filiação intensiva e aliança demoníaca

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Filiação intensiva e aliança demoníaca Eduardo Viveiros de Castro C’est en intensité qu’ il faut tout interpréter (L’Anti-Œdipe) Rio, 16/03/07

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A influência da filosofia de Gilles Deleuze no trabalho do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro.

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  • Filiao intensiva e alianademonaca

    Eduardo Viveiros de Castro

    Cest en intensit qu il faut tout interprter

    (LAnti-dipe)

    Rio, 16/03/07

  • IDeleuze e a antropologia

    Para minha gerao, o nome de Gilles Deleuze evoca de pronto a mudana de orien-

    tao no pensamento que marcou os anos em torno de 1968, durante os quais alguns

    elementos-chave de nossa presente apercepo cultural foram inventados.1 O signi!-

    cado, as consequncias e a prpria realidade dessa mudana so objeto de uma con-

    trovrsia que ainda grassa. Para os servidores espirituais da ordem, aquelas muitas

    petites mains que trabalham pela Maioria (Pignarre & Stengers 2005: 49-53), a mu-

    dana representou sobretudo algo de que foi e continua a ser preciso proteger as ge-

    raes futuras os protetores de hoje tendo sido os protegidos de ontem e vice-versa

    e assim por diante , difundindo a convico de que o evento-68 se consumiu sem se

    consumar, ou seja, que na verdade nada aconteceu. A verdadeira revoluo se fez con-

    tra o evento e foi ganha pela razo (para usarmos o eufemismo de praxe), fora que !r-

    mou o Imprio como a mquina planetria em cujas entranhas realiza-se a unio

    mstica do Capital com a Terra a globalizao e a sua trans!gurao gloriosa em

    Noosfera a economia da informao, ou capitalismo cognitivo. (Se o capital no

    est sempre com a razo, dir-se-ia que a razo est sempre com o capital.) Para muitos

    outros, ao contrrio, os inservveis que no conseguiram no escolher uma trajetria

    minoritria, insistindo romanticamente (para usarmos o insulto de praxe) que um ou-

    tro mundo possvel, a propagao da peste neoliberal e a consolidao tecnopoltica

    das sociedades de controle s podero ser enfrentadas se continuarmos capazes de

    conectar com os "uxos de desejo que subiram superfcie por um brilhante e fugaz

    momento, j l vo quase quarenta anos. Para esses outros, o evento puro que foi 68

    ainda no terminou, e ao mesmo tempo talvez sequer tenha comeado, inscrito como

    parece estar em uma espcie de futuro do subjuntivo histrico.2

    1. A frao da humanidade determinada pelo pronome nossa (apercepo cultural) aquela que se imagina.

    2. Deleuze & Guattari 1984. Para uma re"exo de inspirao deleuziana sobre o projetoaltermundialista, ver o trabalho j citado de Pignarre & Stengers (2005).

    2

  • Gostaria de me incluir, com ou sem razo, entre esses outros. Por isso, diria a mesma

    coisa da in"uncia de Deleuze e de seu parceiro Flix Guattari, autores da obra mais ra-

    dicalmente consistente, do ponto de vista conceitual, e mais consistentemente radical,

    do ponto de vista poltico, produzida na !loso!a da segunda metade do sculo XX:

    que essa in"uncia est longe de ter atualizado todo o seu potencial. A presena dos

    conceitos deleuzianos (e deleuzo-guattarianos) em certas disciplinas ou campos de in-

    vestigao contemporneos , com efeito, bem menos evidente ou direta do que se

    deveria esperar, manifestando-se ali antes por meio de seus efeitos sistmicos difusos

    no ambiente cultural das ltimas dcadas. Uma disciplina onde essa presena ainda se

    mostra demasiado tmida aquela que pratico, a antropologia social.

    A relevncia para a antropologia da obra de Deleuze e Guattari no mnimo to gran-

    de quanto a de pensadores como Michel Foucault ou Jacques Derrida, cujos trabalhos

    j foram extensivamente absorvidos (ainda que frequentemente mal entendidos) pelo

    que poderamos chamar de contracorrentes dominantes do pensamento social con-

    temporneo, na antropologia inclusive; contracorrrentes que, note-se, no correm na

    Frana. As relaes entre antropologia e !loso!a se intensi!caram sobremaneira no l-

    timo quartel do sculo passado, mas o processo se desenrolou essencialmente na aca-

    demia anglo-sax, onde a antropologia, como outras humanities, tem se mostrado

    muito mais aberta !loso!a continental que a antropologia francesa ela prpria. A

    analtica existencial de Heidegger, a fenomenologia da corporalidade de Merleau-Pon-

    ty, a microfsica do poder de Foucault e o mtodo da desconstruo de Derrida vieram

    se somar, nos anos 1980 e 1990, aos ventos continentais que j sopravam na dcada de

    1970, responsveis pela popularidade, na antropologia americana e britnica, de dife-

    rentes sabores do marxismo velho-europeu uma sucesso de in"uncias que po-

    dem ser vistas, alis, como reaes imunolgicas ao estruturalismo lvi-straussiano, a

    ameaa continental dominante na dcada de 1960. Na Velha Europa, em particular na

    Frana, as relaes entre antropologia e !loso!a foram-se esgarando no mesmo passo

    em que o estruturalismo perdia seu mpeto paradigmtico, ou foram sendo recon!gu-

    radas em bases antes pr- que ps-estruturalistas.3 O ps-estruturalismo !los!co, a

    3. D. Eribon: Este re"uxo do estruturalismo foi acompanhado de um retorno s formasmais tradicionais de !loso!a; C. Lvi-Strauss: Os dois fenmenos esto ligados.(Lvi-Strauss & Eribon 1988, in Maniglier 2000: 216).

    3

  • French theory por excelncia (Cusset 2003), teve pouco efeito sobre a antropologia

    feita naquele pas, enquanto foi, ao contrrio, o principal responsvel pela aproxi-

    mao entre as duas disciplinas nos pases de lngua inglesa (no sem reaes violen-

    tas, claro, da parte de boa parte do cardinalato epistmico nativo).

    Um curioso entrecruzamento, pois: a melhor antropologia anglo-sax atual faz amplo

    uso da !loso!a francesa oriunda de 68, enxertando-a de modo inventivo no arraigado

    habitus empirio-pragmatista indgena; a antropologia francesa, em troca com as ex-

    cees de praxe, a mais notvel sendo a de Bruno Latour, cuja condio de antroplo-

    go , talvez por isso mesmo, localmente questionada mostra ao contrrio sinais de

    franca reabsoro por seu substrato geolgico durkheimiano, o que no a impede (im-

    possible nest pas franais) de andar estudando propostas de casamento com diversas

    !liais locais da tradio analtica e logicista hegemnica no mundo anglo, que conhece

    uma expanso, na Frana de hoje, to rpida e inexplicvel como a da rede McDo-

    nalds.

    A novidade da !loso!a de Deleuze foi logo percebida pelas mltiplas polticas contra-

    culturais que emergiram de 68, pela arte experimental e pelos movimentos de mino-

    rias, em particular por algumas correntes do mais importante de todos eles, o

    feminismo. No muito mais tarde, ela foi incorporada ao repertrio conceitual de no-

    vos projetos estratgicos de antropologia simtrico-re"exiva, como os science studies, e

    foi reivindicada por algumas disquisies in"uentes sobre a dinmica do capitalismo

    tardio. Em contrapartida, as tentativas de articulao entre a antropologia social clssi-

    ca (o estudo dos sujeitos e objetos minoritrios, em todos os sentidos dessas trs pala-

    vra) e os conceitos deleuzianos ainda so relativamente raras, e quase sempre tmidas,

    ao contrrio do que se poderia esperar. A!nal, o dptico Capitalismo e esquizofrenia

    (Deleuze & Guattari 1972, 1981)4 apia muitos de seus argumentos em uma vasta bi-

    bliogra!a sobre povos no-ocidentais, dos Guayaki aos Kachin e dos Nuer aos

    Mongis, desenvolvendo a partir dela teses ricas em implicaes antropolgicas ri-

    cas demais, talvez, para certas constituies tericas mais delicadas. Por outro lado, o

    4. Doravante D. para as referncias bibliogr!cas a Deleuze e D.G. para Deleuze & Guattari.As referncias citadas neste artigo provm dos textos originais; as tradues so deminha responsabilidade, exceto quando indicado.

    4

  • trabalho de alguns dos antroplogos mais inovadores nas ltimas duas dcadas, como

    Roy Wagner, Marilyn Strathern ou Bruno Latour, mostra conexes muito sugestivas,

    que ainda no creio tenham sido registradas, com as idias de Deleuze; conexes que

    ainda no foram, sobretudo, conectadas entre si. No caso de Wagner, elas parecem ser

    puramente virtuais, fruto de uma evoluo aparalela (no sentido de Deleuze) ou uma

    inveno (no sentido de Wagner) independente; nem por isso so menos reais, ou

    menos surpreendentes. Em Strathern, as conexes so parciais (et pour cause Stra-

    thern 1991), ou indiretas; mas a antroploga de Cambridge compartilha com Deleuze

    uma teia de termos conceitualmente densos, como multiplicidade, perspectiva, divi-

    dual, fractalidade. Sob diversos aspectos, Strathern o antroplogo mais molecular-

    mente deleuziano, dentre os trs citados. No caso de Latour, as conexes so atuais e

    explcitas, molares, constituindo um dos alicerces da infraestrutura terica deste pen-

    sador; ao mesmo tempo, h pores signi!cativas da obra de Latour alheias ao esprito

    da !loso!a deleuziana.5

    No acidental que os trs antroplogos acima estejam entre os poucos que pode-

    riam ser rotulados de ps-estruturalistas (antes que, por exemplo, de ps-modernos)

    com alguma propriedade. Eles assimilaram o que havia de novo no estruturalismo e se-

    guiram adiante, em vez de, como tantos de seus colegas, embarcar em projetos teri-

    cos francamente retrgrados, como o pseudo-imanentismo sentimental dos mundos

    vividos, das moradas existenciais e das prticas incorporadas, ou a truculncia macho-

    positivista de Teorias de Tudo, tais o sociologismo bourdivino, o cognitivismo high-tech

    ou a psicologia evolucionria. Da mesma forma, o pensamento de Deleuze, desde pelo

    menos os dois livros decisivos de 1968 e 1969, Diferena e repetio e Lgica do sentido,

    pode ser visto como um projeto de desterritorializao sistemtica do estruturalismo,

    5. Latour j indicou a importncia do Anti-dipo para sua formao; o !lsofo que lhe mais prximo , porm, Michel Serres, cuja obra intersecta em vrios pontos a deDeleuze. Wagner (que americano) e Strathern (que britnica), cujos trabalhos estodiretamente relacionados, so antroplogos clssicos, especialistas na Melansia;ambos tambm escreveram textos importantes sobre a tradio cultural ocidental, eStrathern publicou anlises enormemente in"uentes das prticas de conhecimentoocidentais, em particular daquelas associadas ao parentesco. O francs Latour, como sesabe, tudo menos um antroplogo clssico, pela razo mesma que seu trabalhoreproblematizou o escopo da antropologia, ao incorporar as cincias e portanto ascondies perspectivas de possibilidade da antropologia no rol dos objetos possveisde uma etnogra!a clssica.

