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08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro https://piaui.folha.uol.com.br/materia/filmes-de-comentario/ 1/21 Q EDIÇÃO 163 | ABRIL_2020 questões audiovisuais FILMES DE COMENTÁRIO Diretores de Contagem, cidade industrial em Minas Gerais, renovam o cinema brasileiro TIAGO COELHO Os diretores de Contagem: eles rechaçam a ideia de que sejam representantesdas pessoas da periferia. Nós falamos com essas pessoas, não em nome delas, diz Maurílio Martins ILUSTRAÇÃO: VITO QUINTANS_2020 uando Gabriel Martins chegou à Rua Imbuia, em Contagem, cidade vizinha a Belo Horizonte, acenou para um velhinho branco que descansava numa cadeira de balanço na entrada de uma pequena loja de móveis usados. Ô, Seu Delardino!, disse o rapaz negro, de 32 anos, cabelo black, indo até o homem para cumprimentá-lo. Como vai o senhor? Bom demais?Delardino balançou a cabeça positivamente e perguntou: E os filmes?Estão indo, logo sai mais um.

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08/04/2020 Diretores de Contagem, cidade mineira, renovam o cinema brasileiro

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Q

EDIÇÃO 163 | ABRIL_2020

questões audiovisuais

FILMES DE COMENTÁRIODiretores de Contagem, cidade industrial em Minas Gerais, renovam o cinema brasileiro

TIAGO COELHO

Os diretores de Contagem: eles rechaçam a ideia de que sejam “representantes” das pessoas da periferia. “Nós falamos comessas pessoas, não em nome delas”, diz Maurílio Martins ILUSTRAÇÃO: VITO QUINTANS_2020

uando Gabriel Martins chegou à Rua Imbuia, em Contagem, cidadevizinha a Belo Horizonte, acenou para um velhinho branco quedescansava numa cadeira de balanço na entrada de uma pequena

loja de móveis usados. “Ô, Seu Delardino!”, disse o rapaz negro, de 32anos, cabelo black, indo até o homem para cumprimentá-lo. “Como vai osenhor? Bom demais?” Delardino balançou a cabeça positivamente eperguntou: “E os filmes?” “Estão indo, logo sai mais um.”

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Gabriel seguiu pela rua, passou diante de mercadinhos, igrejasevangélicas e entrou na casa de Maurílio Martins, com quem não temnenhum parentesco, apesar do sobrenome. É uma casa térrea, de muroalto, desmembrada de uma residência maior e contígua, onde vive a mãedo amigo. Na cozinha do conjugado pequeno e confortável, Maurílio, umrapaz branco de 41 anos, fazia um café. “Trouxe o filme, Gabito?”, eleperguntou. Gabriel enfiou a mão no bolso e sacou de lá um pen drive.Pouco depois, chegou André Novais Oliveira, um negro de 36 anos, alto ecorpulento. Muito à vontade, André sentou-se numa cadeira diante datevê e tirou o tênis. “Vamos assistir?”, disse Gabriel, ajustando o pendrive na tevê de 43 polegadas.

O início do filme era assim:

Música instrumental orquestrada sobre uma imagem de Marte. A câmerase afasta lentamente até revelar o cocuruto de um garoto negro, de poucomais de 10 anos, diante da tela do computador, assistindo a um vídeosobre o planeta vermelho. A mãe o chama. Ele atravessa a casa, rumo aoquintal. Sua família está ali, sentada em cadeiras diante de uma tevêantiga, de tubo. Alguns vestem verde e amarelo, outros, a camisa azulroyal do Cruzeiro. O garoto do computador se junta aos familiares paraassistir à partida do Brasil contra a Alemanha na Copa do Mundo. Éterça-feira, 8 de julho de 2014. O jogo começa. Estão todos animados, atéque a Seleção Brasileira toma um gol. Toma o segundo gol. A família seassusta. “Tem que pensar positivo”, diz o garoto. Elipse de tempo: apartida terminou. No quintal, estão todos macambúzios por causa dagoleada da Alemanha – 7 a 1. O pai se levanta com uma expressão mal-

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humorada no rosto e vai limpar a churrasqueira, fazendo muito barulho.Na tevê, aparece o jogador David Luiz, choroso. O pai vê aquilo e, derepente, arremessa a churrasqueira na televisão. A família grita. O paicontinua: pega o que sobrou do aparelho e lança no meio da rua. Entra oletreiro, com o título do filme: Marte Um. Corte. Aparece a mão negra deuma mulher, passando o café para a família. Um letreiro informa o novotempo da ação: 1º de janeiro de 2019 – data da posse de Jair MessiasBolsonaro. Essa sequência inicial do filme escrito e dirigido por GabrielMartins dura cerca de dez minutos.

“O ritmo melhorou muito”, disse Maurílio, “mas acho que o pai demora areagir ao resultado do jogo.” André concorda: “Ele podia atirar achurrasqueira assim que o David Luiz aparece chorando. Daria um efeitode humor maior. A demora com que o pai reage diminui um pouco oefeito.”

Gabriel ouvia atento. “Já tentei algumas versões, mas é difícil de achar oponto certo do humor.”

