filhos da terra, de jean auel: uma saga na era glaciar · referindo-se-lhes como cabe-ças...

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Postal do Algarve Tiragem: 7927 País: Portugal Period.: Mensal Âmbito: Regional Pág: 4 Cores: Cor Área: 19,50 x 27,00 cm² Corte: 1 de 1 ID: 57535928 16-01-2015 | Cultura.Sul Filhos da Terra, de Jean Auel: Uma saga na era glaciar Jean Auel é conhecida por um único conjunto de obras, a Saga dos Filhos da Terra. Os primeiros quatro títulos desta saga só foram traduzi- dos em Portugal pela Europa- -América em questão (ainda que a qualidade de tradução e edição desta editora sejam discutíveis), embora sejam também já quase impossíveis de encontrar. Em 2006, a Esfera dos Livros avançou com nova tradução e edição de O Clã do Urso das Cavernas (originalmente pu- blicado em 1980) e uns quan- tos volumes depois a editora Clube do Autor decidiu, em boa hora, publicar o último desta saga, intitulado A Mãe Terra. Este título não faz jus- tiça ao título original em in- glês, que é The land of painted caves, o sexto volume da saga. A nota negativa a fazer nes- ta recensão é mesmo a da infe- licidade de as editoras, que de- cidiram apostar nesta autora que tem 45 milhões de segui- dores em todo o mundo, igno- raram completamente a ideia de continuidade de uma saga. É preciso reconhecer que para ler esta saga é realmente ne- cessário ter tempo, paciência e persistência, pois já vamos em seis volumes e cada um dos livros não tem menos de 600 páginas cada. Todavia, é possí- vel assegurar aos leitores que as traduções da Europa-Amé- rica não são más, muito pelo contrário, apesar de virem di- vididas em dois tomos (hábito usual a esta editora, aliás) e de os volumes traduzidos terem sido integrados na coleção Né- bula, que pertence ao domínio da Ficção Científica. A autora fez uma apurada pesquisa histórica e em diver- sos momentos dos seus livros são-nos descritos momentos de forma exaustiva, com preci- são e rigor histórico e científi- co, de certas situações e ações quotidianas como acender o fogo, fabricar instrumentos de caça, modo de confecio- nar alimentos ou de preparar peles, propriedades curativas de plantas, etc. Daí que seja preciso alguma persistência e gosto pela informação his- tórica em que estes livros são ricos. Por outro lado, a fantasia também prima nesta saga, no- meadamente porque a perso- nagem de Ayla irá destacar-se como líder espiritual, daí que sejam recorrentes as referên- cias a presságios, sonhos, ao contacto com o mundo dos espíritos e às viagens astrais de Ayla (em que o espírito deixa o corpo e viaja livremente pelo espaço). A saga segue assim a vida desta jovem, encontrada aos 4 ou 5 anos, depois de ter so- brevivido a um ataque de um grande leão das cavernas, de que guarda aliás a cicatriz fei- ta pela garra do leão, e que é resgatada e adotada por uma mulher que pertence ao clã do urso das cavernas, um grupo de homens Cro-Magnon. A autora segue nos seus li- vros a hipótese de que os ho- mens de Cro-Magnon terão convivido com o Homem de Neanderthal em certas zonas da Europa. Contudo, esse con- vívio não parece ter sido pací- fico, tanto que o clã coloca fortes entraves à inclusão da menina, e, no segundo volu- me da saga, percebemos que a espécie mais evoluída do homem de Neanderthal sen- te aversão pelos Cro-Magnon, referindo-se-lhes como Cabe- ças Achatadas. Ayla irá então enfrentar di- versos desafios ao longo do primeiro volume, a começar por uma rejeição quase ab- soluta de todo o clã, acolhida apenas por Iza, a curandeira, e Mogur, o líder espiritual, uma espécie de xamã, que a irão também amar como se fosse sua filha e educar. Desde cedo, percebemos que Ayla é efetiva- mente muito inteligente e re- cusa-se a seguir as convenções impostas às outras mulheres do clã, por exemplo quando segue os homens e aprende a caçar por si própria, ativida- de absolutamente proibida