fernando pessoa - antologia poética
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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ANTOLOGIA POTICA
POEMAS PESSOANOS
(Poemas Ortnimos)
FERNANDO PESSOA
Esta obra respeita as regras
do Novo Acordo Ortogrfico
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A presente obra encontra-se sob domnio pblico ao abrigo do art. 31 do
Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do
autor) e distribuda de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,
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BREVE NOTA SOBRE FERNANDO PESSOA
Fernando Antnio Nogueira Pessoa (1888 - 1935), mais conhecido como
Fernando Pessoa, considerado um dos maiores poetas da Lngua
Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Lus de
Cames. O crtico literrio Harold Bloom considerou a sua obra um "legado
da lngua portuguesa ao mundo".
Pessoa foi igualmente empresrio, editor, crtico literrio, jornalista,
comentador poltico, tradutor, inventor, astrlogo e publicitrio, ao mesmo
tempo que produzia a sua obra literria em verso e em prosa. Como poeta,
desdobrou-se em mltiplas personalidades conhecidas como heternimos,
objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Centro irradiador
da heteronmia, auto denominou-se um "drama em gente".
Considera-se que a grande criao esttica de Pessoa foi a inveno
heteronmica que atravessa toda a sua obra. Os heternimos, diferentemente
dos pseudnimos, so personalidades poticas completas: identidades que, em
princpio falsas, se tornam verdadeiras atravs da sua manifestao artstica
prpria e diversa do autor original. Entre os heternimos, o prprio Fernando
Pessoa passou a ser chamado ortnimo, porquanto era a personalidade
original. Entretanto, com o amadurecimento de cada uma das outras
personalidades, o prprio ortnimo tornou-se apenas mais um heternimo
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entre os outros. Os trs heternimos mais conhecidos (e tambm aqueles com
maior obra potica) foram lvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.
Um quarto heternimo de grande importncia na obra de Pessoa BernardoSoares, autor do Livro do Desassossego, importante obra literria do sculo
XX.
A obra ortnima de Pessoa passou por diferentes fases, mas envolve
basicamente a procura de um certo patriotismo perdido, atravs de uma
atitude sebastianista reinventada. O ortnimo foi profundamente influenciado,
em vrios momentos, por doutrinas religiosas (como a teosofia) e sociedades
secretas (como a Maonaria). A poesia resultante tem um certo ar mtico,
heroico (quase pico, mas no na aceo original do termo) e por vezes
trgico. Pessoa um poeta universal, na medida em que nos foi dando,
mesmo com contradies, uma viso simultaneamente mltipla e unitria da
vida. Uma explicao para a criao dos trs principais heternimos e o semi-
heternimo Bernardo Soares, reside nas vrias formas que tinha de olhar o
mundo, apoiando-se no racionalismo e pensamento oriental.
O ortnimo considerado, s por si, como simbolista e modernista pela
evanescncia, indefinio e insatisfao, bem como pela inovao praticada
atravs de diversas sendas de formulao do discurso potico.
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O compndio que se segue rene toda a composio potica ortnima de
Pessoa.
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FICHA PESSOAL
Ficha pessoal, tambm referida como nota autobiogrfica, intitulada no original "Fernando
Pessoa", dactilografada e assinada pelo escritor em 30 de Maro de 1935 (em algumas
edies est 1933, por lapso). Publicada pela primeira vez, muito incompleta, como
introduo ao poema memria do Presidente-Rei Sidnio Pais, editado pela Editorial
Imprio em 1940. Publicada em verso integral em Fernando Pessoa no seu Tempo,
Biblioteca Nacional, Lisboa, 1988, pp. 1722.
***
FERNANDO PESSOA
Nome completo: Fernando Antnio Nogueira Pessoa.
Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mrtires, no prdio
n. 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Diretrio) em 13 de Junho de 1888.
Filiao: Filho legtimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena
Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim Antnio de Arajo
Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionsia Seabra; neto
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materno do conselheiro Lus Antnio Nogueira, jurisconsulto e Diretor-Geral
do Ministrio do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendncia geral:
misto de fidalgos e judeus.
Estado civil: Solteiro.
Profisso: A designao mais prpria ser "tradutor", a mais exata a de
"correspondente estrangeiro" em casas comerciais. O ser poeta e escritor no
constitui profisso, mas vocao.
Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1. Dto. Lisboa. (Endereo postal - Caixa
Postal 147, Lisboa).
Funes sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos
pblicos, ou funes de destaque, nenhumas.
Obras que tem publicado: A obra est essencialmente dispersa, por
enquanto, por vrias revistas e publicaes ocasionais. o seguinte o que, de
livros ou folhetos, considera como vlido: "35 Sonnets" (em ingls), 1918;
"English Poems I-II" e "English Poems III" (em ingls tambm), 1922; livro
"Mensagem", 1934, premiado pelo "Secretariado de Propaganda Nacional" na
categoria Poema". O folheto "O Interregno", publicado em 1928 e
constitudo por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser
considerado como no existente. H que rever tudo isso e talvez que repudiar
muito.
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Educao: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua me ter casado, em
1895, em segundas npcias, com o Comandante Joo Miguel Rosa, Cnsul de
Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prmio Rainha Vitriade estilo ingls na Universidade do Cabo da Boa Esperana em 1903, no
exame de admisso, aos 15 anos.
Ideologia Poltica: Considera que o sistema monrquico seria o mais prprio
para uma nao organicamente imperial como Portugal. Considera, ao
mesmo tempo, a Monarquia completamente invivel em Portugal. Por isso, a
haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela Repblica.
Conservador do estilo ingls, isto , liberal dentro do conservantismo, e
absolutamente anti reacionrio.
Posio religiosa: Cristo gnstico e portanto inteiramente oposto a todas as
igrejas organizadas e, sobretudo, Igreja Catlica. Fiel, por motivos que mais
adiante esto implcitos, Tradio Secreta do Cristianismo, que tem ntimas
relaes com a Tradio Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essncia
oculta da Maonaria.
Posio inicitica: Iniciado, por comunicao direta de Mestre a Discpulo,
nos trs graus menores da Ordem dos Templrios de Portugal.
Posio patritica: Partidrio de um nacionalismo mstico, de onde seja
abolida toda a infiltrao catlico-romana, criando-se, se possvel for, um
sebastianismo novo que a substitua espiritualmente, se que no catolicismo
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portugus houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este
lema: "Tudo pela Humanidade; nada contra a Nao".
Posio social: Anti-comunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai
dito acima.
Resumo de estas ltimas consideraes: Ter sempre na memria o mrtir
Jacques de Molay, Gro-Mestre dos Templrios, e combater, sempre e em
toda a parte, os seus trs assassinos - a Ignorncia, o Fanatismo e a Tirania.