“Quando o jogo ainda está em 2 a 0, podia surgir um vizinho gritando:‘Vamos virar, Brasil!’”, sugeriu André. Os três riem. “É, está faltando ogrito da vizinhança, buzina, morteiro. A algazarra que o povo faz”, disseMaurílio. “Sim, vai rolar, falta ainda acertar a trilha”, ponderou Gabriel.“Tirei fora muitas imagens documentais que mostravam o que aconteceuno Brasil entre a Copa e a eleição do Bolsonaro. Não cabiam. O filmesegue outro caminho. Vai por um caminho mais doido”, explicou Gabriel.“Eu tenho aprendido como roteirista a não dar tudo de uma vez, mas irrevelando aos poucos.”

rua onde fica a casa de Maurílio costuma servir de locação aosfilmes realizados por ele e seus amigos. É um lugar como outros dobairro Jardim Laguna, de casas modestas, em que o improviso é

parceiro da engenharia. Algumas residências são térreas, compuxadinhos; outras tomam a forma de pequenos sobrados, que crescemconforme o otimismo da economia. Muitas são bem-acabadas, mas há asque continuam com os tijolos aparentes. Quase todas têm muros altos, de

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cimento liso ou batido, que praticamente encostam nas casas, sem darnenhum ou quase nenhum espaço para os jardins. Às vezes, a gente achaque uma casa continua na outra, de tão próximas e parecidas. Mas apintura da fachada cuida de distingui-las – a verde da branca, a amarelada azul.

Os filmes de Maurílio, André e Gabriel são feitos nessas ruas comuns,com a participação de pessoas que vivem nelas suas vidas comuns, comoSeu Delardino. É em Contagem que os diretores vivem ou viveram, etrabalham. Maurílio ainda mora lá, mas Gabriel e André, que passaramgrande parte da vida na cidade, se mudaram há dois anos para BeloHorizonte. Foi também lá que cresceu o diretor Affonso Uchôa, de 36anos, e o produtor de cinema Thiago Macêdo Correia, de 35 anos.

Com sensibilidade incomum para narrar a vida na periferia de umametrópole e produções de baixo orçamento, em que uns diretorescooperam com os outros, eles transformaram Contagem no novo centrocriativo do cinema brasileiro, chamando a atenção da crítica brasileira einternacional com filmes como Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans,e Temporada, de André Novais Oliveira. O primeiro foi escolhido melhorfilme do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2017. Osegundo ganhou, no ano seguinte, cinco prêmios no mesmo festival(inclusive o de melhor filme), e foi um dos destaques, em 2019, da mostraNew Directors/New Films, do Lincoln Center, em Nova York.

ontagem é a terceira cidade mais populosa e o terceiro PIB deMinas Gerais, superada (nos dois itens) apenas por Belo Horizontee Uberlândia. Não fossem as placas de sinalização, quem vai para lá

pela primeira vez, vindo do Centro da capital mineira, teria algumadificuldade para saber onde termina uma cidade e começa a outra. Com aexpansão econômica e populacional, elas acabaram envolvidas nesse todocontínuo que é a Região Metropolitana de Belo Horizonte.

No passado, enquanto a capital concentrava o poder político, ofuncionalismo público, as universidades, a classe média, a elite cultural, ocomércio de melhor qualidade e as atividades de lazer, Contagem reunia

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as indústrias, milhares de operários, os trabalhadores em situaçãoprecária e os que, embora estivessem empregados em Belo Horizonte,não tinham recursos para morar lá. A produção incessante constituía arazão de ser da cidade industrial, e as chaminés das fábricas, emfuncionamento perpétuo, não deixavam que ninguém se esquecessedisso.

Hoje, muita coisa mudou: Contagem é uma cidade próspera, com umaclasse média numerosa, grandes supermercados e shopping centers(onde foram instalados os primeiros cinemas, no final do século XX). Eessa cidade na periferia da capital tem também sua própria periferia,onde vive a maioria da população, em bairros sem planejamento,afetados pela poluição e com serviços públicos deficientes.

Maurílio, Gabriel, André, Affonso e Thiago são de bairros diferentes e,até a idade adulta, nunca tinham se cruzado. “Contagem é grande. Osbairros se desenvolveram no entorno das indústrias como ilhas, semplanejamento e integração de transporte de uma região para outra. Faztodo sentido que a gente tenha crescido na mesma cidade sem seconhecer”, disse Affonso.

Mas o contexto social em que foram criados é parecido. Todos são filhosde trabalhadores da classe média baixa que ofereceram aos filhos aschances que não puderam ter. O pai de André é um metalúrgicoaposentado e trabalhou na fábrica da Fiat em Betim, cidade vizinha. O deGabriel é superintendente de uma cooperativa de crédito. Sua mãe écostureira. O pai de Maurílio era marceneiro, e a mãe, dona de casa.

Os meninos cresceram na frente da tevê, vendo filmes hollywoodianos.Vez ou outra iam à capital para assistir blockbusters. Exceto Maurílio,cuja mãe era evangélica da Congregação Cristã e, por isso, não permitiatelevisão em casa. Ele só podia saber das atrações do cinema pelo jornalque o pai comprava diariamente.

De acordo com as possibilidades financeiras de cada família, todos foramestimulados à vida cultural. “Minha mãe me levou uma vez à Mostra deCinema de Tiradentes [cidade histórica no sudeste de Minas]”, contouGabriel. “Lembro que assisti Bicho de Sete Cabeças. Fiquei vidrado. Lá eu

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N

descobri duas coisas que eu não sabia que existiam: curta-metragem ecinema brasileiro. Eu tinha uns 13 anos, e depois dessa experiência nuncamais desejei fazer outra coisa da vida que não fosse cinema.” Naadolescência, os cinco rapazes se associaram a videolocadoras do seubairro – foi quando tiveram a chance de descobrir os melhores filmes.

