fernando da costa tourinho filho - processo penal, volume 1

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Capa de Sylvia Tourinho FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO m p f= -11 F» R .00.1 #N 3 REGISTRO PATRIMONIAL N2 '469 Obs nao retire esta etiqi-teta PROCESSO PENAL WVOLUME 21.' edição revista e atualizada . 1999 Editora Q0 Saraiva ISBN 85-02-02184-2 obra completa ISBN 85-02-02183-4 volume 1 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tourinho Filho, Fernando da Costa, 1928- Processo penal / Fernando da Costa Tourinho Filho. - 21. ed. rev. e atual. - São Paulo : Saraiva, 1999. Obra em 4 v. Bibliografia. 1. Processo penal 2. Processo penal - Brasil 1. Título. 98-5620 i 1 CDU-343.1 índice para catálogo sistemático: 1. Processo penal : Direito penal 343.1

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Page 1: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

Capa de Sylvia Tourinho

FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO

m p f= -11 F» R .00.1 #N 3

REGISTRO PATRIMONIAL N2 '469 Obs nao retire esta etiqi-teta

PROCESSO PENAL

WVOLUME

21.' ediçãorevista e atualizada

. 1999

EditoraQ0 Saraiva

ISBN 85-02-02184-2 obra completa ISBN 85-02-02183-4 volume 1

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Tourinho Filho, Fernando da Costa, 1928-Processo penal / Fernando da Costa Tourinho Filho. - 21. ed. rev. e atual. - São Paulo : Saraiva, 1999.

Obra em 4 v.Bibliografia.

1. Processo penal 2. Processo penal - Brasil 1. Título.

98-5620

i

1

CDU-343.1

índice para catálogo sistemático:1. Processo penal : Direito penal 343.1

5033

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Page 3: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

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A Sheyla, Hans Marcos, Fernando Erik e Sofia Stephanie, rneus netos.

0 AUTOR

1

1

Indice

CAPíTULO 1

NOÇõES PRELIMINARES

1. 0 litígio ............................................................................................2. Formas compositivas do litígio ........................................................ 3. 0 monopólio da administração da justiça. 0 processo .................. 4. 0 processo absorveu as demais formas compositivas do litígio? .. 5. 0 jus puniendi .................................................................................. 6. 0 processo como complexo de atos e como relação jurídica ......... 7. 0 Processo Civil e o Processo Penal ............................................... 8. 9. 10. li. 12. 13. 14. 15.

Unidade ou dualidade do Direito Processual? ...................... Conceito de Direito Processual Penal ............. Autonomia do Direito Processual Penal ................................ Instrumentalidade do Direito Processual ......................................... Nomenclatura ....................... Finalidade .................................................. Posição no quadro geral do Direito ................................................. Relação do Direito Processual Penal com outros ramos do Direito e ciências auxiliares ........................................................ 16. Princípios que regem o Processo Penal ........................................... 17. Verdade real ......................................................................... 18. 0 princípio da imparcialidade do Juiz ............................... 19. 20. 21.

Princípio da igualdade das partes ....................................................

Page 4: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

0 princípio da persuasão racional ou do livre convencimento .......Princípio da publicidade ................

111218

3540404345

46

Vil

i

1

i

22. Princípio do contraditório 4823. Princípio da iniciativa das partes 5124. Ne eat judex ultra petita partium 5325. Identidade física do Juiz 5926. Princípio do devido processo legal 60

27. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos6128. Princípio da inocência 6429. Princípio do favor rei 7430. Princípio do duplo grau de jurisdição 75

CAPíTULo 2

DESENVOLVIMENTO HISTóRICODO PROCESSO PENAL

1. 0 Processo Penal na Grécia 792. 0 Processo Penal em Roma 803. 0 Processo Penal entre os germânicos 834. 0 Processo Penal canônico 845. 0 sistema inquisitivo nas legislações laicas 856. As inovações após a Revolução Francesa 887. Tipos de Processo Penal 908. Direito pátrio 94

CANTULo 3

EFICACIA DA LEI NO TEMPO

1. Vacatio legis 972. Ab-rogação. Derrogação. Ab-rogação expressa e tácita 97

Page 5: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

3. Princípio da retroatividade 984. Princípio da irretroatividade. Ultra-atividade 995. Eficácia da lei penal no tempo 1016. Eficácia da lei processual penal no tempo 110

CAPíTULo 4

EFICÁCIA DA LEIPROCESSUAL PENAL NO ESPAÇO

1. Eficácia da lei penal no espaço 121

VIII

2. 0 princípio da territorialidade. 0 da nacionalidade. 0 da prote-ção. 0 da Justiça Penal

universal ....................................................3. Lugar do crime .................................................................................4. Tempo do crime ................................................................................5. Lei processual penal no espaço .......................................................6. Ressalvas ..........................................................................................

-9-

CAPíTULo 5

INTERPRETAÇÃO

1. Noções ..............................................................................................2. Interpretação autêntica .....................................................................3. Interpretação doutrinal .....................................................................4. Interpretação judicial .......................................................................5. Interpretação gramatical ..................................................................6. Interpretação lógica .........................................................................7. Interpretação sistemática .................................................................

Page 6: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

8. Interpretação histórica .....................................................................9. Interpretação extensiva e restritiva .................................................10. Interpretação progressiva .................................................................11. Interpretação analógica ....................................................................12. Analogia ...........................................................................................

CAPíTULo 6

FONTES DO DIREITO PROCESSUAL PENAL

1 . Sentido da palavra "fonte" .............................................................. 2. As fontes formais e substanciais ..................................................... 3. Classificação das fontes formais ..................................................... 4. Modalidades das fontes diretas ........................................................ 5. Fontes orgânicas ............................................................................... 6. Fontes indiretas ................................................................................ 7. Fontes secundárias ........................................................................... 8.

122 130 136 137 141

165 166 166 167 167 168 169 169 170 171 172 173

179 179 180 180 181 181 183 186

1X

CAPíTULo 7

§ V- DA PERSECUÇÃO

i

1.2.3.4. Polícia de Segurança ...............................................................

Page 7: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

......... 5. Polícia Civil ...................................................................................... 6. Do inquérito policial ........................................................................ 7. Finalidade do inquérito .................................................................... 8. Inquéritos extrapoliciais .................................................................. 9. 10. li. 12.

Da investigação preparatória ...........................................................

0 inquérito é indispensável? ...........................................................Natureza do inquérito ......................................................................Incomunicabilidade ..........................................................................

§ 2." - DA PERSECUÇÃO

1. Notitia criminis ................................................................................ 2. Início do inquérito ............................................................................3. Instauração "de ofício" ....................................................................4. Instauração por meio de requisição .................................................5. Instauração por meio de requerimento ............................................6. Conteúdo do requerimento ...............................................................7. A Autoridade Policial tem o dever de instaurar inquérito? ............S. Pode a Autoridade Policial indeferir requisição do Ministério Pú-blico? ................................................................................................

9. Providência que o ofendido pode tomar ..........................................10. A delatio criminis ............................................................................11. Inquérito policial nos crimes de ação penal pública condicionada12. A hipótese de requisição do Ministro da Justiça ............................

§ 3."- DA PERSECUÇAO

Page 8: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

1. 0 inquérito policial nos crimes de ação privada ............................2. A mulher casada e o direito de queixa ............................................3. Prazo para se requerer a instauração de inquérito .........................4. Conteúdo do requerimento ...............................................................

X

191 193 194 194 195 196 198 199 200 206 208 215

217 218 218 221 222 224 224

225 226 227 230 235

237 238 238 239

§ 4."-1 DA PERSECUÇÃO

2. Apreensão de objetos e instrumentos do crime ...............................

3. Da busca e apreensão ....................................................................... 4. Da ouvida do ofendido ..................................................................... 5. Da ouvida do indiciado .................................................................... 6. D99econhecimento ........................................................................... 7. Das acareações ................................................................................. 8. Dos exames periciais ....................................................................... 9. Reprodução simulada .......................................................................10. A identificação .................................................................................11. Tipos e subtipos ................................................................................12. Pode o indiciado recusar-se a ser identificado? ..............................

13. Folha de antecedentes ......................................................................

§ 5."- DA PERSECUÇÃO

Page 9: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

1. Prisão em flagrante . 2. 0 curador no auto de prisão em flagrante .......................................3. Conclusão do inouérito __

6. Arquivamento ........

7. Juizado de Instrução ........................................................................

CAPfTULo 8

DA ACÁO

1. Noções gerais ...................................................................................2. Fundamento do direito de açã . o e base constitucional ....................

3. Ação penal --***

4. Fundamento constitucional da ação penal .......................................5. Natureza jurídica do direito de ação---.............................................6. Windscheid e Muther .......................................................................7. Adolph Wach e a autonomia do direito de ação .............................

8. PlószeDegenkolb

240 243 244 246 247 249 249 251 254 254 260 263 266

267 269 269 273 279 280 282

285 288 290 292 293 295 296 297

X1

9. A teoria do direito potestativo 29810. 0 conceito de direito de ação 30011. 0 direito de ação no plano estritamente processual 30112. 0 conceito de ação penal 305

§ 2." - DA AÇAO PENAL

1. Enquadramento da ação penal no sistema legal normativo ............2. A influência do Código de Instrução Criminal da França ..............3. A orientação do legislador pátrio de 1890 ......................................

Page 10: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

4. A orientação nos trabalhos legislativos de 1940 ............................5. A opinião de Jorge A. Romeiro e de Vicente de Azevedo .............6. Críticas de Frederico Marques ........................................................7. Normas penais e processuais ...........................................................8. Classificação da ação penal .............................................................9. Classificação subjetiva ....................................................................10. Razão de ser da divisão da ação penal e da subdivisão da ação

penal pública ....................................................................................11. Subdivisão da ação penal pública ...................................................12. Ação penal pública incondicionada .................................................13. Classificação quanto à pretensão ....................................................

§ 3." - DA AÇÃO PENAL PúBLICA CONDICIONADA

1. Ação penal pública condicionada ....................................................

2. Ação penal pública condicionada à representação .........................3. Razão de ser .....................................................................................4. Crítica ...............................................................................................5. Crimes cuja ação penal depende de representação .........................6. Natureza jurídica da representação .................................................

§ 4." - DA AÇAO PENAL PúBLICA CONDICIONADA

308309309309309310310311316

317320322

Page 11: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

331

332332333334335336

1. Ação penal pública condicionada 3442. Representação 3453. A quem é dirigida a representação? 3454. Quem pode fazer a representação? 3475. 0 ofendido incapaz e sem representante legal 349

x11

6. Natureza jurídica do curadOr especial ............................................. 7. Cessação da atividade do curador ................................................... 8. Morte do ofendido ............................................................................ 9. Retratação .........................................................................................10. E possível a retratação depois do oferecimento da denúncia? .......11. E possível a retratação da retratação? ............................................12. A Wssoa que faz a representação é obrigada a definir juridica-.46!5mente o fato? .................................................................................... 13. Eficácia objetiva ..............................................................................

14. Prazo para a representação ..............................................................

15. É possível a representação se o representante legal veio a saber quem foi o autor do crime quando a ofendida, que já o sabia, estava com mais de 18 anos e 6 meses? ..........................................16. Prazo para a representação na hipótese do § 1.' do art. 24 do CPP

17. Prazo para a representação nos crimes de imprensa ......................18. Como provar que o titular do direito de representação soube quem foi o autor do crime nesta ou naquela data? .........................

19. Como se conta o prazo para a representação? ................................

20. Ação penal nos crimes contra os costumes .....................................

Page 12: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

21. Requisição do Ministro da Justiça ..................................................

§ 5." - INíCIO DA AÇÃO PENAL PúBLICA

1. Como se inicia a ação penal pública condicionada ou incondicio-

2. Instante inicial da ação penal pública .............................................3. Conteúdo da denúncia ......................................................................4. Prazo para o oferecimento da denúncia ..........................................5. Denúncia fora do prazo ....................................................................6. Devolução do inquérito ....................................................................7. Extinção da punibilidade .................................................................8. Guarda em cartório ..........................................................................9. Inviabilidade da relação processual ................................................10. Arquivamento do inquérito ..............................................................

350 350 350 352 353 354

355 355 356

359 361 362

362 363 366 373

380 381 382 391 395 396 399 399 399 400

XIII

§ 6." - DA AÇÃO PENAL PRIVADA

1. Noções gerais .................................................................................... 2. Distinção entre ação penal pública e ação penal privada .............. 3. Críticas à ação penal privada ........................................................... 4. Os crimes de ação penal privada no Código atual .......................... 5. Princípios ........................................................................................... 6. Quem pode promovê-

Page 13: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

la? ................................................................... 7. A mulher casada pode exercer o direito de queixa? ....................... 8. Pessoas jurídicas ................................................................................ 9. Prazo ................................................................................................... 10. li. 12. 13. 14.

0 prazo na hipótese do art. 31 ......................................................... Contagem do prazo ............................................................................ Divisão da ação penal privada ......................................................... * morte do cônjuge ofendido na ação penal privada personalíssima..* ofendido incapaz e o direito de queixa na ação penal privadapersonalíssima. ...................................................................................

15. Despesas judiciais .........

§ 7." - OUTROS TIPOS DE AÇÃO PENAL

1. Ação penal privada subsidiária da pública ..................................... 2. Quando ocorre ...................................................................................3. É inovação do CPP de 1942? ...........................................................4. Prazo para oferecimento da queixa ..................................................5. Requerido o arquivamento dos autos do inquérito, poderá, aindaassim, o ofendido oferecer queixa substitutiva da denúncia? ........ 6. Ação penal nos crimes falimentares .................................................7. Ação penal popular ...........................................................................8. Ação penal ex officio ........................................................................9. Outras modalidades de ação penal ...................................................

§ 8." - INíCIO DA AÇÃO PENAL PRIVADA

416 417 418 421 423 428 430 433 436 439 440 442 443

443 445

450 451 451 452

455 458 462 470 477

1. Como se inicia a ação penal privada? 4812. Ouvida do órgão do Ministério Público 4823. A queixa poderá ser oferecida pelo próprio ofendido? 483

Page 14: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

4. Prazo 485

XIV

5. Devolução do inquérito 4866, Arquivamento 486

1

§ 9.* - CONDIÇOES DA AÇAO

1. Introdução ......................................................................................... 2. 0 policiamento do exercício do direito de ação .............................3. As pndições da ação .......................................................................4. ~s-c-ondições da ação no Processo Penal ........................................5. As condições genéricas .................................................................... 6. As condições específicas .................................................................

§ 10 - REJEIÇÃO DA DENúNCIA OU QUEIXA

487 487 489 492 492 506

CANTULO 9

§ I."- DA EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

1. A rejeição da denúncia ou queixa e a extinção da punibilidade .... 2. Que se entende por extinção da punibilidade? ................................ 3. As causas extintivas da punibilidade .............................................. 4. 0 art. 107 do CP esgota todas as causas extintivas da punibili-

5. Morte do agente ...............................................................................6. Anistia, graça e indulto ....................................................................7. Anistia ...............................................................................................8. Graça e indulto .................................................................................9. Abolifio criminis ..............................................................................

Page 15: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

10. Prescrição, decadência e perempção ...............................................11. Prescrição .........................................................................................12. Prescrição retroativa ........................................................................

13. Decadência.......................................................................................

1. Rejeição da peça acusatória 5132. Aspecto formal da denúncia ou queixa 5143. Viabilidade do direito de ação 5164. Viabilidade da relação processual 5205. Recurso 522

525 526 535 536 539 545 546 546 554 563

XV

§ 2." - DA EXTINÇAO DA PUNIBILIDADE

i

DivisãoQuem pode conceder o

perdão? ........................................................Aceitação do

perdão ..........................................................................

Aceitação processual e extraprocessual. ...........................................

Extensão do perdão ...........................................................................

Perdão e renúncia ..............................................................................

Perempção ..........................................................................................12. Quais as causas que determinam a perempção? ..............................13. Perempção, renúncia e perdão ..........................................................14. Retratação ..........................................................................................15. Subsequens matrimonium ................................................................

Page 16: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

16. Subsequens matrimonium cum tertio ..............................................17. 0 perdão judicial, nos casos previstos em18.

1. Conceito de renúncia ............2. Renúncia expressa e renúncia tácita ................................................

3. Extensão ...................................4. Perdão .................................................................................................5.6.7.8.9.10.li.

0 pagamento do tributo no crime de sonegação fiscal ...................

APÊNDICE

567568572573574575576577578579580580588588593597600602

Aditamento à queixa 611Arquivamento 627

BIBLIOGRAFIA

XVI

capítulo 1

1. 0 litígio

NoçOes Preliminares

Page 17: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

SUMÁRIO: 1 - 0 litígio. 2. Formas compositivas do litígio. 3. 0 monopólio da administração dajustiça. 0 processo. 4. 0 processo absorveu as demais formas compositivas do litígio? 5. 0 jus puniendi. 6. 0 processo como complexo de atos e como re-lação jurídica. 7. 0 Processo Civil e o Processo Penal. 8. Unidade ou dualidade do Direito Processual? 9. Conceito de Direito Processual Penal. 10. Autonomia do Direito Processual Penal. 11. Instrumentalidade do Direito Processual. 12. Nomenclatura. 13. Finalidade. 14. Posição no quadro geral do Direito. 15. Relação do Direito Processual Penal com outros ramos do Direito e ciências auxiliares. 16. Princípios que regem o Processo Penal. 17. Verdade real. 18. 0 princípio da imparcialidade do Juiz. 19. Princípio da igualdade das partes. 20. 0 princípio da persuasão racional ou do livre convencimento. 21. Princípio da publicidade. 22. Princípio do contraditório. 23. Princípio da iniciativa das partes. 24. Ne eatjudex ultrapetitapartium. 25. Identidade física do Juiz. 26. Princípio do devido processo legal. 27. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos. 28. Princípio da inocência. 29. Princípio do favor rei. 30. Princípio do duplo grau de jurisdição.

0 homem não pode viver senão em sociedade. As sociedades são organizações de pessoas para a obtenção de fins comuns, em benefício de cada qual. Mas, se não houvesse umpoder, nessas sociedades, restrin-

1

gindo as condutas humanas, elas jamais subsistiriam. Cada um faria o que bem quisesse e entendesse, invadindo a esfera de liberdade do outro, e, desse modo, qualquer agrupamento humano seria caótico. Daí o surgimento do Estado, com os seus indefectíveis elementos: povo, território e governo. Num determinado espaço do globo terrestre, cada povo "exerce um poder, exclusivo e supremo, de organização da sua vida". Uma pequena minoria, escolhida segundo critérios varios, passa a dirigir os destinos do povo.

Visando à continuidade da vida em sociedade, à defesa das liberdades individuais, em suma, ao bem-estar geral, os homens organizaramse em Estado. Desde então eles se submeteram às ordens dos governantes, não mais fazendo o que bem queriam e entendiam, mas o que lhes era permitido ou não proibido.

E verdade que a origem do Estado é quase tão velha quanto a fome,

e, até hoje, os sociólogos não chegaram a um acordo sobre o seu nascimento. Walter Bagehot, Spencer, Lowie, Suniner Maine, Gumplowics, Razenhofer, Oppenheimer, Conite, Jacques Novicow, Giddings, Albion Small, Haeys e outros tantos sociólogos e pensadores não chegaram a um denominador comum sobre o surgimento do Estado. Como surgiu? Que forças contribuíram para a sua formação? Ele se desenvolveu, gradualmente, a partir da família? Encontrou ele seu embrião na disciplina que havia na família patriarcal? Na luta entre as classes pela propriedade privada? Na conquista de

Page 18: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

um grupo sedentário por outro nômade? Teve origem na guerra, como queriam Machiavelli e Bodin?

Para o nosso estudo, não nos interessa saber como e quando surgiu o Estado. 0 certo e recerto é que ele existe como uma realidade irreversível. Evidentemente, nos seus primeiros anos, todos os poderes se enfeixavam nas mãos de uma só pessoa, como no regime tribal, na família de tipo patriarcal. Depois, com o crescimento do agrupamento humano, por certo houve necessidade de distribuição de funções, e, finalmente, num estágio mais avançado, os órgãos que desempenhavam as funções mais importantes, as funções básicas, atingiram a posição de Poderes.

A transformação foi paulatina.

Para atingir os seus fins, as funções básicas do Estado - legislativa, administrativa e jurisdicional - são entregues a órgãos distintos: Legislativo, Executivo e Judiciário. Tal repartição, sobre ser necessária, em virtude das vantagens que a divisão do trabalho proporciona, torna-

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se verdadeiro imperativo, para que se evitem as prepotências, os desmandos, o aniquilamento, enfim, das liberdades individuais. Insuportável seria viver num Estado em que a função de legislar, a de administrar e a de julgar estivessem enfeixadas nas mãos de um so orgão.

Três, pois, os órgãos que se altearam a Poderes.

Essa tripartição, contudo, não é conquista muito antiga. Até há pouco tempo havia Estados que desconheciam essa tríade de Poderes, embora recoalÉcessem e julgassem necessárias as funções que lhes são afetas. Havia, então, órgãos exercendo funções jurisdicionais, legislativas e administrativas sob o comando de um só homem, como se o Estado fosse uma grande orquestra regida pela batuta de um maestro. Montesquieu refere-se à Turquia do seu tempo, onde os três "Poderes" eram reunidos na cabeça do "sultão", advindo daí tremendo despotismo.

Em certos Estados em formação, legisla-se arbitrariamente, administra-se discricionariamente, e a justiça é feita segundo a vontade dos governantes. À evidência, não há aí a menor segurança jurídica. Daí a necessidade da tripartição dos Poderes. Não há nem deve haver um Chefe, como um Todo-Poderoso. A soberania nacional, isto é, "o poder supremo, exclusivo e autodeterminante de dar ordens incontrastáveis, sancionadas pela força", é exercida pelos três Poderes, ficando cada qual nos estreitos círculos de suas atribuições: um legislando, outro administrando e o terceiro julgando, aplicando a lei.

Eles devem ser independentes e harmônicos entre si. Nenhum deles pode sobrepor-se aos demais dentro nos seus círculos de atribuições. Não há nem deve haver hierarquia entre eles. Cada qual atua dentro nas suas respectivas esferas.

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0 Legislativo não pode elaborar leis que afrontem a Constituição. Se o fizer, cabe ao Judiciário julgá-las sem eficácia. 0 Executivo não pode cometer arbitrariedades e desmandos. Mas, se isso acontecer, encontrará um basta partido do Judiciário, tal como ocorre com a concessão de habeas corpus, quando agentes do Executivo levam a efeito medidas'irmalidadesrestritivas da liberdade individual, sem a observância das legais.

A função do Legislativo é legislar, elaborando leis que venham ao encontro dos reclamos da sociedade, sem ferir a Constituição. A do Executivo, administrar, observando os preceitos legais. A do Judiciário, julgar, aplicando as leis aos casos concretos.

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E, assim, os três Poderes, como emanação da soberania nacional, desempenham as funções estruturais e básicas do Estado: legislação, administração e jurisdição. Um legisla, outro administra e o terceiro julga.

Quando o povo se organizou em Estado, a primeira preocupação foi a de dar-lhe a necessária estruturação. Essa estruturação orgânica do Estado outra coisa não é senão a sua própria Constituição, a sua Lei Maior, a Carta Magna. Quem traça os princípios que devem disciplinar a vida do Estado? Quem delineia sua estrutura? Evidente que nas sociedades de antanho, de diminuta população, era o próprio povo que se guindava à posição de "poder constituinte", para projetar a estrutura política do agrupamento humano respectivo.

Hoje, de modo geral, esse poder continua sendo do povo, exercido, contudo, em virtude da explosão demográfica, por seus representantes, eleitos para tal fim. Eles se reúnem em Assembléia Constituinte e elaboram a Constituição do Estado. Outras vezes surge um movimento político-jurídico no Estado, e o poder de delinear sua estrutura cabe ao Poder emergente daquele movimento. Então, na Magna Carta, distribuemse as funções básicas do Estado (legislativa, executiva e judiciária) a órgãos distintos que se alçam à categoria de Poder, porquanto as funções que cada um deles exerce constitui uma delegação direta do povo. Assim, se o próprio povo, por meio dos seus representantes, delegou a determinado órgão a função de legislar, de administrar e de julgar, é evidente que cada um deles é soberano dentro no seu círculo de atribuições. A soberania, poder supremo do Estado, é exercida por aqueles três Poderes, sem que ela perca o sentido da sua unidade. Apenas cada Poder exerce as atividades que lhe são próprias, exclusivamente no interesse e proteção das liberdades individuais e do bem-estar geral.

Por aí se vê que os Poderes não podem ser hierarquizados. Se fossem, os três redundariam num só: o mais alto, o que estivesse na cumeada. Os demais seriam simples órgãos incumbidos de

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determinadas tarefas. Não seriam Poderes, porquanto não poderiam opor-se e contrapor-se àquele que estivesse no píncaro, isto é, ao mais graduado. 0 elemento específico do Poder, já se disse, "é a capacidade de opor-se a outro qualquer Poder quando um venha a invadir a esfera de atribuição do outro".