ao sexo feminino. Ayla irá mesmo criar a sua funda e torna-se perita em lançamen- tos rápidos, con- seguindo atirar duas pedras seguidas, e com pontaria pre- cisa. A mulher do clã pretende- -se também submissa pelo que a jovem Ayla, já quase mulher, começa a ser violada por um dos homens do clã e acaba por ser mãe. No final Ayla é expulsa, sendo considerada como morta para todo o clã, que se recusa a reconhecer a sua existência, fingindo que não a veem e não lhe dirigin- do a palavra. No segundo volume da saga, O vale dos Cavalos, se- guimos alternadamente o período de reclusão de Ayla num vale e Jondalar, que par- tiu numa espécie de busca com o irmão, para conhecer outros povos que vivem em regiões mais distantes do seu povo, os Zelandonii. Ayla de- pois de ser expulsa pelo clã en- frenta as agruras de um clima agreste próprio da era glaciar e caminha durante um lon- go período até encontrar um vale que lhe parece agradável e propício à sua sobrevivência, onde  encontra também a gru- ta ideal que se tornará na sua morada durante os próximos anos, onde vive completamen- te isolada, a tentar perceber o que é isso de ser considera- da morta para o clã. Até que percebe que afinal a sua vida continua quando subitamen- te salva Jondalar, mas isso só acontecerá umas três prima- veras mais tarde... Entretanto seguimos a vida própria de um eremita que esta jovem leva e percebemos os desafios que na época os nossos antepassados enfrentavam. Ayla irá ainda domesticar uma égua, atreven- do-se mesmo a montá-la e de- pois a usá-la para transportar cargas mais pesadas. Mais in- crível ainda é o momento em que Ayla encontra um leão das cavernas bebé e decide adop- tá-lo. Mais tarde, conhece Jon- dalar ao salvá-lo de um ataque de um leão e acolhe-o na sua gruta, assistindo e ajudando à sua recuperação. Ayla apren- derá a comunicar oralmente (pois o clã comunicava gestu- almente) e irá assombrar Jon- dalar com os conhecimentos que possui como curandeira, a sua capacidade de caçar e a forma como aprendeu a fazer fogo. Até que ambos se apaixo- nam e Ayla aprende as alegrias de partilhar os prazeres com um homem, depois de ter sido abusada por diversas vezes en- tre os homens do clã. No terceiro volume, Os ca- çadores de Mamutes, Jonda- lar e Ayla decidem partir em busca do povo dele, num re- gresso a casa, e encontram os Mamutoi. Ayla conhece pela primeira vez outros como ela, além de Jondalar, e apesar do receio de Jondalar, dada a sua diferença em termos de com- portamento, por ter vivido en- tre os cabeças achatadas, Ayla será vista por todos como uma mulher que parece encarnar a essência de Mut, a Mãe Terra, nomeadamente na sua capa- cidade de comunicar com os animais, de os fazer obedecer, e pelas suas artes curativas, além da sua inegável beleza e porte distinto. Em As Planícies de passa- gem o casal continuará o seu caminho em busca do povo de Jondalar, vivendo novas aventuras. O único título que não está traduzido é o quinto volume, The shelters of sto- ne (2002). No último volume, A Mãe Terra, iremos deparar- -nos com o que poderá ser uma conclusão desta viagem até à Idade do Gelo, através da Europa que existiu entre 35 e 25 mil anos a.C., num volume onde se abordará ainda o mis- ticismo das cavernas sagradas e, como o título indica, das pinturas rupestres, quando Ayla e Jondalar são já pais, de uma menina chamada Jonayla, o que simboliza a junção dos seus espíritos. Paulo Serra Investigador da UAlg associado ao CLEPUL Letras e Leituras FOTOS: D.R. A escritora Jean Auel

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Postal do Algarve Tiragem: 7927

País: Portugal

Period.: Mensal

Âmbito: Regional

Pág: 4

Cores: Cor

Área: 19,50 x 27,00 cm²

Corte: 1 de 1ID: 57535928 16-01-2015 | Cultura.Sul

Filhos da Terra, de Jean Auel:Uma saga na era glaciar

Jean Auel é conhecida por um único conjunto de obras, a Saga dos Filhos da Terra.