Na periferia, quando o dinheiro é curto, dá-se um jeito. “É um lugar depouco investimento cultural do Estado. Mas sempre rola um discoemprestado, um DVD pirateado, uma revista em quadrinhos ou um livrorepassado. O mundo letrado era o mundo que meus pais não podiamacessar, mas queriam que os filhos pudessem”, disse Affonso, que nasceuem São Paulo, depois que o pai mineiro e a mãe piauiense migraram paralá em busca de emprego, no início dos anos 1980. Quando o desempregobateu à porta, a família usou o dinheiro da indenização do pai paracomprar um lote em Contagem e um caminhão.

a juventude, estudar em Belo Horizonte significava para oscontagenses estar mais próximo dos eventos culturais e dasvideolocadoras com melhores acervos. “Um dia fui fazer meu

cadastro na maior locadora de BH. Dias depois, voltei para saber se tinhasido aprovado, mas fui recusado. Foi uma decepção muito grande.Nunca entendi por que recusaram”, lembrou Maurílio. “Eu trabalheinessa locadora. Tinha um acervo incrível”, disse André. “Eu assistia àsfitas que os clientes não pegavam. Muitos clássicos: Chaplin, BillyWilder… Um dos critérios para negar era o endereço. Dependendo deonde você morasse, eles não aprovavam.” Os dois nunca se encontraramna locadora.

Maurílio e Affonso foram os primeiros a entrar para a universidade.Maurílio passou no vestibular de pedagogia, e Affonso, no de jornalismo,ambos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na mesmaépoca, Gabriel vasculhava a internet em busca de um lugar para estudarcinema – pois não havia curso superior nessa área em Belo Horizonte noinício dos anos 2000. Deparou com a Escola Livre de Cinema, a única nacapital que oferecia aulas teóricas e práticas, e a oportunidade de fazeralguns curtas. Gabriel pediu à mãe que o matriculasse. André descobriu o

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curso na mesma época e conseguiu uma bolsa para estudar lá. O mesmoaconteceu com Thiago, que, em troca de uma bolsa, precisou trabalhar nasecretaria da escola. Foi lá que Gabriel, André e Thiago se conheceram,em 2003. Estavam todos na mesma sala de aula.

Depois do curso de cinema, André fez história na Pontifícia UniversidadeCatólica de Minas Gerais (PUC-MG), também com bolsa de estudos.Gabriel cogitou prestar vestibular para a USP, mas desistiu quando oCentro Universitário Una inaugurou um curso de cinema em BeloHorizonte. A novidade também atraiu Maurílio, que desistiu do curso depedagogia e se transferiu para a Una com uma bolsa do ProgramaUniversidade para Todos (Prouni).

Na primeira semana de aula, em 2006, os alunos do curso de cinema daUna se apresentaram na classe aos professores e colegas. Foi quandoMaurílio descobriu que seu colega também era de Contagem. “Sou dobairro Milanez”, disse Gabriel. “E eu sou de Laguna”, respondeuMaurílio. “Foi a primeira vez na vida que encontrei alguém de onde eumorava que se interessava por cinema”, contou Maurílio, que no finaldaquela mesma semana foi visitar Gabriel no bairro vizinho. “Trocamosmuitas ideias, e eu falei do plano de montar uma produtora.”

Foi o primeiro curta-metragem de Gabriel, Filme de Sábado, realizado em2008, que acabou reunindo os amigos. O filme é sobre um garoto quetenta quebrar o marasmo de um sábado nublado na periferia, recorrendoaos recursos do cinema para criar uma praia ensolarada em seu quintal.Além de chamar Maurílio para cuidar da fotografia, Gabriel convidoupara integrar a equipe os antigos companheiros da Escola Livre deCinema: André cuidou do som, e Thiago, da produção. O filme custou500 reais, que foram bancados pelo próprio diretor.

No ano seguinte, Gabriel, Maurílio, André e Thiago criaram a produtoraFilmes de Plástico, nome que surgiu de um brainstorming e não temnenhum significado especial. “A gente era tão ferrado de dinheiro quesentava num bar e dividia duas empadinhas por quatro. Todos nóstrabalhávamos em outras funções para pagar as contas. O cinema eraalgo importante e necessário para a gente, mas a gente tinha que fazeroutras coisas, de fato, pra ganhar dinheiro.”

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Quando Thiago estava na Escola Livre de Cinema, tinha ouvido falar doFilme em Minas, um edital com verbas da Secretaria de Cultura de MinasGerais e do Fundo Setorial do Audiovisual do governo federal. “Algunscolegas diziam que só ganhava o Filme em Minas a mesma panelinha.”Quando abriu o edital de 2009, Gabriel inscreveu o roteiro do curta DonaSônia Pediu uma Arma para o Seu Vizinho Alcides. “Eu pensava: ‘O.k., oprojeto é bom, mas o Gabriel é só um estudante. Nunca vai acontecer’”,disse Thiago. “Mas ganhamos 2 mil reais para produzi-lo.”

Os estudantes frequentavam quase todas os programas culturais voltadospara o cinema e desenvolveram uma intensa cinefilia. “Era uma BeloHorizonte que não existe mais. A prefeitura criou muitos festivais eeventos entre o final dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. Sair deContagem para estudar na capital era ter acesso a tudo isso, muitas vezesde graça”, disse Affonso, que só conheceu os outros quatro contagensesmais tarde, no Cine Humberto Mauro, o principal ponto de encontro doscinéfilos em Belo Horizonte.

