festa madeira - natal e fim do ano

29
A Festa e ao Fim do Ano ALBERTO VIEIRA Para o madeirense a época mais festiva é sem dúvida a que abrange o Natal e Fim de Ano. Deste modo o Natal é apenas designado de AFesta@, isto é, como que a querer dizer que o grande momento festivo acontece sempre em Dezembro. Na ilha as festividades religiosas do nascimento de Cristo aliam-se às profanas que marcam a mudança do ano. A tradição local, alia-se à alheia, expressa na presença habitual de milhares de turistas. Em qualquer dos casos o espectáculo, as tradições que o envolvem, inebriam-nos num misto de luz e cor. As iluminações públicas, o fogo de artifício são as evidências deste folguedo que assume sempre um carácter colectivo de catarse para residentes e forasteiros. Esta última folia no século XX foi apropriada pelas festas da cidade e acontecia pela congregação do turismo com a vivência local. Para o madeirense a grande evidencia foi sempre o Natal, mas paulatinamente o fim-de-ano foi-se impondo deixando de ser só para os turistas. A tradição do fogo de artifício aliado às manifestações que assinalavam o momento com o cortejo, contribuíram para esta mudança de atitude. Foi a partir da década de trinta do século que começou a ganhar maior importância esta manifestação festiva, uma vez que em 1932 foi criada uma Comissão das festas da cidade, que tinha por missão coordenar todas as suas actividades de diversão. A partir daqui os festejos, apoiados pelos comerciantes da cidade, ganharam uma nova dimensão na passagem do ano da cidade. A manifestação espontânea de populares e hotéis no lançamento do fogo de artifício, que já em 1911 era usual, passa a estar subordinada a esta estrutura que paulatinamente a transformou no maior cartaz turístico da cidade e da ilha. Por outro lado, os festejos passaram a contar com um momento solene no dia 30 ou 31, que constava sempre da recita ou concerto no teatro e de um cortejo folclórico regional pelas ruas da cidade. O colorido da luz ganhou cada vez mais adeptos e em 1938 houve mesmo uma Amarcha luminosa@. Estava aberto o caminho para a plena afirmação das lâmpadas que passam a abrilhantar os espaços públicos, a iluminar as árvores e a definir o contorno dos edifícios públicos e igrejas. Mais tarde o avanço tecnológico permitiu a estilização figurativa que atinge no presente o clímax. Os festejos do fim do ano, que estão agora sob a alçada da Secretaria Regional do Turismo e Cultura, são o corolário das múltiplas vivências do passado em que o madeirense se mistura com o forasteiro. Deste modo o historial do fogo de artifício do fim do ano, das iluminações e as tradições natalícias locais não são fenómenos isolados e enquadram-se no fenómeno turístico que marcou a vida da ilha a partir do século XVIII.

Upload: alexandre-pinto

Post on 20-Jun-2015

731 views

Category:

Travel


2 download

DESCRIPTION

Recolha de textos, sobre o Natal e Fim de Ano na Madeira, elaborada pelo Investigador Alberto Vieira.

TRANSCRIPT

Page 1: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

A Festa e ao Fim do AnoALBERTO VIEIRA

Para o madeirense a época mais festiva é sem dúvida a que abrange o Natal e Fim de Ano. Deste modo o Natal é apenas designado de AFesta@, isto é, como que a querer dizer que o grande momento festivo acontece sempre em Dezembro. Na ilha as festividades religiosas do nascimento de Cristo aliam-se às profanas que marcam a mudança do ano. A tradição local, alia-se à alheia, expressa na presença habitual de milhares de turistas. Em qualquer dos casos o espectáculo, as tradições que o envolvem, inebriam-nos num misto de luz e cor. As iluminações públicas, o fogo de artifício são as evidências deste folguedo que assume sempre um carácter colectivo de catarse para residentes e forasteiros. Esta última folia no século XX foi apropriada pelas festas da cidade e acontecia pela congregação do turismo com a vivência local. Para o madeirense a grande evidencia foi sempre o Natal, mas paulatinamente o fim-de-ano foi-se impondo deixando de ser só para os turistas. A tradição do fogo de artifício aliado às manifestações que assinalavam o momento com o cortejo, contribuíram para esta mudança de atitude.

Foi a partir da década de trinta do século que começou a ganhar maior importância esta manifestação festiva, uma vez que em 1932 foi criada uma Comissão das festas da cidade, que tinha por missão coordenar todas as suas actividades de diversão. A partir daqui os festejos, apoiados pelos comerciantes da cidade, ganharam uma nova dimensão na passagem do ano da cidade. A manifestação espontânea de populares e hotéis no lançamento do fogo de artifício, que já em 1911 era usual, passa a estar subordinada a esta estrutura que paulatinamente a transformou no maior cartaz turístico da cidade e da ilha. Por outro lado, os festejos passaram a contar com um momento solene no dia 30 ou 31, que constava sempre da recita ou concerto no teatro e de um cortejo folclórico regional pelas ruas da cidade. O colorido da luz ganhou cada vez mais adeptos e em 1938 houve mesmo uma Amarcha luminosa@. Estava aberto o caminho para a plena afirmação das lâmpadas que passam a abrilhantar os espaços públicos, a iluminar as árvores e a definir o contorno dos edifícios públicos e igrejas. Mais tarde o avanço tecnológico permitiu a estilização figurativa que atinge no presente o clímax.

Os festejos do fim do ano, que estão agora sob a alçada da Secretaria Regional do Turismo e Cultura, são o corolário das múltiplas vivências do passado em que o madeirense se mistura com o forasteiro. Deste modo o historial do fogo de artifício do fim do ano, das iluminações e as tradições natalícias locais não são fenómenos isolados e enquadram-se no fenómeno turístico que marcou a vida da ilha a partir do século XVIII.

Page 2: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

A 31 de Dezembro celebra-se a passagem do ano de acordo com o nosso calendário gregoriano. E tal como os rituais pagãos de passagem nós continuamos a celebra-los do mesmo modo. O fogo, a luz são elementos fundamentais e apresentam um poder de purificador e de estigmatização do mal. Não temos dados seguros sobre a data exacta em que se começou a comemorar a passagem de ano, mas certamente deve ser uma manifestação muito remota que se foi adaptando às exigências dos tempos e às aportações dos forasteiros. O Padre Fernando Augusto da Silva refere-nos estes festejos em 1923, explicando que era costume não muito antigo. Todavia dados avulsos apontam que esta é mesmo uma vivência muito antiga.

Aos poucos esta festividade espontânea foi criando a sua estrutura organizativa e aquilo que era o capricho de alguns transformou-se nas festas da cidade. Para isso foi necessária uma comissão que desde 1932 teve a seu cargo a organização dos principais actos. A folia que assinalava a passagem do ano tinha por palco os salões e hotéis, nomeadamente Reids e Savoy, mas iniciativa desta “Comissão de Festas da Cidade” saiu para a rua. Esta abertura dos festejos do fim do ano sucedeu em 1932 com um cortejo luminoso. Entretanto em 1936 foi criada a Delegação de Turismo da Madeira que passará a ter a seu cargo os festejos. A Madeira era uma estância privilegiada de turismo invernal e a aposta nestes festejos contribuiu para reforço dos aliciantes oferecidos aos visitantes.

Pompa e circunstância dominaram as passagens do ano da década de trinta até que a II Guerra Mundial, a partir de 1939, veio apagar a alegria esfuziante do madeirense. O Natal de 1939 e os que se seguiram foram de luto. As dificuldades no campo e na cidade eram evidentes. Os hotéis fecharam por falta de turistas pelo que ninguém se lembrava de evocar a passagem do ano, estando todos de olhos postos no que se passava no centro da Europa. Deste modo até 1946 não se celebrou oficialmente a passagem do ano. Apenas em 1945, já acabado o pesadelo da guerra, tivemos os primeiros festejos com fogo de artifício. O retomar das festas da cidade sucedeu apenas em 1946. Mesmo assim estas eram quase só reservadas aos madeirenses uma vez que os hotéis permaneciam encerrados e os turistas teimavam em não aparecer. O Reid=s Hotel só abriu as portas em 8 de Dezembro de 1949. No ano anterior a Casa da Madeira em Lisboa havia trazido ao Funchal um grupo de 600 excursionistas para assistir aos festejos do fim-do-ano.

