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CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS:
A QUESTO DAS CORRENTES DE PENSAMENTO EM PSICOLOGIA.
Lus Cludio Figueiredo
RESUMO
FIGUEIREDO, Lus Cludio. Convergncias e divergncias a questo das correntes de
pensamento em psicologia. Transinformao, 4(1, 2, 3) 15 -26, jan/dez 1992.
O presente texto trata do campo dos saberes psicolgicos como sendo um
campo de disperso e, portanto, como estando atravessado e constitudo por um
feixe de divergncias que se situam em diferentes planos: um plano ontolgico, no
epistemolgico e no tico. Discutem-se, ento, formas mais ou menos maduras de
lidar com estas divergncias e de procurar alm delas perspectivas convergentes. A
principal tese aqui defendida a de que precisamos conservar a diversidade naunidade e a unidade na diversidade ou seja, precisamos reconhecer e respeitar as
diferenas em toda complexidade e radicalidade e ao mesmo tempo compreend-las
na sua organizao interna, nas suas origens e nas suas implicaes colocando-as
continuamente em debate e mantendo assim permanentemente em aberto a prpria
questo.
Palavras-chave:pensamentos divergentes, cincia, produo cientfica.
O presente texto1 enfoca um tema a que me venho dedicado h cerca de quinze anos e no
qual venho investindo uma parte substancial do meu esforo de pesquisa e reflexo. No entanto,
quero, tambm, de antemo, fazer uma advertncia: estes anos todos no foram suficientes para que
eu possa hoje oferecer respostas completas e convincentes aos inmeros e angustiantes problemas
que decorem da fragmentao do conhecimento psicolgico.
Poderia dizer, contudo, que o ganho tem sido exatamente o de fazer avanar o problema no
sentido de mant-lo aberto, tornando-o para mim mesmo mais claramente delineado. Isto, talvez,
1 O presente texto foi originalmente apresentado na forma de uma palestra no Hospital da UFRGS. Porto Alegre emNovembro de 1992.
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seja pouco para oferecer, mas no gostaria de decepcionar excessivamente meus eventuais leitores
prometendo mais do que realmente me acho em condies de oferecer.
Ao longo destas pginas tratarei em primeiro lugar da prpria dificuldade que ns
psiclogos encontramos por ter de lidar com a fragmentao de nossos saberes; veremos como
freqentemente, atordoados pelas divergncias e ansiando por convergncias e unidades,
enveredamos pelos caminhos perigosos do dogmatismo e do ecletismo. Em seguida, apresentarei
algumas perspectivas que me parecem mais maduras e profcuas para enfrentar estas questes. Estas
perspectivas dizem respeito, primeiramente, a tentativas de compreender a estrutura da disperso (
que parece catica mas na verdade tem sua prpria organizao); em segundo lugar trata-se de
avaliar o alcance da divergncias ( que muito mais amplo, profundo e complexo daquilo que
poderamos chamar apenas de divergncias tericas); no exame deste alcance ser muito enfatizado
a dimenso propriamente tica envolvida na questo.
I
Faz parte do conhecimento de todo psiclogo, de todo professor de psicologia e de todo
aluno em formao o estado fragmentar do conhecimento psicolgico. A propsito, Luiz Alfredo
Garcia-Roza referiu-se psicologia como um espao de disperso. Para quem acompanha a
histria desta rea de produo de saberes e de prticas fica muito claro que esta designao serve
para caracterizar a psicologia pelo menos nos ltimos 100 anos e nada indica que v perder a
validade nos anos futuros. Efetivamente, a ocupao do espao psicolgico pelas teorias e sistemas
no deu lugar formao de um continente, mas sim de um arquiplago conceitual e tecnolgico.
