir do pensamento, uma

transformação no nosso relacionamento com ela. Não é a autoconsciência da atualidade

que nos permite uma introdução na contemporaneidade da filosofia; ao contrário, é a

nossa introdução na contemporaneidade da filosofia que nos permite um

relacionamento livre com a autoconsciência atual, hodierna. Na verdade, não há

passagem que nos conduza, desde a publicidade do mundo atual para a

contemporaneidade da filosofia. Aliás, nenhuma passagem nos introduz na filosofia,

quer esta passagem parta da cotidianidade, quer ela parta da ciência, quer parta da

visão de mundo, quer parta da arte ou da religião, etc. Não há nenhuma passagem que

nos conduz para dentro da filosofia e da sua contemporaneidade. Só nos resta um salto.

O salto para dentro da dimensão da filosofia. Salto que se realiza, que se consuma e se

cumpre, com o próprio filosofar. Isto quer dizer: com a ação de aprender a pensar – e

isso significa, antes de tudo: aprender a questionar. Questionar, no entanto, não quer

dizer um mero duvidar a esmo, disperso e vazio; quer, antes, dizer: buscar, interrogar,

investigar com todo o cuidado.

Entretanto, questionar é questionar alguma coisa. Aqui surge, portanto, a

pergunta: qual é a coisa do questionamento filosófico, a coisa do pensar, que recebeu o

nome de filosofia? Esta pergunta deverá ser posta e elaborada no percurso de nosso

curso. De início, porém, seja-nos permitido dar uma indicação, a partir da menção e

evocação de um dito de Aristóteles – alguém que, supomos, entendia alguma coisa da

investigação filosófica. No contexto dos escritos dedicados à (prote

philosophía), ou seja, à filosofia primeira, no sentido da filosofia primordial, da filosofia

propriamente dita, encontramos esta indicação do questionado do questionar

filosófico:

2 Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 53-54.

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...

Numa tradução-intepretação esta indicação pode soar assim: “E assim é, pois, o

que já tanto outrora quanto agora quanto em qualquer hora, constitui o procurado para

o qual (a filosofia) se dirige, pondo-se a caminho, e para o qual ela sempre de novo não

encontra acesso, (o questionado desta questão): o que é o ente?”. Este questionamento

pelo “ente enquanto ente”, isto é, pelo ser do ente, do ente como tal e no todo, é que

abre ao filósofo a dimensão da filosofia e, por conseguinte, permite-nos a introdução na

sua contemporaneidade. Uma introdução que – é bom lembrar – não se dá por uma

mera passagem contínua da cotidianidade mediana e pública ou da ciência para a

filosofia, mas por uma ruptura e um salto. É no trabalho da colocação da pergunta pelo

sentido do ser do ente como tal e como um todo que todo o pensador toma o embalo

para o salto da introdução na filosofia e na sua contemporaneidade, isto é, na sua

vigência, na sua presença, na sua atuação e atualidade:

Em filosofia não há possibilidade de introdução. Um

abismo separa o espaço ordinário da existência, em que se

move tanto o modo de ser habitual, familiar e imediato da

vida cotidiana, como o modo de ser objetivo, técnico e exato

da vida científica, do espaço extraordinário, em que se agita

a investigação filosófica. E nenhuma ponte o poderá

transpor. Não, certamente, por estar o espaço da filosofia

demasiado distante e sim demasiado próximo de todos os

modos de ser da existência histórica.

Daí também toda a dificuldade da filosofia para o

homem moderno, que vive, habitualmente, no espaço da

ordem do dia. Dessa perspectiva o mais longo e o mais difícil

dos caminhos é sempre aquele que leva ao que é mais íntimo

e está mais próximo. É tão íntima a presença da filosofia no

país dos homens, que se torna impossível uma introdução e

muito difícil o acesso à sua paisagem. A filosofia já está

3 Kaì de kaì tò pálai te kaì nyn kai aeì zetoúmenon kaì aeì aporoumenon, tí tò ón? (Metafísica, Z, 1, 1028 b 2 ss).

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sempre operando em todo pensamento, que nela se procura

iniciar e introduzir. O único caminho possível é retorno

brusco da existência à sua origem. A paisagem da filosofia

não está em lugar algum, esperando que nela se introduza o

pensamento. A paisagem da filosofia se instaura e origina

pelo movimento da própria investigação filosófica, que,

pondo-se em questão, retorna às origens, donde ela mesma

provém4.

Para fazer a experiência, portanto, da contemporaneidade da filosofia é preciso

abrir o acesso à sua paisagem, o que acontece, segundo o aceno aqui dado, somente

através do próprio filosofar, ou seja, somente pela realização do salto de retorno à

origem da nossa existência histórica. É este salto que opera uma ruptura com a “ordem

do dia”, o ordinário da cotidianidade mediana e pública (aberta para todos), e nos lança

no abismo do extraordinário que compreende e perpassa este ordinário: o ser do ente

como tal e no todo.

Destarte, a filosofia se move no fundo-abismo da existência histórica. Não na

superfície da “ordem do dia”. A sua contemporaneidade, assim, é diversa da atualidade

ordinária do cotidiano. Sua vigência, sua presença, sua atuação e atualidade é de outra

ordem. É da ordem do extraordinário, que, certamente, não exclui o ordinário, mas que,

antes, constitui a sua origem. Desde o ordinário, a filosofia aparece como um afazer

escolar, quer dizer, escolástico, acadêmico, universitário; aparece como uma ciência

entre outras ciências; como uma especialidade. Mas trata-se de uma aparência

deslocada, dissimulada da filosofia. Esta aparência mais encobre do que descobre a sua

paisagem da filosofia. Na aparência do ordinário a filosofia aparece ou como ciência ou

como visão de mundo. Mas, na sua paisagem própria, a filosofia não é nem uma coisa

nem outra – o que não podemos demonstrar logo de cara, mas esperamos que isso fique

claro no percurso de nosso curso. A paisagem própria da filosofia, porém, se abre

quando, pelo pensar-questionar, que se dirige para o ser do ente, retornamos para a

origem da existência histórica, para o fundo-abismo desvelante das possibilidades de

ser. Filosofia não é doutrina, é atividade. É a ação de saltar de retorno a este fundo-

4 Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar (2ª edição). Petrópolis: Vozes, 1989, p. 107-108.

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abismo. É o movimento de redução, isto é, re-condução à origem, de penetração,

sondagem e ausculta do sentido do ser, que incessantemente emerge do abismo

desvelante da existência histórica – da “vida”, da “nossa vida”5.

Na aparência do ordinário, a filosofia se dissimula como uma “especialidade

científica”, com suas várias disciplinas, uma “área de produção de conhecimento”, um

“campo de pesquisa” entre outros, ao lado das demais ciências, presentes na

universidade. Ou então, ela se dissimula como um conjunto de visões de mundo, de

correntes e tendências, de doutrinas e “ismos”, mais ou menos influentes na cultura de

hoje. Mas, na sua dimensão-paisagem própria, a filosofia não é produção de

conhecimento objetivo, técnico, útil, que constrói e progride; é pensamento que

questiona e que, questionando, destrói e regride, certamente, não no sentido de uma

mera aniquilação, mas no sentido do retorno à origem da existência história, ao abismo

desvelante da possibilidade de ser de que esta emerge. Na sua paisagem própria, a

filosofia é memória desta origem e, ao mesmo tempo, espera do inesperado. Na

aparência do ordinário, a filosofia é visão de mundo, imposição de ideias e ideários, de

ideologias, de doutrinas e “ismos”. Mas, na sua paisagem própria, que é a paisagem do

pensamento do ser, a filosofia é finita, vazia e pobre, frágil e vulnerável – ela não presta

para nada, não serve para impor nada. Melhor, ela apenas propõe o nada – a saber, o

nada criativo do abismo desvelante da possibilidade de ser. Trata-se de uma finitude

alegre e grata – que fica à vontade no “sei que nada sei”. No entanto, é nessa e em

virtude dessa fraqueza que a filosofia consuma o seu vigor, torna-se presença atuante e

atual, embora velada, no país dos homens – fraqueza que se retrai e se encobre,

dissimulada pela aparência de poder e de força da ciência e da visão de mundo, na

exuberância das muitas “filosofias”. Não obstante a pluralidade das “filosofias”, a

filosofia – entendida não como doutrina, mas como atividade de pensar-questionar o

sentido de ser do ente como tal e no todo – é sempre a mesma, embora nunca é igual.

É sempre e cada vez a mesma exposição vulnerável, afetável, para o sentido insurgente,

emergente do sentido de ser do ente como tal e no todo. Esta exposição é o movimento

corajoso do questionamento. É a radicalização da autonomia humana. É engajamento

5 Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2009, p. 78-80.

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de libertação dos condicionamentos do ordinário para a liberdade criativa do

extraordinário, que é o mistério de ser6.

Isso tudo nos convida a estranhar a temporaneidade e a historicidade da filosofia

enquanto filosofar. A filosofia dissimulada em ciência e visão de mundo aparece no

tempo como um resultado, um produto cultural de uma civilização, numa dada situação

histórica. Contudo, a filosofia enquanto filosofar é temporânea e historial em outro

sentido, a saber, no sentido de ser tempo, de ser criação de história. A filosofia,

entendida no seu sentido originário, como a realização do pensar, em que acontece a

correspondência, pela linguagem, ao apelo do mistério de ser, é tempo, é história7.

Assim sendo, a necessidade da filosofia é de outra dimensão que as necessidades da

ordem do dia. As necessidades da vida cotidiana são as premências do útil. A

necessidade da filosofia é a necessidade do desnecessário, a premência do que contorna

toda a premência, a necessidade da liberdade, do não-útil, isto é, do livre, do fundo-

abismo desvelante da possibilidade de ser, da gratuidade fontana. Com efeito, é na terra

dessa gratuidade que o homem habita e é a partir dela que ele constitui mundo. Os

entrelaçamentos das necessidades do útil no seu todo, com suas premências, as quais

pertencem ao cuidado da vida cotidiana, repousam sobre o fundo-abismo da

necessidade da liberdade criativa (scholé, otium). Essa necessidade coincide com a

necessidade da filosofia. É essa necessidade da liberdade – da liberdade como o livre e

o libertador, que está resguardado no não-útil, na gratuidade fontana – que dá à filosofia

sua importância, sua nobreza. Da importância do não-útil, do desnecessário, nos lembra

uma imemorial história chinesa:

Hui-tzu disse a Chuang-tzu: “Você fala do

desnecessário”. Chuang-tzu falou: “primeiramente carece de

alguém reconhecer o desnecessário, antes de poder falar

com ele do necessário. A terra é larga e grande, e, no

6 Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2009, p. 91-94. 7 Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 39. Cf. também Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 25-26.

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entanto, o homem carece, para ficar de pé, só daquele tanto

de lugar necessário onde ele põe o pé. Porém, se, ao lado

dos pés, se lhe arrancasse toda a terra, abrindo-se-lhe um

abismo, aquele tanto de lugar ainda lhe seria útil? ” Hui-tzu

falou: “não lhe seria mais útil”. Falou, então, Chuang-tzu:

“daí resulta com clareza a necessidade do desnecessário”8.

Filosofia, entendida não como ciência ou teoria, como produto de

conhecimento, mas como empenho e realização de pensamento, de correspondência,

na linguagem, ao apelo do mistério de ser, é a necessidade livre fundamental,

primordial, do humano. E, na medida em que acontece como esta realização, ela é a

história ela mesma e o tempo ele mesmo9. Neste sentido, de todo os modos de ser da

existência humana, a filosofia é o mais fundamental. Enquanto modo de existir do

homem no seu relacionamento de ser com o mistério de ser, relacionamento que

acontece como o pensar, na linguagem, a filosofia não é propriamente uma

manifestação no tempo, dentro da história, mas é, mais propriamente, o acontecer do

tempo, da história. Sua historicidade, neste sentido, é primordial, e anterior à

historicidade da técnica e da ciência, e, até mesmo, da historicidade da arte e daquela

que é própria da religião. A filosofia, assim entendida, tem um modo próprio de se

encaminhar; tem a sua própria cadência e decadência; o seu próprio ritmo e a sua

própria dinâmica de maturação, que não podem ser compreendidos a partir da dinâmica

da técnica ou da ciência, nem mesmo a partir da dinâmica da arte e da religião. Ela não

tem uma forma de historicidade; ela é a forma da historicidade ela mesma

acontecendo10.

Tendo em mente o que acabamos de refletir, podemos, agora, tentar pensar algo

sobre a contemporaneidade da filosofia.

8 Esta versão do diálogo foi construída tendo como referência a sua menção em: HEIDEGGER, Martin. Feldweg-Gespräche (1944/45) – Gesamtausgabe Band 77. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 239. Também foram cotejados os textos: Chuang-tzu, traducción de Carmelo Elorduy (s.l.): Monte Avila Editores (s.d.), p. 199 (cap. 26, 7); e MERTON, Thomas. A via de Chuang-tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 225-226. 9 Rombach, Heinrich. Die Gegenwart der Philosophie: Die Grundprobleme der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 33. 10 Cf. Idem, p. 37-44.

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1.2 A CONTEMPORANEIDADE DA FILOSOFIA A PARTIR DA SUA

INTEMPESTIVIDADE

Se filosofia é aprender não pensamentos, mas a pensar11, e se pensar é o

relacionamento de ser do homem com o mistério de ser do ente como tal e no todo, e

se neste relacionamento é que o tempo vem a ser propriamente tempo e a história vem

a ser propriamente história, então a contemporaneidade da filosofia há de ser pensada

segundo a temporaneidade primordial e a historicidade fundamental que lhe é própria.

No exercício de aprender a pensar é preciso medir-se com o desafio de ser

contemporâneo da contemporaneidade da filosofia. Mas, para ser contemporâneo da

contemporaneidade da filosofia é preciso ser extemporâneo, isto é, inoportuno,

intempestivo, em relação ao “nosso tempo”, ao que nos é “coetâneo”. É a indicação de

Nietzsche, recordada por Giorgio Agamben12. No início da segunda das suas

“Considerações intempestivas” (Unzeitgemässe Betrachtungen)13, Nietzsche escreve:

“Intempestiva esta consideração o é porque procura compreender como um mal, um

inconveniente e um defeito algo do qual a época justamente se orgulha, isto é, a sua

cultura histórica, porque eu penso que somos todos devorados pela febre da história e

deveremos menos disso nos conta”. Agamben comenta:

Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua

“contemporaneidade” em relação ao presente, numa

desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente

ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele

que não coincide perfeitamente com este, nem está

adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido,

inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse

11 Cf. a indicação programática de Kant expressa: “nicht Gedanken, sondern denken, nicht Philosophie, sondern philosophieren lernen” (aprender não pensamentos, mas a pensar, não filosofia, mas a filosofar) (AA II, 306 e AA, IX, 25ss). 12 Cf. Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 58. 13 “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben” (Da utilidade e dano da história para a vida) - Este texto foi escrito em 1873 e publicado em 1874.

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deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que

os outros, de perceber e apreender o seu tempo14.

O filosofar é, pois, neste sentido, sempre inatual. Isso quer dizer: sua atuação e

atualidade se separa, se cinde, da atuação e atualidade do mundo da cotidianidade

mediana pública (aberta para todos), do “saeculum”, o tempo histórico coletivo tal

como se manifesta na abertura deste mundo cotidiano, mediano, acessível e patente a

todos15. Sem uma ruptura com e um distanciamento do próprio “saeculum” não há

como nos deixar introduzir na contemporaneidade da filosofia.

Sem tal ruptura e tal distanciamento, o homem não se põe à altura da exigência

desta contemporaneidade e, ao mesmo tempo, não se torna capaz de um

relacionamento livre – e isso quer dizer, responsável – com o seu próprio “saeculum”.

Trata-se, pois, aqui, de viver filosoficamente a cotidianidade e cotidianamente a

filosofia. Bem o compreendeu Nietzsche. Em “Origem da tragédia” ele escreve: “todo

homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás

da realidade em que existimos e vivemos, se esconde outra muito diferente e que, por

consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda”. Viver filosoficamente

a cotidianidade significa: entrever no ordinário o extraordinário. Viver cotidianamente

a filosofia quer dizer: deixar que o relacionamento de ser e pensar com o mistério de ser

– o extraordinário - perpasse todos os demais relacionamentos ordinários. Esta atitude

parece ser própria do “homem filósofo” (anér philósophos), que é, certamente, algo

diverso de um “homem filosófico”16. De Heráclito, que era um homem filósofo,

Aristóteles conta uma história que diz bem o sentido desta atitude:

Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria

respondido aos estranhos vindos na intenção de observá-lo.

Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali

permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque)

ele os (ainda hesitantes) encorajou a entrar, pronunciando

14 Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 58-59. 15 Cf. idem, p. 60-61. 16 Cf. Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 31.

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as seguintes palavras: Mesmo aqui, os deuses também estão

presentes17.