Durante muito tempo os festejos do fim-do-ano resumiram-se ao fogo de artifício, aos saraus dançantes e desfiles etnográficos. O colorido das lâmpadas é uma novidade, já entrados no século XX. A luz eléctrica havia chegado ao Funchal em 1897 por mão dos ingleses. Em 1949 terminada a concessão aos ingleses a câmara criou os serviços municipalizados de electricidade que não foram capazes de assegurar um adequado serviço. Deste modo em 1952 tal missão passa para a alçada da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, um serviço público com a função de proceder à produção, transporte e distribuição de energia eléctrica em toda a ilha. O consumo e a exigência da energia eléctrica aumenta de acordo com o incremento do turismo e obrigam a elevados investimentos. As décadas de cinquenta e sessenta marcadas crise da energia foram fatais.

Page 3: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Para o madeirense o NATAL e o FIM DO ANO, foram sempre um momento comum, conhecido como a FESTA. Aos poucos tivemos que seguir o exemplo dos demais para não perdermos o processo dito de modernização. Com o tempo tudo foi mudando até atingirmos o patamar da globalização que hoje entra pelas nossas casas adentro sem dó nem piedade. Todos estamos contagiados por estas circunstâncias e ninguém fica alheio aos apelos da publicidade e do mercado, mesmo em tempos de “crise”. Para muitos, como nós, que lutam pela diferença e preservação da nossa senha de identidade, a convivência com estes momentos apresenta-se com algum estranho e sentimo-nos extra-terrestres nesta histeria colectiva. Mas, mesmo assim, não devemos manter-nos apenas como espectadores deste sazonal espectáculo que nos rodeia, pois que deveremos lutar para manter e estabelecer a diferença, com algum sacrifício ou o comentário ingrato de alguns. Mesmo assim, este apelo e reavivar, ainda que só pela escrita, poderá ser um oásis neste deserto que a massificação e a sociedade global nos impõem e nos quer arrastar para o turbilhão das multidões.

PARA MEMÓRIA DAS VIVÊNCIAS DE OUTROS TEMPOS DEIXAMOS AQUI

DOIS LINKS PARA ALGUNS TEXTOS EM PROSA E VERSO QUE RETRATAM E

TESTEMUNHAM O NOSSO NATAL. ESTE É O NOSSO PRESENTE DE NATAL QUE QUEREMOS PARTILHAR COM TODOS

VÓS.

BIBLIOGRAFIA: J. De Sousa Coutinho, O Natal na Madeira, DAHM, IV, nº,19-20, 1955. João Cabral do Nascimento, o Natal de há 30 anos, DAHM, I, nº.4, 1951, 26-27. Eduardo Antonino Pestana, O Natal Madeirense num Auto de Gil Vicente, DAHM, V, nº.27, 1957, 1-9. Eduardo Antonino Pestana, Ilha da Madeira I. Estudos Madeirenses, Funchal, 1970. Manuel Juvenal Pita Ferreira, O Natal na Madeira. Estudo folclórico, Funchal, 1956. Alberto Artur Sarmento, O Natal na Madeira. Quando eu era Estudante, DAHM, II, nº.9, 1951, 1-4. Fernando C. De Menezes Vaz, O Natal na Madeira, DAHM, Vol.I, nº.4, 1950. José de Sousa Coutinho, O Natal na Madeira, DAHM, I, nº.4, 1960, 38-39 IDEM, O Natal da Madeira(Estudo Etnográfico), DAHM, IV, 19-20, 1955, 58-70. Álvaro Manso de Sousa, Curiosidades do Passado, DAHM, I, nº.1, 1950, II, nº.2, 1951. Ana Maria Ribeiro, O Natal em Câmara de Lobos, Xarabanda, 7, 1995, 29-35.

Page 4: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

POESIA

POEMAS AO NATAL E MENINO JESUS

Cabral do Nascimento

NATAL... NATAIS

Tu, grande Ser,

Voltas pequeno ao mundo.

Não deixas nunca de nascer !

Com braços, pernas, mãos, olhos, semblante,

Voz de menino.

Humano o corpo e o coração divino

Natal... Natais...

Tantos vieram e se foram !

Page 5: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Quantos ainda verei mais ?

Em cada estrela sempre pomos a esperança

De que ela seja mensageira,

E a sua chama azul encha de luz a terra inteira.

Em cada vela acesa, cada casa, pressentimos

Como um anúncio de alvorada;

E em cada árvore de estrada

Um ramo de oliveira;

E em cada gruta o abrigo da criança omnipotente;

E no fragor do vento falas de anjo, e no vácuo

De silêncio da noite Estriada de súbitos clarões,

A presença de Alguém cuja forma é precária

E a sua essência, eterna.

Natal... Natais...

Tantos vieram e se foram !

Quantos ainda verei mais ?

Cabral do Nascimento

Page 6: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

POEMA DO NATAL (Aos que sonham, amam e sofrem)

Ouço dos sinos o canto,

como o dos cisnes doentes,

tão triste.

É porque os cisnes têm pranto

E os sinos são como as gentes.

Os sons das badaladas

caminham a passo lento

sobre o piso das estradas.

—São formas humanas,

carregando o sofrimento,

pesado,

negro,

violento,

como a noite invernosa,

caindo sobre as cabanas.

Page 7: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

—Natal! Natal!

• Os sinos não calam

seu choro fatal.

E passam pobres com frio

e passam pobres com fome,

e passam carros de luxo.

—Ah! ah! ah!

—Há gargalhadas no ar,

em alegrias desfeitas,

vibrantes,

suspensas

da dor de que foram feitas.

—Natal! Natal!

-Homenagem Eterna desse Cristo,

pobre e desgraçado

eternamente cuspido

eternamente ultrajado.

Cristo!—eis o amor,

eis a vida, cem vezes comprada,

cem vezes vendida

no leilão eternal da existência

Page 8: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

—Natal! Natal!

• Os sinos não calam

seu choro fatal.

E passam pobres com frio,

e passam pobres com fome,

e passam carros de luxo.

João França

in «HISTÓRIA LITERARIA DA MADEIRA» Funchal. 1953

Colectâneas de Poemas sobre o Natal:

Luiz Forjaz Trigueiros, Natal na poesia portuguesa, Lisboa, 1987

O natal na voz dos poetas madeirenses. Antologia organizada por José António Gonçalves, Funchal, 1989

Page 9: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

A FESTA NA VOZ DOS LITERATOS MADEIRENSESA FESTA NA VOZ DOS LITERATOS MADEIRENSESA FESTA NA VOZ DOS LITERATOS MADEIRENSESA FESTA NA VOZ DOS LITERATOS MADEIRENSES TEXTOS EM PROSA SOBRE A TRADIÇÃO MADEIRENSE DO NATAL

Compilação de Alberto Vieira

Funchal. 1999

Page 10: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Cabral do Nascimento

Eduardo Pereira

Fernando Augusto da Silva

Jayme Câmara

Maria Lamas

Page 11: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

O NATAL DE HA TRINTA ANOS

Diz-se que é festa de todos e, em especial, da família: nada, portanto, mais favorável à ideia de colectividade. Contudo, na Madeira, o sentimento que ela gera é perfeitamente individualista. Cada pessoa tem o «seu» Natal, isto é, sente-o à sua maneira; e, comungando embora com os mais nessa euforia ecuménica, guarda no íntimo, para si apenas, recordações particulares, anseios próprios, -saudades intransmissíveis, um mundo de coisas imponderáveis e inexplicáveis.

Em que difere dos outros este Natal isolado no meio do Atlântico? Por ser mais florido, mais tépido? Por ser aquecido por um sol que transluz entre nuvens, e embalado por um mar cor de pérola, que se move sem pressa, como um desdobrar lento de sucessivas folhas de estanho? Por ter festoes de giestas e grinaldas verdes de alegra-campos, e frutos da flora tropical, e presépios de conjuntos anacrónicos? Por causa daquele silencio de chumbo, soturno e opressivo, abafado e elástico, entrecortado aqui e além pelo rebentar dos petardos? Pela circunstancia rara de toda a gente ficar de portas adentro, no dia principal, a gozar a sua festa num egoísmo quase feroz que parece excluir toda a ideia de comunicação com os estranhos ?