Ou seja, no se trata de um territrio uno e integrado, embora tambm no sejam ilhas totalmente
avulsas e desconectadas. Na verdade ao longo de cerca de 40 anos, as duas ltimas dcadas do
sculo XIX e as duas primeiras do sculo XX surgiram, quase que simultaneamente, as grandes
propostas de apreenso terica do psicolgico ou do comportamental. De l para c o que assistimos
foi a consolidao de micro - comunidades relativamente independentes, cada qual com suascrenas, seu mtodos, seus objetivos, seus estilos, suas linguagens e suas histrias particulares. No
entanto, a independncia no completa, o que se mostra de variadas maneiras.
Por exemplo: via de regra, dentro de um curso de formao de psiclogos esto
representadas muitas (mas no todas) destas comunidades. Os alunos ao ingressarem no curso e
entrando em contato com o currculo podem ficar, de incio, com a expectativa de que vrias
disciplinas iro se organizar harmonicamente, convergindo para uma meta comum, segundo uma
concepo compartilhada por todos os professores do que seja pensar e fazer psicologia. Muitorapidamente eles percebem que algo no caminha conforme o esperado. Costuma emergir ento, um
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certo desassossego e uma certa desconfiana. Penso que algo que merecia ser prontamente
tematizado a relao entre o estado um tanto catico e inevitavelmente desarticulado de qualquer
currculo de formao em psicologia e as condies histricas desta rea. Esta j seria uma boa
razo para atribuirmos ao estudo da histria da psicologia, ou das psicologias, um lugar privilegiado
na formao do psiclogo. claro que esta histria no poderia ser apenas, como freqentemente
ocorre, uma exposio das teorias e sistemas; seria necessrio enveredar pelo estudo dos nveis ou
planos em que estes sistemas podem ser confrontados e compreendidos como legtimos habitantes
do espao psicolgico, seria ainda necessrio identificar suas posies particulares dentro deste
espao, com todas as implicaes prticas, tcnicas e ticas que lhes correspondem. A isso voltarei
mais tarde.
Na ausncia de uma compreenso mais abrangente e profunda do nosso espao de disperso
experimenta-se um sutil mal-estar que poderia ocasionalmente converter-se em episdios deangstia. Se esta no aparece claramente porque contra ela logo emergem duas reaes muito
tpicas e perniciosas; o dogmatismo e o ecletismo.No primeiro caso, o psiclogo em formao ou
j formado tranca-se dentro de suas crenas e ensurdece para tudo que possa contest-las. No
segundo adota indiscriminadamente todas as crenas, mtodos, tcnicas e instrumentos disponveis
de acordo com sua compreenso do que lhe parece necessrio para enfrentar unificadamente os
desafios da prtica.
preciso perceber o que estas duas defesas contra a angstia tm em comum: elasbloqueiam o acesso experincia. No caso do dogmatismo a minha afirmao deve parecer bvia:
quem se agarra aos sistemas como tbua de salvao no s no pode ouvir as interpretaes que
viriam de outras vozes tericas ( que ficam de antemo desqualificadas ), mas tambm no se
permite ouvir o que sua prtica tem a dizer, salvo na medida em que se encaixe no esquema do que
o psiclogo pensa que sabe. Eu no estou aqui defendendo uma posio ingenuamente empirista, sei
muito bem que as teorias so indispensveis para que se torne inteligvel o campo das experincias;
so elas que nos ajudam na tarefa de configurao deste campo e sem elas estaramos
desempregados diante de uma proliferao de acontecimentos completamente fora do nosso
manejo. Contudo, o reconhecimento deste papel para as teorias e mais amplamente o
reconhecimento de que no h experincia sem pressupostos no se pode confundir com o
aferramento dogmtico a um conjunto de crenas que resulte na prpria impossibilitao de
qualquer experincia nova.