O olhar dos curiosos turistas não encontrou nada de “interessante” no que

viram: o pensador se aquecendo junto do forno num dia frio. Heráclito leu no olhar

destes visitantes estranhos a decepção da curiosidade. E, no entanto, os encoraja a se

deixar tocar e surpreender pela presença do pensamento – e isso quer dizer: do mistério

de ser – no cotidiano. (einai gar kai entautha theous) –

“mesmo aqui, os deuses também estão presentes”. Mesmo aqui, junto ao forno, no

lugar mais cotidiano; mesmo agora, no momento mais comum; mesmo nesta situação

mais familiar e ordinária... os deuses também estão presentes. O divino vige, para os

gregos, como a vigência e presença do extraordinário no ordinário. Divina é, para os

gregos, a múltipla cintilação do mistério de ser. Divina é a visão do extraordinário se

expondo na dimensão do ordinário. Divino é o espetáculo do retraimento do simples

mistério de ser se dando multiplamente no acontecer do ente – o espetáculo da

(alétheia) que se dá por todo o lugar e a todo o momento. Este espetáculo

ordinário do extraordinário não passa despercebido ao olhar do pensador – do homem

filósofo; embora passe despercebido ao olhar dos curiosos. O extraordinário – os deuses

– vigora no ordinário; o espetáculo da aparição do ser acontece por todo o lugar e a todo

o momento na inaparência do cotidiano. O extraordinário não é nada de “interessante”,

de extravagante, de excitante, de estimulante. Dá-se como o abrigo do ordinário, como

o que alberga o cotidiano. Na pobreza do cotidiano o extraordinário do mistério de ser

doa seus dons. A dádiva do fogo, a dádiva do pão, são como que sinais do extraordinário

– são os (theoí), ou seja, os(theáontes): as visões e contemplações do

mistério que nos fita; são os (daímones), ou seja, os (daíontes), os

que se acendem e cintilam, ardem e brilham como doações do mistério de ser. O fogo -

(pyr) – é luz e calor; é o extraordinário se dando na intimidade do ordinário, no

coração da casa, na cozinha, no fogão, no forno. Mas é preciso ter “visão fontana” para

ver (recorro aqui a uma expressão do poeta Manuel de Barros)18: visão de homem

17 Aristóteles, De partibus animalibus A5 645 a 17ss. Apud Heidegger, Martin. Heráclito: a origem do pensamento ocidental; lógica: a doutrina heraclítico do lógos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 22. 18 Em seu comentário à metafísica (I,3) Tomás de Aquino anota: “o filósofo se parece com o poeta porque ambos se ocupam do que é admirável, do que suscita pasmo e estupor”.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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filósofo - (theoria). Trata-se de uma visão que se realiza como um

relacionamento claro, e-vidente, com as aparições do ente. Mais ainda: trata-se de uma

visão que considera respeitosamente a revelação do ser – a (alétheia) –,

protegendo o seu mistério19.

19 Cf. Heidegger, Martin. Ciência e pensamento do sentido. Em: Ensaios e conferências. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2001, p. 45-46. Heidegger, neste texto, propõe duas compreensões de “theoria”, em sentido grego. 1) Numa primeira compreensão, que se afina mais com a compreensão filosófica platônica (metafísica), o verbo grego (theoreín) é elucidado a partir da composição de (théa) e (horáo). (théa) é, em latim, aspectus, e em alemão “Anblick”, isto é, a “vista”, a “visão”, tanto no sentido do que se deixa ver quanto no sentido do ato mesmo de ver, o olhar (anblicken – aspicere, intueri). (théa) tem assim, também, o sentido de aparência, semblante, fisionomia, perfil. (théa) é também o espetáculo teatral, ou, ainda, o lugar para ver o espetáculo no (théatron: teatro). (théa), portanto, quer dizer aquilo em que algo se mostra, a vista ou visão que algo oferece de si. Platão chama este aspecto, em que o vigente mostra o que ele é de (eidos). Na compreensão grega, saber, (eidénai) é ter visto o aspecto em que o ente mostra o seu ser, no sentido de aquilo que ele é. Já o verbo (horáo) quer dizer olhar alguma coisa (aspicere), mirá-la, fitá-la, encará-la, perceber a sua presença, sua autodoação (intueri – intuir). (horáo) quer dizer, pois, estar ao conspecto (conspectus) de algum ente, em face dele, tê-lo como uma “res praesens” (coisa presente), auto-vista, auto-apreendida (cf. a expressão grega - autopsia – ver com os próprios olhos, observar diretamente alguma coisa). (horáo) é, portanto, conspicere, olhar, ver, no sentido de avistar, divisar, enxergar; e, noutro sentido, considerar, pensar, compreender alguma coisa. (theoreín) quer dizer, pois, (théan horan), aspectum conspicere: divisar a vista, enxergar o aspecto, em que o vigente ou presente aparece e brilha, e, através de tal aspecto, demorar no ver, observar, considerar, contemplar.2) Numa segunda compreensão, (theoreín) escuta-se a composição de (theá) e (ora). (theá) é a deusa. É como deusa, o extraordinário do espetáculo da revelação do mistério de ser, que a (alétheia) aparece para Parmênides, no seu poema. Já (ora), que também remete a (horáo), olhar, ver, enxergar, em latim deixa-se traduzir por cura, que quer dizer cuidado, diligência, solicitude, atenção. Trata-se de um olhar cuidadoso e de um cuidado atento, que se dá na forma de um respeito, de uma consideração, por aquilo a que se dirige e com o que se relaciona; um cuidado, portanto, que honra aquilo a que se volta. (theoria) é, neste sentido, a consideração respeitosa da revelação, do desocultamento (Un-verborgenheit), do vigente em sua vigência, é a visão protetora da verdade. Enquanto a raiz (id-) indica um ver momentâneo, instantâneo, a raiz (hora-), porém, indica um ver que se demora, que se dedica longamente a cuidar daquilo para se dirige e para o que se relaciona, diz um ter os olhos fitos sobre alguma coisa, demorada e cuidadosamente. É uma percepção que se realiza no modo de um cuidado respeitoso para com aquilo que se dá a ver, para o que se apresenta em sua presença, em sua vigência. Aquele que olha, neste caso, vela sobre aquilo que se confia ao seu olhar. Ele se torna um guardião, um protetor do vigente em sua vigência (do ente em seu ser). Algo desta raiz (hora-), que, inicialmente, deveria ter um digama (Ϝaparece na língua latina como em vereor (vereris, vereri, veritus sum) que quer dizer respeitar, no sentido de ter um receio, um medo religioso, frente ao mistério. Também aparece no latim no verbo servo (servas, servare, servavi, servatum) que quer dizer preservar, guardar, assegurar a salvação ou a conservação de alguma coisa e, daí, também, o sentido de não tirar os olhos de, observar, vigiar; e, por conseguinte, o sentido de não sair de perto de, não largar, permanecer, ficar junto de, habitar. Talvez devêssemos entender a palavra latina veritas (verdade) a partir daí. No antigo alto-alemão temos a palavra wâra como correspondente de veritas. No antigo alto-alemão temos também o adjetivo wâr para verdadeiro. No alemão moderno temos, assim, o adjetivo wahr (verdadeiro), o qual, segundo o dicionário Grimm, remonta a uma formação intensiva reduplicadora de warôn, que quer dizer, em latim, custodire (custodiar), tegere (cobrir, vestir, revestir; garantir, proteger, ocultar, esconder, abrigar) [a partir daqui temos, em latim, as palavras tegula (telha), tegumentum (cobertura, vestido, proteção)], protegere (cobrir pela frente, abrigar, garantir, proteger), conservare (conservar, defender, salvar, respeitar, guardar, observar fielmente), cavere (tomar cuidado, precaver-se, acautelar-se; e, daí, velar por, cuidar de, olhar pelos interesses de, tomar providências para), tueri (ver, olhar, observar; guardar, proteger, defender,

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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A ruptura e o distanciamento do homem filósofo em relação ao mundo de seu

tempo o torna solitário. Mas a solidão do homem filósofo não é isolamento. Ela é um

modo de estar mais próximo da proximidade de todas as coisas: “Pois a solidão traz

consigo a força primigênia que não nos isola mas lança toda a existência na proximidade

profunda de todas as coisas”20.

A ruptura e o distanciamento, a solidão, portanto, do homem filósofo, que lhe

abre a paisagem do extraordinário, não tem a ver com misantropia e

descomprometimento com as coisas da vida ordinária do país, da terra dos homens:

Em 1888, quando mais distância, mais silêncio e

solidão se cavavam na vida de Frederico Nietzsche, ele

escreveu uma carta, datada de 14 de abril, a seu amigo,

músico e musicólogo, Carl Fuchs. A carta é escrita de Turin e

nela Nietzsche fala justamente do lugar, da cidade que o

atrai e o encanta. Uma cidade, diz ele, “para o meu coração,

afinda comigo... silenciosa, quase solene”. Fala da

proximidade dos Alpes, das montanhas, dos gelos. Diz ainda:

“Para cá arrastei toda a minha cangalha de preocupações e

de filosofia”. Por fim, lembra de sua casa, de sua moradia de

verão em Sils-Maria, na região da Alta Engadina, e comenta:

“minha paisagem, tão distante, tão apartada da vida, tão

metafísica...” E conclui: “Como tudo se distancia! Como tudo

se afasta! Como a vida se faz silenciosa, calada! Ao redor de

mim, nenhum homem que me conheça. Minha irmã na

velar). De modo semelhante, temos no alemão moderno o verbo wahren que quer dizer cuidar de, defender (por exemplo, os direitos de), salvar, guardar (a dignidade de algo ou alguém). É partir daqui, pois, que se há de entender a palavra alemã Wahrheit (verdade). Na segunda compreensão, mais originária do que a primeira, e talvez esquecida e encoberta pelo entendimento metafísico predominante, (theoria) é a (ora) – a cura (cuidado), a diligência, a solicitude, a consideração protetora, vigilante, da (theá), ou seja, da deusa, a saber, do extraordinário da revelação do mistério de ser no ente, da verdade no verdadeiro. Em consonância com isso, em grego temos a palavra (theorós) para designar aquele que se relaciona com o mistério, seja pela consulta de um oráculo, pela assistência de uma festa dedicada a um deus, seja pelo assistir de um espetáculo teatral. (Theários) era, assim, um dos epítetos de Apolo, deus dos oráculos. Antes de Platão, deste modo, (theoria) significava o envio de embaixador para assistir uma festa dedicada a uma divindade. É partir de Platão que aparece o sentido de consideração, contemplação; e só no grego helenístico é que a palavra toma o sentido de especulação. 20 Heidegger, Martin. Em: “Por que ficamos na província? ” (1934). In: Revista Vozes, ano 7, n. 4, Maio de 1977, p. 45.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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América do Sul. Cartas, cada vez mais raras. E ainda não sou

velho! Somente filósofo! Somente à margem, à parte!

Somente comprometidamente à parte! ” 21

Nietzsche, como Descartes, comprometem-se com o seu tempo e com o futuro,

“à parte”. Estranho paradoxo. Descartes, nos tempos da revolução do pensamento do

século XVII, retirou-se para a Holanda, onde, dizia ele, “pude viver tão solitário e retirado

como nos desertos mais remotos”22. Ortega y Gasset recorda-nos do trocadilho que

faziam com o nome de René Descartes. Em vez de se dizer “Monsieur Descartes”,

chamavam-no de “Monsieur D’Écart” (Senhor à parte)23. Justamente este apartamento,

este distanciamento, do mundo de seu tempo, que torna o filósofo capaz de realizar o

seu comprometimento com a história. A este apartamento e distanciamento Nietzsche

chama de “metafísico”. O filósofo, para ser comprometido com o seu tempo, precisa

aprender a morar no espanto diante do simples. Este espanto gera a quietude. Na

quietude, o distante se torna próximo24.

Ser filósofo é morar, é habitar o lugar de todas as

coisas, é co-fazer a gênese da gênese e, para isso, é preciso

ser trans-, isto é, meta-físico. É assim que a autêntica

filosofia, em sendo distanciamento, afastamento, configura-

se como radical comprometimento com o real, com este

mundo atual, com o aqui e agora, do qual ela

concomitantemente se distancia e se afasta – estranho este

aproximar-se à medida que se afasta e afastar-se à medida

que se aproxima! E isto porque, ao fazer-se isso, se é

histórico, isto é, se é comprometimento e participação na

dinâmica do devir, de vir a ser real do real, o que define a

única realidade ou a autêntica realização da realidade25.

21 Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009, p. 26. 22 Discurso do método, parte 3. 23 Gasset, O. Sobre la razón histórica. Madri: Alianza Editorial, 1983, p. 31. 24 Cf. Hanna Arendt. Martin Heidegger faz oitenta anos. 25 Fogel, Gilvan. Idem, p. 25.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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O compromisso do filósofo é, pois, com a realização da realidade, a qual é

temporânea, no sentido de, a cada momento, incluir passado, presente e futuro. Para

ser contemporâneo, com efeito, o pensador precisa ser comprometido com o arcaico.

Na filosofia, o que vale não é a originalidade (inovação), mas a originariedade, isto é, a

profundidade do relacionamento com o arcaico. No dizer de Agamben:

De fato, a contemporaneidade se escreve no

presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e

somente quem percebe no mais moderno e recente os

índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser

contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké (sic), isto

é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num

passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico

e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir

nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida

psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo, a

proximidade – que define a contemporaneidade tem o seu

fundamento nessa proximidade com a origem, que em

nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente26.

O arcaico (o originário) é imemorial. O originário não pertence meramente a um

momento que passou (das Vergangene), ao passado no modo do pretérito perfeito

(Vergangenheit), mas é o que, tendo sido, se recolheu no seu vigor, e, assim recolhido,

latente (Gewesenheit), vige no presente. E essa sua vigência como ausente e latente que

se vela no presente e patente é sua contemporaneidade. Por isso, o pensamento, para

ser contemporâneo, tem que ser arqueológico, isto é, preciso pôr-se no interesse de um

relacionamento compreensivo com o arcaico. Ele precisa se compreender, se entender,

com a origem, com sua vigência no presente.

Entretanto, para ser contemporâneo, o pensamento precisa também responder

e corresponder ao apelo do futuro, do porvir (por-vir). O pensamento precisa, assim, ser

preparatório, precursor. O pensamento preparatório tem como tarefa clarear o espaço

clarear o espaço em que o homem, no tocante à sua vigência essencial, poderia entrar

26 Agamben, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2013, p. 69.

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de novo num relacionamento originário para com o advento do mistério de ser na

realização da realidade. Heidegger comparava a dinâmica destes “pensar preparatório”,

propedêutico (vorbereitendes Denken), com o trabalho de uma semeadura:

Ser preparatório é a essência de tal pensar. Este

pensar essencial e, por isso, por todo o lado e segundo cada

perspectiva, apenas preparatório, move-se no

imperceptível. Aqui, cada pensar-com, por mais inábil e

tacteante que se apresente, é uma ajuda essencial. O pensar-

com torna-se na discreta sementeira, que não se confirma

nem pelo prestígio nem pela utilidade, de semeadores que

talvez nunca vejam espiga e fruto, e que não conhecem

colheita. Eles servem para a sementeira e, ainda antes, para

a preparação desta. Antes da sementeira vem o arar. Trata-

se de tornar arável o campo que, através do imprescindível

predomínio da terra da metafisica, tinha de permanecer no

desconhecido. Trata-se primeiro de pressentir este campo,

depois de encontrá-lo, e depois de cultivá-lo. Trata-se de

abrir uma primeira passagem para este campo. Há ainda

muitos caminhos do campo (Feldwege) ainda

desconhecidos. Contudo, a cada pensante está atribuído, em

cada caso, apenas um caminho, que é o seu, em cujos rastos

tem sempre de voltar a ir e vir, para finalmente o reter como

seu, mas sem que nunca lhe pertença, e para dizer o que

nesse caminho é experimentável27.

Esse pensamento preparatório está, pois, voltado para o porvir, para o futuro.

Ele se mantém na finitude. Não deixa de ser, porém, espera do inesperado, ainda que

na situação desoladora do momento histórico de hoje.

27 Heidegger, M. Caminhos de floresta. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 244-245.

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DA CONTEMPORANEDADE DA FILOSOFIA

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1.3 A FILOSOFIA E O HOJE

O que significa hoje? O que constitui o caráter de ser hodierno do hoje?

O hoje diz respeito à facticidade de nossa vida e à sua temporalidade-

historicidade. Facticidade designa o caráter de ser de nosso próprio ser-aí, de nossa

presença, ou seja, de nosso estar-aí-no-ser (Dasein), mais precisamente, do nosso estar-

aí-no-ser que é a cada vez (jeweilig)28. O ser-a-cada-vez (Jeweiligkeit) se mostra, por seu

turno, como um demorar (verweilen), isto é, como o estar de uma estada, o parar de

uma parada, o quietar, como um perdurar e permanecer aí, junto de alguma coisa (Da-

bei, Da-sein)29. Este ser ou estar nunca é objetivo, isto é, nunca se deixa apreender a

modo de objeto. É a nossa situação. O fenômeno da situação é anterior à distinção de

sujeito e objeto. A situação é mais real que toda a objetividade. Ela é também mais

fundamental que toda a subjetividade. Ela é um fenômeno unitário, que não se deixa

captar a partir da dualidade sujeito-objeto. A facticidade é, pois, a cada vez, nossa

situação e sua respectiva ocasião, com suas oportunidades e inoportunidades. Este “a

cada vez” (jeweilig), diz um perdurar e durar, diz a permanência e o quietar numa

paragem (Weile). Facticidade diz: “O como do ser abre e delimita o ‘aí’ possível em cada

ocasião”30. Para o homem ser é viver; mais precisamente, viver no espaço de jogo da

compreensão de ser. O verbo ser na expressão ser-aí tem, pois, um sentido transitivo,

“ser a vida fática”, no sentido de abrir e delimitar o espaço-tempo da vida, em que, a

cada vez, nos encontramos a nós mesmos (neste ou naquele pathos, ou seja, nesta ou

naquela tonância, vibração ou afinação, ou disposição), nos compreendemos e nos

28 Cf. Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 13. 29 Era este fenômeno do permanecer (verweilen) que veio à palavra grega (ousía). O ser do ente fora compreendido, assim, como o vir à presença, no sentido de vir a estar numa estabilidade, como o que subjaz aí. Daí pode-se entender a tradução de (ousía) para substantia, isto é, a estância do que prejaz ou subjaz. No latim, stantia é o lugar, o recinto, onde alguém se detém e se recolhe (daí, no italiano, Stanza, para quarto). O stare (sto, stas, stare, steti, statum) tem o sentido de estar ereto, mas também o sentido de estar imóvel, de ficar firme, e, por conseguinte, de estacionar, parar, morar, persistir. Na língua portuguesa, estância é o lugar onde se está ou se permanece por algum tempo; daí, significa parada, paragem, estação. No Rio Grande do Sul chama-se de estância a fazenda. Estância é o paradeiro, a morada. Verweilen remete a Weile, que é a permanência, no sentido do quietar da quietude. Weile, seria, em latim, quies, quiescere, quietus. O parar, porém, entendido como o quietar e a sua quietude, não é entendido como uma carência do movimento, mas, antes o contrário, como sua plenitude. Por isso, Aristóteles, por exemplo, entendeu a (ousía) no sentido da (enérgeia): a realidade dando-se como plena realização do real, mais precisamente, deste real que é cada vez – o (tóde ti). 30 Heidegger, idem, ibidem.