Os rapazes também exercitavam a crítica de cinema, escrevendo para osite Revista Eletrônica Filmes Polvo, editado por Rafael Ciccarini Nunes,então professor da Escola Livre de Cinema e hoje reitor do CentroUniversitário de Belo Horizonte. Depois das aulas, Nunes tinha o hábitode se reunir com os alunos no bar da Escola Livre para conversar sobrefilmes. “Me lembro do André encantado pelo neorrealismo italiano, quedialoga muito com o cinema que ele faz hoje. O Gabriel e o Mauríliotinham uma predileção pelo bom cinema americano autoral. Nos filmesdeles, estabelecem um diálogo interessante entre um cinema comercial eum cinema de gênero com código autoral”, disse o professor.

Em 2010, André fez seu primeiro curta, Fantasmas, com um plano único efixo, a câmera apontada para uma esquina em Contagem, enquanto oespectador ouve a conversa de dois amigos, um deles à espreita de algonaquela encruzilhada. O desfecho é bastante inesperado. “Me lembro darecepção de Fantasmas na Mostra de Tiradentes. Ao mesmo tempo quegerava fascínio, gerava estranheza para alguns espectadores maistradicionais. Alguns disseram: ‘Parece amador.’ Não entenderam nada.Rolou um boca a boca enorme”, disse Nunes. “A gente fez Fantasmasporque o Gabriel comprou uma câmera digital em 2009. Foi nosso

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primeiro filme num grande festival. Teve uma exibição catártica. É umdos filmes mais celebrados da produtora”, afirmou Maurílio.

Chamou-se justamente Contagem o primeiro curta-metragem (de dezoitominutos) feito a quatro mãos por Gabriel e Maurílio, também em 2010. Ofilme fala dos sonhos e anseios de dois casais que se cruzam navizinhança, em eventos inesperados. A rua onde vive Maurílio é aprincipal locação do filme.

Filmado com câmera digital, precisou ser convertido para película para aexibição no Festival de Brasília daquele ano. A tecnologia digitalbeneficiou bastante a turma de Contagem, pois, além de mais barata,demanda equipes menores. Mas, nas salas de exibição e nos festivais,perdurou por algum tempo a separação rígida entre o cinema em películae o digital. As obras filmadas com esta tecnologia eram exibidas emsessões vespertinas, atraíam pouco público e não tinham quase nenhumarepercussão.

Além de ganhar o prêmio de melhor direção na categoria curta-metragemdo 43º Festival de Brasília, Contagem teve um espectador ilustre naplateia que, após a exibição, anunciou em sua página no Facebook: “Nasegunda noite da sessão competitiva da 43ª edição do Festival de Brasília,a descoberta de uma pérola do curta-metragem recente, que anuncia deforma retumbante o nascimento de um novo ciclo deflagrador: o deContagem.” A postagem era do cineasta veterano Carlos Reichenbach,que quarenta anos antes havia integrado um coletivo em São Paulo – o daBoca do Lixo – que produzia filmes de baixo orçamento. “A partir dessesdois curtas, nossos filmes passaram a receber um tratamento diferentenos festivais”, disse Maurílio.

Nove curtas depois, o grupo de Contagem já havia se tornado umhabitué de festivais, no Brasil e no mundo, como os de Cannes e Roterdã.A turma decidiu, então, enfrentar a realização de um longa. O primeirofoi Ela Volta na Quinta, dirigido por André, em 2014.

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Enquanto os quatro jovens da Filmes de Plástico trilhavam juntos a

carreira no cinema, Affonso Uchôa seguiu por outros caminhos.“Fui o primeiro da minha rua a entrar para a universidade pública.Tive acesso a coisas que meus amigos de infância não puderam ter.E por isso nos afastamos. Alguns se casaram cedo, outros foram

presos ou mortos. Rolava quase uma esperança coletiva entre as pessoasdo bairro quando elas me viam: ‘Olha o filho do caminhoneiro indo paraa faculdade’”, disse Affonso. “Eu pensava: se fui brindado com a chancede trilhar novos caminhos, teria que esquecer a periferia. Passei a mesentir periférico nos lugares que frequentava em Belo Horizonte edistante da vivência dos meus amigos de Contagem.”

O primeiro filme dirigido por Affonso foi Mulher à Tarde, lançado em2010, um registro poético sobre a solidão e o vazio de três mulheres queremetia à estética dos filmes de Godard e Bergman, diretores de que eletanto gostava. Durante a filmagem, enquanto a equipe comia à mesa,Affonso viu um técnico de eletricidade, Paulo Sérgio de Oliveira, umrapaz negro, pegar seu prato e ir para um canto afastado. O diretor ochamou para ficar junto com a equipe. “Ele respondeu que, em filmagenspublicitárias que ele trabalhava, a equipe técnica comia separado”,contou. “Ali eu percebi que aquela hierarquia na filmagem reproduzia aviolência. Paulinho era o único de toda a equipe que já tinha ido ao bairroNacional, onde eu moro. Era aquele o lugar reservado no cinema àspessoas que vinham de onde eu vim?” Affonso decidiu repensar a suaprática de cinema e o lugar que as pessoas de origem pobre ocupavamem seus filmes.

Em 2014, lançou A Vizinhança do Tigre, um filme no limiar entre a ficçãoe o documentário sobre a rotina de jovens negros e pobres do seu bairro ecomo eles deixam seus registros no mundo através do rap e da pichação.Foi a oportunidade de ele rever as relações sociais por trás da câmera.“Não adiantava chegar lá com caminhão de luz, equipe de cem pessoas,orçamento milionário e forçar aqueles garotos a um esquema pré-moldado. Também não queria submetê-los a uma ideia previamenteescrita.”

