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FICHA DE TRABALHO Ficha de Trabalho N.º 3 Argumentação e Retórica Filosofia – 11.º Ano Texto: A redescoberta do valor filosófico da retórica antiga. “O bom homem do século XX, para quem o termo «retórica» evoca palavras vazias e floridas, figuras com nomes estranhos e incompreensíveis, poder-se-ia interrogar, não sem razão, porque é que o filósofo, sobretudo um lógico, sente a necessidade de associar argumentação e retórica. Há um século, em França, esta era ensinada com esse nome na escola, mas foi depois eliminada dos programas porque desprovida de valor educativo. Pessoalmente, o meu breve contacto com a retórica, há cerca de cinquenta anos (...), consistiu no estudo de um pequeno manual que juntava o estudo do silogismo com o das figuras de estilo. Aquando dos meus estudos de Filosofia, ninguém me falou de retórica senão em termos pejorativos, e eu sabia que, em vários dos seus diálogos, Platão atacava os sofistas e os mestres de retórica por estarem mais preocupados em lisonjear os seus auditores do que em ensinar-lhes a verdade, cara a Sócrates. Além do mais, o termo «retórica» não consta do vocabulário filosófico de Lalande, o que indica claramente que, a seu ver, ele não apresenta nenhum interesse para o filósofo. Se, no entanto, faço hoje questão em insistir no papel da retórica, é porque as minhas investigações me convenceram da importância desta disciplina para o pensamento contemporâneo. (...) Como se pode raciocinar sobre valores? Existem modos racionalmente aceitáveis que permitem preferir o bem ao mal, a justiça à injustiça, a democracia à ditadura? Insatisfeito com a resposta céptica dos positivistas, pus- me em busca de uma lógica dos juízos de valor. (...) Ora, na ausência de técnicas de raciocínio aceitáveis concernentes aos fins, a filosofia prática deveria renunciar ao seu objecto tradicional, a busca da sabedoria, guiando a acção pela razão, não podendo a filosofia moral, a filosofia política e a filosofia do direito desenvolverem-se como disciplinas sérias. Foi precisamente a esta conclusão que tinham chegado os positivistas, para os quais os juízos de valor não tinham qualquer valor cognitivo, qualquer valor verificável. Mas, então, ou os seus próprios raciocínios que culminavam na condenação da filosofia prática, eram igualmente desprovidos de valor, ou – se se admitissem – testemunhavam que se podiam justificar filosoficamente conclusões com importância prática. Não podia, pois, resignar-me à sua conclusão, simultaneamente paradoxal e desesperante para um filósofo, tanto mais que parecia admitido não se poder fundar um juízo de valor unicamente sobre juízos de facto. Seriam os juízos de valor primitivos, os princípios da moral e de toda a conduta, puramente irracionais, expressão das nossas tradições, dos nossos preconceitos e das nossas paixões? Em caso de desacordo, apenas a violência seria capaz de resolver os conflitos, e seria a razão do mais forte a melhor? Ou existe uma lógica dos juízos de valor, e nesta hipótese, como constituí-la? (...) IMP.CSA.001-00 1/6

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Page 1: Ficha retórica 3

FICHA DE TRABALHO

Ficha de Trabalho N.º 3Argumentação e Retórica

Filosofia – 11.º Ano

Texto:

A redescoberta do valor filosófico da retórica antiga.

“O bom homem do século XX, para quem o termo «retórica» evoca palavras vazias e floridas, figuras com nomes estranhos e incompreensíveis, poder-se-ia interrogar, não sem razão, porque é que o filósofo, sobretudo um lógico, sente a necessidade de associar argumentação e retórica. Há um século, em França, esta era ensinada com esse nome na escola, mas foi depois eliminada dos programas porque desprovida de valor educativo.

Pessoalmente, o meu breve contacto com a retórica, há cerca de cinquenta anos (...), consistiu no estudo de um pequeno manual que juntava o estudo do silogismo com o das figuras de estilo. Aquando dos meus estudos de Filosofia, ninguém me falou de retórica senão em termos pejorativos, e eu sabia que, em vários dos seus diálogos, Platão atacava os sofistas e os mestres de retórica por estarem mais preocupados em lisonjear os seus auditores do que em ensinar-lhes a verdade, cara a Sócrates. Além do mais, o termo «retórica» não consta do vocabulário filosófico de Lalande, o que indica claramente que, a seu ver, ele não apresenta nenhum interesse para o filósofo.

Se, no entanto, faço hoje questão em insistir no papel da retórica, é porque as minhas investigações me convenceram da importância desta disciplina para o pensamento contemporâneo. (...)