    5

  • movimento de que Deleuze extraiu as intuies mais originais, para com a ajuda delas

    partir em outras direes (Lapoujade 2006). Esses dois livros, com efeito, marcam ao

    mesmo tempo a expresso mais so!sticada do estruturalismo !los!co e sua mais ou-

    sada radicalizao, sua toro terica at um ponto de ruptura. Tal ruptura se tornar

    explcita com o Anti-dipo, livro que foi um dos principais eixos de cristalizao de um

    ps-estruturalismo em sentido prprio, isto , um estilo de pensamento que se desen-

    volveu como magni!cao dos aspectos mais inovadores do estruturalismo em re-

    lao ao que vinha antes, mas tambm como abandono (muitas vezes barulhento) de

    seus aspectos mais conservadores.6

    O antroplogo que decide ler ou reler Deleuze e Guattari, depois de anos de imerso

    na literatura de sua prpria disciplina, no pode deixar de experimentar uma curiosa

    sensao, como um dj vu s avessas: j vi isso escrito depois Muitas das perspecti-

    vas tericas e tcnicas descritivas que apenas recentemente, na antropologia, comea-

    ram a perder seu perfume de escndalo, fazem rizoma poderosamente com os textos

    deleuzo-guattarianos de quinze ou vinte anos antes.7 Para situar com preciso o valor

    antropolgico destes textos, seria preciso descrever em detalhe a constelao de

    foras em que a antropologia social se v hoje implicada, algo que ultrapassa o mbito

    de minha competncia. Se quisermos ser genricos, entretanto, no difcil assinalar a

    participao de Deleuze na sedimentao de uma certa esttica conceitual contem-

    pornea. Essa nova esttica pode ser caracterizada com o auxlio do vocabulrio bin-

    rio do estruturalismo, at porque ela uma resposta a esta outra esttica, ou melhor,

    uma reproblematizao interna dela. Assim, observa-se j h algum tempo um deslo-

    6. Observe-se de passagem que se no o sculo, como previu Foucault, pelo menos oestruturalismo que, em reavaliaes recentes, parece estar se tornando deleuziano (oque diferente de dizer que Deleuze est-se tornando estruturalista). Assim transparece,por exemplo, no minucioso e instigante comentrio dos escritos de Saussure porManiglier (2006).

    7. Talvez esse sentimento de dj vu seja tambm um sentimento de se habitar umamatriz cultural (Strathern 1991: 25). O leitor poder conferir a pregnncia de talmatriz mas o termo deve ser tomado como prospectivo tanto ou mais que comoretrospectivo no belo Lies americanas de Italo Calvino (2001 [1988]), cujas seispropostas para o prximo milnio incluem pelo menos trs qualidades ou valoreslgico-estticos emblemticos do pensamento deleuziano: leveza, rapidez,multiplicidade E poder voltar a Diferena e repetio para recordar que Deleuze viaseu livro como expresso de um certo esprito da poca, do qual o autor pretendiaextrair todas as consequncias !los!cas (D. 1968: 1).

    6

  • camento do foco de interesse, nas cincias humanas, para processos semiticos como

    a metonmia, a indicialidade e a literalidade trs modos de recusar a metfora e a re-

    presentao (a metfora como essncia da representao), de privilegiar a pragmtica

    sobre a semntica, e de valorizar a parataxe sobre a sintaxe (a coordenao sobre a su-

    bordinao). A virada lingustica que, no sculo passado, foi o foco virtual de con-

    vergncia de temperamentos, projetos e sistemas !los!cos to diversos, parece estar

    comeando a virar para outros lados, para longe da lingustica e, at certo ponto, da

    linguagem enquanto macro-paradigma antropolgico: as nfases acima sugeridas

    mostram como as linhas de escape da linguagem como modelo foram sendo divisadas

    de dentro mesmo do modelo da linguagem.

    Dito de outra forma, o antigo postulado da descontinuidade ontolgica entre o signo e

    o referente, a linguagem e o mundo, que garantia a realidade da primeira e a inteligibi-

    lidade do segundo e vice-versa, e que serviu de fundamento e pretexto para tantas ou-

    tras descontinuidades e excluses entre mito e !loso!a, magia e cincia, primitivos

    e civilizados parece estar em vias de se tornar meta!sicamente obsoleto; por aqui

    que estamos deixando de ser, ou melhor, que estamos jamais-tendo-sido modernos.

    Do lado do mundo (um lado que no tem mais outro lado, pois que agora feito ele

    prprio apenas de lados), a mudana de nfase correspondente veio privilegiar o fra-

    cionrio-fractal e o diferencial em detrimento do unitrio-inteiro e do combinatrio, as

    multiplicidades planas ali onde se valorizavam as totalidades hierrquicas, a conexo

    transcategorial de elementos heterogneos mais que a correspondncia entre sries

    internamente homogneas, a continuidade (ondulatria ou topolgica) das foras an-

    tes que a descontinuidade (corpuscular ou geomtrica) das formas. Eis o que gostara-

    mos de dizer: um cromatismo generalizado (D.G. 1981: 123). A descontinuidade

    massiva (molar) entre as duas sries internamente homogneas do signi!cante e do

    signi!cado, por um lado elas mesmas em descontinuidade estrutural , e a srie fe-

    nomenologicamente contnua do real, por outro, desmancha-se em descontinuidades

    moleculares ou fractais, em auto-similaridades trans-seriais que potenciam a diferena

    e a revelam como variao contnua ou antes, que revelam a continuidade como in-

    trisecamente diferencial e heterognea (distino entre as idias de contnuo e de indi-

    ferenciado). Uma ontologia plana (DeLanda 2002) e uma correspondente

    epistemologia simtrica (Latour 1991); o colapso, na verdade, da distino entre epis-

    7

  • temologia (linguagem) e ontologia (mundo), e a progressiva emergncia de uma on-

    tologia prtica (Jensen 2004) dentro da qual o conhecer no mais um modo de

    representar o (des)conhecido mas de interagir com ele, isto , um modo de criar antes

    que um modo de contemplar, de re"etir ou de comunicar (D.G. 1991). A tarefa do co-

    nhecimento deixa de ser a de uni!car o diverso sob a representao, passando a ser a

    de multiplicar o nmero de agncias que povoam o mundo (Latour 1996). Os harm-

    nicos deleuzianos so audveis. Uma nova imagem do pensamento. Nomadologia.

    Multinaturalismo.8

    O presente artigo pretende explorar um setor muito limitado dessa esttica conceitual

    contempornea. A ttulo de exemplo mais que qualquer coisa, ele sugere duas di-

    rees para o aprofundamento de um dilogo possvel entre Deleuze e a antropologia.

    Nesta primeira parte, o artigo traa alguns paralelos esquemticos entre conceitos de-

    leuzianos e temas analticos in"uentes na antropologia de hoje; na segunda, examina

    uma incidncia espec!ca da antropologia social clssica a teoria do parentesco

    sobre a concepo deleuzo-guattariana da mquina territorial primitiva, ou semitica

    pr-signi!cante.

    8. A noo de uma ontologia plana remete univocidade do ser, tese medieval recicladapor Deleuze: a univocidade a sntese imediata do mltiplo. O um no se diz seno domltiplo, ao invs de que este ltimo se subordine ao um como ao gnero superior ecomum capaz de englob-lo (Zourabichvili 2003: 82). O comentador prossegue: Ocorolrio desta sntese imediata do mltiplo o desdobrar de todas as coisas sobre umplano comum de igualdade: comum aqui no tem o sentido de uma identidadegenrica, mas de uma comunicao transversal e sem hierarquia entre seres quesimplesmente diferem. A medida (ou hierarquia) muda igualmente de sentido: ela no mais a medida externa dos seres em relao a um padro, mas a medida interior a cadaser em sua relao com seus prprios limites (id.: 82-83). A idia de ontologia plana extensamente comentada em DeLanda 2002; ele a desenvolve em uma direo prpriaem DeLanda 2006. Jensen 2004 faz uma excelente anlise das repercusses terico-polticas (equivocadas ou no) dessas ontologias, especialmente para o caso de Latour.Este ltimo, em seu recente Reassembling the social, insiste sobre o imperativometodolgico de manter o social plano, prprio da teoria do ator-rede, cujo outronome, alis, seria ontologia do actante-rizoma (Latour 2005: 9). A anlise conceitualprpria a esta teoria (seu mtodo de obviao, diria Wagner) consiste nodesenglobamento hierrquico do socius de modo a liberar as diferenas intensivas que oatravessam e destotalizam operao completamente diferente de uma rendio aoindividualismo, ao contrrio do que clamam os retroprofetas do Velho Testamentoholista.

    8

  • Uma anti-sociologia das multiplicidades

    No Anti-dipo (1972), primeiro livro de Capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari

    derrubam o pilar central do templo da psicanlise, a saber, a concepo reacionria do

    desejo como falta, substituindo-o por uma teoria das mquinas desejantes enquanto

    pura produtividade positiva que deve ser codi!cada pelo socius, a mquina de pro-

    duo social. Essa teoria passa por um amplo panorama da histria universal, pintado

    no captulo central do livro em um estilo provocativamente arcaizante, que talvez as-

    suste de incio o leitor antroplogo. No s os autores empregam a sequncia tradicio-

    nal selvageria-barbrie-civilizao na funo de moldura expositiva, como as

    abundantes referncias etnogr!cas so tratadas de um modo que se poderia chamar

    de comparao descontrolada.9 Mas o mesmo leitor no demorar a se dar conta de

    que o topos dos trs estgios ali submetido a uma interpretao que pode ser tudo,

    menos tradicional, e que a impresso de descontrole comparativo deriva do fato de

    que os controles usados pelos autores so outros que os usuais de tipo diferencian-

    te antes que coletivizante, nos termos de Roy Wagner (1981). Anti-dipo o resultado,

    com efeito, de um prodigioso esforo para se pensar diferente (Donzelot 1977: 28);

    seu propsito no meramente denunciar os paralogismos repressivos do dipo e da

    psicanlise, mas instaurar uma verdadeira anti-sociologia (id.: 37).10 Um projeto como

    esse deveria certamente interessar antropologia contempornea, pelo menos quela

    que no se considera como um ramo menor, extico e inofensivo, da sociologia, mas

    que ao contrrio toma esta ltima como constituindo (via de regra) uma modalida-

    de particularmente confusa, e poltico-epistemologicamente duvidosa, de auto-antro-

    pologia (Strathern 1987; Viveiros de Castro 2003).

    O segundo livro do dptico, Mil plats (D.G. 1981), distancia-se das preocupaes psica-

    nalticas do Anti-dipo. O projeto de escrever uma histria universal da contingncia

    (D.G. 2003: 290) aqui levado adiante de um modo decididamente no-linear, pela vi-

    9. A comparao controlada um mtodo analtico famoso em etnologia (Eggan 1954).10. [No Anti-dipo,] a derrubada da psicanlise [] a condio preliminar para uma

    reviravolta de propores completamente diferentes [] temos aqui, ampliada escalada totalidade das cincias humanas, uma tentativa de subverso do mesmo tipo geraldaquilo que Laing e Cooper levaram a cabo no terreno estrito da psiquiatria (Donzelotop.cit.: 27).