Affonso passou um ano com os jovens, observando a rotina deles, seusdesejos e frustrações. Só depois escreveu um argumento sobre cada

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personagem. As cenas reencenavam situações que havia testemunhado,sem se prender a um roteiro. “Dava indicações de direção com tramas ecurvas dramáticas que eram discutidas com eles.” A Vizinhança do Tigreganhou em 2016 o prêmio de melhor filme do júri e da crítica na Mostrade Cinema de Tiradentes, um festival que se caracteriza por privilegiar asproduções independentes, autorais e abertas a experimentações formais.

Em 2018, Affonso lançou o terceiro longa-metragem, Arábia, codirigidopor João Dumans, um road movie sobre um homem que deixa Contageme percorre o interior rural-industrial de Minas Gerais, pulando de umemprego para outro – a jornada permite aos diretores refletir sobre omundo do trabalho precário. Arábia também ganhou o prêmio de melhorfilme da Mostra de Cinema de Tiradentes naquele mesmo ano.

“Era tão improvável uma cena de cinema em Contagem que elaaconteceu”, disse o professor Rafael Ciccarini Nunes. “Esses meninostransitaram no centro da cinefilia de Belo Horizonte. São inteligentes,cultos, bem informados sobre cinema, mas sem a afetação do intelectualclássico. Terem surgido num espaço periférico sem tradiçãocinematográfica, sem mercado, foi uma libertação criativa para eles. Elesjamais se deixaram tolher pela tradição cinéfila da capital. Sempre quenecessário, mandaram um foda-se para ela.”

“O movimento que surge aqui, em Contagem, e em outras periferias,como Ceilândia, em Brasília, com o Adirley Queirós, não tem vínculocom uma tradição ou com alguma ONG que tenha vindo nos ensinaralgo”, disse Maurílio. “Isso nos deu liberdade para fazer do nosso jeito.Deve ser foda para o pessoal da periferia do Rio, cidade que é sede datevê e do espetáculo, produzir arte tendo que se adaptar ao espetáculo:essa coisa meio Regina Casé, em que a periferia tem que parecer legal edivertida para ser valorizada.”

escritório da Filmes de Plástico ocupa uma sala de cerca de 30 mno último andar de um prédio modernista na Rua dos Carijós, noCentro de Belo Horizonte. Atualmente trabalham ali apenas os

quatros fundadores: Maurílio Martins, Gabriel Martins, André Novais

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Oliveira e Thiago Macêdo Correia. Da janela da produtora, avista-se aAvenida Afonso Pena, a Praça Sete de Setembro e, bem ao fundo, a Serrado Curral.

Maurílio apontou para o prédio do Cine Theatro Brasil Vallourec, umaconstrução art déco, restaurada e modernizada. “Acho que o primeirofilme que vi no cinema foi ali, A Princesa Xuxa e os Trapalhões. Tinha 11anos. Meus irmãos me levaram”, disse ele, que é o caçula da família desete irmãos. Em setembro do ano passado, naquele mesmo cinema, osquatro foram homenageados pelos dez anos da produtora, durante aMostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte. “Minha mãe temmuito orgulho do que faço. Mas para ela não faria diferença se eutrabalhasse num escritório e ganhasse dois salários mínimos, já estariaótimo se eu não me metesse com criminalidade.”

Gabriel e Maurílio tinham chegado havia pouco de uma viagem à Françae à Holanda, onde exibiram No Coração do Mundo, o filme mais recentedeles. “Em Roterdã, os espectadores nos perguntaram muito sobre oBolsonaro”, contou Gabriel, durante um almoço no Laranjinha,restaurante self-service de comida caseira a poucas quadras daprodutora. “Não me importo em responder”, disse ele. “O problema é sóter que falar disso. No Coração do Mundo e Temporada foramfinalizados antes da eleição de Bolsonaro. Sequer imaginávamos que eleseria eleito. Isso limita outras discussões que gostaríamos de ter sobre aestética, a técnica, a narrativa, o roteiro, a direção, o trabalho dos atores.”Maurílio entrou na conversa: “Lá fora é até mais compreensível quetenham curiosidade, difícil é entender por que a gente tem que falar sobreisso o tempo todo no Brasil.”

Preferiram mudar de assunto e falar sobre o cineasta negro CharlesBurnett, norte-americano com quem os mineiros têm várias afinidades,como retratar de maneira íntima e afetuosa o cotidiano de famílias negrasde periferias pobres. “O Burnett é um esteta. Matador de Ovelhas é umprimor do cinema, um absurdo de bonito. Nosso cinema também éestético e vejo isso ser pouco evocado nos debates que frequentamos. Nãonos é dado o direito de falar sobre a beleza do nosso cinema. A gente temque falar dos aspectos sociais de nossa vivência”, disse Maurílio, dealguma forma voltando ao começo da conversa.

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Temporada, de André Novais Oliveira, lançado em 2018, descreve umrito de passagem: o da personagem Juliana, interpretada por Grace Passô,que resolve deixar para trás uma relação abusiva e reconstruir a vida. Elase muda para Contagem, onde passa a trabalhar como agente de saúdepública para controlar endemias, como a dengue. No Coração do Mundo,de Gabriel e Maurílio Martins, lançado em 2019, é um filme coral, comvários personagens que se entrecruzam em Contagem, todos elestentando superar a dureza de seus cotidianos para levar uma vidamelhor. O “coração do mundo”, ao qual o título se refere, é o lugar ondeestá o desejo de cada um. E cada um faz o que pode para realizar essedesejo – por meio do afeto, do trabalho ou do crime.