Como se pode raciocinar sobre valores? Existem modos racionalmente aceitáveis que permitem preferir o bem ao mal, a justiça à injustiça, a democracia à ditadura? Insatisfeito com a resposta céptica dos positivistas, pus-me em busca de uma lógica dos juízos de valor. (...) Ora, na ausência de técnicas de raciocínio aceitáveis concernentes aos fins, a filosofia prática deveria renunciar ao seu objecto tradicional, a busca da sabedoria, guiando a acção pela razão, não podendo a filosofia moral, a filosofia política e a filosofia do direito desenvolverem-se como disciplinas sérias. Foi precisamente a esta conclusão que tinham chegado os positivistas, para os quais os juízos de valor não tinham qualquer valor cognitivo, qualquer valor verificável. Mas, então, ou os seus próprios raciocínios que culminavam na condenação da filosofia prática, eram igualmente desprovidos de valor, ou – se se admitissem – testemunhavam que se podiam justificar filosoficamente conclusões com importância prática. Não podia, pois, resignar-me à sua conclusão, simultaneamente paradoxal e desesperante para um filósofo, tanto mais que parecia admitido não se poder fundar um juízo de valor unicamente sobre juízos de facto. Seriam os juízos de valor primitivos, os princípios da moral e de toda a conduta, puramente irracionais, expressão das nossas tradições, dos nossos preconceitos e das nossas paixões? Em caso de desacordo, apenas a violência seria capaz de resolver os conflitos, e seria a razão do mais forte a melhor? Ou existe uma lógica dos juízos de valor, e nesta hipótese, como constituí-la? (...)

Este trabalho de grande fôlego, empreendido com Lucie Olbrechts-Tyteca, levou-nos a conclusões completamente inesperadas e que constituíram para nós uma revelação, a saber, de que não existia uma lógica específica dos juízos de valor, mas que aquilo que procurávamos tinha sido desenvolvido numa disciplina muito antiga, actualmente esquecida e menosprezada, a saber, a retórica, a antiga arte de persuadir e convencer. (...) Verificámos que nos domínios em que se trata de estabelecer aquilo que é preferível, o que é aceitável e razoável, os raciocínios não são nem deduções formalmente correctas nem induções do particular para o geral, mas argumentações de toda a espécie, visando ganhar a adesão dos espíritos às teses que se apresentam ao seu assentimento.

Esta técnica do discurso persuasivo, indispensável na discussão prévia a toda a tomada de decisão reflectida, tinham-na os antigos desenvolvido longamente como a técnica por excelência, a de agir sobre os outros através do logos, termo que designa simultaneamente, de forma equívoca, a palavra e a razão.

Foi assim que compreendi a rivalidade que opôs durante toda a antiguidade greco-latina os retóricos aos filósofos, aspirando uns e outros ao direito de formar a juventude, o filósofo preconizando a busca da verdade e a vida contemplativa, os retóricos concedendo, pelo contrário, o primado à técnica de influenciar os homens pela palavra, essencial na vida activa e especialmente na política.”

C. Perelman, “O império Retórico”

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FICHA DE TRABALHO

Tarefa 1: Leia os textos propostos respondendo seguidamente ao questionário.

1. Distinga, com clareza e amplitude, os conceitos de Demonstração e Argumentação.

2. Com base nas leituras efectuadas, associe os conceitos/características abaixo indicados aos domínios da Demonstração e da Argumentação.

ciências lógico-dedutivas; lógica formal; garante a comunicação humana; pq; linguagem abstracta;

referente à realidade; ciências sociais; debate; proposições indiscutíveis; controvérsia; proposições

discutíveis; pessoal; opiniões; verdades não absolutas; fora de qualquer contexto; dicotómica;

polivalente; plausibilidade; linguagem inequívoca; eficácia; uso limitado; linguagem natural; aceita

ambiguidades; linguagem equívoca; interesses; retórica; procura adesão; atenta ao auditório;

impessoal; contextualizada; universal; nova lógica; lógica informal.

