fernando pessoa - antologia poética

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    ANTOLOGIA POTICA

    POEMAS PESSOANOS

    (Poemas Ortnimos)

    FERNANDO PESSOA

    Esta obra respeita as regras

    do Novo Acordo Ortogrfico

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    A presente obra encontra-se sob domnio pblico ao abrigo do art. 31 do

    Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (70 anos aps a morte do

    autor) e distribuda de modo a proporcionar, de maneira totalmente gratuita,

    o benefcio da sua leitura. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a

    sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer

    circunstncia. Foi a generosidade que motivou a sua distribuio e, sob o

    mesmo princpio, livre para a difundir.

    Para encontrar outras obras de domnio pblico em formato digital, visite-nos

    em: http://luso-livros.net/

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    BREVE NOTA SOBRE FERNANDO PESSOA

    Fernando Antnio Nogueira Pessoa (1888 - 1935), mais conhecido como

    Fernando Pessoa, considerado um dos maiores poetas da Lngua

    Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Lus de

    Cames. O crtico literrio Harold Bloom considerou a sua obra um "legado

    da lngua portuguesa ao mundo".

    Pessoa foi igualmente empresrio, editor, crtico literrio, jornalista,

    comentador poltico, tradutor, inventor, astrlogo e publicitrio, ao mesmo

    tempo que produzia a sua obra literria em verso e em prosa. Como poeta,

    desdobrou-se em mltiplas personalidades conhecidas como heternimos,

    objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra. Centro irradiador

    da heteronmia, auto denominou-se um "drama em gente".

    Considera-se que a grande criao esttica de Pessoa foi a inveno

    heteronmica que atravessa toda a sua obra. Os heternimos, diferentemente

    dos pseudnimos, so personalidades poticas completas: identidades que, em

    princpio falsas, se tornam verdadeiras atravs da sua manifestao artstica

    prpria e diversa do autor original. Entre os heternimos, o prprio Fernando

    Pessoa passou a ser chamado ortnimo, porquanto era a personalidade

    original. Entretanto, com o amadurecimento de cada uma das outras

    personalidades, o prprio ortnimo tornou-se apenas mais um heternimo

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    entre os outros. Os trs heternimos mais conhecidos (e tambm aqueles com

    maior obra potica) foram lvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro.

    Um quarto heternimo de grande importncia na obra de Pessoa BernardoSoares, autor do Livro do Desassossego, importante obra literria do sculo

    XX.

    A obra ortnima de Pessoa passou por diferentes fases, mas envolve

    basicamente a procura de um certo patriotismo perdido, atravs de uma

    atitude sebastianista reinventada. O ortnimo foi profundamente influenciado,

    em vrios momentos, por doutrinas religiosas (como a teosofia) e sociedades

    secretas (como a Maonaria). A poesia resultante tem um certo ar mtico,

    heroico (quase pico, mas no na aceo original do termo) e por vezes

    trgico. Pessoa um poeta universal, na medida em que nos foi dando,

    mesmo com contradies, uma viso simultaneamente mltipla e unitria da

    vida. Uma explicao para a criao dos trs principais heternimos e o semi-

    heternimo Bernardo Soares, reside nas vrias formas que tinha de olhar o

    mundo, apoiando-se no racionalismo e pensamento oriental.

    O ortnimo considerado, s por si, como simbolista e modernista pela

    evanescncia, indefinio e insatisfao, bem como pela inovao praticada

    atravs de diversas sendas de formulao do discurso potico.

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    O compndio que se segue rene toda a composio potica ortnima de

    Pessoa.

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    FICHA PESSOAL

    Ficha pessoal, tambm referida como nota autobiogrfica, intitulada no original "Fernando

    Pessoa", dactilografada e assinada pelo escritor em 30 de Maro de 1935 (em algumas

    edies est 1933, por lapso). Publicada pela primeira vez, muito incompleta, como

    introduo ao poema memria do Presidente-Rei Sidnio Pais, editado pela Editorial

    Imprio em 1940. Publicada em verso integral em Fernando Pessoa no seu Tempo,

    Biblioteca Nacional, Lisboa, 1988, pp. 1722.

    ***

    FERNANDO PESSOA

    Nome completo: Fernando Antnio Nogueira Pessoa.

    Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mrtires, no prdio

    n. 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Diretrio) em 13 de Junho de 1888.

    Filiao: Filho legtimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena

    Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim Antnio de Arajo

    Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionsia Seabra; neto

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    materno do conselheiro Lus Antnio Nogueira, jurisconsulto e Diretor-Geral

    do Ministrio do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendncia geral:

    misto de fidalgos e judeus.

    Estado civil: Solteiro.

    Profisso: A designao mais prpria ser "tradutor", a mais exata a de

    "correspondente estrangeiro" em casas comerciais. O ser poeta e escritor no

    constitui profisso, mas vocao.

    Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1. Dto. Lisboa. (Endereo postal - Caixa

    Postal 147, Lisboa).

    Funes sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos

    pblicos, ou funes de destaque, nenhumas.

    Obras que tem publicado: A obra est essencialmente dispersa, por

    enquanto, por vrias revistas e publicaes ocasionais. o seguinte o que, de

    livros ou folhetos, considera como vlido: "35 Sonnets" (em ingls), 1918;

    "English Poems I-II" e "English Poems III" (em ingls tambm), 1922; livro

    "Mensagem", 1934, premiado pelo "Secretariado de Propaganda Nacional" na

    categoria Poema". O folheto "O Interregno", publicado em 1928 e

    constitudo por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser

    considerado como no existente. H que rever tudo isso e talvez que repudiar

    muito.

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    Educao: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua me ter casado, em

    1895, em segundas npcias, com o Comandante Joo Miguel Rosa, Cnsul de

    Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prmio Rainha Vitriade estilo ingls na Universidade do Cabo da Boa Esperana em 1903, no

    exame de admisso, aos 15 anos.

    Ideologia Poltica: Considera que o sistema monrquico seria o mais prprio

    para uma nao organicamente imperial como Portugal. Considera, ao

    mesmo tempo, a Monarquia completamente invivel em Portugal. Por isso, a

    haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela Repblica.

    Conservador do estilo ingls, isto , liberal dentro do conservantismo, e

    absolutamente anti reacionrio.

    Posio religiosa: Cristo gnstico e portanto inteiramente oposto a todas as

    igrejas organizadas e, sobretudo, Igreja Catlica. Fiel, por motivos que mais

    adiante esto implcitos, Tradio Secreta do Cristianismo, que tem ntimas

    relaes com a Tradio Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essncia

    oculta da Maonaria.

    Posio inicitica: Iniciado, por comunicao direta de Mestre a Discpulo,

    nos trs graus menores da Ordem dos Templrios de Portugal.

    Posio patritica: Partidrio de um nacionalismo mstico, de onde seja

    abolida toda a infiltrao catlico-romana, criando-se, se possvel for, um

    sebastianismo novo que a substitua espiritualmente, se que no catolicismo

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    portugus houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este

    lema: "Tudo pela Humanidade; nada contra a Nao".

    Posio social: Anti-comunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai

    dito acima.

    Resumo de estas ltimas consideraes: Ter sempre na memria o mrtir

    Jacques de Molay, Gro-Mestre dos Templrios, e combater, sempre e em

    toda a parte, os seus trs assassinos - a Ignorncia, o Fanatismo e a Tirania.

    Lisboa, 30 de Maro de 1935.

    [assinatura autgrafa]

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    NOTA PRELIMINAR

    1 - Em todo o momento de atividade mental acontece em ns um duplo

    fenmeno de perceo: ao mesmo tempo que tempos conscincia dum estado

    de alma, temos diante de ns, impressionando-nos os sentidos que esto

    virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem,

    para convenincia de frases, tudo o que forma o mundo exterior num

    determinado momento da nossa perceo.

    2 - Todo o estado de alma uma passagem. Isto , todo o estado de alma

    no s representvel por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.

    H em ns um espao interior onde a matria da nossa vida fsica se agita.

    Assim uma tristeza um lago morto dentro de ns, uma alegria um dia de sol

    no nosso esprito. E - mesmo que se no queira admitir que todo o estado de

    alma uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma

    se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "H sol nos meus

    pensamentos", ningum compreender que os meus pensamentos so tristes.

    3 - Assim, tendo ns, ao mesmo tempo, conscincia do exterior e do nosso

    esprito, e sendo o nosso esprito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo

    conscincia de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-

    se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da

    paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste no pode estar

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    to triste como num dia de chuva - e, tambm, a paisagem exterior sofre do

    nosso estado de alma - de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso,

    coisas como que "na ausncia da amada o sol no brilha", e outras coisasassim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade ter de a

    dar atravs duma representao simultnea da paisagem interior e da paisagem

    exterior. Resulta que ter de tentar dar uma interseco de duas paisagens.

    Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - no se querendo admitir que um

    estado de alma uma paisagem - que se queira simplesmente intersecionar um

    estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior.

    Fernando Pessoa

    (in Cancioneiro)

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    AUTOPSICOGRAFIA

    O poeta um fingidor.

    Finge to completamente

    Que chega a fingir que dor

    A dor que deveras sente.

    E os que leem o que escreve,

    Na dor lida sentem bem,

    No as duas que ele teve,

    Mas s a que eles no tm.

    E assim nas calhas de roda

    Gira, a entreter a razo,

    Esse comboio de corda

    Que se chama corao.

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    ANLISE

    To abstrata a ideia do teu ser

    Que me vem de te olhar, que, ao entreter

    Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

    E nada fica em meu olhar, e dista

    O teu corpo do meu ver to longemente,

    E a ideia do teu ser fica to rente

    Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

    Sabendo que tu s, que, s por ter-me

    Consciente de ti, nem a mim sinto.