Para manter a harmonia no meio social e, enfim, para atingir os seus objetivos, um dos quais se alça à posição de primordial - o bemestar geral -, o Estado elabora as leis, por meio das quais se estabelecem normas de conduta, disciplinam-se as relações entre os homens e

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regulam-se as relações derivadas de certos fatos e acontecimentos que surgem na vida em sociedade. Essas normas, gerais e abstratas, dispoem, inclusive, sobre as conseqüências que podem advir do seu descumprimento. Em face de um conflito de interesses, dês que juridicamente relevante, a norma dispõe não só quanto à relevância de um deles, como também quanto às conseqüências da sua lesão.Tais normas são, pois, indispensáveis, para que se saiba o que se pode jo-que não se pode fazer. 0 homem precisa, pois, contribuir para que a sociedade não se destrua, não se aniquile, porquanto sua destruição implica seu próprio aniquilamento. Se ele precisa da sociedade, obviamente deve pautar seus atos de acordo com as normas de conduta que lhe são traçadas pelo Estado, responsável pelos destinos, conservação, harmonia e bem-estar da sociedade.Entretanto, conforme vimos, não é isso e, que ocorre. Os conflitos de interesses, dos mais singelos aos mais complexos, verificam-se com freqüência. Por outro lado, quando "o sujeito de um dos interesses em conflito encontra resistência do sujeito do outro interesse", fala-se em lide. Esta é, pois, na difundida lição de Carnelutti, um conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita (cf. Sistema del diritto processuale civile, Padova, 1936, v. 1, p. 40).

Ainda segundo o ensinamento do mestre, denomina- se Pretensão a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse proprio. Na lide, há um interesse subordinante e um subordinado. Um que deve prevalecer, por ser protegido pelo Direito, e outro que deve ser subordinado, por lhe faltar a tutela jurídica.

Se Caio deve a Tício e não quer pagar, diz-se que Tício tem uma pretensão, porquanto pode exigir que o interesse de Caio em não lhe pagar (interesse subordinado) se subordine ao seu (que é subordinante), que é o de receber. Como, nesse exemplo, a pretensão de Tício está encontrando resistência, diz-se que há litígio ou lide.

Mas pouca importância teria essa tarefa do Estado em estabelecer normas de conduta aos seus co-associados com a ameaça de uma sanção, se, porventura, não conseguisse um modo razoável para solucionar esses conflitos de interesses que surgem a todo instante na vida em sociedade. E os conflitos se resolvem e ficam solucionados fazendo-se prevalecer o interesse que realmente for tutelado pelo direito objetivo.

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Estabelecer as normas de conduta que devem ser observadas por todos é tarefa do Estado-Legislação, isto é, do Poder incumbido de ela-

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borar as leis reguladoras e disciplinadoras dos fatos e relações emergentes da vida, como as relações decorrentes do casamento, da propriedade, do comércio etc. Ao Poder Legislativo cumpre, pois, elaborar as normas disciplinadoras dessas relações (normas civis, comerciais, trabalhistas, penais etc.), surgindo, assim, conforme pondera Manzini, uma relação de sujeição geral, pois todos quantos se encontrem no território do Estado estão obrigados à observância de suas leis.

Mas de nada valeriam essas nor~ias se o legislador não cominasse sanções àqueles que, porventura, viessem a transgredi-Ias. Para as infrações mais graves, sanções mais severas; para os ilícitos menos graves, sanções mais brandas.

Assim, por exemplo, estabelece o legislador pátrio, no art. 1.275 do CC, que "o depositário, sem licença expressa do depositante, nãopode servir-se da coisa depositada". Esta é a norma de comportamento. E se, por acaso, dela servir-se sem assentimento expresso do depositante? Ficará sujeito a uma sanção prevista no mesmo corpo do citado dispositivo legal: responderá por perdas e danos. Sanção branda, de natureza civil.

Se alguém, numa rodovia, ultrapassa o limite legal, sujeita-se a multa. Sanção branda, de natureza administrativa.

Entretanto, no meio social, praticam-se muitos atos que afetam sobremaneira a vida em sociedade, pondo em risco sua propria segurança. São as infrações penais, condutas contrárias ao direito e que, por sua gravidade, são punidas severamente. Sua catalogação não fica ao belprazer do legislador. Este, obviamente, observa que determinadas condutas se desviam daquilo que, em geral, é aceito pelo grupo, e, dada a sua gravidade e natureza anti-social, exigem uma sanção mais ou menos severa: é a pena. Cabe, pois, ao legislador observar, no meio social, quaisas condutas anti-sociais, crigindo-as à categoria de infrações penais. É claro que esse conceito de anti-sociabil idade de determinada conduta varia no tempo e no espaço. Em alguns países orientais, a poligamia é um indiferente penal. Aqui, infração penal. Entre nós, até há pouco tem-1

po, plantar maconha não constituía crime. Depois, observou o legislador que o uso de substâncias capazes de determinar dependência física ou psiquica grassou e se proliferou de tal forma, que outra opção

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não teve senão estabelecer medidas severas para evitar a propagação do mal, punindo, também, aquele que plantasse a cannabis sativa L.

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0 aborto é permitido em algumas legislações e, em outras, não. Mas algumas condutas são de tão grande teor de anti- sociabilidade que as legislações dos povos civilizados as elevam à categoria de infrações penais. Homicídio, latrocínio, por exemplo.

0 Estado, então, por meio do Poder Legislativo, procurou, inspirado no grau de civilização do seu povo, proibir a prática de determinados atos, de certas condutas humanas, cominando sanções severas àquele que vÁÉ'a praticar o fato incriminado. A sanção é a pena, que tanto poderá ser privativa de liberdade como patrimonial, dependendo da gravidade do fato punível.Dessa forma, dispõe o CP que matar alguém constitui infração penal, e a sanção é esta: pena de reclusão de 6 a 20 anos.

Se todos nós nos subordinássemos às ordens abstratas das leis que tutelam nossos interesses e bens, haveria uma "geral e espontânea submissão dos interesses à ordem jurídica", e desnecessária seria qualquer preocupação do Estado em restaurá-la.

Entretanto, como sabemos, não é isso o que ocorre. Freqüentemente surgem no meio social numerosos conflitos de interesses em virtude de descumprimento da norma de comportamento inserta no Praeceptum juris. Ora é Caio que foi despedido injustamente, e o empregador não lhe quer pagar a indenização devida; ora é o inquilino que, a despeito de estar atrasado nos alugueres. não quer desocupar o prédio locado; ora é o depositário que se serviu da coisa depositada, sem expressa autorização do depositante, estragou-a e não quer ressarcir os prejuízos. E, assim como esses, muitos outros casos.

Tais situações são denominadas conflitos de interesses e de interesses juridicamente protegidos (pois a lei os tutelou com a ameaça de uma sanção).A palavra interesse, no particular, expressa os desejos, as exigências, os anseios, as aspirações, a cobiça, a ambição a respeito de um bem da vida. A razão entre o homem e os bens, ensina Moacyr Atriaral Santos, ora maior, ora menor, é o que se chama interesse. Muitas e muitas vezes, em face de dois bens, o homem tem interesse em ambos. Se puder satisfazer e realizar aqueles dois interesses, melhor para ele. Não o podendo, deve sacrificar o que não lhe trouxer uma utilidade imediata. Às vezes, entretanto, há dois sujeitos pretendendo satisfazer e realizar o interesse quanto ao mesmo bem. Fala-se, então, em conflito de interesses.

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2. Formas compositivas do litígio

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0 emprego da força maior devia ter sido a forma mais usual para a solução do conflito. Era a "autodefesa". Mas, sobre ser uma solução egoísta, era por demais perigosa, pois, às vezes, como preleciona AlcalàZamora, o ofendido podia ser mais fraco que o autor do ataque e, assim, longe de obter a reparação do delito ou do dano sofrido, podia experimentar um novo e mais grave ataque. E se o prejudicado não reagisse? E se por ele ninguém assumisse a defesa-vingança? A justiça privada se traduziria em impunidade (cf. Derecho procesal penal, v. 1, p. 10).E até hoje, conforme observa Calamandrei, ante a ausência de um poder supra-estatal capaz de impor com a força as próprias decisões aos Estados, a extrema ratio para resolver os conflitos é a guerra.Assim, também, na co-associação primitiva, o único meio de defesa residia na força. Evidente que a violência armada, o emprego da força, "como meio de defesa do direito, implica a negação de todo o direito e de toda convivência social pacífica". Mais: seria uma temeridade deixar aos próprios interessados a incumbência de resolverem por si sós os próprios conflitos, porquanto ficaria "excluída a possibilidade de uma decisão imparcial". Poderia haver excessos. E se um dos litigantes fosse mais fraco? Haveria então impunidade. Acentue-se com Calmon de Passos: onde a decisão do conflito se entrega à força dos competidores, o mais forte tem sempre razão.Por isso mesmo dizia La Fontaine: "La raison du plus fort est toujours Ia meilleure"... Em vez do lema silent leges inter arma, o que deve prevalecer, na lição de Cícero, é o cedant arma togae...Outro meio para a solução dos litígios era a "composição", ou, na linguagem de Carnelutti, a "autocomposição". Pela economia de despesas, de gastos, seria uma forma excelente. Todavia a "autocomposição", embora vigente, ainda hoje, para numerosos casos, não pode ser estendida à generalidade dos conflitos, uma vez que, com freqüência, "envolve uma capitulação do litigante de menor resistência". Ademais, e se um dos conflitantes não quisesse a composição?

3. 0 monopólio da administração da justiça. 0 processo

Era preciso, destarte, que a composição, a solução do litígio (e por solução de litígio se entende a aplicação da vontade concreta da lei, fa-

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zendo prevalecer o interesse tutelado pelo direito), se fizesse de maneira pacífica e justa. Era preciso, também, que tal função (a de solucionar o litígio) ficasse a cargo de um terceiro. Mas quem, no meio

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social, poderia desincumbir-se desse mister? Não bastava ser um terceiro, um árbitro enfim. Era preciso, antes de mais nada, que se tratasse de um terceiro forte demais, de modo a tornar sua decisão respeitada e obedecida por todos, principalmente pelos litigantes.Cèmo se percebe, somente o Estado é que podia ser esse terceiro. Então o Estado chamou a si, avocou a tarefa de administrar justiça, isto e, a tarefa de aplicar o direito objetivo aos casos concretos, dando a cada um o que é seu. Os litígios afetavam e afetam sobremaneira a segurança da ordem jurídica, e, assim, para manter a ordem no meio social, para restaurar a ordem jurídica quando violada, a justiça - arte de dar a cada um o que e seu - passou a ser exercida, administrada pelo Estado.Foi, pois, pela necessidade de pacificar o grupo e de "restabelecer, em benefício dele, a ordem jurídica, ameaçada ou violada, que o Estado interveio no campo da administração da justiça".

Essa intervenção, entretanto, ocorreu paulatina e gradativamente. A princípio, o Estado disciplinou a "autodefesa". Mais tarde, despontou em algumas civilizaçoes sua proibição quanto a certas relações, a certos conflitos. E, assim, aos poucos, foi-se acentuando a intervençao do Estado, culminando por vedá-la. Não de todo, como veremos adiante, mas vedando-a. No decreto de Marco Aurélio, castigava-se com a perda de direito o credor que, sem recorrer ao Juiz, fizesse pagar a dívida para si com o emprego da força (quisquis igiturprobatus mihi fuerit rem ullam debitoris vel pecuniam debitam non ab ipso sibi sponte datam sine ullo judice temere possidere vel accepisso, isque sibi jus in eam dixisse: jus crediti non abebit). Esclarece Chiovenda que, nas leis de Hamurabi, notavam-se, também, enérgicas sanções contra a violência privada (cf. Instituições de direito processual civil, Saraiva, 1965, v. 1, p. 38).

Aquelas proibições de "autodefesa" para determinados litígios foram-se generalizando até chegar à proibição total, "como uma das premissas fundamentais sobre que assenta o edifício constitucional do Estado".

Hoje, portanto, somente o Estado é que pode dirimir os conflitos de interesses. Daí dizer Graf Zu Dolma que o Estado detém o monopólio

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da administração da justiça. E tanto isso é exato que em todas as legislações existe norma semelhante àquela do art. 345 do nosso CP: é proibido fazer justiça com as próprias mãos, embora a pretensão seja legítima. Só o Estado, e exclusivamente o Estado, é que pode administrá-la. Daí se infere que, detendo ele o monopólio da administração dajustiça, surge-lhe o dever de garanti-Ia.Desse modo, se apenas o Estado é que pode administrar justiça, solucionando os litígios, e ele o faz por meio do Poder Judiciário, é óbvio que, se alguém sofre uma lesão em seu direito, estando impossibilitado de fazê-lo valer pelo uso da força, pode dirigir-se ao Estado, representado pelo Poder Judiciário, e dele reclamar a prestação jurisdicional, isto é, pode dirigir-se ao Estado-Juiz e exigir dele

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se faça respeitado o seu direito. A esse direito de invocar a garantia jurisdicional chama-se direito de ação.Por essas razões é que o Estado põe, à disposição de todos nós, os1 -orgãos próprios da administração da justiça (são os Juízes), a fim de solucionarem os litígios que os interessados levarem ao seu conhecimento. 0 direito de ação encontra, pois, seu fundamento na proibição de se fazer justiça com as próprias mãos. Só o Estado, por meio do Poder Judiciário, é que pode fazer justiça, dando a cada um o que é seu. Aí está a ratio essendi do art. 5.', XXXV, da Magna Carta, ao estabelecer que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".Mas de que maneira o Estado procede à composição da lide? De que maneira o Estado consegue dirimir os conflitos de interesses? Por meio do processo. Este nada mais é senão forma de composição de litígios. Em sua etimologia, a palavra processo traz a idéia de ir para frente, de avançar. Ensina Fenech: o processo e, e outra coisa não pode ser, senão um fato com desenvolvimento temporal, um fato que apresenta mais de um momento, um fato que não se esgota no instante mesmo da sua produção. Fato que se desenvolve no tempo equivale à série encadeada de fatos parciais, menores, que constituem ou integram o fato total (cf. Derecho procesal penal, v. 1, p. 54). E acrescenta o mestre: esta dimensão temporal, este desenrolar-se ou desenvolver-se no tempo é a nota essencial do processo, de todo processo e de qualquer processo. Não pode haver processo se não há um desenvolvimento no tempo, e, por outro lado, não pode haver nenhum fato que se desenvolva no tempo ao qual não se possa corretamente aplicar a palavraprocesso (cf. Derecho, cit., p. 54).

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Podemos falar em processos patológicos, em processos cósmicos e assim por diante. 0 processo de que cuidamos, forma compositiva de litígios, está integrado por atos que se desenrolam, também, em sua dimensão temporal. Já não se fala ernfatos, mas em atos, porque o processo, como forma civilizada de solução de lides, inicia-se, desenvolvese e termina pela vontade do homem. Então o processo é uma sucessão de atos com os quais se procura dirimir o conflito de interesses. Nele se desenvW1,ve uma série de atos coordenados visando à composição da lide, e áTe compõe, fica solucionada, quando o Estado, por meio do Juiz, depois de devidamente instruído com as provas colhidas, depois de sopesar as razões dos litigantes, dita a sua resolução com força obrigatória. Assim, quando o proprietário deixa de receber os alugueres do imóvel locado, porque o inquilino se recusa a pagar-lhe, não podendo aquele fazer valer o seu direito à força (pois somente o Estado é que administrajustiça), poderá dirigir-se ao Estado-Juiz (direito de ação), narrandolhe, por escrito, em que consistiu a lesão do seu direito e, ao mesmo tempo, solicitando-lhe a aplicação da vontade concreta da lei, fazendo com que o seu interesse, realmente tutelado pelo direito objetivo, prevaleça em face da resistência do inquilino. 0 Juiz, então, determina seja o inquilino cientificado da pretensão exposta em juízo, chamando-o para vir defender-se. 0 inquilino atende ao chamamento. Defende-se. Proprietário e inquilino

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procuram, com provas exibidas e dando as suas razões, convencer o Juiz de que o pedido deve ser julgado procedente ou improcedente, e, a final, o Magistrado, como órgão imparcial, após estudo meticuloso das provas e das alegações das partes contendoras, vale dizer, após reunido o material de cognição, aplica coativamente a norma jurídica adequada à solução da referida lide. Isso e processo, e um complexo de atos que se sucedem, coordenadamente, com um objetivo comum, com uma causa finalis: a solução, a composição da lide. Pode-se dizer, também, que processo é aquela atividade que o Juiz, encarregado que é de solucionar os conflitos de interesses de maneira imparcial, secondo verità e secondo giustizia, desenvolve, visando dar a cada um o que e seu.

4. 0 processo absorveu as demais formas compositivas do litígio?

Insta acentuar que, embora a composição dos litígios se opere por meio do processo, este não absorveu totalmente as demais formas compositivas da lide. Caso se dê uma vista Wolhos no nossojus positum,

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constatar-se-á que, excepcionalmente, permite a lei ao indivíduo prover a conservação ou a obtenção de um bem jurídico com a execuçao de atos que regra geral lhe são defesos. A observação é feita por Chiovenda, e a acomodação ao direito pátrio levada a cabo por Liebman (cf. Instituições de direito processual civil, acompanhadas de notas do Prof. Liebman, Saraiva, 1965, v. 1, p. 38). Vejam-se, a propósito, as normas que se contêm nos arts. 502, 558 e 1.279 do CC. Trata-se de casos de verdadeira "autodefesa", consentida e moderada pelo Estado. Por outro lado, proclamam os arts. 160 do CC e 24 e 25 do CP serem lícitos os atos praticados em legítima defesa ou em estado de necessidade.

Quanto à autocomposição, ainda se mantém, quando emjogo interesses disponíveis. As transações são muito comuns na esfera extrapenal. Atualmente, com a criação dos Juizados Especiais Criminais, nas causas penais de menor potencial ofensivo, a -transação- não passa de verdadeira -autocomposição", mais ou menos à maneira do que ocorre com o plea bargaining dos norte-americanos.

5. 0 Jus puniendi"

Dos bens ou interesses tutelados pelo Estado (por meio das normas), uns existem cuja violação afeta sobremodo as condições de vida em sociedade. 0 direito à vida, à honra, à integridade física são exemplos. Tais bens e muitos outros são tutelados pelas normas penais, e sua violação é o que se chama ilícito penal ou infração penal. 0 ilícito penal atenta, pois, contra os bens mais caros e importantes de quantos possua o homem, e, por isso mesmo, os mais importantes da vida social.

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Mas como esses bens ou interesses são tutelados em função da vida social, como tais bens ou interesses são eminentemente públicos, eminentemente sociais, o Estado, então, ao contrário do que ocorre com outros bens ou interesses, não permite que a aplicação do preceito sancionador ao transgressor da norma de comportamento, inserta na lei penal, fique ao alvedrio do particular. Conforme acentua Fenech, quando ocorre uma infração penal, quem sofre a lesão e o proprio Estado, como representante da comunidade perturbada pela inobservância da norma jurídica, e, assim, corresponde ao próprio Estado, por meio dos seus órgãos, tomar a iniciativa motu proprio, para garantir, com sua atividade, a observância da lei.

Por essa razão, quando se comete uma infração penal, quem sofre a lesão é o próprio Estado, a par da lesão sofrida pela vítima. Observe-

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se, como muito bem recorda Ambal Bruno, que muitos autores distinguem, no crime, um sujeito passivo geral, genérico ou constante, que é o Estado, sob a alegação de que há sempre um interesse público violado pelo crime e um sujeito passivo particular, que é o titular do bem jurídico ofendido (cf. Direito penal, t. 2, p. 562).Porque os bens tutelados pelas normas penais são eminentemente públicos, eminentemente sociais, o jus puniendi, o direito de punir os infrat*es, o direito de poder impor a sanctio juris àqueles que descumprirem o mandamento proibitivo que se contém na lei penal, corresponde à sociedade. Ninguém desconhece que a prática de infrações penais transtorna a ordem pública, e a sociedade e a principal vítima e, por isso mesmo, tem o direito de prevenir e reprimir aqueles atos que são lesivos a sua existência e conservação.Nota muito bem Gonzales Bustamante que ojuspuniendi equivale à legítima defesa que se reconhece aos particulares. A sociedade tem o direito de defender-se, adotando contra qualquer pessoa que ponha em perigo sua tranqüilidade as medidas preventivas e repressivas que sejam condizentes (cf. Principios de derecho procesal penal mexicano, Porrúa, p. 3).

Como a sociedade, assim entendida, é uma entidade abstrata, a função que lhe cabe, de reprimir as infrações penais, permanece em mãos do Estado, que a realiza por meio dos seus órgaos competentes.0 jus puniendi pertence, pois, ao Estado, como uma das expressões mais características da sua soberania. Observe-se, contudo, que o jus puniendi existe in abstracto e in concreto. Com efeito. Quando o Estado, por meio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a transgredir o mandamento proibitivo que se contém na norma penal, surge para ele o jus puniendi num plano abstrato e, para o particular, surge o dever de abster-se de realizar a conduta punível. Todavia, no instante em que alguém realiza a conduta proibida pela norma penal, aquelejus puniendi desce do plano abstrato para o concreto, pois, já agora, o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida. Surge, assim, com a prática da infração penal, a "pretensão punitiva". Desse modo, o Estado pode exigir que o interesse do autor da conduta punível em conservar a sua liberdade se subordine ao seu, que é o de restringir ojus libertatis com a inflição da pena.

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A pretensão punitiva surge, pois, no momento em que o'juspuniendi"

in abstracto se transfigura no "jus puniendi" in concreto.i Observa-se, aqui, um fenômeno interessante: com o simplessurgimento da pretensão punitiva forma-se a lide penal. Mesmo que oautor da conduta punível não queira resistir à pretensão estatal, deveráfazê-lo, pois o Estado também tutela e ampara ojus libertatis do indigitadoautor do crime. Revela-se, assim, a lide penal, por meio do binômio:direito de punir versus direito de liberdade. É, pois, sui generis o litígiopenal.E de que forma consegue o Estado tomar efetivo o seu direito de punir, infligindo a pena ao culpado? Também por meio do processo. Mas, se o Estado é o titular único e exclusivo do direito de punir, por que razão necessita ele de recorrer às vias processuais para demonstrar o seu direito de punir, abdicando de sua soberania? Não lhe seria mais fácil e mais cômodo auto-executar o seu poder repressivo? E, assim procedendo, a repressão ao criminoso não seria feita com mais rapidez e mais energia?

Da mesma forma que não haveria equilíbrio estável no meio social se se permitisse, no campo extraperial, às próprias partes litigantes decidirem, pelo uso da força, seus litígios, também e principalmente no campo penal, na esfera repressiva, os abusos indescritíveis se multiplicariam em número sempre crescente, em virtude dos desmandos que o titular do direito de punir, cego e desenfreado, passaria a cometer. Quem poderia viver num Estado em que a repressão às infrações penais, a imposição da pena ao presumível culpado ficasse a cargo exclusivo do próprio titular do direito de punir?Pondo os olhos nessa realidade incontrastável, o Estado, então, autolimitou o seu poder repressivo. 0 Direito Penal, pois, não é um direito de coação direta. Embora o Estado detenha o direito de punir, ele próprio não pode executá-lo. Ele se submete, assim, ao império da lei. Em suma: embora o Estado detenha o jus puniendi, não poderá fazê-lo atuar com o uso direto da força. Pondera Eberhard Schmidt: "hecha abstracción de las empresas guerreras de los detentadores del poder, nada hay causado a la humanidad tantos sufrimientos, tormentos y lágrimas, como el poder del Estado que se realiza en la actividad penal pública. Es or esto que la gran idea del Estado del derecho, que se desconfía a si mismo y que por eso reprime y compromete su poder teniendo en cuenta las trágicas experiencias que la historia del derecho penal nos

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proporciona, se impone en forma subyugante a cualquiera que se muestre sensible a las enseñanzas de la historia" (cf. Derecho procesal penal, trad. esp. José M. Nuñez, Ed. Argentina, 1957, p. 24).Reconheceu, pois, o Estado que o processo, mesmo para as relações jurídico-penais, é fator indispensável, porquanto visa a proteger os 'cidadãos contra os abusos do Poder Público, "porque

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insensiblemente el uso ilimitado del poder se presta a abusos". E é porque todo o manejo do poder #ivolve a possibilidade de abusos que o próprio Estado reconheceu a necessidade de que a pena se aplique mediante um processo.Assim, pelo respeito à dignidade humana e à liberdade individual é que o Estado fixa a manifestação do seu poder repressivo não só em pressupostos jurídico-penais materiais (nullum crimen nulla poena sine lege), como também assegura a aplicação da lei penal ao caso concreto, de acordo com as formalidades prescritas previamente em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sinejudice, nulla poena sine judicio). 0 princípio do nullum crimen nulla poena sine lege se complementa com os princípios nulla poena sine judice e nulla poena sinejudicio, o que significa que as leis materiais, o processo e o órgão jurisdicional. são fatores indispensáveis nas relações jurídico-penais. As leis penais materiais descrevem as figuras típicas e cominam as respectivas sanções. As leis processuais estabelecem as regras, princípios e formalidades que devem ser observadas para se lograr a decisão do Juiz. Finalmente, o Juiz é a pessoa investida do poder soberano do Estado, para, em cada caso concreto, declarar o direito.Daí a elevação dos princípios nullum crimen nulla poena sine lege, nulla poena sinejudice e nullapoena sinejudicio à categoria de dogmas constitucionais, como autolimitação da função punitiva do Estado. Não há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia cominaçao legal.