3. Esclareça em que medida se pode afirmar que Perelman retomou a antiga retórica.

Texto 1

Demonstração e argumentação

“Perelman honrou a retórica situando-a no interior dos quadros da argumentação. Quando uma proposição é sugerida, por uma outra ou pela situação, há argumentação; há demonstração quando tudo quanto faz com que a conclusão se imponha é especificado e torna esta conclusão necessária. Devemos opor aqui lógica e argumentação. A lógica não autoriza qualquer ambiguidade, e a univocidade, que é a sua regra, não é o facto das situações reais de uso da linguagem. Nestas situações, não se estipula toda a informação, nem as regras segundo as quais é necessário tratá-la. Deixamos aos interlocutores, logo ao auditório, o cuidado de decidir, e até tornar unívocos os conceitos utilizados. É esta equivocidade própria da linguagem natural, que foi a base da má reputação da argumentação, pois, se os termos de uma mensagem são equívocos, nada impede de jogar com esta pluralidade de sentidos, e de manipular o assentimento do auditório pelo vago e pelo superficial. Esta equivocidade faz não obstante a riqueza das línguas naturais, pois, deixando ao contexto o cuidado de fornecer ao auditório os meios para dividir em favor de um sentido, a linguagem natural é susceptível de uma grande subtileza, quase infinita em vista de toda a situação possível de uso. Face a isto, as línguas formais são pobres, tudo ali deve ser especificado (...), e parecem ser totalmente autónomas a respeito dos indivíduos. O discurso formal não é dirigido a ninguém porque é suposto dirigir-se a toda a gente. Ele usufrui de uma evidência que seria irracional ou loucura pôr em questão.”

Michel Meyer – “Lógica, Linguagem e Argumentação”

Texto 2

“O desenvolvimento de uma teoria da argumentação consiste numa reacção contra os esforços dos lógicos modernos, que, na tentativa de renovar a lógica através da análise do raciocínio das matemáticas, identificaram a lógica com a lógica formal. Com este procedimento, estes lógicos [reduziram-na a um modo constringente de tirar] conclusões a partir de premissas, graças a regras de inferência previamente formuladas. A demonstração reduz-se assim a um cálculo. A conclusão a que se chega será verdadeira ou simplesmente hipotética [conforme] as premissas de que se parte sejam verdadeiras ou sejam admitidas a

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FICHA DE TRABALHO

título de hipótese. A [inferência] a partir destas premissas realiza-se em virtude de transformações puramente formais, e as operações lógicas a que se procede são independentes da matéria (...) do raciocínio.

Uma tal lógica só pode [aceitar] (...) as premissas do raciocínio a partir do momento em que as demonstra, partindo de outras proposições até chegar às proposições primitivas, ou seja, os axiomas do sistema, os quais serão admitidos quer pela evidência que os impõe a todos, quer a título de hipóteses. Mas a partir do momento em que se trata de indicar as razões não constringentes para a sua aceitação ou para a sua recusa, deixa-se o campo das provas demonstrativas, portanto da lógica formal, para entrar no da argumentação.

Argumentar é fornecer argumentos, ou seja, razões a favor ou contra uma determinada tese. Uma teoria da argumentação, na sua concepção moderna, vem assim retomar e ao mesmo tempo renovar a retórica dos Gregos e Romanos, concebida como a arte de bem falar, ou seja, a arte de modo a persuadir e a convencer.”

C. Perelman, “Argumentação”

Texto 3

“A prova demonstrativa diz respeito à verdade de uma conclusão ou, pelo menos, à sua relação necessária com as premissas. Em princípio, a lógica formal não se ocupa da adesão de qualquer coisa à verdade das proposições em vista. A prova é impessoal, e a sua validade não depende em nada da opinião: aquele que infere no seio de um dado sistema só pode aceitar o resultado das suas deduções. Em contrapartida, toda a argumentação é pessoal; dirige-se a indivíduos em relação aos quais ela se esforça por obter a adesão, a qual é susceptível de ter uma intensidade variável.

Enquanto um sistema dedutivo se apresenta como isolado de todo o contexto, uma argumentação é necessariamente situada. Para ser eficaz, esta exige um contacto entre sujeitos. É necessário que o orador (aquele que apresenta a argumentação oralmente ou por escrito) queira exercer mediante o seu discurso uma acção sobre o auditório, isto é, sobre o conjunto daqueles que se propõe influenciar. Por outro lado, é necessário que os auditores estejam dispostos a escutar, a sofrer a acção do orador, e isto a propósito de uma questão determinada.

Querer persuadir um auditório significa, antes de mais, reconhecer-lhe as capacidades e as qualidades de um ser com o qual a comunicação é possível, e, em seguida, renunciar a dar-lhe ordens que exprimam uma simples relação de força, mas sim procurar a sua adesão intelectual. Não se pode persuadir um auditório senão tendo em conta as suas reacções de modo a adaptar o seu discurso a estas reacções. O discurso argumentativo não é um monólogo onde não existe qualquer preocupação em relação aos outros. O que vaticina sem se preocupar com o seu auditório assemelha-se a um alienado, estranho ao mundo e à sociedade, a menos que seja o porta-voz de uma divindade ou de uma força sobrenatural. De facto, querer persuadir alguém é, à partida, não partir do princípio que tudo o que irá dizer é aceite como a «palavra do Evangelho».