A posio ecltica apenas aparentemente escapa deste cativeiro: ocorre, na verdade, que o
ecltico lana mo de tudo, sem rigor e sem compromissos, a partir de um plano de compreenso
que, este, nunca questionado: o do senso comum. neste nvel do senso comum que o ecltico
acha que no fundo existe uma unidade entre as teorias e sistemas, que as tcnicas e instrumentos
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se complementam, que ele as avalia, que ele supe identificar as necessidades de seus clientes,
etc., etc. A priso do senso comum mais invisvel exatamente porque mais prxima e
envolvente, mas ela , tal como o dogmatismo, um limite e um bloqueio. De fato, seja, enclausurado
dogmaticamente na sua teoria ou ingenuamente enclausurado no senso comum o psiclogo que
cede tentao de escapar da angstia atravs destas formas bastardas de unificao perde a
capacidade de experimentar. O que experimentar, efetivamente, seno entrar em contato com a
alteridade ?
Fazer um experincia com o que quer que seja, uma coisa, um ser humano, um
deus, isto quer dizer: deix-la vir sobre ns, para que nos atinja, nos cai em cima,
nos transforme e nos faa outro
(Heidegger)
Estas so as palavras de um dos maiores seno o maior pensador do sculo XX, Martin
Heidegger. O que ele enfatiza que a verdadeira experincia comporta um momento de encontro,
de negao, de transformao. Ou seja, experimentar deixar-se fazer outro no encontro com o
outro. Em outras palavras: s h experincia aonde h diferena e aonde novas diferenas so
engendradas. Ora, tanto o dogmtico no se dispe a nada disto, como o ecltico procura manter-se
fundamentalmente o mesmo, encobrindo esta imobilidade e esta mesmice impermevel com afantasia da variedade e da liberdade.
II
Se me alonguei nesta questo do dogmatismo e do ecletismo porque infelizmente eles
costumam ser tentaes quase irrecusveis para o psiclogo.
Mas ser que no existem outras maneiras de enfrentar a disperso do espao psi, de lidar
com a angstia que ele evoca ? Creio que sim, mas estas maneiras exigem uma estreita aliana de
movimentos construtivos e movimentos reflexivos. Chamo de movimentos construtivos os que
implicam em investir na produo do conhecimento a partir dos recursos conceituais disponveis
nas teorias e no encontro destes recursos com os desafios da prtica, ou seja, a partir das
experincias. No se trata, necessariamente, de transformar todo psiclogo num profissional de
pesquisa, mas de trazer para as situaes prticas e profissionais a competncia de pensar que
permita a elaborao de conhecimentos novos. preciso abandonar a idia de que a psicologia dita
aplicada seja a mera aplicao de um conhecimento cientfico j constitudo. No nosso campo,
to ou mais decisivo que o conhecimento terico disponvel a incorporao deste conhecimento s
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habilidades do profissional como um dos ingredientes do que poderamos chamar de
conhecimento tcito do psiclogo. Pois bem, esta incorporao da teoria s acontece no bojo de
um processo muito pessoal e em grande parte intransfervel de experimentao e reflexo; nesta
medida, nossa atividade profissional vai muito alm da aplicao, constituindo-se em uma autntica
elaborao de conhecimentos mesmo que estes no se traduzam em textos, mesmo que permaneam
como conhecimentos tcitos incorporados s prticas do profissional na forma de um saber de
ofcio.
No entanto, para que o movimento construtivo possa se efetivar necessrio conservar
aberto o lugar para a experincia, o lugar da alteridade, da negatividade, da transformao. Ora, a
abertura e conservao deste espao tarefa de reflexo. A reflexo destina-se, no caso, a elucidar
os limites de cada sistema, seja explicitando seus pressupostos, seja antecipando suas implicaes e
conseqncias, muitas vezes invisveis a olho nu.Muitas vezes se pensa que a principal funo da atividade reflexiva no campo das teorias
cientficas seja a de investigar e, se necessrio questionar suas pretenses verdade. Em outras
palavras, muitas vezes se acredita que quem reflete sobre teorias e sistemas psicolgicos deveria
fazer perguntas tais como: como se deu e se d a produo e a validao do conhecimento que se
apresenta como sendo cientfico ? quais os mtodos e tcnicas acionados na produo e validao
do conhecimento, etc...?