Quando eu nasci ainda havia freiras entre os muros arruinados de Santa Clara e das

-Mercês, em cujas cercas, à tarde, se abriam as longas campânulas das alturas para espalhar na atmosfera esse perfume insidioso, denso, perturbante, que ao mesmo tempo envenena e delicia. Elas, as monjas velhas, é verdade que já não tinham este nome: intitulavam-se recolhidas e estavam para ali abandonadas como as pedras dos claustros. Quem diria pertencerem à mesma congregação que no princípio do século anterior festejara o Natal com uma ceia em que se consumiram vinte e três galinhas para um total de trinta bocas, e se gastaram cento e noventa libras de açúcar no confeito da argolinha ? Todavia, dali emanavam ainda as melhores espécies de bolo de mel, os segredos do farte e da raspadeira, do cuscuz para o desfeito, dos sonhos pelo Entrudo da Quaresma, da talhada de amêndoa em Quarta-feira de Cinzas, do manjar preto, do arroz doce em Domingo de Ramos. Extintos os conventos, laicizaram-se as receitas da copa regional. As donas de casa rivalizaram, nesse ponto, com as franciscanas. Mais uma razão para que a quadra festiva decorresse entre penates—e que as ruas, finda a labuta do mercado, tombassem numa sonolência de três dias, sob um sossego morno e extenuante.

«Se o Natal se estendesse a todos os meses, o mundo seria muito diverso», escreveu algures Charles Dickens, a quem o advento do Menino Jesus inspirou tão belas páginas de prosa. Diverso, sem dúvida, mas também fastidioso. Penso, pelo contrário—e sejam quais forem as razões pelas quais se ambiciona, com tamanho afã, esse regresso ao ciclo natalício—que o seu maior encanto reside precisamente no caso de ser só uma vez em cada ano. Ai de nós, se não esperássemos por qualquer coisa, certa ou incerta! Aguardar o Natal constituía para as crianças do meu tempo a mais bela expectativa da sua vida. Quando ele chegava não direi que se produzisse o desengano, mas uma tal ou qual saciedade insatisfeita, por mais paradoxal que isto pareça.

Page 12: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Das vésperas as festas, diz o rifão. Esta, de que falo, principia com tão complicados e minuciosos preparativos que chega a parecer, no fim de contas, pretexto para reformas domésticas em vez de glorificação duma data célebre. Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes; nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, cm especial de tangerina e amêndoa. Aquela constitui uma das mais fortes tradições insulanas, e dir-se-ia inventada por um espírito faceto que porfiasse em misturar os ingredientes mais antagónicos, desde as especiarias— canela, pimenta, noz moscada, cravinho _ ao açúcar, à farinha, à manteiga, à banha de porco Há, na sua confecção, como que um ritual: depois de amassado, o bolo de mel, com uma cruz desenhada a toda a sua altura e largura, fica a levedar durante três dias dentro de um alguidar, antes de ser cozido. E, por mais estranho que isto se afigure, ninguém, ao comê-lo, terá dúvida em confessar que lhe parece muito bom.

Se alguma diferença existe entre estes preparativos do Natal ilhéu e os que se faziam para o enterro dum faraó do Egipto, ela repousa apenas no facto de o sono dum Tutacamão ou dum Ramezes durar uma eternidade, em lugar das setenta e duas horas que se precisam para o recolhimento do português da Madeira nas suas festas consagradas ao nascimento de Cristo. Fora disso, há os mesmos cuidados escrupulosos nos pormenores da limpeza e decoração do interior, a mesmas exigências quanto às provisões de boca, o mesmo zelo no vedar de todas as fendas por onde possa, acaso, transmitir-se qualquer comércio com a vida externa.

O padeiro forneceu o pão destinado ao consumo que deva fazer-se no dia 25 e nos seguintes, que têm o nome de oitavas. A carne de porco está de há muito nas salgadeiras, coberta de vinho, vinagre, malagueta c folhas de louro. As hortaliças são constantemente refrescadas, a fim de não perderem o viço. Distribuiu-se a fruta pelos sítios mais arejados. Tudo está a postos. Desgraçado daquele que se esqueceu de adquirir com antecedência algumas dessas pequeninas coisas indispensáveis ao manejo culinário, um dente de alho, pimenta, sal fino ou grosso. Infeliz de

quem, sendo fumador, não teve a previdência de se munir de alguns maços de cigarros, ou de quem; sendo atreito a enxaquecas, não soube precaver-se com um tubo de aspirinas.

Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silencio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está

imóvel. Nenhum pássaro se atreve a riscar o espaço, não adeja nenhuma borboleta, a água não cai nas fontes, o mar não se mexe, o Sol descansa num leito de nuvens opalescentes, os lagartos dormem nas brechas dos muros, os ralos não cantam, as flores sustem a custo o seu aroma. Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada.

No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns nossos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirigem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projectam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco, belos c complicados transatlânticos ingleses que sulcam oceanos de

Page 13: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

areia ou de serradura, mesmo aos pés de S. José e da Virgem Maria. O Menino Jesus tem um ar do século XVI veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos. Das escarpas fluem águas de vidrilho, entre fetos e avencas naturais, e nos promontórios mais inacessíveis equilibram-se, por milagre. casas de papel com muitos andares c janelas de- venezianas, e igrejas de altos campanários amarelos ou vermelhos. Por toda a parte, nos recôncavos da lapa, sobem e descem pastores e pastoras, em cujos ombros se ostentam cabazes com laranjas, anonas, maçãs, galinhas, patos e perus. Há peixes fora de água, indiferentes à circunstância de se encontrarem num elemento que não é o seu, e animais de climas antagónicos, reunidos com tanta naturalidade como se estivessem na própria arca de Noé. Em baixo, sobre a mesa, rodeando a toalha de linho, corre uma fila de searas dentro de xícaras—trigo, lentilha, centeio, milho, alpista; estão verdes e pujantes, mas as raízes, sem terra para se expandirem, já se entrelaçaram de tal modo que formam como que um bloco duro e redondo.

Cada pessoa tem o seu Natal, disse eu ha pouco. Neste momento, em volta de mim, agita-se a multidão numa pressa febril. O frio e intenso, caem flocos de neve de vez em quando. As árvores ostentam a copa branca, e delas escorrem fios de água. Há muitos dias que não se vê o Sol, as ruas estão brilhantes da humidade. Todos se refugiam nos teatros e nos restaurantes, em procura de convivência, de ruído, de movimento. Ouvem-se, pelas portas entreabertas, as orquestras que atordoam com o seu entusiasmo profissional; vêem-se pinheiros dentro de vasos de madeira, dos quais pendem inúmeros brinquedos e de onde se elevam no ar, presas a cordéis, bolas coloridas cheias de gás. Dança-se com frenesi. Estalam as rolhas das garrafas de champanhe. Os automóveis atravessavam as ruas, buzinando de contínuo, cruzando-se com os eléctricos e aumentando o estridor e a confusão desta noite festiva. No átrio dum hotel de luxo, ornamentado a primor, passa um velho de - barbas brancas e capuz encarnado; segura no braço um cesto repleto de brinquedos, que ele vai distribuindo no meio de risos, de aplausos, de guinchos, de serpentinas que esvoaçam, de tambores que rufam. Distinguem-se figuras de adultos entre a revoada dos pequenos. Há uns que enfiam na cabeça barretes de papel, verdes, amarelos, azuis, vermelhos, roxos, doirados; outros que pulam ao compasso da música; pares que dançam, criados que servem bebidas, mulheres que fumam, crianças que deliram de alegria ..

Detenho-me à porta, indeciso. E digo de mim para mim: Para que todo esse rumor, toda essa vertigem? Para que vos afadigais dessa maneira, incitando-me em vão? 0 meu Natal não é esse.