Lisboa, 30 de Maro de 1935.
[assinatura autgrafa]
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NOTA PRELIMINAR
1 - Em todo o momento de atividade mental acontece em ns um duplo
fenmeno de perceo: ao mesmo tempo que tempos conscincia dum estado
de alma, temos diante de ns, impressionando-nos os sentidos que esto
virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem,
para convenincia de frases, tudo o que forma o mundo exterior num
determinado momento da nossa perceo.
2 - Todo o estado de alma uma passagem. Isto , todo o estado de alma
no s representvel por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.
H em ns um espao interior onde a matria da nossa vida fsica se agita.
Assim uma tristeza um lago morto dentro de ns, uma alegria um dia de sol
no nosso esprito. E - mesmo que se no queira admitir que todo o estado de
alma uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma
se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "H sol nos meus
pensamentos", ningum compreender que os meus pensamentos so tristes.
3 - Assim, tendo ns, ao mesmo tempo, conscincia do exterior e do nosso
esprito, e sendo o nosso esprito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo
conscincia de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-
se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da
paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste no pode estar
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to triste como num dia de chuva - e, tambm, a paisagem exterior sofre do
nosso estado de alma - de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso,
coisas como que "na ausncia da amada o sol no brilha", e outras coisasassim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade ter de a
dar atravs duma representao simultnea da paisagem interior e da paisagem
exterior. Resulta que ter de tentar dar uma interseco de duas paisagens.
Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - no se querendo admitir que um
estado de alma uma paisagem - que se queira simplesmente intersecionar um
estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior.
Fernando Pessoa
(in Cancioneiro)
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AUTOPSICOGRAFIA
O poeta um fingidor.
Finge to completamente
Que chega a fingir que dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
No as duas que ele teve,
Mas s a que eles no tm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razo,
Esse comboio de corda
Que se chama corao.
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ANLISE
To abstrata a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
O teu corpo do meu ver to longemente,
E a ideia do teu ser fica to rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu s, que, s por ter-me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A iluso da sensao, e sonho,
No te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
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12-1911
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DOBRE
Peguei no meu corao
E pu-lo na minha mo
Olhei-o como quem olha
Gros de areia ou uma folha.
Olhei-o pvido e absorto
Como quem sabe estar morto;
Com a alma s comovida
Do sonho e pouco da vida.
1913
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INTERVALO
Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas tm escutado -
Aquele amor cheio de crena e medo
Que verdadeiro s se segredado?...
Quem te disse to cedo?
No fui eu, que te no ousei diz-lo.
No foi um outro, porque no sabia.
Mas quem roou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria algum, seria?
Ou foi s que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi s qualquer cime meu de ti
Que o sups dito, porque o no direi,
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Que o sups feito, porque o s fingi
Em sonhos que nem sei?
Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que no passa do meu pensamento
Que anseia e que no sente?
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DESEJO
Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
Aos teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca -
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.
1913
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ABDICAO
Toma-me, noite eterna, nos teus braos
E chama-me teu filho... eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaos.
Minha espada, pesada a braos lassos,
Em mo viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecmara, feitos em pedaos
Minha cota de malha, to intil,
Minhas esporas de um tinir to ftil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
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E regressei noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
1913
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IMPRESSES DO CREPSCULO
Pauis de roarem nsias pela minha alma em ouro...
Dobre longnquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha alma...
To sempre a mesma, a Hora!... Balouar de cimos de palma!...
Silncio que as folhas fitam em ns... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de nsia pe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!
Estendo as mos para alm, mas ao estend-las j vejo
Que no aquilo que quero aquilo que desejo...
Cmbalos de Imperfeio... to antiguidade
A hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim prprio at desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de aurola, transparente de Foi, oco de ter-se...
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O Mistrio sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o no conter-se...
A sentinela hirta - a lana que finca no cho
mais alta do que ela... Para que tudo isto... Dia cho...
Trepadeiras de despropsito lambendo de Hora os Alns...
Horizontes fechando os olhos ao espao em que so elos de erro...
Fanfarras de pios de silncios futuros... Longes trens...
Portes vistos longe... atravs de rvores... to de ferro!
29-03-1913
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HORA ABSURDA
O teu silncio uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silncio as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao p de qualquer paraso...
Meu corao uma nfora que cai e que se parte...
O teu silncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti um cadver que o mar traz praia..., e entanto
Tu s a tela irreal em que erro em cor a minha arte...
Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de cio os sales...
Minha alma uma caverna enchida pela mar cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histries...
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Chove ouro bao, mas no no l-fora... em mim...Sou a Hora,
E a Hora de assombros e toda ela escombros dela...
Na minha ateno h uma viva pobre que nunca chora...
No meu cu interior nunca houve uma nica estrela...
Hoje o cu pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva mida vazia...A Hora sabe a ter sido...
No haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar uma praga sem sentido...
Todas as minhas horas so feitas de jaspe negro,
Minhas nsias todas talhadas num mrmore que no h,
No alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa no nem boa nem m...
Os feixes dos lictores abriram-se beira dos caminhos...
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Os pendes das vitrias medievais nem chegaram s cruzadas...
Puseram in-flios teis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias frreas com vios daninhos...
Ah, como esta hora velha!... E todas as naus partiram!
Na praia s um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angstia de sonhar mais que at para si calam...
O palcio est em runas... Di ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ningum ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...
Esta paisagem um manuscrito com a frase mais bela cortada...
A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma aquela luz que no mais haver nos candelabros...
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E que querem ao lago aziago minhas nsias, brisas fortuitas?...
Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e j tinham partido...
O teu silncio que me embala a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...
J no h caudas de paves todas olhos nos jardins de outrora...
As prprias sombras esto mais tristes...Ainda
H rastros de vestes de aias (parece) no cho, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...
Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus ps frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti um porto sem navios...
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Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas
Passou uma saudade de no serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento h gestos com pedras raras...
Minha alma uma lmpada que se apagou e ainda est quente...
Ah, e o teu silncio um perfil de pncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da ltima janela do castelo s um girassol
Se v, e o sonhar que h outros pe brumas no nosso sentido...
Sermos, e no sermos mais!... lees nascidos na jaula!...
Repique de sinos para alm, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colgio e uma criana ficou fechada na aula...
Por que no h de ser o Norte e Sul?... O que est descoberto?...
E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...
E o teu silncio uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
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H coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe lembrana de um sabor de medonho...
Para que no ter por ti desprezo? Por que no perd-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silncio um leque -
Um leque fechado, um leque que aberto seria to belo, to belo,
Mas mais belo no o abrir, para que a Hora no peque...