    E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

    A iluso da sensao, e sonho,

    No te vendo, nem vendo, nem sabendo

    Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

    Do interior crepsculo tristonho

    Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

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    12-1911

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    DOBRE

    Peguei no meu corao

    E pu-lo na minha mo

    Olhei-o como quem olha

    Gros de areia ou uma folha.

    Olhei-o pvido e absorto

    Como quem sabe estar morto;

    Com a alma s comovida

    Do sonho e pouco da vida.

    1913

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    INTERVALO

    Quem te disse ao ouvido esse segredo

    Que raras deusas tm escutado -

    Aquele amor cheio de crena e medo

    Que verdadeiro s se segredado?...

    Quem te disse to cedo?

    No fui eu, que te no ousei diz-lo.

    No foi um outro, porque no sabia.

    Mas quem roou da testa teu cabelo

    E te disse ao ouvido o que sentia?

    Seria algum, seria?

    Ou foi s que o sonhaste e eu te o sonhei?

    Foi s qualquer cime meu de ti

    Que o sups dito, porque o no direi,

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    Que o sups feito, porque o s fingi

    Em sonhos que nem sei?

    Seja o que for, quem foi que levemente,

    A teu ouvido vagamente atento,

    Te falou desse amor em mim presente

    Mas que no passa do meu pensamento

    Que anseia e que no sente?

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    DESEJO

    Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

    Aos teus ouvidos de eu sonhar-te disse

    A frase eterna, imerecida e louca -

    A que as deusas esperam da ledice

    Com que o Olimpo se apouca.

    1913

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    ABDICAO

    Toma-me, noite eterna, nos teus braos

    E chama-me teu filho... eu sou um rei

    que voluntariamente abandonei

    O meu trono de sonhos e cansaos.

    Minha espada, pesada a braos lassos,

    Em mo viris e calmas entreguei;

    E meu cetro e coroa - eu os deixei

    Na antecmara, feitos em pedaos

    Minha cota de malha, to intil,

    Minhas esporas de um tinir to ftil,

    Deixei-as pela fria escadaria.

    Despi a realeza, corpo e alma,

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    E regressei noite antiga e calma

    Como a paisagem ao morrer do dia.

    1913

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    IMPRESSES DO CREPSCULO

    Pauis de roarem nsias pela minha alma em ouro...

    Dobre longnquo de Outros Sinos... Empalidece o louro

    Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minha alma...

    To sempre a mesma, a Hora!... Balouar de cimos de palma!...

    Silncio que as folhas fitam em ns... Outono delgado

    Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...

    Oh que mudo grito de nsia pe garras na Hora!

    Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!

    Estendo as mos para alm, mas ao estend-las j vejo

    Que no aquilo que quero aquilo que desejo...

    Cmbalos de Imperfeio... to antiguidade

    A hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade

    O meu abandonar-me a mim prprio at desfalecer,

    E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...

    Fluido de aurola, transparente de Foi, oco de ter-se...

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    O Mistrio sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o no conter-se...

    A sentinela hirta - a lana que finca no cho

    mais alta do que ela... Para que tudo isto... Dia cho...

    Trepadeiras de despropsito lambendo de Hora os Alns...

    Horizontes fechando os olhos ao espao em que so elos de erro...

    Fanfarras de pios de silncios futuros... Longes trens...

    Portes vistos longe... atravs de rvores... to de ferro!

    29-03-1913

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    HORA ABSURDA

    O teu silncio uma nau com todas as velas pandas...

    Brandas, as brisas brincam nas flmulas, teu sorriso...

    E o teu sorriso no teu silncio as escadas e as andas

    Com que me finjo mais alto e ao p de qualquer paraso...

    Meu corao uma nfora que cai e que se parte...

    O teu silncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

    Minha ideia de ti um cadver que o mar traz praia..., e entanto

    Tu s a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

    Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

    Que temos de que um fumo perfuma de cio os sales...

    Minha alma uma caverna enchida pela mar cheia,

    E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histries...

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    Chove ouro bao, mas no no l-fora... em mim...Sou a Hora,

    E a Hora de assombros e toda ela escombros dela...

    Na minha ateno h uma viva pobre que nunca chora...

    No meu cu interior nunca houve uma nica estrela...

    Hoje o cu pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

    A chuva mida vazia...A Hora sabe a ter sido...

    No haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto

    Em se alhear de si, teu olhar uma praga sem sentido...

    Todas as minhas horas so feitas de jaspe negro,

    Minhas nsias todas talhadas num mrmore que no h,

    No alegria nem dor esta dor com que me alegro,

    E a minha bondade inversa no nem boa nem m...

    Os feixes dos lictores abriram-se beira dos caminhos...

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    Os pendes das vitrias medievais nem chegaram s cruzadas...

    Puseram in-flios teis entre as pedras das barricadas...

    E a erva cresceu nas vias frreas com vios daninhos...

    Ah, como esta hora velha!... E todas as naus partiram!

    Na praia s um cabo morto e uns restos de vela falam

    De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

    Aquela angstia de sonhar mais que at para si calam...

    O palcio est em runas... Di ver no parque o abandono

    Da fonte sem repuxo... Ningum ergue o olhar da estrada

    E sente saudade de si ante aquele lugar-outono...

    Esta paisagem um manuscrito com a frase mais bela cortada...

    A doida partiu todos os candelabros glabros,

    Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...

    E a minha alma aquela luz que no mais haver nos candelabros...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    E que querem ao lago aziago minhas nsias, brisas fortuitas?...

    Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar

    Todas as ninfas... Veio o sol e j tinham partido...

    O teu silncio que me embala a ideia de naufragar,

    E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

    J no h caudas de paves todas olhos nos jardins de outrora...

    As prprias sombras esto mais tristes...Ainda

    H rastros de vestes de aias (parece) no cho, e ainda chora

    Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

    Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...

    As relvas de todos os prados foram frescas sob meus ps frios...

    Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,

    E eu ver isso em ti um porto sem navios...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas

    Passou uma saudade de no serem o mar...Em frente

    Ao meu trono de alheamento h gestos com pedras raras...

    Minha alma uma lmpada que se apagou e ainda est quente...

    Ah, e o teu silncio um perfil de pncaro ao sol!

    Todas as princesas sentiram o seio oprimido...

    Da ltima janela do castelo s um girassol

    Se v, e o sonhar que h outros pe brumas no nosso sentido...

    Sermos, e no sermos mais!... lees nascidos na jaula!...

    Repique de sinos para alm, no Outro Vale... Perto?...

    Arde o colgio e uma criana ficou fechada na aula...

    Por que no h de ser o Norte e Sul?... O que est descoberto?...

    E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...

    E o teu silncio uma cegueira minha...Fito-te e sonho...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    H coisas rubras e cobras no modo como medito-te,

    E a tua ideia sabe lembrana de um sabor de medonho...

    Para que no ter por ti desprezo? Por que no perd-lo?...

    Ah, deixa que eu te ignore...O teu silncio um leque -

    Um leque fechado, um leque que aberto seria to belo, to belo,

    Mas mais belo no o abrir, para que a Hora no peque...

    Gelaram todas as mos cruzadas sobre todos os peitos....

    Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

    O meu amar-te uma catedral de silncio eleitos,

    E os meus sonhos uma escada sem princpio mas com fim...

    Algum vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...

    Tecedeiras vivas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

    Ah, o teu tdio uma esttua de uma mulher que h de vir,

    O perfume que os crisntemos teriam, se o tivessem...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    preciso destruir o propsito de todas as pontes,

    Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

    Endireitar fora a curva dos horizontes,

    E gemer por ter de viver, como um rudo brusco de serras...

    H to pouca gente que ame as paisagens que no existem!...

    Saber que continuar a haver o mesmo mundo amanh - como nos

    desalegra!...

    Que o meu ouvir o teu silncio no seja nuvens que atristem

    O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tdio, aurola negra...

    Suave, como ter me e irms, a tarde rica desce...

    No chove j, e o vasto cu um grande sorriso imperfeito...

    A minha conscincia de ter conscincia de ti uma prece,

    E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Ah, se fssemos duas figuras num longnquo vitral!...

    Ah, se fssemos as duas cores de uma bandeira de glria!...

    Esttua acfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,

    Pendo de vencidos tendo escrito ao centro este lema - Vitria!

    O que que me tortura?... Se at a tua face calma

    S me enche de tdios e de pios de cios medonhos...

    No sei...Eu sou um doido que estranha a sua prpria alma...

    Eu fui amado em efgie num pas para alm dos sonhos...

    4-7-1913

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    SINO DA MINHA ALDEIA

    sino da minha aldeia,

    Dolente na tarde calma,

    Cada tua badalada

    Soa dentro da minha alma.

    E to lento o teu soar,

    To como triste da vida,

    Que j a primeira pancada

    Tem o som de repetida.

    Por mais que tanjas perto

    Quando passo, sempre errante,

    s para mim como um sonho,

    Soas-me na alma distante.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    A cada pancada tua,

    Vibrante no cu aberto,

    Sinto mais longe o passado,

    Sinto a saudade mais perto

    1914

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Que os olhos se me vo acostumando

    escurido.

    13-1-1920.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    VENDAVAL

    vento do norte, to fundo e to frio,

    No achas, soprando por tanta solido,

    Deserto, penhasco, coval mais vazio

    Que o meu corao!

    Indmita praia, que a raiva do oceano

    Faz louco lugar, caverna sem fim,

    No so to deixados do alegre e do humano

    Como a alma que h em mim!

    Mas dura plancie, praia atra em fereza,

    S tm a tristeza que a gente lhes v

    E nisto que em mim vcuo e tristeza

    o visto o que v.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    3

    Ah, mgoa de ter conscincia da vida!

    Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,

    Que rasgas os robles - teu pulso divida

    Minha alma do mundo!

    Ah, se, como levas as folhas e a areia,

    A alma que tenho pudesses levar -

    Fosse para onde fosse, pra longe da ideia

    De eu ter que pensar!

    Abismo da noite, da chuva, do vento,

    Mar torvo do caos que parece volver -

    Porque que no entras no meu pensamento

    Para ele morrer?

    Horror de ser sempre com vida a conscincia!

    Horror de sentir a alma sempre a pensar!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    3

    Arranca-me, vento; do cho da existncia,

    De ser um lugar!

    E, pela alta noite que fazes mais escura,

    Pelo caos furioso que crias no mundo,

    Dissolve em areia esta minha amargura,

    Meu tdio profundo.

    E contra as vidraas dos que h que tm lares,

    Telhados daqueles que tm razo,

    Atira, j pria desfeito dos ares,

    O meu corao!

    Meu corao triste, meu corao ermo,

    Tornado a substncia dispersa e negada

    Do vento sem forma, da noite sem termo,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    3

    Do abismo e do nada!

    16-2-1920.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    3

    AO LONGE, AO LUAR

    Ao longe, ao luar,

    No rio uma vela

    Serena a passar,

    Que que me revela?

    No sei, mas meu ser

    Tornou-se-me estranho,

    E eu sonho sem ver

    Os sonhos que tenho.

    Que angstia me enlaa?

    Que amor no se explica?

    a vela que passa

    Na noite que fica.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    5-08-1921

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    SONHO

    Sonho. No sei quem sou neste momento.

    Durmo sentindo-me. Na hora calma

    Meu pensamento esquece o pensamento,

    Minha alma no tem alma.

    Se existo um erro eu o saber. Se acordo

    Parece que erro. Sinto que no sei.

    Nada quero nem tenho nem recordo.

    No tenho ser nem lei.

    Lapso da conscincia entre iluses,

    Fantasmas me limitam e me contm.

    Dorme insciente de alheios coraes,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    Corao de ningum.

    6-1-1923

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    DORME ENQUANTO EU VELO...

    Dorme enquanto eu velo...

    Deixa-me sonhar...

    Nada em mim risonho.

    Quero-te para sonho,

    No para te amar.

    A tua carne calma

    fria em meu querer.

    Os meus desejos so cansaos.

    Nem quero ter nos braos

    Meu sonho do teu ser.

    Dorme, dorme. dorme,

    Vaga em teu sorrir...

    Sonho-te to atento

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    Que o sonho encantamento

    E eu sonho sem sentir.

    1924

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    PE-ME AS MOS NOS OMBROS...

    Pe-me as mos nos ombros...

    Beija-me na fronte...

    Minha vida escombros,

    A minha alma insonte.

    Eu no sei por qu,

    Meu desde onde venho,

    Sou o ser que v,

    E v tudo estranho.

    Pe a tua mo

    Sobre o meu cabelo...

    Tudo iluso.

    Sonhar sab-lo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    1924

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    MELANCOLIA

    Ah quanta melancolia!

    Quanta, quanta solido!

    Aquela alma, que vazia,

    Que sinto intil e fria

    Dentro do meu corao!

    Que angstia desesperada!

    Que mgoa que sabe a fim!

    Se a nau foi abandonada,

    E o cego caiu na estrada -

    Deixai-os, que tudo assim.

    Sem sossego, sem sossego,

    Nenhum momento de meu

    Onde for que a alma emprego -

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    Na estrada morreu o cego

    A nau desapareceu.

    3-9-1924.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    4

    O MENINO DA SUA ME

    No plaino abandonado

    Que a morna brisa aquece,

    De balas traspassado

    Duas, de lado a lado,

    Jaz morto, e arrefece.

    Raia-lhe a farda o sangue

    De braos estendidos,

    Alvo, louro, exangue,

    Fita com olhar langue

    E cego os cus perdidos.

    To jovem! Que jovem era!

    (Agora que idade tem?)

    Filho nico, a me lhe dera

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    Um nome e o mantivera:

    O menino da sua me.

    Caiu-lhe da algibeira

    A cigarreira breve.

    Dera-lhe a me. Est inteira

    boa a cigarreira,

    Ele que j no serve.

    De outra algibeira, alada

    Ponta a roar o solo,

    A brancura embainhada

    De um leno... Deu-lho a criada

    Velha que o trouxe ao colo.

    L longe, em casa, h a prece:

    "Que volte cedo, e bem!"

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    (Malhas que o Imprio tece!)

    Jaz morto, e apodrece,

    O menino da sua me.

    5 -1926

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    TOMAMOS A VILA DEPOIS DE UM INTENSO

    BOMBARDEAMENTO

    A criana loura

    Jaz no meio da rua.

    Tem as tripas de fora

    E por uma corda sua

    Um comboio que ignora.

    A cara est um feixe

    De sangue e de nada.

    Luz um pequeno peixe

    Dos que boiam nas banheiras

    beira da estrada.

    Cai sobre a estrada o escuro.

    Longe, ainda uma luz doura

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    A criao do futuro...

    E o da criana loura?

    1926

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    ISTO

    Dizem que finjo ou minto

    Tudo que escrevo. No.

    Eu simplesmente sinto

    Com a imaginao.

    No uso o corao.

    Tudo o que sonho ou passo,

    O que me falha ou finda,

    como que um terrao

    Sobre outra coisa ainda.

    Essa coisa que linda.

    Por isso escrevo em meio

    Do que no est ao p,

    Livre do meu enleio,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    Srio do que no .

    Sentir? Sinta quem l!

    1928

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    O LAGO

    Contemplo o lago mudo

    Que uma brisa estremece.

    No sei se penso em tudo

    Ou se tudo me esquece.

    O lago nada me diz,

    No sinto a brisa mex-lo

    No sei se sou feliz

    Nem se desejo s-lo.

    Trmulos vincos risonhos

    Na gua adormecida.

    Por que fiz eu dos sonhos

    A minha nica vida?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    4-8-1930

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    MINHA MULHER, A SOLIDO

    Minha mulher, a solido,

    Consegue que eu no seja triste.

    Ah, que bom o corao

    Ter este bem que no existe!

    Recolho a no ouvir ningum,

    No sofro o insulto de um carinho

    E falo alto sem que haja algum:

    Nascem-me os versos do caminho.

    Senhor, se h bem que o cu conceda

    Submisso opresso do Fado,

    D-me eu ser s - veste de seda -,

    E fala s - leque animado.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    5

    27-8-1930

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    SORRISO AUDVEL DAS FOLHAS

    Sorriso audvel das folhas

    No s mais que a brisa ali

    Se eu te olho e tu me olhas,

    Quem primeiro que sorri?

    O primeiro a sorrir ri.

    Ri e olha de repente

    Para fins de no olhar

    Para onde nas folhas sente

    O som do vento a passar

    Tudo vento e disfarar.

    Mas o olhar, de estar olhando

    Onde no olha, voltou

    E estamos os dois falando

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    O que se no conversou

    Isto acaba ou comeou?

    27-11-1930

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    POR QUEM FOI QUE ME TROCARAM

    Por quem foi que me trocaram

    Quando estava a olhar pra ti?

    Pousa a tua mo na minha

    E, sem me olhares, sorri.

    Sorri do teu pensamento

    Porque eu s quero pensar

    Que de mim que ele est feito

    que tens para mo dar.

    Depois aperta-me a mo

    E vira os olhos a mim...

    Por quem foi que me trocaram

    Quando ests a olhar-me assim?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    1930

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    CAI CHUVA

    Cai chuva do cu cinzento

    Que no tem razo de ser.

    At o meu pensamento

    Tem chuva nele a escorrer.

    Tenho uma grande tristeza

    Acrescentada que sinto.

    Quero dizer-ma mas pesa

    O quanto comigo minto.

    Porque verdadeiramente

    No sei se estou triste ou no.

    E a chuva cai levemente

    (Porque Verlaine consente)

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    Dentro do meu corao.

    15-11-1930.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    EU AMO TUDO O QUE FOI

    Eu amo tudo o que foi,

    Tudo o que j no ,

    A dor que j me no di,

    A antiga e errnea f,

    O ontem que dor deixou,

    O que deixou alegria

    S porque foi, e voou

    E hoje j outro dia.

    1931.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    NUVENS

    As nuvens so sombrias

    Mas, nos lados do sul,

    Um bocado do cu

    tristemente azul.

    Assim, no pensamento,

    Sem haver soluo,

    H um bocado que lembra

    Que existe o corao.

    E esse bocado que

    A verdade que est

    A ser beleza eterna

    Para alm do que h.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    5-4-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    6

    UMA MAIOR SOLIDO

    Uma maior solido

    Lentamente se aproxima

    Do meu triste corao.

    Enevoa-se-me o ser

    Como um olhar a cegar,

    A cegar, a escurecer.

    Jazo-me sem nexo, ou fim...

    Tanto nada quis de nada,

    Que hoje nada o quer de mim.

    23-10-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    CHOVE

    Chove. Que fiz eu da vida?

    Fiz o que ela fez de mim...

    De pensada, mal vivida...

    Triste de quem assim!

    Numa angstia sem remdio

    Tenho febre na alma, e, ao ser,

    Tenho saudade, entre o tdio,

    S do que nunca quis ter...

    Quem eu pudera ter sido,

    Que dele? Entre dios pequenos

    De mim, estou de mim partido.

    Se ao menos chovesse menos!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    23-10-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    A LUA

    A Lua (dizem os ingleses),

    feita de queijo verde.