Ora, em relao e este tipo de preocupao haveria duas coisas a considerar. Em primeirolugar, a centralidade das questes epistemolgicas no campo da cultura moderna e cientfica tem
sido cada vez mais problematizada (Rorty, 1979, 1982, 1990); observa-se em todo o pensamento
contemporneo um abandono progressivo e as vezes dramtico do projeto fundacionista, ou seja, do
intento de fazer repousar o conhecimento cientfico em bases slidas e inquestionveis, isto , em
alguma forma de conhecimento imediato e indiscutvel tal como foram os projetos e
epistemolgicos da modernidade, sejam os de inspirao baconiana, sejam os oriundos da tradio
cartesiana. Ao contrrio disso, j se torna quase consenso a aceitao de que no h tais
fundamentos, de que no h conhecimento sem pressupostos sendo que estes podem se explicitados,
e bom que sejam, mas jamais sero verificados ou refutados. No mximo eles podero ser
avaliados em suas propriedades heursticas, ou seja, na sua fecundidade e na sua eficcia.
Em segundo lugar, cabe assinalar que o abandono do projeto fundacionista e a nfase na
investigao dos pressupostos das construes tericas e das prticas vem a calhar para uma rea
como a nossa, marcada pela disperso. No creio, efetivamente, que a avaliao comparativa das
teorias e dos sistemas psicolgicos pudesse ser feita apenas ou principalmente no plano
epistemolgico. No possvel nem faz sentido procurar saber quem ou foi mais cientfico:
Skinner, Piaget, Freud, Jung, Rogers ? O que se passa que os diversos sistemas de pensamento
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psicolgico no visam os mesmos objetos, da mesma maneira, com os mesmos objetivos e de
acordo com os mesmos padres. As noes de realidade, de psiquismo, de comportamento,
etc...variam; igualmente varia o que se entende por teoria, por conhecimento e por verdade;
em decorrncia, variam os critrios de avaliao do conhecimento e dos mtodos e procedimentos
adequados. Nesta medida tais divergncias no se resolvero mediante pesquisas j que qualquer
pesquisa ser efetuada a partir de seus prprios pressupostos. Chamo de matrizes do conhecimento
psicolgico (Figueiredo, 1991) a estes grandes conjuntos de valores, normas, crenas metafsicas,
concepes epistemolgicas e metodolgicas que subjazem s teorias e as prticas profissionais dos
psiclogos. Coloco tambm no plano das matrizes o conjunto das implicaes ticas que pertencem
legitimamente ao mesmo campo de produo terica e de prticas.
Aqui creio que seria oportuno deter-me um pouco no termo matrizes. preciso de incio
estabelecer algumas diferenas de nvel: falando em sistemas, em escolas, em faces oucorrentes eu permaneo no nvel manifesto, embora recortando de forma mais ou menos flexvel,
mais ou menos restritiva o meu material. verdade que o termo correntes ao insistir na dimenso
temporal se abre para uma passagem de apreenso das idias tais como se mostram para uma
apreenso das idias na sua historicidade, na sua auto-gerao. No entanto, se o meu interesse o de
identificar pressupostos e implicaes eu necessito de um termo que me d acesso a um nvel que
opera no registro do latente, do que age dissimuladamente. Os termos paradigma tal como
empregado por Kuhn (1970), episteme tal como empregado por Foucault (1966, 1969), basesmetafsicas tal como empregado por Burtt (1983), entre outros, dizem respeito exatamente a este
nvel que me interessava focalizar. Optei pelo termo matrizes, que por sinal tambm veio a ser
proposto por Kuhn (1974) para substituir o de paradigmas, porque ele me pareceu o mais apto a
falar do meu tema: o espao psi como um espao de disperso que, apesar de tudo, no um espao
de caos absoluto, pois possui uma organizao subterrnea a partir da qual podem ser confrontadas,
aproximadas ou contrapostas as correntes, as escolas, as seitas, enfim, todos os habitantes grados
ou midos do espao psicolgico. As matrizes so geradoras, elas so fontes, elas instauram os
campos de teorizao e de ao possveis, elas inauguram as histrias das psicologias.