Gelaram todas as mos cruzadas sobre todos os peitos....
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te uma catedral de silncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princpio mas com fim...
Algum vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras vivas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tdio uma esttua de uma mulher que h de vir,
O perfume que os crisntemos teriam, se o tivessem...
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preciso destruir o propsito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar fora a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um rudo brusco de serras...
H to pouca gente que ame as paisagens que no existem!...
Saber que continuar a haver o mesmo mundo amanh - como nos
desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silncio no seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tdio, aurola negra...
Suave, como ter me e irms, a tarde rica desce...
No chove j, e o vasto cu um grande sorriso imperfeito...
A minha conscincia de ter conscincia de ti uma prece,
E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...
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Ah, se fssemos duas figuras num longnquo vitral!...
Ah, se fssemos as duas cores de uma bandeira de glria!...
Esttua acfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendo de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitria!
O que que me tortura?... Se at a tua face calma
S me enche de tdios e de pios de cios medonhos...
No sei...Eu sou um doido que estranha a sua prpria alma...
Eu fui amado em efgie num pas para alm dos sonhos...
4-7-1913
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SINO DA MINHA ALDEIA
sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.
E to lento o teu soar,
To como triste da vida,
Que j a primeira pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
s para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.
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A cada pancada tua,
Vibrante no cu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto
1914
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Que os olhos se me vo acostumando
escurido.
13-1-1920.
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VENDAVAL
vento do norte, to fundo e to frio,
No achas, soprando por tanta solido,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu corao!
Indmita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
No so to deixados do alegre e do humano
Como a alma que h em mim!
Mas dura plancie, praia atra em fereza,
S tm a tristeza que a gente lhes v
E nisto que em mim vcuo e tristeza
o visto o que v.
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Ah, mgoa de ter conscincia da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles - teu pulso divida
Minha alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse para onde fosse, pra longe da ideia
De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque que no entras no meu pensamento
Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a conscincia!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
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Arranca-me, vento; do cho da existncia,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais escura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tdio profundo.
E contra as vidraas dos que h que tm lares,
Telhados daqueles que tm razo,
Atira, j pria desfeito dos ares,
O meu corao!
Meu corao triste, meu corao ermo,
Tornado a substncia dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
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Do abismo e do nada!
16-2-1920.
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AO LONGE, AO LUAR
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela
Serena a passar,
Que que me revela?
No sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angstia me enlaa?
Que amor no se explica?
a vela que passa
Na noite que fica.
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5-08-1921
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SONHO
Sonho. No sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma no tem alma.
Se existo um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que no sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
No tenho ser nem lei.
Lapso da conscincia entre iluses,
Fantasmas me limitam e me contm.
Dorme insciente de alheios coraes,
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Corao de ningum.
6-1-1923
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DORME ENQUANTO EU VELO...
Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim risonho.
Quero-te para sonho,
No para te amar.
A tua carne calma
fria em meu querer.
Os meus desejos so cansaos.
Nem quero ter nos braos
Meu sonho do teu ser.
Dorme, dorme. dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te to atento
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Que o sonho encantamento
E eu sonho sem sentir.
1924
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PE-ME AS MOS NOS OMBROS...
Pe-me as mos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida escombros,
A minha alma insonte.
Eu no sei por qu,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que v,
E v tudo estranho.
Pe a tua mo
Sobre o meu cabelo...
Tudo iluso.
Sonhar sab-lo.
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1924
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MELANCOLIA
Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solido!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto intil e fria
Dentro do meu corao!
Que angstia desesperada!
Que mgoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que tudo assim.
Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego -
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Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
3-9-1924.
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
4
O MENINO DA SUA ME
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
Duas, de lado a lado,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue
De braos estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os cus perdidos.
To jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho nico, a me lhe dera
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
Um nome e o mantivera:
O menino da sua me.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a me. Est inteira
boa a cigarreira,
Ele que j no serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roar o solo,
A brancura embainhada
De um leno... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
L longe, em casa, h a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
(Malhas que o Imprio tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua me.
5 -1926
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO
BOMBARDEAMENTO
A criana loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.
A cara est um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe
Dos que boiam nas banheiras
beira da estrada.
Cai sobre a estrada o escuro.
Longe, ainda uma luz doura
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
A criao do futuro...
E o da criana loura?
1926
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
ISTO
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. No.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginao.
No uso o corao.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
como que um terrao
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa que linda.
Por isso escrevo em meio
Do que no est ao p,
Livre do meu enleio,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
Srio do que no .
Sentir? Sinta quem l!
1928
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
O LAGO
Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
No sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.
O lago nada me diz,
No sinto a brisa mex-lo
No sei se sou feliz
Nem se desejo s-lo.
Trmulos vincos risonhos
Na gua adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha nica vida?
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
4-8-1930
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
MINHA MULHER, A SOLIDO
Minha mulher, a solido,
Consegue que eu no seja triste.
Ah, que bom o corao
Ter este bem que no existe!
Recolho a no ouvir ningum,
No sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja algum:
Nascem-me os versos do caminho.
Senhor, se h bem que o cu conceda
Submisso opresso do Fado,
D-me eu ser s - veste de seda -,
E fala s - leque animado.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
5
27-8-1930
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
SORRISO AUDVEL DAS FOLHAS
Sorriso audvel das folhas
No s mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro que sorri?
O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente
Para fins de no olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo vento e disfarar.
Mas o olhar, de estar olhando
Onde no olha, voltou
E estamos os dois falando
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
O que se no conversou
Isto acaba ou comeou?
27-11-1930
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
POR QUEM FOI QUE ME TROCARAM
Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mo na minha
E, sem me olhares, sorri.
Sorri do teu pensamento
Porque eu s quero pensar
Que de mim que ele est feito
que tens para mo dar.
Depois aperta-me a mo
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando ests a olhar-me assim?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
1930
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
CAI CHUVA
Cai chuva do cu cinzento
Que no tem razo de ser.
At o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza
Acrescentada que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.
Porque verdadeiramente
No sei se estou triste ou no.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
Dentro do meu corao.
15-11-1930.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
EU AMO TUDO O QUE FOI
Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que j no ,
A dor que j me no di,
A antiga e errnea f,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
S porque foi, e voou
E hoje j outro dia.
1931.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
NUVENS
As nuvens so sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do cu
tristemente azul.
Assim, no pensamento,
Sem haver soluo,
H um bocado que lembra
Que existe o corao.
E esse bocado que
A verdade que est
A ser beleza eterna
Para alm do que h.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
5-4-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
6
UMA MAIOR SOLIDO
Uma maior solido
Lentamente se aproxima
Do meu triste corao.
Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.
Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim.
23-10-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
CHOVE
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem assim!