    Por mais que pense mil vezes

    Sempre uma ideia se perde.

    E era essa, era, era essa,

    Que haveria de salvar

    Minha alma da dor da pressa

    De... no sei se desejar.

    Sim, todos os meus desejos

    So de estar sentir pensando...

    A Lua (dizem os ingleses)

    azul de vez em quando.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    14-11-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    CAI AMPLO O FRIO

    Cai amplo o frio e eu durmo na tardana

    De adormecer.

    Sou, sem lar, nem conforto, nem esperana,

    Nem desejo de os ter.

    E um choro por meu ser me inunda

    A imaginao.

    Saudade vaga, annima, profunda,

    Nusea da indeciso.

    Frio do Inverno duro, no te tira

    Agasalho ou amor.

    Dentro em meus ossos teu tremor delira.

    Cessa, seja eu quem for!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    19-1-1931.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    GATO QUE BRINCAS NA RUA

    Gato que brincas na rua

    Como se fosse na cama,

    Invejo a sorte que tua

    Porque nem sorte se chama.

    Bom servo das leis fatais

    Que regem pedras e gentes,

    Que tens instintos gerais

    E sentes s o que sentes.

    s feliz porque s assim,

    Todo o nada que s teu.

    Eu vejo-me e estou sem mim,

    Conheo-me e no sou eu.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    1-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    NO DIGAS NADA I

    No: no digas nada!

    Supor o que dir

    A tua boca velada

    ouvi-lo j

    ouvi-lo melhor

    Do que o dirias.

    O que s no vem flor

    Das frases e dos dias.

    s melhor do que tu.

    No digas nada: s!

    Graa do corpo nu

    Que invisvel se v.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    7

    5/6-2-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    NO DIGAS NADA II

    No digas nada!

    Nem mesmo a verdade

    H tanta suavidade em nada se dizer

    E tudo se entender

    Tudo metade

    De sentir e de ver...

    No digas nada

    Deixa esquecer

    Talvez que amanh

    Em outra paisagem

    Digas que foi v

    Toda essa viagem

    At onde quis

    Ser quem me agrada...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    Mas ali fui feliz

    No digas nada.

    5/6-2-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    VAGA, NO AZUL AMPLO SOLTA

    Vaga, no azul amplo solta,

    Vai uma nuvem errando.

    O meu passado no volta.

    No o que estou chorando.

    O que choro diferente.

    Entra mais na alma da alma.

    Mas como, no cu sem gente,

    A nuvem flutua calma.

    E isto lembra uma tristeza

    E a lembrana que entristece,

    Dou saudade a riqueza

    De emoo que a hora tece.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    Mas, em verdade, o que chora

    Na minha amarga ansiedade

    Mais alto que a nuvem mora,

    Est para alm da saudade.

    No sei o que nem consinto

    alma que o saiba bem.

    Visto da dor com que minto

    Dor que a minha alma tem.

    29-3-1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    O ANDAIME

    O tempo que eu hei sonhado

    Quantos anos foi de vida!

    Ah, quanto do meu passado

    Foi s a vida mentida

    De um futuro imaginado!

    Aqui beira do rio

    Sossego sem ter razo.

    Este seu correr vazio

    Figura, annimo e frio,

    A vida vivida em vo.

    A esperana que pouco alcana!

    Que desejo vale o ensejo?

    E uma bola de criana

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    Sobre mais que minha esperana,

    Rola mais que o meu desejo.

    Ondas do rio, to leves

    Que no sois ondas sequer,

    Horas, dias, anos, breves

    Passam - verduras ou neves

    Que o mesmo sol faz morrer.

    Gastei tudo que no tinha.

    Sou mais velho do que sou.

    A iluso, que me mantinha,

    S no palco era rainha:

    Despiu-se, e o reino acabou.

    Leve som das guas lentas,

    Gulosas da margem ida,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    Que lembranas sonolentas

    De esperanas nevoentas!

    Que sonhos o sonho e a vida!

    Que fiz de mim? Encontrei-me

    Quando estava j perdido.

    Impaciente deixei-me

    Como a um louco que teime

    No que lhe foi desmentido.

    Som morto das guas mansas

    Que correm por ter que ser,

    Leva no s lembranas -

    Mortas, porque ho de morrer.

    Sou j o morto futuro.

    S um sonho me liga a mim -

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    O sonho atrasado e obscuro

    Do que eu devera ser - muro

    Do meu deserto jardim.

    Ondas passadas, levai-me

    Para o alvido do mar!

    Ao que no serei legai-me,

    Que cerquei com um andaime

    A casa por fabricar.

    1931

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    EU TENHO IDEIAS E RAZES

    Eu tenho ideias e razes,

    Conheo a cor dos argumentos

    E nunca chego aos coraes.

    1932

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    8

    Aquele peso em mim - meu corao.

    1932

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    BASTA PENSAR EM SENTIR

    Basta pensar em sentir

    Para sentir em pensar.

    Meu corao faz sorrir

    Meu corao a chorar.

    Depois de parar de andar,

    Depois de ficar e ir,

    Hei de ser quem vai chegar

    Para ser quem quer partir.

    Viver no conseguir.

    14-6-1932

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    COMO NUVENS PELO CU

    Como nuvens pelo cu

    Passam os sonhos por mim.

    Nenhum dos sonhos meu

    Embora eu os sonhe assim.

    So coisas no alto que so

    Enquanto a vista as conhece,

    Depois so sombras que vo

    Pelo campo que arrefece.

    Smbolos? Sonhos? Quem torna

    Meu corao ao que foi?

    Que dor de mim me transtorna?

    Que coisa intil me di?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    17-6-1932

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    Minhas mesmas emoes

    So coisas que me acontecem.

    31-8-1932

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    QUE SUAVE O AR

    Que suave o ar! Como parece

    Que tudo bom na vida que h!

    Assim meu corao pudesse

    Sentir essa certeza j.

    Mas no; ou seja a selva escura

    Ou seja um Dante mais diverso,

    A alma literatura

    E tudo acaba em nada e verso.

    6-11-1932

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    SOSSEGA, CORAO

    Sossega, corao! No desesperes!

    Talvez um dia, para alm dos dias,

    Encontres o que queres porque o queres.

    Ento, livre de falsas nostalgias,

    Atingirs a perfeio de seres.

    Mas pobre sonho o que s quer no t-lo!

    Pobre esperana a de existir somente!

    Como quem passa a mo pelo cabelo

    E em si mesmo se sente diferente,

    Como faz mal ao sonho o conceb-lo!

    Sossega, corao, contudo! Dorme!

    O sossego no quer razo nem causa.

    Quer s a noite plcida e enorme,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    A grande, universal, solene pausa

    Antes que tudo em tudo se transforme.

    2-8-1933.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    TODAS AS COISAS QUE H NESTE MUNDO

    Todas as coisas que h neste mundo

    Tm uma histria,

    Exceto estas rs que coaxam no fundo

    Da minha memria.

    Qualquer lugar neste mundo tem

    Um onde estar,

    Salvo este charco de onde me vem

    Esse coaxar.

    Ergue-se em mim uma lua falsa

    Sobre juncais,

    E o charco emerge, que o luar reala

    Menos e mais.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    Onde, em que vida, de que maneira

    Fui o que lembro

    Por este coaxar das rs na esteira

    Do que deslembro?

    Nada. Um silncio entre juncos dorme.

    Coaxam ao fim

    De uma alma antiga que tenho enorme

    As rs sem mim.

    13-8-1933.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    9

    O QUE ME DI

    O que me di no

    O que h no corao

    Mas essas coisas lindas

    Que nunca existiro...

    So as formas sem forma

    Que passam sem que a dor

    As possa conhecer

    Ou as sonhar o amor.

    So como se a tristeza

    Fosse rvore e, uma a uma,

    Cassem suas folhas

    Entre o vestgio e a bruma.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    5-9-1933

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    A LAVADEIRA

    A lavadeira no tanque

    Bate roupa em pedra bem.

    Canta porque canta e triste

    Porque canta porque existe;

    Por isso alegre tambm.

    Ora se eu alguma vez

    Pudesse fazer nos versos

    O que a essa roupa ela fez,

    Eu perderia talvez

    Os meus destinos diversos.

    H uma grande unidade

    Em, sem pensar nem razo,

    E at cantando a metade,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Bater roupa em realidade...

    Quem me lava o corao?

    15-9-1933

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    ENTRE O SONO E SONHO

    Entre o sono e sonho,

    Entre mim e o que em mim

    o quem eu me suponho

    Corre um rio sem fim.

    Passou por outras margens,

    Diversas mais alm,

    Naquelas vrias viagens

    Que todo o rio tem.

    Chegou onde hoje habito

    A casa que hoje sou.

    Passa, se eu me medito;

    Se desperto, passou.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    E quem me sinto e morre

    No que me liga a mim

    Dorme onde o rio corre -

    Esse rio sem fim.

    11-9-1933

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    TUDO O QUE FAO OU MEDITO

    Tudo o que fao ou medito

    Fica sempre pela metade.

    Querendo, quero o infinito.

    Fazendo, nada verdade.

    Que nojo de mim fica

    Ao olhar para o que fao!

    Minha alma lcida e rica

    E eu sou um mar de sargao

    Um mar onde boiam lentos

    Fragmentos de um mar de alm...

    Vontades ou pensamentos?

    No o sei e sei-o bem.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    13-9-1933

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    TENHO TANTO SENTIMENTO

    Tenho tanto sentimento

    Que frequente persuadir-me

    De que sou sentimental,

    Mas reconheo, ao medir-me,

    Que tudo isso pensamento,

    Que no senti afinal.