É como soa o inc. XXXIX do art. 5.' da Magna Carta, enfatizado no art. 1.' do CP, consagrando,'assim, o princípio da reserva legal.

Nulla poena sinejudice. Nenhuma pena poderá ser imposta senão pelo Juiz. Com efeito, dispõe o iric. XXXV do art. 5.' da Lei das Leis: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Ora, se a liberdade é um direito individual, talvez até o mais importante de quantos possua o homem, e se a inflição de uma pena lesiona tal direito, não poderá a lei, por mais importante que seja, subtrair

dos Juízes a apreciação de tal lesão. Só o Juiz e exclusivamente o Juiz é que poderá dizer se o réu é culpado, para poder impor a medida restritiva do jus libertatis.Nulla poena sine judicio. Nenhuma pena poderá ser imposta ao réu, senão com observância do due process of law. Se a Lei Maior, no inc. LIV do art. 5.", proclama que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legaV, conclui-se que a imposição de pena ao pretenso culpado é precedida de um regular processo presidido pelo seu Juiz natural, ficando as partes, acusadora e acusada, situadas em um mesmo plano processual de direitos e deveres, a fim de que ajustiça não fique menoscabada em benefício da parte mais bem situada processualmente. "A expressão 'devido processo legal', oriunda da Magna Carta de 1215, diz Ada Pellegrini Grinover, indica o conjunto de garantias processuais a serem asseguradas à parte, para a tutela de situações que acabam

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legitimando o próprio processo" (cf. Rev. da PGES, 19/13). Quando a Suprema Corte dos EUA teve de estabelecer em que consistiam essas garantias do due process of law e law of the land proclamou: "determinando o que é o 'due process of law' nas Emendas V e XIV, a Corte deve referir-se aos usos estabelecidos, aos procedimentos consagrados antes da emigração dos nossos antepassados". Em última análise, diz Couture, o due process of law consiste no direito de não ser privado da liberdade ou de seus bens, sem a garantia que supõe a tramitação de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei (cf. Fundamentos del derecho procesal civil, Depalma, 1972, p. 101).Dessa igualdade entre as partes acusadora e acusada, veio a máxima: non debet actori licere quoti reu non permittitur (não é lícito permitir ao autor o que não for permitido ao réu). E indispensável que o Estado, na qualidade de titular do direito de punir, e o réu, titular do direito de liberdade, na pugna judiciária, encontrem-se no mesmo pé de igualdade. "Donde se conceda más en esta lucha judicial a la sociedad que al individuo, o viceversa, no se puede esperar la justicia de la sentencia, ya porque esto mismo es una injusticia, ya porque no se puede llegar al descubrimiento de la verdad entre dos afirmaciones contrarias, si a una y otra parte no se dejase igual facultad de presentar lo que conduzca a sostener la afirmación propia" (cf. E. J. Asenjo, Derecho procesal penal, v. 1, p. 104).Desse modo, o Estado somente poderá infligir pena ao violador da norma penal após a comprovação de sua responsabilidade (por meio do processo) e mediante decisão do órgão jurisdicional.

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Daí o acerto desse ensinamento de Frederico Marques: "uma vez que a regra do nulla poena sinejudicio foi acolhida pelo legislador constitucional quando estabeleceu a necessidade de processo e sentenças judiciais para a condenação penal, é óbvio que o direito de punir não é auto-executável, dependendo sempre da apreciação jurisdicional" (cf. Curso de direito penal, v. 3, p. 333).Assim, quando alguém comete uma infração penal, o Estado, como titular do direito de punir, impossibilitado, pelas razões expostas, de auto-executar seu direito, vai ajuízo (tal qual o particular que teve seu interesse atingido pelo comportamento ilícito de outrem) por meio do órgão próprio (o Ministério Público) e deduz a sua pretensão. 0 Juiz, então, procura ouvir o pretenso culpado. Colhe as provas que lhe foram apresentadas por ambas as partes (Ministério Público e réu), recebe as suas razões e, após o estudo do material de cognição recolhido, procura ver se prevaleceu o interesse do Estado em punir o culpado, ou se o interesse do réu, em não sofrer restrição no seujus libertatis. Em suma: o Juiz dirá qual dos dois tem razão. Se o Estado, aplica a sanctio juris ao culpado. Se o réu, absolve-o. Isso e processo.Também aqui (no campo penal), e com mais razão ainda, é o Estado que administra justiça por meio dos Juízes. Não se poderia confiar tal função à "autodefesa" dos particulares. Segundo os dados da experiencia, adverte Beling, da "autodefesa" não se pode esperar uma execução adequada das penas (cf. Derecho procesal penal, trad. M. Fenech, Labor, 1945, p. 19).

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Se o direito de punir pertence ao Estado, se a pena somente poderá ser imposta pelo órgão jurisdicional por meio de regular processo, se este se instaura com a propositura da ação, é óbvio que o Estado necessita de órgãos para desenvolverem a necessária atividade, visando a obter a aplicação da sanctio juris ao culpado. Essa atividade é denominada persecutio criminis. E tal direito à persecução penal (investigar o fato infringente da norma e pedir o julgamento da pretensão punitiva) é, como diz Manzini, uma obrigação funcional do Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais o próprio Estado foi constituído (segurança e reintegração da ordem jurídica).

Para que o Ministério Público, como órgão do Estado, possa exercer o direito de ação penal, levando ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato que se reveste de aparência criminosa, apontando-lhe,

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também, o autor, é curial deva ele ter em mãos os dados indispensáveis. Tais informações preliminares são colhidas, no primeiro momento da persecução, pela Polícia Judiciária, ou civil, como diz a Constituição, outro órgão do Estado incumbido de investigar o fato típico e sua respectiva autoria, a fim de possibilitar a propositura da ação penal. Assim, a persecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal. Esta consiste no pedido de julgamento da pretensão punitiva, enquanto a primeira é atividade preparatória da ação penal, de caráter preliminar e informativo.

6. 0 processo como complexo de atos e como relação jurídica

Vimos que, praticada a infração penal, surge a pretensão punitiva (Strafanspruch), exigência do Estado de subordinação do interesse do réu, em manter íntegro ojus libertatis, ao seu, que é o de puni-lo, a fim de conservar e resguardar a ordem jurídica e a segurança da coletividade. Formada a lide penal, o Estado, por meio dos órgãos competentes, põe-se, inicialmente, a desenvolver intensa atividade investigadora para tornar possível conhecer o genuíno autor da infração penal, bem como para colher as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma, das circunstâncias que o motivaram e daquelas que o circurivolveram. Essa primeira fase da persecução, embora não integre propriamente oprocesso, a ele se liga por uma necessidade lógica. Colhidas as primeiras notícias sobre a infração e identificado o seu autor, o Estado, já agora representado por outro órgão, o Ministério Público, leva ao conhecimento do Juiz, em petição circunstanciada, a pretensão punitiva, instaurando-se, assim, oprocesso. Vários atos, com relevância para o processo, sucedem-se, então, de acordo com as regras e formalidades que devem ser observadas: recebimento da denúncia, citação do réu,

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interrogatório, defesa prévia, ouvida de testemunhas, juntada de documentos, exames periciais (se for o caso) etc. Colhido todo o material probatório, o acusador e o acusado se manifestam sobre tudo quanto se apurou, e, finalmente, o Juiz, já devidamente instruído, profere a sua decisão, dizendo se procede ou improcede a pretensão punitiva. Se procedente, impõe ao culpado a sanctiojuris. Se improcedente, absolve-o.

Visto dessa maneira, o processo não passa de uma série de atos visando à aplicação da lei ao caso concreto. Entre o ato inicial, exercício

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do direito de ação, e a decisão final sobre o mérito, numerosos atos são realizados, de acordo com as regras e formalidades previamente traçadas, e esses atos vão avançando até atingir o ponto culminante do processo, que é a decisão sobre o meritum causae, quando, então, o Juiz dirá se procede ou improcede a pretensão punitiva.Mas o processo não é apenas aquele conjunto de atos coordenados visando ao julgamento da pretensão punitiva. Essa seqüência de atos coordenados, dispostos segundo as regras e formalidades previstas em lei, nada mais representa senão a exteriorização de uma verdadeira relação jurídico-processual. 0 processo, tal como antevira o gênio de Oskar von Bülow, no segundo quartel do século passado, tem o caráter de uma relação jurídica autônoma, eminentemente pública, entre o Estado-Juiz e as partes. Realmente, quem procurar ver o processo intrinsecamente, pelo lado de dentro, há de convir que ali se entretece um complexo de vínculos juridicamente relevantes e juridicamente regulados. Trata-se de uma relação jurídico-processual "unitária, complexa, progressiva e continuativa". Se de um lado encontramos o Estado-Administração, representado pelo Ministério Público, como titular de um direito subjetivo (direito de ação), do outro vamos encontrar o Estado-Juiz, como titular de uma obrigação jurídica, uma vez que a prestação jurisdicional tem, inegavelmente, o caráter de obrigação jurídica. 0 Estado-Administração, representado pelo Ministério Público, tem o direito subjetivo público de exigir a tutela jurisdicional, mesmo porque o próprio Estado autolimitou seu poder de punir. De outro lado, o Estado-Juiz tem a obrigação de proferir a decisão, tem a obrigação de se manifestar sobre a procedência ou a improcedência da pretensão do Estado-Administração. Trata-se, ademais, de relação jurídico-processual de natureza triangular, e não angular. A relação jurídico-processual não é apenas entre as partes acusadora e acusada. Essa relação existe como um dos aspectos da relação jurídico-processual, que é de natureza complexa. Ao lado dessa relação entre as partes, baseada no princípio do contraditório, tendo por conteúdo poderes de iniciativa, aos quais corresponde, na parte contrária, uma sujeição jurídica (cf. Betti, Diritto processuale civile, p. 105 e 107), há a relação entre o Juiz e as partes, relação que decorre da sujeição ao poder jurisdicional: as partes com o direito de exigir do órgão jurisdicional sua decisão sobre a lide, e o órgão jurisdicional com a obrigação de resolver o litígio. A relação jurídico-processual é unitária,

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progressiva e contínuativa. Constituída a relação processual, ela percorre várias fases: postulatória, probatória, das alegações, decisória. Mesmo havendo recurso, a relação processual continua com a sua unidade e vai-se estendendo, sem perder seu objeto, até que o Estado-Juiz, em definitivo, entregue a prestação jurisdicional. É, também, relação autônoma e complexa. Sua autonomia decorre da circunstância de que a relação jurídico-material, que surge com o antagonismo direito de punir versus direito de liberdade, não se confunde com a relação jurídico-processual. Seus objetos são diversos. Como bem diz Tornaghi, a relação processual é antes o laço que liga o direito do Estado-Administração (no caso da relação processual penal) a pedir tutela jurisdicional e a obrigação dos órgãos jurisdicionais de prestá-la (cf. A relação processual penal, p. 35). Trata-se de relação complexa, porquanto contém, dentro de si, uma série de relações jurídicas: entre autor e Juiz, entre autor e réu e entre réu e Juiz. Tais relações são entre si interdependentes e inseparaveís, como afirma Betti (Diritto, cit., p. 107).

7. 0 Processo Civil e o Processo Penal

Já sabemos, então, que é por meio doprocesso que se compõem os litígios, e por composição do litígio ou lide se entende a aplicação da lei ao caso concreto, "através de operações e de órgãos adequados". 0 processo consiste, assim, numa sucessão de atos (propositura da ação, citação, interrogatório, defesa prévia, audiência de testemunhas etc.) que culminam com a decisão final do órgão jurisdicional pondo fim ao litígio, dando a cada um o que é seu.

Assim o processo, conforme ensina Moacyr Amaral Santos, como sistema de atos, rege-se por princípios e leis, constituindo um fenômenoque se situa no campo do Direito. Ao sistema de princípios e normas que regulam o processo, disciplinando as atividades dos sujeitos interessados, do órgão jurisdicional e de seus auxiliares, dá-se o nome de Direito Processual.

Sendo o processo, como realmente o é, forma de composição de litígio, conclui-se que, conceitualmente, o processo é uno, pois, comodiz Couture, o direito de pedir ao Estado a garantia jurisdicional é um substitutivo civilizado da vingança privada.

Sem embargo dessa unidade conceitual, o Direito Processual apresenta dois grandes ramos: o Direito Processual Civil e o Direito Proces-

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sual Penal. E essa divisão é feita levando-se em conta o seu conteúdo ou objeto: se se trata de uma pretensão de natureza extrapenal, ou melhor, se a natureza da lide for extrapenal, a regulamentação normativa do processo é estabelecida pelo Direito Processual Civil. E tal regulamentação será feita pelo Direito Processual Penal, se se tratar de "causas penais". Assim, as normas e princípios que regulam a composição da lide extrapenal estão consubstanciadas no Direito Processual Civil, e aquelas concementes à conifósição da lide penal, no Direito Processual Penal.

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Por outro lado, como veremos detalhadamente mais adiante, tendo em vista o grande número e diversidade de questões que surgem no meio social, o Estado, atendendo às vantagens que a divisão do trabalho proporciona, procurou agrupá-las, distribuindo o poder de julgá-las aos diversos orgãos jurisdicionais, levando em consideração a natureza das questões de cada grupo. Daí os Juízes eleitorais, os Juízes militares, os Juízes trabalhistas, os Juízes federais, os Juízes estaduais, integrando a Justiça Eleitoral, a Justiça Militar, a Justiça do Trabalho, a Justiça Comum Federal e a Justiça Comum Estadual. E, como a regulamentação normativa dos processos respectivos é feita atendendo a certas peculiaridades, o Direito Processual Civil se distingue em Direito Processual Civil Comum, Direito Processual Trabalhista e Direito Processual Eleitoral. Por sua vez o Direito Processual Penal apresenta a seguinte divisão: Direito Processual Penal Comum, Direito Processual Penal Militar e Direito Processual Penal Eleitoral.

8. Unidade ou dualidade do Direito Processual?

0 processo, como instrumento compositivo de litígio, é um só. É por meio do processo que o Estado desenvolve sua atividade juri sdicional. Assim, Direito Processual Civil e Direito Processual Penal não passam de faces de um mesmo fenômeno, ramos de um mesmo tronco que cresceu por cissiparidade.

Observa Giovanni Leone (Trattato di diritto processuale penale, v. 1, p.16) que as pilastras do ordenamento processual são comuns aos dois tipos de processo: a) ambos têm a mesma finalidade (atuação do Poder Jurisdicional); b) em ambos a intervenção do Poder Jurisdicional. é condicionada ao exercício da ação; e, finalmente, c) ambos se iniciam, se desenvolvem e se concluem com a participação de três sujeitos: autor, réu e Juiz.

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Nas suas linhas estruturais, não divergem os Processos Civil e Penal. Muitos institutos de um e de outro são idênticos. Que é a ação senão um direito público, subjetivo, qual o de provocar a atuação dos órgãos jurisdicionais? Não têm razão, por acaso, Alcalà-Zamora e Carnelutti, ao afirmarem que todas as ações de todos os ramos do Direito Processual têm um caráter público, dado que se dirigem ao Estado para obter a atuação de seus órgãos jurisdicionais? (cf. Derecho, cit., v. 2, p. 69, e Sistema, cit., ri. 356).

Assim, quer no Processo Penal, quer no Processo Civil, o conceito de ação é um só. Não há um conceito de ação no Processo Penal e outro no Processo Civil. Apenas a natureza da pretensão é que dá, quanto ao conteúdo, um colorido diferente à ação penal e à ação civil.

E quanto à Jurisdição? Como função soberana, como atividade precípua de um dos Poderes do Estado - o Judiciário -, é única, pouco importando a natureza do conflito por dirimir, se penal ou

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extrapenal. Nem o próprio Florian, dualista que é, nega a unidade da função jurisdicional.A distinção que se faz entre jurisdição penal e jurisdição civil as-senta, única e exclusivamente, na divisão de trabalho. Determinados órgãos Jurisdicionais são incumbidos de dirimir conflitos intersubjetivos de natureza civil, enquanto outros se encarregam de equacionar os de natureza penal, sendo que, às vezes, exercem cumulativamente tais funções.E Miguel Fenech, com razão, acrescenta que, a despeito da unidade da jurisdiQáo, "puedan distinguirse en ella tantos aspectos como haya convenido a los fines del Estado para el cumplimiento de su misión de justicia" (cf. Derecho, cit., p. 222).

E no que tange aos recursos? 0 fundamento filosófico dos recursosem geral não assenta, como dizia o Marquês de São Vicente, na falibilidade humana? Haverá diferença ontológica entre os recursos da esfera penal e os da esfera civil?E respeitante às exceções processuais (rectius: objeções processuais)? Haverá alguma diferença substancial entre elas?E as citações, notificações, intimações, inclusive a própria senten-ça? Por acaso tais institutos não são formalmente idênticos? Se diferenças houver, serão, quando muito, de grau, e não qualitativas.

E no concemente às provas? Do ponto de vista estrutural, não se pode negar a identidade da prova no campo civil e no penal. E Camelutti

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acrescenta: há identidade também sob o ponto de vista da função (cf.Studi, v. 1, p. 99 e s.). 1

E certo que, quando se fala em unidade do Direito Processual, não se pretende confundir o Direito Processual Penal com o Direito Processual Civil, ou que aquele seja reabsorvido por este. Não se pretende, enfim, estabelecer absoluta identidade entre ambos, mas apenas realçar que as pilastras são comuns, que muitos institutos são idênticos e que por isst(se pode falar em uma Teoria Geral do Processo.

Na França, em 1872, já se pretendeu "penalizar" o Processo Civil, segundo relato de Aramburu (v. J. Asenjo, Derecho, cit., p. 63). Observe-se que tão grande é a afinidade entre ambos, que entre nós, ao tempo do "pluralismo processual", havia na Bahia, em Santa Catarina e no antigo Distrito Federal um Código de Processo para os dois setores.0 Retspleje lov (pronuncia-se "retsplailov") dinamarquês de 1919 continha normas comuns ao Processo Penal e ao Processo Civil. 0 Código da Suécia, de 18-7-1942, é exemplo frisante dessa unidade (cf. G. Leone, Trattato, cit., p. 16).

0 anteprojeto do CPP de Frederico Marques praticamente manteve a mesma estrutura do CPC.

Não dando tento dessa comunhão, dessa semelhança, processualistas (rectius: doublés de penalistas e processualistas) da estatura de Florian e Manzini (Principii, p. 8, e Trattato di diritto processuale

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penale, v. 1, p. 70) negam a unidade do Direito Processual. Mas por não haverem penetrado no âmago da questão, é que Alcalà-Zamora, autoridade cujo valor seria impertinência salientar, observou:

"... finalmente, el más grave error en que incurren consiste en confundir unidad del Derecho Procesal con identidad de sus distintas ramas: la postura correcta no es, por tanto, la suya, sino esta otra: la de que existiendo, sin duda, hondas diferencias entre el proceso civil y el penal, no bastan a destruir la unidad esencíal de todo el Derecho Procesal, porque al proclamarla, nadie pretende sostener que el Derecho Procesal Penal sea, se confunda o se reabsorba en el Derecho Procesal Civil, sino 'sencillamente' (un 'sencillamente' que, sin embargo, ha pasado inadvertido a los partidarios del dualismo) que el Derecho Procesal Penal, como el civil, es, ante todo y sobre todo, Derecho Procesal" (cf. Derecho, cit., v. 1, p. 41).

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Quais os argumentos da corrente dualista? Manzini observa que ninguém está obrigado, no Processo Civil, a iniciar ou a exercer a ação civil, salvo nos casos excepcionais, em que a iniciativa compete ao Ministério Público. Entretanto, em se tratando de ação penal, existe obrigação funcional do Ministério Público (cf. Trattato, cit., p. 110). Nota-se, de logo, que a diferença tem apenas valor para o Direito italiano. Há numerosas legislações, inclusive a nossa, em que existe a chamada "ação penal privada", regida, entre outros, pelo princípio da oportunidade. Nesses casos, como é óbvio, o ofendido ou seu representante legal promoverá a ação penal se quiser... Não se pode falar, assim, em obrigatoriedade da ação penal.Daí, de todo procedente a observação de Alcalà-Zamora, no sentido de que a discussão deve situar-se em plano de maior perspectiva que a oferecida pelo Direito de um só país, por muito importantes que aquele e este sejam.É de se ponderar, entretanto, que, mesmo no Direito italiano, a atividade persecutória do Ministério Público fica condicionada, às vezes, a uma manifestação de vontade; haja vista os institutos da "querela" e os outros que lhe são afins, tais como a richiesta, do Direito comum e do Direito militar, Vistanza, l'autorizzazione a procedere, la disposizione del comandante nel diritto militare (cf. G. Battaglini, La querela, 1958, p. 218).Florian pondera que o Processo Penal é instrumento indispensável para a solução das lides de natureza penal, enquanto o Processo Civil nem sempre é necessário para a composição das lides

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extrapenais. Exata a observação. Mas essa particularidade deflui não da natureza do processo, e sim da própria lide. 0 processo, forma compositiva de litígio, e coisa diferente do litígio, que lhe serve de conteúdo. Por outro lado, se aceito for o ensinamento de Sansó, nem mesmo quanto ao conteúdo existe diferença entre os dois ramos do Direito Processual: '11 contenuto del processo é dato dalla serie degl'atti di cui esso consta; e non già - como se é visto al punto precedente dalla 'lite' o dalla controversia, e neppure dall'azzione, dalla causa, o dal rapporto sostanziale" (cf. Luigi Sansó, La correlazione tra imputazione contestata e sentenza, 1953, p. 25). Assim também pensa Guglielmo Sabatini: "il contenuto del processo consta... degli atti processuali ......Alega Floriari que, no campo processual-penal, o poder dispositivo das partes é restringidíssimo, ao contrário do que ocorre no civil. Estamos

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que não é pelo fato de haver maior ou menor restrição ao poder dispositivo das partes que se pode negar a unidade do Direito Processual. Por outro lado, essa maior ou menor disponibilidade ainda decorre da natureza da lide. Tal argumento, assim, se contém no primeiro ou não passa de desdobramento dele. Cumpre assinalar, entretanto, que nas legislações, como a nossa, que admitem a ação penal privada, o poder dispositivo das partes é bem grande. No Direito pátrio, por exemplo, esse poder dispositivo das partes é bem intenso. É tão grande que o querelante pode perdoar o querelado, mesmo após a prolação da sentença condenatória (cf. CP, art. 106, § 2.).

E bem verdade que com a instauração dos Juizados Especiais Criminais admite-se, com a transação entre o Ministério Público e o autor do fato, um certo poder dispositivo. Contudo, trata-se de exceção.

Manzini (Trattato, cit., p. 110) anota que no Processo Penal vigora o principio da verdade real e, no Processo Civil, o da verdade ficta. Com vantagem obtempera o pranteado Frederico Marques que, no Penal, o princípio da verdade real não vigora em toda a sua pureza. E esclarece: se um indivíduo é absolvido por não haver a mínima prova de que praticou o crime que se lhe imputa, a coisa julgada irá impedir que nova ação penal se instaure contra ele, apesar de provas concludentes, inclusive sua confissão, surgirem após veredictum absolutório: "res judicata pro veritate habetur" (cf. Instituições de direito Processual civil, v. 1, p. 52).Essa mesma observação do saudoso mestre paulista pode ser estendida a quase todos os orderiarnentos jurídicos do mundo, porquanto pouquíssimas são as legislações que admitem a chamada revisão pro societate, e, assim mesmo, com certa parcimônia, com certa modéstia (cf. CPP alemão, atualizado em L'-5-1960, § 362; o norueguês, de 1887; o português, de 1988, art. 449, notadamente o ri. 1; a Lei Processual sueca em vigor a partir de L'- 1- 1948, Cap. 5 8, § 3.; o Código Processual Penal húngaro, de 195 1, e alterado em 1957, § § 213 e 214; o iugoslavo, de 1.0-1-1954, § 379 ; o tchecoslovaco, de 19-12-1956, art. 300; o austríaco, de 20-4-1960; e o russo, de 27-10-1960, arts. 373 e 380).

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É certo, por outro lado, que o princípio da verdade real, embora vigorando no Processo Penal com mais intensidade, não é exclusivo nem peculiar a este setor do Direito. Haja vista a regra inserta no art. 130 do CPC. Com muita propriedade observa Garcia-Velasco: "no podemos considerar su búsqueda (de Ia verdad material) misión privativa del proceso

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penal sin tachar al mismo tiempo a los demás procesos de aspirantes a falsarios, pues aunque en la generalidad de éstos la posibilidad que tienen os interesados de disponer de sus derechos y la aportación de parte hagan posible que a su final surja como verdadero lo que sólo lo és parcialmente, o no lo és en absoluto, ello no nos autoriza a afirmar que esos procesos estén destinados y previstos para la creación de resultados artificiosos e inexactos; por donde, a sensu contrario, este de verdad material no puede considerarse como principio y menos como cualificador del proceso penal, lo que no impide que en él sea más fácil alcanzar la verdad, como consecuencia de las características singulares del proceso penal y siempre con las reservas consecuentes a la limitación yJalibilidad humana" (grifos nossos) (cf. M. 1. Garcia-Velasco, Curso de derecho procesal penal, Universidad de Madrid, 1969, p. 16).Desse modo, a despeito das críticas dos dualistas, pode-se falar em unidade do Direito Processual, e, repita-se, falando-se em unidade do Direito Processual, não se pretende confundir identidade dos seus diversos setores.Florian, após sua obraDelleprove penale (1924) e após o trabalho de Carnelutti, Prove civile e prove penale (1925), surgido em revide àquele, reconheceu "que as novas diretrizes do Processo Civil, em matéria de prova, muito o avizinharam do processo penal" (cf. trabalho publicado in Scuola Positiva, 1937, p. 217).Insta acentuar que a grande maioria defende a tese unitária. Entre nós, o insigne Prof. Frederico Marques e, sem contestação, paladino desse entendimento. Em suas inúmeras obras, quer de Direito Processual Civil, quer de Direito Processual Penal, proclama a necessidade da criação de uma Teoria Geral do Processo.E que dizer do grande Carnelutti? No seu trabalho Prove civile e prove penale, manifestou-se defensor dessa unidade, inclusive nos ensinos universitários. Suas estas palavras:

"... afinal de contas, o Direito Processual é fundamentalmente uno.Processo Civil e Processo Penal sem dúvida se distinguem, não porque tenham raízes distintas, e sim pelo fato de serem dois grandes ramos em que se bifurca, a uma boa altura, um tronco único.Mais cedo, ou mais tarde, chegará o tempo em que está verdade chegará ao ensino universitário.