Numa angstia sem remdio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tdio,
S do que nunca quis ter...
Quem eu pudera ter sido,
Que dele? Entre dios pequenos
De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
23-10-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
A LUA
A Lua (dizem os ingleses),
feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma ideia se perde.
E era essa, era, era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... no sei se desejar.
Sim, todos os meus desejos
So de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
azul de vez em quando.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
14-11-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
CAI AMPLO O FRIO
Cai amplo o frio e eu durmo na tardana
De adormecer.
Sou, sem lar, nem conforto, nem esperana,
Nem desejo de os ter.
E um choro por meu ser me inunda
A imaginao.
Saudade vaga, annima, profunda,
Nusea da indeciso.
Frio do Inverno duro, no te tira
Agasalho ou amor.
Dentro em meus ossos teu tremor delira.
Cessa, seja eu quem for!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
19-1-1931.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
GATO QUE BRINCAS NA RUA
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes s o que sentes.
s feliz porque s assim,
Todo o nada que s teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheo-me e no sou eu.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
1-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
NO DIGAS NADA I
No: no digas nada!
Supor o que dir
A tua boca velada
ouvi-lo j
ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que s no vem flor
Das frases e dos dias.
s melhor do que tu.
No digas nada: s!
Graa do corpo nu
Que invisvel se v.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
7
5/6-2-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
NO DIGAS NADA II
No digas nada!
Nem mesmo a verdade
H tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender
Tudo metade
De sentir e de ver...
No digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanh
Em outra paisagem
Digas que foi v
Toda essa viagem
At onde quis
Ser quem me agrada...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
Mas ali fui feliz
No digas nada.
5/6-2-1931
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
VAGA, NO AZUL AMPLO SOLTA
Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado no volta.
No o que estou chorando.
O que choro diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no cu sem gente,
A nuvem flutua calma.
E isto lembra uma tristeza
E a lembrana que entristece,
Dou saudade a riqueza
De emoo que a hora tece.
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Est para alm da saudade.
No sei o que nem consinto
alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
29-3-1931
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
O ANDAIME
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi s a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui beira do rio
Sossego sem ter razo.
Este seu correr vazio
Figura, annimo e frio,
A vida vivida em vo.
A esperana que pouco alcana!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criana
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
Sobre mais que minha esperana,
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, to leves
Que no sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que no tinha.
Sou mais velho do que sou.
A iluso, que me mantinha,
S no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das guas lentas,
Gulosas da margem ida,
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
Que lembranas sonolentas
De esperanas nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava j perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das guas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva no s lembranas -
Mortas, porque ho de morrer.
Sou j o morto futuro.
S um sonho me liga a mim -
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que no serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
1931
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
EU TENHO IDEIAS E RAZES
Eu tenho ideias e razes,
Conheo a cor dos argumentos
E nunca chego aos coraes.
1932
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
8
Aquele peso em mim - meu corao.
1932
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
BASTA PENSAR EM SENTIR
Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu corao faz sorrir
Meu corao a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver no conseguir.
14-6-1932
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
COMO NUVENS PELO CU
Como nuvens pelo cu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos meu
Embora eu os sonhe assim.
So coisas no alto que so
Enquanto a vista as conhece,
Depois so sombras que vo
Pelo campo que arrefece.
Smbolos? Sonhos? Quem torna
Meu corao ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa intil me di?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
17-6-1932
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
Minhas mesmas emoes
So coisas que me acontecem.
31-8-1932
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
QUE SUAVE O AR
Que suave o ar! Como parece
Que tudo bom na vida que h!
Assim meu corao pudesse
Sentir essa certeza j.
Mas no; ou seja a selva escura
Ou seja um Dante mais diverso,
A alma literatura
E tudo acaba em nada e verso.
6-11-1932
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
SOSSEGA, CORAO
Sossega, corao! No desesperes!
Talvez um dia, para alm dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Ento, livre de falsas nostalgias,
Atingirs a perfeio de seres.
Mas pobre sonho o que s quer no t-lo!
Pobre esperana a de existir somente!
Como quem passa a mo pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o conceb-lo!
Sossega, corao, contudo! Dorme!
O sossego no quer razo nem causa.
Quer s a noite plcida e enorme,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
2-8-1933.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
TODAS AS COISAS QUE H NESTE MUNDO
Todas as coisas que h neste mundo
Tm uma histria,
Exceto estas rs que coaxam no fundo
Da minha memria.
Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.
Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar reala
Menos e mais.
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rs na esteira
Do que deslembro?
Nada. Um silncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rs sem mim.
13-8-1933.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
9
O QUE ME DI
O que me di no
O que h no corao
Mas essas coisas lindas
Que nunca existiro...
So as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
So como se a tristeza
Fosse rvore e, uma a uma,
Cassem suas folhas
Entre o vestgio e a bruma.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
5-9-1933
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
A LAVADEIRA
A lavadeira no tanque
Bate roupa em pedra bem.
Canta porque canta e triste
Porque canta porque existe;
Por isso alegre tambm.
Ora se eu alguma vez
Pudesse fazer nos versos
O que a essa roupa ela fez,
Eu perderia talvez
Os meus destinos diversos.
H uma grande unidade
Em, sem pensar nem razo,
E at cantando a metade,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Bater roupa em realidade...
Quem me lava o corao?
15-9-1933
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
ENTRE O SONO E SONHO
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.
Passou por outras margens,
Diversas mais alm,
Naquelas vrias viagens
Que todo o rio tem.
Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.
11-9-1933
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
TUDO O QUE FAO OU MEDITO
Tudo o que fao ou medito
Fica sempre pela metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada verdade.
Que nojo de mim fica
Ao olhar para o que fao!
Minha alma lcida e rica
E eu sou um mar de sargao
Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de alm...
Vontades ou pensamentos?
No o sei e sei-o bem.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
13-9-1933
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
TENHO TANTO SENTIMENTO
Tenho tanto sentimento
Que frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheo, ao medir-me,
Que tudo isso pensamento,
Que no senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que vivida
E outra vida que pensada,
E a nica vida que temos
essa que dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porm a verdadeira
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
E qual errada, ningum
Nos saber explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
a que tem que pensar.
18-9-1933
REALIDADE
Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
Mas, quando despertei da confuso,
Vi que esta vida aqui e este universo
No so mais claros do que os sonhos so
Obscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da iluso
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que h na escurido.
Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.
Nada real, nada em seus vos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa s ouvida.
28-9-1933.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
VIAGEM
Viajar! Perder pases!
Ser outro constantemente,
Por a alma no ter razes
De viver de ver somente!
No pertencer nem a mim!
Ir em frente, ir a seguir
A ausncia de ter um fim,
E a nsia de o conseguir!