    Temos, todos que vivemos,

    Uma vida que vivida

    E outra vida que pensada,

    E a nica vida que temos

    essa que dividida

    Entre a verdadeira e a errada.

    Qual porm a verdadeira

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    E qual errada, ningum

    Nos saber explicar;

    E vivemos de maneira

    Que a vida que a gente tem

    a que tem que pensar.

    18-9-1933

    REALIDADE

    Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

    Mas, quando despertei da confuso,

    Vi que esta vida aqui e este universo

    No so mais claros do que os sonhos so

    Obscura luz paira onde estou converso

    A esta realidade da iluso

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Se fecho os olhos, sou de novo imerso

    Naquelas sombras que h na escurido.

    Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,

    a mesma mistura de entre-seres

    Ou na noite, ou ao dia transferida.

    Nada real, nada em seus vos moveres

    Pertence a uma forma definida,

    Rastro visto de coisa s ouvida.

    28-9-1933.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    VIAGEM

    Viajar! Perder pases!

    Ser outro constantemente,

    Por a alma no ter razes

    De viver de ver somente!

    No pertencer nem a mim!

    Ir em frente, ir a seguir

    A ausncia de ter um fim,

    E a nsia de o conseguir!

    Viajar assim viagem.

    Mas fao-o sem ter de meu

    Mais que o sonho da passagem.

    O resto s terra e cu.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    20-9-1933

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    MISTRIOS

    Grandes mistrios habitam

    O limiar do meu ser,

    O limiar onde hesitam

    Grandes pssaros que fitam

    Meu transpor tardo de os ver.

    So aves cheias de abismo,

    Como nos sonhos as h.

    Hesito se sondo e cismo,

    E minha alma cataclismo

    O limiar onde est.

    Ento desperto do sonho

    E sou alegre da luz,

    Inda que em dia tristonho;

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Porque o limiar medonho

    E todo passo uma cruz.

    2-10-1933

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    ESPERANA

    Tenho esperana ? No tenho.

    Tenho vontade de a ter?

    No sei. Ignoro a que venho,

    Quero dormir e esquecer.

    Se houvesse um blsamo da alma,

    Que a fizesse sossegar,

    Cair numa qualquer calma

    Em que, sem sequer pensar,

    Pudesse ser toda a vida,

    Pensar todo o pensamento

    Ento ...

    11-12-1933.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    EROS E PSIQUE

    ...E assim vedes, meu Irmo, que as verdades

    que vos foram dadas no Grau de Nefito, e

    aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto

    Menor, so, ainda que opostas, a mesma verdade.

    (Do Ritual Do Grau De Mestre Do trio

    Na Ordem Templria De Portugal)

    Conta a lenda que dormia

    Uma Princesa encantada

    A quem s despertaria

    Um Infante, que viria

    De alm do muro da estrada.

    Ele tinha que, tentado,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Vencer o mal e o bem,

    Antes que, j libertado,

    Deixasse o caminho errado

    Por o que Princesa vem.

    A Princesa Adormecida,

    Se espera, dormindo espera,

    Sonha em morte a sua vida,

    E orna-lhe a fronte esquecida,

    Verde, uma grinalda de hera.

    Longe o Infante, esforado,

    Sem saber que intuito tem,

    Rompe o caminho fadado,

    Ele dela ignorado,

    Ela para ele ningum.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Mas cada um cumpre o Destino

    Ela dormindo encantada,

    Ele buscando-a sem tino

    Pelo processo divino

    Que faz existir a estrada.

    E, se bem que seja obscuro

    Tudo pela estrada fora,

    E falso, ele vem seguro,

    E vencendo estrada e muro,

    Chega onde em sono ela mora,

    E, inda tonto do que houvera,

    cabea, em maresia,

    Ergue a mo, e encontra hera,

    E v que ele mesmo era

    A Princesa que dormia.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Publicado pela primeira vez in Presena, ns 41-42, Coimbra, maio de 1934.

    Acerca da epgrafe que encabea este poema diz o prprio autor a uma

    interrogao levantada pelo crtico A. Casais Monteiro, em carta a este ltimo:

    A citao, epgrafe ao meu poema "Eros e Psique", de um trecho (traduzido, pois o Ritual

    em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templria de Portugal, indica

    simplesmente - o que facto - que me foi permitido folhear os Rituais dos trs primeiros

    graus dessa Ordem, extinta, ou em dormncia desde cerca de 1888. Se no estivesse em

    dormncia, eu no citaria o trecho do Ritual, pois se no devem citar (indicando a origem)

    trechos de Rituais que esto em trabalho

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    OUTROS TERO

    Outros tero

    Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.

    A inteira, negra e fria solido

    Est comigo.

    A outros talvez

    H alguma coisa quente, igual, afim

    No mundo real. No chega nunca a vez

    Para mim.

    "Que importa?"

    Digo, mas s Deus sabe que o no creio.

    Nem um casual mendigo minha porta

    Sentar-se veio.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    "Quem tem de ser?"

    No sofre menos quem o reconhece.

    Sofre quem finge desprezar sofrer

    Pois no esquece.

    Isto at quando?

    S tenho por consolao

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    COMO POR DENTRO OUTRA PESSOA

    Como por dentro outra pessoa

    Quem que o saber sonhar?

    A alma de outrem outro universo

    Com que no h comunicao possvel,

    Com que no h verdadeiro entendimento.

    Nada sabemos da alma

    Seno da nossa;

    As dos outros so olhares,

    So gestos, so palavras,

    Com a suposio de qualquer semelhana

    No fundo.

    1934

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    SE ALGUM BATER UM DIA TUA PORTA

    Se algum bater um dia tua porta,

    Dizendo que um emissrio meu,

    No acredites, nem que seja eu;

    Que o meu vaidoso orgulho no comporta

    Bater sequer porta irreal do cu.

    Mas se, naturalmente, e sem ouvir

    Algum bater, fores a porta abrir

    E encontrares algum como que espera

    De ousar bater, medita um pouco. Esse era

    Meu emissrio e eu e o que comporta

    O meu orgulho do que desespera.

    Abre a quem no bater tua porta!

    5-9-1934.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    A CINCIA

    A cincia, a cincia, a cincia...

    Ah, como tudo nulo e vo!

    A pobreza da inteligncia

    Ante a riqueza da emoo!

    Aquela mulher que trabalha

    Como uma santa em sacrifcio,

    Com quanto esforo dado ralha!

    Contra o pensar, que o meu vcio!

    A cincia! Como pobre e nada!

    Rico o que alma d e tem.

    4-10-1934

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    NO QUERO ROSAS

    No quero rosas, desde que haja rosas.

    Quero-as s quando no as possa haver.

    Que hei de fazer das coisas

    Que qualquer mo pode colher?

    No quero a noite seno quando a aurora

    A fez em ouro e azul se diluir.

    O que a minha alma ignora

    isso que quero possuir.

    Para qu?... Se o soubesse, no faria

    Versos para dizer que inda o no sei.

    Tenho a alma pobre e fria...

    Ah, com que esmola a aquecerei?...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    7-1-1935.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    TUDO QUANTO PENSO

    Tudo quanto penso,

    Tudo quanto sou

    um deserto imenso

    Onde nem eu estou.

    Extenso parada

    Sem nada a estar ali,

    Areia peneirada

    Vou dar-lhe a ferroada

    Da vida que vivi.

    18-3-1935

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    OS TEUS OLHOS ENTRISTECEM

    Os teus olhos entristecem.

    Nem ouves o que digo.

    Dormem, sonham esquecem...

    No me ouves, e prossigo.

    Digo o que j, de triste,

    Te disse tanta vez...

    Creio que nunca o ouviste

    De to tua que s.

    Olhas-me de repente

    De um distante impreciso

    Com um olhar ausente.

    Comeas um sorriso.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Continuo a falar.

    Continuas ouvindo

    O que ests a pensar,

    J quase no sorrindo.

    At que neste ocioso

    Sumir da tarde ftil,

    Se esfolha silencioso

    O teu sorriso intil.

    19-10-1935

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    LIBERDADE

    Ai que prazer

    no cumprir um dever.

    Ter um livro para ler

    e no o fazer!

    Ler maada,

    estudar nada.

    O sol doira sem literatura.

    O rio corre bem ou mal,

    sem edio original.

    E a brisa, essa, de to naturalmente matinal

    como tem tempo, no tem pressa...

    Livros so papis pintados com tinta.

    Estudar uma coisa em que est indistinta

    A distino entre nada e coisa nenhuma.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Quanto melhor quando h bruma.

    Esperar por D. Sebastio,

    Quer venha ou no!

    Grande a poesia, a bondade e as danas...

    Mas o melhor do mundo so as crianas,

    Flores, msica, o luar, e o sol que peca

    S quando, em vez de criar, seca.

    E mais do que isto

    Jesus Cristo,

    Que no sabia nada de finanas,

    Nem consta que tivesse biblioteca...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    TUDO QUE FAO OU MEDITO

    Tudo que fao ou medito

    Fica sempre na metade

    Querendo, quero o infinito.

    Fazendo, nada verdade.

    Que nojo de mim me fica

    Ao olhar para o que fao!

    Minha alma ldica e rica,

    E eu sou um mar de sargao

    Um mar onde boiam lentos

    Fragmentos de um mar de alm...

    Vontades ou pensamentos?

    No o sei e sei-o bem.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    SOU O ESPRITO DA TREVA

    Sou o Esprito da treva,

    A Noite me traz e leva;

    Moro beira irreal da Vida,

    Sua onda indefinida

    Refresca-me a alma de espuma...

    Pra alm do mar h a bruma...

    E pra aqum? h Coisa ou Fim?