No meu livro Matrizes do Pensamento Psicolgico procurei oferecer um quadro
panormico das psicologias contemporneas organizado a partir de suas matrizes. O espao no
permitir estender-me sobre a questo. Apenas recordarei que l denomino matrizes cientficasa
todas as matrizes a partir das quais a psicologia vem a ser concebida e praticada como cincia
natural ( de acordo, naturalmente, com os modelos de cincia natural disponveis no sculo XIX ),
todas pressupem a crena numa ordem natural e diferem apenas na forma de considerarem esta
ordem, as psicologias geradas por estas matrizes seriam construdas como anexos ou segundo aos
modelos de outras cincias da natureza, como, por exemplo, a biologia. Como as demais cincias
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naturais, as psicologias estariam destinadas a fornecer um conhecimento til para previso e
controle dos eventos psquicos e comportamentais.
De outro lado, encontram-se asmatrizes inspiradas no pensamento romntico de oposio ao
racionalismo iluminista e ao imprio da matemtica e do mtodo: para elas o objeto da psicologia
no so eventos naturais, mas so formas expressivas, ou seja, as aes, produtos e obras de uma
subjetividade singular que atravs deles se d a conhecer. Enquanto as psicologias engendradas por
matrizes cientificistas propunham-se como conhecimento apto a previses e controles e, nesta
medida, se obrigavam a explicar os eventos psquicos e comportamentais inserido-os numa ordem
natural, as psicologias engendradas a partir das matrizes romnticas tem como meta compreender,
ou seja, gerar conhecimentos aptos apreenso das formas expressivas. A meta deste conhecimento
seria a de ampliar a capacidade de comunicao entre os homens e de cada um consigo mesmo.
Destas matrizes romnticas destacam-se as que eu denomino de ps-romnticas. Nestescasos, o que observamos o resgate da grande questo colocada pelas matrizes romnticas, a
questo da compreenso, aliado renuncia esperana de uma apreenso fcil e imediata do
sentido. Para estas matrizes o sentido dos atos, dos produtos e das obras no coincide com as
vivncias que lhes correspondem, supem-se que por de trs dos sentidos haja outros sentidos e por
trs destes haja processos e mecanismos geradores de sentido e que nada disso se d
espontaneamente nossa conscincia. Seria preciso, portanto, elaborar mtodos e tcnicas e
critrios interpretativos que nos permitam ir alm de uma compreenso ingnua e auto-centrada dosoutros e de ns mesmo.
III
Este panorama amplo do campo de disperso, dentro do qual puderam ser situadas as
escolas, sistemas, faces e correntes de forma a que pudessem ser mostradas suas interrelaes,
suas familiaridades e seus antagonismos foi o saldo, espero, da elaborao das Matrizes. Quero
assinalar, mais uma vez, que no houve de minha parte, em nenhum momento, a inteno de julgar
e muito menos de julgar epistemologicamente as teorias; meu objetivo foi sempre o de conservar a
diversidade na unidade, tornando-a inteligvel.
Este resultado, porm, no me satisfez completamente. verdade que ele pode ser til para
o combate s tendncias dogmticas e eclticas mais precipitadas, mas ele deixa em aberto a
questo das opes, das escolhas. Aqui, novamente, creio necessrio dar alguns esclarecimentos. Na
verdade, depois de muita observao de mim mesmo, de colegas e de alunos, eu me permito
duvidar de que os psiclogos possam realmente escolher suas teorias, mtodos e tcnicas. Creio que
totalmente ilusrio imaginar que em algum momento tenhamos a iseno, o conhecimento e a
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liberdade para efetuar esse tipo de opo. Ao contrrio, o que percebo que somos escolhidos:
somos como que fisgados, atrados por uma trama complexa de anzis e iscas, das quais algumas
nunca sero completamente identificadas.