Viajar assim viagem.
Mas fao-o sem ter de meu
Mais que o sonho da passagem.
O resto s terra e cu.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
20-9-1933
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
MISTRIOS
Grandes mistrios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pssaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
So aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as h.
Hesito se sondo e cismo,
E minha alma cataclismo
O limiar onde est.
Ento desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Porque o limiar medonho
E todo passo uma cruz.
2-10-1933
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
ESPERANA
Tenho esperana ? No tenho.
Tenho vontade de a ter?
No sei. Ignoro a que venho,
Quero dormir e esquecer.
Se houvesse um blsamo da alma,
Que a fizesse sossegar,
Cair numa qualquer calma
Em que, sem sequer pensar,
Pudesse ser toda a vida,
Pensar todo o pensamento
Ento ...
11-12-1933.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
EROS E PSIQUE
...E assim vedes, meu Irmo, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Nefito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, so, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do trio
Na Ordem Templria De Portugal)
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem s despertaria
Um Infante, que viria
De alm do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Vencer o mal e o bem,
Antes que, j libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela ignorado,
Ela para ele ningum.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
cabea, em maresia,
Ergue a mo, e encontra hera,
E v que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
-
5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Publicado pela primeira vez in Presena, ns 41-42, Coimbra, maio de 1934.
Acerca da epgrafe que encabea este poema diz o prprio autor a uma
interrogao levantada pelo crtico A. Casais Monteiro, em carta a este ltimo:
A citao, epgrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual
em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templria de Portugal, indica
simplesmente - o que facto - que me foi permitido folhear os Rituais dos trs primeiros
graus dessa Ordem, extinta, ou em dormncia desde cerca de 1888. Se no estivesse em
dormncia, eu no citaria o trecho do Ritual, pois se no devem citar (indicando a origem)
trechos de Rituais que esto em trabalho
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
OUTROS TERO
Outros tero
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solido
Est comigo.
A outros talvez
H alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. No chega nunca a vez
Para mim.
"Que importa?"
Digo, mas s Deus sabe que o no creio.
Nem um casual mendigo minha porta
Sentar-se veio.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
"Quem tem de ser?"
No sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois no esquece.
Isto at quando?
S tenho por consolao
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
COMO POR DENTRO OUTRA PESSOA
Como por dentro outra pessoa
Quem que o saber sonhar?
A alma de outrem outro universo
Com que no h comunicao possvel,
Com que no h verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Seno da nossa;
As dos outros so olhares,
So gestos, so palavras,
Com a suposio de qualquer semelhana
No fundo.
1934
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
SE ALGUM BATER UM DIA TUA PORTA
Se algum bater um dia tua porta,
Dizendo que um emissrio meu,
No acredites, nem que seja eu;
Que o meu vaidoso orgulho no comporta
Bater sequer porta irreal do cu.
Mas se, naturalmente, e sem ouvir
Algum bater, fores a porta abrir
E encontrares algum como que espera
De ousar bater, medita um pouco. Esse era
Meu emissrio e eu e o que comporta
O meu orgulho do que desespera.
Abre a quem no bater tua porta!
5-9-1934.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
A CINCIA
A cincia, a cincia, a cincia...
Ah, como tudo nulo e vo!
A pobreza da inteligncia
Ante a riqueza da emoo!
Aquela mulher que trabalha
Como uma santa em sacrifcio,
Com quanto esforo dado ralha!
Contra o pensar, que o meu vcio!
A cincia! Como pobre e nada!
Rico o que alma d e tem.
4-10-1934
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
NO QUERO ROSAS
No quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as s quando no as possa haver.
Que hei de fazer das coisas
Que qualquer mo pode colher?
No quero a noite seno quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
isso que quero possuir.
Para qu?... Se o soubesse, no faria
Versos para dizer que inda o no sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
7-1-1935.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
TUDO QUANTO PENSO
Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
um deserto imenso
Onde nem eu estou.
Extenso parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
18-3-1935
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
OS TEUS OLHOS ENTRISTECEM
Os teus olhos entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham esquecem...
No me ouves, e prossigo.
Digo o que j, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De to tua que s.
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Comeas um sorriso.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que ests a pensar,
J quase no sorrindo.
At que neste ocioso
Sumir da tarde ftil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso intil.
19-10-1935
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
LIBERDADE
Ai que prazer
no cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e no o fazer!
Ler maada,
estudar nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edio original.
E a brisa, essa, de to naturalmente matinal
como tem tempo, no tem pressa...
Livros so papis pintados com tinta.
Estudar uma coisa em que est indistinta
A distino entre nada e coisa nenhuma.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Quanto melhor quando h bruma.
Esperar por D. Sebastio,
Quer venha ou no!
Grande a poesia, a bondade e as danas...
Mas o melhor do mundo so as crianas,
Flores, msica, o luar, e o sol que peca
S quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
Jesus Cristo,
Que no sabia nada de finanas,
Nem consta que tivesse biblioteca...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
TUDO QUE FAO OU MEDITO
Tudo que fao ou medito
Fica sempre na metade
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada verdade.
Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que fao!
Minha alma ldica e rica,
E eu sou um mar de sargao
Um mar onde boiam lentos
Fragmentos de um mar de alm...
Vontades ou pensamentos?
No o sei e sei-o bem.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
SOU O ESPRITO DA TREVA
Sou o Esprito da treva,
A Noite me traz e leva;
Moro beira irreal da Vida,
Sua onda indefinida
Refresca-me a alma de espuma...
Pra alm do mar h a bruma...
E pra aqum? h Coisa ou Fim?
Nunca olhei para trs de mim...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
A ALMA POTICA DO UNIVERSO
Era eu um poeta estimulado pela filosofia
E no um filosofo com faculdades poticas.
Gostava de admirar a beleza das coisas,
Descobrir no impercetivel, atravs do diminuto,
A alma potica do universo.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
CATIVEIRO
Quando que o cativeiro
Acabar em mim,
E, prprio dianteiro,
Avanarei enfim?
Quando que me desato
Dos laos que me dei?
Quando serei um facto?
Quando que me serei?
Quando, ao virar da esquina
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna
Da alma que Deus me deu?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Quando que ser quando?
No sei. E at ento
Viverei perguntando:
Perguntarei em vo.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
SEM REMDIO
Tudo o que sou no mais do que abismo
Em que uma vaga luz
Com que sei que sou eu, e nisto cismo,
Obscura me conduz.
Um intervalo entre no-ser e ser
Feito de eu ter lugar
Como o p, que se v o vento erguer,
Vive de ele o mostrar.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
A MINHA ALMA DOENTE
No sei o qu desgosta
A minha alma doente.