A prestigiosa revista francesa Cahiers du Cinéma se entusiasmou com osdois filmes, sobre os quais escreveu em duas edições seguidas. Na ediçãode novembro de 2019, o crítico Ariel Schweitzer analisou assimTemporada: “Numa época em que o presidente de extrema direita JairBolsonaro reivindica que o cinema brasileiro celebre ‘os grandes heróisda nossa história’, a atenção prestada por André Novais Oliveira aos anti-heróis da realidade vale como resposta à fantasia de voltar às névoaspegajosas do patriotismo.” E Schweitzer conclui: “É todo um fio deternura que percorre o filme, imprimindo um tom poético no centro deuma luta diária pela sobrevivência e a dignidade, o que faz dele umtratado sobre a gentileza como arma política.”

Na edição de dezembro de 2019, o mesmo crítico escreveu sobre NoCoração do Mundo: “O que parece de início um drama social setransforma em um thriller de tirar o fôlego, sem perder de vista suafunção social e seu objetivo político. Descreve minuciosamente apreparação do roubo e, em seguida, sua execução – que se acreditainicialmente que será bem-sucedida, mas termina em um banho desangue. Desilusão e euforia. A desilusão serve como metáfora para afrustração da classe média brasileira emergente e já completamenteabandonada pelo novo regime da extrema direita.”

O cinema norte-americano dominou a formação inicial dos cineastascontagenses, mas eles logo descobriram os filmes de arte e o cinemabrasileiro, que foi o elemento definidor da estética do grupo – emparticular a obra de quatro diretores: Leon Hirszman, Rogério Sganzerla,

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Eduardo Coutinho e Carlos Reichenbach. “Ao entrarem em contato comesses cineastas, eles descobriram o cinema simples”, disse HernaniHeffner, pesquisador de cinema e conservador-chefe da Cinemateca doMuseu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ).

A primeira vez que Gabriel assistiu a Sem Essa, Aranha, de Sganzerla, eleainda era estudante e achou um filme difícil e estranho, mas fascinante.“O Luiz Gonzaga tocando sanfona num bordel, as pessoas comendo,dançando. Aquilo tudo era bizarro. Uma imagem de Brasil, de cinemabrasileiro, que custei a entender. Não sabia que era possível contarhistórias daquele jeito.” Foi assim que ele descobriu que os filmes nãoprecisavam explicar tudo didaticamente e poderiam deixar as imagensfalar por si mesmas. “Nem tudo precisa ser entendido como uma relaçãode causa e consequência. Mas pode ser sentido pela atmosfera criada emcada cena. Você pode oferecer elementos que, juntos, formam umsentido.”

Maurílio lembrou de uma cena que lhe causou grande impressão nodocumentário Boca de Lixo (1993), de Eduardo Coutinho: a jovemcatadora de um lixão na periferia do Rio canta uma canção romântica deLeandro e Leonardo. “Aparentemente não tem nada a ver com anarrativa. Mas é um jogo emocional que se estabelece entre osenvolvidos: o diretor, a personagem e o público. É tão bem executado quenão tem quem não chore”, descreveu. Uma cena em que os pais de Andrédançam em seu filme Ela Volta na Quinta é devedora dessa sequência deCoutinho. “A gente não tem pudor em querer emocionar”, continuouMaurílio. “Existe uma certa intelectualidade que acha que um filme, paraser intelectualizado, não pode ser emocional. Vai se foder, sabe?”

Enquanto arrematava um copo de cerveja no Mineirinho, um bar apoucas quadras da produtora, Gabriel disse: “No livro Cinema deInvenção, o crítico Jairo Ferreira diz que cada pessoa nova que você filmaestá inventando algo novo. Achei que isso tem muito a ver com o que agente faz, de estarmos falando de lugares e pessoas que não foramfilmados. Olha em volta desse bar, por exemplo.”

Numa mesa próxima havia uma mulher negra por volta dos 50 anos quebebia cerveja com uma jovem e um homem branco com cabelos presos

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num rabo de cavalo e uma camisa do time de basquete Chicago Bulls.Eles riam alto. A tevê estava ligada, mas com o volume baixo. Nas caixasde som do bar reverberava bem alto um pagode. “Acho que cinemabrasileiro é meio que se lançar no abismo”, refletiu Gabriel. “É enxergar oque pode ter de Brasil nisso que estamos vendo nesse bar. Não tenhomuita certeza do que essa cena diz. Se eu tivesse certeza, faria um filmemuito ruim.”

o computador, Maurílio mostrou as imagens de um vídeo caseiro,feito em VHS em 1990, com um jogo de futebol promovido pelodono de um bar na vizinhança. O vídeo faz parte de seu próximo

filme, Laguna, uma ficção em que o diretor e seu amigo Leo,interpretando a si próprios, assistem a esse vídeo antigo, do tempo emque eram crianças, e o comentam.

Leo, um rapaz negro que também mora em Contagem, iria atuar em NoCoração do Mundo, mas foi preso pouco antes das filmagens porreceptação de mercadoria roubada. Agora, está livre e vai estrelarLaguna.

“Olha ali, sou eu e o Leo bem pequenos no meio da bagunça”, disseMaurílio, apontando para a tela do computador. “Era um torneio defutebol, mas também um motivo para fazer festa. Está vendo aquele ali?É o Pé-de-urso. Morreu há uns vinte anos. Assassinaram.”

Depois, Maurílio pegou uma foto sua quando tinha cerca de 11 anos. Aimagem mostra um menino magro e loiro, cercado de outras trezecrianças, negras e brancas. Todas estão vestidas com roupas de festa. Àfrente dele, aparece um menino negro, impecavelmente vestido, comuma camisa de manga comprida e gravata-borboleta. Do lado direito, umgaroto branco, com camisa e a calça bem cortadas (a mãe dele eracostureira, contou Maurílio), mas calçando um par de chinelos gastos.“Tá vendo? A diversidade racial e social, antes de fazer parte dos filmes,faz parte de nossa vivência. Fazer filmes com pessoas do nosso bairro énatural para a gente. É uma busca inconsciente de ver pessoas que agente sempre quis ver no cinema.”