    Nunca olhei para trs de mim...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    A ALMA POTICA DO UNIVERSO

    Era eu um poeta estimulado pela filosofia

    E no um filosofo com faculdades poticas.

    Gostava de admirar a beleza das coisas,

    Descobrir no impercetivel, atravs do diminuto,

    A alma potica do universo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    CATIVEIRO

    Quando que o cativeiro

    Acabar em mim,

    E, prprio dianteiro,

    Avanarei enfim?

    Quando que me desato

    Dos laos que me dei?

    Quando serei um facto?

    Quando que me serei?

    Quando, ao virar da esquina

    De qualquer dia meu,

    Me acharei alma digna

    Da alma que Deus me deu?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Quando que ser quando?

    No sei. E at ento

    Viverei perguntando:

    Perguntarei em vo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    SEM REMDIO

    Tudo o que sou no mais do que abismo

    Em que uma vaga luz

    Com que sei que sou eu, e nisto cismo,

    Obscura me conduz.

    Um intervalo entre no-ser e ser

    Feito de eu ter lugar

    Como o p, que se v o vento erguer,

    Vive de ele o mostrar.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    A MINHA ALMA DOENTE

    No sei o qu desgosta

    A minha alma doente.

    Uma dor suposta

    Di-me realmente.

    Como um barco absorto

    Em se naufragar

    vista do porto

    E num calmo mar,

    Por meu ser me afundo,

    Pra longe da vista

    Durmo o incerto mundo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    BOIAM FARRAPOS DE SOMBRA

    Boiam farrapos de sombra

    Em torno ao que no sei ser.

    todo um cu que se escombra

    Sem me o deixar entrever.

    O mistrio das alturas

    Desfaz-se em ritmos sem forma

    Nas desregradas negruras

    Com que o ar se treva torna.

    Mas em tudo isto, que faz

    O universo um ser desfeito,

    Guardei, como a minha paz,

    A esperana, que a dor me traz,

    Apertada contra o peito.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    NO SEI QUANTAS ALMAS TENHO

    No sei quantas almas tenho.

    Cada momento mudei.

    Continuamente me estranho.

    Nunca me vi nem achei.

    De tanto ser, s tenho alma.

    Quem tem alma no tem calma.

    Quem v s o que v,

    Quem sente no quem ,

    Atento ao que sou e vejo,

    Torno-me eles e no eu.

    Cada meu sonho ou desejo

    do que nasce e no meu.

    Sou minha prpria paisagem,

    Assisto minha passagem,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Diverso, mbil e s,

    No sei sentir-me onde estou.

    Por isso, alheio, vou lendo

    Como pginas, meu ser.

    O que segue no prevendo,

    O que passou a esquecer.

    Noto margem do que li

    O que julguei que senti.

    Releio e digo:

    Deus sabe, porque o escreveu.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    A MISRIA DO MEU SER

    A misria do meu ser,

    Do ser que tenho a viver,

    Tornou-se uma coisa vista.

    Sou nesta vida um qualquer

    Que roda fora da pista.

    Ningum conhece quem sou

    Nem eu mesmo me conheo

    E, se me conheo, esqueo,

    Porque no vivo onde estou.

    Rodo, e o meu rodar apresso.

    uma carreira invisvel,

    Salvo onde caio e sou visto,

    Porque cair sensvel

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Pelo rudo imprevisto...

    Sou assim. Mas isto crvel?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    J NO ME IMPORTO

    J no me importo

    At com o que amo ou creio amar.

    Sou um navio que chegou a um porto

    E cujo movimento ali estar.

    Nada me resta

    Do que quis ou achei.

    Cheguei da festa

    Como fui para l ou ainda irei

    Indiferente

    A quem sou ou suponho que mal sou,

    Fito a gente

    Que me rodeia e sempre rodeou,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Com um olhar

    Que, sem o poder ver,

    Sei que sem ar

    De olhar a valer.

    E s me no cansa

    O que a brisa me traz

    De sbita mudana

    No que nada me faz.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    FRESTA

    Em meus momentos escuros

    Em que em mim no h ningum,

    E tudo nvoas e muros

    Quanto a vida d ou tem,

    Se, um instante, erguendo a fronte

    De onde em mim sou aterrado,

    Vejo o longnquo horizonte

    Cheio de sol posto ou nado

    Revivo, existo, conheo,

    E, ainda que seja iluso

    O exterior em que me esqueo,

    Nada mais quero nem peo.

    Entrego-lhe o corao.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    MEU CORAO

    Meu corao tardou. Meu corao

    Talvez se houvesse amor nunca tardasse;

    Mas, visto que, se o houve, houve em vo,

    Tanto faz que o amor houvesse ou no.

    Tardou. Antes, de intil, acabasse.

    Meu corao postio e contrafeito

    Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,

    Talvez, num rasgo natural de eleito,

    O seu prprio ser do nada houvesse feito,

    E a sua prpria essncia conseguido.

    Mas no. Nunca nem eu nem corao

    Fomos mais que um vestgio de passagem

    Entre um anseio vo e um sonho vo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Parceiros em prestidigitao,

    Camos ambos pelo alapo.

    Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    TENHO PENA E NO RESPONDO

    Tenho pena e no respondo.

    Mas no tenho culpa enfim

    De que em mim no correspondo

    Ao outro que amaste em mim.

    Cada um muita gente.

    Para mim sou quem me penso,

    Para outros - cada um sente

    O que julga, e um erro imenso.

    Ah, deixem-me sossegar.

    No me sonhem nem me outrem.

    Se eu no me quero encontrar,

    Quererei que outros me encontrem?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    QUANDO ESTOU S RECONHEO

    Quando estou s reconheo

    Se por momentos me esqueo

    Que existo entre outros que so

    Como eu ss, salvo que esto

    Alheados desde o comeo.

    E se sinto quanto estou

    Verdadeiramente s,

    Sinto-me livre mas triste.

    Vou livre para onde vou,

    Mas onde vou nada existe.

    Creio contudo que a vida

    Devidamente entendida

    toda assim, toda assim.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Por isso passo por mim

    Como por coisa esquecida.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    SOU O FANTASMA DE UM REI

    Sou o fantasma de um rei

    Que sem cessar percorre

    As salas de um palcio abandonado...

    Minha histria no sei...

    Longe em mim, fumo de eu pens-la, morre

    A ideia de que tive algum passado...

    Eu no sei o que sou.

    No sei se sou o sonho

    Que algum do outro mundo esteja tendo...

    Creio talvez que estou

    Sendo um perfil casual de rei tristonho

    Numa histria que um deus est relendo...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    SE PENSO MAIS QUE UM MOMENTO

    Se penso mais que um momento

    Na vida que eis a passar,

    Sou para o meu pensamento

    Um cadver a esperar.

    Dentro em breve (poucos anos

    quanto vive quem vive),

    Eu, anseios e enganos,

    Eu, quanto tive ou no tive,

    Deixarei de ser visvel

    Na terra onde d o Sol,

    E, ou desfeito e insensvel,

    Ou brio de outro arrebol,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Terei perdido, suponho,

    O contacto quente e humano

    Com a terra, com o sonho,

    Com ms a ms e ano a ano.

    Por mais que o Sol doire a face

    Dos dias, o espao mudo

    Lembra-nos que isso disfarce

    E que a noite que tudo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    INSNIA

    Nas grandes horas em que a insnia avulta

    Como um novo universo doloroso,

    E a mente clara com um ser que insulta

    O uso confuso com que o dia ocioso,

    Cismo, embebido em sombras de repouso

    Onde habitam fantasmas e a alma oculta,

    Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo

    Me faro nada, como frase estulta.

    Cismo, cheio de nada, e a noite tudo.

    Meu corao, que fala estando mudo,

    Repete seu montono torpor

    Na sombra, no delrio da clareza,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    E no h Deus, nem ser, nem Natureza

    E a prpria mgoa melhor fora dor.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    HORIZONTE

    O mar anterior a ns, teus medos

    Tinham coral e praias e arvoredos.

    Desvendadas a noite e a cerrao,

    As tormentas passadas e o mistrio,

    Abria em flor o Longe, e o Sul sidrio

    Esplendia sobre as naus da iniciao.

    Linha severa da longnqua costa -

    Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

    Em rvores onde o Longe nada tinha;

    Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

    E, no desembarcar, h aves, flores,

    Onde era s, de longe a abstrata linha.

    O sonho ver as formas invisveis

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Da distncia imprecisa, e, com sensveis

    Movimentos da esperana e da vontade,

    Buscar na linha fria do horizonte

    A rvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -

    Os beijos merecidos da Verdade.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    DEUS

    s vezes sou o Deus que trago em mim

    E ento eu sou o Deus e o crente e a prece

    E a imagem de marfim

    Em que esse deus se esquece.

    s vezes no sou mais do que um ateu

    Desse deus meu que eu sou quando me exalto.

    Olho em mim todo um cu

    E um mero oco cu alto.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    DURMO OU NO

    Durmo ou no? Passam juntas em minha alma

    Coisas da alma e da vida em confuso,

    Nesta mistura atribulada e calma

    Em que no sei se durmo ou no.

    Sou dois seres e duas conscincias

    Como dois homens indo brao-dado.

    Sonolento revolvo omniscincias,

    Turbulentamente estagnado.

    Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.

    Desperto. Enfim: sou um, na realidade.

    Espreguio-me. Estou bem... Porqu depois,

    De qu, esta vaga saudade?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    OLHANDO O MAR

    Olhando o mar, sonho sem ter de qu.

    Nada no mar, salvo o ser mar, se v.

    Mas de se nada ver quanto a alma sonha!

    De que me servem a verdade e a f?