Uma dor suposta
Di-me realmente.
Como um barco absorto
Em se naufragar
vista do porto
E num calmo mar,
Por meu ser me afundo,
Pra longe da vista
Durmo o incerto mundo.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
BOIAM FARRAPOS DE SOMBRA
Boiam farrapos de sombra
Em torno ao que no sei ser.
todo um cu que se escombra
Sem me o deixar entrever.
O mistrio das alturas
Desfaz-se em ritmos sem forma
Nas desregradas negruras
Com que o ar se treva torna.
Mas em tudo isto, que faz
O universo um ser desfeito,
Guardei, como a minha paz,
A esperana, que a dor me traz,
Apertada contra o peito.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
NO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
No sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, s tenho alma.
Quem tem alma no tem calma.
Quem v s o que v,
Quem sente no quem ,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e no eu.
Cada meu sonho ou desejo
do que nasce e no meu.
Sou minha prpria paisagem,
Assisto minha passagem,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Diverso, mbil e s,
No sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como pginas, meu ser.
O que segue no prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo:
Deus sabe, porque o escreveu.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
A MISRIA DO MEU SER
A misria do meu ser,
Do ser que tenho a viver,
Tornou-se uma coisa vista.
Sou nesta vida um qualquer
Que roda fora da pista.
Ningum conhece quem sou
Nem eu mesmo me conheo
E, se me conheo, esqueo,
Porque no vivo onde estou.
Rodo, e o meu rodar apresso.
uma carreira invisvel,
Salvo onde caio e sou visto,
Porque cair sensvel
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Pelo rudo imprevisto...
Sou assim. Mas isto crvel?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
J NO ME IMPORTO
J no me importo
At com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento ali estar.
Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para l ou ainda irei
Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,
Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que sem ar
De olhar a valer.
E s me no cansa
O que a brisa me traz
De sbita mudana
No que nada me faz.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
FRESTA
Em meus momentos escuros
Em que em mim no h ningum,
E tudo nvoas e muros
Quanto a vida d ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longnquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheo,
E, ainda que seja iluso
O exterior em que me esqueo,
Nada mais quero nem peo.
Entrego-lhe o corao.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
MEU CORAO
Meu corao tardou. Meu corao
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vo,
Tanto faz que o amor houvesse ou no.
Tardou. Antes, de intil, acabasse.
Meu corao postio e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
O seu prprio ser do nada houvesse feito,
E a sua prpria essncia conseguido.
Mas no. Nunca nem eu nem corao
Fomos mais que um vestgio de passagem
Entre um anseio vo e um sonho vo.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Parceiros em prestidigitao,
Camos ambos pelo alapo.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
TENHO PENA E NO RESPONDO
Tenho pena e no respondo.
Mas no tenho culpa enfim
De que em mim no correspondo
Ao outro que amaste em mim.
Cada um muita gente.
Para mim sou quem me penso,
Para outros - cada um sente
O que julga, e um erro imenso.
Ah, deixem-me sossegar.
No me sonhem nem me outrem.
Se eu no me quero encontrar,
Quererei que outros me encontrem?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
QUANDO ESTOU S RECONHEO
Quando estou s reconheo
Se por momentos me esqueo
Que existo entre outros que so
Como eu ss, salvo que esto
Alheados desde o comeo.
E se sinto quanto estou
Verdadeiramente s,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.
Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
toda assim, toda assim.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Por isso passo por mim
Como por coisa esquecida.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
SOU O FANTASMA DE UM REI
Sou o fantasma de um rei
Que sem cessar percorre
As salas de um palcio abandonado...
Minha histria no sei...
Longe em mim, fumo de eu pens-la, morre
A ideia de que tive algum passado...
Eu no sei o que sou.
No sei se sou o sonho
Que algum do outro mundo esteja tendo...
Creio talvez que estou
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Numa histria que um deus est relendo...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
SE PENSO MAIS QUE UM MOMENTO
Se penso mais que um momento
Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadver a esperar.
Dentro em breve (poucos anos
quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou no tive,
Deixarei de ser visvel
Na terra onde d o Sol,
E, ou desfeito e insensvel,
Ou brio de outro arrebol,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com ms a ms e ano a ano.
Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espao mudo
Lembra-nos que isso disfarce
E que a noite que tudo.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
INSNIA
Nas grandes horas em que a insnia avulta
Como um novo universo doloroso,
E a mente clara com um ser que insulta
O uso confuso com que o dia ocioso,
Cismo, embebido em sombras de repouso
Onde habitam fantasmas e a alma oculta,
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo
Me faro nada, como frase estulta.
Cismo, cheio de nada, e a noite tudo.
Meu corao, que fala estando mudo,
Repete seu montono torpor
Na sombra, no delrio da clareza,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
E no h Deus, nem ser, nem Natureza
E a prpria mgoa melhor fora dor.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
HORIZONTE
O mar anterior a ns, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerrao,
As tormentas passadas e o mistrio,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidrio
Esplendia sobre as naus da iniciao.
Linha severa da longnqua costa -
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em rvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, h aves, flores,
Onde era s, de longe a abstrata linha.
O sonho ver as formas invisveis
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Da distncia imprecisa, e, com sensveis
Movimentos da esperana e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A rvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
DEUS
s vezes sou o Deus que trago em mim
E ento eu sou o Deus e o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse deus se esquece.
s vezes no sou mais do que um ateu
Desse deus meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um cu
E um mero oco cu alto.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
DURMO OU NO
Durmo ou no? Passam juntas em minha alma
Coisas da alma e da vida em confuso,
Nesta mistura atribulada e calma
Em que no sei se durmo ou no.
Sou dois seres e duas conscincias
Como dois homens indo brao-dado.
Sonolento revolvo omniscincias,
Turbulentamente estagnado.
Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.
Desperto. Enfim: sou um, na realidade.
Espreguio-me. Estou bem... Porqu depois,
De qu, esta vaga saudade?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
OLHANDO O MAR
Olhando o mar, sonho sem ter de qu.
Nada no mar, salvo o ser mar, se v.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a f?
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
As rvores longnquas da floresta
Parecem, por longnquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se no v!
Mas do que h pouco ou no h o mesmo resta.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Se tive amores? J no sei se os tive.
Quem ontem fui j hoje em mim no vive.
Bebe, que tudo lquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
Colhes rosas? Que colhes, se ho de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque no colh-las
Se te agrada e tudo deixar de o haver?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
SORRISO AUDVEL DAS FOLHAS
Sorriso audvel das folhas
No s mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro que sorri?
O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente
Para fins de no olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo vento e disfarar.
Mas o olhar, de estar olhando
Onde no olha, voltou
E estamos os dois falando
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
O que se no conversou
Isto acaba ou comeou?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
POBRE VELHA MSICA!