(Cabral do Nascimento. Lugares selectos de autores portugueses que escreveram sobre o arquipélago da Madeira, Funchal, 1949, pp.268-277)

Page 14: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Natal de Cristo—E: a festa por excelência da população madeirense. Não há outra que se lhe avantaje nem fale tanto à sua crença e sentimento. «Em parte alguma do mundo, talvez, celebrem e gozem tanto a Festa, e sintam por ela tanto entusiasmo e alegria como na Madeira. São dias de vivo regozijo, de contentamento interior, religioso e místico» A Festa, como genericamente se chama na Madeira à comemoração do nascimento de Jesus, tirando esta denominação da noite de festa, do Norte de Portugal, é a preocupação do ano inteiro para toda a gente. Vive-se, trabalha-se e entesoura-se para a Festa Precede esta solenidade um novenário conhecido pelo de Missas do Parto, celebradas ante-manhã com loas ao Menino, que dão lugar às primeiras demonstrações de júbilo e entusiasmo pela aproximação daquela quadra festiva. Os templos regurgitam de fiéis que afrontam a chuva, o vento e o frio das rigorosas manhãs de Dezembro e se encaminham para a igreja com toques e descantes. O rajão, a gaita e outros instrumentos de uso regional cadenciam o passo dos ranchos, e as castanholas estalam desconcertantes aquecendo as mãos do garotio. O povo torna-se expansivo e alegre; uma feição sentimental de comunicativa familiaridade estreita vizinhos e amigos; adormecem todos os 6dios, e renascem como motivos de vida a esperança e a saudade. S a única quadra do ano em que a alma popular vibra expontânea e dá largas a uma expansão natural. Começam os preparativos domésticos que tornam atarefada toda a população. Aumenta a vida e o movimento dos campos e da cidade numa actividade febril. Entre parentes e amigos, padrinhos e afilhados permutam-se presentes e lembranças de frutos, animais, taçalhos de carne de porco, bebidas, objectos de utilidade ou luxo. Recheia-se a despensa e a frasqueira para a oitava do Natal, e não há família, ainda a mais pobre, cuja mesa nestes dias não tenha a seu modo e condição alegria e fartura. Entram na cabeça da ementa: queijo, licor, genebra, anonas, bananas e bolos de mel; para os pobres uns litros de vinho e de aguardente. A matança dum porco é para ricos e remediados uma exigência da Festa, por ser tradicional e indispensável o prato de carne de vinho-e-alhos na refeição do almoço. A fornada de pão para oito dias aquece e alumia a casa contentando netos e afilhados com brindeiros ou merendeiras. Depois desta fornada, é tradição Jardim do Mar, todas as famílias servirem-se do único forno existente na freguesia para cozerem a carne do seu Natal. A 24 de Dezembro, à tarde, desocupa o forno da cozedura do pão, voltam a meter dentro do mesmo, enquanto daquelas fornadas, panelas com a carne da sua Festa. No dia 25 de ma atravessa a

Page 15: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

freguesia um numeroso rancho de raparigas transportando cada à cabeça a panela do seu jantar natalício e aturdindo os ares com alegria entusiásticas expansões musicais.

Durante a noite da véspera de Natal, a população das ilhas formiga Funchal para a compra de fruta e hortaliças, flores, verduras, figurantes de barro e outros enfeitos para os presépios. O mercado não comporta os abastecimento desta quadra, e uma multidão de vendedores ambulantes improvisa em feira várias artérias da cidade. Na antevéspera daquele dia, outrora, cada vendedor escolhia o local preferido perante um fiscal do Município, e assinalava-o com o chapéu, casaco, botas ou qualquer peça de vestuário do seu uso, ficando abandonados na via pública, mas respeitados por todos os transeuntes, enquanto não fornecia de produtos esse restrito mercado. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais é extraordinário e constante, de dia e de noite. Vive-se três dias de inusitada vida em que o povo da Madeira aparece com uma psicologia nova. A Festa modifica-lhe temporariamente o carácter concentrado e mazombo dando vibração à alma; o júbilo brota-lhe expontâneo sem o estímulo da bebida de que se socorre nas demais festas e romarias.

A quem desconhece a virtude doméstica desta Festa parecerá, talvez, que o povo se prepara para uma ágape pagã, mas o espirito religioso que ele adapta ao seu lar, colocando-o sob a égide do Menino Jesus, e o esplendor litúrgico de que o reveste com revivescências poéticas, rústicas e pastoris da Idade-Média dir-lhe-ão que o nosso Natal não é mais do que festa de família em companhia de Deus. A abundância como que provoca alguns excessos, mas tudo se faz de portas a dentro sem escândalo nem ofensa para ninguém, porque dia de Natal é dia de alegria e de indulgência. E porque o Deus Menino entronizado dentro de casa preside a todos os actos da família, tributam-se-lhe loas e orações em Comum.

A Consoada desta noite, tão genuinamente portuguesa, abundante, alegre, acolhedora, afectiva, cheia de lembranças e perdão para inimigos e ausentes, trazida para a Madeira pelos primitivos senhores e colonos, não enraizou nos nossos costumes muito embora o Capitão Donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, segundo do nome, a realizasse em seu solar, nas principais festas do ano. Antes da Missa do Galo e da hora de Consoada arma-se o presépio ou lapinha, nome por que vulgarmente se designa a lapa de Belém onde é figurado o nascimento de Jesus. É um património doméstico entre as tradições do Natal, que ocupa lugar primacial no seio das famílias cristãs, e liga tradições religiosas à vida e natureza locais. Criação muito embora da Idade-Média, resistiu a todas as inovações progressos, por falar à alma simples e ingénua do povo, e compor-se da rusticidade e bucolismo do seu meio. Esta adorável criação de S. Francisco de Assis, introduziram-na em Portugal as freiras do Salvador, de Lisboa, no ano de 1391, e foi trazida para a Madeira pelos colonos e povoadores continentais. Destes a deveríamos ter recebido, figurado em presépio ou lapa, como é tradição sempre representada no Continente português, e dessa denominação derivaria a de lapinha de que se dá na Madeira, desde há séculos, a todas as evoluções do presépio do Menino Jesus.

Este Menino é uma imagem que existe em todas as casas da cidade e dos campos, destinada ao presépio. Sobre uma mesa, «com túnica de seda espiguilhada a ouro (ou brocado), no seu gesto de bênção e a sopesar o mundo», um resplendor de prata na cabeça e na boca um sorriso de divina bondade, se entroniza Jesus no cimo duma escadinha ou no topo duma rochinha miniaturais, feita esta de arrumação de tufos ou de

Page 16: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

rizomas de carriços, cobertos de tela acinzentada, e no sopé uma gruta para a representação figurada do seu Nascimento. A típica composição do presépio é a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época que passa, deixando de ano para ano, entre as suas incongruências profanas e religiosas. Lembranças que ficam e servem muitas vezes de documentário a uma ou outra geração. A orografia acidentada da ilha é ali representada com a ingenuidade da arte popular: montes e vales revestidos de árvores de papel, atravessados por caminhos ásperos e tortuosas, serpenteando-os arroios e cachoeiras de algodão a dar-lhes movimento e frescura. Casas de cartão e colmo coroam as elevações e espreitam à beira das rochas. Seguindo os caminhos e torcicolando as encostas sobem pastores minúsculos de barro, em tamanhos diferentes, vestidos de cores garridas, figurantes de todos os costumes, cenas da vida, indumentária regional e folias populares com oferendas para o Deus Infante. Um galo canta aos pés do Menino, a vaca e a jumentinha fazem guarda à manjedoura de Belém, e para lá se encaminham os Reis Magos montados em ajaezados dromedários e guiados por uma estrela rutilante. Na planície, por entre mares e lagos de fragmentos de espelho, com frotas de papel, peixes e aves aquáticas de celulóide, saem procissões, marcha a tropa, bandas de musica dão concerto, passeiam figuras de ontem e de hoje; faz-se alusão aos principais actos da vida social, e arremedo a figuras populares. Não faltam engenhosos mecanismos para movimentação de figurantes grotescos e fazer girar a água em canais e repuchos. Até a decência e a religião são por vezes beliscadas por figuras e atitudes que só por ignorância ou simplicidade se justificam e toleram. A mistura com pastores e demais figurantes, germina o trigo, o milho, a lentilha e o tremoço em pires e tijelinhas de barro ou porcelana. As cabrinhas ( Davallia canariensis L. ) debruam e refrescam toda a mesa. Fiadas de laranjas, peros, ouriços e castanhas entremeiam as figuras, ladeando a lapinha canas de açúcar verdejantes. E inseparável desta ornamentação o brindeiro ou merendeira, minúsculo pão que o povo guarda, depois de desarmada a lapinha, com a superstição dum sacramental ou pão-bento para remédio de certas doenças, como a pneumonia, fazendo ingeri-lo o doente aos pedacinhos. Sendo este pão, quando usado, já bolorento, parece que o povo viu nele, desde há ,séculos, o precursor da penicilina. Serpentinas de fios de prata e de ouro sobem e descem por entre um docel de alegra-campo (Semele-Ruscus androgynus L.) e esparto (Aspargus umbellatus Lk.) delineando no espaço caminho a anjos de asas abertas sobre essa terra miniatural qual Belém cosmopolita.