    9

  • sitao de diversos plats de intensidade (noo inspirada em Gregory Bateson) ocu-

    pados por formaes semitico-materiais as mais diversas, bem como por uma

    desconcertante quantidade de conceitos novos.11

    O livro expe e ilustra uma teoria das multiplicidades, talvez o tema deleuziano de

    maior repercusso na antropologia contempornea. A multiplicidade deleuziana o

    constructo que melhor parece descrever no s as prtica contemporneas de conhe-

    cimento antropolgico como os fenmenos de que elas se ocupam. Seu efeito , antes

    de mais nada, liberador. Ele consiste em fazer passar uma linha de fuga por entre os

    dois dualismos que formam como as paredes da priso epistemolgica onde a antro-

    pologia se acha encerrada (para a prpria proteo, bem entendido) desde sua in-

    cepo: Natureza e Cultura, de um lado, Indivduo e Sociedade, do outro, os quadros

    mentais ltimos da disciplina, aqueles que no podemos pensar que esto errados

    porque atravs deles que pensamos. No podemos? Pensamos? As coisas mudam, e

    com elas as possibilidades de pensamento; muda a idia do que pensar, e do que

    pensvel. O conceito de multiplicidade talvez s tenha se tornado, antropologicamen-

    te, pensvel e portanto, pensvel antropologicamente porque ingressamos em

    um mundo no-merolgico e ps-plural, um mundo em que jamais fomos modernos:

    o mundo que deixou para trs, por desinteresse antes que por sublao, a alternativa

    infernal entre o Um e o Mltiplo, o grande dualismo que preside aos dois dualismos su-

    pramencionados, e a mltiplos outros.12

    Multiplicidade assim o meta-conceito que de!ne um certo tipo de entidade, do qual

    o famoso rizoma da Introduo de Mil plats a imagem concreta.13 Como observou

    Manuel DeLanda (2002), a idia de multiplicidade o fruto de uma deciso inaugural

    de natureza anti-essencialista e anti-taxonomista: com sua criao, Deleuze pretende

    destronar as noes metafsicas clssicas de essncia e de tipo.14 Ela o instrumento

    11. [Mil plats] um livro de conceitos (D. 1990 [1980]): 39.12. Sobre o modelo merolgico, ver Strathern 1992a. Sobre a idia do mundo ps-plural, ver

    Strathern 1991: xvi; 1992a: 3-4, 184 et passim; 1992b: 92. Sobre o presentismo estratgicoexpresso na complexa construo jamais fomos, ver, naturalmente, Latour 1991. Aexpresso alternativa infernal foi tomada de Pignarre & Stengers 2005.

    13. Digo meta-conceito porque todo conceito ele prprio uma multiplicidade, emboranem toda multiplicidade seja conceitual (D.G. 1991: 21ss).

    14. O conceito deleuziano tem sua origem na !loso!a de Bergson (teoria das duas

    10

  • principal de um prodigioso esforo para pensar o pensamento como uma atividade

    outra que a de reconhecer, classi!car e julgar, e para determinar o que h a pensar

    como diferena intensiva antes que como substncia extensiva. As intenes ou impli-

    caes !los!co-polticas desta deciso so claras: transformar a multiplicidade em

    conceito e o conceito em multiplicidade visa cortar o vnculo natal entre o Conceito e o

    Estado.15

    Uma multiplicidade diferente de uma essncia; as dimenses que a compem no

    so propriedades constitutivas ou critrios de incluso classi!catria. Um dos compo-

    nentes principais do conceito de multiplicidade , ao contrrio, uma noo de indivi-

    duao como diferenciao no-taxonmica um processo de atualizao do virtual

    diverso de uma realizao do possvel por limitao, e refratrio s categorias tipolgi-

    cas da semelhana, da oposio, da analogia e da identidade. A multiplicidade o

    modo de existncia da diferena intensiva pura, a irredutvel desigualdade que forma

    a condio do mundo (D. 1968: 286). As noes de tipo e de entidade se mostram, em

    geral, completamente inadequadas para de!nir as multiplicidades rizomticas. Se no

    h entidade sem identidade, como Quine famosamente rimou, ento deve-se concluir

    que as multiplicidades realmente no podem pretender a tal estatuto. Um rizoma no

    se comporta como uma entidade, nem instancia um tipo; ele um sistema reticular

    acentrado formado por relaes intensivas (devires) entre singularidades heterog-

    neas que correspondem a individuaes extra-substantivas, ou eventos (as hecceida-

    des). Assim, uma multiplicidade rizomtica no realmente um ser, um ente, mas um

    agenciamento de devires, um entre: um di!erence engine (mas no exatamente a m-

    quina de Babbage), ou antes, o diagrama intensivo de seu funcionamento. Bruno La-

    tour, que assinala a dvida da teoria do ator-rede para com o conceito de rizoma,

    multiplicidades, intensivas e extensivas), e na geometria de Gauss e Riemann (asvariedades como superfcies n-dimensionais intrinsecamente de!nidas). Para a conexocom Bergson, ver D. 1966: ch. 2; para Riemann, D.G. 1981: 602-09. Para os aspectosmatemticos gerais da multiplicidade deleuziana ver, alm da engenhosa reconstruode DeLanda (2002: 9-10, 38-40 et passim), os artigos de Du#y, Smith, Durie e Plotnitskyem Du#y [org.] 2006. Zourabichvili 2003 (51-54) traz o melhor resumo do signi!cado!los!co do conceito na obra de Deleuze.

    15. Sobre a !loso!a de Deleuze como um combate contra o sistema do julgamento, isto ,como respondendo questo: o que pensar, quando pensar no julgar? ver oimportante estudo de Abreu 2003.

    11

  • particularmente explcito: uma rede no uma coisa, porque qualquer coisa pode ser

    descrita como uma rede (Latour 2005: 129-31). Uma rede uma perspectiva, um modo

    de inscrio e de descrio, o movimento registrado de uma coisa medida em que

    ela se vai-se associando com muitos outros elementos (Jensen 2003: 227). Mas essa

    perspectiva interna ou imanente; as diferentes associaes da coisa fazem-na ir dife-

    rindo de si mesma a coisa ela prpria que passou a ser percebida como mltipla

    (Latour 2005: 116). Em suma, no h pontos de vista sobre as coisas; as coisas e os seres

    que so os pontos de vista (D. 1968: 79; 1969: 203). Se no h entidade sem identida-

    de, no h multiplicidade sem perspectivismo.

    Se ele no um ser, um rizoma tampouco um ser nem, alis, muitos. A multiplici-

    dade no algo maior que um, algo como uma pluralidade ou uma unidade superior;

    ela , antes, algo menor que um, surgindo por subtrao (importncia da idia de me-

    nor, minoria, minorao em Deleuze). Toda multiplicidade se furta coordenao ex-

    trnseca imposta por uma dimenso suplementar (n+1: n e seu princpio, n e seu

    contexto etc.); a imanncia da multiplicidade auto-posio, anterioridade ao pr-

    prio contexto. As multiplicidades so tautegricas, como os smbolos wagnerianos que

    representam a si mesmos (Wagner 1986), possuindo sua prpria medida interna.16

    Uma multiplicidade um sistema de n-1 dimenses (D.G. 1981: 13, 27, 31) onde o Um

    opera apenas como aquilo que deve ser retirado para produzir o mltiplo, que ento

    criado por destranscendncia; ela manifesta uma organizao que pertence ao ml-

    tiplo como tal, e que no tem nenhuma necessidade da unidade para formar um siste-

    ma (D. 1968: 236).17

    As multiplicidades so assim sistemas cuja complexidade lateral, refratria hierar-

    quia ou a qualquer outra forma de uni!cao transcendente uma complexidade de

    16. Registre-se-se, para ulterior considerao, a hiptese de que na obra de Wagner se achea primeira e ainda nica tentativa de criao de um conceito antropolgico de conceito(Viveiros de Castro 2003), ou, se se preferir no abusar do termo reservado por Deleuze !loso!a, a primeira determinao antropolgica rigorosa da Figura (sensu D.G. 1991),determinao que no a toma ao contrrio do que parece ser inevitvel em!loso!a como constituindo o exterior do conceito, isto , como existindo lgica se nocronolgicamente para o conceito, em vista do conceito.

    17. Uma multiplicidade ou rizoma um sistema, note-se, no uma soma de fragmentos. simplesmente um outro conceito de sistema, que se distingue do sistema arborescentecomo um processo imanente se distingue de um modelo transcendente (D.G. 1981: 31).

    12

  • aliana antes que de descendncia, para anteciparmos o argumento da segunda parte

    deste artigo. Formando-se quando e onde linhas intensivas abertas (linhas de fora,

    no linhas de contorno D.G. 1981: 621) conectam elementos heterogneos, os rizo-

    mas projetam uma ontologia fractal que ignora a distino entre parte e todo.18 Uma

    concepo barroca antes que romntica de complexidade, como Kwa (2002) persuasi-

    vamente argumentou. A multiplicidade o quase-objeto que vem substituir aquelas

    totalidades orgnicas (romnticas) e aquelas associaes atmicas (iluministas) que

    pareciam esgotar as possibilidades disposio dos antroplogos; com isso, ele sugere

    uma interpetao completamente diferente dos mega-conceitos emblemticos da dis-

    ciplina, a Cultura ou a Sociedade, a ponto de torn-los, em um sentido no-trivial, teo-

    ricamente obsoletos (Strathern et al. 1996 [1989]).19

    A pessoa fractal de Wagner, as conexes parciais de Strathern, as redes sociotcnicas

    de Callon e Latour so alguns exemplos antropolgicos bem conhecidos de multiplici-

    dade plana. Uma pessoa fractal nunca uma unidade que est em relao com um

    agregado, ou um agregado em relao com uma unidade, mas sempre uma entidade

    com a relacionalidade [relationship] integralmente implicada (Wagner 1991: 163).20 A

    18. Ou melhor, onde o todo apenas uma parte ao lado das partes. S acreditamos emtotalidades ao lado [ cot]. E se encontramos uma totalidade dessas ao lado de partes, como um todo dessas partes, mas que no as totaliza, uma unidade de todas essaspartes, mas que no as uni!ca, e que se acrescenta a elas como uma nova partecomposta parte. [] O todo no coexiste simplesmente com as partes, ele lhes contguo, produzido ele prprio parte, aplicando-se s partes (D.G. 1972: 50, 52;grifos originais). Sobre a heterogeneidade dos elementos conectados em rizoma, importante ressalvar que ela no diz respeito a uma condio substantiva prvia, ouessncia, dos termos (o que conta como heterogneo, nesse sentido, depende daspredisposies culturais do observador Strathern 1996: 525), mas a um efeito de suacaptura por uma multiplicidade, a qual torna heterogneos os termos que conecta, aofaz-los funcionar como singularidades, representantes de si mesmos.

    19. Tenho que preciso reavaliar a esquematizao da histria do pensamento ocidentalrecente, da antropologia em especial, em termos de uma combinao con"ituosa (comdominncia alternada) entre princpios romnticos e iluministas. Essa estrutura de saborquase mitolgico (sensu Lvi-Strauss) pode ter tido um certo valor explicativo para,digamos, o primeiro sculo da disciplina, entre 1860 e 1970 (ou pelo menos esta minhadesculpa para ter lanado mo dela em um artigo de enciclopdia: cf. Viveiros de Castro2002a). A partir dali, a aplicao do termo (neo-)romntico a diversas tendncias dopensamento ps-estruturalista geralmente com inteno difamatria parece-meum simples automatismo reativo; a sensibilidade conceitual em questo, se ecoa algumaera prisca, o barroco (ver, justamente, Deleuze 1988), no o romantismo.

    20. O um homem e muitos homens de Strathern (1991b) no deixa de evocar umamultiplicidade deleuziana de tipo n-1, algo como um muitos-menos-um homens. Se

    13

  • imbricao dos conceitos de multiplicidade, implicao e intensidade , como se sabe,

    um ponto longamente elaborado por Deleuze (1968: cap. VI). Franois Zourabichvili, o

    mais perceptivo comentador deste !lsofo, observa que a implicao o movimento

    lgico fundamental da !loso!a de Deleuze (2004a: 82); alhures, ele sublinha que o

    pluralismo deleuziano supe um primado da relao (2003: 52 n.1).21A !loso!a da di-

    ferena uma !loso!a da relao.