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Certamente, um dos mais graves contra-sensos desse ordenamento de nossos estudos jurídicos, que estamos agora pouco a pouco reformando, repousa na separação do Processo Civil e Processo Penal e na ligação deste último com o Direito Penal ......

É certo, contudo, que nos idos de 1940, em estudo publicado na Rivista di Diritto Processuale Civile, sob o título de "Figura giuridica del dif*sore", observou o mestre uma profunda diferença entre Processo Civil e Processo Penal, chegando a exclamar: "quanto mais medito sobre o tema, mais me persuado de que precisamente é de assinalar-se uma profunda diferença entre o processo penal e o civil".Entretanto, dez anos mais tarde, precisamente em 1950, voltou Carnelutti a emprestar seu talento à defesa dos seus ensinarnentos anteriores, em seu monumental trabalho "Per una teoria generale del processo", in Questioni sul processo penale, p. 10.Vale lembrar, também, que, segundo nos relata Calamandrei (U insegnamento del diritto processuale nei nuovi statuti universitari, Rivista di Diritto Processuale Civile, 1924, p. 364), na Universidade de Florença, o ensino do Direito Processual compreendia, por primeiro, um Curso de Instituições de Direito Processual, ao lado de um Curso de Direito Processual Civil e de "Procedimento Penal", plano semelhante ao da Universidade Católica de Milão.

E não podia ser de outra forma, uma vez que Processo Civil e Processo Penal são faces de um mesmo fenômeno.E verdade, como já disse Alcalà-Zamora, que não há absoluta identidade entre ambos os processos. Mas é de convir com Frederico Marques e com o próprio Alcalà-Zamora que, em suas linhas mestras, em suas pilastras, como diz Giovanni Leone, a estruturação da Justiça Penal não difere daquela que envolve a Justiça Civil. E a prova mais eloqüente e viva dessa unidade reside nos institutos comuns a ambos os ramos do Direito Processual.

Em conferência proferida na Universidade do Paraná, assim se manifestou o Prof. Galeno Lacerda:

"... podem-se edificar as teorias do processo jurisdicional e suas funções, da ação e exceção, dos poderes do Juiz, dos atos processuais e de seus vícios, da litispendência, da preclusão e da coisa julgada, com os respectivos corolários.

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w- ~É claro que em termos de Teoria Geral, esses temas se aplicam a todas as manifestações de processo jurisdicional -civil, trabalhista, penal (comum e militar), eleitoral e aos demais casos de jurisdição estranhos ao Poder Judiciário, previstos em nosso sistema constitucional" (RT, 355/13).

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Ugo Rocco, por seu turno, estudando o problema, acentuou: "La diffèrenza tra diritto processuale civile e diritto processuale periale consiste in ció: tanto l'uno quanto l'altro sono diritto statuale perchè promano dallo Stato; sono diritto pubblico, perchè regolano l'attività di organi dello Stato investiti di potere sovrano; sono diritto formale in quanto le norme giuridiche, nel disciplinare l'attività degli organi giurisdizionali, non solo li vincolano nella forma, ma anche nel contenuto.

Ma, poichè le norme che regolano il contenuto, Ia materia o Ia sostanza dell'attività giurisdizionale sono di diritto sostariziale, il diritto processuale se distingue in diritto processuale civile e diritto processuale penale. La seconda che abbia per oggetto rapporti sostariziali di diritto civile o rapporti sostanziali di diritto penale" (Trattato di diritto processuale civile; parte generale, Torino, 1957, v. 1, p. 186).

Cumpre assinalar, por último, que não são idênticos os procedimentos penal e civil. Será isso óbice à criação da Teoria Geral do Processo? Mesmo no Processo Civil há uma policromia de procedimentos, à maneira do que ocorre no Processo Penal. Logo, a diversidade procedimental não se constitui em obstáculo à pretendida unidade.

Ponto-finalizando: entendemos que se pode, muito bem, cuidar da elaboração de uma Teoria Geral do Processo e que, desde já, poderá ser criada, nas nossas Faculdades de Direito, a respectiva cadeira, responsável pelos ensinamentos a respeito de pretensão, lide, formas compositivas do litígio, ação, jurisdição, processo, procedimento, pressupostos processuais, sujeitos processuais, princípios constitucionais do Direito Processual, organização judiciária, atos processuais, seus vícios, teoria geral da prova. Tal cadeira poderia ser posta nos 3.' e 4." Termos (ou 2. série). Assim, ao chegar ao 5." Termo (ou 3.' série), o aluno já estaria familiarizado com a Ciência Processual e ser-lhe-ia fácil o estudo do Processo Penal e do Processo Civil.Em 1975 surge notável trabalho de Antônio Carlos de Araújo Cintra,Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, sob o título Teoria geral do processo, publicado pela Revista dos Tribunais. Trata-se,

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no gênero, de trabalho pioneiro entre nos e que supera, em muito, a tímida "Teoria generale del processo penale e civile", de Sabatini (in Scuola penale unitaria, 1930, p. 8 1), que, por sinal, não passou de simples ensaio. Demonstraram os Autores, verdadeiros unitaristas, que o Processo Civil e o Processo Penal são dois aspectos de um fenômeno único.

9. Coúceito de Direito Processual Penal

Direito Processual Penal, na lição de Beling, é aquela parte do Direito que regula a atividade tutelar do Direito Penal.

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0 Direito Processual Penal abrange também a Organização Judiciária Penal, e, por isso, alguns autores, como Camara Leal, costumam apresentar a seguinte divisão do Direito Processual Penal: a) Organização Judiciária Penal, que trata da criação, sistematização, localização, nomenclatura e atribuições dos diversos órgãos diretos e auxiliares do aparelho judiciário destinado à administração dajustiça penal; e b) Processo Penal, que é o meio pelo qual se compõem as lides de natureza penal.

E de observar que o Direito Processual Penal compreende também a persecução fora do juízo, e, por isso, preferimos conceituá-lo como Frederico Marques: conjunto de normas e principios que regu-lam a aplicação jurisdicional do Direito Penal objetivo, a sisternatização dos órgãos de jurisdição e respectivos auxiliares, bem como da persecução penal.

10. Autonomia do Direito Processual Penal

0 Direito Processual constitui, como bem diz Frederico Marques, ciência autônoma no campo da dogmática jurídica, uma vez que tem objeto e princípios que lhe são próprios.No que respeita ao Direito Processual Penal, observa Giovanni Leone que a sua autonomia não decorre, apenas, da existência de um Código de Processo Penal, mas, sobretudo, da consideração de que os princípios reguladores do Processo Penal não têm nenhum ponto de contato com os princípios que disciplinam a definição de crime, sua estrutura e os institutos conexos (cf. Trattato, cit., p. 10). É certo que Carnelutti sustenta que a pena pertence à elaboração do Direito Processual Penal (cf.

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Lecciones, trad. esp., v. 1, p. 70). Entretanto, convém assinalar, trata-se de ponto de vista sem ressonância na doutrina, como bem fri sou Petrocelli em Pena e processo (1954, p. 361).0 Direito Processual Penal obedece a exigências próprias e a princípios especiais, particulares. E Leone arremata: Io studio attento del processo penale dimostra largamente come sia facile ri scontrare punti di contatto o di raffronto col processo civile pitittosto che col diritto penale sostantivo" (Trattato, cit., p. 10).Em face dessa autonomia, não se pode falar em "Direito adjetivo". E certo que, até hoje, muitos autores, quando se referem ao Direito Processual, usam expressões como estas: "Direito adjetivo", "Direito acessório". Por que "Direito acessório"? Decerto por existir um Direito principal. Seria o Direito Penal o principal? Não havendo Direito Penal, o Processo Penal não teria razão de ser. Por outro lado, existindo o Direito Penal, sem o Direito Processual, aquele seria de pouca valia, pois nenhuma pena pode ser imposta senão por meio do due process of law. Difícil, pois, dizer qual dos dois é o

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principal. Ambos são importantes. 0 que se pode e se deve afirmar é que ambos se completam e nenhum deles é inferior em relação ao outro. Por igual razão não se deve falar em "Direito adjetivo", emprestando a tal expressão um sentido de inferioridade ou de subordinação. A propósito, o ensinamento de Alcalà-Zamora"adjetivo, sólo se puede aceptar en cuanto exprese contraste frente al Derecho material o substantivo, mas en manera alguna si se quiere significar que el Derecho procesal sea de rangojurídico inferior"(cf. Derecho, cit., v. 1, p. 35).

11. Instrumentalidade do Direito Processual

Não se pode negar o caráter instrumental do Direito Processual, porquanto constitui ele um meio, o instrumento para fazer atuar o Direito material. Giovanni Leone afirma: "È opinione di largo dominio che il diritto processuale lia carattere strumentale, nel senso ció é di costituire í1 mezzo per fare osservare il diritto sostanziale, lo strumento per l'applicazione delle norme di diritto sostanziale". E, a propósito, observa que tal concepção se inspira em uma série de considerações: a) aspecto lógico - o Direito Processual está ordenado segundo uma reconstrução histórica, não como fim em si mesmo, senão como meio,

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como instrumento para conseguir um fim que preexiste a ele e o transcende, a saber, a atuação do Direito material; o Direito material tem necessidade, para a sua atuação, de instrumentos processuais, sem que estes se identifiquem com aquele; b) aspecto jurídico - "só a concepção do caráter instrumental do processo explica aquela distinção entre

admissibilidade da demanda e fundamento da demanda, ou melhor, entre indagação sobre os pressupostos processuais e indagação sobre oméritW' (cf. Diritto processuale penale, v. 1, p. 3).No mesmo sentido a lição de Calamandrei: "... non é fine a se stessa, ma serve como mezzo per fare osservare il dirítto sostanziale". E acrescenta o mestre: "quem recorre aos Juízes, não se contenta em ver os atos

do procedimento desenvolverem-se pontualmente segundo as regras forinais do direito processual, senão que aspira a conseguir, em seguida, uma providência que lhe dê a razão segundo as normas do direito material.

Não se faz um protesto (e quem o fizesse padeceria de mania litigiosa) pelo gosto estético de ver funcionar no vazio os dispositivos do procedimento; para quem busca justiça é o conteúdo da decisão que interessa e não a forina" (ef. Istituzioni, v. 1, p. 214 e 190).

Betti, no seu Dirítto processuale civile, na p. 3, ensina que as normas de Direito Processual são "strumentali per eccelenza". No mesmo

sentido, Ottorino Vannini, Manuale di diritto processuale penale, p. 4; Lanza, Principii, p. 32,

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No que concerne ao Direito Processual Penal propriamente, mais clara se apresenta tal ínstrumentalidade, uma vez que não sendo o Direi-

to Penal de coação direta, e uma vez que o Estado autolimitou o seujus puniendi, não se concebe aplicação de pena sem processo. Os princípios do nulla poena sine judice e nulla poena sine judicio, elevados à categoria de dogma constitucional, e segundo os quais nenhuma pena pode-

ra ser imposta senão pelo órgão Jurisdicional e por meio do regular processo, impedem a aplicação da sanctiojuris sem o devido processo. 0 cânon nulla poena sine judicio, diz Leone, é posto não só como

autolimitação da função punitiva do Estado, mas ainda como limite à vontade do particular, ao qual é negada a faculdade de sujeitar-se à pena; o princípio do nulla poena sine judicio dá lugar àquele nexo de subordinação entre processo e aplicação da sanção penal que não encontra correspondência em nenhum outro ramo do ordenamento jurídico. Realmente, enquanto a proibição que constitui o núcleo preceptivo da norma

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penal pode realizar-se por uma observância voluntária dos cidadãos, a sanção somente poderá atuar por meio do processo (cf. Trattato, cit., p. 7). Ainda que se diga que a multa ou pena restritiva de direito, aplicável em decorrência de transação, no Juizado Especial Criminal, seja uma pena, o certo é que somente o Juiz poderá aplicá-la.No campo civil é possível um entendimento entre os litigantes, de molde a sair vitorioso o titular do direito lesado, sem que haja necessidade da via processual. Desde que não estejam em jogo interesses indisponíveis (anulação de casamento, p. ex), podem os litigantes, por meio de autocomposição, solucionar seus conflitos. No campo penal, não se pode conceber a aplicação da sanctiojuris senão por meio do processo. Nem mesmo naquelas hipóteses de ação penal privada, em que o jus persequendi injudicio foi transferido para o particular, será possível a inflição de pena sem o devido processo. Possível será um acordo entre querelante e querelado no que tange ao ressarcimento do dano ex delicto, nunca, porém, um ajuste no sentido de o autor do fato típico submeterse a uma pena sem processo.Mesmo as transações entre acusador e acusado, nos Juizados Especiais, com o objetivo único e exclusivo de agilizar a justiça em processos atinentes a infrações de menor potencial ofensivo, são realizadas na presença do Juiz.

12. Nomenclatura

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Direito Processual Penal ou Direito Judiciário Penal? A despeito de mais antiga, a expressão "Direito Judiciário Penal" está sendo abandonada. E isso talvez pelo fato de poder ser entendido como ramo que se ocupa mais da Organização Judiciária que do próprio processo. Por outro lado, "pode ser entendida em sentido amplo demais, passando a compreender tudo quanto se refira ao Poder Judiciário". Na doutrina, salvante rara exceção, os autores empregam a expressão "Direito Processual Penal". É evidente que, sendo o "processo" a forma única de composição de lides penais, a expressão "Direito Processual PenaW, para significar aquele conjunto de normas e princípios que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal material, é, à evidência, a mais adequada.Ademais, conforme pondera Alcalá-Zamora, "Derecho Procesal es el nombre con él que la materia ha alcanzado la Jerarquia científica y la extensión que hoy tiene". E conclui o mestre: a expressão "Direito Pro-

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cessual" destaca o caráter científico da disciplina e é, além disso, o nome mais generalizado (cf. Derecho, cit., v. 1, p. 131).

13. Finalidade

Qual a finalidade do Direito Processual Penal? Podemos dizer que existe uma finalidade mediata, que se confunde com a propria finalida~ de do j)ireito Penal - paz social -, e uma finalidade imediata, que outra não é senão a de conseguir a "realizabilidade da pretensão punitiva derivada de um delito, através da utilização da garantia jurisdicional". Sua finalidade, em suma, é tornar realidade o Direito Penal. Enquanto este estabelece sanções aos possíveis transgressores das suas normas, é pelo Processo Penal que se aplica a sanctiojuris, porquanto toda pena é imposta "processualmente". Daí dizer Manzini que ele consiste em obter, mediante a intervenção do Juiz, a declaração de certeza, positiva ou negativa, do fundamento da pretensão punitiva derivada de um delito. Assim, não constitui o Processo Penal nem uma discussão acadêmica para resolver, in abstracto, um ponto controvertido de Direito, nem um estudo ético tendente à reprovação da conduta moral de um indivíduo. Seu objetivo é eminentemente prático, atual e jurídico e se limita à declaração de certeza da verdade, em relação ao fato concreto e à aplicação de suas conseqüências jurídicas.

14. Posição no quadro geral do Direito

Depois que se empreende a busca do fenômeno jurídico no campo da Sociologia, toma-se necessário conhecer-lhe os caracteres externos, isto é, seus aspectos morfológicos. Aspectos morfológicos do Direito nada mais são do que as maneiras formalísticas com que ele se nos apresenta. Ora o encontramos bipartido em objetivo e subjetivo, ora como positivo e doutrinário, ora, finalmente, na velha e revelha dicotomia romana: jus publicum et jus privatum.

Para o nosso estudo interessa apenas a divisão do Direito em Público e Privado.

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Até hoje, a despeito das críticas de alguns autores, persiste a clássica divisão de Ulpiano:jus publicum etjus privatum. Para os romanos, jus publicum era aquele "quod ad statum rei romanae spectat". Privatum, 41 quod ad singuloruni utilitatem". As coisas de utilidade pública forma-

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vam o Direito Público; as de utilidade privada, ou particular, formavam o Direito Privado; "ad singulorum utilitatem: sunt enim, quaedarn publice utilia, quaedarn privatim", "cada um dos direitos refere-se à sua utilidade; um à utilidade pública; outro à utilidade particular". Era, pois, a utilidade que servia de elemento para o discrime jus publicum et jus privatuni.A crítica que os autores modernos fazem quanto àquela maneira de distinguir o Direito em Público e Privado, isto é, servindo-se do elemento utilidade, tem, realmente, razão de ser.Por vezes freqüentes encontramos no Direito Privado a coexistência das utilidades, e nem por isso o Direito Privado deixa de ser Privado. Logo, tal critério não pode nem deve prevalecer. E pomos exemplo: o casamento é um instituto de Direito Civil, vale dizer, de Direito Privado. Entretanto o Poder Público, até há pouco, interferia e proclamava a indi s solubilidade do vínculo matrimonial. Quer dizer que, nesse exemplo, a utilidade pública coexistia, no Direito Privado, com a utilidade privada. E não é só: a ingerência publicística, nessa hipótese, era tão extensa que a utilidade pública se sobrepunha à utilidade privada e, entretanto, o direito matrimonial continuava sendo de Direito Privado. Não se pode, assim, erigir a utilidade à categoria de elemento qualitativo para a diferenciação entre aqueles dois grandes ramos do Direito.No Direito do Trabalho, também chamado Laboral, Social, Industrial e Operário, que, apesar das críticas, é considerado ramo do Direito Privado, muitas vezes a utilidade pública sotopõe a privada. Senão vejamos: o contrato é uma instituição típica do Direito Privado, todavia um contrato de trabalho em que se estipule salário abaixo do mínimo legal é nulo, pouco importando o assentimento da parte economicamente mais fraca, pouco importando o assentimento do empregador, pouco importando, em suma, o consentimento das partes contratantes. É verdade que, quanto ao Direito do Trabalho, há quem defenda seu caráter público; outros, semÁpúblico, e outros, como Gustav Radbruch, para quem "o Direito do Trabalho não é público nem privado, porque contém normas de direito público e normas de direito privado e, por isso, deve constituir um terceiro ramo, modificando-se, destarte, a clássica divisão de Ulpiano".Vê-se, com relativa facilidade, que o critério da utilidade é lacunoso, falho, impreciso. Outros critérios têm sido aventados sem que hajam ganho fofos de cidadania. Para os que estudam a morfologia do Direito,

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o estabelecer a diferença entre o Direito Público e o Direito Privado tem sido uma questão tormentosa. Dos critérios aceitos, o mais corrente é o que faz repousar o traço diferencial nos sujeitos das relações reguladas e na finalidade da norma. Quando um dos sujeitos das relações reguladas for o Estado Soberano e o objetivo da norma constituir um fim específico do Estado, estaremos em face do Direito Público. Ao contrário, Direito Privado.

Aéitando tal critério distintivo, podemos então dizer que o Direito Processual Penal é ramo do Direito Público. E o é porque o Estado Soberano, nas relações reguladas pelo Direito Processual Penal, interfere como um dos sujeitos, e, além disso, o objetivo das normas que informam o Direito Processual Penal constitui um fim específico do próprio Estado. De fato, cabendo ao Estado ojus puniendi, uma das expressões mais características da sua soberania, para usarmos a expressão de Aloysio de Carvalho Filho, constituindo a repressão ao delito uma necessidade e um fim essencial do Estado, como meio indispensável para a defesa da ordem jurídica, e sendo a precípua finalidade do Processo Penal conseguir a realização da pretensão punitiva que surge de uma infração, por meio da "utilização da garantia jurisdicional", não se pode negar o caráter publicístico do Direito Processual Penal. Ademais, na relação processual, destaca-se o Juiz, representando o Estado, como o sujeito mais eminente.

15. Relação do Direito Processual Penal com outros ramos doDireito e ciências auxiliares

Não se concebe um ordenamento jurídico em que os vários ramos do Direito que o compõem se contradigam. Pelo contrário: o ordenamento deve apresentar-se de maneira unitária. Ora, sendo o Direito Processual Penal parte desse ordenamento, "vive em íntima comunicaçao com os demais ramos do Direito".

Direito Constitucional. íntimas relações existem entre o Direito Processual Penal e o Direito Constitucional, porquanto é este que estabelece e enuncia os princípios que servem de base à jurisdição penal. 0 direito de ação, no sentido abstrato, genérico e indeterminado, como garantia constitucional, é estabelecido na Constituição, cumprindo ao legislador ordinário disciplinar-lhe o exercício. A Magna Carta, proclamando nos incs. LIV e LVII do art. 5.0 o princípio do devido processo legal e aque-

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le que lhe serve de coroamento - "ninguem sera considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" -, outra coisa não faz senão ditar normas segundo as quais deve ser administrada a Justiça Penal. Ainda no iric. LIII, consagra o princípio do "Juiz naturaV, de sorte que ninguém poderá ser processado nem sentenciado senão pela autoridade, que, no nosso sistema, outra não é senão a prevista implícita ou explicitamente pelo Estatuto Constitucional, com competência ante factum. Proclama, enfim, a Magna Carta inúmeras garantias que, depois, encontram seu

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desenvolvimento prático e sua efetiva atuaçao no Processo Penal. Assim, no inc. X1 do art. 5.0 proclama a inviolabilidade do domicílio; o CPP, não podendo afastar-se da Lei Maior, disciplina, nos arts. 240 e s., como e quando é possível a entrada em casa alheia, dentro dos limites que a Constituição traçou. Nos incs. 1---111e LIV do art. 5.", consagrou o princípio de que ninguém poderá ser processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma da lei anterior. É o nulla poena sinejudicio. Nenhuma pena poderá ser imposta a quem quer que seja, senão por meio do processo, e nenhum réu podera sujeitar-se à pena sem a devida apreciação, em processo regular, pela autoridade competente. No mesmo inc. LIV, proclama o princípio do due process of law, vale dizer, o princípio da plena defesa e o princípio do contraditório. E o CPP, não podendo afastar-se da diretriz traçada pela Lei Maior, torna efetivas aquelas garantias, estabelecendo regras como as dos arts. 394, 395, 261, 263, 306, 577, 648 etc., que evidenciam, tal como quer a Magna Carta, que o acusador e o acusado, no Processo Penal, se encontrem no mesmo plano, com os mesmos direitos, deveres e obrigações. Para não ferir o principio do contraditório, dispõe o art. 263 do CPP que o acusado somente poderá a si mesmo defender-se caso tenha habilitação, pois não se conceberia um verdadeiro contraditório sem o antagonismo de partes homogêneas. No inc. LXI do art. 5., dispõe que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita da Autoridade Judiciária competente. É a garantia. A estrutura. 0 Direito Processual Penal traça as normas sobre o flagrante, cuida de outras espécies de prisão e exige, nesses casos, a ordem escrita da Autoridade Judiciária. A fiança, o habeas corpus são outras tantas garantias proclamadas pela Lei Maior e que encontram seu desenvolvimento prático e sua efetiva atuação no Direito Processual Penal. Acrescentemse ainda, diz Manzini, "Ias relaciones entre Ios dos ordenamientos jurídicos originados por Ia Ilarnada garantia política, prerrogativa otorgada

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a los diputados ya a los senadores; la institución y el ordenamiento de la Corte Constitucional; el poder de clemencia etc." (cf. Derecho procesal penal, trad. esp., v. 1, p. 126).Direito Penal. 0 Direito Processual Penal dita as normas segundo as quais deve o Direito Penal atuar. Tão íntimas são as suas relações, que por muito tempo estavam as duas disciplinas formando um só todo, dizendo-se até que o Direito Processual Penal era um ramo, um apêndice do^reito Penal. Ainda hoje, há institutos, como os da ação, suspensão condicional da pena, livramento condicional, regulados pelas duas disciplinas. 0 Direito, diz Lucchini (Elementi, p. 2), é a substância; o processo é a forma; o Direito é a força em potência; o processo é a forçaato. 0 Direito, graças somente ao processo, passa e pode passar do abstrato ao concreto, da idéia à realidade. É o Direito Processual Penal que dinamiza o Direito Penal. 0 Direito Penal material e a energia potencial; o Direito Processual Penal é o meio pelo qual essa energia pode colocarse, concretamente, em ação. "Ninguna norma de derecho penal", doutrina Manzini, "puede aplicarse sin recurrir a Ios medios, a Ias garantías del proceso penal" (Derecho, cit., p. 127). Tão estreitas são as relações entre ambos, que não se concebe a existência do Direito Processual Penal sem que haja um Direito Penal. É por meio do processo que ojus

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puniendi adquire sua esplendorosa força. Não se concebe, no Estado de Direito, a aplicação de pena senão por meio de regular processo. Bastaria essa instrumentalidade do Direito Processual Penal para realçar as relações íntimas entre esses dois grandes ramos do ordenamento jurídico. Entretanto podemos acrescentar: enquanto a lei penal diz que tal ou qual infração é de ação pública incondicionada ou condicionada ou de alçada privada, é o processo que regula o exercício da ação. 0 problema da tipicidade reflete-se no campo processual penal. Idêntico fenômeno ocorre com as excludentes dos crimes e das penas. Por último: "tutela a lei penal, complementarmente, a administração da justiça, estabelecendo sançoes para as condutas ilícitas contra a administração da justiça" (cf. Frederico Marques, Tratado, v. 1, p. 44).