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interpretamos31. Hoje quer dizer: a facticidade que nos concerne, que nos toca, a cada

vez. O hoje é uma determinação do nosso ser-aí-a-cada-vez – é o a cada vez estar,

permanecer (Je-verweilen), na atualidade (Gegenwart), naquela que é a cada vez a

nossa, atualidade que é sempre historial, que se realiza sempre como um modo de ser-

no-mundo (In der Welt sein)32.

Atualidade (Gegenwart) é a presença do tempo presente. Nessa presença,

porém, vige latente o passado, o arcaico. Nessa presença, ao mesmo tempo, vige o

esperar (warten) do porvir, do futuro (Zukunft). Na atualidade estamos abertos para e

projetados na direção do vindouro. Ela requer de nós a atenção para, a espera do

inesperado. Nessa espera do inesperado nós somos atualidade33. A espera do

pensamento não é nenhuma expectativa, nenhum cálculo futurológico, ou coisa

parecida. A espera do pensamento é a espera do puro vir e advir. É uma esperança de

ser. É espera do inesperado. No dizer arcaico de Heráclito:

“se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem caminho de encontro nem

vias de acesso”. Trata-se da atitude de prontidão para o apelo do ser que se manifesta

como a palavra do tempo, para o “kairós”35. Esperar é, aqui, pois, assumir, na atualidade,

a responsabilidade pelo porvir, no sentido de corresponder ao apelo de ser na palavra

do tempo – ao “kairós” e o que ele reivindica.

A interpretação hodierna do hoje, porém, costuma se entregar ao que de início

e na maioria das vezes se dá no cotidiano do nosso ser-uns-com-os-outros público

mediano, massificado. Orienta-se pelo falatório, pelo que se diz por aí. Esta

interpretação é ditada pelo “a gente” (man) que é todo mundo e que, no fundo, é

ninguém36. Hoje, os meios de comunicação de massa e as redes sociais na internet

difundem e ao mesmo tempo determinam em grande parte esta auto-interpretação de

nosso ser-no-mundo. Outros níveis de interpretação do hoje podem ser alcançados com

31 Cf. Heidegger, idem, ibidem. 32 Cf. Heidegger, idem, p. 37-38. 33 Cf. Heidegger, Martin. Feldweg-Gespräche (1944-1945) (GA Band 77). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 227. 34 “Ean mê élpêtai, anélpiston ouk exeurêsei, anexereúnêton eòn kaì áporon”. Fragmento 18. 35 Cf. Heidegger, Martin. Idem, p. 228. 36 Cf. Heidegger, M. Ontologia (Hermenêutica da facticidade). Petrópolis: Vozes, 2013, p. 37-41.

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a sondagem da consciência história hodierna no campo da “cultura” em geral; outro,

ainda, nas realizações da filosofia. Nosso estudo pode abrir pequenas sendas nesta

direção. Em vez, porém, de descrevermos as “mais interessantes tendências” da cultura

e da filosofia hodierna, que satisfaça nossa curiosidade, nos propomos uma meditação

mais modesta e, ao mesmo tempo, mais concentrada.

Tentemos começar isso com duas perguntas: como o pensamento se mede com

o hoje? E: O que há com o pensamento hoje?

Filosofia não é ciência, nem doutrina. É ação e atividade. De que? Resposta: de

pensar. E o devotamento do pensar consiste em questionar. Questionando o sentido de

ser de tudo quanto é, o pensamento entra e participa na gênese da realidade. Pensar é

“um tomar parte na própria vida do real”37. Para isso, para vencer a inércia da irreflexão,

para superar a falta da necessidade de questionamento, o pensamento precisa pôr-se

contra o mundo hodierno. “Este mundo é, por um lado, o aguilhão que nos açula e, por

outro, o ópio que nos entorpece”38. Seguindo as tendências e os ritmos do mundo nós

não vivemos, vamos sendo vividos, e isso de modo desatento, como se estivéssemos

adormecidos. Porém, o pensamento, isto é, a participação vital no real, vai contra esta

tendência “natural”, isto é, habitual.

Assim sendo, à pergunta “O que há como

pensamento hoje? ”, cabe de cara responder: o que sempre

houve, a saber, trata-se de, aqui e agora, tal como sempre e

por toda a parte, reivindicar para si e cumprir uma dura e

insone tarefa, que é o esforço do pensamento se conquistar

a si próprio, isto é, conquistar a lucidez, a clarividência, que

é a entrada na própria vida, na própria dinâmica de realidade

se realizando. Trata-se do esforço enorme e desconcertante

de: despertar-se! 39

Aquele que consegue realizar de algum modo e em alguma medida torna-se

contemporâneo de si mesmo. Mas, a realização dessa tarefa, e, vale dizer, o tornar-se

37 Fogel, Gilvan. O que é filosofia? Filosofia como exercício de finitude. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2009, p. 59. 38 Idem, ibidem. 39 Idem, ibidem.

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contemporâneo, não é nada fácil. De fato, ser contemporâneo de si é muito mais do que

ser coetâneo do próprio mundo em que se vive, ou melhor, em que se é vivido.

O autêntico contemporâneo de si é aquele que é

capaz de sair de si, de afastar-se do mundo que lhe é

demasiado próximo na medida justa para poder ver-se,

situar-se – em vendo o mundo que ele é. É preciso poder

fazer isso, conquistar este movimento e esta postura, para

ter o direito de se autodenominar contemporâneo. É difícil,

é muito difícil, é mesmo raro alguém ser contemporâneo –

contemporâneo de si40.

O hoje em que vivemos somos nós. Ele vive em nós e nós vivemos imersos nele.

Por isso, a conquista da lucidez do pensamento é sempre uma agonia, isto é, um

combate (agón) consigo mesmo. Vencer-se a si mesmo é o desafio da maior luta que

cabe a um homem. Para pensar, e para ser contemporâneo, o pensador precisa vencer-

se a si mesmo. Precisa pensar contra si mesmo, contra a consciência hodierna, sim,

precisa pensar mesmo contra a filosofia. Só assim o pensador põe-se à altura do hoje do

pensamento, do “kairós” do ser e do tempo, e se torna contemporâneo de si mesmo.

Pois bem, nosso tempo ou nossa época precisa ser

sempre nosso grande adversário, nosso grande inimigo. É ele

(ou ela) que nos constrange, que nos coage, que nos oprime,

sim, mas que também nos redime. Para isso é preciso

conquistar nosso tempo, nossa época, ou seja, o que é nosso,

o que nos é dado. Conquistar, porém, é ir ao encontro. E uma

boa maneira de ir-se ao encontro de algo é também,

inicialmente, ir contra este algo. Ao ir contra uma época, um

tempo – seus valores, suas significações, sua cultura – este

tempo começa a nos revelar suas vísceras, seu “de onde” e

seu “para onde”. Ou seja, assim, desse modo, este tempo

começa a perder para nós sua positividade. E é isso, só isso,

que se quer ao se querer conquistar um tempo, uma época:

transcender, superar seu caráter de “coisa”, de dado, de

40 Idem, p. 60.

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positividade e então ascender à sua dinâmica, à sua gênese,

à sua vida e devir, que é sua força de proveniência e, então,

a evidência de seu direito presente e de seu direito de

cunhagem do futuro. É isto, a saber, tal conquista, a

participação num devir histórico, isto é, vital41.

Como o profeta do Antigo Testamento, é o filósofo

uma espécie de crítico e sátiro do momento, do seu

momento. Por isso, no livro de Amós, cap. 7, versículo 14, é

narrado como Jahvé arrancou Amós de seu cotidiano, de seu

dia-a-dia, que era o idílico pastoreio de cabras ou de ovelhas

e o cuidar de suas figueiras, e lhe disse: “Amós, vá e seja

profeta contra o meu povo Israel”. É como se dissesse: vá e,

para redimir meu povo, desestabilize o que nele perigosa e

perversamente está estabilizado, sedimentado como o calo

do hábito e do vício, assim intoxicando-o e pervertendo-o,

isto é, desviando-o do caminho que precisa ser seu próprio

destino e sua necessidade. Vá e desperte meu povo dele

mesmo, sacuda-o, instigue-o, açule-o, faça-o sair de um sono

letárgico42.

Hoje vivemos uma época de crise, por conseguinte, uma época de decisão, entre

riscos e oportunidades. A história parece ter mergulhado profundamente naquilo que o

poeta Hölderlin denominou de “noite do mundo” (Heidegger, 1946/1994a, p. 269).

Nesta noite, poetas e pensadores se tornam sentinelas. A sentinela é alguém que vigia,

ou seja, que se mantém desperto e vigilante, à espera do dia. Esta noite já fora

pressentida no fim do século XIX por Nietzsche. Este, no contexto da crise epocal, que

se instalava sub-repticiamente enquanto a civilização europeia celebrava as glórias do

progresso, viu a grandeza do humano em ser uma passagem e um ocaso. “O que é

grande no homem é isto, que ele é uma ponte e não um fim; o que pode ser amado no

41 Idem, p. 11-12. 42 Idem, p. 28.

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homem é isto, que ele é uma passagem e um ocaso”43. A tarefa que incumbe o homem,

em meio a esta crise epocal, é de se ultrapassar a si mesmo, de ir além do homem que

existiu até agora. Por isso, para Nietzsche, o homem de hoje, em sua essência de futuro,

é o homem da passagem (Übergang). Mas esse homem da passagem, de uma passagem

que conduz para além do homem que existiu até agora, é também o homem do ocaso

(Untergang): o homem que declina. Entretanto, essa vicissitude do declínio é,

justamente, o que nos incumbe de cumprir uma passagem, de ir além do homem que

existiu até agora.

A crise é risco, mas é também oportunidade. Novo kairós, novo tempo oportuno.

Tempo, segundo Nietzsche, de o “espírito leão”, que diz “não” e que quer ser senhor e

deus de tudo, característico do homem moderno, se transformar em “espírito criança”.

A criança é a inocência, é o esquecer, um novo início,

um brincar, uma roda que rola a partir de si, um primeiro

movimento originário, uma santa afirmação. Sim, para o jogo

da criação, meus irmãos, é necessário um sagrado ‘dizer-

sim’: a sua vontade quer pois o espírito, o seu mundo

conquista para si aquele que perdeu o mundo44 .

Hoje, experimentamos os passes e os impasses dessa passagem, que tem se

tornado uma passagem por um hiato da história. Os passes, nós celebramos nas

conquistas estupendas que o mundo da objetividade e da funcionalidade nos

presenteia. Mas, aí mesmo, nós experimentamos os impasses. Os impasses aparecem

nas contradições desse nosso mundo dito pós-moderno. O triunfo da racionalidade

científica e tecnológica, a sociedade da informação e do conhecimento, não significa

conquista do saber e da sabedoria. A passagem que está em questão nessa crise, precisa,

pois, ser uma ultrapassagem dos passes e impasses do mundo hodierno. Trata-se de

uma ultrapassagem que passa “no nada”, no vazio e hiato de dois mundos. Nessa

ultrapassagem, trata-se de esboçar, de imaginar, um novo homem, um novo modo de

43 Nietzsche, F. (1883-1885/1994). Also Sprach Zarathustra: ein Buch für Alle und Keinen. Stuttgart: Reclam, p. 12. 44 Idem, p. 26.

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ser humano, que já não seja mais o homem da objetividade e da funcionalidade e nem

o seu correlato, o homem da subjetividade moderna.

Desde o tempo das duas guerras mundiais do século passado, a exigência dessa

ultrapassagem foi se fazendo sentir cada vez mais como uma insistência do apelo de ser

que nos vem do porvir, como palavra do tempo, do “kairós”. Demos apenas dois

exemplos de pensadores em que esta palavra se faz sentir: Simone Weil e Martin

Heidegger. A situação do homem desse século chegava a Simone Weil sob o nome de

“desenraizamento” e a Martin Heidegger sob o nome de “apatridade”. O

desenraizamento foi percebido e meditado pela Weil que lhe dedicou um escrito de

1943, quando a segunda guerra mundial se alongava. Ela escreve:

O enraizamento é talvez a necessidade mais

importante e desconhecida da alma humana. É uma das mais

difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua

participação real, ativa e natural na existência de uma

coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado

e certos pressentimentos do futuro. Participação natural,

isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento,

da profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter

múltiplas raízes. Precisa receber quase que a totalidade de

sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos

meios de que faz parte naturalmente45.

Naquele momento, ela aponta alguns condicionamentos do desenraizamento

que acometia não só os indivíduos, mas também os povos do globo terrestre e os

diferentes meios sociais. Uma condição do desenraizamento era a conquista militar,

tanto pior quanto mais há deportações, supressão brutal das tradições locais, etc. Mas,

além desta condição, há uma outra, mais sutil, e, por isso, menos aparente: “o poder do

dinheiro e a dominação econômica” que “podem impor uma influência estrangeira a

ponto de provocar a doença do desenraizamento”. Em terceiro lugar, “as relações

sociais no interior de um mesmo país podem ser fatores muito perigosos de

45 Weil, Simone. O Enraizamento (1943). In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 411.

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desenraizamento. Especialmente o “poder do dinheiro” e da “dominação econômica” é

nefasto: “O dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os

motivos pelo desejo de ganhar. Vence sem dificuldade os outros motivos porque pede

um esforço de atenção muito menor. Nada mais claro e simples que uma cifra”46. Este

desenraizamento, refletia ela naquele momento, incidiria especialmente sobre o

operário: “existe uma condição social inteira e continuamente presa ao dinheiro, é a do

assalariado (...). Nesta condição social é que a doença do desenraizamento é mais aguda

(...). O desemprego, é claro, funciona como um desenraizamento de segundo grau”47.

Assim, os operários, ainda que não se tornassem migrantes, mas permanecessem em

suas terras, acabavam se tornando moralmente desenraizados, exilados e readmitidos,

“por tolerância, como carne de trabalho”48.

No vazio do ser cresce o desenraizamento do homem. O que Simone Weil viu

como desenraizamento, Heidegger viu como apatridade. Há certo tempo, a apatridade

torna-se o destino a que se destinam todos os caminhos de todos os povos da terra. Esta

apatridade se esconde, porém, atrás do fenômeno da “civilização planetária”. Num

discurso de 1969, Heidegger anotava: “Civilização planetária significa hoje: predomínio

das ciências hipotético-dedutivas, significa predomínio e primado da economia, da

política, da técnica. Tudo o mais não é nem mesmo supra-estrutura. É apenas para-

estrutura toda quebradiça”49. Assim, a civilização planetária é dominada pela busca total

e incondicional do saber enquanto poder, do produzir e do consumir, do apoderamento,

do controle do controle de todo o real, na busca do autoasseguramento. Nesta

mobilização, acontece, porém, a devastação e desertificação da terra. O mundo do

homem está sempre em tensão com a terra. O mundo é abertura, desvelamento e

expansão. A terra é oclusão, velamento, retraimento – e tudo isso como proteção.

Mundo e terra só são o que são, porém, numa tensão criadora dos opostos. O homem

com o seu mundo só vinga e viceja de modo feliz se cuidar da terra e se confiar à sua

proteção. No entanto, nos últimos tempos, o projeto do homem tende cada vez mais a

46 Weil, Simone. O Enraizamento (1943). In: A condição operária e outros estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 412. 47 Idem, p. 413. 48 Idem, ibidem. 49 Heidegger, M. O discurso dos oitenta anos (1969). ). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, vol. 71, 1977, p. 52.

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“construir o mundo sem Terra da técnica total”50. O poeta Hölderlin advertiu este

destino de apatridade do homem contemporâneo com as seguintes palavras que soam

como um vaticínio:

Mas só que ninguém diga: que nos separe o Destino!

Nós o somos! Nós! Nós mesmos que temos prazer em nos

precipitar na noite do desconhecido, no estranho frio de um

outro mundo qualquer. E, se fosse possível, abandonaríamos

a região do sol e nos precipitaríamos para fora da Estrela

Errante. É que para o peito doido do homem nenhuma pátria

é possível!51

A apatridade do homem de hoje foi evocada por Heidegger no discurso de

oitenta anos (1969). Ali Heidegger falou da finitude de nosso saber em face ao futuro e

apontou a tarefa do pensamento:

Dizia a pouco: a apatridade é um destino mundial na

forma da civilização planetária. É como se a civilização

planetária, que o homem moderno não criou mas em que foi

“destinado”, trouxesse consigo o obscurecimento da

existência humana. De fato é o que parece. Mas seria um

erro pensar somente até aí e não ver nada mais, a saber a

possibilidade de uma virada. Mas nós não sabemos nada do

futuro. Talvez tudo finde numa grande desolação. Talvez

aconteça que algum dia o homem se enfastie dos produtos

de suas pretensas produções e de repente comece a

questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação

atinja tal nível que as necessidades se nivelem a ponto de o

homem já nem sentir a decadência interior e o vazio de sua

existência. Talvez possa também acontecer outra coisa. Em

50 Leão, E. C. A técnica e o mundo no pensamento da terra. In: Aprendendo a pensar II. Teresópolis: Daimon, 2010, p. 101. 51 Apud Leão, E. C. Op. Cit., p. 102.