    Mas no se trata de qualquer relao. A multiplicidade um sistema formado por

    uma modalidade de sntese relacional diferente de uma conexo ou conjuno de ter-

    mos. Trata-se da operao que Deleuze chama de sntese disjuntiva ou disjuno inclusi-

    va, modo relacional que no tem a semelhana ou a identidade como causa (formal ou

    !nal), mas a divergncia ou a distncia; um outro nome deste modo relacional devir.

    A sntese disjuntiva ou devir o operador principal da !loso!a de Deleuze (Zourabi-

    chvili 2003: 81), pois que o movimento da diferena como tal o movimento centr-

    fugo pelo qual a diferena escapa ao poderoso atrator circular da contradio e

    sublao dialticas. Diferena positiva antes que opositiva, indiscernibilidade de hete-

    rogneos antes que conciliao de contrrios, a sntese disjuntiva faz da disjuno a

    natureza mesma da relao (id. 2004a: 99), e da relao um movimento de implicao

    recproca assimtrica (id. 2003: 79) entre os termos ou perspectivas ligados pela snte-

    se, a qual no se resolve nem em equivalncia nem em identidade superior:

    A idia mais profunda de Deleuze talvez esta: que a diferena tambm comunicao e contgio entre heterogneos; que, emoutras palavras, uma divergncia no surge jamais semcontaminao recproca dos pontos de vista. [] Conectar semprefazer comunicar os dois extremos de uma distncia, mediante aprpria heterogeneidade dos termos. (Zourabichvili 2004a: 99)

    Voltando aos paralelos com a teoria antropolgica contempornea, recorde-se que o

    tema da separao relacionante caracterstico da antropologia de Marilyn Strathern.

    A concepo da relao como compreendendo disjuno e conexo ao mesmo tem-

    compreendo a autora corretamente, na esttica melansia a unidade de uma pluralidadeprovm de si mesma, no de um princpio exterior. Alternativamente, poder-se-iaimaginar ali uma multiplicidade de tipo 1-n, j que, para recordarmos outro exemplomelansio, o maior nmero possvel que os Iqwaye podem alcanar, e que alcanam, um (Mimica 1988: 95).

    21. Pluralismo por oposio a dualismo cf. D.G. 1981: 30-31.

    14

  • po [together] (Strathern 1995: 165) a base de uma teoria que a!rma que as relaes

    fazem uma diferena entre as pessoas (id. 1999: 126; 1996: 525; e, naturalmente, Stra-

    thern 1988: cap. 8). Pode-se dizer que o clebre sistema M (Gell 1999), a descrio

    stratherniana da socialidade melansia como uma troca de perspectivas e um proces-

    so de implicao-explicao relacional, uma teoria antropologicamente simtrica da

    sntese disjuntiva.22 Do ponto de vista antropolgico re"exivo, por sua vez, poderamos

    dizer que a multiplicidade subtrativa (n-1) antes que aditiva do rizoma faz dele uma !-

    gura analtica radicalmente no-merolgica e ps-plural (Strathern 1992a), que dessa

    forma indica uma linha de fuga alternativa entre o um e o mltiplo que Marilyn Stra-

    thern, com sua usual visada certeira, aponta como o impasse caracterstico da

    antropologia:

    Os antroplogos em geral tm sido encorajados a pensar que aalternativa ao um o mltiplo. Em consequncia disso, ora estamoss voltas com uns, a saber, com sociedades ou atributos singulares,ora com uma multiplicidade de uns [] Um mundo obcecado poruns e pelas multiplicaes e divises de uns tem problemas com aconceitualizao de relaes. (1991: 52-53)

    Faz-se ento necessria uma terapia de desobsesso. Comparar multiplicidades outra

    coisa que fazer convergir particularidades em torno de generalidades, como no caso

    usual das anlises antropolgicas que buscam semelhanas substanciais por baixo de

    diferenas acidentais: em toda sociedade humana Recorde-se uma observao

    pontual de Albert Lautmann (o autor referencial de Deleuze para a matemtica):

    A constituio, por Gauss e Riemann, de uma geometria diferencialque estuda as propriedades intrnsecas de uma variedade,independentemente de qualquer espao em que esta variedadeestaria mergulhada, elimina qualquer referncia a um continenteuniversal ou a um centro de coordenadas privilegiadas (apud Smith2006: 167 n. 39).

    22. A interpretao de Alfred Gell (op.cit.) segundo a qual o sistema M exprime uma teoriadas relaes internas suscita uma questo que s ser possvel explorar em outrocontexto: a da tradutibilidade recproca entre a antropologia stratherniana e a doutrinadeleuziana da exterioridade das relaes, sobretudo na interpretao que esta ltimarecebe no livro recente de Manuel DeLanda (2006). Penso que ambas as interpretaesso (proveitosamente) discutveis.

    15

  • Se onde se l geometria puser-se antropologia, as implicaes so bvias. (O que faria

    as vezes de uma variedade para a antropologia? No difcil de se imaginar.) Tudo

    aquilo que costuma ser ritualmente denunciado como uma contradio e um escnda-

    lo descrever ou comparar variaes sem pressupor um fundo invarivel? mas onde

    esto os universais? que da constituio biolgica da espcie, das leis do simblico,

    dos princpios da economia poltica? (para no falarmos da chamada realidade exte-

    rior) torna-se subitamente concebvel. Concebvel em potncia, no em ato, por su-

    posto; mas ganha-se ao menos o direito de especular nessa direo. No se diga que a

    antropologia estaria com isso praticando o contrabando de bens intelectuais alheios (a

    geometria diferencial); eles no so mais estrangeiros que aqueles que alimentam a or-

    todoxia antropolgica sobre a comparao e a generalizao, tributria que esta de

    uma metafsica bimilenar aquela mesma metafsica, recorde-se, que no admitia em

    seus domnios quem no fosse gemetra.23

    Mas comparar multiplicidades tambm outra coisa que estabelecer invariantes corre-

    lacionais por meio de analogias formais entre diferenas extensivas (oposies), como

    no caso das comparaes estruturalistas, onde no so as semelhanas, mas as dife-

    renas que se assemelham (Lvi-Strauss 1962: 111). Comparar multiplicidades que

    so sistemas de comparao em si mesmas e de si mesmas determinar seus mo-

    dos caractersticos de divergirem, suas distncias internas e externas; aqui, a "anlise

    comparativa" uma "sntese separativa" (ou disparativa Gordon 2006, evocando G.

    Simondon). No que concerne s multiplicidades, no so as relaes (extensivas) que

    23. Neste novo esprito, ver a meta-comparao antropolgica entre tipos de multiplicidadesugerida por M. Strathern: [C]ontrastar tipos de multiplicidade algo a considerar. Sefalamos de origens mltiplas em relao s produes [works] euro-americanas, ento amultiplicidade provm do modo pelo qual as pessoas so adicionadas umas aosempreendimentos das outras. Se falamos de origens mltiplas em relao contrapartida melansia disso, ento a multiplicidade provm do modo pelo qual aspessoas se dividem uma das outras (2005: 161). Note-se que no h evidncias diretasde que a autora esteja aqui utilizando, sequer alusivamente, o conceito deleuziano.Ainda assim, talvez se pudesse ver na primeira multiplicidade de Strathern aquilo queDeleuze chamaria de uma multiplicidade falsa, molar ou arborescente, ao passo que asegunda seria uma multiplicidade de tipo molecular e intensivo, composta de partculasque no se dividem sem mudar de natureza (D.G. 1981: 46, 603). Strathern prossegue,sobre o contraste que ela prope entre as prticas de conhecimento melansias e euro-americanas: No estou comparando coisas comparveis [like with like]. Com efeito. Comefeito.

    16

  • variam, so as variaes (intensivas) que relacionam: so as diferenas que diferem.24

    Como escrevia h mais de um sculo o estranho socilogo molecular Gabriel Tarde:

    A verdade que a diferena vai diferindo, e que a mudana vaimudando, e que, ao se darem assim como !m de si mesmas, amudana e a diferena atestam seu carter necessrio e absoluto(Tarde 1999 [1895]: 69).

    As idias do ultra-leibniziano Gabriel Tarde, o grande adversrio do ultra-kantiano

    Durkheim, foram resgatadas da Terra das Teorias Perdidas por Deleuze (1968: 104-05

    n.1, 264 n.1; D.G. 1981: 267-71; D. 1988: 147). Elas esto sendo desenvolvidas hoje por

    Bruno Latour e Maurizio Lazzarato, entre outros; Tarde conhece um renascimento.

    Chunglin Kwa, no artigo j citado, observava a diferena fundamental entre a con-

    cepo romntica da sociedade como organismo e a concepo barroca do organis-

    mo como uma sociedade (2002: 26). Ora, esta uma perfeita descrio da diferena

    entre as sociologias de Durkheim e de Tarde. Contra o carter sui generis dos fatos so-

    ciais do primeiro, o ponto de vista sociolgico universal do segundo a!rma que toda

    coisa uma sociedade, todo fenmeno um fato social (Tarde 1999 [1895]: 58, 67).

    Posio que recusa qualquer validade distino entre indivduo e sociedade, parte e

    todo, assim como ignora a pertinncia de toda diferena entre o humano e o no-hu-

    mano, o animado e o inanimado, a pessoa e a coisa. A ontologia fractal (existir dife-

    rir) e o sociologismo irrestrito de Tarde se acompanham de um psicomor!smo

    universal: tudo so pessoas, pequenas pessoas (id.: 43), pessoas dentro de pes-

    soas all the way down.

    Diferena intensiva, diferena de perspectiva, diferena de diferenas. Nietzsche obser-

    vava que o ponto de vista da sade sobre a doena difere do ponto de vista da doena

    sobre a sade.25 Talvez tenha sido essa observao que inspirou Roy Wagner a dizer, so-

    bre suas relaes iniciais com os Daribi: o modo como eles no me compreendiam no

    24. O que seria, alis, uma glosa aceitvel da frmula cannica do mito (Lvi-Strauss 1958). Apresena recorrente desta !gura sinptica nas Mitolgicas e alm atesta que oestruturalismo, ao contrrio do que (se) pensa, no a!rma realmente que todas asdiferenas que fazem a diferena cabem dentro das proporcionalidades reversveis doesquema totmico.

    25. Ver D. 1969: 202-03. Do mesmo modo, na dialtica do Mestre e do Escravo o escravoque dialtico, no o mestre (D. 1962: 11).

    17

  • era o mesmo modo como eu no os compreendia (1981: 20) talvez a melhor de!-

    nio antropolgica de cultura j proposta.26 Pois a diferena nunca a mesma, o tra-

    jeto no o mesmo nos dois sentidos:

    Uma meditao sobre o perspectivismo nietzscheano d aconsistncia positiva ao conceito [deleuziano] de disjuno:distncia entre pontos de vista ao mesmo tempo indecomponvel edesigual a si mesma, pois o trajeto no o mesmo nos doissentidos (Zourabichvili 2003: 79; grifo no original)

    A comparao de multiplicidades em outras palavras, a comparao enquanto pro-

    duo de multiplicidade (ou inveno da cultura) , sempre uma sntese disjuntiva,

    justo como as relaes que relaciona.