Direito Civil. 0 Direito Processual Penal também se liga ao Direito Civil, principalmente naqueles atos cuja prova é limitada pela lei civil (CPP, art. 155); na reparação do dano ex delicto; no que respeita ao instituto da capacidade; nas questões prejudiciais civis etc. Muitas vezes a existência de uma infração penal pode depender da solução de uma relação de Direito Civil. Atentem para os crimes contra o património,

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em que pode ser suscitada discussão sobre a propriedade da coisa; para o crime de bigamia, em que se pode discutir sobre a validade ou não do primeiro casamento ou do segundo, por motivo que não a bigamia. Nesses exemplos, a discussão pode ser relevante. De fato. Se o primeiro casamento for nulo, ou mesmo o segundo, por outro motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime. Nos delitos contra o património, se o agente prova que a coisa era própria e não alheia, desaparece a conduta ilícita.Direito Administrativo. Inúmeras são as relações entre o Direito Processual Penal e o Direito Administrativo. 0 CPP, como se infere da leitura do parágrafo único do art. 4.', não exclui a competência de algumas autoridades administrativas para a apuração de certas infrações penais e sua autoria. Afina-se com o Direito Administrativo, no que respeita à organização judiciária, às atividades administrativas dos órgãos jurisdicionais e no que tange à Polícia Judiciária. Há até quem diga que as medidas de segurança (Manzini, Derecho, cit., v. 1, p. 126), previstas no CP, são providências administrativas e não penais e, portanto, têm caráter essencialmente administrativo as correspondentes regras formais contidas no CPP. Considere-se, também, que o Direito, segundo o qual se executam as penas, é, em parte, essencialmente administrativo...

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Direito Processual Civil. Importantes relações se estabelecem entre o Direito Processual Penal e o Direito Processual Civil. Dignas de nota as influências recíprocas das ações e sentenças penais e civis. 0 art. 63 do CPP proclama a influência que exerce no juízo cível a sentença penal condenatória com trânsito em julgado. E essa prevalência do julgado é tão importante que, se a vítima pretender, no juízo cível, o ressarcimento do dano originário do crime, se também foi proposta a ação penal, a despeito da regra do parágrafo único do art. 64 do CPP, deverá o Juiz do cível sobrestar o andamento da ação, até que se julgue em definitivo aquela, exatamente para evitar o antagonismo de julgados. No campo das prejudicialidades, observam-se, às vezes, estreitos laços entre os dois ramos do Direito: quando no Processo Penal se levanta uma questão prejudicial que diga respeito ao estado das pessoas, o Juiz penal determina a suspensão do processo e fica aguardando a solução dada pelo juízo cível à questão que, ratione materiae, é da sua competência. Por outro lado, determinadas questões que, a rigor, ratione m'ateriae, seriam da alçada do juízo cível, por força de lei, deslocaram-se para o juízo penal, como se constata pela leitura dos arts. 120, § 1.', 122, 12-7,

128, 134, 135, 137 e 138 do CPP. Observe-se, ainda, a intensa afinidade que existe entre ambos pelo fato de se terem originado de um tronco único, o Direito Processual, e, a certa altura, se desdobrado. Por essa razão, numerosos institutos são comuns ao Direito Processual Civil e ao Direito Processual Penal. Note-se que o agravo de instrumento adotado no Processo Penal está disciplinado nos arts. 544 e s. do CPC.As soluções dos conflitos intersubjetivos penais e extrapenais se fazem ffor meio doprocesso, mediante a invocação da tutela jurisdicional (ação), com a participação efetiva do órgão Jurisdicional (jurisdição). Apenas isso demonstra a profunda afinidade entre o Direito Processual Penal e o Direito Processual Civil.Direito Comercial. 0 Direito Processual Penal entronca-se com o Direito Comercial no campo falencial. A Lei de Falências, além de estabelecer determinadas figuras delituais, fixa, também, normas pertinentes à fase preparatória da ação penal, bem como firma regras concernentes à propositura da ação, prazos, conseqüências do recebimento da denúncia ou queixa no campo falitário, competência para o recebimento da peça inaugural da instância penal, poderes do particular (síndico ou qualquer credor) para oferecer queixa, mesmo arquivado o inquérito judicial etc.Direito Internacional. Múltiplos contatos tem, também, o Direito Processual Penal com o Direito Internacional. Os tratados, as convenções, as regras de Direito Internacional, o instituto das rogatórias, a matéria concernente à extradição, pertinente às imunidades diplomáticas, à extraterritorialidade, à homologação de sentenças penais estrangeiras são assuntos que estreitam os laços entre esses dois ramos do Direito.Ciências auxiliares. Essas ciências auxiliares, diz Manzini (Derecho, cit., p. 128), são todas aquelas que, de qualquer modo, servem aos fins do Direito Processual Penal. Todas as ciências auxiliares do Direito Penal material são, necessariamente, auxiliares do Direito Processual Penal. Dentre elas, destacam-se: a) a Psicologia Judiciária, fornecendo ao Juiz elementos para avaliar adequadamente a prova

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testemunhal, os motivos do crime etc.; b) a Polícia Científica, mostrando os caminhos para as investigações de crimes e identificação dos seus responsáveis; c) a Medicina Legal, de valor inexcedível, fornecendo valiosos subsídios ao Processo Penal, principalmente no que respeita ao exame de corpo de delito, verificação de idade e, enfim, em todas aquelas perícias em que não se

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pode prescindir da Medicina Legal; d) a Psiquiatria Judiciária, de valor extraordinário, tratando "das doenças e anomalias mentais do ponto de vista da aplicação da justiça"; e) a Odontoscopia, em numerosos casos, é de excelente valor, auxiliando a Justiça na identificação das pessoas. Relata o Prof. Costa Doria que, em 1909, foi a legação alemã no Chile destruída por um incêndio. Dentre os escombros foi encontrado um cadáver identificado em vista de certos objetos, tais como aliança com iniciais e um lenço igualmente marcado, como sendo Willys Becker Frambalmer, secretário da legação. 0 ministro alemão não se conformou com a primeira perícia. Entre os novos peritos estava o Dr. Valenzuela de Bastarrica, que, examinando as arcadas dentárias do cadáver e comparando-as com a ficha dentária do secretário, existente em seu gabinete, reconheceu não ser o mesmo. Dias depois foi preso Becker, quando procurava fugir, e ficou provado ter ele assassinado o porteiro da legação para simular ter sido este o autor do crime. Para simular ter sido ele a vítima, Becker colocou no cadáver a sua aliança e um lenço de sua propriedade.

16. Princípios que regem o Processo Penal

0 Processo Penal é regido por uma série de princípios e regras que outra coisa não representam senão postulados fundamentais, da política processual penal de um Estado, e "que informam o conteúdo das normas que regem o processo em seu conjunto", dizendo respeito, pois, ao seu conteúdo material, aos poderes jurídicos de seus sujeitos e à sua finalidade imediata. Constitui a sua classificação tormento para os processualistas. Podemos salientar que, dentre os princípios e regras excogitadas nas diversas classificações, destacam-se o da verdade real, o da imparcialidade do Juiz, o da igualdade das partes, o do livre convencimento, o da publicidade, o do contraditório, o da iniciativa das partes, o ne eatjudex ultra petita parflum e outros mais, que estudaremos à frente, principalmente quando analisarmos a ação penal pública incondicionada, regra geral do nosso ordenamento. Ali, então, veremos os pruicipios da indisponibilidade, da oficialidade e da legalidade ou obrigatoriedade.

17. Verdade real

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A função punitiva do Estado, preleciona Fenech, só pode fazer-se valer em face daquele que, realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença.

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Por outro lado, com bastante acerto, ensina Manzini que a declaração de certeza da verdade real, em princípio, é, sem dúvida, de todo ordenamento processual, seja penal, seja civil etc., mas, quando os particulares podem dispor livremente de seus interesses, um acordo direto ou indireto entre eles pode excluir, no todo ou em parte, necessária ou eventualmente, a verdade real do Processo Civil, sem dano, antes, com vantagem para a ordem das relações patrimoniais.l,ea verdade, enquanto o Juiz não penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por elas debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, quem realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça.No Processo Penal, há "motivos peremptórios para sair da órbita de uma verdade subjetivamente limitada e dar à investigação a maior amplitude e a maior profundidade possível".A natureza pública do interesse repressivo exclui limites artificiais que se baseiam em atos ou omissões das partes. A força incontrastável desse interesse consagra a necessidade de um sistema que assegure o império da verdade, mesmo contra a vontade das partes.É certo que, no Processo Civil, o Juiz, também, não é um mero espectador inerte da produção de provas. Pela leitura do art. 130 do CPC chega-se, com facilidade, a essa conclusão. Ninguém duvida. Entretanto, porque o conteúdo da relação jurídico-material que informa a res injudicio deducta, em regra, versa sobre interesse disponível, muitas vezes se transige com a verdade real. Excepcionalmente o Juiz não penal procura, realmente, investigar a verdade material.

No Processo Penal, cremos, o fenômeno é inverso: excepcionalmente, o Juiz penal se curva à verdade formal, não dispondo de meios para assegurar o império da verdade.No Processo Civil vigoram as presunções, as ficções, as transações, elementos todos contrários "à declaração de certeza da verdade material".

Florian, estudando a prova civil e a prova penal, estabeleceu suas diferenças: a) quanto aos poderes do Juiz e às faculdades dispositivas das partes; b) quanto ao diferente sentido da verdade (no Processo Penal

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se investiga a verdade de fato no interesse público, que vence todo obstáculo); c) no Processo Penal os meios de prova são mais extensos; d) pela diversidade do conteúdo de cada um dos institutos probatórios; e) pela diversidade do procedimento correspondente a cada um dos meios de prova.Mostra, assim, Florian, em linhas gerais, vigorar, no Processo Penal, o princípio da verdade real.No campo extrapenal inúmeras são as presunções que, de certo modo, tornam-se incompatíveis com a busca da verdade material.No Processo Civil, grosso modo, as partes podem transigir, tomando-se, destarte, impossível a procura da verdade real.É certo que, no Processo Penal, tais transações são admitidas em caráter excepcional e se restringem às infrações de pequeno potencial ofensivo.No cível, por razões óbvias, o valor da confissão é imensurável (CPC, art. 343, § 1."). No penal, embora se trate daquilo que se chamava regina probationum, seu valor não é tão extraordinário, porque, muitas vezes, o confitente declara haver praticado uma infração penal sem que, entretanto, a houvesse perpetrado. Daí o cuidado do legislador ao estabelecer a regra que se contém no art. 197 do CPP.Note que se o Juiz penal absolver o réu e, após transitar em julgado a sentença absolutória, provas concludentes contra o mesmo réu aparecerem, não poderá ser instaurado novo processo penal pelo mesmo fato. Entretanto, na hipótese de condenação, será possível a revisão. Ficou sacrificada a verdade real? A rigor sim. Observe-se, entretanto, que, no cível, a sentença errada proferida a favor ou contra o réu, transitando em julgado, não comporta reexame, salvo a hipótese excepcional da rescisória.Nesses exemplos, percebe-se que o juízo penal transige com a verdade real. Entretanto maior transigência existe no campo extrapenal. Assim sendo, não se pode negar que no juízo penal a transigência com a verdade material seja menor que no cível.Por isso, pode-se afirmar que, embora o princípio da verdade real não vigore em toda a sua pureza no Processo Penal, aqui ela é mais intensa que no cível.Registre-se, por último, o poderjurídico que compete ao Juiz quanto ao desenvolvimento da relação processual.

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Preciosas as observações,de Vélez Mariconde: o Juiz aparece como titular de um poder autônomo de investigação, isto é, tem o poder de investigar de ofício a verdade dos fatos, apesar da inatividade do Promotor de Justiça e da parte contrária, não só durante a instrução, "sino también, en forma excepcional, durante el juicio. Es un celoso guardián de la verdad".Essa posição ativa e proeminente do Orgão Jurisdicional-Penal deriva, defde logo, da natureza pública do interesse repressivo e contrasta com a posição do Juiz cível, cujos poderes estão, geralmente, condicionados e limitados pela iniciativa das partes.Ninguém duvida que o Juiz do cível tenha poderes extraordinários para descobrir a verdade real, porquanto poderá ele determinar, de ofício, as provas necessárias à instrução do processo. Ninguém

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duvida, também, que a procura da verdade real, para a solução justa do litígio, é tarefa ínsita da atividade jurisdicional. Mas, e isto é que é importante, enquanto no cível, de regra, os interessados podem dispor dos seus direitos, inclusive estando sujeitos à sanção do art. 343, § 1.', do CPC, tudo isso toma possível "que, a su final, surja como verdadero, lo que sólo es parcialmente, o no lo es en absoluto". Já no Processo Penal, pelas suas características singulares, torna-se mais fácil chegar-se à adequatio intelectus et rei. E certo, por outro lado, que, mesmo na justiça penal, a procura e o encontro da verdade real se fazem com as naturais reservas oriundas da limitação e falibilidade humanas.

18. 0 princípio da imparcialidade do Juiz

Não se pode admitir Juiz parcial. Se o Estado chamou a si a tarefa de dar a cada um o que é seu, essa missão não seria cumprida se, no processo, quer civil, quer penal, não houvesse imparcialidade do Juiz.Mas a imparcialidade exige, antes de mais nada, independência. Nenhum Juiz poderia ser efetivamente imparcial se não estivesse livre de coações, de influências constrangedoras, enfim, de ameaças que pudessem fazê-lo temer a perda do cargo. Daí as garantias conferidas à Magistratura pela Lei Maior: vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. Pela vitaliciedade, no biênio inicial, o Juiz somente perderá o cargo por deliberação do Tribunal a que estiver vinculado e, ultrapassada a fase probatória, só por sentença judicial com trânsito em julgado, o que faz supor que a perda do cargo apenas ocor-

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rerá por fato muito grave. Não era suficiente vitaliciedade. Era precisoque os Juízes não pudessem sofrer pressões dos governantes, dos sobasou chefetes políticos do sertão, ameaçando-os com remoçao caso nãoatendessem aos seus pedidos. Daí a outra garantia: a inarnovibilidade.Somente em razão de um manifesto interesse público é que será possivel a remoção do Juiz. Não bastassem essas garantias, uma terceira serviria de coroamento àquelas: a irredutibilidade de vencimentos. Tais garantias conferem ao Juiz a certeza de que, decida como decidir, aindaque contrarie interesses dos potentados, continuará no cargo.

Mas não basta a independência política. Esta lhe dá respaldo para não temer sua atuação imparcial. Para procurar preservar a imparcialidade, a Constituição estabeleceu algumas restrições às suas atividades, enunciadas nos itens 1, 11 e 111 do parágrafo único do art. 95.

Apesar desses cuidados do legislador constituinte procurando dar ao Magistrado as garantias necessarias para não temer o exercício imparcial da função e ao mesmo tempo impondo certas vedações

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para que ele não se entusiasme com vantagens outras, o legislador ordinário, ciente de que não se pode conceber uma justiça presidida por Juiz parcial, previu determinadas situações que podem gerar a suspeita de parcialidade, e, nesses casos, a lei permite que a parte recuse o Juiz. 0 Juiz há de ser não apenas objetivamente capaz (com competência estabelecida antefactuni), mas também subjetivamente capaz. Não pode atuar no processo umjudex inhabilis ou umjudex suspectus. Tanto o Juiz impedido como o suspeito não podem atuar no processo. A seriedade da Justiça exige o afastamento do Juiz impedido ou suspeito. E quando haverá impedimento ou suspeição? 0 impedimento é mais sério, chegando a privar o Juiz de exercer a atividade jurisdicional, como se constata pelos arts. 134 do CPC e 252 do CPP. Havendo impedimento, aumenta bastante a possibilidade de tornar-se ele imparcial em face do seu manifesto interesse na solução do litígio. E a tal ponto chega a suspeita de parcialidade que o CPC permite até a rescindibilidade da sentença transitada em julgado, a teor do seu art. 485, 11. Por outro lado, o CPP dispõe no art. 252 que o Juiz impedido "não pode exercer jurisdição". Se judex inhabilis, fica ele privado de exercer a jurisdição. Nesses casos, deve o Magistrado afastar-se do feito; caso não o faça, qualquer das partes poderá argüir-lhe o impedimento, e, se provado, será afastado do processo.

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Quanto à suspeição, a lei também estabelece as causas que podem quebrar a imparcialidade do Juiz. A propósito, os arts. 135 do CPC e 254 do CPP. Ocorrendo uma daquelas causas, se o Juiz, sponte sua, não se der por suspeito, a parte que se sentir prejudicada poderá, por meio da exceçao propria, afastá-lo. Afinal de contas, um julgamento exige seriedade e imparcialidade, e as partes não teriam tranqüilidade sabendo que à frente do processo está um Juiz impedido ou suspeito. Muitas vezesÃem embargo da existência de uma causa que afeta a imparcialidade do Juiz, este pode entender que acima de tudo está a função jurisdicional. Apesar disso deve ser afastado, sob pena de nulidade do processo. As hipóteses previstas em lei e pertinentes à suspeição do Juiz não significam que ocorrendo uma delas o Juiz será parcial. Pode até continuar imparcial, mas pouco importa. Naquelas hipóteses, ele deve afastar-se do processo, ou, se não o fizer, qualquer das partes poderá argüir-lhe o defeito. Trata-se de verdadeira garantia em respeito ao direito que as partes têm de serjulgadas por Juiz imparcial. E essa imparcialidade proporciona uma indissimulada conotação ética ao processo.

19. Princípio da igualdade das partes

No processo, as partes, embora figurem em pólos opostos, situam-se no mesmo plano, com iguais direitos, ônus, obrigações e faculdades. É uma conseqüência do princípio do contraditório. E o legislador procurou manter esse equilíbrio diante do Juiz. Note-se, por exemplo, que o réu não pode defender-se a si mesmo, salvo se tiver habilitação técnica. É como soa o art. 263 do CPP. Se fosse possível, o princípio da igualdade ficaria desequilibrado.

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Se há essa igualdade, por que apenas o réu pode protestar por novo Júri? Por que somente ele pode opor embargos infringentes ou de nulidade? Por que a revisão criminal só pode ser postulada em face de uma sentença condenatória? Por que o principio proibitivo da reformatio in pejus? E que nesses casos há o princípio dofavor rei oufavor libertatis, princípio eminentemente ético, para, de certa forma, contrabalançar a posiçao da parte que acusa. Na verdade, se o réu e a pessoa que suporta uma Iiinitação na própria esfera de liberdade jurídica", ficando, assim, numa situação de desvantagem perante o titular dojus persequendi, deve ser favorecido pelo Direito. Como bem afirmou Bettiol, no conflito entre o jus puniendi do Estado, por um lado, e o jus libertatis do reu, por

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outro, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quer assistir ao triunfo da liberdade (cf. G. Bettiol, Instituições de direito e de processo penal, trad. Manuel da Costa Andrade, Coimbra, Coimbra Ed., 1974, p. 295).

20. 0 princípio da persuasão racional ou do livre convenchnento

Esse princípio, consagrado no art. 157 do CPP, impede que o Juiz possajulgar com o conhecimento que eventualmente tenha extra-autos. Quod non est in actis non est in hoc mundo. 0 que não estiver dentro no processo é como se não existisse. E, nesse caso, o processo é o mundopara o Juiz. Trata-se de excelente garantia para impedir julgamentos parciais. A sentença, dizia Flori an, não é um ato de fé, mas a exteriorização do convencimento do Juiz em face das provas produzidas. Ao tempo do processo inquisitivo os Juízes julgavam secundum conscientiam ou de acordo com a sua íntima convicção, certos de que nas decisões dos Tribunais populares os jurados julgam de acordo com o seu entendimento pessoal, sem ficar atrelados às provas dos autos.

21. Princípio da publicidade

Outro princípio importantíssimo do Processo Penal, e que também vige no Processo Civil, é o dapublicidade, segundo o qual os atos processuais são públicos.

Tal princípio é próprio do processo de tipo acusatório. Explica Eberhard Schmidt que a significação da Justiça Penal é tão grande, o interesse da comunidade no seu manejo e em seu espírito é tão importante, a situação da Justiça, na totalidade da vida pública, é tão problemática, que seria simplesmente impossível eliminar a publicidade dos debates judiciais. E arremata: se isto ocorresse, só poderia

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significar o temor da Justiça à crítica do povo, e a chamada "crise de confiança" na Justiça seria algo permanente (Derecho, cit., p. 102).

Beling fala em "publicidade popular" e "publicidade para as partes" (Derecho, cit., p. 27). Quando ocorre a publicidade popular ou geral, como a chama Pontes de Miranda, ou plena, como quer Frederico Marques, os atos estão ao alcance do público em geral. Diz-se "publicidade para as partes", ou restrita, como quer Frederico Marques, ou especial, como a denon-iina Pontes de Miranda, ou mediata, como diz Asenjo, quando

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um número reduzido de pessoas pode estar presente: os sujeitos da relação processual e, às vezes, os sujeitos da relação "jurídico-material".É certo que a publicidade absoluta ou geral acarreta, às vezes, quer no Processo Penal, quer no Civil, inconvenientes de toda ordem. Pontes de Miranda aponta o sensacionalismo, forte impressão no público, desprestígio do réu. Há outros ainda. Por isso os evitáveis e desnecessários prejuízos que resultam do princípio da publicidade geral são conjurados,10r limitações impostas pelas legislações. Aí, como pondera Pontes de Miranda, a técnica legislativa encontra problema a que tem de dar solução e o faz segundo sugestões da experiência e dos costumes políticos (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 1, p. 29).No Direito pátrio vigora o princípio da publicidade absoluta, como regra. As audiências, as sessões e a realização de outros atos processuais são franqueados ao público em geral. Qualquer pessoa pode ir ao Fórum, sede do juízo, assistir à audição de testemunhas, ao interrogatório do réu, aos debates. Em se tratando de processo da competência do Júri, são impostas algumas limitações (v. CPP, arts. 476, 481 e 486).Tal princípio da publicidade absoluta ou geral vem consagrado como regra nó art. 792 do CPP: "As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados".

A despeito de viger tal princípio, o legislador pátrio admite, também, a publicidade especial ou restrita. Di-lo o § 1.0 do art. 792: "Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o Juiz, ou o Tribunal, Câmara, ou Turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes". Muito a propósito, também, o iric. LX do art. 5.' da Magna Carta.Por outro lado, a publicidade não atinge, grosso modo, os atos que se realizam durante a feittira do inquérito policial, não só pela própria natureza inquisitiVa dessa peça informativa, como também porque o próprio art. 20 do CPP dispõe que a autoridade assegurara no inquérito o sigilo necessário... Trata-se, de conseguinte, de lex specialis. Nem se invoque

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a Constituição. Nela se fala em publicidade dos atos processuais... e os do inquérito não o são.Como característico do processo de tipo acusatório, a publicidade campeava na índia, entre os atenienses, entre os romanos, à época republicana, entre os germânicos. Era a publicidade popular. Posteriormente, a publicidade foi sofrendo limitações e, na Idade Média, por influência do Direito Processual Penal canônico, foi totalmente abolida. 0 processo passou a ser secreto. Só o julgador, que também acusava, e o secretário é que tinham conhecimento do que se passava no processo. Não se permitia sequer defensor, sob a alegação de que, se o acusado era inocente, não precisava de defensor, e, se culpado, era indigno de defesa. Muitas vezes o réu desconhecia a existência de processo contra si... Era o chamado processo de tipo inquisitivo, antítese do processo acusatório. No inquisitivo, tudo se fazia a portas fechadas, secretamente, sigilosamente, em surdina, e ninguém, salvo o julgador e o secretário, podia ter acesso aos autos.R. W. Millar, citado por Frederico Marques, evoca a frase de Mirabeau,que é bem uma vergastada na Justiça entre quatro paredes: "donnez- 1moi le juge que vous voudrez, partial, corrupt, mon ennemi mêrne, sivous voulez, peu m'importe, pourvu que ne puisse rien faire qu'à Ia facedu public".

E a razão dessa desconfiança é explicada por Pontes de Miranda: temia-se mais o Juiz "invisível, infiscalizável pelo olho do público, que o proprio juiz corrupto ou inimigo das partes" (cf. Comentários, cit., p. 29).

Romagnosi advertia que a publicidade era um grande freio contra a fraude, a compaixão e a baixa indulgência.