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qualquer caso, como quer que seja ou aconteça: nós não nos

devemos queixar, temos é de nos questionar!52

Hoje a humanidade, em seu momento histórico, parece experimentar o crescer

do deserto nos corações dos homens. Nietzsche, o pensador do niilismo, disse: “O

deserto cresce: ai daquele que guarda e resguarda desertos”. Deserto é tempo-espaço

da paciência: do vigor do suportar, da entrada no limite da mortalidade, de acolhida da

vida enquanto dor. A superação do deserto se dá somente através da, e como a

paciência do atravessamento, da travessia. Na paciência é que o homem torna própria

a sua vida. Deserto é hora de decisão: ou aniquilação ou reencontro da fonte da vida, da

vida fontal. O perigo da aniquilação é maior do que o da destruição. A destruição acaba

com o que é; a aniquilação acaba com o que pode-ser; seca as fontes da criatividade da

vida. Deserto é hora de decisão: ou isto – ou aquilo. Ou aniquilação ou encontro com a

vida fontana. Em todo o caso, o que está em jogo, hoje, não é a mera sobrevivência do

homem. O que está em jogo, hoje, é a “sobrevivência da humanidade nos homens”53. O

desafio do pensamento, em seu compromisso com o humano, e em sua

responsabilidade com o porvir, consiste em jogar este jogo. “A crise da

contemporaneidade é tão grave e profunda, que estamos a sentir-lhe os efeitos

destrutivos, mesmo quando nos alegramos com a luminosidade ofuscante de seus

sucessos”54. Os homens vão perdendo a serenidade das coisas e o sentido do mistério

de ser. É nessa dupla perda que cresce a violência generalizada, a guerra total e crônica,

em que vive o homem atual. “Tal estado de coisas permanecerá enquanto se ignorar a

humanidade, que se constrói e viabiliza, no próprio desespero, a experiência humana”55.

Mas, pensar é esperar o inesperado. E, nessa espera, o pensamento é agraciado com a

“esperança de ser, que toda era anuncia, antes de amanhecer”56.

Em 1919, logo em seguida à primeira guerra mundial e um ano antes de sua

morte, Max Weber ministrou uma conferência em Munique, que tratou da “Ciência

52 Heidegger, M. O discurso dos oitenta anos (1969). ). In: Revista de Cultura Vozes, ano 71, vol. 71, 1977, p. 53. 53 Leão, Emmanuel Carneiro. Apresentação. Em: Quintão, Denise. Seguindo o Todo por toda a Terra: uma fenomenologia do arcaico nos gregos. Teresópolis: Daimon, 2007, p. 17. 54 Leão, E. C. Idem, ibidem. 55 Idem, p. 18. 56 Idem, ibidem.

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como vocação”. Weber saúda o novo espírito da modernidade, mas alude ao risco que

ele trazia. Com o crescente predomínio da razão científico-tecnológica, o mundo se

expunha ao perigo de cair no desencanto e os filhos da nova modernidade arriscavam

se tornar especialistas sem espírito e hedonistas sem coração. É significativo que Weber

termine a sua conferência com uma “bela canção da sentinela edomita, da época do

exílio, recolhida nas profecias de Isaías”. Esta canção diz:

Uma voz me chega de Seir, em Edom: “Sentinela,

quanto durará ainda a noite?” Responde a sentinela: “Há-de

chegar a manhã, mas ainda é noite. Se queres perguntar,

volta de novo.”57

Entramos numa noite histórica, que não é, entretanto, comumente, percebida

como noite. Nietzsche e Hölderlin a nomearam em seu pensar e em seu poetar. Mas,

talvez, nós, deslumbrados com as luzes de néon da sociedade atual, com os espetáculos

e os fetiches do virtual, ainda não percebemos a noite como noite, e assim, nem mesmo

podemos nos alegrar com as suas estrelas, caso apareçam, e cintilem, nos céus de nossas

existências.

Ainda não está decidido se este declínio se dará como um mero decaimento ou

se se dará como a passagem para outro princípio.

O declínio, o ocaso, pode se dar como decaimento. O decaimento pode ser a

destruição das condições de vida humana na terra. Mas pode não ser isso. Pode ser a

aniquilação das fontes da liberdade criativa no viver do homem, que, embora se

prolongue, vai se desertificando na sua vitalidade, no seu espírito. No decaimento, o

espírito livre e criativo do humano é sufocado pela inserção e instalação em formas

exteriores e em exigências de cumprimento sempre mais esquemáticas. Então, neste

contexto, formação é apenas assimilação de informação e submissão a estas formas

exteriores. Os conteúdos da vida são, então, subtraídos ao vigor e frescor matutino,

nativo, do processo do acontecer da constituição humana e vertidos em formas

padronizadas, fixas, cristalizadas. É a ocasião propícia para dogmatismos,

fundamentalismos, extremismos... Em vez de educação, formação, no sentido de

57 Cf. Weber, M. A ciência como vocação. Em: www.lusosofia.net, p. 33.

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constituição humana, entra a instrução no sentido da informação e do treinamento para

processar informação. A informação deixa de ser uma formação desde a interioridade e

passa a ser a não formação, o perder-se na exterioridade. Deixa de ser a comunicação

que provoca essencialização do ser humano e passa a ser adestramento e treinamento.

Hoje, quando vivemos na era da informação, é preciso, em vez de pensar a formação a

partir da informação, pensar a informação a partir da formação. E pensar a formação

não como enquadramento em padrões, em modelos preestabelecidos de ser e pensar

(calcular), de fazer e agir, de viver e conviver, mas como a essencialização e

existencialização da identidade humana, desde a liberdade criativa do espírito.

“Espírito” é uma maneira defasada de dizer, aqui, o relacionamento de ser com o

mistério de ser que constitui o humano no homem. Desde o espírito, a formação deixa

de ser a aquisição de padrões de comportamento e o treinamento, isto é, deixa de ser

o condicionamento do comportamento humano, no sentido da produção de uma

compulsão, da habilitação para repetição de seus automatismos.

O declínio, o ocaso, porém, pode se dar também como uma passagem para outro

princípio. Neste caso, o declinar tem um sentido trágico. Trágico, não no sentido usual

da palavra, de desgraça e infortúnio trazido por uma fatalidade. Trágico, no sentido

poético de um combate entre os opostos, luz e escuridão, liberdade e destino, em que

aquele que combate só vence à medida que declina. Declinar é, aqui, ir para o fundo,

afundar, no sentido de retornar ao encoberto, ao velado. Neste caso, justamente o

encontro com a escuridão é o que ilumina. Como Édipo que passou a ter um olho a mais

e se tornou um vidente, como Tirésias, depois que ficou cego. Um vidente é um homem

que vê não só o patente, mas também o latente. Não só o presente, mas o ausente; um

homem que vê a cada presente a vigência do passado e do futuro.

O ocaso convida a reconhecer o subir da noite como noite e a esperar, na

paciência de uma vigília, os alvores de outro amanhecer. Algo do espírito genuíno do

ocaso já se anunciou, nos alvores do dia da história ocidental, numa poesia de Safo de

Lesbos, dedicada a Héspero – que é Vênus em sua aparição vespertina: “Vésper, /

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trazendo de volta os que se foram / à luz do claro dia nascente, / ovelha e cabra nos

trazes de volta; / trazes de volta, à mãe, o seu filho”58.

Dependendo de como se dá o declínio, se como decaimento ou se como

passagem, muda o sentido de crise e de caos. No decaimento, se dá o sentido

inautêntico de crise. Então, crise é apenas desequilíbrio e violência, embaraço e ameaça,

deficiência, penúria. Na passagem, crise é cisão e decisão, em que está em jogo o

discernimento do pensar e a capacidade humana de não só escolher entre alternativas,

mas também de escolher libertar-se para a liberdade do mistério de ser e não ser, em

seu desencobrimento e encobrimento, no meio das confusões do aparecer. No

decaimento, o caos não é outra coisa do que a confusão, a desordem. Na passagem, o

caos é o que propicia a geração de um mundo. O caos nada é. É um “nonada” (primeira

palavra do “Grande Sertão – Veredas”)59. Coisinha nenhuma. Mas deste nada tudo

advém ao ser. Não se trata de um nada negativo e privativo. Mas sim de um nada

criativo. É o nada inaugural, do qual se nutre toda a criação. Dele provém tudo o que é

e não é, toda a realização e desrealização, toda ordem e desordem, todo o mundo e

todo o imundo. Dele provém o vigor e o frescor matinal de toda a criação. Para ele tudo

retorna, ao ser recolhido pela estrela vespertina, e acolhido de volta no seio da noite do

mistério. Vige como o princípio de todo o cindir e separar, de todo o distinguir e

diferenciar. É o hiato no ser. É o abismo hiante da realidade de todo o real. É o “Ápeiron”

de Anaximandro: o in-finito que leva à consumação e à perfeição todo o finito. Pois não

há nada de finito que não traga em seu bojo o vigor do infinito. É possibilidade

possibilitadora de toda a realização. Com efeito, a realização de todo o real é algo assim

como uma criação contínua “ex nihilo”, a partir do nada, do caos. Por isso, Zaratustra, o

profeta da passagem e do ocaso do homem, disse: “é preciso a coragem de ser um caos

para se gerar uma estrela dançarina”. Memória do caos de onde irrompeu o dia histórico

do ocidente é a poesia arcaica de Homero e Hesíodo. O pensamento de Anaximandro,

Heráclito e Parmênides ainda respirava a atmosfera matinal, o vigor e o frescor, que o

caos ofereceu ao pensamento, na aurora desse dia histórico. Hoje, cerca de dois

milênios e meio, com o declínio desse dia, e com o subir da noitinha, é o tempo de a

58 Safo de Lesbos. Poemas e fragmentos. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2003, p. 131. 59 Grande Sertão, p. 7.

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coruja da filosofia voltar a se encontrar com a força geradora, nativa, do caos. E, a partir

daí, pensar a partir do porvir, na vigília e na espera de um outro dia histórico, que talvez

irrompa silencioso por entre as confusões, a penúria, e os estremecimentos de nosso

tempo.

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2 A CONSUMAÇÃO DA METAFÍSICA

Tentaremos, aqui, propor um fio condutor para pensar a atualidade da filosofia

hodierna pensando-a a partir do tema da consumação da metafísica. Nosso propósito é

tratar da consumação da metafísica na filosofia, na ciência e na técnica, e, por fim, na

arte.

2.1 A CONSUMAÇÃO DA METAFÍSICA NO PENSAMENTO FILOSÓFICO

A contemporaneidade da filosofia nos presenteia, hoje, com o fim da metafísica.

Costumamos entender fim no sentido de decaimento, decrepitude. Mas, aqui, o fim tem

o sentido, antes de tudo, de consumação. A consumação, no entanto, abre um hiato,

que prepara um outro princípio? Pode ser. Assim pensa um pensamento que pensa a

partir do futuro. Enquanto a ciência-e-a-técnica (tecnociência / tecnologia) só pode

experimentar o futuro como um prolongamento do presente num infindo progresso, o

pensamento experimenta o futuro como futuro (porvir), fazendo-se, essencialmente,

porvindouro:

O Pensamento fala do futuro, age com o futuro, vive

pelo futuro, trabalha para o futuro. É que o pensamento

pensa sempre a partir do futuro. Envio de futuro, o

Pensamento produz o novo. O novo não é a novidade. O

novo é a plenitude do velho. À plenitude pertence tanto

realização como interrupção. O novo não é apenas a

continuidade. É também ruptura, ou melhor, é continuidade

enquanto ruptura na linha do velho. No Pensamento chega

a si mesma a diferença de novo e velho, de passado e futuro.

Por isso o Pensamento só conhece o mundo passado de

novo, isto é, à luz do futuro. Por isso o Pensamento está

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sempre enviando a ruptura do mundo velho na via de um

envio futuro. Por isso nenhum mundo gosta de pensar60.

Para o pensamento que hoje se faz porvindouro, isto é, que pensa a partir do

futuro, o fim da filosofia no sentido da metafísica não é um mero decaimento. É uma

passagem que traz consigo o convite para outro princípio: “em seu Fim, a Filosofia não

finda na decadência de uma decrepitude, mas se instala na jovialidade de uma nova

plenitude”61. Este outro princípio, na verdade, só se inaugura a partir do diálogo com o

princípio originário esquecido pelo próprio pensamento grego, a saber, a

(alétheia = revelação do mistério de ser). Neste esquecimento é que se deu a

história da filosofia enquanto metafísica, isto é, a história do ocidente:

A filosofia grega chega, assim, a predominar no

Ocidente não a partir de seu princípio originário mas a partir

do fim de seu princípio, que em Hegel atingiu a sua grandiosa

e definitiva plenitude. A História autêntica não termina, não

vai a fundo, cessando e extinguindo-se simplesmente como

o animal. História só vai a fundo, acontecendo

historicamente.

O fim da metafísica, no sentido de sua consumação, se dá, antes de tudo, em

Hegel. Em Marx e em Nietzsche também. Vejamos como esta história se consuma,

primeiramente, em Hegel.

60 Leão, Emmanuel Carneiro. A morte do pensador. In: Aprendendo a Pensar. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 145-146. 61 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 9.

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2.1.1 O ENCAMINHAMENTO E O ANDAMENTO DO PENSAMENTO MODERNO E SUA

CONSUMAÇÃO EM HEGEL.

Em Hegel, o fim da metafísica tem o sentido histórico-dialético de síntese. Como

se caracteriza esta síntese?

O pensamento ocidental, que, desde os diálogos de

Sócrates, veio transformando o em a

especulação cosmogônica em educação antropológica, a

entrega livre ao mundo da numa autoconsciência

crítica da razão e do sujeito, atingiu na Filosofia do Espírito

de Hegel o pleno desenvolvimento de suas possibilidades de

representação. E por que? Porque, na filosofia de Hegel, não

só a História é pensada filosoficamente. Também a filosofia

é pensada, como História. Em Hegel, Filosofia da História e

História da Filosofia pertencem a um só processo, pois

ambas se fundam e exercem num e mesmo princípio. Pela

primeira vez, se tentou pensar o Pensamento Ocidental

segundo o despregamento dialético de um sentido Histórico

e assim integrar reciprocamente Verdade da História na

Verdade da Filosofia62.

Hegel é o pensador do ocidente que experimentou, pensando-a, a história do

pensar63. Por um lado, ele experimentou a história do ocidente como sendo filosófica

em seu traço essencial64. Por outro lado, ele experimentou a história da filosofia “como

o processo em si unitário e, por isto, necessário do avanço do espírito em direção a si

mesmo. A história da filosofia não é uma pura sucessão das mais diversas opiniões e

doutrinas, que se alternam sem conexão alguma”65. Esta perspectiva doxográfica da

história da filosofia é superada em Hegel. A história da filosofia é o avanço do espírito

62 Idem, p. 10. 63 Heidegger, Martin. Der Spruch des Anaximander. In: Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 323. Trad.: Caminhos de Floresta, p. 374. 64 Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, p. 428. Trad.: Marcas do Caminho, p. 437. 65 Idem, ibidem.

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que se encaminha para alcançar a si mesmo. A história da filosofia aparece como a

essência da história do ocidente. Isso quer dizer: o mundo grego, oriente do ocidente

(segundo as palavras de Hölderlin), e o próprio mundo europeu e ocidental são, no

encaminhamento mais íntimo de sua histórica, filosóficos66. Esta integração recíproca

de história do ocidente e de história da filosofia é uma conquista da filosofia em Hegel.

Assim, a história é experimentada e pensada filosoficamente, e a filosofia é

experimentada e pensada historicamente, quer dizer, na sua historicidade própria.

Verdade da história e verdade da filosofia formam uma unidade. Heidegger assim

apresenta esta posição peculiar e fundamental de Hegel na história da filosofia:

Em uma introdução às suas preleções de Berlim,

Hegel afirma o seguinte sobre a história da filosofia: “A

história, que temos diante de nós, é a história do auto-

encontrar-se do pensamento” (Preleções sobre a história da

filosofia. Hoffmeister ed., 1940, vol. I, p. 81, nota). “Pois

somente a história da filosofia desenvolve a filosofia mesma”

(p. 235s). De acordo com isso, a filosofia enquanto o

autodesenvolvimento do espírito em saber absoluto e a

história da filosofia são idênticos para Hegel. Nenhum

filósofo antes de Hegel assumira tal posição fundamental da

filosofia, uma posição que possibilita e exige do filosofar que

se mova simultaneamente em sua história e que esse

movimento seja a própria filosofia. Segundo a expressão de

Hegel na introdução à sua primeira preleção aqui em

Heidelberg, porém, a filosofia tem por “meta”: “a verdade”

(p. 14).

A filosofia é, enquanto sua história, tal como Hegel

diz em uma nota à margem do manuscrito desta preleção, o

“reino da pura verdade – não os atos da realidade exterior,

mas o íntimo permanecer-junto-de-si-mesmo do espírito”

(p. 6, nota). “A verdade” – isto quer dizer aqui: o verdadeiro

66 Heidegger, Martin. O que é isto – a filosofia? In: Conferências e Escritos Filosóficos (Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 29.

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na sua pura realização, que simultaneamente expõe a

verdade do verdadeiro, a sua essência67.

“Verdade”, aqui, não é tomada no sentido tradicional de adequação

(concordância, conveniência) entre o que se pensa e o que se diz (o “intelecto”) com o

real (a “coisa”). A verdade é entendida, aqui, no horizonte de uma metafísica do espírito.