A verdade histórica e o senso estético da arte do barro não acrescentam valor a estas figurinhas de fabrico local e popular, mas a expressão e a forma que as animam dão-lhes vida e graça singulares. «Se toleramos ao Génio notas tão incongruentes, de todo o ponto inverosímeis, não havemos de perdoar à lapinha madeirense, obra do povo inculto e de inocentes crianças, os seus erros de tempo e desvios de lugar, sua falta de unidade em acção e proporções, toda a ingenuidade de meios que é o seu mais alto encanto—uma vez que ela, tão nossa, docemente retém, como nenhuma outra forma intrusa, a piedosa alma do povo sobre a Virgem e Jesus, e desperta sã ternura e alegria nos olhos dos nossos filhos, deste modo iniciados no fundo da fé cristã?» (1). Mal estudado e mal compreendido, o presépio nem sempre tem recebido do sentimento religioso e estético o apreço condigno ao valor que representa. Não é, geralmente, para muitos, mais do que um simples e rotineiro simbolismo do Natal. Vive-se junto dele, em volta dos sentimentos e emoções que desperta, mas nem sempre se compreende nem se vive com ele e com a sua expressão real e verdadeira. E:, todavia, a psicologia do seu motivo cristão, o sentimento que todos os anos o ressuscita e anima, a arte ingénua com que a alma popular cria e trabalha os seus figurantes de barro, os veste, os distribui, os agrupa

Page 17: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

e movimenta nesse minúsculo cenário; o espírito religioso da vida doméstica enquanto existe armado o presépio dentro do lar; o espirito de indulgência, de paz, de alegria e de união entre parentes e vizinhos, entre sítios e povoações, que dele se desprende, são elementos apreciáveis de estudo e de ensinamento para a História, para a Arte e para a Religião.

Um dos barristas mais populares, no último século, foi Fernando Perry. Outros houve, em tempos mais afastados, que da modelação rudimentar do barro tiraram arte e nome, deixando obras de valor dispersas como relíquias por mãos alheias, e de que ainda existem numerosos exemplares.

Dos presépios antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte de barro do século XVIII. Temo-los das três categorias em que os críticos os costumam dividir: Presépio simples, formado exclusivamente pela adoração da Sagrada Família, anjos e os dois animais da tradição evangélica; presépio com a adoração dos Magos e dos Pastores, acompanhados dos Reis Magos e suas comitivas, ricos, luxuosos e imponentes como potentados orientais, e os pastores carregados de oferendas, tributos de submissão e piedade; presépio misto, de figuração bíblica alusiva a cenas da vida de Jesus, e representação de episódios, usos e costumes da época do seu autor. Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos. Provêm geralmente de conventos e são obras notáveis de artistas anónimos cuja concepção e modelagem os colocam a par das mais apreciadas no género, ajudando a valorizar o nosso patrim6nio artístico. Com os de barro aparecem presépios de outras matérias-primas, devendo salientar-se um de âmago de figueira, de princípios do século XIX, a que falta o Menino Jesus, pertencente a Júlio de França, e outro de cortiça, mais moderno, executado pelo solicitador José Ferreira, ambos muito curiosos e artísticos. Destes, o primeiro é verdadeiramente admirável pelas figuras miniaturais de pássaros, pastores e vários espécimes de flora e pelo documentário fiel da indumentária da época, usada por todas as classes sociais. A tradição deste presépio dá-o como tendo sido feito por um frade do Convento de S. Francisco do Funchal e oferecido ao Convento de Santa Clara. Entre os modernos barristas de arte intuitiva distingue-se Roberto Cunha pela minuciosidade e perfeição de suas esculturas miniaturais.

Não menos admirável de arte popular é a Lapinha do Caseiro, denominação vulgar do avantajado presépio de cortiça. e madeira talhado por Francisco Ferreira, antigo colono, no Monte, das freiras de Santa Clara, do Funchal, e o caseiro de maior confiança e honorabilidade das propriedades rústicas e urbanas do convento daquela Congregação. Artista nato, dedicou a vida inteira à escultura religiosa, cortando cortiça e madeira com apreciável golpe e inspiração. O seu presépio, que ainda se conserva patente ao público, ao Caminho do Monte, no sitio da Quinta do Salvador, tornou-se centro de numerosas romagens, todos os anos pelo Natal. Não s6 a execução dos pastores como a representação e movimento de toda a vida de Cristo, em figuras individuais e agrupadas, encarecem o valor da obra e o talento privilegiado do artista. São de igual relevo artístico, embora por vezes ingénuo e rudimentar, mas sempre de incontestável intuição estética, outros passos do Antigo e Novo Testamento, descritos a rigor bíblico, em cortiça ou madeira, assim como a figuração de motivos da vida social e doméstica, contemporânea do escultor, monumentos, pessoas e actividades regionais. Esculpiu também muitas imagens que saíram fora desta e se acham à veneração dos fiéis até no estrangeiro.

Page 18: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

O nosso presépio não foi sempre a Rochinha. Durante mais dum século se entronizou o Menino Jesus em escadinhas ou pirâmides aos degraus o que ainda é costume generalizado entre camponeses.. De há menos de cinquenta anos para cá é que se generalizou o gosto pelo presépio de rochinha, aparecendo também mais modernamente a substituição daqueles simbolismos cristãos, principalmente na cidade, pela Arvore do Natal, influência de residentes estrangeiros, que o povo não aceita por ser crente e português. E uma criação do espírito liberal, inestética, inexpressiva e até anti-religiosa, sem tradição, sem vida nem aplicação aos nossos costumes. No presépio vive-se a espiritualidade educativa da vida de Cristo, da sua virtude, do seu amor, da sua bondade, da sua omnipotência; na Árvore do Natal, apenas a nossa pr6pria vida cheia de sentimentos mesquinhos, de interesse, de egoísmo, de luta, de ambições. Nem em simbolismo nem em verdade se pode conciliar com a liturgia do nascimento de Cristo a Árvore de Natal: é uma representação puramente profana que briga com o sentimento nacional tradicionalmente cristão.

Parece-nos todavia que, antes de introduzido o presépio em Portugal, se usava outro simbolismo, afim da Árvore, para assinalar o nascimento de Cristo. No Regimento dos Sacristãos-Mores da Ordem de Cister de Alcobaça encontra-se esta determinação: «Nota de como has de poer o ramo de natal, scilicet: Em véspera de natal, buscarás hum grande Ramo do loureiro verde, e colherás muitas laranjas vermelhas e poer lhas has metidas pelos ramos que dele procedem spacificadamente segundo já viste. E em cada hua laranja, peras hua candeia. E pendoraras o dicto Ramo per hua corda na polee que ha de estar acerca da lâmpada do altar moor»

Terminados os arranjos do presépio, dirige-se o povo para a Missa do Galo à meia-noite, instituída no século II pelo Papa Telésforo. A folia com que até ao século XVIII se assistia a esta missa, deixou lembranças radicadas na Madeira. E, por isso, a noite mais alegre do ano. O frio nem a chuva afastam os fiéis de igreja, e o mau tempo é sempre esquecido com a esperança de que, à meia-noite em memória do nascimento de Cristo, rondará ao Norte, ficando bom. O templo sagrado é uma apoteose de lumes e de frémitos de alegria, rejuvenescendo os corações.