A argumentação é essencialmente comunicação, diálogo, discussão. Enquanto a demonstração é independente de qualquer sujeito, até mesmo um orador, uma vez que um cálculo pode ser efectuado por uma máquina, a argumentação por sua vez necessita que se estabeleça um contacto entre o orador que deseja convencer e o auditório disposto a escutar. E isto é verdadeiro, mesmo no caso de uma deliberação íntima, de que não se pode compreender o desenvolvimento senão desdobrando a pessoa que delibera em orador e auditório; de outro modo, uma expressão tal como «não escutes o teu mau génio» seria incompreensível.

Não devemos esquecer, com efeito, que toda a argumentação, na medida em que se propõe exercer uma acção qualquer sobre o auditório, de modificar a intensidade da sua adesão a certas teses, tem como efeito incitar a uma acção imediata ou pelo menos predispor a uma acção eventual.

Quando o porta-voz de um partido político se declara disposto a escutar as propostas de um primeiro-ministro encarregado de formar governo, quando Churchill proíbe aos diplomatas ingleses de ouvir sequer as propostas de paz dos emissários alemães, estamos perante dois exemplos de atitudes significativas no que respeita à afirmação da existência ou inexistência das condições prévias da argumentação.”

C. Perelman, “Argumentação”

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FICHA DE TRABALHO

Tarefa 2: Construa uma definição para cada um dos seguintes conceitos:

a) Ethos; b) Pathos; c) Logos.

Texto 4:

“Na política, o protótipo do sedutor é o demagogo (...), aquele que pretende convencer-nos de ser o bom candidato ou o bom titular do posto que ocupa. Usará, para isso, estratégias diversas a fim de conseguir que o auditório creia que pensa como ele. Melhor: dirigindo-se a vários auditórios particulares, fará crer a cada um que pensa como ele (...).

O sedutor não é um dedutor. Não afirma a sua própria opinião, infiltra-se na opinião alheia (...). O exercício demagógico implica uma incrível maleabilidade e exige, muitas vezes, a construção de um vocabulário político – ou comercial – suficientemente ambíguo para que as mesmas palavras possam metamorfosear-se em função da expectativa de cada um dos auditórios que a recebem. Por exemplo: o famoso «Franceses, compreendi-vos» que o general De Gaulle proferiu em 1958, em Argel, perante uma multidão significava, de facto, coisas radicalmente diferentes para os vários públicos aos quais ele se dirigia.”

P. Breton, “A palavra manipulada”

Texto 5:

“Em relação ao argumentador, a questão-chave é: «Qual é a sua credibilidade?» É competente? É digno de confiança? Os Gregos falaram neste sentido de ethos, ou seja, de virtude moral, qualidade fundamental do orador.

No que concerne ao auditório, a questão-chave é: «Qual é o seu universo racional e afectivo?» A retórica grega falava de pathos, termo que engloba o conjunto dos sentimentos e das emoções.

O terceiro pólo da situação é a mensagem que vai ser transmitida, ou seja, a tese e, simultaneamente, as justificações sobre as quais ela está fundada. O termo grego que lhe corresponde é o logos, que significa razão. A questão-chave sobre a mensagem é: «Qual é o rigor, a validade dos raciocínios e dos elementos que são produzidos?»”

R. & J. Simonet, “L’argumentation, Stratégie et Tactiques”

Texto 6:

Os meios de persuasão – o Ethos, o Pathos e o Logos.

“Os meios de persuasão são meios pelos quais um orador procura conquistar a adesão do auditório, estes podem ser representados por um triângulo, cujo vértice é o logos (os argumentos) e cujas bases são o ethos (a credibilidade do orador) e o pathos (os sentimentos que o orador, com o seu discurso, pode gerar no auditório). O que tem efectivo valor persuasivo não são apenas os argumentos racionais ou as provas objectivas, pois também contribuem para «provocar ou aumentar a adesão dos espíritos», a credibilidade daquele que argumenta e os sentimentos ou afectos que é capaz de suscitar. Mas isto não invalida em nada a importância decisiva dos argumentos. Sem argumentos fortes, baseados num efectivo conhecimento, mais cedo ou mais tarde, qualquer orador cairá no descrédito. De resto, credibilidade e sentimentos favoráveis às teses apresentadas são, em boa parte, obra da seriedade dos argumentos.”

J. Neves Vicente, “Razão e Diálogo”

Venda do Pinheiro, 18 de Outubro de 2010

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O Professor: _______________________