A verdade, em sentido pleno e próprio, é o desvelamento do princípio absoluto da

realidade sem mais. Este princípio se apreende como Espírito. A Verdade seria, assim, a

auto-presença sem véus – que supera infinitamente a todo o sujeito finito temporal –

do pensamento que se pensa a si mesmo (Aristóteles), do Espírito Absoluto (Hegel), sua

posse eterna e imutável. O acesso a esta Verdade só é possível ao sujeito finito à medida

que ele transcende sua finitude e co-realiza o ato do Espírito infinito. Entretanto, Hegel

pensa o Espírito absoluto em devir na história. Com efeito, a história da Verdade é a

própria História do Espírito em seu devir, quer dizer, em manifestação. Esta

manifestação, no entanto, se dá como o Todo:

Na introdução das Preleções, pergunta Hegel: como

a filosofia, que busca a Verdade una, necessária, imutável, se

pôde desdobrar numa multiplicidade de filosofias? – A

resposta de Hegel é dialética: a Verdade não é a parte. As

partes são passagens, de que necessita a Verdade para

conquistar a si mesma no todo. A verdade é o todo. Por ser

e para ser o todo, a Verdade possui a tendência de se

desenvolver nas peripécias de uma dialética, formando um

curso de crescimento, o fluxo da História. Esta concepção

supõe não apenas que todo pensamento possui uma

História, que lhe é essencial, mas também uma determinada

interpretação do processo histórico: a saber, a História não

se dá ao acaso nem aos pulos mas numa dialética de

necessidade. Dentro desta suposição, a História do

pensamento é entendida como um destino necessário do

67 Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, p. 428-429. Trad.: Marcas do Caminho, p. 437-438.

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Espírito, e o homem, que pensa, como uma existência

Histórica68.

A Verdade é, pois, para Hegel, o Todo – a manifestação do Espírito no Todo e

como Todo. Hoje nós temos dificuldade de entender isso. O que quer dizer, “Espírito”?

Hoje, perdemos a evidência do espírito. Esta perda da evidência do espírito tem a ver

com os profundos abalos que atingem as formas de vida do homem ocidental na

atualidade. Para nós a palavra “espírito” soa vazia, sem intuição, abstrata. Entretanto, a

palavra “espírito” significa sopro e força de vida. Não se trata, pois, de algo abstrato.

Trata-se, isso sim, de algo real, realíssimo. E concreto. Se o concreto é o que con-cresceu

como um todo, o espírito, que é o princípio da concreção, é o mais concreto que há. Na

tradição metafísica, o espírito vige como o humano no homem. O homem não só é um

ente particular entre outros. É o ente que, no seu ser, está originariamente em relação

com o ente no todo, isto é, com o todo uno do ser. No espírito, pois, jaz o comum, que

é a base para a comunidade entre os homens. “É sobre esta base que os homens dirigem

entre si a palavra, quando eles falam uns com os outros. Através dele eles têm parte no

todo do mundo e se tornam remetidos a um primeiro e vinculante princípio”69. O

espírito, pois, não é uma propriedade do homem. O homem é que é uma propriedade

do espírito. Ao falar de “espírito” estamos nos referindo, com efeito, “ao dramático

acontecer do auto achamento da humanidade através de e para além de rompimentos

revolucionários (Umbrüche), enquanto o acontecer da bem concreta conversa e

confrontação, em que o homem se deixa pôr sempre de novo e de modo novo em que

estão com o seu mundo”70.

Para os gregos, o Espírito se manifesta como Lógos. Nos primórdios, em

Heráclito, é o Um que tudo unifica. Para os gregos dos tempos clássicos, em que surgiu

a filosofia enquanto metafísica, seguir o lógos era a maneira de pensar o universal e de

agir segundo o universal. A virtude consistia nisso (virtude dianoética e virtude ética). O

espírito é, pois, no homem, a abertura de ser ao ser do ente no todo. É transcendência:

68 Leão, Emmanuel Carneiro. O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 1977, n. 4, vol. 71, p. 10. 69 Rombach, Heinrich. Leben des Geistes – Ein Buch der Bilder zur Fundamentalgeschichte der Menschheit. Freiburg / Basel / Wien: Herder, 1977, p. 9. 70 Idem, p. 7.

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por ela, o homem sobrepuja o ente na direção do ser. É enquanto espírito que o homem

é capaz de reflexão, isto é, de retorno sobre si mesmo e para dentro de si mesmo (reditio

in se ipsum – na expressão de Tomás de Aquino). A reflexão do homem sobre si mesmo,

a autoconsciência e a configuração da subjetividade, é a base da filosofia moderna.

Hegel procura superar a dicotomia moderna de corpo e espírito, mundo e consciência,

objeto e sujeito. Procura integrar estes opostos num todo uno. Na sua filosofia, o

pensamento moderno é instado a passar do terreno do entendimento (Verstand) e da

finitude para o terreno da razão (Vernunft) e da infinitude. Trata-se da passagem da

consciência para a autoconsciência e a razão. A noção de consciência deve ser superada

naquela de autoconsciência. É que consciência supõe sempre o ser sujeito em sua

relação com o objeto e concebe este como fora de si, outro de si, independente de si. A

autoconsciência, porém, é justamente a supressão desta alteridade e exterioridade. “A

verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento daquela; de tal modo

que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o objeto

como meu (este é minha representação), por isso, neste [objeto] eu sei a mim

mesmo”71. Essa passagem da consciência para a autoconsciência e a razão é, para Hegel,

um passo importante, antes, decisivo, no avanço do espírito em direção a si mesmo.

Essa passagem começa, justamente, com Descartes:

Hegel declara: “Com ele (a saber, com Descartes)

cruzamos propriamente o umbral de uma filosofia

independente... Aqui, podemos dizer que estamos em casa

e podemos, como o navegante após um longo périplo por

mar proceloso, exclamar ‘terra à vista’... (WW. XV, 328). Com

esta imagem, Hegel quer dar a entender: o ego cogito sum,

o “eu penso, eu sou” é o solo firme em que a filosofia pode

habitar em verdade plenamente. Na filosofia de Descartes, o

ego torna-se o subiectum normativo, isto é, aquilo que desde

o princípio já sub-(pré-)-jaz. Este sujeito, contudo, só é

assumido de maneira adequada, a saber, no sentido

kantiano, transcendental e plenamente, o que quer dizer no

sentido do idealismo especulativo, quando toda a estrutura

71 G. W. F. Hegel, Enzykopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (par. 344), 251.

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e movimento da subjetividade do sujeito se desdobrou e foi

elevada ao auto-saber-se absoluto. Quando o sujeito se sabe

como tal saber que condiciona toda a objetividade, ele é

como tal saber: o absoluto mesmo. O verdadeiro ser é o

pensamento que se pensa a si mesmo absolutamente. Ser e

pensar são para Hegel o mesmo, e, na verdade, no sentido

de que tudo é recebido de volta no pensamento e

determinado a ser o que Hegel simplesmente designa o

“pensamento pensado”72.

Nos primórdios do pensamento ocidental o pensar estava sob a égide do ser e

da sua manifestatividade – a (alétheia). Desde Platão, entretanto, o pensar

passou a subjugar o ser, que só pôde viger como (idéa) através do (lógos)

enquanto discurso. Na época antiga, o lugar do pensar era a vida humana - (bíos).

Na época medieval, a experiência da fé cristã, a recepção da revelação bíblica e o seu

saber, isto é, a teologia. Na época moderna, o pensar põe-se de pé a partir de si mesmo.

A filosofia se torna mathesis universalis (ciência universal) ou scientia generalis (ciência

geral): o pensar do todo do ente que permanece em si mesmo e que se desdobra

segundo seus próprios princípios73. O modo do encaminhamento desse pensamento se

chama “método” (méthodos = a caminho). O modo do perguntar e investigar

se torna mais importante do que aquilo que é perguntado e investigado. O interrogado

e investigado deste pensamento é prioritariamente o mundo (cf. Descartes e a obra

intencionada “Le monde”).

Este deixa de ser (kósmos) ou ordo (ordem) para ser sistema. Sistema

quer dizer: um todo, em que cada momento apenas é enquanto é para outro momento,

numa relação funcional. Por si, cada momento não tem nenhuma significância. A

significância de cada momento só se dá na sua relação com outro momento. Sua

significância, por sua vez, é dada pela sua atuação, na execução de uma função, naquilo

72 Heidegger, Martin. Hegel und die Griechen. In: Wegmarken. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1996, p. 429-430. Trad.: Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 439.Trad.: Marcas do Caminho, p. 438-439. 73 Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 73.

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que ele elabora, apronta, realiza, em relação a outro momento (configere). Isto é, a

significância de um momento só é dada naquilo que ele leva a cabo, traz ao acabamento

(efficere). O que está em jogo é, a cada vez, um perfazer (perficere) funcional, em relação

a outro momento. O ser de cada momento é um “esse in alio” (ser-em-outro), não um

“esse in se” (ser-em-si)74. A substância cede lugar ao sistema, isto é, para a relação

funcional75.

O ente no todo agora é sistema. O ente aparece, porém, na forma do que é

cognoscível. O saber deste ente no todo enquanto cognoscível – a metafísica moderna

na forma de mathesis universalis ou scientia generalis – chama-se, agora, física76. O

fundamento do todo enquanto cognoscível encontra-se no cognoscente, a saber, no

74 A experiência e a compreensão do todo da realidade na época antiga podia ser resumida na categoria de “substância”. Substância significa ser de modo independente, “ser em si” e “existir por si”. De início, é ente aquilo que se determina em si mesmo: a substância. À substância do ente pertencem as suas determinações essenciais, invariáveis. Em seguida vem aquilo que é concomitante à substância, como suas propriedades e manifestações variáveis, acidentais. Já na modernidade, o todo da realidade é experimentado como sistema. Tudo o que existe é um momento dependente, pois, está posto e subsiste somente enquanto está posto em relações funcionais com todos os outros momentos do todo e com o todo como tal. Cada momento do todo só é enquanto está posto em relação funcional com outro momento. Nenhum momento do todo tem um significado independente. Todo momento recebe o seu significado a partir de uma dependência funcional. Em vez do “esse in se” (ser em si) ou “per se” (por si), entra, agora, o “esse in alio” (ser em outro). Cada momento tem o seu ser em outro; só é o que ele consegue atuar, efetivar. Só é apreendido a partir de sua atuação funcional. 75A ontologia funcional começa a emergir com Nicolau de Cusa (c. 1430). Depois, irrompe propriamente com Copérnico (c. 1490). Kepler e Galilei seguiram por esta esteira no modo de compreender a natureza. As constelações dos corpos celestes passam a ser compreendidos sistematicamente. Newton entende o todo da natureza como sistema. Descartes, Leibniz e Spinoza, apesar de falarem de substância, já não têm em vista o todo do ente como um todo substancial, como um ordo (ordem), ao modo medieval. Suas ontologias já são relacionais-funcionais, isto é, sistemáticas. 76 Este passo decisivo é dado por René Descartes (1596-1650). Os principais precursores são: Nicolau de Cusa (1401-1464), Leonardo da Vinci (1452-1519), Nicolau Copérnico (1473-1543), Giordano Bruno (1548-1600), Galileo Galilei (1564-1642), Johannes Kleper (1571-1630). O arranque deste movimento do pensamento a filosofia de Nicolau de Cusa (1401-1464), que, por volta de 1430, apreendeu o pensamento de uma organização sistemática do mundo. Entretanto, pensou esta organização sistemática a modo de um organismo vivente. O pensamento do Cusano atuou, por sua vez, na astronomia do começo da modernidade, de uma maneira “desvitalizada”. Copérnico (1473-1543) realiza, assim, por volta de 1490, uma revolução que introduziu a imagem do mundo da modernidade. Ele reconheceu o caráter sistemático das estrelas móveis e da terra. Concebeu que os planetas se movem realizando uma circulação exata e regular, quer em torno do sol (revolução), quer em torno de si mesmos (rotação). Johannes Kepler (1571-1630), por sua vez, tornou mais refinada a representação sistemática do mundo de Copérnico. Kepler concebeu a órbita elíptica dos astros. Um passo ulterior foi dado por Galileu Galilei (1564-1642). Galilei trouxe o pensamento do sistema do céu para a terra, da astronomia para a física. Por meio do telescópio, ele descobriu que os corpos celestes não eram entidades espirituais com matéria incorruptível (a quinta essência), mas eram corpos como a terra. Com Galileu céu e terra se tornam homogêneos. Os astros se tornam terrestres e a terra se torna um astro. A mecânica do céu é transferida para os movimentos dos corpos terrestres, assim como as leis físicas da terra, na astrofísica, é transferida para os astros. Assim, no céu e na terra, tudo passa a ser reduzido a leis unitárias, de caráter funcionalístico, sistemático. Forma-se, assim, um sistema do mundo.

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“cogito – sum”. É a partir deste fundamentum inconcussum veritatis (fundamento

inabalável da verdade – tomada como certeza a partir da autoevidência), que se constrói

o saber o todo do ente (Deus; alma = res cogitans; e mundo = res extensa = sistema). A

verdade do ente no todo (enquanto cognoscível) se assenta, pois, no fundamento

(subiectum) do “cogito – sum”. No conhecimento do mundo o matemático joga, então,

um papel fundamental77. O matemático é a ótica em que o mundo é apreendido.

Através da ótica do matemático a (estranha) experiência do mundo e o mundo da

experiência são sempre de novo reconduzidos à (auto) evidência do “cogito – sum”. A

partir da determinação do matemático, o qualitativo (qualis) cede lugar ao quantitativo

(quantum)78. A partir dessa mesma determinação, o pensar deve poder ser expresso

more geometrico (ao modo dos geômetras = de modo axiomático-dedutivo)79. Com isso,

o todo do ente enquanto mundo (cognoscível, sabível, aprendível e apreensível, isto é,

matemático) se torna experimentável apenas em suas relações matemáticas. O livro do

mundo, como pensava Galileu Galilei, seria, agora, decifrado por caracteres

matemáticos80.

77 “O matemático” nos remete de volta ao pensamento grego. Em grego, “mathematikós” significa “dedicado à aprendizagem”, “estudioso no aprender”. “Tó máthema” significa “o que se há de aprender”; no plural, “tà mathémata”, “as coisas que hão de ser aprendidas”. “Máthesis” é a própria aprendizagem. “Mantháno” é, por sua vez, “aprender”, mas também, “habituar-se”, “vir a conhecer ou a saber”, “captar com a visão”, “ver”, “apreender”, “reconhecer”, “dar-se conta de”, “compreender”. 78 Daí o papel que têm os números, as grandezas, as relações, as proporções. 79 O conhecimento do mundo, sempre experimental e, ao mesmo tempo, hipotético, se dá, como dizia Galileu Galilei, por um “mente concipere” (um conceber com a mente). Conceber com a mente significa lançar um projeto de intelecção que se estende por sobre as coisas, abrindo os espaços de jogo, onde as coisas se mostram, onde os fatos de deixam inteligir desde princípios (conhecimento dedutivo) ou em vista de princípios (conhecimento indutivo). Assim, por exemplo, na moderna ciência matemática da natureza, o projeto abre de antemão o espaço de manifestação dos entes naturais desde algumas determinações fundamentais tidas em alta conta (axiomas), como: espaço homogêneo, tempo homogêneo, corpos homogêneos, movimentos homogeneamente mensuráveis como deslocamentos de pontos de massa, etc. Isso quer dizer: o projeto matematizante da natureza é axiomático; o lance conceptual prévio constitui o esboço fundamental do quadro em que cada coisa e cada estado-de-coisa ou conjuntura há de se manifestar. 80 Atribui-se a Descartes uma sugestiva parábola a respeito da decifração do mundo. Ele tenta ilustrar o modo de ser do conhecimento denominado interpretação mais ou menos assim: Uma pessoa recebe de um desconhecido uma carta cifrada, cujo código de decifração ela desconhece. Depois de várias tentativas, consegue descobrir uma regra, cuja aplicação lhe permite montar um código que lhe possibilita ler a carta, de tal modo que ela traz à luz uma mensagem com sentido plenamente compreensível e até incontestável na sua coerência. Descartes, porém, especula: Poderia acontecer que, por ser um homem de grande habilidade, o autor da carta a tenha redigido de tal modo que, sob outro código de decifração, a mesma carta contivesse outra mensagem, inteiramente diferente da anterior. Com isso, em nada é alterada a primeira leitura da carta. Que alguém seja capaz de descobrir outro código de decifração é admirável. Mas a pessoa que fez a primeira leitura pode, tranquilamente, deixar aberta essa questão da existência de outro código de decifração. A ela basta que, no seu modo de ler, a carta lhe dê sentido

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Com Isaac Newton (1642-1727) é que esta concepção matemárica e sistemática

do mundo se completa, sem deixar lacunas. Nela, todo fenômeno particular passa a

poder ser articulado matemática e sistematicamente. Newton, na sua obra “Philosophie

naturalis principia mathematica”, de (1686/87) dá concretude, amplitude e articulação

à tendência de matematização. O matemático, aqui, se refere não tanto, nem somente

e primordialmente, ao cálculo, ao numérico e quantitativo, mas ao modo como se

concebe de antemão as coisas, ao projeto fundante do conhecimento. Este modo do

projeto matemático já aparece nos “Discorsi” de Galilei (1638). Galilei concebe

mentalmente, de antemão, as determinações concernentes a todos os corpos. São elas:

Todos os corpos são idênticos. Não há movimentos

peculiares. Todos os lugares são idênticos; todos os

momentos do tempo são idênticos. Cada força determina-se

a partir da modificação no movimento que ela causou, sendo

esta modificação no movimento entendida como mudança

de lugar. Todas as determinações acerca dos corpos

inscrevem-se num plano segundo o qual cada

acontecimento natural não é senão a determinação do

movimento espácio-temporal de pontos de massa. Este

plano da natureza delimita, ao mesmo tempo, o domínio

desta como universalmente uniforme81.