Pobre velha msica!
No sei por que agrado,
Enche-se de lgrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te,
No sei se te ouvi
Nessa minha infncia
Que me lembra em ti.
Com que nsia to raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? No sei:
Fui-o outrora agora.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
DREAM
Qualquer coisa de obscuro permanece
No centro do meu ser. Se me conheo,
at onde, por fim mal, tropeo
No que de mim em mim de si se esquece.
Aranha absurda que uma teia tece
Feita de solido e de comeo
Fruste, meu ser annimo confesso
Prprio e em mim mesmo a externa treva desce.
Mas, vinda dos vestgios da distncia
Ningum trouxe ao meu plio por ter gente
Sob ele, um rasgo de saudade ou nsia.
Remiu-se o pecador impenitente
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
sombra e cisma. Teve a eterna infncia,
Em que comigo forma um mesmo ente.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
GUIA-ME A S A RAZO
Guia-me a s a razo.
No me deram mais guia.
Alumia-me em vo?
S ela me alumia.
Tivesse quem criou
O mundo desejado
Que eu fosse outro que sou,
Ter-me-ia outro criado.
Deu-me olhos para ver.
Olho, vejo, acredito.
Como ousarei dizer:
Cego, fora eu bendito ?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Como olhar, a razo
Deus me deu, para ver
Para alm da viso
Olhar de conhecer.
Se ver enganar-me,
Pensar um descaminho,
No sei. Deus os quis dar-me
Por verdade e caminho.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
GOMES LEAL
Sangra, sinistro, a alguns o astro bao.
Os seus trs anis irreversveis so
A desgraa, a tristeza, a solido.
Oito luas fatais fitam no espao.
Este, poeta, Apolo em seu regao
A Saturno entregou. A plmbea mo
Lhe ergueu ao alto o aflito corao.
E, erguido, o apertou, sangrando lasso.
Inteis oito luas da loucura
Quando a cintura trplice denota
Solido e desgraa e amargura!
Mas da noite sem fim um rastro brota,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Vestgios de maligna formosura:
a lua alm de Deus, lgida e ignota.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
GLOSA I
Quem me roubou a minha dor antiga,
E s a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incndio da alma em que o ser periga,
Me deixou s no fogo e no torpor?
Quem fez a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ningum ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor...
Quem me disps para o que no pudesse?
Quem me fadou para o que no conheo
Na teia do real que ningum tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu s a vida em que me esqueo,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Onde a minha saudade a cor se trava ?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
GLOSA II
Minha alma sabe-me a antiga
Mas sou de minha lembrana,
Como um eco, uma cantiga.
Bem sei que isto no nada,
Mas quem dera a alma que seja
O que isto , como uma estrada.
Talvez eu fosse feliz
Se houvesse em mim o perdo
Do que isto quase que diz.
Porque o esforo vil e vo,
A verdade, quem a quis?
Escuta s meu corao.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
GLOSAS III
Toda a obra v, e v a obra toda.
O vento vo, que as folhas vs enroda,
Figura nosso esforo e nosso estado.
O dado e o feito, ambos os d o Fado.
Sereno, acima de ti mesmo, fita
A possibilidade erma e infinita
De onde o real emerge inutilmente,
E cala, e s para pensares sente.
Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do cu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Rege nem bem nem mal a terra e os cus.
Rimos, choramos atravs da vida.
Uma coisa uma cara contrada
E a outra uma gua com um leve sal,
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.
Doze signos do cu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em ns o ponto de onde estamos.
Fices da nossa mesma conscincia,
Jazemos o instinto e a cincia.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que no h no cu
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
FRIA NAS TREVAS O VENTO
Fria nas trevas o vento
Num grande som de alongar,
No h no meu pensamento
Seno no poder parar.
Parece que a alma tem
Treva onde sopre a crescer
Uma loucura que vem
De querer compreender.
Raiva nas trevas o vento
Sem se poder libertar.
Estou preso ao meu pensamento
Como o vento preso ao ar.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
FOSSE EU APENAS, NO SEI ONDE OU COMO
Fosse eu apenas, no sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo....
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de no pertencer
Meu intuito glorola com Ter
A rvore do meu uso o nico pomo...
Fosse eu uma metfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e , num crepsculo de espadas,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na ltima tarde de um imprio em chamas...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
FOI UM MOMENTO
Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu brao,
Num movimento
Mais de cansao
Que pensamento,
A tua mo
E a retiraste.
Senti ou no?
No sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memria
Fixa e corprea
Onde pousaste
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
A mo que teve
Qualquer sentido
Incompreendido.
Mas to de leve!...
Tudo isto nada,
Mas numa estrada
Como a vida
H muita coisa
Incompreendida...
Sei eu se quando
A tua mo
Senti pousando
Sobre o meu brao,
E um pouco, um pouco,
No corao,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
No houve um ritmo
Novo no espao?
Como se tu,
Sem o querer,
Em mim tocasses
Para dizer
Qualquer mistrio,
Sbito e etreo,
Que nem soubesses
Que tinha ser.
Assim a brisa
Nos ramos diz
Sem o saber
Uma imprecisa
Coisa feliz.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
FLOR QUE NO DURA
Flor que no dura
Mais do que a sombra dum momento
Tua frescura
Persiste no meu pensamento.
No te perdi
No que sou eu,
S nunca mais, flor, te vi
Onde no sou seno a terra e o cu.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
FELIZ DIA PARA QUEM
Feliz dia para quem
O igual do dia,
E no exterior azul que v
Simples confia!
Azul do cu faz pena a quem
No pode ser
Na alma um azul do cu tambm
Com que viver
Ah, e se o verde com que esto
Os montes quedos
Pudesse haver no corao
E em seus segredos!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia
De s sentir a terra e o cu
To belo ser
Quem de si sente que perdeu
A alma para os ter!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
ESTA ESPCIE DE LOUCURA
Esta espcie de loucura
Que pouco chamar talento
E que brilha em mim, na escura
Confuso do pensamento,
No me traz felicidade;
Porque, enfim, sempre haver
Sol ou sombra na cidade.
Mas em mim no sei o que h
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
PASSOS DA CRUZ
Esqueo-me das horas transviadas
O outono mora mgoas nos outeiros
E pe um roxo vago nos ribeiros...
Hstia de assombro a alma, e toda estradas...
Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgaco... Trigueiros
Os cus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...
No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em dio nsia
Pe dias de ilhas vistas do convs
No meu cansao perdido entre os gelos
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
E a cor do outono um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonncia...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
ENTRE O BATER RASGADO DOS PENDES
Entre o bater rasgado dos pendes
E o cessar dos clarins na tarde alheia,
A derrota ficou: como uma cheia
Do mal cobriu os vagos batalhes.