    Ver claro! Quantos, que fatais erramos,

    Em ruas ou em estradas ou sob ramos,

    Temos esta certeza e sempre e em tudo

    Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

    As rvores longnquas da floresta

    Parecem, por longnquas, 'star em festa.

    Quanto acontece porque se no v!

    Mas do que h pouco ou no h o mesmo resta.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Se tive amores? J no sei se os tive.

    Quem ontem fui j hoje em mim no vive.

    Bebe, que tudo lquido e embriaga,

    E a vida morre enquanto o ser revive.

    Colhes rosas? Que colhes, se ho de ser

    Motivos coloridos de morrer?

    Mas colhe rosas. Porque no colh-las

    Se te agrada e tudo deixar de o haver?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    SORRISO AUDVEL DAS FOLHAS

    Sorriso audvel das folhas

    No s mais que a brisa ali

    Se eu te olho e tu me olhas,

    Quem primeiro que sorri?

    O primeiro a sorrir ri.

    Ri e olha de repente

    Para fins de no olhar

    Para onde nas folhas sente

    O som do vento a passar

    Tudo vento e disfarar.

    Mas o olhar, de estar olhando

    Onde no olha, voltou

    E estamos os dois falando

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    O que se no conversou

    Isto acaba ou comeou?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    POBRE VELHA MSICA!

    Pobre velha msica!

    No sei por que agrado,

    Enche-se de lgrimas

    Meu olhar parado.

    Recordo outro ouvir-te,

    No sei se te ouvi

    Nessa minha infncia

    Que me lembra em ti.

    Com que nsia to raiva

    Quero aquele outrora!

    E eu era feliz? No sei:

    Fui-o outrora agora.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    DREAM

    Qualquer coisa de obscuro permanece

    No centro do meu ser. Se me conheo,

    at onde, por fim mal, tropeo

    No que de mim em mim de si se esquece.

    Aranha absurda que uma teia tece

    Feita de solido e de comeo

    Fruste, meu ser annimo confesso

    Prprio e em mim mesmo a externa treva desce.

    Mas, vinda dos vestgios da distncia

    Ningum trouxe ao meu plio por ter gente

    Sob ele, um rasgo de saudade ou nsia.

    Remiu-se o pecador impenitente

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    sombra e cisma. Teve a eterna infncia,

    Em que comigo forma um mesmo ente.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    GUIA-ME A S A RAZO

    Guia-me a s a razo.

    No me deram mais guia.

    Alumia-me em vo?

    S ela me alumia.

    Tivesse quem criou

    O mundo desejado

    Que eu fosse outro que sou,

    Ter-me-ia outro criado.

    Deu-me olhos para ver.

    Olho, vejo, acredito.

    Como ousarei dizer:

    Cego, fora eu bendito ?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Como olhar, a razo

    Deus me deu, para ver

    Para alm da viso

    Olhar de conhecer.

    Se ver enganar-me,

    Pensar um descaminho,

    No sei. Deus os quis dar-me

    Por verdade e caminho.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    GOMES LEAL

    Sangra, sinistro, a alguns o astro bao.

    Os seus trs anis irreversveis so

    A desgraa, a tristeza, a solido.

    Oito luas fatais fitam no espao.

    Este, poeta, Apolo em seu regao

    A Saturno entregou. A plmbea mo

    Lhe ergueu ao alto o aflito corao.

    E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

    Inteis oito luas da loucura

    Quando a cintura trplice denota

    Solido e desgraa e amargura!

    Mas da noite sem fim um rastro brota,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Vestgios de maligna formosura:

    a lua alm de Deus, lgida e ignota.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    GLOSA I

    Quem me roubou a minha dor antiga,

    E s a vida me deixou por dor?

    Quem, entre o incndio da alma em que o ser periga,

    Me deixou s no fogo e no torpor?

    Quem fez a fantasia minha amiga,

    Negando o fruto e emurchecendo a flor?

    Ningum ou o Fado, e a fantasia siga

    A seu infiel e irreal sabor...

    Quem me disps para o que no pudesse?

    Quem me fadou para o que no conheo

    Na teia do real que ningum tece?

    Quem me arrancou ao sonho que me odiava

    E me deu s a vida em que me esqueo,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Onde a minha saudade a cor se trava ?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    GLOSA II

    Minha alma sabe-me a antiga

    Mas sou de minha lembrana,

    Como um eco, uma cantiga.

    Bem sei que isto no nada,

    Mas quem dera a alma que seja

    O que isto , como uma estrada.

    Talvez eu fosse feliz

    Se houvesse em mim o perdo

    Do que isto quase que diz.

    Porque o esforo vil e vo,

    A verdade, quem a quis?

    Escuta s meu corao.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    GLOSAS III

    Toda a obra v, e v a obra toda.

    O vento vo, que as folhas vs enroda,

    Figura nosso esforo e nosso estado.

    O dado e o feito, ambos os d o Fado.

    Sereno, acima de ti mesmo, fita

    A possibilidade erma e infinita

    De onde o real emerge inutilmente,

    E cala, e s para pensares sente.

    Nem o bem nem o mal define o mundo.

    Alheio ao bem e ao mal, do cu profundo

    Suposto, o Fado que chamamos Deus

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Rege nem bem nem mal a terra e os cus.

    Rimos, choramos atravs da vida.

    Uma coisa uma cara contrada

    E a outra uma gua com um leve sal,

    E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.

    Doze signos do cu o Sol percorre,

    E, renovando o curso, nasce e morre

    Nos horizontes do que contemplamos.

    Tudo em ns o ponto de onde estamos.

    Fices da nossa mesma conscincia,

    Jazemos o instinto e a cincia.

    E o sol parado nunca percorreu

    Os doze signos que no h no cu

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    FRIA NAS TREVAS O VENTO

    Fria nas trevas o vento

    Num grande som de alongar,

    No h no meu pensamento

    Seno no poder parar.

    Parece que a alma tem

    Treva onde sopre a crescer

    Uma loucura que vem

    De querer compreender.

    Raiva nas trevas o vento

    Sem se poder libertar.

    Estou preso ao meu pensamento

    Como o vento preso ao ar.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    FOSSE EU APENAS, NO SEI ONDE OU COMO

    Fosse eu apenas, no sei onde ou como,

    Uma coisa existente sem viver,

    Noite de Vida sem amanhecer

    Entre as sirtes do meu dourado assomo....

    Fada maliciosa ou incerto gnomo

    Fadado houvesse de no pertencer

    Meu intuito glorola com Ter

    A rvore do meu uso o nico pomo...

    Fosse eu uma metfora somente

    Escrita nalgum livro insubsistente

    Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

    Mas doente, e , num crepsculo de espadas,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Morrendo entre bandeiras desfraldadas

    Na ltima tarde de um imprio em chamas...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    FOI UM MOMENTO

    Foi um momento

    O em que pousaste

    Sobre o meu brao,

    Num movimento

    Mais de cansao

    Que pensamento,

    A tua mo

    E a retiraste.

    Senti ou no?

    No sei. Mas lembro

    E sinto ainda

    Qualquer memria

    Fixa e corprea

    Onde pousaste

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    A mo que teve

    Qualquer sentido

    Incompreendido.

    Mas to de leve!...

    Tudo isto nada,

    Mas numa estrada

    Como a vida

    H muita coisa

    Incompreendida...

    Sei eu se quando

    A tua mo

    Senti pousando

    Sobre o meu brao,

    E um pouco, um pouco,

    No corao,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    No houve um ritmo

    Novo no espao?

    Como se tu,

    Sem o querer,

    Em mim tocasses

    Para dizer

    Qualquer mistrio,

    Sbito e etreo,

    Que nem soubesses

    Que tinha ser.

    Assim a brisa

    Nos ramos diz

    Sem o saber

    Uma imprecisa

    Coisa feliz.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    FLOR QUE NO DURA

    Flor que no dura

    Mais do que a sombra dum momento

    Tua frescura

    Persiste no meu pensamento.

    No te perdi

    No que sou eu,

    S nunca mais, flor, te vi

    Onde no sou seno a terra e o cu.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    FELIZ DIA PARA QUEM

    Feliz dia para quem

    O igual do dia,

    E no exterior azul que v

    Simples confia!

    Azul do cu faz pena a quem

    No pode ser

    Na alma um azul do cu tambm

    Com que viver

    Ah, e se o verde com que esto

    Os montes quedos

    Pudesse haver no corao

    E em seus segredos!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Mas vejo quem devia estar

    Igual do dia

    Insciente e sem querer passar.

    Ah, a ironia

    De s sentir a terra e o cu

    To belo ser

    Quem de si sente que perdeu

    A alma para os ter!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    ESTA ESPCIE DE LOUCURA

    Esta espcie de loucura

    Que pouco chamar talento

    E que brilha em mim, na escura

    Confuso do pensamento,

    No me traz felicidade;

    Porque, enfim, sempre haver

    Sol ou sombra na cidade.

    Mas em mim no sei o que h

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    PASSOS DA CRUZ

    Esqueo-me das horas transviadas

    O outono mora mgoas nos outeiros

    E pe um roxo vago nos ribeiros...

    Hstia de assombro a alma, e toda estradas...

    Aconteceu-me esta paisagem, fadas

    De sepulcros a orgaco... Trigueiros

    Os cus da tua face, e os derradeiros

    Tons do poente segredam nas arcadas...

    No claustro sequestrando a lucidez

    Um espasmo apagado em dio nsia

    Pe dias de ilhas vistas do convs

    No meu cansao perdido entre os gelos

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    E a cor do outono um funeral de apelos

    Pela estrada da minha dissonncia...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    ENTRE O BATER RASGADO DOS PENDES

    Entre o bater rasgado dos pendes

    E o cessar dos clarins na tarde alheia,

    A derrota ficou: como uma cheia

    Do mal cobriu os vagos batalhes.