São características do projeto matemático:

1. O projeto é lançado como um conceber mental acerca da coisalidade, ou melhor,

acerca da corporeidade e das determinações universais da corporeidade.

coerente de início até o fim. Mas a segunda leitura não lhe poderia dar um sentido melhor, mais próximo ao da intenção do autor? Sim, se o autor tivesse fixado como válido e melhor um dos códigos de decifração. Mas suponhamos que esse autor da carta é o próprio Criador, de quem se origina o universo e tudo o que ele contém, seja atual ou possível. Suponhamos que esse Criador cifrou a carta segundo um número interminável, infinito, de diferentes códigos. Segundo Descartes, essa parábola mostraria o relacionamento e a postura própria do pesquisador nas ciências naturais exatas para com o universo. Um cientista da natureza absoluto, congenial ao Criador, poderia, assim, desenvolver inúmeras astronomias, mecânicas, ópticas, medicinas, etc, sem que uma tivesse em linha de princípio a primazia sobre a outra. Cf. Harada, Hermógenes. Em Comentando I Fioretti: reflexões franciscanas intempestivas. Bragança Paulista: Edusf, 2003, p. 30. Rombach, Heinrich. Strukturontologie. Eine Phänomenologie der Freiheit. Freiburg / München: Alber, 1988, p. 139. 81 Heidegger, M. O que é uma coisa? A doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Lisboa, 1992, p. 95.

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2. O projeto é axiomático, ou seja, ele põe proposições-de-fundo, proposições

fundamentadoras das coisas: “na medida em que cada conhecimento e

reconhecimento se exprime em proposições, o reconhecimento tomado e posto

no projeto matemático é de tal ordem que, antecipadamente, põe as coisas no

seu fundamento”82.

3. O projeto matemático, enquanto axiomático, é um “prévio agarrar” a essência

da coisa, os corpos; assim, é pré-indicado em esboço como se estrutura cada

coisa e cada relação de uma coisa com outra.

4. O domínio da natureza se redefine: a natureza já não é mais o que, como

faculdade interna do corpo, determina a forma do seu movimento e do seu lugar.

A natureza é agora o domínio, esboçado no projeto axiomático, da conexão dos

movimentos espaciais uniformes, no qual, somente, os corpos nele inseridos

podem ser corpos.

5. O projeto determina o modo como os corpos se mostram, bem como a forma

como o que se mostra a partir do projeto pode ser tomado, a saber, a experiência

enquanto experimento. A regra, a lei, porém, só aparece na conjuntura de uma

mensuração. Experimento só é possível onde se lida com a precisão de uma

mensuração, partindo-se de um projeto matematizante da natureza. Justamente

este projeto é a condição para a necessidade e a possibilidade do experimento.

O simples lidar com fatos da observação e com a mensuração ainda não constitui

o experimento no sentido moderno, mas, precisamente, o projeto de

matematização da natureza. “Na medida em que agora o reconhecimento está

pré-determinado pelo esboço do projeto, o questionar pode ser determinado de

tal modo que põe antecipadamente as condições a partir das quais a natureza

deve responder de tal ou tal modo. Com base no matemático, a experientia

tornou-se experimentação, em sentido moderno” 83.

82 Idem, p. 96. 83 Idem, p. 97.

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6. O fato de a matemática (em sentido estrito) se tornar agora um meio de

determinação essencial não é o fundamento da nova configuração da ciência,

mas uma consequência do projeto matemático.

Entretanto, o relacionamento com o ente no todo enquanto mundo e enquanto

cognoscível, em seu caráter de projeto matematizante, está fundado no “cogito –

sum”84. Na época moderna, a unidade de ser-pensar acontece historicamente como a

auto-evidenciação do “cogito-sum”. No “cogito” a “mens” (mente, espírito) em seu

“esse” (ser) se dá a si mesma para si mesma, vem de si mesma para si mesma. Todo o

aprender e apreender do que quer que seja se funda neste apreender em que a mente

é dada a si mesma desde si mesma em si mesma. Todo o conhecer se funda e se centra

no “conhece-te a ti mesmo! ”, dele provém e para ele retorna. Todo o conhecer se

desdobra e se explica desde o conhecimento de si. O encaminhamento do pensamento

agora deve poder se tornar, então, reflexivo. Reflexão é o modo e a forma de

encaminhamento desse pensamento85. Neste movimento, porém, o pensamento, vai

cada vez mais para o fundo de si mesmo. Nele, o pensamento, em busca da claritas

(clareza) e da distinctio (distinção), busca se auto-esclarecer cada vez mais e mais. Este

autoesclarecimento é autofundação. No seu andamento, o pensamento vai se

aprofundando e se radicalizando cada vez mais. Trata-se, no entanto, do andamento

reflexivo da consciência. É a esse andamento do pensamento que se chama de

“revolução copernicana” da filosofia moderna. De Descartes a Hegel, neste andamento,

o pensamento vai se auto-esclarecendo e se auto-fundando. A autofundação, no

entanto, é uma sondagem da consciência mesma, do “cogito – sum”. A tendência desse

84 No horizonte da experiência e da compreensão moderna do ser, a mente é a realidade verdadeira e primordial, mas, na mente, se sobressai tanto o pensar (repraesentatio) quanto o querer ou apetecer (appetitio), sendo que, por fim, o querer se afirma como cada vez mais decisivo, à medida que a realidade se torna funcionalidade. É a partir do horizonte da funcionalidade como operacionalidade, eficiência e eficácia, que se impõe também a correspondência entre as funções da subjetividade e as funções da objetividade. 85 Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 87-90.

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andamento é de alcançar o “saber absoluto” (Hegel)86. Absoluto quer dizer: solto em si

mesmo. O saber é absoluto quando o sujeito se sabe como condição de possibilidade de

toda a objetividade.

A ontologia do mundo como sistema se funda, pois, na ontologia do espírito

como subjetividade. Ambos, ontologia sistemática do mundo e ontologia subjetiva do

espírito devem ser mostrados em correlação, como compondo uma constelação

unitária. Assim, o dualismo cartesiano é superado em Spinoza. Natureza e espírito se

mostram, então, como dois modos de aparição de uma e mesma realidade fundamental

incondicionada: “substância” (Deus sive natura). São “atributos” dessa “substância”. São

modos de apresentação dela. Aquilo que em Descartes dependia de Deus, a saber, a

concordância das duas ontologias agora, em Spinoza, aparece como dois modos de

apresentação da mesma realidade fundamental. Leibniz, por sua vez, elucida a diferença

entre os modos, o que não tinha acontecido satisfatoriamente em Spinoza. O que há,

fundamentalmente, é Deus, a mônada originária, infinita. As coisas criadas são cópias

finitas desta. As mônadas criadas têm o mesmo teor ou conteúdo da mônada originária,

só que são finitas. O sistema universal monadológico se contém as mônadas em seus

diferentes graus de clareza e distinção.

A questão da finitude, deixado não aprofundado por Leibniz, é central para Kant.

O todo do ente aparece como sistema justamente para um conhecedor finito (Intellectus

ektypus)87. O conhecer, em sua finitude, precisa receber algo de outro, de fora. Ele tem

que se deixar “dar” seu conteúdo. Isso que é recebido como conteúdo é acolhido numa

86 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 91-94. 87 Kant fez a descoberta de que o conhecimento propriamente científico está baseado sobre juízos que não são nem analíticos (quando o predicado está já contido no sujeito), nem sintéticos a posteriori( quando o predicado acrescenta algo que não estava já contido no sujeito e quando os mesmos, simultaneamente, provêm da experiência), mas sim juízos sintéticos a priori ( que expressam conteúdos que são o resultado de uma síntese ou reunião e que, no entanto, têm o caráter de universalidade e necessidade, não podendo ser provenientes da experiência, já que os dados da experiência são sempre particulares e contingentes). Todos as proposições fundamentais da matemática, da geometria e da física são sintéticos a priori (axiomas, teoremas, leis). Também o são as proposições metafísicas. Perguntando pela condição da possibilidade dos juízos sintéticos a priori, Kant foi conduzido à descoberta da função fundamental que, no conhecimento, exerce o sujeito, isto é, a razão (tomada aqui em sentido lato, isto é, como faculdade gnoseológica em geral e não como a faculdade que se refere às idéias tal como as entendia Kant). O fundamento dos juízos sintéticos a priori é o sujeito que sente e que pensa, ou melhor, não este ou aquele sujeito empírico, mas a subjetividade estrutural humana com as suas leis que regulam seja a sensibilidade seja o intelecto. Trata-se da subjetividade transcendental, não da empírica.

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“rede” de formas pertencentes à subjetividade do sujeito. Esta “rede” é configurada por

formas transcendentais da sensibilidade e do entendimento (Verstand)88. Ela jaz a priori

no espírito humano89. Mas, o que significa “transcendental”, aqui?

No prefácio para a Segunda Edição da Crítica da

Razão Pura de 1789, Kant define transcendental com as

seguintes palavras: “Chamo transcendental todo

conhecimento que não se ocupa tanto com objetos

(Gegenstand) mas com nosso modo de conhecer objetos

(Gegenstand), quaisquer que sejam (überhaupt), enquanto

nos é dado a priori”. (Ich nenne transzendental jede

Erkenntnis die nicht so sehr mit den Gegenstäden, sondern

mit unserer Erkenntnisart der Gegenstände überhaupt

beschäftligt). Esta definição de transcendental se

transformou em método e orientou o modo do

conhecimento filosófico até Schelling. É o método chamado

de transcendental. Com ele Kant inaugura o pensamento

88 Transcendental é aquilo que o sujeito previamente lança e põe no projeto do conhecimento dos objetos, no ato mesmo de conhecê-los. Quando se trata da sensação, isto é, do conhecimento sensível, transcendentais são as formas prévias segundo as quais são ordenados todos os dados da experiência, ou seja, as formas puras da intuição: o espaço e o tempo. Quando se trata do pensamento, ou seja, do conhecimento inteligível, transcendentais são as categorias, conceitos puros do intelecto, verdadeiras leges mentes, que regulam o uso da faculdade intelectiva. Fundamento do objeto é, portanto, o sujeito. O objeto só pode se contrapor ao sujeito porque, no fundo, o supõe. O objeto não se constitui como tal a não ser mediante a representação do sujeito. Mas o sujeito permanece sempre idêntico a si mesmo em toda a mudança e variação das representações. O “eu penso” (Ich denke) acompanha, imutável, ou seja, sempre idêntico a si mesmo, todas as representações. O “eu penso” é o ponto focal onde reúne-se a multiplicidade de tudo aquilo que é percebido e concebido. Tal ponto focal que se constitui na instância estrutural do sujeito, a qual apresenta as características de ser unitária e originária, transcendental e sempre idêntica a si mesma é chamada de consciência. O “eu penso” é ele mesmo representação, mas representação originária, pois não pode ser objeto de uma intuição, no sentido de uma percepção empírica. O “eu penso” é, pois, uma representação que não provém de uma receptividade ou passividade, mas sim de uma espontaneidade. O “eu penso” é dado de modo imediato como apercepção originária ou pura. Tal apercepção é o que caracteriza a consciência como autoconsciência. A unidade subjetiva da multiplicidade objetiva que se dá na autoconsciência é chamada por Kant de unidade transcendental da autoconsciência. O nosso pensamento é, no fundo, uma atividade unificadora, sintetizadora. A forma do intelecto é a apercepção originária. À capacidade de produzir e de configurar, sintetizando, representações que são intermediárias entre o sensível e o inteligível Kant chamou de imaginação transcendental. Esta produz “esquemas” transcendentais que possibilitam aplicar as categorias aos objetos. Kant percebeu que todas as categorias são determinações do tempo. Recuou, no entanto, no esclarecimento deste nexo entre o esquematismo das categorias e o tempo. 89 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 107- 110.

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crítico que na idade moderna moldou o pensamento do

chamado Idealismo Alemão. A prática do pensamento crítico

se estendeu através de Reinhold, Fichte e Schelling

principalmente até depois de Hegel tanto na Direita quanto

na Esquerda Hegeliana. As características desta revolução,

chamada por Kant de “revolução copernicana”, são as

funções a priori do sujeito que antecedem à experiência e

estruturam todo conhecimento válido, i. é, real ou, em

termos kantianos, produzem juízos extensivos

(Erweitenrungseurteile) e não somente explicativos

(Erläuterungsurteile) do conhecimento objetivo. Até Kant o

conhecimento metafísico só conhecia ou o método indutivo

e empírico, um procedimento que sobe da intuição sensível,

onde nos são concedidos os dados (Gegenstände) para o

conhecimento intelectivo onde os dados são pensados e

entendidos, ou o método dedutivo que desce do

pensamento para a experiência. Kant foi o primeiro

pensador da metafísica que se ocupou com as condições de

possibilidade do conhecimento objetivo. O desafio era:

como o sujeito deve ser estruturado e constituído para

poder conhecer objetos com os dados? É a organização do

sujeito que assegura a produção de conhecimentos válidos,

seja referentes aos objetos seja referente ao sujeito. A

estruturação que aparelha a consciência para vir a ser sujeito

de conhecimento e constitui o objeto para ser objeto

conhecido, é horizontal, quer dizer dá-se num plano linear

de funções e atividades do real na plataforma de produção

do ser humano. É o homem reduzido a sujeito de

representação e ação (Emanuel Carneiro Leão).

A abertura da esfera transcendental aprofunda o modo de ser do matemático

(no sentido da fundamentação de toda evidência na autoevidência). É um passo

importante do pensamento em seu andamento reflexivo. Subjetividade e objetividade

se pertencem como momentos correlativos de uma mesma funcionalidade, que é o

processo da representação. O representar, porém, se funda no refletir, na reflexão.

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Refletir é, fundamentalmente, estar a caminho de si mesmo. Só que este caminho tem

um sentido de um regresso. Reflexão é um retorno sobre si mesmo, um virar, um voltar

para si mesmo, um dobrar-se sobre si mesmo (Cfr. N II, p. 397). Só há objeto lá onde

houver sujeito, ou melhor, um “ego cogito”, um “eu penso”, uma “apercepção

transcendental”, ou seja, uma “consciência de si”. Reflexão é, pois, um redobrar-se

sobre si. Na intuição, a consciência põe, no sentido de fazer presente, algo como algo, e

isso ela o faz em referência a si mesma, para si mesma. O tornar presente, pondo diante

de si algo como algo, se dá à medida que a consciência retorna para si, remete-se de

volta para si mesma, fornecendo-se, ante de tudo, a si mesma para si mesma. Somente

a partir da reflexão é que pode haver a formação do conceito, em que algo é posto como

algo e posto como “idêntico”, ou seja, como uma “mesmidade” fixa e constante (Cfr. N

II, p. 422 – 425).

Uma reviravolta decisiva da filosofia kantiana deu-se na interpretação da mesma

da parte do idealismo alemão. A consciência continua exercendo um papel fundamental.

“A subjetividade, o eu da apercepção transcendental, da razão teorética e prática, bem

como da faculdade de juízo, dá o impulso para a metafísica do eu (Ichmetaphysik) de

Fichte e Schelling”90. Note-se que não se trata do eu que pode ser representado como

objeto, isto é, do si mesmo que me é acessível na consciência empírica através do

sentido interno. Trata-se, ao invés, do eu que é sujeito das representações, do si mesmo

transcendental que acompanha e possibilita todas as representações, o qual é acessível

à reflexão através da apercepção transcendental. Trata-se, portanto daquela forma pura

de consciência que Kant chamou de autoconsciência. Para ele a autoconsciência não cria

do nada as representações, uma vez que estas pressupõem como material os dados da

experiência, os quais a afetam através da sensibilidade. A autoconsciência apenas

ordena e sintetiza as formas da representação. Além disso, a autoconsciência é finita,

como finito é o conhecimento humano, uma vez que é delimitado pelo horizonte dos

“fenômenos”.

Entretanto, saber-se finito já não é, de certo modo, transcender a própria

finitude? A tendência da razão (Vernunft) não é justamente a de realizar esta

90 M. Heidegger, Zur Bestimmung der Philosophie, p. 134.

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transcendência? Não é assim que, de há muito, a razão, no pensamento ocidental, é

considerada como uma participação no Espírito infinito? O idealismo alemão parece

caminhar nesta direção. Para Fichte, a autoconsciência é infinita e, mais do que

produtora do conhecimento, é criadora do sentido do real ele mesmo. Com Fichte a

autoconsciência torna-se um eu absoluto91.

Como o pensamento, em seu andamento reflexivo, caminha em sua odisseia de

autoesclarecimento e autofundação? Vejamos. Kant tinha derivado a articulação das

categorias a partir da tábua dos juízos, confiando-se à lógica. Mas a relação entre os

conceitos fundamentais e o eu penso não estava clara. Fichte elucida o sistema dos

conceitos fundamentais a partir da autoconstituição do sujeito. O Eu – este é o seu

pensamento fundamental – só é a partir de uma autoposição (o Eu põe-se a si mesmo).

Só é enquanto é ativo nesta autoposição. O todo do ente aqui permanece sendo o

cognoscível. Conhecer quer dizer, no entanto, referir o que acontece a “si mesmo”, ao

eu. Para que algo outro seja reconhecido como diferente, como não eu, é preciso que,

com a posição da diferença, já tenha se dado a autoposição do eu (identidade)92. Este

eu, que é princípio da realidade, não é um fato, mas sim um ato. É, na verdade, um ato

originário, a atividade de pôr-se a si mesmo (tese). O eu absoluto é posto de modo

absolutamente incondicionado. É infinito e ilimitado porque põe tudo aquilo que é. E

tudo aquilo que ele põe o põe como eu. O eu absoluto, que é identidade absoluta põe

também o que ele mesmo não é, isto é, põe a diferença de si mesmo: o não-eu (antítese).