Os primeiros quatro títulos desta saga só foram traduzi-dos em Portugal pela Europa--América em questão (ainda que a qualidade de tradução e edição desta editora sejam discutíveis), embora sejam também já quase impossíveis de encontrar.

Em 2006, a Esfera dos Livros avançou com nova tradução e edição de O Clã do Urso das Cavernas (originalmente pu-blicado em 1980) e uns quan-tos volumes depois a editora Clube do Autor decidiu, em boa hora, publicar o último desta saga, intitulado A Mãe Terra. Este título não faz jus-tiça ao título original em in-glês, que é The land of painted caves, o sexto volume da saga.

A nota negativa a fazer nes-ta recensão é mesmo a da infe-licidade de as editoras, que de-cidiram apostar nesta autora que tem 45 milhões de segui-dores em todo o mundo, igno-raram completamente a ideia de continuidade de uma saga. É preciso reconhecer que para ler esta saga é realmente ne-cessário ter tempo, paciência e persistência, pois já vamos em seis volumes e cada um dos livros não tem menos de 600 páginas cada. Todavia, é possí-vel assegurar aos leitores que as traduções da Europa-Amé-rica não são más, muito pelo contrário, apesar de virem di-vididas em dois tomos (hábito usual a esta editora, aliás) e de os volumes traduzidos terem sido integrados na coleção Né-bula, que pertence ao domínio da Ficção Científica.

A autora fez uma apurada pesquisa histórica e em diver-sos momentos dos seus livros são-nos descritos momentos de forma exaustiva, com preci-são e rigor histórico e científi-co, de certas situações e ações quotidianas como acender o

fogo, fabricar instrumentos de caça, modo de confecio-nar alimentos ou de preparar peles, propriedades curativas de plantas, etc. Daí que seja preciso alguma persistência e gosto pela informação his-tórica em que estes livros são ricos. Por outro lado, a fantasia também prima nesta saga, no-meadamente porque a perso-nagem de Ayla irá destacar-se como líder espiritual, daí que sejam recorrentes as referên-cias a presságios, sonhos, ao contacto com o mundo dos espíritos e às viagens astrais de Ayla (em que o espírito deixa o corpo e viaja livremente pelo espaço).

A saga segue assim a vida desta jovem, encontrada aos 4 ou 5 anos, depois de ter so-brevivido a um ataque de um grande leão das cavernas, de que guarda aliás a cicatriz fei-ta pela garra do leão, e que é resgatada e adotada por uma mulher que pertence ao clã do urso das cavernas, um grupo de homens Cro-Magnon.

A autora segue nos seus li-

vros a hipótese de que os ho-mens de Cro-Magnon terão convivido com o Homem de Neanderthal em certas zonas da Europa. Contudo, esse con-vívio não parece ter sido pací-fico, tanto que o clã coloca fortes entraves à inclusão da menina, e, no segundo volu-me da saga, percebemos que a espécie mais evoluída do homem de Neanderthal sen-te aversão pelos Cro-Magnon, referindo-se-lhes como Cabe-ças Achatadas. 