Em muitas partes da ilha, principalmente no Norte, observa-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, que transforma a igreja da aldeia num verdadeiro teatro de pastoreias ao sabor bucólico da Idade-Média. É a de pensar o Menino, seguida da entrada de pastores que o vão adorar. O auto de pensar o Menino não é já hoje uma sombra do que foi primitivamente, tendo sido proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para restrição de abusos A meia-noite simulava-se o nascimento do Salvador, representando a cena com um realismo impróprio do lugar sagrado: aludia-se com cânticos apropriados s todas as circunstâncias desse acto, inclusive à de lavar o Menino que era feita ao vivo, e mostravam-se, uma a uma, as suas faixas e demais pecas de vestuário. Esta cerimónia consta actualmente apenas de patentear ao público o Deus Infante o que, nalguns lugares, é feito por uma criança vestida de anjo, que entoa uma melodia privativa desse acto. Segue-se a entrada dos pastores em que tomam parte numerosos fiéis de ambos os sexos, aos grupos ou isolados, como embaixadores dos sítios, cumpridores de votos ou de simples actos individuais de devoção. Cada pastor por sua vez, sendo portador duma oferenda entra no templo por entre alas de povo, cantando ao som de instrumentos regionais, e ajoelha junto da imagem do Menino Jesus com a oferta à cabeça, às costas ou nas mãos, entoando loas de inspiração espontânea e gosto popular. De mistura com versos de

Page 19: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

repassado sentimento e verdadeira fé cristã, aparecem redondilhas cheias de ironia, de chiste; epigramas com alusão a pessoas e a factos; narrativas de vida local, de infortúnios e de desgraças; votos, preces, acções de graças. O povo, interessado ao vivo neste espectáculo, não sem guardar o respeito e a compostura devidos ao lugar sagrado, ora ri, ora chora como o espectador da Idade-Média, assistente de representações bíblicas, ingénuo ou místico, sincero e comovido. Nas freguesias do Norte é onde se conserva mais tipicamente esta cerimónia que está sendo introduzida nas do Sul. O clero procura reprimir abusos, estando pouco a pouco a modificar o carácter e a excessiva liberdade destas tradições. R o que se faz nas províncias da metr6pole portuguesa reconstituindo a tradição multissecular da Embaixada ou Estrada de Pastores na noite de Natal, autos tão vulgares na Península Ibérica desde o século XIII. «Por essas Províncias além, escreveu o folclorista Luís Chaves, restam ainda pastoreias, coros e cantos de pastorzinhos, cortejos e desfiles de figuras pastoris que têm o seu período próprio no Natal... A simplicidade e a ternura com que a Embaixada realiza a sua função teatral de anunciar o nascimento do Menino para bem da humanidade que o esperava, são admiráveis». E este teatro religioso sempre «existiu frequentemente em estreita simbiose com as representações profanas e mesmo burlescas. Os membros de Sínodos portugueses, bispos, abades, curas de almas e monges atestam a sua existência como se falassem duma coisa sabida de toda a gente. Seria maravilha que Portugal se isolasse a tal ponto da Europa de então» Não tinha melhor diversão o povo, e mais educativo e morigerador seria esse Teatro Sagrado que a teatralidade dos arraiais modernos acompanhados de irreverências de rádio do alto dos campanários. E porque nem tudo é de reprovar e banir da tradição popular, expressão da alma portuguesa e do seu sentimento cristão, é que o 6rgão da Igreja em Portugal, Novidades, de 19 de Dezembro de 1943, publicou em suplemento o texto integral da Embaixada de Terras de Miranda, recolhido pelo Pároco de Duas Igrejas, António Mourinho, que o reconstituiu no seu antigo esquema literário, coral, mímico e religioso, «alijadas as ocasiões e restos de escandaleira», como obra-prima dos muitos autos que restam e se representam ainda nas Províncias de Portugal. g uma representação pastoril de passos idênticos aos dos autos de Natal madeirense, tão mal compreendidos e apreciados no nosso tempo, essa religiosa, devota e encantadora figuração clássica de pastores, pastoras, anjos e estrelas, diálogos, coros e cortejos, os homens e a natureza com sua alma e seus dons aos pés do Deus nado em homenagens de palavras e oferendas. Longe de se combater por excessos e abusos uma tradição de tão expressivo sentido religioso, riqueza folcl6rica e benefício eclesiástico, como pé-de-altar, antes seria de melhor senso corrigir sua literatura e encenação, liberdades e deslizes, integrando-a quanto possível no tema fundamental e litúrgico, por isso que o povo se une por esses autos ao mistério da Incarnação, ao seu Pastor e à Igreja.

Os presentes constam de produtos da terra, animais vivos, fruta, ovos, géneros alimentícios e dinheiro destinados ao pároco. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o vulgar pão de açúcar em forma de cone troncado, a que já aludimos na Manutenção do Clero. As freguesias onde se conservou por mais tempo essa histórica lembrança foram o Estreito da Calheta, Fajã da Ovelha e Porto do Moniz. Há pouco mais de trinta anos começou o povo a substituí-la por formatos idênticos de cartão, cheios de trigo.

O Auto de Natal, no Porto Santo, cujo restabelecimento, depois muitos anos de interrupção, se deve ao p e César Teixeira da Fonte, movimenta extraordinariamente toda a noite a ilha inteira. Compartilham desta cena bucólica os núcleos de população

Page 20: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

em romagens de pastores que se dirigem à Igreja com suas oferendas, tocando, cantando e bailando com mais vida e entusiasmo que na Madeira. As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até as 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados em cantares até romper a manhã, fazendo-se ao lusco-fusco a debandada de volta com a mesma alegria e folgares da vinda. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios, e nas casas destas e nas demais por toda a ilha, deita-se o baile da Meia Volta até o Dia de Reis, diversão honesta, típica e tradicional.

A Missa do Galo nestas ilhas tem lugar depois deste auto. Ao regressar o povo a casa, como reminiscência certamente da consoada portuguesa, inicia a função doméstica do Natal, comendo e bebendo do que tem de melhor para aquele dia e suas oitavas. Ao amanhecer do dia seguinte, cheira a fritadas de carne de vinho-e-alhos por toda a parte, e não se sente vida, por assim dizer, nas povoações. O povo guarda de portas a dentro o Natal no convívio isolado da família, porque não é costume sair de casa por tradição. Instrumentos, foguetes e bombas são as únicas vozes que saem fora dos casais. O turismo, porém, vem quebrando de ano para ano, na cidade, este costume levando muita gente a animar um pouco as ruas, na maior parte desertas, a abrir estabelecimentos e a frequentar à noite os cinemas. A hora das refeições, todos de pé e mãos postas invocam os parentes mortos e ausentes, havendo lágrimas e orações em comum.

No primeiro dia da oitava visitam-se os parentes, reunindo os pais seus filhos casados e netos à mesma mesa em festa de família; os afilhados vão tomar a bênção aos padrinhos, cortesia de boa educação antiga e cristã que serve hoje de pretexto para lembrar o brinde de Natal. Estas recepções são feitas em geral junto da lapinha. O vinho não falta à discrição, e o bolo-de-mel, partido à mão segundo o estilo, coagulando pratos e bandejas, roda por todos os visitantes até se esgotar. Obedecem a esta regra de etiqueta todas as visitas, durante o tempo da Natividade. Animados pelo vinho e com a ajuda duma viola e dum rajão passam horas seguidas a cantar louvores ao Menino ou trovam ao desafio em transportes de alegria, ferindo frequentemente a nota sentimental e religiosa. Todos os dias, antes de se deitar, a família ajoelha e reza diante do presépio agradecendo a Deus o bem-estar, a paz e a comunhão doméstica do seu Natal. Enquanto dura este período litúrgico, desde a Missa do Galo até a festividade dos Reis, congrega-se de dia e de noite o povo na permuta de visitas a famílias e lapinhas. No Porto Santo, a dança regional da meia-volta aquece e anima extraordinariamente estas reuniões. Em S. Martinho, no Seixal e noutras localidades aparecem em público grupos de mascarados, relembrando uma antiga usança da col6nia inglesa na Madeira.