22. Princípio do contraditório

Entre nós, o princípio do contraditório é dogma constitucional. Na verdade, dispunha a Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 1169, no § 15 do art. 153, que "a lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes". E, em seguida, no § 16, determinava: "A instrução criminal será contraditória".

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A Constituição de 1988 é bem clara: "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o1 48

contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (art. 5.", LV).E, como se não bastasse tanta clareza, acentuou: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (CF, art. 5.", LIV). Claro que nesta expressão - due process of law - estão todas as garantias processuais.Aliás, em todo processo de tipo acusatório, como o nosso, vigora cípio, segundesse prA Í Í o o qual o acusado, isto é, a pessoa contra quemse propõe a ação penal, goza do direito "primário e absoluto" da defesa.0 réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariáIa, evitando, assim, possa ser condenado sem ser ouvido.Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia: audiatur et altera pars - a parte contrária deve também ser ouvida. Assim, a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusaçao e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o órgão Jurisdicional, como órgão "superpartes", para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, "dar a cada um o que e seu".0 nosso CPP consigna regras realçando essas garantias constitucionais. Assim, por exemplo, dispõe o art. 261 que "nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor". 0 art. 263 dispoe que, se o acusado não tiver defensor, o Juiz será obrigado a nomear-lhe um, ressalvando seu direito de, a todo o tempo, nomear outro de sua confiança ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação técnica. Aqui se vê, também, o cuidado do legislador para impedir a quebra do princípio: o acusado poderá defender-se a si mesmo, caso tenha habilitação técnica. Se o acusado quiser defender-se a si mesmo, não poderá fazê-lo se não tiver habilitação técnica, vale dizer, se não for advogado, provisionado ou solicitador. E Massari explica que o defensor técnico produz a garantia da contestação e do contraditório. E arremata: "non potendosi concepire vero contraddittorio senza una contrapposizione dei organi omogenei" (11 processo penale; nella nuova legislazione italiana, livro 1, p. 105). Na verdade, não haveria contraditório se os órgãos contrapostos fossem heterogêneos. 0 acusador tem habilitação técnica, e, assim, se o acusado não a tivesse, haveria uma luta desigual entre ambos, e o princípio do contraditório seria provavelmente burlado.

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Ainda realçando o princípio do audíatur et altera pars, dispõe o Código que, ao receber a denúncia ou queixa, deve o Juiz determinar a citação do réu para vir defender-se da acusação que se lhe faz.

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Se o réu estiver fora da comarca do Juiz processante, será citado por precatória, por rogatória, e, se em lugar incerto e não sabido, ainda assim será citado, por edital, mas citado.A citação é o ato de comunicaçao processual mais importante. Podese até dizer que a in jus vocatio é verdadeira garantia constitucional do direito à ampla defesa. Embora não esteja listada num dos incisos do art. 5.' da CF, ela se encarta no § 2.' desse mesmo dispositivo.É bem verdade que, nos termos do art. 366 do CPP, se malgrado citado por edital não atender ao chamado nem constituir Defensor, o processo e o prazo prescricional ficarão suspensos, sem prejuízo da produção antecipada das provas de natureza urgente. Mas não será julgado enquanto não aparecer para se defender...Por outro lado, o acusado deverá ser notificado para todos os atos do processo a que deva estar presente e intimado das decisões.A desobediência àquelas regras em que se consubstancia o principio do contraditório acarreta a nulidade, como se constata pelo art. 564, 111, c, e etc. do CPP.No processo de tipo inquisitivo, não existe o contraditório. Em alguns Códigos da Europa continental vigora o sistema músto: parte inquisitiva e parte contraditória. A fase das investigações preliminares e a da instrução criminal são secretas, escritas e não contraditórias. A fase dos debates e julgamento é oral, pública e contraditória.Do princípio do contraditório decorrem duas regras importantes: a da igualdade processual e a da liberdade processual, Esta última consiste na faculdade que tem o acusado de nomear o advogado que bem quiser e entender; na faculdade que possui de apresentar provas que entender convinháveis, desde que permitidas em Direito, de formular ou não reperguntas às testemunhas etc.Diz Aserjo que, onde se concedem mais privilégios à sociedadeque ao indivíduo, ou vice-versa, não se pode esperar a justiça da sentença, já porque isto mesmo é uma injustiça, já porque não se pode chegar à descoberta da verdade entre duas afirmações contraditórias, se a uma e a outra parte não se concede igual faculdade de apresentar provas que corroborem a própria afirmação.Por isso, e decorrente do princípio do contraditório, é que vigora, no processo de tipo acusatório, a regra da igualdade processual, segun-

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do a qual as partes - acusadora e plano, com iguais direitos.No processo de tipo inquisitório não

acusada - encontram-se no mesmo

existe tal igualdade, pois o

acusado não passa de um "objeto de investigação".

çãoPNOem mesmo no sistema misto, uma vez que, na fase da investigalicial e na fase da instrução, o processo se desenvolve com caracteres inquisitivos. Apenas na fase de julgamento é que aparece o contraditório, e^ conseqüência, surge também a regra da igualdade processual.Mesmo no processo de tipo acusatório, como o nosso, não falta quem

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deseje estender tal regra à fase pre-processual, fase das investigações policiais. Entretanto, se isso ocorresse, a ação persecutória do Estado seria reduzida sensivelmente, e raro seria vingarem as ações penais.Há uma citação em Jiménez Asenjo que vale a pena transcrever: "É difícil estabelecer igualdade absoluta de condições jurídicas entre o in-

divíduo e o Estado no início do procedimento, pela desigualdade real que em momento tão crítico existe entre um e outro. Desigualdade provocada pelo próprio criminoso. Desde que surge em sua mente a idéia do crime, estuda cauteloso um conjunto de precauções para sub-

trair-se à ação da justiça e coloca o Poder Público em posição análoga à da vítima, a qual sofre o golpe de surpresa, indefesa e desprevenida, Para restabelecer, pois, a igualdade nas condições da luta, ja que se pretende que o procedimento criminal não deve ser senão um duelo

'nobremente' sustentado por ambos os contendores, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem nos primeiros momentos, apenas para recolher os vestígios do crime e os indícios da culpabilidade do seu autor" (cf. Derecho, cit., p. 104).

Observe-se que, no Direito brasileiro, apenas no inquérito é que não existe a igualdade processual. Se houvesse tal regra no inquérito, a Polícia encontraria obstáculos maiores ainda na colheita de provas or razões que nos parecem óbvias.

23. Princípio da iniciativa das partes

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Segundo esse princípio, cabe à Parte provocar a prestaçãojurisdicional. Tal princípio vem cristalizado no velho aforismo nemojudex sine actore ou ne procedatjudex ex officio: não há Juiz sem autor, ou: o Juiz não pode proceder, não pode dar inicio ao processo, sem a provocação da parte.Se a ação penal é o direito de se invocar a tutela jurisdicíonal-penal do Estado, não se concebe, por incongruente, que o próprio Estado-Juiz

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invoque a si mesmo a-tutela em apreço. 0 próprio Juiz estaria solicitando uma providência a si mesmo. Haveria, como muito bem diz Carnelutti, jurisdição sem ação, como se tem no processo de tipo inquisitório. E acrescenta: por não admitir esta verdade, simples e óbvia, o Código (italiano) enredou-se na absurda concepção de uma ação que compete ao Juiz, em lugar da parte, ou seja, de uma ação que se identifica com a jurisdição, ou, ao menos, que se transforma em jurisdição, o que é um verdadeiro monstro de lógica processual (cf. Lecciones sobre elproceso penal, trad. Santiago S. Melendo, v. 2, p. 14).

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Desse modo, ocorrendo um crime de ação pública, cabe ao EstadoAdministração, representado pelo Ministério Público, levar o fato ao conhecimento do Estado-Juiz e pedir-lhe a aplicação da sanctio juris àquele que violou a lei penal. Se se trata de crime de alçada privada, cabe ao ofendido ou a quem legalmente o represente idêntico direito. É, assim, o próprio titular do direito a ação quem deve ou quem pode provocar a função jurisdicional. Nisto, pois, consiste o princípio da "iniciativa das partes".Assim, nos termos do art. 24 do CPP, é o órgão do Ministério Público quem promove a ação penal (início do processo) nos crimes de ação pública, por meio daquela petição que se chama denúncia. Nos termos do art. 30 do mesmo estatuto, é o ofendido ou seu representante legal quem a promove nos crimes de alçada privada. Tal princípio no nosso Direito constitui regra, e nem por via oblíqua pode ser desnaturado. E o que se dessume do art. 28 do CPP. Quando o Promotor requer o arquivamento de um inquérito, por entender, por exemplo, que o fato não constitui crime sequer em tese, o Juiz, não acolhendo suas ponderações, o máximo que poderá fazer é remeter os autos ao ProcuradorGeral de Justiça, Chefe do Ministério Público, para que diga a última palavra sobre o assunto. 0 Juiz não pode obrigar o Promotor a oferecer denúncia; caso contrário, estaria, por via oblíqua, quebrando o princípio do ne procedatjudex ex officio.Até há pouco tempo havia, entre nós, duas exceções ao princípio: o procedimento contravencional e o atinente ao homicídio e lesão culposos. Hoje, contudo, a Constituição, no art. 129, 1, dispõe que o exercício da ação penal pública é privativo do Ministério Público. Desapareceu, pois, o denominado procedimento ex officio, cujo ato de iniciativa cabia à Autoridade Policial e ao Juiz.

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24. "Ne eat judex ultra petita partium"

da reIniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os contorno s injudicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sob aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí "s segue que ao Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites da exceçWs deduzidas pelo réu". Quer dizer então que, do princípio do n proceãatjudex ex officio, ou, como dizem os alemães, do princípio d

Wo kein Anklãger íst, Da ist auch kein Richter (onde não há acusado não há Juiz) decorre uma regra muito importante, de aplicação tanto n( cível como no penal: ne eatjudex ultrapetitaparflum, isto é, o Juiz não

pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não fo solicitado. No particular, o CPC é muito expressivo, pois dispõe no art, 128 que "o Juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendolhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte". Mais adiante, no art. 460, o mesmo estatuto

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estabelece: "É defeso ao Juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado".

No penal, o fenômeno é idêntico. Assim, se o Promotor, na denúncia, imputa ao réu um crime de furto, e, afinal, apura-se que ele cometeuoutro crime completamente diverso (estupro, p. ex.), e não o de furto,não pode o Juiz proferir condenação pelo estupro, que não foi pedida, emuito menos quanto ao furto que não ocorreu. Todavia, se o Promotor,

na denúncia, descreve um crime de estupro (que efetivamente ocorreu),mas, ao classificar a infração, tal como exige o art. 41 do CPP, classifica-a como sedução (CP, art. 217), ou furto (CP, art. 155), o Juiz, ao

proferir sentença, poderá condenar o réu nas penas do art. 213 (estupro), sem necessidade de qualquer providência, como permitido peloart. 383 do CPP. Diz-se, até, que, nesse caso, nem existe a mutatio libelli

(modificação, alteração da peça acusatória), mas sim uma verdadeiraeinendatio libelli. Aí, evidentemente, não há julgamento ultra petituni.0 Juiz deu aos fatos, tão-somente, a correta classificação. E ojura novitcuria, livre dicção do direito objetivo, porque o Juiz conhece o Direito.

Se, por acaso, o Promotor denuncia alguém como íncurso nas penas do art. 155, caput, do CP, correspondendo a classificação ao narradona peça vestibular da ação penal, e, no curso da instrução criminal, apu-

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i

ra-se que o réu tinha a precedente posse ou detenção da res, cumpre ao Juiz tomar aquela providência apontada no caput do art. 384 do CPP e, depois, proferir sentença. Ainda aí não hájulgamento ultra petitum, mas aplicação dojura novit curia. Não deixa de haver, no caso, correlação entre a sentença e a acusação contestada, "contanto que se mantenha firme a condição de persistir a identidade do fato contestado, compreendida como identidade da ação ou da omissão".Se o Promotor oferece denúncia contra X, imputando-lhe um crime de sedução, e, na instrução criminal, apura-se ter havido um verdadeiro estupro (na instrução é que se descobriu ter havido violência), nesse caso, cumpre ao Juiz observar o disposto no parágrafo único do art. 384 do CPP, porquanto, na hipótese, em virtude daquela circunstância elementar encontrada nos autos, a pena será majorada. Não tomando a providência apontada no art. 384 ou no parágrafo único nas duas últimas hipóteses, haverá um julgamento ultra petitum. Do contrário, não. A propósito, o ensinamento de Giovanni Leone: "0 que efetivamente vincula o Juiz, isto é, o que delimita o campo do seu poder de decisão, não é a demanda ou o requerimento de condenação e, sim, a determinação do fato submetido à indagação do Juiz" (cf. Trattato, cit., p. 129). Realmente, o princípio do ne eatjudex ultra petita partium, também conhecido como sententia debet esse conformis libello, vale, no Processo Penal, "para

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assinalar os limites da correlação entre fato controvertido e fato decidido" (cf, Leone, Trattato, cit., p. 129). Quer dizer então que o nosso CPP não "repudiou a proibição de sentença condenatória ultra petitum", conforme assinalou o Min. Francisco Campos, na Exposição de Motivos que acompanha o CPP. Manteve-a; e tanto é exato que adotou as providências apontadas no art. 384 e seu respectivo parágrafo (nesse sentido, Frederico Marques, Elementos, cit., p. 192).As hipóteses previstas nos arts. 383 e 384, caput, do CPP não são, a rigor, de condenação in pejus, mas, como diz Frederico Marques, de consagração do princípio dojura novit curia (ef. Elementos, cit., p. 192), não tendo, assim, razão o Min. Francisco Campos, ao salientar, na Exposição de Motivos que acompanha o CPP, que este repudia a proibição de sentença condenatória ultra petitum ou "condenação in pejus". 0 que o Código repudiou foi a proibição do princípio da livre dicção do direito objetivo (jura novit curia) em toda e qualquer hipótese. Sim, antes do atual Código de Processo, como o Promotor não podia retificar a classificação feita na denúncia para impor ao réu sanção mais grave,

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então, o Juiz era obrigado a julgar nulo o processo ou improcedente a ação penal, conforme o caso. E o Promotor deveria apresentar nova denúncia, se ainda não estivesse extinta a punibilidade pela prescrição

ou outra qualquer causa. Atualmente, vigendo o princípio da livre dicção do direito, dispõe o art. 383 que "o Juiz poderá dar ao fato definição

jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave". E Frederico Marques expli~,W."A qualificação a ser dada aos fatos constitui juízo de valor que pertence, preponderantemente, ao órgão juri sdicional -narra miNfactum dabo tibijus" (cf. Elementos, cit., p. 192). E isto porque o Juiz conhece o direito (jura novit curia).Entretanto quer-nos parecer que o nosso Código adotou, nos processos da competência do Júri, um caso singular de julgamento ultra

petitum. Realmente. Dispõe o § 4.' do art. 408 do CPP: "0 Juiz não ficará adstrito à classificação do crime feita na denúncia ou queixa, embora fique o réu sujeito à pena mais grave, atendido, seJor o caso, o disposto no art. 410 e seu parágrafo".

Logo, quando o Juiz pronunciante entender que a classificação do crime feita na denuncia ou na queixa não está certa, poderá dar nova definição jurídica ao fato, pouco importando que o réu se sujeite a pena mais grave. Nesse caso, várias hipóteses podem ocorrer: a) o Promotor denunciou por tentativa de homicídio, e o Juiz, na fase da pronúncia, entendeu ter havido lesão grave; b) o Promotor denunciou por tentativa

de homicídio, e o Juiz, afinal, entendeu ter havido lesão leve; c) o Promotor denunciou por infanticídio, e o Juiz entendeu tratar-se de homicídio; d) o Promotor denunciou por homicídio, e o Juiz entendeu ter sido infanticídio. Para o nosso estudo, interessam-nos essas hipóteses.

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Pois bem, quando o Juiz pronunciante desclassificar um crime da competência do Júri (infanticídio) para outro que também se inclua na

sua competência (homicídio), não observará a parte final do § 4.' do art. 408, simplesmente "porque não é o caso". Entretanto, se houver desclassificação de um crime da competência do Júri (na fase da pronúncia) para outro da alçada do Juiz singular (de tentativa para lesão), aí, sim, é

de aplicar-se o disposto no art. 410.Ecertoqueoart.410diz:" Em

... qualquer caso, será reaberto ao acusado prazo para defesa e indicação de testemunhas, prosseguindose, depois de encerrada a inquirição, de acordo com os arts. 499 e se-

guintes Parecerá, assim, que a expressão "em qualquer caso" abrange

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ela

todas as situações. Pode parecer, mas, na verdade, não abrange. Signífica, tão-somente, que, quando houver desclassificação de um crime da alçada do Júri para outro que não se inclua na sua competência (de tentativa para lesão), "será reaberto o prazo etc.". E isto "em qualquer caso", vale dizer, pouco importando seja o crime apenado com reclusão ou detenção. Desse modo, se o Juiz desclassifica uma tentativa de homicídio (da competência do Júri) para lesão grave (da competência do Juiz singular), deverá aplicar, uma vez transitada em julgado tal decisão, o disposto no art. 410. Diga-se o mesmo se a desclassificação for para lesão leve, a despeito de, para esta, o rito normal ser o denominado sumário (art. 539). Mas, como a lei fala "em qualquer caso", a outra conclusão não pode chegar o intérprete.E tanto isso é exato que o § 4.' do art. 408 determina que, "se for o caso", aplica-se o disposto no art. 410 e seu parágrafo. Que diz o parágrafo do art. 410? 0 que segue: "Tendo o processo de ser remetido a outro juízo, à disposição deste passará o réu, se estiver preso". Per~ gunta-se: se o Juiz pronunciante desclassificar um crime da competência do Júri para outro da mesma competência, deverá aplicar o parágrafo único do art. 410? Evidentemente não. A menos que o crime tenha sido perpetrado noutra comarca. Mas, nesse caso, o preceito aplicável será o art. 109 do CPP. 0 parágrafo único do art. 410 não pode ser invocado para solucionar problema de competência pelo lugar da infração, mas de competência pela natureza da infração.Ademais, roborando nosso ponto de vista, aí está a primeira parte do § 3.' do art. 74 do CPP: "se o Juiz da pronúncia desclassifica a infração para outra, atribuída à competência do Juiz singular, observar-se-á o disposto no art. 410".Pois bem, não cremos que, na hipótese do § 4.' do art. 408, haja, simplesmente, uma amplitude do princípio do jura novit curia, mas, sim, um julgamento ultra petitum. E certo que a sentença de

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pronúncia não é sentença de mérito; é de natureza processual, pois o Estado-Juiz limita-se a julgar admissívei o jus accusationis do Estado-Administração, possibilitando, assim, o julgamento do mérito pelo Tribunal do Júri. Por isso mesmo dissemos tratar-se de um caso singular de julgamento ultra petitum. Não se trata, pois, de sentença definitiva de mérito, mas a desclassificação in pejus pode, às vezes, acarretar sérias consequencias para o réu. Observe~se a ré denunciada por infanticídio (afiançável), tendo havido desclassificação para homicídio (inafiançável). Nesse caso,

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se solta estiver, poderá ser recolhida à cadeia, onde aguardará presa ojulgamento (cf. CPP, art. 408, § 2.').Afora essa exceção, cremos, não existe outra, Dir-se-á que a Defe-

encias apon-sa ficou coarctada, uma vez que o Juiz não tomou as providê Ítadas no art. 384 e seu respectivo parágrafo. fórmula

Mas, pela leitura do § 4." do art. 408, percebe-se que a sua acompreende tanto a situação prevista no art. 383 quanto aquela referidno are384.

0 aditamento a que se refere o parágrafo único do art. 384 não deve ser oferecido na fase da pronúncia, salvo na hipótese especialíssima prevista no § 5.' do art. 408. E a razão é simples: pronunciado o réu por crime mais grave, nem por isso será julgado pelo fato de que não se defendeu, uma vez que, após a pronúncia, vem o libelo, já agora salien-

tando o dispositivo penal em que esteja incurso e articulando o fato, podendo a Defesa, na sua contrariedade, insurgir-se contra aquela "nova definição jurídica do fato" e, em plenário, Provar que não houve o crime, quer a parte objecti, quer a parte subjectí, ou, então, que este não foi perfeitamente definido na sentença de pronúncia.

Além do mais, ainda na fase da pronúncia, poderá o réu interpor recurso em sentido estrito, com fundamento no art. 58 1, IV, 1.a figura, do CPP.

Se a sentença de pronúncia fosse decisão definitiva, sim, as críticas teriam razão de ser. Mas a pronúncia, nos termos do § L" do art. 408,

limitar-se-á a declarar o dispositivo legal em cuja sançãojulgar incurso o réu. E é pelo fato de poder o Juiz julgar o réu como incurso nas sanções desse ou daquele dispositivo legal que o § 4.', já citado, permite~ lhe não ficar adstrito à classificação do crime feita na denúncia ou queixa, embora fique o réu sujeito a pena mais grave.

Por meio da pronúncia, o Juiz não está julgando; limita-se a dizer que o réu praticou este ou aquele crime. Quem irá julgá-lo será o Con-

selho de Sentença, tendo a Defesa ampla oportunidade de, em plenário, demonstrar o desacerto da pronúncia.Espínola Filho (Código de Processo Penal brasileiro anotado, Borsoi,

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1955, v. 4, p. 246) entende deva ser aplicado o disposto no art. 410, q em qualquer caso será reaberto ao acusado prazo para a defesa...

Com a devida vênia, discordamos.intim~ + E

Poroue ali se fnl- ----- 11

A segunda parte do art. 410 está

19cri e gada à primeira. Quando ali se fala "em qualquer caso ,

1 i

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2é como se o legislador quisesse dizer: a) se o processo for remetido a outro Juiz, será reaberto o prazo para a Defesa; b) se ele mesmo for competente, será reaberto prazo para a Defesa; c) se o crime for apenado com reclusão, será reaberto prazo para a Defesa; d) se apenado com detenção, será reaberto prazo para a Defesa; e) se se tratar de simples contravenção, será reaberto prazo para a Defesa...Nem teria sentido que, sendo o crime da competência do Júri, o Juiz fosse observar o disposto nos arts. 499 e s., isto é, 500, 501 e 502... A sentença a que se refere o art. 502 não é a mesma a que se refere o art. 408.

Dir-se-á que, se o Juiz desclassificar de infanticídio para homicídio, a ré sofrerá um prejuízo, pois o crime de afiançável se transmuda em inafiançável... Pondere-se, contudo.. que a regra do ne eatjudex ultra petitum partiuni é aplicável em termos de julgamento, e na pronúncia não há julgamento... Respeitante ao problema da prisão, recorde-se que, ao tempo da prisão preventiva obrigatória, o Juiz podia, no limiar da ação penal, para o efeito de decretar ou não a medida extrema, classificar corretamente a infração no despacho a que se refere o art. 313 do CPP. Ademais, como bem diz a Exposição de Motivos, o réu não pode ter um estranho direito adquirido a um quantum de pena injustificadamente diminuto, só porque o Ministério Público, por erro, tenha classificado mal a infração.Diga-se mais: a acusaçao nos crimes da competência do Júri vem estabelecida na pronúncia, e, por isso mesmo, o libelo dela não pode afastar-se. Assim, podemos afirmar que o § 4.' do art. 408 repete, tãosomente, o princípio dojura novit curia, a livre dicção do direito pelo Juiz, podendo este aumentar o perímetro delimitado na denúncia, salvo a hipótese prevista no § 5.' do mesmo artigo. Nesse sentido o v. aresto do STJ apreciando o Recurso Especial ri. 11.070-SP (DJU, 3-2-1992, p. 477). Contra: Ada Pellegriní Grinover, Antônio Searance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho, As nulidades no processo penal, Malheiros Ed., 1992, p. 172; Frederico Marques, Elementos, cit., v. 3, p. 202; Borges da Rosa, Comentários ao Código de Processo Penal, v. 2, p. 498. Magalhães Noronha crê

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que se deve aplicar o disposto no art. 410 (ef. Curso de direito processual penal, Saraiva, 1964, p. 338); Espíriola Filho segue-lhe a esteira (Comentários, v. 4, p. 246); Walter Acosta entende que se deve reabrir prazo para a Defesa, nos termos do art. 406 (cf. 0 processo penal, 5. ed., p. 456).

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25. Identidade fisica do juiz

Vigora no Processo Penal o princípio da identidade física do Juiz? No Processo Civil, o art. 120 do Código ab-rogado admitia a vinculação do Juiz aos processos cuja instrução houvesse iniciado. E a tal ponto

chegou aquele princípio no Código anterior que o Juiz, mesmo aposentado, transferido ou promovido, continuava vinculado ao processo cuja instru ~ iniciara. 0 atual CPC manteve o mesmo princípio, sem os exag da legislação passada. A propósito, o art. 132: "0 Juiz, titular

ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer

Motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor. Em qualquer hipótese, o Juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas".

No nosso CPP, ou até mesmo em qualquer lei processual penal extravagante, não havia, até há pouco tempo, regra semelhante, isto é, que obrigasse o Juiz que houvesse dado início à instrução a julgar a lide.