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Assim que algum diretor do grupo tem a ideia de um filme, o passoseguinte é pensar nas pessoas que poderiam viver os personagens.Podem ser atores profissionais, como Grace Passô ou Karine Teles, oualguma pessoa que eles conheçam e cuja personalidade combina com ado personagem. Ela Volta na Quinta, dirigido por André, é sobre a criseque atinge o casamento de um casal de aposentados. O casal foiinterpretado pelos pais do diretor, Maria José Novais Oliveira e NorbertoNovais Oliveira. E o próprio realizador e seus irmãos interpretaram osfilhos.

“Meus pais tomaram um susto quando eu propus que fizessem o filme”,disse André. “A ideia partiu do relacionamento deles, que tinha passadopor uma crise tempos atrás, mas também porque eu já vi o mesmoacontecendo com outras famílias. Então eu não via muito sentido fazercom outras pessoas que não eles. Tive o cuidado de formar uma equipepequena e usar uma câmera menorzinha para não assustar a mãe e o pai.Era o primeiro filme deles.”

Os contagenses não trabalham com preparadores de elenco. Os própriosdiretores orientam os atores. E os diálogos são escritos pensando nosintérpretes e deixando espaço para o improviso. “As pessoas que atuamtransformam nosso filme para melhor, trazem espontaneidade”, disseGabriel. “E a gente está sempre aberto para essa contribuição. Por issoque dá sempre certo.”

filme No Coração do Mundo foi feito com 700 mil reais. Arábiacustou 650 mil reais. A produção dos filmes do grupo de Contagemé de baixo orçamento, o que significa, hoje, que os gastos com a

realização não ultrapassam cerca de 1,5 milhão de reais. É um valor bemmais baixo que o gasto, por exemplo, em Bacurau, de Kleber MendonçaFilho e Juliano Dornelles – 7,7 milhões de reais.

Quando estavam fazendo No Coração do Mundo, Gabriel e Mauríliodecidiram abrir mão de parte do cachê como diretores para quepudessem contratar o serviço de um estúdio de Porto Alegre para afinalização de som. “Não foi papo de pobre coitado que abre mão do

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salário”, disse Maurílio, “mas um investimento que traz retornos.” Ofilme, assim como Temporada, é elogiado pelo cuidado técnico. Para opesquisador Hernani Heffner, “sem decência técnica não se vai longe nocinema.” Os festivais europeus prezam a qualidade de acabamento.“Você pode assumir uma estética terceiro-mundista da precariedade.Mas, ao fazer essa escolha, estará alijado do circuito internacional.”

Nenhum dos diretores de Contagem vive apenas com o que ganha nosfilmes, nas funções de diretor, produtor ou roteirista – e às vezes ator. “Éuma vida instável. Ano passado foi bem difícil. Tive que pegar muitotrabalho fora. Fiz vídeos, clipes e até filmagem de festa de aniversário”,disse Gabriel, que é casado e espera um filho.

“Não consigo viver apenas como diretor”, afirmou Affonso. “Viroprofissional de cinema. Faço curadoria da mostra de cinema CurtaCircuito, que é meu ganha-pão fixo, além de trabalhos como montador.Meus filmes são baratos. Meu primeiro longa custou 80 mil reais. O que égrave é não ter sequer esperança.”

Eles têm conversado muito sobre produzir séries para tevê ou streaming,mas sabem que furar o bloqueio dessas mídias é mais um desafio queprecisam enfrentar. “No cinema, não temos que provar mais nada paraninguém. Mas sabemos que na coprodução com tevê e streamingpredomina um feudo de grandes produtoras”, disse Maurílio.

A retomada do cinema brasileiro, a partir dos anos 1990, aconteceu graçasa políticas públicas federais de fomento, que reativaram a produção apóso presidente Fernando Collor decretar o fim da Embrafilme. Foram essesincentivos que permitiram o aumento progressivo do número de longas-metragens brasileiros: 186 longas-metragens durante o governo deFernando Henrique Cardoso (1995-2002), período em que foi criada aAncine (Agência Nacional do Cinema), 511 durante o de Luiz Inácio Lulada Silva (2003-10), quando foi lançado o Fundo Setorial do Audiovisual, e888 durante os de Dilma Rousseff e Michel Temer (2011-17) – a Ancine sótem registros dos longas até 2017.

Desde que assumiu a Presidência em 2019, Jair Bolsonaro tem tomadomedidas que preocupam produtores de cinema. Afirmou que criaria

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mecanismos para impor um “filtro” cultural para filmes produzidos comdinheiro público, dando a entender que privilegiaria produções comvalores conservadores. No ano passado, travou por mais de sete meses aaprovação de um documento para que o Fundo Setorial do Audiovisualinjetasse 724 milhões de reais, causando insegurança no setor.

“A decisão é grave e afeta diretamente a continuidade dos trabalhos dasprodutoras”, disse Thiago Macêdo Correia, diretor de produção daFilmes de Plástico. “A política cultural do atual governo impede quesurjam novos talentos. O cenário em que começamos era favorável. Sintoque não conseguiríamos fazer tudo o que fizemos se estivéssemoscomeçando agora.” Para Affonso, negros, transexuais e periféricos quefazem audiovisual ou os filmes em que eles são mostrados correm riscode desaparecer. “É um projeto de aniquilação da diferença.”

revista Cahiers du Cinéma observou que Temporada mostrapessoas comuns que fogem dos “cânones da beleza aos quais opúblico brasileiro está acostumado, principalmente nas novelas”. Os

protagonistas dos filmes do grupo de Contagem são frequentementenegros. “Além de ser uma decisão nossa de questionar politicamente aausência de negros no cinema brasileiro, a gente também considera umaquebra de expectativas”, disse Gabriel. “Estamos contando histórias quenão foram contadas sobre pessoas que não costumam ser vistas emfilmes, para além dos que difundem clichês sobre a violência e apobreza.”