Outra tradição, que se extinguiu com o advento da República, prolongava as festas da Natividade até o Carnaval: era a que fazia sair o popular Menino Jesus das Mercês de visita a famílias abastadas da cidade com o fim de recolher esmolas para o seu Convento. Passava o Menino uma noite em cada casa, e era tão disputada a sua visita que não chegava o tempo para satisfazer todos os devotos. Durante a noite da dormida em casa alheia, havia magna reunião de parentes e amigos, honrarias de carácter religioso e profano e pedit6rio de obrigação. Este Menino, de cerca de 50 cm, formoso e amimado como um dos mais cobiçados pimpolhos, extinto o convento, não sofreu mais ultrajes piedosos. No Recolhimento do Bom Jesus em cujo templo se conserva a imagem do Menino Jesus das Mercês, observava-se também, desde remotas eras, uma

Page 21: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

prática piedosa e original em honra de Jesus Infante, que se conservou até há poucos anos. No primeiro Domingo depois da festa dos Reis Magos, era o Menino roubado ao grupo da Sagrada Família e conduzido processionalmente dum coro para outro onde permanecia até o segundo Domingo depois dos Reis. Neste dia—Domingo da Achada—era escondido e as recolhidas procuravam-no em procissão por todas as celas, cantando loas plangentes até o encontrarem. Descoberta a imagem, os cânticos mudavam de tema e de tom tornando-se alegres e laudat6rios. Relembrava esta cerim6nia o descaminho de Jesus em Jerusalém. Mais um Menino de festejada fama «havia no Convento de Santa Clara (mandado edificar em 1492 pelo 2.o Donatário João Gonçalves)... obra-prima de escultura em madeira, muito prendado de jóias que lhe desciam do pescoço até às fivelinhas das sandálias, pesado de ouro, fios de pérolas e abotoaduras ricas, oferendas de fidalgos e morgados que lhe recomendavam as filhas irrequietas, postas a recato na sombra da clausura» Era o Menino-Perdido que se escondia pela cidade, pondo em reboliço meia população. Passada a festa dos Reis Magos, saia o Menino secretamente do convento a esconderijo numa casa fidalga do Funchal. A abadessa, única depositária do segredo, guardava sigilo do esconderijo, e as demais freiras convidavam as pessoas de suas relações e amizade a descobrirem o paradeiro do cobiçado Infante, com pensando o trabalho com um generoso presente a quem o retivesse sob sua guarda. Um ano foi ele ter à fortaleza de S. Tiago. Viu-se tão honrado com esta visita o comandante da praça que não se conteve dentro dos limites da costumada e conveniente discrição; mandou aperrar a artilharia de defesa da cidade e salvou 101 tiros em honra de Deus. Como se temiam ao tempo assaltos de piratas alarmou-se toda a população, acorreram a tomar os postos as milícias e a demais gente fugiu espavorida. O condestável respondeu em conselho de guerra, mas foi resolvido como bom cristão, sendo apenas condenado na despesa da pó1vora queimada ao Estado. O menino Jesus, apesar de denunciado tão estrondosamente, não desfez as pregas do seu eterno sorriso perante o desapontamento das freiras.

(Eduardo C. N. Pereira, Ilhas de Zargo, vol. II, Funchal, 1968, pp.505-515

Page 22: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Lapinha. É com este termo que na Madeira se designam os «presépios», que desde séculos tão generalizados estão entre nós. Julgamo-lo uma palavra peculiar deste arquipélago. Deve ser o diminutivo de «lapa» com o significado de furna, gruta ou cavidade aberta em um rochedo, por analogia ou semelhança com o local do nascimento do Divino Redentor. É possível que em outros tempos conservassem essa analogia ou semelhança, mas, ao presente e na generalidade, as «lapinhas» madeirenses são armadas sôbre uma mesa, tendo como centro uma pequena escada de poucos decímetros de altura, de três lanços contíguos, e no topo da qual se coloca a imagem do Menino Jesus. Em todos os degraus da escada e em torno dela estão dispostos os «pastores» e vários objectos de ornato, por vezes bem estranhos e sem próxima afinidade com o resto do presépio. Em obediência às condições do meio, terão algumas características próprias, como sejam as ornamentações com os ramos do arbusto «alegra-campo» e dos fetos «cabrinhas», que lhes imprimem uma feição pitoresca e alegre. Terão uma certa originalidade os chamados «pastores», isto é, pequenas figuras de barro de grosseiro fabrico local, que quási sempre não representam pastores ou zagais mas indivíduos das várias camadas sociais.

Ainda são muito vulgares as «lapinhas» com as chamadas «rochinhas», consistindo estas no simulacro de um pequeno trecho de terreno muito acidentado, feito de «socas» de canavieira e que geralmente conserva na base uma pequena «furna» representando o presépio em minúsculas figuras de barro.

Page 23: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Existiam, mas hoje são já muito raras, estas mesmas «rochas», talhadas em maiores proporções e em que se viam igrejas, estradas, pequenas povoações etc., embora sem grande harmonia no conjunto, mas oferecendo um certo e original pitoresco. Vid. «Natal».

Natal. As festas do Natal duram na Madeira desde o dia em que se comemora o nascimento de Jesus até o dia de Reis, havendo durante êste tempo muitos folguedos, descantes e outras manifestações de regozijo, que poetizam esta bela quadra do ano. As refeições são melhoradas, e rara é a casa onde não aparecem a carne-de-vinho-e-alhos e os bolos de mel, assim como outras iguarias que são desconhecidas durante o resto do ano. Os templos enchem-se de povo por ocasião da missa do galo, em que a imagem do Deus-Menino é muitas vezes dada a beijar, e para completar as festas e solenidades do Natal, há ainda os presépios ou lapinhas, alguns deles verdadeiramente notaveis pela riqueza e variedade de seus adornos. Não há muitos anos, era uso nalgumas freguesias da Madeira «pensar» a imagem do Deus-Menino na noite do Natal, isto é levá-la e vesti-la sôbre um estrado colocado dentro da igreja, sendo êste serviço prestado sempre por uma rapariga, mas tal uso cremos que desapareceu, assim como um outro que consistia

Page 24: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

em oferecer ao mesmo Deus-Menino na referida noite, varias produçcões da terra. Rapazes e raparigas, vestidos com trajos antigos, conduziam piedosamente ao templo as suas ofertas, anunciando em seus cantares, por vezes muito harmoniosos, a quem eram destinadas as mesmas ofertas.

O velho habito de consagrar todo o dia de Natal à vida e festas recatadas da familia tende a desaparecer, e as ruas da cidade, desertas outrora naquele dia, apresentam-se hoje quasi tão movimentadas como na primeira, segunda e terceira oitavas. É, no entretanto, durante estes três dias, que o povo continua a santificar não obstante ter sido dispensado disso pela Igreja, que principalmente se realizam as visitas e os cumprimentos de boas festas, os quais entre o povo rude são acompanhados quasi sempre de abundantes libações, descantes e outros folguedos, que se estendem até horas mortas da noite. Desde a vespera do Natal até á Epifania, estrugem por toda a parte as bombas e busca-pés, com grave risco não só dos transeuntes, mas também daqueles que os atiram, muitos dos quais tem sido vitimas das suas loucuras e imprudencias.

O habito não muito antigo, de despedir o ano velho e receber ao ano novo com toda a especie de fogos de artificio, é aquêle que mais chama a atenção dos forasteiros, sendo na verdade um espectaculo imponente e belo o que oferece a cidade do Funchal e seus suburbios ao avizinhar-se a hora da meia noite do dia 31 de Dezembro, quando por tôda a parte se acendem os fosforos de côres e sobem aos ares os milhares de foguetes e granadas com que os madeirenses festejam a passagem dum para outro ano, na esperança de que aquêle que principia lhes traga tôdas as venturas que lhes negou o que vai sumir-se na voragem dos tempos. A noite de 31 de Dezembro é muito animada no Funchal, sendo a cidade percorrida por grandes ranchos que se dirigem para varios pontos dos arredores, ao som de machetes e violas, para daí contemplarem os festejos da meia noite.

É no dia 7 de Janeiro, após os Reis, que se desmancham as lapinhas e tudo volta á normalidade, mas algumas pessoas conservam os presepios armados até o dia 15, festa de Santo Amaro, que é, na opinião de alguns, quando devem ser dadas por findas as manifestações de regozijo do Natal, tanto do agrado do bom povo madeirense.

Vid. Lapinha.