    Dualidades parciais

    Os textos deleuzianos parecem se comprazer na multiplicao de dades conceituais:

    diferena e repetio, intensivo e extensivo, nomdico e sedentrio, virtual e atual, li-

    nha e segmento, "uxos e quanta, cdigo e axiomtica, desterritorializao e reterrito-

    rializao, menor e maior, molecular e molar, liso e estriado a lista longa, o

    vocabulrio luxuriante. Devido a tal assinatura estilstica, Deleuze j foi classi!cado

    como !lsofo dualista (Jameson 1997), o que , para diz-lo educadamente, uma leitu-

    ra apressada do modo de funcionamento de sua conceitualidade.27

    importante notar como a marcha expositiva dos dois livros de Capitalismo e esquizo-

    frenia, onde pululam as dualidades, a todo momento interrompida por clusulas ad-

    versativas, modalizaes, especi!caes, involues, subdivises e outros

    deslocamentos argumentativos das distines duais (ou outras) que tinham acabado

    de ser propostas pelos prprios autores. Tais interrupes metdicas so precisamente

    isso, uma questo de mtodo, no de arrependimento aps o pecado binrio; elas so

    26. Veja-se a sutil dobradura que esta idia recebe das mos de M. Strathern: o modo comocada um compreende o outro comprometido pelo modo como cada um imagina queo outro compreende, mas que no pode saber [como ] (Strathern 2002: 109). Agradeoa Antonia Walford a sugesto da passagem.

    27. Para uma interpretao mais interessante de Deleuze como !lsofo da dualidadeimediata ou no-dialtica, ver Lawlor 2003.

    18

  • momentos perfeitamente determinados da construo conceitual.28 Nem princpios

    nem !ns, as dades deleuzianas so sempre meios para se chegar alhures. O caso

    exemplar aqui , ainda, a distino entre a raiz e o rizoma. Naquele que talvez o tre-

    cho mais citado de Mil plats, pode-se ler:

    O que importa que a rvore-raiz e o rizoma-canal no se opemcomo dois modelos; a primeira age como modelo e como decalquetranscendentes, ainda que engendre suas prprias fugas; o outroage como processo imanente que subverte o o modelo e esboaum mapa, ainda que constitua suas prprias hierarquias, mesmo sesuscita um canal desptico. No se trata deste ou daquele lugar naterra, nem de um momento dado na histria, menos ainda de tal ouqual categoria no esprito. Trata-se do modelo enquanto tal, queno cessa de se erguer e de desmoronar, e do processo enquantotal, que no cessa de se prolongar, de se romper, e de recomear.No se trata de um outro, de um novo dualismo. Problema daescrita () No invocamos um dualismo seno para recusar umoutro. Servimo-nos de um dualismo de modelos apenas para atingirum processo que rejeita qualquer modelo. preciso, a cada passo,corretores cerebrais que desfaam os dualismos que no quisemoserguer mas pelos quais temos de passar. Chegar frmula mgicaque buscamos todos: PLURALISMO = MONISMO, por via de todos osdualismos que so o inimigo, mas o inimigo absolutamentenecessrio, o mvel que no paramos de mudar de lugar. (D.G. 1981:31).

    28. Assim se passa com a dualidade entre a arborescncia e o rizoma (no estaramosporm restaurando um simples dualismo? D.G. 1981: 21), dois esquemas que nocessam de interferir um no outro. Assim com os dois tipos de multiplicidades, molares emoleculares, que se exercem sempre ao mesmo tempo e em um mesmoagenciamento no h um dualismo de multiplicidades, mas apenas e sempremultiplicidades de multiplicidades (op.cit: 47). Assim com a distino entre forma daexpresso e forma do contedo, que no funda nem um paralelismo nem umarepresentao entre ambas, mas uma maneira pela qual as expresses se inserem noscontedos onde os signos modi!cam [travaillent] as coisas elas prprias, assim comoas coisas se prolongam e se desdobram por meio dos signos (id.: 110). Assim com aoposio entre segmentar e centralizado, que deve ser substituda por uma distinoentre duas segmentaridades distintas mas inseparveis, sempre imbricadas e justapostas(id.: 255, 259). Assim, en!m, com os espaos liso e estriado, cuja diferena dita sercomplexa, tanto porque os termos sucessivos das oposies consideradas nocoincidem completamente (liso/estriado no exatamente a mesma coisa quenmade/sedentrio etc), como porque os dois espaos no existem de fato seno pormeio de suas misturas entre si (id.: 593). Em suma, logo aps distinguir dois plos,processos ou tendncias, a anlise deleuziana, de um lado, desdobra a polaridade emoutras, embutidas assimetricamente na primeira (produzindo assim uma mistura dejure), e, de outro lado, indica a mistura de facto dos plos iniciais. E tudo isso ocorre aomesmo tempo (id.: 273).

    19

  • Alm de descartar de passagem as leituras que reduzem sua !loso!a a mais uma teoria

    do Grande Divisor,29 os autores ilustram aqui dois procedimentos caractersticos. Pri-

    meiramente, o tratamento dos conceitos de um modo menor ou pragmtico, como

    instrumentos, pontes ou veculos antes que como objetos, signi!caes ou desti-

    naes ltimas; o !lsofo como penseur sauvage. Da o realismo com que Deleuze e

    Guattari lidam com as propenses dualistas do pensamento em modo inercial. No

    Anti-dipo, a!rmam uma concepo monista da produo desejante; no Mil plats, de-

    senvolvem uma teoria ps-pluralista das multiplicidades duas empresas marcada-

    mente no-dualistas. Nem por isso, entretanto, eles supem que os dualismos sejam

    um obstculo negocivel apenas pela boa vontade.30 Os dualismos so reais, no ima-

    ginrios; no so o mero efeito de um vis ideolgico, mas o resultado de um funcio-

    namento ou estado espec!co da mquina abstrata, a segmentao dura ou

    sobrecodi!cante. necessrio desfazer os dualismos por que, antes de mais nada, eles

    foram feitos. E possvel desfaz-los pela mesma razo, porque eles foram feitos; pois

    os autores tampouco pensam que os dualismos sejam o horizonte de eventos da me-

    tafsica ocidental, o limite absoluto que s pode ser exposto (desconstrudo) mas ja-

    mais atravessado pelos prisioneiros da Caverna. Para desfaz-los, porm, importante

    evitar a armadilha circular que consistiria em neg-los ou contradiz-los; preciso sair

    deles calculadamente, ou seja, sempre pela tangente por uma linha de fuga.

    Isto nos leva ao segundo procedimento. As dualidades deleuzianas so construdas e

    transformadas segundo um padro recorrente, que as determina como multiplicidades

    mnimas como dualidades parciais, diria um leitor de Strathern (1991). Assim, toda

    distino conceitual comea pelo estabelecimento de um plo atual-extensivo e de

    um plo virtual-intensivo. A anlise subsequente consiste em mostrar como a dualida-

    de muda de natureza conforme se a tome do ponto de vista de um plo ou do outro.

    29. Antroplogos so, em geral, muito adeptos desse tipo de desconstruo sumria. VerRival 1998 e Rumsey 2001 para dois exemplos onde se protesta contra uma supostagrande diviso, em Mil plats, entre O Ocidente = Arborescncia e O Resto = Rizoma. Oscrticos mostram uma certa ingenuidade ao imaginar uma certa ingenuidade por partedos criticados, que sabiam perfeitamente bem o que (no) estavam fazendo: Estamosindo por um mau caminho, com todas essas distribuies geogr!cas. Um impasse;tanto melhor. (D.G. 1981: 30).

    30. Ou pela m, como no caso daqueles pensadores que crem bastar chamar algum outrode dualista, ou de grande-divisor, para deixar eles mesmos de o serem.

    20

  • Do ponto de vista do plo extensivo (arborescente, molar, rgido, estriado etc.), a re-

    lao que o distingue do segundo tipicamente uma oposio: uma disjuno exclusi-

    va e uma sntese limitativa, isto , uma relao ela prpria extensiva, molar e atual. Da

    perspectiva do outro plo (intensivo, rizomtico, molecular, dctil, liso), porm, no h

    oposio, mas diferena intensiva, implicao ou incluso disjuntiva do plo extensivo

    pelo plo intensivo ou virtual; a dualidade posta pelo primeiro plo revelada como a

    face, a fase ou o eco molar de uma multiplicidade molecular situada no outro plo.31

    como se cada plo apreendesse sua relao com o outro segundo sua prpria nature-

    za; ou, dito de outro modo, como se a relao entre os plos pertencesse necessria e

    alternativamente ao regime de um ou de outro plo, o regime da contradio ou o re-

    gime da linha de fuga (D.G. 1981: 263-64); ela no pode ser traada de fora, a partir de

    um terceiro plo englobante. O perspectivismo a dualidade como multiplicidade

    aquilo que a dialtica a dualidade como unidade precisa negar para se impor

    como lei universal.

    Os dois plos ou aspectos de uma dualidade qualquer so sempre ditos estar presen-

    tes e ativos em todo fenmeno ou processo. Sua relao tipicamente conceitualizada

    como sendo de pressuposio recproca, uma noo repetidamente avanada no Mil

    plats (op.cit.: 59, 85, 111, 260, 629) no lugar da causalidade, linear ou dialtica, da re-

    duo macro-micro, ou dos esquema hilemr!cos e expressivos. De um ponto de vista

    antropolgico, pode-se aproximar a pressuposio recproca da dupla semitica wag-

    neriana da inveno e da conveno, onde cada modo de simbolizao precipita ou

    contra-inventa o outro, segundo um esquema de alternncia !gura-fundo (Wagner

    1981: cap. 3; 1986).32 Ou ainda, do modo de funcionamento de certas dualidades anal-

    31. Uma alternativa, uma disjuno exclusiva, determinada em relao a um princpio queconstitui, no entanto, os dois termos ou os dois subconjuntos, e que entra ele prprio naalternativa (caso totalmente diferente do que se passa quando a disjuno inclusiva)(D.G. 1972: 95, conforme a traduo brasileira de G. Lamazire). O padro aparece cedono corpus deleuziano. Veja-se o comentrio diviso de Bergson entre durao e espao:ela no pode ser de!nida simplesmente como uma diferena de natureza, pois adiferena antes entre a durao, que suporta e transporta todas as diferenas denatureza, e o espao, que exibe apenas diferenas de grau. No h assim diferena denatureza entre as duas metades da diviso: a diferena de natureza est inteiramente dolado de uma delas (D. 1966: 23).

    32. Wagner quali!ca a relao de produo recproca entre conveno e inveno culturalde dialtica (1981: 52; o termo amplamente utilizado em Wagner 1986), o que podeconfundir um leitor de Deleuze. Mas tal dialtica, alm de ser explicitamente

    21

  • ticas centrais de The gender of the gift (Strathern 1988), como aquelas que presidem

    economia lgica do gnero ou articulao entre os modos de troca melansios, onde

    um plo masculino ou feminino, mesmo-sexo ou sexo-oposto, troca mediata ou

    imediata sempre descrito como uma verso ou transformao do outro, cada um

    fornece[ndo] o contexto e a base do outro, como resumiu Strathern em um contexto

    (justamente) muito diferente (1991: 72).33

    Um ponto de grande importncia que a pressuposio recproca determina os dois

    plos de qualquer dualidade como igualmente necessrios, visto que mutuamente

    condicionantes, mas no faz deles plos simtricos ou equivalentes. A inter-pressupo-

    sio uma relao de implicao recproca assimtrica: o trajeto no o mesmo nos

    dois sentidos. Assim, ao distinguir os mapas rizomticos dos decalques arborescentes,

    Deleuze e Guattari observam que os mapas esto constantemente sendo totalizados,

    uni!cados e estabilizados pelos decalques, os quais por sua vez esto sujeitos a toda

    sorte de deformaes anrquicas induzidas pelo processo rizomtico. Mas, no !nal das

    contas, o decalque deve sempre ser projetado de volta no mapa. Esta operao e a prece-

    dente no so de modo algum simtricas. (D.G. 1981: 21; grifos originais).34 E elas no

    so simtricas porque uma das operaes trabalha em sentido contrrio ao devir, que

    o processo do desejo (id.: 334), enquanto a outra trabalha a seu favor. O decalque

    caracterizada de no-hegeliana, traz logo mente a pressuposio recproca e a sntesedisjuntiva: uma tenso ou alternncia semelhante a um dilogo entre duas concepesou pontos de vista que simultaneamente se contradizem e se reforam (Wagner 1981:52). Uma dialtica sem resoluo nem conciliao, em suma.