É verdade que o Ato Institucional ri. 2, no seu art. 24, estabeleceu que "o julgamento nos processos instaurados segundo a Lei n. 2.083, de 12-11 -1953, competia ao Juiz de Direito que houvesse dirigido a instrução". 0

princípio, entretanto, teve vida eférnera, uma vez que o referido Ato vigeu até 15-3-1967, e, além disso, em fevereiro daquele ano, surgiu a Lei ri. 5.250, dando nova feição aos crimes de imprensa e criando-lhes novo procedimento, sem estabelecer a vinculação ao Magistrado.

De lá para cá, houve, é verdade, alguns arestos da Excelsa Corte e do Tribunal de Alçada Criminal do Estado do Rio de Janeiro~ acolhendo-a, não só no procedimento sumário das contravenções, como no dos crimes apenados com detenção, em face do contido no art. 538, § 2.', do estatuto processual penal.

Sem embargo, a torrente jurisprudencial e quase toda a doutrina lhe negavam existência.Com o advento da Lei ri. 6.416, de 24-5-1977 ser testilhado Esse di 1

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, o assunto voltou ate redação: p orna conferiu ao art. 77 do CP de 1940 a seguin-

"Quando a periculosidade não é Presumida por lei, deveser reconhecido perigoso o agente: os motivos

1 - se seus antecedentes e personalidade,determinantes e as circunstâncias do fato, os meios emprega-

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dos e os modos de execução, a intensidade do dolo ou o grau da culpa, autorizam a suposição de que venha ou torne a delinqüir;11 - se, na prática do fato, revela torpeza, perversão, malvadez, cupidez ou insensibilidade moral.§ L" Compete ao Juiz que presidir a instrução, salvo os casos de promoção, remoção, transferência ou aposentadoria, para os fins do disposto no § 5.' do art. 30, declarar na sentença a periculosidade do réu, valendo-se, para tanto, dos elementos de convicção constantes dos autos e podendo determinar diligências".

Incidiria em erro, cremos, quem afirmasse que o legislador criou, a maneira do que sucede no cível, o princípio da identidade física do Juiz em todos os processos criminais. Além de laborar em equívoco, estaria ultrajando o legislador. De fato. Uma vez que a lei alterou disposições do CP, do CPP e da LCP, caso se desejasse o estabelecimento do princípio em todos os feitos, à evidência seria ele posto no corpo do estatuto processual penal, ou, então, no corpo do CP, no capítulo pertinente à aplicação da pena e não naquele destinado às medidas de segurança.0 princípio, pois, foi adotado, mas, com singeleza, timidamente, restrito ao juízo de periculosidade real...Hoje, contudo, em face da Lei n. 7.209, de 11-7-1984, dando nova redação à Parte Geral do CP, desapareceu do nosso ordenamento jurídico a figura da medida de segurança real. Atualmente a medida de segurança e aplicada tão-só, nos casos de inimputabilidade.Nas hipóteses de crime impossível e de participação impunível (CP, arts. 17 e 3 1), não há mais imposição de medida de segurança. Assim, o problema atinente à discussão que se travava quanto à existência, ou não, do princípio da identidade física do Juiz no Processo Penal, pelo menos por ora foi arredado. Não existe mesmo. É possível que, com as reformas setoriais que o Processo Penal está sofrendo, venha o princípio a ressurgir.

26. Princípio do devido processo legal

Entre nós, embora sem expressa disposição leg4 sempre se observou o princípio do due process of law. Hoje, contudo, foi ele erigido à categoria de dogma constitucional. Assim dispõe o art. 5.0, LIV, da

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Constituição de outubro de 1988: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Já se passaram os tempos dos bills of attainder Como bem diz Redenti, em síntese magnífica, o principio se resume em se assegurar a pessoa a defesa em juízo, ou "em não ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem a garantia que pressupõe a tramitação de um processo, segundo a forma estabelecida em lei" (cf. Diritto processuale civile, v. 1, p. 3 1). Já houve quem pensasse^, em face do princípio, haveria dificuldade para a decretação da prisão preventiva. Sem razão, contudo. As prisões preventivas continuarão, dês que observadas as prescrições legais.

Couture dá a mesma lição: "Em última análise, o due process of law consiste no direito de não ser privado da liberdade e de seus bens, sem a garantia que supõe a tramitação de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei" (cf. Fundamentos del derecho procesal civil, 195 1, p. 45). A Emenda V da Constituição norte-americana j a proclamava que "no person shall be... deprived of life, liberty or property without due process of law ......

27. Princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos

Até o advento da Constituição de 1988 não havia, em nosso país, qualquer regra impeditiva de se produzir em juízo "prova obtida através de transgressões a normas de direito material". Apenas o art. 233 do CPP. Agora, contudo, toda e qualquer prova, obtida por meios ilícitos, não será admitida em juízo. É como soa o inc. LVI do art. 5.' da Constituição de outubro de 1988. Assim, uma busca e apreensão ao arrepio da lei, uma audição de conversa privada por interferência mecânica de telefone, microgravadores dissimulados, uma interceptação telefônica, uma gravação de conversa, uma fotografia de pessoa ou pessoas em seu círculo íntimo, uma confissão obtida por meios condenáveis, como o famoso "pau de arara", o "lie detector" e, enfim, toda e qualquer prova obtida ilicitamente, seja em afronta à Constituição, seja em desrespeito ao direito material ou processual, não será admitida em juízo. Trata-se de uma demonstração de respeito não só à dignidade humana, como, também, à seriedade da Justiça e ao ordenamento jurídico. 0 n.' 2 do art. 5 do Pacto de São José da Costa Rica ao qual o Brasil depositou sua

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Carta de Adesão, dispõe que "ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos e degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade da pessoa humana". Ainda que não tivéssemos no texto constitucional tais garantias, elas seriam válidas, à dicção do § 2." do art. 5.0 da CF. É bem verdade que no direito comparado vamos encontrar duas posições diametralmente opostas: a da admissibilidade e a da inadmissibilidade. Mesmo nas legislações que admitem a primeira posição, não há nenhuma inflexibilidade. É o que se

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dá, por exemplo, no Direito belga, em que "a inadmissibilidade da prova ilícita está condicionada ao sistema de nulidades previstas pela lei processual". Em Portugal, a inadmissibilidade "está condicionada ao que dispuser a lei processual". Em outras legislações, a inadmissibilidade tem sido proclamada, em maior ou menor intensidade. A Emenda IV da Constituição norte-americana proclama que "toda a prova (evidence) obtida por busca e apreensão (search and seizure) em violação à Constituição é inadmissível nas cortes estaduais". Assim também as Constituições da Nicarágua, Bolívia e El Salvador.Nenhuma legislação, exceto a brasileira, proclama, de maneira absoluta e peremptória, a inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meios ilícitos. Passamos à frente de todas as outras. Nenhum texto constitucional proíbe, taxativamente, as provas obtidas por meios ilícitos. Só o brasileiro.

Entre o interesse estatal quanto à repressão e o respeito à dignidade humana e aquela série mínima de liberdades e garantias espraiadas no nosso ordenamento jurídico, o legislador constituinte brasileiro optou pela última solução. A eficácia da persecução penal precisava encontrar um limite no respeito das garantias individuais.Merece, aqui, transcrição o voto do eminente Dr. Gil Lavedra: "existen límites en la persecución penal... La tutela de los derechos del individuo es un valor más importante para la sociedad que el castigo del autor del delito. El respeto a la dignidad del hombre y a los derechos esenciales que derivan de esta calidad, constituyen el vértice fundamental sobre el que reposa la existencia misma de todo Estado de derecho... En la comparación de valores es preferible dejar sin castigo los delitos, que permitir que una garantía constítucional se tome letra muerta o a merced de cualquier eventual pretexto" (Doctrina penal, p. 345).Na verdade, conforme observa Bettiol, "a liberdade individual, como expressáo de um valor absoluto, deve ser tida como inviolável por qual-

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quer Constituição democrática" (Instituições de direito penal e proces-

so penal, trad. J. F. Dias, Coimbra Ed., 1973, p. 25 1).A CF, no art. 5.`, XII, ao cuidar das conversas telefônicas, proch ma não poderem elas ser interceptadas, a não ser "por ordem judícía nas hipóteses e naforma que a lei estabelecer para fins de investiga ção criminal ou instrução processual penal". Como se vê, não se trat de preceito self executing, subordinado como está a uma lei ordinári

que eâoobeleça as hipóteses e a forma em que será lícito ao Juiz autori zar a interceptação.

E somente em 1996 é que foi promulgada a Lei ri. 9.296, de 24 d julho, dispondo que as interceptações telefônicas de qualquer natureza para prova em investigação criminal e em instrução processual penal serão possíveis dês que determinadas pelo Juiz que estiver à frente do processo, conquanto estejam satisfeitas estas condições: a) quando houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal; b) a

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prova não puder ser feita por outros meios disponíveis; c) se a infração for punida com reclusão. Preenchidos estes requisitos, o Juiz, de ofício,

ou a requerimento da Autoridade Policial, na fase do inquérito, ou do Ministério Público, nas duas etapas da persecução (Inquérito e Instrução), em decisão fundamentada, pode determinar a interceptação, que ficará aos cuidados da Autoridade Policial.

Aliás, sem embargo dessa Lei, parece-nos que se deve respeitar o critério da proporei onalidade do direito tedesco tão bem expresso na Súmula 50 das Mesas de Processo Penal da USP, segundo a qual "'po-

dem ser utilizadas no processo penal as provas ilicitamente colhidas, que beneficiem a defesa". Na verdade, se a proibição da admissão das provas ilícitas está no capítulo destinado aos direitos fundamentais do homem, parece claro que o princípio visa a resguardar o réu. Sendo assim, se a prova, obtida por meio ilícito, é favorável à Defesa, seria um

não-senso sua inadmissibilidade. É que nos pratos afilados da balança estão dois interesses em jogo: a, liberdade e o direito de terceiro sacrificado, e entre os dois, obviamente, deve pesar o bem maior, no caso a

liberdade, pelo menos como decorrência do princípio dojàvor libertatis. Prova ilícita por derivação. A inadmissibilidade a que vimos de nos referir não se restringe apenas às provas obtidas ilicitamente, mas, inclusive, às ilícitas por derivação. Diz-se a prova ilícita por derivação quando, embora recolhida legalmente, a autoridade, para descobri-Ia, fez emprego de meios ilícitos. Assim, a proibição alcança não apenas as

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provas ilícitas propriamente ditas (busca domiciliar sem mandado, escuta telefônica sem autorização do Juiz, p. ex.), como as "ilícitas por derivação" - fruits of the poisonous tree. Mediante tortura (conduta ilícita), obtém-se informação da localização da resfurtiva, que é apreendida regularmente. Mediante escuta telefônica (prova ilícita), obtém-se informação do lugar em que se encontra o entorpecente que, a seguir, é apreendido com todas as formalidades legais... Assim, a obtenção ilícita daquela informação se projeta sobre a diligência de busca e apreensão, aparentemente legal, marcando-a, nela transfundindo o estigma da ilicitude penal.Aliás, a Suprema Corte tem sufragado (por maioria de votos) a tese da inadmissibilidade das provas ilícitas por derivação, ou da doutrina denominada fruits of the poisonous tree. No HC 69.912-RS, o Min. Sepúlveda Pertence, como Relator, observou: "Vedar que se possa trazer ao processo a própria 'degravação' das conversas telefônicas, mas admitir que as informações nela colhidas possam ser

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aproveitadas pela autoridade, que agiu ilicitamente, para chegar a outras provas, que sem tais informações não colheria, evidentemente, é estimular, e não reprimir a atividade ilícita da escuta e da gravação clandestina e conversas privadas... E finalizando: ou se leva às últimas conseqüências a garantia constitucional ou ela será facilmente contornada pelos frutos da informação ilicitamente obtida" (Informativo STF, n. 36, de 21-6-1996). No HC 73.35 1 -SP, o STF, concedendo o writ, observou que "a prova ilícita contaminou as provas obtidas a partir dela. A apreensão dos 80 quilos de cocaína só foi Possível em virtude de interceptação telefônica..." (Informativo STF, n. 30, de 15-5-1996).E preferível que o criminoso fique impune a se permitir o desrespeito à Lei Maior.

28. Princípio da inocência

Este princípio nada mais representa que o coroamento do due process of law. É um ato de fé no valor ético da pessoa, próprio de toda sociedade livre, como bem o disse A. Castanheira Neves (Sumários de processo penal, Coimbra, 1967, p. 26). Assenta no reconhecimento dos princípios do direito natural como fundamento da sociedade, principios que, aliados à soberania do povo e ao culto da liberdade, constituem os elementos essenciais da democracia (Antônio Ferreira Gomes, A sociedade e o trabalho: democracia, sindicalismo, justiça e paz, in Direito e justiça, Coimbra, 1980; v. 1, n. 1, p. 7).

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tal como afirmado por Clariá Olmedo, que, sendo o

réu pErevsiudmenídteampoenistè inocente enquanto não transitarem julgado a sentença condenatõria, 9as medidas de coerción personal que contra aquél

definitiva".

Há mais de cem anos, a Constituição francesa proclamava: "Tout homme 6tant pr6sum6 innocent jusqu'a ce qu'il ait W d6clar6 coupable; s'il estjug6 indispensable de I'aff8ter, toute rigueur qui ne serait n6cessaire

pour s'assurer de sa personne, doit 6tre s6v6rement reprim6e par la IoT. Tal princípio se espraiou pelo mundo civilizado, ditado pelo pensamento jurídico-liberal, e, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, o proclamou em seu art. 11:

.001- "Everyone charged with a penal offense has the right to be presumed innocent until proved guilty according to law in a public trial at which he has all the garantees necessary for his defense".

No mesmo sentido o inc. 2.' do art. W' da Convenção do Conselho da Europa:

"Everyone charged with a crin-final offence shall be presumed innocent until proved guilty according to law".

Page 73: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

mas vNeanciteáuliaa corrente liberal, e, em conseqüência, foi aprovado o § 2.', o problema agitou, na época, a Assembléia Constituinte,

do art. 27 da Constituição italiana:

"L` imputato non é considerato colpevole sino alla condanna

Nas suas Bases para orientar en Latinoamérica la unificación legislativa en materia procesalpenal, o emérito Professor da Universidade de Córdoba, Clariá Olmedo, estabeleceu:

"Nadie puede ser reputado culpable mientras una sentencia firme no ]o declare como tal. Hasta ese pronuncíamíento firme, el imputado goza de un estado de inocencia".Entre nós, pela primeira vez o princípio da presunção de inocência, tal

como proclamado pela Declaração Universal, é consagrado em texto constitucional. A propósito, o inc. LVII do art. 5." da CF de outubro de 1988:

"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

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se dicten sólo deben tener carácter cautelar y provisional, y estar limitadas a lo estritamente necesario" (cf. Bases, cit., p. 45).

No mesmo sentido a lição de Vélez Mariconde:

"De este principio (presunción de inocencia) derivan, también, elfindamento, lafinalidad y la naturaleza de la coerción personal del imputado: si éste es inocente hasta que la sentencia firme lo declare culpable, claro está que su libertad sólo puede ser restringida a título de cautela, y no de pena antecipada a dicha decisión jurisdiccional, siempre y cuando se sospeche o presuma que es culpable y ello sea indispensable para asegurar la efectiva actuación de la ley penal y procesal" (cf. Derecho procesal penal, Ed. Córdoba, v. 1, p. 325).

Assim também Julio B. J. Maier:

"Una vez reconocido que el imputado es inocente hasta la sentencía firme de condena que hace nacer el poder sancionatono penal del Estado, debe reconocerse también que la custodia preventiva y las medidas de coerción ejercidas contra el imputado, sólo pueden tener como objeto asegurar ou hacer posibles los fines del proceso penal - averiguar la verdad y actuar la ley penal - y ser aplicadas en la medida de la más estricta necesidad; cualquier exceso que tienda a convertirla en una pena antecipada, transladando a ella los fines de prevención general y especial que caracterizan a ésta, atenta contra la inocencia admitida del imputado mientras el castigo no le sea ímpuesto por sentencia firme" (cf. Cuestiones , fundamentales sobre la libertad del imputado y su situación en elproceso penal, Buenos

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Aires, Ed. LEA, 1981, p. 25).

Aí está o ponto ncvrálgico da questão devidamente solucionado: enquanto não definitivamente condenado, presume-se o réu inocente. Sendo este presumidamente inocente, sua prisão, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, apenas poderá ser admitida a título de cautela. Assim, por exemplo, condenado o réu, seja ele primário, seja ele reincidente, tenha ou não tenha bons antecedentes, se estiver se desfazendo de seus bens, numa evidente demonstração de que pretende fugir a eventual sanção, justifica-se sua prisão provisória. Do contrário, não. Desse modo, a regra contida no art. 594 do CPP tornou-se afrontosa à Constituição.

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Na pirâmide jurídica de Kelsen, a Constituição ocupa o seu ápice. Ela ~ a Lei Maior. Assim, se uma lei ordinária afronta a Lei de onde provêm as demais leis, ela não pode ter eficácia.

Mas, conforme arguta observação do eminente Juiz Adauto Suannes - observação feita, é verdade, alguns anos atrás -, há uma tendência que se nota com freqüência em membros da Magistratura e contra a qual urge lutar, depois de diagnosticada. Muito embora a "Declaração Uni~al dos Direitos do Homem" diga que "toda pessoa acusada de

um ato delituoso presume-se inocente até que sua culpa venha a ser apurada no curso de processo público, durante o qual se lhe assegurem todas as garantias necessárias à defesa" (art. 11), o comportamento do Juiz, por vezes, sugere exatamente o contrário: o denunciado é culpado

até que prove o contrário... (cf. Ap. n. 358.815/4, apud Ada P. Grinover, 0 processo constitucional em marcha, Max Limonad, p. 25 1).Agora, erígida à categoria de dogma constitucional, aquela tendên-

cia díagnosticada pelo eminente Magistrado obviamente se extinguirá, sob pena de se proceder a uma inversão da estrutura do ordenamento jurídico.

Se o réu não pode ser considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, por que prendê-lo antes de confir-

mada a sentença pela superior instância? 0 nerônico art. 594 do CPP não pode, a toda evidência, subsistir. Tampouco o art. 35 da Lei Antitóxico e o § 2." do art. 2.' da Lei ri. 8.072, de 25-7-1990.

A Constituição, que é a Lei Maior, proclama que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Se não é considerado culpado, por que exigir a sua prisão antecipadamente? A regra do art. 393, 1, do CPP e aquela prevista no art. 594 do mesmo diploma têm de amoldar-se à Carta Política. Se se pensar dife-

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rentemente, à maneira daqueles Magistrados a que se referiu o eminente Juiz Adauto Suannes, estarão as leis ordinárias - Código de Processo Penal e a Lei ri. 6.368/76 (Lei Antitóxico) - sobrepondo-se à própria Constituição, numa inversão de valores que afronta qualquer raciocínio lógico.

Infere-se do texto constitucional, com uma clareza de doer nos olhos,que o réu tem o direito público subjetivo de natureza constitucional deapelar em liberdade. Entendimento diverso conferirá à Lei das Leis omesmo destino das folhas mirradas e ressequidas das estações outonais.Para que serviria, então, a Magna Carta? Nos períodos de exceção, to-

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dos criticam a política autoritária e ficam, aos quatro ventos, clamando por liberdade, por democracia. Mas, quando cessa o período ditatorial, e o País se reencontra com a democracia e a liberdade, e os nossos constituintes elaboram leis que vêm ao encontro dos anseios libertários, proclamando plena publicidade do processo, paridade absoluta dos direitos e poderes da Acusação e Defesa, infranqueabilidade do domicílio (a não ser em casos excepcionais de perigo ou mediante ordem judicial), a inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente, o due process of law, a presunção de inocência, é de todo injustificável e inadmissível venha a Justiça - e logo a Justiça - a caminhar para o lado oposto, no sentido de retorno à época das construções político-ditatoriais, pondo o processo, que é instrumento de defesa das liberdades individuais, a serviço de propósitos políticos autoritários.Observe-se com Paul Cogniard: "La présomption d'innocence est ignorée de certaines législations autoritaires oú le souci de maintenir 1'ordre établi, au besoin par une répression sans impunité, 1'emporte sur Ia sativegarde des intérêts de 1'individu..." (cf. Procédure pénale, Ed. A. Colin, v. 2, p. 12).Se, não obstante essas observações, o Magistrado vier a ter dúvidas quanto à inconstitucionalidade, ou não, dos arts. 393, 1, e 594 do CPP e 35 da Lei Antitóxico, a lição de Bettiol lhe servirá como uma luva: "0 juiz vive e opera num determinado clima político-constitucional em que a pessoa humana representa o valor supremo; e é a posição desta que o Juiz é chamado a escolher entre duas interpretações antitéticas de uma norma legal" (cf. Instituições, cit., p. 297).Um Código de Processo Penal, adverte o mestre, que não se enraíze racional, política e juridicamente nas disposições de uma Constituição que "reconhece e garante os direitos fundamentais do homem" fica exposto a todas as possibilidades de reforma, ao ritmo das sucessões das posições político-parlamentares ocasionais, com todo o cortejo de agressões aos interesses públicos e à liberdade pessoal. A Constituição é, assim, uma garantia e um limite íntocável para além das hipóteses da sua própria revisão.Se a Constituição proclama que ninguém poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, não deixa de ser um não-senso a regra estúpida e draconiana dos arts.

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393, 1, e 594 do CPP e 35 da Lei Antitóxico. Então, qual a valia da Constituição? Esta é o pressuposto de validade e de eficácia de todo o ordenamento

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jurídico estatal. E, como já se afirmou, as espécies normativas devem manter com a Constituição relação de compatibilidade vertical, sob pena de incidirem no vício jurídico da inconstitucionalidade. Por outro lado, como já assentado na mais alta Corte de Justiça do Pais, a incompatibi-Í

lidade entre uma lei anterior e uma Constituição posterior resolve-se, tecnicamente, pela revogação da lei (cf, RV, 95/980 e 993), e não pela argüição de inconstitucionalidade.'Ág-^plicação das regras dos arts. 393, 1, e 594 do CPP e 35 da Lei n. 6.368176 leva o intérprete a ler o inc. LVII do art. 5.0 da Constituição Federal como se tivesse o sentido de o recolhido ao xadrez dizer aos que

o visitarem: eu ainda não sou considerado culpado... estou aqui, preso, por ser presumidamente inocente...Poder-se-á alegar que, doravante, o réu só terá o seu nome lançado

no "rol dos culpados" após o trânsito einjulgado da sentença condenatória. Não é bem assim... No Estado de São Paulo, o Provimento n. 11181 e a Portaria n. 89181 da Eg. Corregedoria-Geral da Justiçajá determinavam que o preenchimento da ficha do "rol dos culpados" somente seria feito

após o trânsito em julgado da sentença condenatória... Mas, ainda que assim não fosse, mesmo se inexistissem tal Provimento e tal Portaria,

que vantagem poderia o réu auferir em ter, ou deixar de ter, o seu nome lançado no "rol dos culpados", antes ou depois do trânsito em julgado da sentença condenatória?

Houve quem alegasse que o princípio da inocência já havia sido proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, aos 10- 12-1948, para a qual o Brasil concorreu com a sua presença e com o seu voto, e, não obstante, nunca se admitiu pudesse o réu apelar em liberdade...

Na verdade, tal princípio deveria integrar o nosso ordenamento jurídico. Infelizmente, nunca o integrou. Se os réus continuaram sem o

direito de apelar em liberdade,esse fato se deveu, antes de mais nada, à falsa idéia de que, não estando o referido princípio inserido em nenhum texto do nosso ordenamento, sua observância não era obrigatória.0 princípio da inocência, em toda a sua grandeza, nunca foi respeitado entre nós. Observe-se que a Declaração Universal data de 1948... Pois bem: a nossa prisão preventiva compulsória - verdadeira aberra-

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ção jurídica - vigorou até 1967... Mais: Quando o réu preso era absolvido - e isto até 1973 -, se a pena cominada ao crime fosse de reclu-

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são igual ou superior a 8 anos, no seu grau máximo, ele continuava preso até o trânsito em julgado. No julgamento pelo Tribunal do Júri - e isto até 1973 -, se o réu fosse absolvido e a absolvição não se desse por unanimidade, ele continuaria preso, até o trânsito em julgado... Quando o cidadão era preso em flagrante por crime inafiançável - e isto até 1973 -, ele continuava preso. A regra do parágrafo único do art. 310 do CPP surgiu naquele ano... Até 1973, quando o réu era condenado, por uma infração afiançável, só podia apelar em liberdade se prestasse caução, salvo se condenado por crime de que se livrasse solto... (art. 321 do CPP).

Assim, a alegação de que o princípio da inocência data de 1948 é até desairosa e ofensiva, posto que jamais foi obedecido... E, por incrível que pareça, todos os abrandamentos das nossas medidas de coerção pessoal (revogação da prisão preventiva

compulsória, revogação do

parágrafo único do art. 596 do CPP, nova redação aos arts. 594 e 596 todos do CPP) surgiram, entre nós, no chamado período das restrições das liberdades...