De qualquer forma, muito antes de nos darmos conta de que escolhemos j fomos escolhidos
e embora estas opes possam ser refeitas, haver sempre algo que nos anteceda e nos chama. Ora,
o que uma reflexo acerca das matrizes do pensamento psicolgico nos pode propiciar no ser,
portanto, uma escolha plenamente consciente e racional. O que podemos esperar, creio eu
legitimamente desta reflexo, uma ampliao da nossa capacidade de pensar acerca do que
acreditamos, acerca do que fazemos e de quem somos. Pois bem, uma compreenso dos sistemas e
teorias no contexto de uma explicitao das matrizes do pensamento psicolgico ajuda nesta tarefa
reflexiva, mas no suficiente. De uma certa forma, poderamos mesmo dizer que ao nos
defrontarmos com a diversidade conservada na unidade estamos apenas entrando em contato com oproblema, mas no o estamos ainda resolvendo. claro que entrar em contato o primeiro passo
indispensvel, ao contrrio das sadas dogmticas e eclticas que ao invs de favorecerem o
movimento de problematizao, evadem-se deste contato negando, de uma forma ou de outra, a
prpria diversidade. Dado este primeiro passo, contudo, como prosseguir ?
Meu caminho foi o de refazer o processo de gestao do prprio espao psicolgico para
entender como e porque ao final do sculo XIX se abriu um campo no qual vieram a se instalar
diversos projetos de psicologia que, apesar de suas diferenas, tinham em comum a pretenso deestabelecer a psicologia como uma rea independente de saberes e intervenes sui generis. Em
outras palavras meu objetivo passou a ser o de compreender a histria da constituio do espao
psicolgico e de como este espao se organizou em termos de lugares, cada lugar ensejando uma
maneira de teorizao e de exerccio profissional. Tratava-se, enfim, de uma tarefa de genealogia
do psicolgico. O meu tema era vasto e de limites imprecisos; como circunscrever, de uma vez por
todas, o conjunto de acontecimentos e dispositivos que contriburam para a constituio de uma
campo de saber e de interveno, com seus objetos e procedimentos prprios ? Ao fazer a
genealogia de qualquer tipo de identidade ( aqui as identidades dos psiclogos e das psiclogas )
devemos comear colocando entre parnteses nossa crena na permanncia infinita desta mesma
identidade e de seus limites atuais. Com isso ficamos provisoriamente desnorteados. Aonde
procurar ? Uma coisa apenas era certa: havia que transgredir sistematicamente os limites do que
hoje reconhecido como pertinente ao campo psi, buscando nos mais variados discursos os
elementos necessrios anlise. Minha pesquisa caminhou ento de forma exploratria. certo que
a questo j no completamente nova e pude me valer de autores que antes de mim investigaram
coisas parecidas. No caso, coisas parecidas eram todas as que diziam respeito s formas do
homem ocidental moderno relacionar-se consigo mesmo, com seu destino, sua vida e sua morte,
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com os outros pequeninos e com os grandes outros: Deus, a sociedade, etc...Isto me levou para
terrenos da filosofia, da poltica, das cincias, da religio, das diversas reas de manifestao
artstica e literria, etc... O projeto de pesquisa tentou abarcar alguns momentos que me parecem
mais significativos na histria da modernidade ocidental desde o fim do sculo XV at o final do
sculo XIX. O resultado deste trabalho, apresentado como tese de Livre Docncia em Psicologia
Geral na USP e logo editado com o ttulo de A Inveno do Psicolgico: quatro sculos de
subjetivao (1500-1900) , creio eu, um passo adiante na tentativa de pensar o nosso espao e
nossa diversidade.