Foi em vo que o Rei louco os seus vares
Trouxe ao prolixo prlio, sem ideia.
gua que mo infiel verteu na areia
Tudo morreu, sem rastro e sem razes.
A noite cobre o campo, que o Destino
Com a morte tornou abandonado.
Cessou, com cessar tudo, o desatino.
S no luar que nasce os pendes rotos
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
Estrelam no absurdo campo desolado
Uma derrota herldica de ignotos.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
1
ALM-DEUS
I / ABISMO
OLHO O TEJO, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E sbito isto me bate
De encontro ao devaneando
O que ser-rio, e correr?
O que est-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vcuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente oco
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudoeu e o mundo em redor
Fica mais que exterior.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, terra e aos cus...
E sbito encontro Deus.
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II / PASSOU
Passou, fora de Quando,
De Porqu, e de Passando...,
Turbilho de Ignorado,
Sem ter turbilhonado...,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Vasto por fora do Vasto
Sem ser, que a si se assombra...
O Universo o seu rasto...
Deus a sua sombra...
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III/ A VOZ DE DEUS
Brilha uma voz na noite...
De dentro de Fora ouvi-a...
Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Cinzas de ideia e de nome
Em mim, e a voz: mundo,
Ser mente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que para Deus me afundo.
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IV / A QUEDA
Da minha ideia do mundo
Ca...
Vcuo alm de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Vcuo sem si-prprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Viso que se no pode ver...
Alm-Deus! Alm-Deus! Negra calma...
Claro de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
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V / BRAO SEM CORPO
BRANDINDO UM GLDIO
(Entre a rvore e o v-la)
Entre a rvore e o v-la
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Onde est o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por no saber se a curva da ponte
a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
rvore de folhas vestida
Entre isso e rvore h fio?
Pombas voandoo pombal
Est-lhes sempre direita, ou real?
Deus um grande Intervalo,
Mas entre qu e qu?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem que me v?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Erro-me... E o pombal elevado
Est em torno na pomba, ou de lado?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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EM PLENA VIDA E VIOLNCIA
Em plena vida e violncia
De desejo e ambio,
De repente uma sonolncia
Cai sobre a minha ausncia.
Desce ao meu prprio corao.
Ser que a mente, j desperta
Da noo falsa de viver,
V que, pela janela aberta,
H uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a apetecer?
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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QUINTO IMPRIO
Vibra, clarim, cuja voz diz.
Que outrora ergueste o grito real
Por D. Joo, Mestre de Aviz,
E Portugal!
Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El-Rei D. Joo Segundo
O Imprio extremo!
Vibra, sem lei ou com lei,
Como aclamaste outrora em vo
O morto que hoje vivo - El-Rei
D. Sebastio!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exrcito fadado
Cuja extenso os plos toca
Do mundo dado!
Aquele exrcito que feito
Do quanto em Portugal o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo.
Para a obra que h que prometer
Ao nosso esforo alado em si,
Convoco todos sem saber
( a Hora!) aqui!
Os que, soldados da alta glria,
Deram batalhas com um nome,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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E de cuia alma a voz da histria
Tem sede e fome.
E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e crer da externa sorte,
Convoco todos sem saber
Com vida e morte.
Sim, estes, os plebeus do Imprio;
Heris sem ter para quem o ser,
Chama-os aqui, som etreo
Que vibra a arder!
E, se o futuro j presente
Na viso de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que ho de ser!
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Todos, todos! A hora passa,
O gnio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raa
Da que se esvai.
A todos, todos, feitos num
Que Portugal, sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim!
E outros, e outros, gente vria,
Oculta neste mundo misto.
O seu peito atrai, rubra e templria,
A Cruz de Cristo.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do Mistrio -
Soldados no, mas sacerdotes,
Do Quinto imprio.
Aqui! Aqui! Todos que so.
O Portugal que tudo em si,
Venham do abismo ou da iluso,
Todos aqui!
Armada intrmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha.
Do que por haver ou do que vindo -
o mesmo: venha!
Vs no soubesses o que havia
No fundo incgnito da raa,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Nem como a Mo, que tudo guia,
Os seus planos traa.
Mas um instinto involuntrio,
Um mpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vrio
De um dom fatal.
De um rasgo de ir alm de tudo,
De passar para alm de Deus,
E, abandonando o Gldio e o escudo,
Galgar os cus.
Tits de Cristo! Cavaleiros
De uma cruzada alm dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
So s os rastros.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Vibra, estandarte feito som,
No ar do mundo que h de ser.
Nada pequeno justo e bom.
Vibra a vencer!
Transcende a Grcia e a sua histria
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrs Roma e a sua glria
E a Igreja sua!
Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto.
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!
Vinde aqui todos os que sois,
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Sabendo-o bem, sabendo-o mal,
Poetas, ou Santos ou Heris
De Portugal.
No foi para servos que nascemos
De Grcia ou Roma ou de ningum.
Tudo negamos e esquecemos:
Fomos para alm.
Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa nsia j ciente
Que o seu inteiro vo libra
De poente a oriente.
Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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Com o fazer!
O Portugal feito Universo,
Que rene, sob amplos cus,
O corpo annimo e disperso
De Osris, Deus.
O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grcia, obscuro canta
Baco divino.
Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a Cruz,
Reza, ante Cruz universal,
Do Deus Jesus.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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EMISSRIO DE UM REI DESCONHECIDO
Emissrio de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instrues de alm,
E as bruscas frases que aos meus lbios vm
Soam-me a um outro e anmalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a misso que o meu ser tem,
E a glria do meu Rei d-me desdm
Por este humano povo entre quem lido...
No sei se existe o Rei que me mandou.
Minha misso ser eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas h! Eu sinto-me altas tradies
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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De antes de tempo e espao e vida e ser...
J viram Deus as minhas sensaes...
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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EM BUSCA DA BELEZA
I
Soam vos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
J tive a alma sem descrena presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.
Da Perfeio segui em v conquista,
Mas vi depressa, j sem a alma acesa,
Que a prpria ideia em ns dessa beleza
Um infinito de ns mesmos dista.
Nem nossa alma definir podemos
A Perfeio em cuja estrada a vida,
Achando-a intrmina, a chorar perdemos.
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5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica
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O mar tem fim, o cu talvez o tenha,
Mas no a nsia da Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.
II
Nem defini-la, nem ach-la, a ela -
A Beleza. No mundo no existe.
Ai de quem coma alma inda mais triste
Nos seres transitrios quer colh-la!
Acanhe-se a alma porque no conquiste
Mais que o banal de cada cousa bela,
Ou saiba que ao ardor de querer hav-la -