    33. No modelo melansio de parentesco e gnero, cada relao s pode provir da outra ()as relaes conjugais e !liais so metforas uma da outra, e portanto uma fonte internade re"exo (Strathern 2001: 240). Nesse mesmo artigo, achamos a observao: asrelaes de sexo oposto ao mesmo tempo alternam com as relaes de mesmo sexo econtm em si uma premissa intrnseca de alternncia (op.cit.:227 ) um claro exemplode pressuposio recproca assimtrica. Em outra direo, observe-se que tratamentogeral das dualidades analticas (onde cada termo uma verso do outro) por MarilynStrathern, bem como sua concepo da troca melansia como troca de perspectivas,poderiam ser comparados com proveito ao perspectivismo deleuziano.

    34. Na abordagem do contraste liso/estriado, os autores insistem no mesmo ponto demtodo: embora em pressuposio recproca, os dois espaos no se comunicamentre si da mesma maneira [] os princpios da mistura no so de forma algumasimtricos; a passagem do liso ao estriado e vice-versa so movimentoscompletamente diferentes (op.cit.: 593).

    22

  • perigoso, porque ele injeta redundncias no mapa, organizando e neutralizando a

    multiplicidade rizomtica:

    O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma so sempre seusimpasses, bloqueios, germes de enraizamento pivotante ou pontosde estruturao [...] Quando um rizoma obstrudo, arbori!cado,acabou, o desejo no "ui mais; pois sempre por rizoma que odesejo se move e produz. (id.: 21-22)

    Essa relao assimtrica entre processos e modelos em pressuposio recproca (onde

    o rizoma processo, precisamente, enquanto a rvore modelo) recorda de perto a

    distino entre a diferena e a negao desenvolvida em Diferena e repetio: a ne-

    gao real, mas sua realidade puramente negativa; ela apenas a diferena inverti-

    da, extensivizada, limitada e opositivizada (D. 1968: 302-ss). Assim, apesar de Deleuze e

    Guattari advertirem mais de uma vez que no se trata de estabelecer um contraste

    axiolgico entre o rizoma e a rvore, a segmentaridade "exvel-molecular e a segmen-

    taridade dura-molar e assim por diante (D.G. 1981: 31, 259-60), resta que h sempre

    uma tendncia e uma contra-tendncia, dois movimentos inteiramente diferentes: a

    atualizao e a contra-efetuao (ou cristalizao) do virtual. O primeiro movimento

    consiste no decaimento das diferenas de potencial ou de intensidade, na medida que

    estas se desdobram (se ex-plicam) na extenso e se encarnam em estados de coisas

    empricos. O segundo criador ou implicador da diferena, e, se um movimento de

    retorno ou de causalidade reversa (D.G. 1981: 537), uma involuo criativa, nem por

    isso deixa de ser estritamente contemporneo do primeiro, sendo sua condio trans-

    cendental, e enquanto tal inanulvel. Este ltimo movimento o Evento ou Devir, pura

    reserva de intensidade a parte, em tudo que acontece, que escapa sua prpria

    atualizao (D.G. 1991: 147).

    Mais uma vez, inevitvel aproximar essa assimetria de processos inter-implicados de

    certos aspectos da semitica de Roy Wagner (1981: 51-53, 116, 121-22). A natureza dita

    dialtica ou obviacional da relao entre os dois modos wagnerianos de simbolizao

    remete a um dos modos, a diferenciao-inveno, ao passo que o contraste opositivo

    entre os dois modos , enquanto tal, o resultado da operao do outro modo, a coleti-

    vizao-convencionalizao. E alm disso, embora os dois modos estejam simultnea e

    reciprocamente ativos em todo ato de simbolizao (eles operam um sobre o outro,

    23

  • pois no h nada alm deles), h toda a diferena do mundo (op.cit.: 51) entre as cul-

    turas cujo contexto de controle nos termos de Mil plats, a territorializao o

    modo convencional e aquelas onde o controle o modo diferenciante. Se o contraste

    entre os modos no , em si, axiolgico, a cultura que favorece a simbolizao conven-

    cional e coletivizante a cultura que gerou a teoria da cultura enquanto represen-

    tao coletiva orienta-se na direo do decalque, bloqueando ou reprimindo a

    dialtica da inveno, e por isso deve, em tima anlise, ser projetada de volta no

    mapa. Do mesmo modo, o contraste avanado em The gender of the gift entre as socia-

    lidades do dom e da mercadoria explicitamente assumido como interno ao mundo

    da mercadoria (Strathern 1988: 16, 136, 343), mas ao mesmo tempo tudo se passa

    como se a forma-mercadoria fosse uma transformao (ou deformao) da forma-dom

    antes que o contrrio, uma vez que a anlise de uma socialidade do dom nos obriga,

    como antroplogos, a apreendermos a particularidade dos pressupostos culturais da

    antropologia ela prpria, e a decompor nossas prprias metforas capitalsticas (op.cit.:

    309). O ponto de vista do dom sobre a mercadoria no o mesmo que o ponto de vis-

    ta da mercadoria sobre o dom. Implicao recproca assimtrica.35

    35. Essa mesma estratgia de evocar um dualismo apenas para deslocar outro tambm empregada por Latour, por exemplo em seu livreto contra-crtico sobre os faitiches: Oduplo repertrio dos modernos no reside em sua distino entre fatos e fetiches, masna () distino, mais sutil, entre a separao de fatos e de fetiches que eles fazem nateoria, por um lado, e a passagem para uma prtica que difere totalmente disso, poroutro lado (Latour 1996: 42-43). Ou, mais adiante: A escolha proposta pelos modernosno , portanto, entre realismo e construtivismo, mas entre essa prpria escolha e aexistncia prtica, a qual no compreende nem a formulao da escolha nem suaimportncia. (id.: 47). Isso poderia valer como ilustrao do conceito deleuziano dasntese disjuntiva: a meta-relao entre as disjunes exclusiva (a escolha) e inclusiva ,ela prpria, uma disjuno exclusiva, do ponto de vista da primeira ( precisoescolher!), e inclusiva, do ponto de vista da segunda (do que voc est falando?).

    24

  • II

    O Anti-dipo e a crtica do parentesco

    Se h efetivamente uma assimetria implicativa que pode ser dita primria dentro do

    sistema conceitual deleuziano, ela reside na distino entre o intensivo e o extensivo. A

    segunda parte deste artigo discute a relevncia dessa distino para a releitura feita

    em Capitalismo e esquizofrenia de duas categorias-chave da teoria clssica do parentes-

    co, a aliana e a !liao. A escolha se justi!ca, em primeiro lugar, porque o tratamento

    dado por Deleuze e Guattari a essas duas noes exprime com especial clareza um im-

    portante deslocamento terico que ocorre entre Anti-dipo e Mil plats; em segundo

    lugar, porque ele sugere a possibilidade de uma transformao da antropologia do pa-

    rentesco, de modo a alinh-la com os desenvolvimentos "no-humanistas" (preferiria

    cham-los de ps-ocidentais) que hoje ocorrem em outros campos de investigao

    (Jensen 2004). Pois a questo , efetivamente, a da possibilidade de converso das

    noes de aliana e de !liao, classicamente tomadas como as coordenadas bsicas

    da sociognese humana tal como efetuada em e pelo parentesco, em modalidades de

    abertura para o extra-humano. Em outras palavras, trata-se de saber como transformar

    essas noes, de operadores intra-antropolgicos, em operadores trans-ontolgicos.

    Se o humano no mais uma essncia, o que fazer do parentesco?

    Aps terem desempenhado um papel quase-totmico na antropologia entre os anos

    1950 e 1970, quando designavam duas concepes diametralmente opostas do paren-

    tesco (Dumont 1971), as noes de aliana e de !liao, seguindo o destino geral do

    paradigma morganiano em que se inseriam, perderam subitamente seu valor sinpti-

    co, assumindo a funo mais modesta de meras convenes analticas, isso quando

    no encerraram sua carreira ativa passando do uso meno.36 As pginas a seguir

    propem uma interrupo re"exiva desse movimento, sugerindo que algumas partes

    da teoria clssica podem ser recicladas. Certamente no o caso de se voltar ao statu

    36. A realidade (terica) do antagonismo entre essas duas concepes de parentesco, ateoria dos grupos de descendncia de origem britnica e a teoria da aliana decasamento de origem francesa, algo discutvel (Schneider 1965, 1984).

    25

  • quo ante e recomear os modelismos formais da aliana prescritiva, ou regredir me-

    tafsica substancialista dos grupos de descendncia. Trata-se, ao contrrio, de imaginar

    os delineamentos possveis de uma concepo rizomtica do parentesco capaz de ex-

    trair todas as consequncias da premissa segundo a qual as pessoas so integralmen-

    te constitudas por relaes (Strathern 1992b: 101).37 Se a teoria dos grupos de

    descendncia tinha como seu arqutipo abstrato as idias de substncia e identidade

    (o grupo enquanto indivduo metafsico), e a teoria da aliana matrimonial, as idias de

    oposio e totalizao (a sociedade como totalidade dialtica), a perspectiva aqui su-

    gerida procura na !loso!a de Deleuze alguns elementos para uma teoria do parentes-

    co enquanto diferena e multiplicidade (a relao como disjuno inclusiva).

    A antropologia social ocupa um lugar destacado em Capitalismo & esquizofrenia. Co-

    meando por Bachofen e Morgan, A origem da famlia e Totem e tabu, at chegar a Lvi-

    Strauss e Leach (estvamos em 1972), o primeiro livro do dptico reescreve do zero, por

    assim dizer, a teoria da socialidade primitiva. Seu principal interlocutor e alvo polmico

    o estruturalismo de Lvi-Strauss, a propsito do qual, e em larga medida contra o

    qual, so mobilizadas uma quantidade de referncias tericas e etnogr!cas, do fun-

    cionalismo de Malinowski ao estrutural-funcionalismo de Fortes, do experimento etno-

    gr!co de Griaule e Dieterlen ao etno-marxismo de Meillassoux e Terray, da

    segmentaridade relacional de Evans-Pritchard dramaturgia social de Victor Turner.38

    Para alm de seus efeitos desintoxicantes gerais, o Anti-dipo foi um livro que tambm

    marcou poca ou que deveria ter marcado tambm do ponto de vista restrito da

    antropologia do parentesco. Ao recusar tomar a famlia como referente primrio do de-

    sejo, de!nindo este como imediatamente social, o Anti-dipo articulava, com efeito,

    uma justi!cao !los!ca genrica (porque extensvel aos assim chamados sistemas

    descritivos) das posies anti-extensionistas e anti-genealogistas ento defendidas por

    diversos antroplogos. O argumento permanece importante ainda hoje ou voltou a

    37. Traduzo tendenciosamente o escorregadio original: persons have relations integral tothem. Note-se que a mesma autora observou (cf. supra) que as relaes fazem umadiferena entre as pessoas".