Deste modo, o que chamamos de “mundo”, de “objeto”, de “real” não é outra coisa que

uma posição do eu absoluto que, restringindo-se e contraindo-se na sua infinitude, deixa

ser e aparecer o outro de si mesmo como o seu próprio limite e negação; ou melhor, o

eu absoluto, ao pôr o não-eu como delimitado e delimitador imediatamente restringe a

si mesmo, tornando-se, portanto, um eu de-terminado (síntese). Nesta dialética,

segundo Fichte, está a origem do juízo sintético a priori e, por conseguinte a origem das

categorias transcendentais que possibilitam a ciência.

91 Cfr. J. G. Fichte, Dottrina della Scienza, 75-102. 92 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 111-112.

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O andamento reflexivo do pensamento ganha uma nova estação de

autoelucidação e de autofundação em Schelling. A filosofia, aqui, se propõe como

sistema do idealismo transcendental. Ela parte da autoconsciência como a instância

originária da gênese da totalidade de tudo aquilo que é. Schelling diz expressamente: “a

autoconsciência da qual nós partimos, é ato uno e absoluto; e com aquele ato uno é

posto não somente o eu mesmo com todas as suas determinações, mas também toda

outra coisa que é posta em geral para o eu”93. Também para Schelling o eu é ato

originário, uno e absoluto, que põe não somente a si mesmo como também o não-eu. O

que chamamos de ideal e real só pode ser entendido a partir da copertença destes ao

eu absoluto, ou seja, ao ato primordial da autoconsciência pelo qual são postos

dialeticamente: “O ato da autoconsciência é ideal e real ao mesmo tempo e

absolutamente. Graças a este aquilo que foi posto realmente, se torna idealmente

também real e aquilo que se põe idealmente é posto também realmente”94.

Para Schelling, o todo do ente se constitui, no fundo, como vários níveis de

consciência e autoconsciência, logo, também como vários níveis de egoidade. Tudo o

que vive é um eu. Enquanto e à medida que tem vida, tem egoidade. Ora, ser é viver.

Logo, todo o ente elabora uma forma própria de egoidade. Já o ser nas constelações do

sistema estelar mostra certa vitalidade. Foi por isso que os antigos, ao olhar para os

céus, não viam simples corpos inanimados. Viam, antes, corpos animados por “espíritos”

(dinâmicas vitais). Viam nos astros “deuses”. No reino mineral e das pedras a vida dorme

e sonha. Na vida das plantas há um primeiro despertar e a egoidade é inconsciente. Na

vida dos animais, a vida torna-se consciente. Na vida dos homens, autoconsciente. Se

tudo o que é vive; se tudo o que vive tem egoidade; se a egoidade do eu consiste na

autoposição e se sua atividade se realiza num jogo de identidade e diferença; então, o

universo é um único e multidimensional acontecer de posições e autoposições, um

autonascimento da realidade efetiva (Wirklichkeit), que, no seu todo, pode ser

considerada como a única e unificadora vida da deidade95.

93 F. W. J. Shelling, Sistema dell’idealismo trascendentale (cap. III, avvertenza), 145. 94 F. W. J. Shelling, Sistema dell’idealismo trascendentale (cap. III, avvertenza), 145. 95 Cfr. Rombach, Heinrich. Grundprobleme Die Gegenwart der Philosophie: Die der abendländischen Philosophie und der gegenwärtige Stand des philosophischen Fragens. 3., grundlegend neu bearbeitete Auflage. Freiburg / München: Verlag Karl Alber, 1988, p. 112-113.

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Hegel leva à consumação o andamento do pensamento reflexivo, auto-

esclarecedor e auto-fundante da modernidade. Nele, o matemático e o transcendental

são elevados a um nível superior, a saber, o nível do idealismo especulativo. É quando

toda a estrutura e movimento da subjetividade do sujeito se desdobra ao auto-saber-se

absoluto. Isso quer dizer: é quando o sujeito se sabe como tal saber que condiciona toda

a objetividade. O sujeito é, agora, no modo de tal saber, o absoluto mesmo. Como se

dá, porém, no idealismo especulativo, o encaminhamento do pensamento da metafísica

da subjetividade para o saber absoluto?

Antes de tudo, neste encaminhamento, a noção de consciência deve ser

superada naquela de autoconsciência. É que consciência supõe sempre o ser sujeito em

sua relação com o objeto e concebe este como fora de si, outro de si, independente de

si. A autoconsciência, porém, é justamente a supressão desta alteridade e exterioridade.

“A verdade da consciência é a autoconsciência, e esta é o fundamento daquela; de tal

modo que na existência a consciência de um outro objeto é autoconsciência; eu sei o

objeto como meu (este é minha representação), por isso, neste [objeto] eu sei a mim

mesmo”96. Da viagem da consciência, em que esta passa a se saber a si mesma como

autoconsciência, nos fala a obra “Fenomenologia do Espírito”, de 1807. Nesta obra,

Hegel tem em vista a filosofia como “ciência da experiência da consciência”, ou melhor,

como “sistema da ciência”. Ciência (Wissenschaft) é, aqui, entendida na linha da

“mathesis universalis” ou “scientia generalis” de Descartes, ou seja, como o saber, ou

melhor, a sabença universal, a sabença do Todo97.

Este saber do Todo aparece em Hegel como “Wissenschaft” 98 (ciência, no

sentido de sabença). Hegel entende que a filosofia é “o real saber daquilo que em

verdade é”. Aquilo que, para Hegel, “em verdade é” é o “espírito” e a essência do

espírito consiste na autoconsciência. Em Hegel alcança a consumação o andamento do

pensamento da metafísica da subjetividade do pensamento moderno: o primado do

96 G. W. F. Hegel, Enzykopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse (par. 344), 251. 97 A noção de ciência universal, porém, remonta a Aristóteles. Na Metafísica ele diz: “Há uma ciência que considera o ente enquanto ente e aquelas propriedades que lhe competem enquanto tal. Esta ciência não se identifica com nenhuma das ciências particulares: de fato, nenhuma das outras ciências considera o ente enquanto ente de modo universal, mas, depois de ter delimitado uma parte do ente, cada uma estuda o que é concomitante a esta parte. Assim fazem, por exemplo, as matemáticas” (Metafísica Gama 1003 a 20 – 26). 98 Wissenschaft vem wissen: saber.

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“cogito ergo sum” como sendo o que há de mais sabível em toda a sabença e na sabença

de tudo, o primado da “mens sive animus”, o primado da “ratio” ou “Vernunft”, o

primado do “Geist” (Espírito). Em lições sobre a história da filosofia, Hegel, depois de

falar de Bacon e de Jakob Böhme, ao falar de Descartes diz:

Só agora nós chegamos propriamente à filosofia do

mundo moderno e a começamos com Descartes. Com ele

penetramos propriamente em uma filosofia autônoma que

sabe que provém autonomamente da razão e que a

consciência de si mesmo é o elemento essencial do

verdadeiro. Aqui podemos dizer que estamos em casa e,

como o navegante depois de um longo vagar pelo impetuoso

mar, podemos gritar: “terra!”... Neste novo período é o

princípio do pensar o pensar que parte de si mesmo.

A autoconsciência (consciência de si mesmo) é, pois, o elemento do pensamento

decisivo para Hegel. “Autoconsciência” (Selbstbewusstsein) é categoria chave na

metafísica da subjetividade que nele vem à realização. Mas, o que diz esta categoria

como chave do pensamento em Hegel, e, portanto, no fim da modernidade, isto é, na

consumação da modernidade enquanto plenitude da consumação da metafísica?

Diz o processo de conquista, de controle e domínio

de sua realização que o ser humano tem de si mesmo, em si

mesmo e por si mesmo, tanto a respeito de sua identidade

consigo mesmo, como a respeito de sua diferença de tudo

que é e está sendo e não sendo. É o movimento superlativo,

a máxima intensidade de realização humana da humanidade

no homem. Não se trata apenas de uma transparência para

si mesmo do si mesmo. É o empenho por tudo que distingue

o homem, como homem, seja na ação e no conhecimento,

seja no sentimento e na mobilização de qualquer figura ou

configuração, de toda forma ou modo de realização. A

natureza do Selbst-be-wusst-sein é de concentração,

condensação e reunião, que não apenas nada perde ou deixa

escapar, como, sobretudo, faz tudo render e produzir no

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máximo grau de potencialidade. Está em jogo o poder de

tomar posse, de captar e apreender a totalidade de tudo na

dinâmica de uma unidade de acolhimento e preservação. É

um movimento de compactação e compensação que

percorre composição por meio e através da oposição de

posições sempre mais exaustivas e intensivas. As estações,

as funções e configurações deste percurso de busca de si

mesmo da consciência são as formas e figuras de sua

conquista e performance. Por isso, nunca se deve confundir

o Selbst-be-wusst-sein, uma dinâmica de ser, com as formas,

os modos, as figuras de si mesmo, em que se locupleta a si

mesma de si mesma99.

Na consciência vige, isto é, vigora e reina, ser (sein). Este ser se caracteriza como

auto-presença e auto-sabença. A verdade da consciência se dá como autoconsciência. A

autoconsciência, porém, é movimento, encaminhamento. É todo um dinamismo de

realização da identidade humana. No idealismo alemão (Fichte, Schelling, Hegel)

aparece claro que a identidade não é mera igualdade (A = A). A identidade inclui, em sua

realização, autoposição e heteroposição. A realização concreta da identidade não deixa

de fora, antes, inclui, a mediação dialética da diferença. Identidade inclui a relação

consigo mesmo e a relação com o outro. No diálogo “Sofista” (254 d), Platão, falando de

(stásis), repouso, e(kínesis), movimento, põe na boca do estrangeiro,

a seguinte indicação:

(oukoun auton

hékaston toin men dyoin hetón estin, autò d’heautõ tautón): “entretanto, cada um deles

é um outro, ele mesmo, contudo, para si mesmo o mesmo”. Platão não diz

simplesmente: cada um deles é ele mesmo o mesmo, mas diz, antes: cada um deles é

ele mesmo para si mesmo o mesmo. Isto é, cada um é dado a si mesmo como o mesmo.

Na identidade vige, pois, não meramente um ser si mesmo, mas vigora e reina um

relacionamento de si consigo mesmo. O “com” pertence, pois, à identidade. Este “com”

significa uma mediação. Embora isso já apareça em Platão, é somente no idealismo

99 Leão, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia do Espírito de Hegel. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 141-142.

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especulativo (preparado por Leibniz e Kant e posto em obra por Fichte, Schelling e

Hegel) que essa mediação vem à tona com toda a clareza. A vigência da identidade é,

pois, sintética, isto é, se dá como uma com-posição. A com-posição está tanto na

autoposição como na heteroposição. A unidade da identidade não é uniforme,

monótona. Ademais, a identidade não exclui a diferença. Em sua realização está em

jogo, sempre de novo, o relacionamento com a diferença100. Ela se dá como uma

abertura e um acolhimento da totalidade.

O movimento da realização da autoconsciência, pois, se dá não só como

conquista da identidade, mas também como conquista da integração com a diferença.

Este movimento é, na verdade, dialético. “É um movimento de compactação e

compensação que percorre composição por meio e através da oposição de posições

sempre mais exaustivas e intensivas”101. No idealismo especulativo, a dialética é o

movimento de produção da subjetividade.

Com o ego cogito, a subjetividade é a consciência

que representa algo, que retro-refere o representado a si

mesmo e, assim, o recolhe junto de si. Recolher significa, em

grego, [légein]. Recolher o múltiplo para o eu,

reunindo-o nesse eu, significa, expresso na voz média,

[légesthai]. O eu pensante recolhe o

representado, porquanto por ele passa, perpassando-o em

sua representabilidade. “Através de algo” quer dizer em

grego: [diá]. [dialégesthai], dialética,

significa aqui que o sujeito faz surgir sua subjetividade em

um tal processo e enquanto o é: que ele a produz102.

Em que consiste esta produção da subjetividade na dinâmica da realização do

sujeito? Como ela se dá?

100 Cf. Heidegger, Martin. O princípio da identidade. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 173-174. 101 Leão, Emmanuel Carneiro. A fenomenologia do Espírito de Hegel. Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 142. 102 Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 439.

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A dialética é o processo de produção da

subjetividade do sujeito absoluto e, enquanto tal, a sua

“ação necessária”. De acordo com a estrutura da

subjetividade, o processo de produção tem três níveis.

Primeiro, o sujeito enquanto consciência, se refere

imediatamente aos seus objetos. O que é imediato e,

contudo, é representado de maneira indeterminada,

também é designado por Hegel como “o ser”, o geral, o

abstrato. Pois nisso ainda se abstrai da relação do objeto

com o sujeito. Somente por meio desta retro-referência que

é a reflexão, o objeto é representado enquanto objeto para

o sujeito e esse para si mesmo, e isto quer dizer, enquanto

referindo ao objeto. Todavia, enquanto só distinguimos

objeto e sujeito, ser e reflexão, opondo-os um ao outro, e

enquanto nos fixarmos nessa distinção, o movimento do

objeto em direção ao sujeito ainda não terá manifestado a

totalidade da subjetividade para ela. O objeto, o ser, está,

não há dúvida, mediado pela reflexão com o sujeito, mas a

própria mediação ainda não está representada enquanto o

mais íntimo movimento para ele. Somente quanto a tese do

objeto e a antítese do sujeito são descobertas em sua

necessária síntese, o movimento da subjetividade da

relação-objeto-sujeito está plenamente em marcha. A

marcha é um partir da tese, avançar em direção à antítese e

passar para o interior da síntese, voltando a si mesma a partir

dessa síntese como totalidade do retorno da posição posta.

Esta marcha recolhe a totalidade da subjetividade em sua

unidade desdobrada. Desta maneira, ela con-cresce, con-

crescit, torna-se concreta103.

O ser da autoconsciência é devir. E o devir da autoconsciência consiste no

conhecer a si mesmo (Selbsterkennen). O sujeito é impelido pelo apetite ou desejo

103 Idem, p. 440.

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(Begierde) de autoconhecimento. Autoconsciência é o tornar-se sabedor de si mesmo

naquilo que essencialmente se é (seiner selbst im Wesen bewusst-werden). O devir da

autoconsciência é o seu manifestar-se a si mesmo na essência ou vigência

(Selbsterscheinen im Wesen). Através desta automanifestação o sujeito é conduzido ao

reconhecimento de seu ser-si-mesmo (Selbstsein), de sua ipseidade (Selbstheit). O

reconhecimento do ser-si-mesmo inclui o eu e o seu objeto e a relação entre o eu e o

seu objeto. O máximo da autoconsciência, porém, é o reconhecimento do

reconhecimento da ipseidade (Anerkennung der Anerkenntnis der Selbstheit). O

reconhecimento (Anerkenntnis), por sua vez, é um ser-em-si-mesmo e, ao mesmo

tempo, um ser-por-si-mesmo (An-und-für-sich-Sein).

O autoconhecer deve ser “puro” (rein), isto é, completo e incondicionado, isto

quer dizer, realizado a partir do incondicionado (Unbedingt), da pura subjetidade (reine

Subjektität). Heidegger distingue entre os termos “subjetidade” (Subiectität) e

“subjetividade” (Subjektivität).

A denominação “subjetidade” intenciona sublinhar

que o ser é determinado, sim, partindo de um subiectum,

mas não necessariamente por meio de um eu. Ademais, ao

mesmo tempo o título contém uma remissão ao

hypokeímenon e, portanto, ao início da metafísica, mas

também o prenúncio do proceder da metafísica moderna, a

qual, com efeito, reclama a “egoidade” (Ichheit) e sobretudo

a ipseidade (Selbstheit) do espírito como traço essencial da

verdadeira realidade.

Se por subjetividade se intenciona isto, a saber, que

a essência da realidade em verdade – ou seja pela

autocerteza da autoconsciência – é mens sive animus104,

104 Mente ou ânimo/espírito. Cfr. Descartes.

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ratio105, Vernunft106,, “Geist”107, então a “subjetividade”

aparece como um modo da subjetidade.

No pensamento grego a subjetidade aparece, inicialmente, como a vigência da

(physis): o surgimento e o eclodir com sua prejacência e o todo do ente que vem

à luz, céu e terra, e tudo quanto há vigora, incluindo os homens e os deuses; depois,

como a vigência da presença permanente, constante, a (ousía), que Platão

experimentou e pensou como (idea), o aspecto comum, e Aristóteles, como

(enérgeia), o ser em obra consumado na sua singularidade. No pensamento

medieval, por sua vez, a (ousía) se transforma em substantia, o ens in se (ente em

si). Substância por excelência, porém, é o ens a se (ente a partir de si), isto é, Deus, o

ipsum esse subsistens (ser mesmo subsistente). Ele é o oceano infinito da substância.

Nele, o actus essendi (ato de ser) é puro: ele é actus purus (ato puro). A ele pertence a

máxima actualitas (atualidade, realidade). Enquanto tal, ele rege todas as coisas. Ele

funda o todo do ente como creatio (criação). Este aparece, ali, como ens creatum (ente

criado). Esta fundação tem o sentido de causação ôntica do real. Já no pensamento

moderno, porém, o ente é tomado no sentido do cognoscível. A substantia que agora

assume o caráter de subiectum (fundamento, sustentáculo) em sentido próprio é a res

cogitans, a consciência, ou melhor, o cogito – sum. O fundar do sujeito tem o sentido,

agora, primeiramente, de possibilitação transcendental da objetualidade dos objetos

(Kant); depois, de mediação dialética do movimento do espírito absoluto (Hegel)108.