Fernando Augusto da Silva, Elucidario Madeirense , vol. II, Funchal, 1965, pp.211, 406-407

Page 25: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

«Antigamente o presépio das Mercês, com suas alamedas e ingénuos pastores modelados por barristas indigenas, a alapinha» do Bertholdo, que ocupava uma vasta quadra engalanada a festões de alegra-campo (semele andrógina), esparto e amarelidas flores de «bigónia venusta», e onde se admirava as maquinarias pacientemente ideadas, repuxos espadanantes em meio de rendilhadas avencas, eram locais onde mais amiúde se aglutinava a multidão dos curiosos. A «rocha», vértebras artisticamente formadas de socas de cana-da-roca, com seus outeiros, sinuosidades de lombas e vales ferazes, tudo pinturilado a rôxo-terra e faiscante de pó de mica, apresentava um interessantíssimo aspecto. Aqui, desciam zagalas e pegureiros com as suas oblátas de frutos lampos, anhos recentemente desmamados, gavelas de trigo anafil, um galo tinto de azeviche, e de experimentados esporões. Além, avistavam-se louçanias de padeiras com seu fôrno portátil, vendedeiras de guelros e taínhas em frigideiras de barro, tanoeiros com o chaço e o malho, calafates arqueando a querona e o capiteu dos galeões, sapateiros em rítmicas zumbaias, puxando o fio e trescalando a ceról.

Remeiros de galés e marujos dos nossos dias entrecruzavam-se num inconsciente anacronismo, frades adiposos tinham atitudes inquietantes para a tonsura, irmãos de ópas vermelhas alinhavam-se, pnuito graves, num cortejo religioso. Uma filarmónica, enriquecida de custosos metais e oboés, fechava o préstito, salientando-se pela fulgência de seus alamares um intrépido gaiteiro, afogueadas cores de natureza pletórica, bochecas infladas pelo sopro (. .). No Mar, sôbre uma Placa de vidro polido. Ancoravam naves de mercadorias fenícias e triremes da Hélade transatlânticos que hebdomadariamente se fazem rumo a Cape-Town, faluas, barcos com sua rija quilha de folhados, uma fragata em que se divisavam os gageiros no cesto-da-gávea, velame afortunadamente desferido ao vento galerno.

Page 26: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Toda este amálgama era porém sobrelevado pela humaníssima cena do Nascimento de Jesus. A vaca de mirada fiel, a jumentinha, cordeira e cabra com sua esquila tintinabulante, formavam humilde séquito à Sagrada Família. E enquanto a Virgem e o Senhor San José se enlevavam no sorriso auroral do Menino, o galo sobre o saliente beiral da arribana soltava um estridente cu-cu-ru-cu.

Anjos emergiam de nuvens de algodão em rama, jograis alados e trombeteiros celestes anunciavam a Boa-Nova, cantando em uníssono:— Glória in excelsis. E arroubados pela inefável doçura dos coros angélicos, os pastores e os remeiros, pretorianos e hussardos, os Magos e os mesteirais, homens de todos os tempos e de todas as hierarquias, confluiam, em direitura à cabana de Belém, na ânsia de inteirar-se do Prodígio.

Era assim a «lapinha» do Berthôldo».

(...) como o Bom Jesus, onde ainda se lobrigam, actualmente, vilões e viloas modelados em barro escuro por imaginários da ilha, a «lapinha» do sineiro da Sé, com suas sanefas acaireladas de oiro, camélias soerguerdo-se de areia fina e opulentando as jarras de louça, «ouriços» em meio de saiões vivazes e~ umas anonas temporãs; adrêde colocadas em desafio ao pecado da gula.

Vários destes presépios, por deliberação de seus detentores, deixa ram de ser armados, ou foram subdivididos por herdeiros e legatários em mesquinhas parcelas»

[sobre a lapinha do Caseiro, Francisco de Freitas, refere:] « ( . ) povoada de grupas alegóricos, pastores pacientemente talhados em cedro, numerosas figuras plenas de um acentuado movimento, embora por vezes microcéfalas, e que se nos antolham confinadas nos domínios da teratologia»

( Jayme Câmara, De Sam Lourenço. Prosas do Estio e do Outono, 1932) .

Page 27: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

Donde viria a predilecção do madeirense pelo fogo de artifício ? Tornou-se vulgar o espectáculo sempre fascinante duma chuva de estrelas coloridas sobre a ilha. Em qualquer ponto da montanha, onde haja uma capelinha; em todos os sítios que se avistam da estrada,—lá estão, de quando em quando, os renques de lâmpadas a assinalar a festa, que nem chegamos a saber qual seja. E, dum momento para outro, sobem na escuridão as girândolas luminosas, como se fizessem parte da noite madeirense. Mas o grande deslumbramento é a passagem do ano, quando o maravilhoso anfiteatro do Funchal se incendeia de estrelas de mil cores e das encostas sobem jogos de fogo alucinantes. Dir-se-ia a evocação poética das labaredas que há cinco séculos lhe destruíram o arvoredo. Enche-se a atmosfera dos silvos das sereias e do buzinar dos automóveis, mas o fogo domina tudo e cria a exaltação colectiva dos acontecimentos excepcionais. Vista do mar, naquela hora, a Madeira é uma floresta de luz multicolor a flutuar no Oceano. Uma realidade fabulosa e efémera ! Contemplada da cidade, a baía, toda ela reflexos prodigiosos, com as silhuetas dos navios a refulgir, é outro sonho visível, réplica do mar ao espectáculo fantasmagórico da terra.

Para o madeirense, a festa do fim do ano é a conclusão natural das Festas—o Natal—que toda a ilha celebra com entusiasmo e amor. Não há casa, por muito pobre que seja, onde o Natal não seja assinalado por uma limpeza maior, um arranjo mais cuidado, uma «lapinha» ou, simplesmente, a imagem do Menino Jesus exposta sobre a cómoda ou sobre a mesa e rodeada de flores e de «alegra-campo», de mistura com todos os objectos a que se atribua um valor decorativo. É, todavia, no Funchal que as Festas assumem o seu esplendor máximo: na animação das ruas, desde semanas antes; na especial decoração das montras; no fulgor da iluminação, intensificada pelas casas comerciais,

Page 28: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano

que iluminam as suas fachadas e armam, algumas, os seus «pinheiros» no passeio que lhes fica defronte; numa indefinível euforia que se espalha no ambiente. Tudo toma um ar festivo; gastam-se as economias corajosamente amealhadas durante o ano para estrear qualquer coisa nas Festas ou gastar em presentes. Bolos-de-mel, broinhas; anonas e abacates, já fora da sua época e por isso mais apreciados; «carne de vinho e alhos» —palavras de todos os dias que têm, porém, um sentido mais forte, imediato, quando chega o Natal, mesmo até para aqueles que se limitam a pensá-las, sem possibilidades de lhes dar concretização... O Natal faz nascer uma esperança em cada coração. Não apenas a dum Mundo em Paz—aspiração natural, constante e veemente de todos os homens e mulheres de boa-vontade—mas a esperança humaníssima de qualquer coisa que melhore a vida, conforme as necessidades de cada um. Quantos se contentariam com um bom jantar, um mimo, um agasalho, um brinquedo que lhes alegrasse os filhos . . . O Natal traz, a alguns, essa probabilidade. Tudo isso conta na claridade que irradia da palavra Natal. Tudo isso conta na alegria difusa das Festas da Madeira.

A «rochinha» ou «lapinha» madeirense, inspirada na própria paisagem, é, a um tempo, ingénua e original: o mesmo presépio das províncias portuguesas, mas diferente de todos eles, com dois Meninos Jesus—o que está na gruta, deitadinho sobre palhas, e outro, mais crescido, vestido de seda, imagem tutelar de todos os lares da ilha, que é colocado, como soberano, no alto da fantasiosa construção. Casinhas, pastores, ovelhas, e as mais variadas figuras criadas pelos barristas populares, todos os presépios têm. Mas a Madeira junta a tudo isso os melhores frutos da época, a verdura dos seus campos e a delicadeza das suas « searas». Vão-se perdendo certas praxes e tradições de cunho medieval que caractizavam, nas diversas freguesias, o Natal da ilha: mascaradas, cantares e folguedos exclusivos da ocasião. Prevalece, contudo, imutável, o ambiente de festa que abre um parêntesis na monotonia quotidiana e dá aos ilhéus de todas as classes, tenham ou não tenham Fé, um espairecimento diferente, às vezes uma ilusão de optimismo e mudança. . .

(Maria Lamas, Ar quipélago da Madeira maravilha atlântica , Funchal,1956, 383-384)

Page 29: Festa Madeira - Natal e Fim do Ano