    Foi em vo que o Rei louco os seus vares

    Trouxe ao prolixo prlio, sem ideia.

    gua que mo infiel verteu na areia

    Tudo morreu, sem rastro e sem razes.

    A noite cobre o campo, que o Destino

    Com a morte tornou abandonado.

    Cessou, com cessar tudo, o desatino.

    S no luar que nasce os pendes rotos

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Estrelam no absurdo campo desolado

    Uma derrota herldica de ignotos.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    ALM-DEUS

    I / ABISMO

    OLHO O TEJO, e de tal arte

    Que me esquece olhar olhando,

    E sbito isto me bate

    De encontro ao devaneando

    O que ser-rio, e correr?

    O que est-lo eu a ver?

    Sinto de repente pouco,

    Vcuo, o momento, o lugar.

    Tudo de repente oco

    Mesmo o meu estar a pensar.

    Tudoeu e o mundo em redor

    Fica mais que exterior.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Perde tudo o ser, ficar,

    E do pensar se me some.

    Fico sem poder ligar

    Ser, ideia, alma de nome

    A mim, terra e aos cus...

    E sbito encontro Deus.

    ***

    II / PASSOU

    Passou, fora de Quando,

    De Porqu, e de Passando...,

    Turbilho de Ignorado,

    Sem ter turbilhonado...,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Vasto por fora do Vasto

    Sem ser, que a si se assombra...

    O Universo o seu rasto...

    Deus a sua sombra...

    ***

    III/ A VOZ DE DEUS

    Brilha uma voz na noite...

    De dentro de Fora ouvi-a...

    Universo, eu sou-te...

    Oh, o horror da alegria

    Deste pavor, do archote

    Se apagar, que me guia!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Cinzas de ideia e de nome

    Em mim, e a voz: mundo,

    Ser mente em ti eu sou-me...

    Mero eco de mim, me inundo

    De ondas de negro lume

    Em que para Deus me afundo.

    ***

    IV / A QUEDA

    Da minha ideia do mundo

    Ca...

    Vcuo alm de profundo,

    Sem ter Eu nem Ali...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Vcuo sem si-prprio, caos

    De ser pensado como ser...

    Escada absoluta sem degraus...

    Viso que se no pode ver...

    Alm-Deus! Alm-Deus! Negra calma...

    Claro de Desconhecido...

    Tudo tem outro sentido, alma,

    Mesmo o ter-um-sentido...

    ***

    V / BRAO SEM CORPO

    BRANDINDO UM GLDIO

    (Entre a rvore e o v-la)

    Entre a rvore e o v-la

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Onde est o sonho?

    Que arco da ponte mais vela

    Deus?... E eu fico tristonho

    Por no saber se a curva da ponte

    a curva do horizonte...

    Entre o que vive e a vida

    Pra que lado corre o rio?

    rvore de folhas vestida

    Entre isso e rvore h fio?

    Pombas voandoo pombal

    Est-lhes sempre direita, ou real?

    Deus um grande Intervalo,

    Mas entre qu e qu?...

    Entre o que digo e o que calo

    Existo? Quem que me v?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    1

    Erro-me... E o pombal elevado

    Est em torno na pomba, ou de lado?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    2

    EM PLENA VIDA E VIOLNCIA

    Em plena vida e violncia

    De desejo e ambio,

    De repente uma sonolncia

    Cai sobre a minha ausncia.

    Desce ao meu prprio corao.

    Ser que a mente, j desperta

    Da noo falsa de viver,

    V que, pela janela aberta,

    H uma paisagem toda incerta

    E um sonho todo a apetecer?

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    2

    QUINTO IMPRIO

    Vibra, clarim, cuja voz diz.

    Que outrora ergueste o grito real

    Por D. Joo, Mestre de Aviz,

    E Portugal!

    Vibra, grita aquele hausto fundo

    Com que impeliste, como um remo,

    Em El-Rei D. Joo Segundo

    O Imprio extremo!

    Vibra, sem lei ou com lei,

    Como aclamaste outrora em vo

    O morto que hoje vivo - El-Rei

    D. Sebastio!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    2

    Vibra chamando, e aqui convoca

    O inteiro exrcito fadado

    Cuja extenso os plos toca

    Do mundo dado!

    Aquele exrcito que feito

    Do quanto em Portugal o mundo

    E enche este mundo vasto e estreito

    De ser profundo.

    Para a obra que h que prometer

    Ao nosso esforo alado em si,

    Convoco todos sem saber

    ( a Hora!) aqui!

    Os que, soldados da alta glria,

    Deram batalhas com um nome,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    2

    E de cuia alma a voz da histria

    Tem sede e fome.

    E os que, pequenos e mesquinhos,

    No ver e crer da externa sorte,

    Convoco todos sem saber

    Com vida e morte.

    Sim, estes, os plebeus do Imprio;

    Heris sem ter para quem o ser,

    Chama-os aqui, som etreo

    Que vibra a arder!

    E, se o futuro j presente

    Na viso de quem sabe ver,

    Convoca aqui eternamente

    Os que ho de ser!

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    2

    Todos, todos! A hora passa,

    O gnio colhe-a quando vai.

    Vibra! Forma outra e a mesma raa

    Da que se esvai.

    A todos, todos, feitos num

    Que Portugal, sem lei nem fim,

    Convoca, e, erguendo-os um a um,

    Vibra, clarim!

    E outros, e outros, gente vria,

    Oculta neste mundo misto.

    O seu peito atrai, rubra e templria,

    A Cruz de Cristo.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

    2

    Glosam, secretos, altos motes,

    Dados no idioma do Mistrio -

    Soldados no, mas sacerdotes,

    Do Quinto imprio.

    Aqui! Aqui! Todos que so.

    O Portugal que tudo em si,

    Venham do abismo ou da iluso,

    Todos aqui!

    Armada intrmina surgindo,

    Sobre ondas de uma vida estranha.

    Do que por haver ou do que vindo -

    o mesmo: venha!

    Vs no soubesses o que havia

    No fundo incgnito da raa,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Nem como a Mo, que tudo guia,

    Os seus planos traa.

    Mas um instinto involuntrio,

    Um mpeto de Portugal,

    Encheu vosso destino vrio

    De um dom fatal.

    De um rasgo de ir alm de tudo,

    De passar para alm de Deus,

    E, abandonando o Gldio e o escudo,

    Galgar os cus.

    Tits de Cristo! Cavaleiros

    De uma cruzada alm dos astros,

    De que esses astros, aos milheiros,

    So s os rastros.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Vibra, estandarte feito som,

    No ar do mundo que h de ser.

    Nada pequeno justo e bom.

    Vibra a vencer!

    Transcende a Grcia e a sua histria

    Que em nosso sangue continua!

    Deixa atrs Roma e a sua glria

    E a Igreja sua!

    Depois transcende esse furor

    E a todos chama ao mundo visto.

    Hereges por um Deus maior

    E um novo Cristo!

    Vinde aqui todos os que sois,

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Sabendo-o bem, sabendo-o mal,

    Poetas, ou Santos ou Heris

    De Portugal.

    No foi para servos que nascemos

    De Grcia ou Roma ou de ningum.

    Tudo negamos e esquecemos:

    Fomos para alm.

    Vibra, clarim, mais alto! Vibra!

    Grita a nossa nsia j ciente

    Que o seu inteiro vo libra

    De poente a oriente.

    Vibra, clarim! A todos chama!

    Vibra! E tu mesmo, voz a arder,

    O Portugal de Deus proclama

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    Com o fazer!

    O Portugal feito Universo,

    Que rene, sob amplos cus,

    O corpo annimo e disperso

    De Osris, Deus.

    O Portugal que se levanta

    Do fundo surdo do Destino,

    E, como a Grcia, obscuro canta

    Baco divino.

    Aquele inteiro Portugal,

    Que, universal perante a Cruz,

    Reza, ante Cruz universal,

    Do Deus Jesus.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    EMISSRIO DE UM REI DESCONHECIDO

    Emissrio de um rei desconhecido,

    Eu cumpro informes instrues de alm,

    E as bruscas frases que aos meus lbios vm

    Soam-me a um outro e anmalo sentido...

    Inconscientemente me divido

    Entre mim e a misso que o meu ser tem,

    E a glria do meu Rei d-me desdm

    Por este humano povo entre quem lido...

    No sei se existe o Rei que me mandou.

    Minha misso ser eu a esquecer,

    Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

    Mas h! Eu sinto-me altas tradies

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    De antes de tempo e espao e vida e ser...

    J viram Deus as minhas sensaes...

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    EM BUSCA DA BELEZA

    I

    Soam vos, dolorido epicurista,

    Os versos teus, que a minha dor despreza;

    J tive a alma sem descrena presa

    Desse teu sonho, que perturba a vista.

    Da Perfeio segui em v conquista,

    Mas vi depressa, j sem a alma acesa,

    Que a prpria ideia em ns dessa beleza

    Um infinito de ns mesmos dista.

    Nem nossa alma definir podemos

    A Perfeio em cuja estrada a vida,

    Achando-a intrmina, a chorar perdemos.

  • 5/28/2018 Fernando Pessoa - Antologia Po tica

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    O mar tem fim, o cu talvez o tenha,

    Mas no a nsia da Coisa indefinida

    Que o ser indefinida faz tamanha.

    II

    Nem defini-la, nem ach-la, a ela -

    A Beleza. No mundo no existe.

    Ai de quem coma alma inda mais triste

    Nos seres transitrios quer colh-la!

    Acanhe-se a alma porque no conquiste

    Mais que o banal de cada cousa bela,

    Ou saiba que ao ardor de querer hav-la -