A pura subjetidade aparece, agora, como a subjetividade no sentido do espírito

absoluto. A autoconsciência é a consciência que vem a se saber como condição de

possibilidade de toda objetividade enquanto tal. O sujeito é fundamento: fundamento

como condição de possibilidade da posição do objeto enquanto o que é representado,

isto é, enquanto o que é posto diante de si mesmo109. Entretanto, o que é condição de

105 Razão. Cfr. Descartes, Leibniz, Espinosa, o “racionalismo”, como também o “empirismo”: Locke, Hume, Berkeley. 106 Em alemão, Vernunft é razão. Conceito fundamental em Kant. “Vernunft” vem de “vernehmen”: perceber. Em „vernehmen“, porém, temos a intensificação do verbo „nehmen“, que é receber, tomar. 107 Em alemão, “Geist” é espírito. Conceito fundamental em Hegel. 108 Cf. Heidegger, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e Escritos Filosóficos. São Paulo: Editora Nova Cultural (Os Pensadores), 1999, p. 96. 109 Representar é “Vor-stellen”: pôr diante de si mesmo, como presente para si mesmo.

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possibilidade de toda objetividade, o sujeito, é, ele mesmo incondicionado, isto é, se dá

como incondicionada certeza (un-bedingte Gewissheit).

A autoevidência da auto-presença que se dá na autoconsciência se investe e

reveste do caráter de certeza: autoasseguramento. Em Hegel, como em Descartes, a

verdade enquanto adequação se determina como certeza 110. A verdade é a adequação

entre o representado e o representar, ou melhor, o ser representador. Esta adequação

é, mais fundamentalmente, certeza. Por sua vez, a certeza, ou seja, o estar e ser certo,

não é um acréscimo, mas sim o fundamento essencial do representar (Vorstellen). No

ser e estar certo reside o assenso de um juízo (Urteil)111. No assentir (Zustimmen)

acontece um reconhecer (Anerkennen). E, neste assentir como reconhecer se dá o

autoasseguramento de um sujeito. Verdadeiro é o real – a realidade por excelência. O

verdadeiro é substância112: a consciência imediata do objeto. Substância é a

imediatidade do saber (da consciência de) e a imediatidade do sabido (o ser). Acima

disso, porém, o verdadeiro é o sujeito, não somente como consciência imediata do

objeto, mas como consciência imediata de si mesmo: o sujeito como autoconsciência –

um saber, uma sabença de si mesmo. O verdadeiro é, pois, o certo, e o certo é o

incondicionado, isto é, o sujeito como sabedor de si mesmo, quer dizer, a

autoconsciência. Assim, o sujeito não só se sabe como condição de possibilidade de

toda objetividade, mas também se sabe, isto é, se autorreconhece, como

incondicionado em sua autocerteza. Estas duas prerrogativas do sujeito o torna

absoluto.

No entanto, como vimos, o movimento da autoconsciência é dialético. Ele

acontece no jogo de identidade e diferença. Autoconsciência é, neste sentido, “o puro

autoconhecer no absoluto ser-outro” (Das reine Selbsterkennen im absoluten

Anderssein). O que isto quer dizer? Vejamos.

110 As anotações que aqui são expostas sobre Hegel provêm de uma leitura de Heidegger: “Die Metaphysik des deutschen Idealismus” GA 49 (1941): p. 174-186. 111 Assensus: assenso, assentimento – adesão mental a uma proposição, isto é, aceitação da verdade desta proposição. 112 Sub-stantia no sentido de sub-sto: estou por debaixo, como fundamento de, neste caso, como representador do representado.

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O “puro autoconhecer” se dá no “absoluto ser-outro” (im absoluten Anderssein).

O “si mesmo” em seu “manifestar-se” é, enquanto si-mesmo, o outro de si mesmo.

Assim, o incondicionado aparece como condicionado. É nos condicionamentos

históricos que a consciência se perde, se aliena, ou seja, se torna outra de si mesma.

Mas é também a partir dos condicionamentos históricos que a consciência se recupera,

se encontra, se apropria daquilo que é seu. Nos condicionamentos históricos, a

consciência se perdeu em sua alienação (Entfremdung). Mas é a partir dos

condicionamentos históricos que a consciência busca se reencontrar a si mesma, se

reconhecer a si mesma naquilo que ela essencialmente é. O caminho histórico, a viagem

da experiência (Erfahrung) da consciência, vai dando à consciência um crescente e cada

vez mais essencial saber de si mesma, propiciando, assim, um reencontro consigo

mesma, sendo, assim, um caminhar em que a consciência se liberta da finitude de seus

condicionamentos para a infinitude, para o Absoluto. A odisseia da consciência leva-a ao

saber de si mesma como autoconsciência, ou seja, a tornar-se espírito. Mas, ao tornar-

se espírito, a autoconsciência se sabe a si mesma como sendo no Absoluto. Assim, o

caminho da autoconsciência em suas diversas estações prepara o salto no Absoluto. A

consciência se torna infinita e simples (una) no saber do Absoluto. Este saber se articula

como arte, religião e, enfim, filosofia. Na filosofia, o saber do Absoluto se consuma.

Em sua odisseia, antes de tudo, a consciência se encontra a si mesma alienada,

dispersa, dividida e dilacerada. Mas, como diz um fragmento de Hegel, “uma meia

remendada é melhor do que uma meia rasgada, mas não é assim no tocante à

autoconsciência”. Isto quer dizer: a autoconsciência dilacerada é melhor do que a

remendada.

Hegel percebe o “monstruoso poder do negativo” (die ungeheure Macht des

Negativen). A negatividade arranca a consciência do seu “existir” imediato, que, na

verdade, é uma falsa consciência, uma afirmação abstrata de si mesma. O negativo,

como negação da primeira afirmação é o que põe em movimento, em devir, a viagem

da consciência. O “não” tem o caráter de pôr em movimento, de encaminhar, tem o

caráter de provocar a passagem, a transição, na viagem da consciência. O “sim” é o puro

permanecer e estacionar. O não faz partir, deixar, e, ao mesmo tempo, encaminha,

destina, envia para novas configurações, em que a consciência vai se reencontrando no

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saber de si mesma e, por fim, de si mesmo como no Absoluto. O não é a energia do

movimento, do devir. O não liberta dos condicionamentos e dispõe para o

incondicionado, para o infinito, o Absoluto. O não cria caminho, faz transcender, eleva

a consciência no saber do Absoluto.

Na inquietude do devir, instigada pela negatividade, a consciência vai sendo

urgida a se “desconfigurar” e a se “reconfigurar”. A autoconsciência vai, assim,

conquistando-se a si mesma, por meio do processo dialético. Historicamente, uma

antítese (negação, oposição), põe em xeque uma tese (afirmação, posição),

desinstalando e desconfigurando a consciência já instalada e constituída. Mas é

negando-nos que nós nos determinamos. Entretanto, a negação não pode ser uma mera

exclusão. Assim, ambas, tese e antítese, afirmação e negação, posição e oposição,

devem ser subsumidas e elevadas, superadas e conciliadas, numa nova síntese, ou seja,

numa nova composição. Mas, qual o sentido último desta “inquietude do devir”? O devir

é o devir da consciência como autoconsciência, da autoconsciência como espírito, do

espírito como saber absoluto do Absoluto. Ele tende, pois, para alcançar o “sistema da

ciência” (System der Wissenschaft).

O encaminhamento dialético da autoconsciência é especulativo. Mas, o que quer

dizer “especulativo”?

Somente quanto a tese do objeto e a antítese do

sujeito são descobertas em sua necessária síntese, o

movimento da subjetividade da relação-objeto-sujeito está

plenamente em marcha. A marcha é um partir da tese,

avançar em direção à antítese e passar para o interior da

síntese, voltando a si mesma a partir dessa síntese como

totalidade do retorno da posição posta. Esta marcha recolhe

a totalidade da subjetividade em sua unidade desdobrada.

Desta maneira, ela con-cresce, con-crescit, torna-se

concreta. É de tal modo que a dialética é especulativa. Pois

speculari quer dizer procurar ver, receber dentro do campo

visual, compreender, con-ceber. Hegel diz na introdução da

Ciência da Lógica (ed. Lasson, vol. I, p. 38): a especulação

consiste “em compreender o oposto em sua unidade”. A

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caracterização hegeliana da especulação toma contornos

mais precisos se atentarmos para o fato de que na

especulação não é importante apenas a compreensão da

unidade, a fase da síntese, mas que antes importa sempre o

compreender “do que se opõe” enquanto tal. Disto faz parte

o compreender do aparecer da oposição e imbricação do que

é oposto – como tal impera a antítese, que é exposta na

“lógica da essência” (quer dizer, a lógica da reflexão). Do

aparecer reflexivo, quer dizer, do espelhamento, o speculari

(speculum: o espelho) recebe sua determinação suficiente.

Pensada assim, a especulação é a totalidade positiva daquilo

que a “dialética” quer aqui significar: não um modo de

pensar transcendental, criticamente restritivo ou mesmo

polêmico, mas o espelhamento e a unificação daquilo que se

opõe como o processo da produção do próprio espírito113.

O encaminhamento dialético do pensamento é concreto (implica a concreção

real do todo) e especulativo (implica o espelhamento e a unificação daquilo que se opõe

como o processo da produção do próprio espírito). A filosofia, a mathesis universalis ou

scentia generalis, se torna, aqui, “sistema da ciência”. A “ciência”, pura e simples, sem

qualificativo, é a sabença que surge da experiência (viagem histórica) da autoconsciência

na dinâmica da produção da subjetividade que alcança o absoluto. As hoje chamadas

ciências (axiomáticas ou empíricas) são chamadas por Hegel de ciência matemática e

ciência positiva. A filosofia não é uma ciência. Isto é: ela não é uma ciência entre outras,

no sentido da ciência positiva: uma ciência sem autoconsciência (perdida, como diria

Husserl, na positividade). É a ciência. É a ciência que surge do supremo movimento

dialético da autoconsciência. Ela é uma reflexão racional e sistemática do todo do ente

(real) na perspectiva do ser (realidade). Ela almeja o todo do ente, que se dá como

mundo, homem e Deus (cf. Leibniz, Wolff, Kant). A realidade do real como um todo deve

se espelhar nela em sua dinâmica dialética de posições, oposições e composições. O

todo do ente se estrutura em três polos: “o mundo como totalidade das experiências

externas, a alma como totalidade das experiências internas e Deus, como totalidade de

113 Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 440.

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todas as totalidades tanto externas, como internas”114. Cada um desses polos se

constitui como uma universalidade concreta. Trata-se, com efeito, cada vez, de uma

abrangência real e não de uma generalidade abstrata. O mundo é uma universalidade

concreta: a abrangência da imensidão do ser em que o homem precisa instalar-se para

ser homem. O mundo abrange natureza e cultura. Sem o enraizamento em um meio

natural e numa cultura o homem não realiza a sua humanidade, isto é, não se torna

humano. A alma é a profundidade do ser, a força e o dinamismo do viver, que vigoram

no homem. É o reino do espírito humano no sentido da consciência e da liberdade. Deus,

aqui, é a abrangência absoluta e infinita, a totalidade que recolhe as outras duas

totalidades. É uma abrangência que tudo compreende. É o continente de todo o

conteúdo. É o superlativo do ser. O homem só é homem se relacionando com o mais-

que-humano, com aquilo que ele reconhece e sente como se dando no mundo e no

espírito sem ser do mundo e do espírito, como aquilo que está com ele, mas não provém

dele.

Na realização de todo o real a realidade está se dando em devir articulando

dialeticamente estes três polos, o objetivo, o subjetivo e o absoluto. Por exemplo: numa

obra de arte há algo objetivo, mundano (natural e cultural); mas a obra de arte não se

esgota nesse objetivo. Nela vige também algo de subjetivo, a saber, a liberdade criadora

do artista, bem como o acolhimento interpretativo dos que a recebem, que se sentem

provocados pelo seu atingimento, pelo poder de mobilização da realidade humana que

a obra põe em obra. Nela reina, porém, algo que transcende tudo isso. Há um mistério

que escapa a toda objetividade natural e cultural, que se subtrai a toda a interpretação

e a toda a vivência, seja do artista, seja dos que a consideram em suas vidas. Há algo que

transcende as intenções dos criadores e dos receptores. É a esta transcendência que se

referem os gregos quando experimentam o saber artístico sob o toque de uma

inspiração divina, ou seja, quando veem a obra de arte surgir sob a égide das musas,

filhas de Zeus e de Mnemosyne. É a esta transcendência que se referem os modernos

quando pensam a criatividade artística sob a égide do gênio. Isso quer dizer fazer a

experiência de que a inspiração rege e supera toda a transpiração do empenho artístico.

114 Leão, Emmanuel Carneiro. O silogismo especulativo em Hegel. In: Aprendendo a Pensar I: O pensamento na modernidade e na religião. Teresópolis: Daimon, 2008, p. 112.

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Não só o mérito está em jogo na inventividade artística, mas também a gratuidade da

inspiração, isto é, a graça, que vige como gratuidade e graciosidade e jovialidade115.

O encaminhamento dialético, concreto e especulativo, do pensamento é lógico,

isto é, pertencente ao lógos. Mas, o que quer dizer, aqui, “lógos”? Lógos é, aqui, a

reunião de todo o ente no ser, o recolhimento de mundo, homem e Deus. É a realidade

em sua força de recolhimento na expansão. É a unidade de realidade, realização e real.

A realidade vige em devir. Antes de tudo, a realidade se exterioriza como natureza. Ela

se dá na estruturação limitada do sensível. Essa exteriorização da realidade é negativa.

O lógos se estranha a si mesmo como natureza. A natureza é a negação do lógos, sua

alienação. A ultrapassagem da natureza na direção do espírito é, neste sentido, uma

libertação do lógos. O espírito é o oposto da natureza. A negação da negação se dá pelo

espírito. A realidade se mostra, então, como uma afirmação concreta, a afirmação da

liberdade. “Este espírito, que se realiza no homem, subjetivamente, e na história da

cultura e da sociedade, objetivamente, alcança e atinge na arte, na religião e, por fim,

na filosofia, uma realização completa, soberana e absoluta, isto é, a locupletação total

da essência enriquecida e concreta da realidade. Assim se cumpre e se completa o

sistema dialético numa circularidade perfeita: partindo do Lógos, a realidade retorna ao

Lógos pela mediação da natureza e do espírito”116.

O encaminhamento do pensamento moderno, no sentido de seu

autoesclarecimento e de sua autofundação alcança em Hegel, isto é, na auto-atuação

da autoconsciência seu fim, isto é, sua consumação, sua plenitude. Este

encaminhamento pode ser chamado de “o método”. O pensamento moderno começa

com o Discours de la méthode de Descartes (1637). Aquilo que começou como o

matemático e que se transformou no transcendental termina como “dialética

especulativa” em Hegel. Ele chamava a dialética especulativa simplesmente como “o

método”.

Com esta expressão ele não se refere nem a um

instrumento da representação, nem apenas a um modo

particular de a filosofia proceder. “O método” é o

115 Cf. Idem, p. 112-117. 116 Cf. Idem, p. 121.

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movimento mais íntimo da subjetividade, “a alma do ser”, o

processo de produção, por meio do qual a tessitura da

realidade do absoluto é efetivada (...). O método, ou seja, a

dialética especulativa, é para Hegel o rasgo essencial de toda

a realidade. Por isso, o método determina enquanto tal

movimento tudo o que acontece, isto é, a história117.

Para Hegel, a filosofia é uma “época condensada em pensamentos”. Ela é a

manifestação mais íntima do “espírito da época” (Zeitgeist). É o modo como os homens

compreendem e tomam consciência da realidade. Em Hegel, o “espírito moderno”

chega à sua realização e à sua manifestação plena. “O método” diz um traço essencial

deste espírito. Que o digam a ciência e a técnica. Mas, sobre isso veremos depois.

Entretanto, se perguntarmos: o que é que está em questão no encaminhamento do

pensamento enquanto método? A resposta será: a subjetidade enquanto subjetividade

e sua destinação, sua história.

Agora torna-se claro em que medida a história da

filosofia é o mais íntimo movimento da marcha do espírito,

quer dizer, da subjetividade absoluta em direção a si mesma.

Ponto de partida, avanço, passagem, retorno dessa marcha:

tudo é determinado especulativo-dialeticamente.

O fim, porém, não precisa ser o término, a cessação. O fim também não precisa

ser uma decrepitude. Pode ser uma plenitude. O fim pode continuar findando em

variadas formas.

Talvez, Hegel (o pensamento especulativo-dialético) seja o fim não só

pensamento moderno. Talvez seja também o fim da filosofia (isto é, do pensamento

ocidental enquanto metafísica).

Hegel diz: “Na filosofia enquanto tal, na presente, na

derradeira, está contido tudo o que o labor de milênios

produziu; ela é o resultado de tudo o que antecedeu” (ed.

Hoffmeister, 1940, p. 118). No sistema do idealismo

117 Heidegger, Martin. Hegel e os gregos. In: Marcas do Caminho. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 440-441.

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especulativo, a filosofia consumou-se, atingiu, em outras

palavras, seu ponto mais alto e está, a partir dele, encerrada.

A proposição hegeliana acerca da consumação da filosofia

escandaliza. Julgam-na pretenciosa e caracterizam-na como

equívoco que já foi há muito refutado pela história. Pois,

após a época de Hegel, continuou e continua existindo

filosofia. Mas a proposição sobre a consumação não quer

dizer que a filosofia chegou ao fim, no sentido de um deixar

de existir e de uma interrupção. Muito ao contrário, a

consumação exerce justamente a possibilidade de múltiplas

formas novas, até as mais simples: a brutal inversão e a

maciça contraposição. Marx e Kierkegaard são os maiores

entre os hegelianos. São-no contra sua vontade. A

consumação da filosofia não é nem seu fim, nem consiste

apenas no sistema isolado do idealismo especulativo. A

consumação somente é como marcha total da história da

filosofia, marcha na qual o começo permanece tão essencial

quanto a consumação: Hegel e os gregos118.

Nossa tarefa agora é continuar a investigar como esta consumação continuou se

realizando na possibilidade de múltiplas formas. É o nosso próximo passo.

118 Idem, p. 441.