Ao longo dos quatros sculos estudados pude ir reconstituindo o processo de transformao
nos modos de subjetivao no bojo do qual foram se criando as subjetividade nas quais o chamado
psicolgico veio a se mostrar como uma dimenso decisiva tanto para experimentarmos como
para pensarmos acerca de nossas experincias e de nossa existncia. Pude tambm mostrar como nosculo XIX esta dimenso se constitui como um territrio organizado em torno de trs polos - o
modo ilustrado e liberal de subjetivao, o modo romntico e o modo disciplinar - polos estes em
permanente estado de conflito mas tambm formando alianas inesperadas e difceis de captar.
Finalmente, pude alinhavar argumentos que sugerem que os diversos sistemas e subsistemas
tericos em psicologia tornam-se inteligveis desde os lugares que ocupam no espao psicolgico e
desde as relaes que da entretm com cada um dos polos acima mencionado. Ora, assim como o
psicolgico enquanto espao sui generis, assim como os lugares que compem este espao e apartir de onde so elaboradas as diferentes possibilidades de viver e pensar a existncia coletiva e
individual fazem parte da histria do ocidente, da mesma forma os sistemas e escolas da psicologia
contempornea representam diferentes perspectivas para enfrentar os dilemas da modernidade, a
chamada crise da modernidade. Crise esta que se caracteriza, entre outras coisas, pela falncia dos
modos modernos de subjetivao, sejam os de extrao ilustrado - liberal, sejam os de extrao
romntica. Crise, enfim, que gerou e continua gerando tanto as demandas como ofertas de
psicologia.
Nesta medida, aos assumirmos um lugar determinado no espao psicolgico estaremos nos
situando muito alm do que seria o campo da psicologia visto apenas como rea especfica de
conhecimento e prticas profissionais. Estaremos mesmo fazendo mais que apenas adotar, talvez
sem devida reflexo, crenas, normas e valores. Estaremos de fato nos posicionando diante dos
destinos de nossa poca. Longe de mim a inteno de reduzir uma prtica profissional a qualquer
modalidade de militncia; no se trata, portanto, de promover tal ou qual forma de fazer e pensar a
psicologia em termos de uma dada concepo do que seria politicamente correto. Trata-se,
contudo, isto sim, de introduzir nas nossas consideraes algo que via de regra escapa formao
convencional do psiclogo; trata-se de introduzir no campo das nossas cogitaes uma discusso
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histrica, sociolgica e filosfica acerca do mundo em que vivemos, das formas dominantes de
existir neste mundo e de como as psicologias contemporneas so modos de tomar partido em
relao aos problemas da contemporaneidade.
A reside a dimenso tica das psicologias, dimenso sobre a qual h muito pouca reflexo j
que costumamos reduzir as discusses ticas a questes que me parecem triviais e formais. As
verdadeiras questes ticas so, a meu ver, as que dizem respeito s posies bsicas que cada
sistemas ou teoria ocupa no contexto da cultura contempornea, diante dos desafios que dela
emanam. Para estas questes, como de resto para as questes verdadeiramente grandes, no
devemos ter esperana de respostas concludentes. Nossa obrigao, porm, pode e creio que deve
ser a de mant-las em aberto. Elas so, afinal de contas, as brechas nas nossas crenas e nos nossos
compromissos atravs das quais pode se insinuar a alteridade, enfim so elas que nos podem
conservar disponveis para a experincia e para a renovao.
REFERNCIAS:
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Henriques. Braslia: Ed. UnB, 1983.
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FIGUEIREDO, L. C. A inveno do psicolgico: quatro sculos de subjetivao (1500-1900).
So Paulo: Ed. Escuta/Educ, 1992.
FOUCAULT, M. Les Mots et les Choses. Paris: Ed. Gallimard, 1966.
FOUCAULT, M. LArchologie du Savoir. Paris: Ed. Gallimard, 1969.
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