A representação da periferia ganhou nova dimensão no audiovisualbrasileiro depois dos filmes da turma de Contagem. “A periferia noCinema Novo e no chamado Cinema da Retomada, por melhores quefossem as intenções, era vista conforme as preocupações da classe médiasobre aquele espaço: a violência e a pobreza”, afirmou o crítico de cinemaJosé Geraldo Couto. “Os filmes de Contagem tratam a periferia e seuspersonagens com grande generosidade estética e humana. É umenriquecimento da sensibilidade sobre o cotidiano dos mais pobres.”

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Affonso sempre se incomodou com o modo como o cinema brasileirotratou e trata os lugares de onde ele vem. “Os personagens periféricos nocinema e na tevê acabam virando figuras simbólicas, semparticularidades. Como se não tivessem direito à individualidade”, disseo diretor. Maurílio acrescentou: “Ou demonizam ou santificam, quandoas vivências na periferia são diversas e complexas. Meu vizinho da frente,o Seu Delardino, por exemplo, é da Igreja Presbiteriana e votou noBolsonaro. Minha família, da Congregação Cristã, votou no FernandoHaddad. Na rua de cima tem uma casa em que vivem várias travestis. Alina frente, há uma igreja evangélica composta só de haitianos. Essascaracterísticas dão a dinâmica das nossas vidas e enriquecem nossosfilmes.”

Os diretores, porém, rechaçam a ideia de que sejam “representantes” daspopulações que vivem na periferia das grandes cidades. “A gente nãorepresenta ninguém. O que fazemos é apresentar essas pessoas. Eu nãorepresento nem minha família, que é heterogênea, quanto mais aspessoas que vivem em nosso bairro”, afirmou Maurílio. “Muitas pessoasdo lugar onde moramos podem até não gostar ou se identificar com ocinema que a gente faz. É um cinema que apresenta esse lugar e essageografia, um jeito de falar, uma maneira de viver. Mas nós falamos comessas pessoas, não em nome delas.”

O trabalho, em muitos filmes brasileiros recentes, tem função narrativaacessória, mas não é assim para os diretores de Contagem. As agrurascotidianas dos trabalhadores são um tema central para eles, que jáexerceram várias atividades. André, por exemplo, chegou a trabalharcomo agente público de endemias, a mesma profissão da protagonista deTemporada. O trabalho precário e o desemprego também são questõesfortes de seus filmes, afinal Contagem está frontalmente afetada peladesindustrialização em curso.

Em sua jornada pelo interior de Minas em busca de emprego, oprotagonista de Arábia faz uma viagem de autoconhecimento edescoberta da realidade social. Enquanto opera uma caldeira ondeexplodem labaredas de fogo, ele reflete: “Não tenho força para trabalhar.Respiro rapidamente. Meu coração é uma bomba de sangue. Queriapuxar meus colegas pelo braço e dizer para eles que acordei. Que

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enganaram a gente a vida toda. Estou cansado, quero ir para casa. […]Queria que a gente abandonasse tudo e deixasse as máquinasqueimando. […] Queria chamar todo mundo. Chamar os forneiros, oseletricistas, os soldadores e os encarregados – os homens e as mulheres. Edizer no ouvido de cada um: ‘Vamos para casa. Nós somos um bando decavalos velhos.’”

Apesar do desencanto, não se pode dizer que o cinema dos mineiros sejaessencialmente pessimista, pois boa parte dos personagens acabaencontrando forças e meios de levar a vida adiante, ao tomar umcaminho diferente. “Há um discurso vindo desses filmes de que a vidaserá alguma coisa construída pelas próprias pessoas. Em qualquercontexto, elas se reconstroem. Se o mundo industrial não muda a vidasocioeconômica, as pessoas mudam sua atitude diante do mundo”, disseHeffner.

Não se pode negar o valor documental do trabalho da turma deContagem, mas os diretores reagem um pouco irritados quando seusfilmes são comparados a documentários. “Mesmo que a gente assuma umtom realista, nossos filmes são sempre ficcionais”, disse André. “Umcrítico de cinema, Juliano Gomes, disse que associar o cinema negro e daperiferia ao documentário era como negar nosso direito de fabular. Comose a nossa única possibilidade fosse o documentário.” Maurílio fez coro.“A gente altera os espaços que filma o tempo todo: com trabalho de arte,com posicionamento de câmera, figurino que é pensado e criado para ospersonagens. Há um trabalho de recomposição desse espaço tão bemfeito que pode levar a crer que é documental, mas não é.”

Certa vez, Gabriel, Maurílio e André filmavam no bairro Jardim Lagunaquando um homem bêbado se aproximou da equipe e perguntou o queestavam fazendo. Eles responderam que era cinema.

O bêbado disse: “Vocês estão fazendo cinema de comentário?”

Os diretores estranharam e sorriram. Conversa vai, conversa vem,deduziram que o homem quis dizer “cinema documentário”.

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A expressão vingou entre os diretores de Contagem. Agora, quandoquerem definir seus filmes, eles não encontram fórmula melhor que esta:cinema de comentário.