    38. A biblioteca etnolgica de Deleuze e Guattari possui uma fornida seo frica, o quere"ete as condies do meio antropolgico francs de ento, quando o africanismo era asubespecialidade de longe a mais difundida. Era entre os africanistas, alm disso, que seachavam os principais focos de oposio ao estruturalismo lvi-straussiano.

    26

  • s-lo, uma vez que a popularidade da interpretao genealgica ou gentica do

    parentesco est em recrudescncia, graas difuso das cosmologias neo-liberais den-

    tro das cincias humanas, e ao fato de que a semntica extensionista continua embuti-

    da nas diversas teorias antropolgicas que utilizam a noo de projeo metafrica

    para dar conta de modos de personi!cao vistos como ilegais em nossa cosmologia

    (como o caso, por exemplo, do grande livro recente de Descola [2006]).

    A tese da identidade imediata entre produo desejante e produo social se enqua-

    dra na problemtica mais ampla da literalidade na !loso!a de Deleuze, ou melhor, em

    sua recusa de qualquer distino entre discurso metafrico e no-metafrico (Zourabi-

    chvili 2004b). Neste sentido, menos que sustentando uma interpretao categorial da

    semntica do parentesco, nos termos do debate clssico genealogia versus categoria, o

    que est em jogo no Anti-dipo , antes, um contraste entre interpretaes intensivas-

    constitutivas e extensivas-regulativas das categorias e papis de parentesco. Mais uma

    vez, uma aproximao com Wagner se impe. Compare-se o que escreve este antrop-

    logo sobre o carter tautolgico da noo de proibio do incesto (Wagner 1972)

    impossvel separar relaes, categorias e papis de parentesco, visto que estes aspec-

    tos se interconstituem39 com os argumentos de Deleuze e Guattari sobre a impossi-

    bilidade do incesto:

    [A] possibilidade de incesto exigiria tanto as pessoas como osnomes !lho, irm, me, irmo, pai. Ora, no ato incestuoso,podemos dispor das pessoas, mas elas perdem seus nomes namedida em que esses nomes so inseparveis da proibio que osinterdita enquanto parceiros sexuais. Ou ento os nomes subsistem,mas no designam mais que estados intensivos pr-pessoais quepoderiam perfeitamente se estender a outras pessoas[] queno se pode jamais usufruir ao mesmo tempo da pessoa e donome o que seria contudo a condio do incesto. (A: 190).40

    Mas voltemos ao estruturalismo. A concepo lvi-straussiana do parentesco, fundada

    na deduo transcendental da proibio do incesto enquanto condio da sociogne-

    39. Se a relao parte da de!nio de uma categoria [] ento um enunciado deproibio de incesto relativo a categorias a mais pura e trivial das tautologias...(Wagner 1972: 603).

    40. Ou ainda: Na verdade, as pessoas globais a prpria forma das pessoas nopreexistem aos interditos que pesam sobre elas e as constituem (id.: 84). Ver Adler &Cartry 1971: 7, para um provvel fonte do argumento.

    27

  • se (Lvi-Strauss 1967), recusada por Deleuze e Guattari sob o argumento de que ela

    uma generalizao antropolgica do dipo. Os autores comparam desvantajosamente

    o Ensaio sobre o dom de Mauss (a referncia maior de Lvi-Strauss) Genealogia da

    moral de Nietzsche; o ltimo, sugerem, deveria ser o verdadeiro livro de cabeceira dos

    antroplogos (D.G. 1972: 224-ss). Mas essa diferena entre Mauss e Nietzsche talvez te-

    nha sido um pouco exagerada. A distino conceitual entre troca e dvida no to

    clara quanto os autores fazem-na parecer41. E a teoria nietzscheana da represso proto-

    histrica de uma memria biolgica, necessria para a criao de uma memria so-

    cial, no to antipodal assim ao paradigma antropogentico compartilhado pelas

    teorias maussianas e estruturalistas da troca. Penso que apenas quando Deleuze e

    Guattari determinam claramente o devir como anti-memria, no Mil plats (D.G. 1981:

    324), que se pode dizer que os termos do problema mudam radicalmente.42

    Parece-me, sobretudo, que a crtica anti-edipiana do parentesco feita no Anti-dipo

    parcial ou incompleta. O livro est !rmemente amarrado a uma concepo humanis-

    ta ou antropocntrica da socialidade; seu problema !los!co continua a ser o proble-

    ma da hominizao. Os defeitos desse foco s se mostram, por suposto, do ponto de

    vista radicalmente anedipiano do Mil plats, publicado uma dcada depois. O primeiro

    livro pretende ser uma crtica da psicanlise e do dipo; o vocabulrio quase parodis-

    ticamente kantiano: iluso transcendental, uso ilegtimo das snteses do inconsciente,

    os quatro paralogismos do dipo, e assim por diante.43 Pretendendo-se uma Crtica da

    41. Ela j aparece no estudo sobre Nietzsche; cf. D. 1962: 15542. O contraste Mauss/Nietzsche feito no Anti-dipo remete a um complexo pano de fundo

    polmico. Ele envolve os nomes de Hegel, Kojve, Bataille, o Colgio de Sociologia, e,mais proximamente, os de Lvi-Strauss, Lacan e Baudrillard entre outros. A economiageneralizada derivada por Bataille de uma leitura nietzscheana do Ensaio sobre o domno praticamente mencionada no Anti-dipo (mas ver op.cit.: 225). O desprezo deDeleuze e Guattari pela categoria batailleana da transgresso (a observao deLyotard) talvez explique parcialmente este quase-silncio. No ensaio sobre Klossowskiincludo na Lgica do Sentido, porm, Deleuze desenvolve um contraste entre troca,generalidade (equivalncia) e repetio falsa, de um lado, e dom, singularidade(diferena) e repetio autntica, do outro lado. Tal contraste se antecipa as teses doAnti-dipo a respeito da troca (ele tambm evocado na primeira pgina da Introduode Diferena e repetio D. 1968: 7), est de certa e ambgua forma conectado, viaKlossowski, a Bataille: Deleuze escreve que Thodore, o heri de um dos romances deKlossowki, sabe que a verdadeira repetio reside no dom, na economia do dom que seope economia mercantil da troca (...homenagem a Georges Bataille) (D. 1969: 334;reticncias no original).

    43. Ver D.G. 1972: 87-89, 129-34. No prefcio edio italiana de Mil plats, os autores

    28

  • Razo Psicanaltica, o Anti-dipo permanece com isso dentro do dipo; um livro ne-

    cessariamente, pior, dialeticamente edipiano. Na verdade, no seria descabido imagi-

    nar os autores do Mil plats a!rmando, ao considerarem seu livro precedente, que toda

    e qualquer interrogao de tipo antropolgico-!los!co sobre a distintividade da

    espcie ou condio humana, no importa o que sirva de signo ou causa de sua

    eleio (ou maldio) a criao especial, a alma imortal, a cerebralizao, a neotenia,

    a linguagem, o trabalho, o desejo, o tabu do incesto, a meta-intencionalidade, o in-

    consciente, a conscincia est irremediavelmente comprometida com o dipo. Pois

    com efeito, o objetivo de uma antropologia contempornea no pode ser mais o de

    encontrar o sucedneo da glndula pineal que faz os humanos diferentes do resto da

    natureza.44 Tanto quanto possa interessar natureza, essa diferena no faz muita di-

    ferena. Os antroplogos estaro mais bem ocupados estudando as diferenas que os

    humanos so efetivamente capazes de fazer; a diferena entre eles e os demais viven-

    tes apenas uma entre muitas delas, e no necessariamente a mais ntida, a mais est-

    vel ou a mais importante.

    A limitao de foco do primeiro volume de Capitalismo e esquizofrenia talvez explique

    a interpretao sistemtica da aliana como cumprindo a funo de transmissora do

    tringulo edipiano, argumento que pe a parentalidade como anterior conjugalida-

    de (a primeira se prolonga na segunda) e a aliana como meramente instrumental

    para a !liao (D.G. 1972: 85-86). Em outras palavras, a crtica das concepes troquis-

    tas articulada pelo Anti-dipo depende de uma contra-teoria do dipo, dentro da qual

    a !liao e a produo, antes que a aliana e a troca, so primordiais. Neste e em ou-

    tros sentidos, o Anti-dipo um livro anti-estruturalista. Mas, se seus autores tomaram

    assim suas distncias da avaliao lvi-straussiana da estrutura do parentesco humano,

    foi preciso primeiro que eles tivessem aceito alguns dos termos em que a questo do

    parentesco foi formulada antropologicamente por Lvi-Strauss. Eles parecem crer, por

    comentam: Anti-dipo tinha uma ambio kantiana (D.G. 2003 [1987]: 289).44. Nossa espcie como o anlogo biolgico do ocidente antropolgico, as outras espcies e

    os outros povos confundidos em uma comum alteridade privativa? Opo pelocolonialismo cosmolgico. Com efeito, perguntar-se sobre o que nos faz diferentes dosoutros animais, povos, tanto faz j uma resposta.

    29

  • exemplo, que a aliana diz respeito ao parentesco, e que o parentesco diz respeito

    sociedade. E isso justamente que vai mudar, do Anti-dipo ao Mil plats.

    Da filiao intensiva

    Contra o tema da troca como sntese sociogentica de interesses contraditrios, o Anti-

    dipo avana o postulado de que a mquina social responde ao problema da codi!-

    cao dos "uxos fugitivos de desejo. Deleuze e Guattari propem uma concepo

    que ao mesmo tempo inscritora a tarefa do socius marcar os corpos, a circulao

    uma atividade secundria (op.cit.: 217-ss.) e integralmente producionista: tudo

    produo" (id.: 10, eu grifo). No melhor estilo Grundrisse, a produo, a distribuio e o

    consumo so postos como diferentes momentos de uma Produo vista como proces-

    so universal. A inscrio um momento desse processo, o momento do registro ou co-

    di!cao da produo, que contra-efetua um socius fetichizado como instncia do

    Dado natural ou divino, superfcie mgica de inscrio e elemento de anti-produo (o

    chamado Corpo sem rgos).

    O captulo 3, parte central e mais longa do livro, comea por uma exposio das carac-

    tersticas da mquina territorial primitiva e de sua caracterstica declinao da

    aliana e da !liao (id.: 171). A hiptese fundamental na construo de uma teoria al-

    ternativa ao estruturalismo, a esse respeito, consiste em fazer a !liao aparecer duas

    vezes, a primeira vez como estado genrico e intensivo do parentesco, a segunda

    como estado particular e extensivo em oposio complementar aliana. A aliana

    aparece apenas no momento extensivo; sua funo precisamente a de extensivizar e

    codi!car o parentesco, isto , atualiz-lo.