Ayla irá então enfrentar di-versos desafios ao longo do primeiro volume, a começar por uma rejeição quase ab-soluta de todo o clã, acolhida apenas por Iza, a curandeira, e Mogur, o líder espiritual, uma espécie de xamã, que a irão também amar como se fosse sua filha e educar. Desde cedo, percebemos que Ayla é efetiva-mente muito inteligente e re-cusa-se a seguir as convenções impostas às outras mulheres do clã, por exemplo quando segue os homens e aprende a caçar por si própria, ativida-

de absolutamente proibida ao sexo feminino. Ayla irá mesmo criar a sua funda e torna-se perita em lançamen-

tos rápidos, con-seguindo atirar duas pedras seguidas, e com pontaria pre-cisa. A mulher do clã pretende--se também submissa pelo que a jovem Ayla, já quase mulher, começa a ser violada por um dos homens do clã e acaba por ser mãe. No final Ayla é expulsa, sendo considerada como morta para todo o clã, que se recusa a reconhecer a sua existência, fingindo que não a veem e não lhe dirigin-do a palavra.

No segundo volume da saga, O vale dos Cavalos, se-guimos alternadamente o período de reclusão de Ayla num vale e Jondalar, que par-tiu numa espécie de busca com o irmão, para conhecer outros povos que vivem em regiões mais distantes do seu povo, os Zelandonii. Ayla de-pois de ser expulsa pelo clã en-frenta as agruras de um clima agreste próprio da era glaciar e caminha durante um lon-go período até encontrar um vale que lhe parece agradável e propício à sua sobrevivência, onde  encontra também a gru-ta ideal que se tornará na sua morada durante os próximos

anos, onde vive completamen-te isolada, a tentar perceber o que é isso de ser considera-da morta para o clã. Até que percebe que afinal a sua vida continua quando subitamen-te salva Jondalar, mas isso só acontecerá umas três prima-veras mais tarde... Entretanto seguimos a vida própria de um eremita que esta jovem leva e percebemos os desafios que na época os nossos antepassados enfrentavam. Ayla irá ainda domesticar uma égua, atreven-do-se mesmo a montá-la e de-pois a usá-la para transportar cargas mais pesadas. Mais in-crível ainda é o momento em que Ayla encontra um leão das cavernas bebé e decide adop-tá-lo. Mais tarde, conhece Jon-dalar ao salvá-lo de um ataque de um leão e acolhe-o na sua gruta, assistindo e ajudando à sua recuperação. Ayla apren-derá a comunicar oralmente (pois o clã comunicava gestu-almente) e irá assombrar Jon-dalar com os conhecimentos que possui como curandeira, a sua capacidade de caçar e a forma como aprendeu a fazer fogo. Até que ambos se apaixo-nam e Ayla aprende as alegrias de partilhar os prazeres com um homem, depois de ter sido abusada por diversas vezes en-tre os homens do clã.

No terceiro volume, Os ca-çadores de Mamutes, Jonda-

lar e Ayla decidem partir em busca do povo dele, num re-gresso a casa, e encontram os Mamutoi. Ayla conhece pela primeira vez outros como ela, além de Jondalar, e apesar do receio de Jondalar, dada a sua diferença em termos de com-portamento, por ter vivido en-tre os cabeças achatadas, Ayla será vista por todos como uma mulher que parece encarnar a essência de Mut, a Mãe Terra, nomeadamente na sua capa-cidade de comunicar com os animais, de os fazer obedecer, e pelas suas artes curativas, além da sua inegável beleza e porte distinto.

Em As Planícies de passa-gem o casal continuará o seu caminho em busca do povo de Jondalar, vivendo novas aventuras. O único título que não está traduzido é o quinto volume,  The shelters of sto-ne (2002). No último volume, A Mãe Terra, iremos deparar--nos com o que poderá ser uma conclusão desta viagem até à Idade do Gelo, através da Europa que existiu entre 35 e 25 mil anos a.C., num volume onde se abordará ainda o mis-ticismo das cavernas sagradas e, como o título indica, das pinturas rupestres, quando Ayla e Jondalar são já pais, de uma menina chamada Jonayla, o que simboliza a junção dos seus espíritos.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

Letras e Leituras

fotos: d.r.

A escritora Jean Auel