    Deleuze e Guattari postulam a existncia primordial de uma !liao pr-cosmolgica

    intensa, germinal, disjuntiva, noturna e ambgua, um implexo ou in"uxo germinal

    (id.: 191) que o primeiro carter de inscrio marcado sobre o corpo pleno e inengen-

    drado da terra: fora pura da !liao ou genealogia. Numen. (id.: 181).45 Essa anlise do

    45. Note-se que crtica deleuziana ao extensionismo genealgico no implica em umsociologismo anti-biolgico: intil dizer que a !liao social e no biolgica ela necessariamente bio-social, na medida em que se inscreve no ovo csmico do corpo

    30

  • parentesco primitivo se apia quase exclusivamente em uma interpretao das narrati-

    vas mticas coletadas por Marcel Griaule e sua equipe, em particular no clebre mito de

    origem dos Dogon publicado em Le renard ple (Griaule & Dieterlen 1965): o ovo cs-

    mico Amma, a Terra placentria, o trickster incestuoso Yuruggu, os Nommo, gmeos

    hermafroditas e semi-o!diomorfos, e assim por diante.

    O papel que a narrativa desempenha no captulo 3 (Selvagens, brbaros, civilizados)

    de grande relevncia terica. Ela funciona como uma espcie de anti-mito de dipo,

    ou talvez como o mito do Anti-dipo.46 No captulo 2 (Psicanlise e familialismo), os

    autores haviam desenvolvido longamente um contraste entre as concepes teatral-

    expressiva e maqunico-produtiva do inconsciente, contraste que os levara a colocar

    mais de uma vez a questo impaciente: por que voltar ao mito? (D.G. 1972: 67, 99,

    134), criticando o uso emblemtico feito pela psicanlise da velha narrativa grega.

    Quando os autores levam a cabo sua reconstruo da antropologia do parentesco no

    captulo seguinte (op.cit.: 181-195), porm, constata-se que so eles mesmos que, no

    !m das contas, voltam ao mito. A introduo dos materiais dogon, com efeito, no se

    faz sem uma radical reapreciao do conceito de mito por Deleuze e Guattari. Citemos

    a passagem pertinente:

    [O] recurso ao mito indispensvel, no porque ele seja umarepresentao transposta ou mesmo invertida das relaes reais emextenso, mas porque apenas o mito determina conformemente aopensamento e prtica indgenas as condies intensivas dosistema (o sistema de produo inclusive). (D.G. 1972: 185).

    Essa avaliao aparentemente discordante, dentro do Anti-dipo, do recurso ao mito

    exigiria uma considerao mais profunda do que me sinto em condies de fazer no

    momento. A ttulo de especulao, diria que o que vemos, entre as referncias hist-

    ria de dipo e ao ciclo da Raposa Plida, menos uma diferena de atitude em relao

    pleno da terra (id.: 181). Mas igualmente desnecessrio lembrar que esse ovobiocsmico um personagem completamente diferente, por exemplo, do gene egosta.

    46. O artigo de Cartry & Adler (1971) sobre o mito dogon est na origem da importnciaatribuda aos materiais dogon; ele citado em momentos cruciais da anlise. Esses doisantroplogos, juntamente com A. Zemplni, leram atentamente o rascunho do terceirocaptulo do Anti-dipo (cf. Nadaud 2004: 20-21). Ao mesmo tempo, as idias de Deleuze eGuattari tiveram uma in"uncia determinante sobre o estudo de Cartry e Adler (1971: 37n.1).

    31

  • a um mesmo mito que uma diferena no mito mesmo, uma diferena interna ao que

    chamamos mito: a histria de dipo pertence ao regime (brbaro) do signi!cante

    desptico, ao passo que a narrativa dogon pertenceria mais bem ao regime selvagem

    da semitica primitiva ou pr-signi!cante (no sentido de D.G. 1981: 147-ss). No se

    trata pois de um mesmo mito, de um mesmo outro genrico do logos; h mito e mito.

    A questo do sentido inteiramente diverso que assume a enunciao mtica quando

    samos do mundo pr-!los!co dos Mestres da Verdade (Detienne 1981 [1967]) e seu

    regime monrquico de enunciao, mundo clssico do helenista, do historiador da !-

    loso!a, para entrar no mundo extra-!los!co das sociedades contra o Estado, mundo

    do pensamento selvagem, da alteridade antropolgica radical, bem, essa questo

    ainda no recebeu um desenvolvimento altura.47

    Mas o meta-mito dogon no um exemplo qualquer de mitopoiese selvagem. Ele

    um mito cosmognico de uma populao da frica ocidental, regio onde viceja uma

    cultura do parentesco marcada pelas idias de ancestralidade e descendncia, e pela

    presena de agrupamentos polticos constitudos na base de uma origem parental co-

    mum (linhagens). No de surpreender, assim, que os autores do Anti-dipo cheguem

    com o auxlio desse mito !liao como dimenso originria da relacionalidade de pa-

    rentesco, e vejam a aliana como uma dimenso apenas superveniente, cuja funo se-

    ria a de diferenciar as a!liaes linhageiras. Estamos no interior de um universo de

    parentesco classicamente fortesiano (Fortes 1969, 1983). O que intenso e primordial

    so as linhagens !liativas ambguas, involudas, implicadas e (pr-)incestuosas, as quais

    perdem seu uso inclusivo e ilimitativo na medida que, sendo o objeto de uma mem-

    ria noturna e biocsmica, devem sofrer o recalque exercido atravs da aliana para

    que se possam explicar e atualizar no espao fsico do socius (D.G. 1972: 183).

    Mas tudo se passa como se o sistema dos Dogon, que so sinedoquicamente os Selva-

    gens naquela altura do Anti-dipo, exprimissem a teoria da descendncia no plano vir-

    tual ou intensivo e a teoria da aliana no plano atual ou extensivo. Pois os autores

    fazem inteiramente suas as crticas de Leach a Fortes a respeito da !liao comple-

    mentar, assim como concluem, de uma demonstrao paradigmtica de Lvi-Strauss

    47. Ver Richir 1994, para algumas sugestes interessantes. O conhecido debate entre Lvi-Strauss e Ricur a respeito da anlise estrutural dos mitos se radica nessa diferena.

    32

  • sobre a lgica do casamento de primos cruzados (1967: 151-54), que em momento al-

    gum a aliana deriva da !liao, e que nesse sistema em extenso, no h !liao

    primeira nem gerao primeira ou troca inicial, mas j e desde sempre alianas (D.G.

    1972: 184).48 Na ordem do extensivo, a !liao se reveste de um carter "administrativo

    e hierrquico", ao passo que a aliana, que nesta ordem primeira, "poltica e econ-

    mica" (op.cit.: 172). O a!m, o aliado de casamento como personagem sociopoltico,

    est l desde o princpio para impedir o fechamento edipiano da famlia diante do so-

    cius, ao fazer com que as relaes familiares sejam sempre relaes coextensivas ao

    campo social (id.:196). Mas existe algo antes do princpio: na ordem da gnese metaf-

    sica, isto , do ponto de vista mtico (id.: 185), a aliana segunda. O sistema em ex-

    tenso nasce das condies intensivas que o tornam possvel, mas ele reage sobre elas,

    elas as anula e recalca, no lhes permitindo seno uma expresso mtica (id.:188). (Fica

    a questo de saber o que seria uma expresso mtica em sentido no-trivial, j que o

    mito no expressivo, mas condicionante [id.: 185].)

    O campo do parentesco ps-proibio do incesto , portanto, concebido em termos de

    uma relao de pressuposio recproca entre a aliana e a !liao, comandada atual-

    mente (poltico-economicamente) pela primeira e virtualmente (miticamente) pela se-

    gunda. O plano intensivo do mito povoado por !liaes (pr-)incestuosas que

    ignoram a aliana. A noo de uma a!nidade intensiva seria nesse caso auto-contra-

    ditria, ou quase isso. O mito intensivo porque (pr-)incestuoso, e vice-versa: a

    aliana de fato o princpio da sociedade, e o !m do mito. difcil no se recordar aqui

    do ltimo pargrafo das Estruturas elementares do parentesco, onde Lvi-Strauss obser-

    va que, em seus mitos sobre a Idade de Ouro e o Alm, a humanidade sonha em cap-

    turar e !xar aquele instante fugidio em que lhe foi permitido crer que podia trapacear

    com a lei da troca, ganhando sem perder, desfrutando sem partilhar, e que assim para

    ela a felicidade completa, eternamente negada ao homem social, aquela que consis-

    te em viver entre si (1967: 569-70, grifo no original). Mas compare-se essa constatao,

    !nalmente to freudiana, com um outro passo clebre da obra de Lvi-Strauss, onde o

    48. Ver tambm: nas estruturas de parentesco, difcil evitar proceder como se as alianasderivassem das linhas de !liao e das relaes entre elas, embora sejam as alianaslaterais e os blocos de dvida que condicionam as !liaes estendidas do sistema emextenso, e no o contrrio (op.cit.: 220). Este um raciocnio estruturalista tpico.

    33

  • antroplogo de!ne o mito como sendo uma histria do tempo em que os humanos e

    os animais no se distinguiam entre si (Lvi-Strauss & Eribon 1988: 193), acrescentan-

    do que a humanidade jamais conseguiu se resignar diante da falta de acesso comuni-

    cativo s outras espcies do planeta. Ora, a nostalgia de uma comunicao originria

    entre todas as espcies no exatamente a mesma coisa que aquela nostalgia da vida

    entre si responsvel pela fantasia do incesto pstumo. Muito ao contrrio. Ou no?

    Reformulando o problema nos termos da economia conceitual deleuziana, parece-me

    que o aspecto crucial da anlise do mito dogon a determinao da !liao intensiva

    como operador da sntese disjuntiva de inscrio o(s) Nommo que /so um e dois,

    homem e mulher, humano e ofdio; a Raposa Plida que ao mesmo tempo !lho,

    irmo e esposo da Terra etc. , ao passo que a aliana o operador da sntese

    conjuntiva:

    Assim a aliana, a segunda caracterstica da inscrio: a alianaimpe s conexes produtivas a forma extensiva de umaconjugao de pessoas, compatvel com as disjunes da inscrio,mas, inversamente, ela reage sobre a inscrio ao determinar umuso exclusivo e limitativo dessas prprias disjunes. assiminevitvel que a aliana seja representada miticamente comosobrevindo, a partir de um certo momento, s linhas !liativas (aindaque, em outro sentido, ela sempre tenha estado l). (D.G. 1981: 182)

    Vimos mais acima que a sntese disjuntiva o regime relacional caracterstico das mul-

    tiplicidades. Como se l logo em seguida ao trecho acima, o problema no o de ir das

    !liaes s alianas, mas o de passar de uma ordem energtica intensiva a um sistema

    extensivo. E nesse sentido,

    o fato de que a energia primria da ordem intensiva seja umaenergia de !liao no muda nada, pois esta !liao intensa aindano est estendida, no comportando ainda nenhuma distinoentre pessoas, ou mesmo entre os sexos, mas apenas variaes pr-pessoais em intensidade (op.cit.: 183).

    Aqui caberia apenas acrescentar que se essa ordem intensiva no conhece distino

    de pessoas nem de gneros, tampouco conhece qualquer distino de espcies, parti-

    cularmente uma distino entre humanos e no-humanos: no mito, todos os actantes

    ocupam um campo interacional nico, ao mesmo tempo ontologicamente heterog-

    34

  • neo e sociologicamente contnuo; ali onde toda coisa humana, o humano toda

    uma outra coisa.49

    Abre-se ento a questo: se o fato da energia primria ser uma energia de !liao no

    muda nada, possvel determinar uma ordem intensiva onde a energia primria seja

    uma energia de aliana? realmente necessrio que a aliana funcione apenas e sem-

    pre para ordenar, discernir, discretizar e policiar uma !liao pr-incestuosa anterior?

    Ou seria concebvel uma aliana intensa, anedipiana, que comp