Desse modo, uma vez que oprincipio da inocênciajamais foi obedecido e acatado, chega-se à inarredável conclusão de que a adesão do nosso Representante junto à ONU, àquela Declaração, foi tão-somente poética, lírica, com respeitável dose de demagogia diplomática... E estávamos em pleno regime democrático.E a prova mais eloqüente do que afirmamos repousa nesta circunstância: não tivemos, após aquela Declaração, nenhuma reforma processual penal que pretendesse amoldar o nosso diploma processual penal àquele princípio. Tudo continuou como Xantes... As alterações vieram vinte anos depois... e, em face do tempo, não se pode atribuí-Ias ao compromisso que a nossa pátria assumiu na ONU, assinando aquela Declaração.Agora é diferente. 0 princípio foi erigido à categoria de dogma constitucional. Ele não foi fruto de um ato demagógico, mas de insopitável anseio libertário de toda a nação brasileira. E, em razão desse princípio, toda e qualquer prisão deve revestir-se de natureza cautelar. Observe-se que a prisão preventiva se baseia, precisamente, em uma presunção concreta de culpabilidade. Sem esta, ensina Vélez Mariconde, 1a medida cautelar no tendria sentido iii fundamento" (Derecho, cit., v. 1, p. 326). Quando ocorre uma prisão em flagrante, e não estando presente qualquer das circunstâncias que autorizam a decretação da prisão preventiva, o indiciado

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tem o direito de ficar em liberdade, nos termos do parágrafo único do art. 310 do CPP; se o cidadão cometeu um crime inafiançável, mas não foi preso em flagrante, sua prisão preventiva somente poderá ser decretada se for necessária, e a lei diz quando ela se toma necessária: se o agente está perturbando a ordem pública ou a ordem econômica, se está criando obstáculo à instrução criminal, ou se está pretendendo subtrairse da eventual aplicação da lei penal. Ausentes tais circunstâncias, não poderákr preso preventivamente. E se for condenado? Pela mesma razão, se for condenado por sentença não transitada em julgado, sua prisão provisória, ou o seu antecipado cumprimento de pena, só se justifica se ele estiver dando sinais de que pretende subtrair-se à aplicação da lei penal. Senão, não.Condenado um cidadão a uma pena de 18 anos, se primário e de bons antecedentes, faz jus à liberdade provisori a até o trânsito em julgado da sentença condenatória, nos termos do art. 594 do CPP. Mas, se a pena imposta for de 3 anos, ou de 2 anos e um dia, mas não tiver ele bons antecedentes, não poderá apelar em liberdade. Não poderá por quê? Que cautela é esta do legislador? Não é muito mais provável que o condenado àquela pena de 18 anos venha a fugir? Como é que se pode presumir que o reincidente, ou de maus antecedentes, venha a fugir? Se o raciocínio tivesse lógica, o reincidente não fariajus à liberdade provisória no caso de flagrante... Se o raciocínio tivesse lógica, todo criminoso, reincidente ou de maus antecedentes, teria a sua prisão preventiva decretada...Condenado um cidadão, seu encarceramento provisório, antes do trânsito em julgado da sentença que o condenou, afronta a Constituição, a menos que o condenado esteja dando provas de que pretende subtrairse à eventual aplicação da lei penal.

Há quem afirme que a prisão resultante de sentença penal condenatória é, também, cautelar. E a cautela residiria na circunstância de ser o réu perigoso, pelo fato de ser reincidente ou ter maus antecedentes. Já está no passado a epoca em que se presumia perigoso o reincidente... E, por outro lado, presumir-se perigoso o cidadão que não tem bons antecedentes é jogar a barra muito longe. Num caso ou noutro, qual seria o periculum in mora (rectius: periculum libertatis)? Alega-se, por outro lado, que a prisão resultante de sentença penal condenatória não é uma prisão provisoria, e uma execuçao provisória da pena. A ser verdade (e só mudaria o rótulo), não tem sentido executar-se provisoriamente uma pena de quem ainda não pode ser considerado culpado. Além do mais,

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não faz sentido executar-se provisoriamente a pena do reincidente e deixar a do primário para depois do trânsito em julgado.Mas, como poderá ser uma execuçao provisória da pena, se o art. 105 da Lei de Execução Penal só admite a execução após o trânsito em julgado? Na verdade, a prisão resultante de sentença penal condenatória era considerada uma "provisória execução da pena", tal como dispunha o art. 669, 1, do CPP, dispositivo que já foi revogado. E agora? Certamente para aqueles que defendem as regras do art.

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594 do CPP e do art. 2.0, § 2.', da Lei dos Crimes Hediondos não custa "conseguir" uma outra natureza jurídica... Que seja a cautelar. Mas, nesse caso, é preciso que o Magistrado demonstre a necessidade da medida extrema. Esta não pode ser imposta automaticamente.Diz-se que o reincidente não pode apelar, pelo fato de ser reincidente. Haveria, então, uma certa desconfiança do reincidente. E provável. Mas, por que razão a lei não impede a liberdade provisória do art. 310 e parágrafo aos reincidentes? Por que razão o Juiz não decreta a prisão preventiva dos reincidentes?Se não dermos ao princípio da inocência tal interpretação - que é o mínimo -, estaremos admitindo a existência de palavras inúteis no texto constitucional... E a expressão contida no inc. LVII do art. 5.' da Magna Carta não passaria de mera excrescência jurídica...Para que serviria, então, proclamar que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatóría"? Trata-se, a toda evidência (para que não haja ultraje ao legislador constituinte), de um direito do cidadão. E direito fundamental, posto que inserido no art. 5." da Lei Maior. Direito a quê? Direito de ver respeitada a sua liberdade ambulatóri a. Direito de não sofrer qualquer medida constrítiva de liberdade, a não ser nos casos estritamente necessários, ditados por evidente cautela.

Por que exigir que o cidadão se recolha à cadeia para poder dizerlhe se a sentença que o condenou foi justa ou injusta, se a sentença que o condenou estava ou não nula? Mais parece um jogo de pôquer, em que o parceiro, para ver se está, ou não, sendo blefado, paga para ver... Só que, aqui, esse pagamento é muito alto: é a própria liberdade do cidadão.

Ademais, que mal existe em apelar ele em liberdade? Receio de fuga? Se ele quiser fugir, tanto poderá fazê-lo após o resultado do reexame

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da sentença pela superior instância como, também, tão logo fique sabendo da prolação da sentença condenatória.Irrepreensíveis estas v. decisões do Tribunal de Alçada Criminal deSão Paulo: "Se durante a instrução criminal o réu manteve a liberdade, porque a custódia era desnecessária, impossível a prisão durante o recurso baseada simplesmente em maus antecedentes reconhecidos na sentença" (RT, 658/297); "Segundo revelam os autos, o paciente, embora nãosenha bons antecedentes, permaneceu em liberdade durante toda

a instrução. Não foi preso em flagrante e não se entendeu necessária sua prisão Preventiva. E, em liberdade, não deu causa de qualquer embaraço quanto ao processamento da ação penal. De justiça, portanto, deferirse a ele, pelo menos, o direito de continuar em liberdade até o julgamen~ to definitivo da ação penal" (HC 198.476/7 do TACrimSP).

Londono Jimenez, membro das Comissões redatoras do Código Penal e do Código de Processo Penal da Colômbia, observa com profunda agudeza: "El drama del hombre que es privado de su libertad es un drama lacerante, que casi nunca está acompañado de la solidariedad social,

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ni repercute en las altas esferas oficiales, ni desvela a los administradores de justicia. Y si a esto se agrega el hecho preocupante y acusador de

que como mínimo el cíncuenta por ciento de los procesos penales terminan con cesación de procedimiento o sentencia absolutoria, ello está indicándonos

una tremenda falla de lajusúcia pena] que afecta considerablemente el derecho a la libertad de los acusados de un hecho punible" (Tratado de derecho procesal penal, Ed. Temis, 1989, v. 1, p. 24).

E se porventura os nossos Magistrados vierem a manter a disposição do art. 594 do CPP, outro caminho não nos restará senão o de repetir com Rui: "De nada serviria ao povo que suas instituições baixassem dos céus, ou fossem diretamente plantadas por mãos divinas, se a terra, onde caem, não fosse capaz de produzir a inteireza de ânimo e a coragem do dever, para as executar..." (A Constituição e os atos inconstitucionais, 2. ed., p. 255).Hoje, contudo, quase dez anos de vigência da Carta Política, os nossos Tribunais estão reconhecendo que o réu, reincidente ou não, tem direito de recorrer da sentença, e, por isso mesmo, lei subconstitucional não pode sobrepor-se à Lei Maior. Nada impede que o Juiz, na sentença

condenatória, decrete a prisão do réu. Mas, se o fizer, deverá fundamentar a decretação do ato constritivo, não se limitando a dizer que o réu é reincidente ou tem maus antecedentes, mas demonstrando, à luz do art. 312 do CPP, a necessidade da medida cautelar. Senão, não.

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29. Princípio do "favor rei"

Como bem diz Bettiol, numa determinada ótica, o princípio dofavor rei é o princípio base de toda a legislação processual penal de um Estado, inspirado na sua vida política e no seu ordenamento jurídico por um critério superior de liberdade. Não há, de fato, Estado autenticamente livre e democrático em que tal princípio não encontre acolhimento. É uma constante das articulações jurídicas de semelhante Estado o particular empenho no reconhecimento da liberdade e autonomia da pessoa humana. No conflito entre ojus puniendi do Estado, por um lado, e ojus libertatis do acusado, por outro lado, a balança deve inclinar-se a favor deste último se se quiser assistir ao triunfo da liberdade (cf. Instituições, cit., p. 295).E mais adiante acrescenta o mestre: ofavor rei deve constituir um princípio inspirador da interpretação. Isto significa que, nos casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas se conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma norma legal (antinomia interpretativa), a obrigação é escolher a interpretação mais favorável ao réu (cf. Instituições, cit., p. 296).

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No Processo Penal, várias são as disposições que consagram o princípio dofavor innocentiae, favor libertatis oufavor rei. Assim, a regra do art. 386, VI, impondo a absolvição por insuficiência de prova; a proibição da reformatio in pejus (art. 617); os recursos privativos da Defesa, como o protesto por novo júri e os embargos infringentes ou de nulidade (arts. 607 e 609, parágrafo único); a revisão criminal como direito exclusivo do réu (CPP, arts. 621 e s.); a regra do art. 615, § 1.', do CPP; e, por fim, como coroamento desse princípio, o da presunção de inocência, hoje crigido à categoria de dogma constitucional.Ao lado desses princípios poder-se-á também falar daquele que consagra o direito de o réu silenciar, se assim o desejar, tal como previsto no art. 5.', LXIII, da Constituição, Não se trata, aqui, do preceituado

na parte final do art. 186 do CPP: " o seu silêncio poderá ser inter

pretado em prejuízo da própria defesa mas de um direito ao silênciona sua maior expressão, sem ter "como consequencias o estabelecimento de indícios ou presunções, nem a consagração de um suposto ônus daverdade". Hoje, ele tem o direito, decorrente do princípio do nemo teneturse detegere, de falar ou calar-se, livremente, "de acordo com os ditamesde sua consciência, assim inteiramente preservada" (Ada P. Grinover, 0processo em sua unidade, p. 103).

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Quer-nos parecer ter sido desejo do legislador constituinte considerg o interrogatório do réu exclusivamente como meio de defesa, e não de prova e de defesa, e muito menos apenas de prova. As regras contidas na parte final do art. 186, e aquelas objeto dos arts. 191 e 198, todos do CPP, em face da nova Constituição, perderam sua razão de ser. 0 princípio do nemo tenetur se detegere, oriundo da fórmula doprivilege against self-incriminatíon, parece ter sido consagrado no texto da Cons-

tituiçã>de 1988. Aliás, se pensarmos bem, chegaremos à conclusão de que o nosso ordenamento já estava considerando o interrogatório comomeio exclusivamente de defesa. De fato. 0 art. 45, 111, da Lei de Imprensa dispõe que o réu pode requerer ao Juiz para ser interrogado...

0 Código Eleitoral registra, no art. 359, que, ofertada a denúncia, o réu será citado para contestá-la, e, recebida a peça acusatóría, serão ouvidas as testemunhas... Nem há interrogatório... Com a ampla defesa que a

Constituição lhe confere, o réu pode entender que o seu silêncio seja vantajoso, não podendo o Juiz tirar conclusoes apressadas contra ele. Do contrário, de que valeria o direito de se calar?

30. Princípio do duplo grau de jurisdição

Trata-se de princípio da mais alta importância. Todos sabemos que os Juízes, homens que são, estão sujeitos a erro. Por isso mesmo o Es-

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tado criou órgãos jurisdicionais a eles superiores, precipuamente para reverem, em grau de recurso, suas decisões. Embora não haja texto expresso a respeito na Lei Maior, o que se infere do nosso ordenamento é que o duplo grau dejurísdíção é uma realidade incontrastável. Sempre foi assim entre nós. Isto mesmo se infere do art. 92 da CF, ao falar em Tribunais

e Juízes Federais, Tribunais e Juízes Eleitorais. Observe~se, ainda, que o art. 93, 111, da CF faz alusão ao "acesso aos tribunais de segundo grau", numa demonstração de que há órgãos jurisdicionais de primeiro e segundo grau. 0 art. 108, 11, da Magna Carta diz competir aos Tribu-

nais Regionais Federais julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízesfederais e pelos juízes estaduais no exercício da com-

petência federal da área de sua jurisdição... Evidente, também, competir aos Tribunais estaduais julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos Juízes estaduais no exercício da sua competência própria... E, nessa ordem de idéias, compete aos Tribunais Regionais Eleitorais,

aos Tribunais Militares, aos Tribunais Regionais do Trabalho julgar as causas decididas pelos órgãos de primeiro grau dessas Justiças.

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Por outro lado, como o § 2.' do art. 5." da Lei Maior dispõe que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, e considerando que a República Federativa do Brasil, pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992, fez o depósito da Carta de Adesão ao ato internacional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), considerando que o art. V, 2, daquela Convenção dispõe que durante o processo toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma série de garantias mínimas, dentre estas a de recorrer da sentença para Juiz ou Tribunal Superior, podese concluir que o duplo grau de jurisdição é garantia constitucional. Evidente, por outro lado, que nas ações penais originárias não há o duplo grau. Condenado ou absolvido um Juiz de Direito pelo Tribunal de Justiça, por exemplo, não há órgão superior para conhecer de eventual apelação. Mais claro ainda, para melhor entendimento, é o exemplo de um Deputado Federal ser condenado pelo STF. Como não existe órgão jurisdicional que lhe seja superior, por óbvio que não pode haver o duplo grau. Se por acaso houvesse, evidente que os seus membros, quando processados, poderiam, também, recorrer para outro que estivesse acima daquele que os processou e, nessa ordem de idéias, chegar-se-ia ao absurdo de um número infinito de órgãos superiores... o que teria indisfarçável sabor de disparate. Ademais, é de convir que as pessoas que fazem jus ao foro pela prerrogativa da função são julgadas por um órgão colegiado, e se acima desse órgão outro não existe para rever suas decisões, não poderá haver o duplo grau. 0 STF e o STJ têm outras funções. Eventualmente poderia o réu interpor recurso

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extraordinário ou especial. Mas a finalidade, aí, não seria examinar as questões de fato, mas fazer respeitar a Constituição e as leis federais e tratados. 0 duplo grau, pois, pressupõe uma jurisdição inferior, que conhece da causa, e outra superior, com a tarefa precípua de rever as decisões proferidas pela inferior. Entre nós, ajurisdição inferior é constituída de Juízes, Tribunal do Júri e Conselhos de Justiça, enquanto a superior é representada pelos Tribunais de Justiça, de Alçada (onde houver), TRF, TRE, Tribunal de Justiça Militar, onde houver. 0 Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, repetimos, têm outras funções, e não lhes cabe reexaminar as decisões dos Tribunais Estaduais ou Federais, salvo se atentarem contra a Constituição, as leis federais e os tratados.

Há, ainda, outros princípios, valendo lembrar, dentre eles, o da infranqueabilidade do domicílio (CF, art. 5., XI); o do sigilo da corres-

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pondência e das comunicações telegráficas (CF, art. 5.", XII, 1.' parte), sigilo não atingido por qualquer restrição, ao contrário das comunicações telefônicas e de dados de informáfica, como prescreve a parte final

do referido inciso; o princípio de que ninguém pode ser preso, salvo o caso de flagrante ou ordem escrita de Autoridade Judiciária competente

(CF, art. 5.0, LXI), tornando, assim, inoperante o art. 319 do CPP; o princípio do respeito à coisa julgada (CF, art. 5.', XXXVI), ressalvando-se4enas a ação rescisória no cível e a revisão criminal, assim mes-

mo dês que observadas as prescrições legais; o princípio proibitivo da identificação datiloscópica (CF, art. 5.", LVIII), exceto os casos previs-

tos em lei. Até hoje, janeiro de 1998, essa lei não foi elaborada. Mas há quem entenda que um dos casos referidos naquele preceito constitucional é o previsto no art. 6.", VIII, do CPP. Manifesto o equívoco. 0 preceito constitucional surgiu, precisamente, para que o art. 6., VIII, do estatuto processual penal não fosse cumprido quando o indiciado já ti-vesse sido identificado civilmente. 0 art. 6.', VIII, do CPP não terá aplicaçao se o indiciado já tiver sido identificado civilmente, salvo as hipóteses previstas em lei. Uma dessas hipóteses vem tratada no art. 5." da Lei ri. 9.034, de 3-5-1995. Ainda não surgiu lei disciplinando especificamente a matéria. Sem embargo, é óbvio que se o indiciado tiver duas ou mais cédulas de identidade, ou se a possuir rasurada, a identificação datiloscopica se impõe.

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Áfcapítulo 2

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Desenvolvimento HistOrico doProcesso Penal

SUMÁRIO: 1. 0 Processo Penal na Grécia. 2. 0 Processo Penal em Roma. 3. 0 Processo Penal entre os germânicos. 4. 0 Processo Penal canônico. 5. 0 sistema inquisitivo nas legislações laicas. 6. As inovações após a Revolução Francesa. 7. Tipos de Processo Penal. 8. Direito pátrio.

1. 0 Processo Penal na Grécia

Os atenienses, como os romanos, faziam distinção entre os crimes públicos e os crimes privados. Os primeiros prejudicavam a coletividade, e, por isso, sua repressão não podia ficar à mercê do ofendido; quanto aos segundos, a lesão produzida era de somenos importância para o Estado, e, assim, a repressão dependia da exclusiva iniciativa da parte. Entre os atenienses, o Processo Penal se caracterizava "pela participação direta dos cidadãos no exercício da acusação e da jurisdição, e pela oralidade e publicidade dos debates". Alguns delitos graves, que atentavam contra a própria cidade, eram denunciados ante a Assembléia do Povo, ou ante o Senado, pelos Tesmotetas, e a Assembléia ou o Senado indicava o cidadão que devia proceder à acusação.Apresentada a acusação, as provas e prestado o juramento, o Arconte procedia à prelibação da seriedade da acusação e designava o Tribunal competente, convocando as pessoas que deveriam constituí-lo.

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No dia do julgamento, falava, por primeiro, o Acusador, inclusive inquirindo suas testemunhas. Em seguida a Defesa.

Os Juízes, diz Vélez Mariconde, punham-se na posição puramente passiva de árbitros de uma luta leal entre as partes; afinal, votavam sem deliberar. A decisão era tomada por maioria de votos. Quando havia empate, o acusado era absolvido.Os mais importantes Tribunais atenienses eram os da Assembléia1do Povo, que se reunia, exclusivamente, para julgar crimes políticos bem graves. Não havia nenhuma garantia para o acusado. 0 Areópago, o mais célebre Tribunal ateniense, era competente para julgar os homicídios premeditados, incêndios, traição e, enfim, todos aqueles crimes a que se cominava pena capital. Impressionava o julgamento: o Tribunal se reunia ao cair do sol, as partes não podiam afastar-se da matéria de fato, e a votação era secreta. Havia também o Tribunal dos Éfetas, composto de cinqüenta e um Juízes, dentre os membros do Senado, e cuja competência se circunscrevia aos homicídios involuntários e não premeditados. 0 Tribunal dos Heliastas, que exercia a jurisdição comum. Algumas vezes funcionavam, no mesmo julgamento, 100, 500, 1.000 e até mesmo 6.000 Juízes. Era a crença de que tantas cabeças assegura-

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ivam melhor justiça, ou talvez a explicação esteja na cupidez dos três óbolos que o Estado destinava a cada um dos Juízes, por crime que julgavam (cf. Faustin Hélie, apud Jorge A. Romeiro, Da ação penal, p. 25). Veja-se, também, Vélez Mariconde, Estudios, cit., v. 1, p. 16.

2. 0 Processo Penal em Roma

Os romanos, como já salientamos, distinguiam os delicta publica dos delicta prívata e, por isso mesmo, havia o Processo Penal Privado e o Processo Penal Público. No primeiro, o Estado assumia o papel de simples árbitro para solucionar o litígio entre as partes. 0 Magistrado limitava-se a examinar as provas apresentadas pelas partes e decidia. No Público, o Estado atuava como sujeito de um poder público de repressão; com o passar dos anos, o Processo Penal Privado foi abandonado quase que totalmente.0 Processo Penal Público atravessou, em Roma, fases interessantes. No começo da Monarquia não havia nenhuma limitação ao poder de julgar. Bastava a notitia criminis para que o próprio Magistrado se pusesse em campo, a fim de proceder às necessárias investigações. Essa

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fase preliminar chamava-se inquisitio. Após as investigações, o Magistrado impunha a pena. Prescíndia-se da acusação. Nenhuma garantia era dada ao acusado. Não havia limites ao arbítrio dos Juízes, "y Ia defensa se ejerce en Ia medida que el magistrado tiene a bien concederla" (cf. Vélez Mariconde, Estudios, cit., p. 25). Era o processo denominado cognitio.Para moderar o arbítrio do Juiz, surgiu a provocatio ad populum, com in4nso colorido de apelação, concedida pela célebre "Lex Valeria

de Provocatione". 0 condenado tinha a faculdade de recorrer da deci~ são para o povo reunido em comício. 0 Magistrado que proferira a condenação, embasado nas provas coligidas durante a inquisitio, devia apre-

sentar ao povo os elementos necessários para a nova decisão. Via-se, destarte, quase na posição de acusado, trazido à barra do Tribunal popular para defender as próprias sentenças, não obstante as suas atribuiçoes de presidente do comício (cf. Florêncío de Abreu, Comentários ao Código de Processo Penal, v. 5, p. 164 e s.). Pouco adiantava aprovocafio ad populum, pois somente os civis romanus podiam fazer uso de tal remédio.

No último século da República, surgiu nova forma de procedimento: a accusatio. Qualquer cidadão tinha o direito de acusar, exceto os Magistrados, as mulheres1 os menores e as pessoas "que por seus antecedentes não oferecessem garantias de honorabilidade".

Iniciava-se o processo com a postulatio dirigida pelo acusador ao quaesi . tor - quem decidia se o fato alegado constituía crime e se não

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havia nenhum obstáculo para que a demanda fosse admitida. Aceita a postulatio, dava-se a inscriptio, isto é, inscrevia-se a postulatio no registro do Tribunal, e, uma vez inscrita, já não podia o acusador desistir e, ao mesmo tempo, nascia para ele o direito de proceder às necessárias

investigações para demonstrar em juízo a acusação. Devia, pois, o acusador acompanhar a causa desde a postulatio até a decisão final -

"perseveraturum se incrimine usque ad sententiam". Punia-se a tergiversação com multa, ficando ainda o tergiversador proibido de proceder a outras acusações. Se na acusação apresentasse fatos falsos, incorreria no crime de calúnia e seria punido.

A administração da justiça ficava a cargo de um Tribunal popular constituído dejudicesjurati, a princípio eleitos dentre os senadores (patres conscripti) e, depois, dentre os cidadãos, observadas suas condições 44 morais, sociais e econômicas".

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Para a formação do consilium, os judices eram simplesmente designados pelas partes (editio). Depois, prevaleceu a formação pelo sorteio (sortitio).Quando havia vários acusadores contra o mesmo réu e pelo mesmo crime, tinha lugar a divinatio, isto é, decidia-se qual dos postulantes deveria acusar.Mais tarde, admitiu-se a possibilidade de a acusação ficar a cargo de vários cidadãos.

Ao tempo de Cícero, o acusador dispunha de três horas para demonstrar a procedência da acusação; igual prazo era conferido à defesa.0 Tribunal era presidido pelo quaesitor, que se limitava a manter a ordem e a lavrar a sentença, ditada pelos judices jurati. Havia réplica e tréplíca. A princípio, a votação era feita oralmente. Depois, passou a ser secreta. Cadajudex recebia uma pequena tábua sobre a qual escrevia a letra A (absolvo), ou a letra C (condeno) ou, então, as letras N. L.- non liquet (abstenho-me). A decisão era tomada por maioria absoluta. A respeito desse assunto, há uma certa dúvida: Faustin Hélie esclarece que havia necessidade de maioria absoluta; Mominsen entende que bastava uma simples maioria.Se houvesse maioria de tábuas contendo as letras N. L., dava-se a ampliatio: repetiam-se os debates e se procedia a nova votação. Em caso de empate, o acusado era absolvido.Ao tempo do Império, a accusatio foi, pouco a pouco, cedendo lugar a outra forma de procedimento: a cognitio extra ordinem. Os poderes do Magistrado, diz Manzini, foram invadindo a esfera das atribuições já reservadas ao acusador privado, a tal extremo que, em determinada época, se reuniam no mesmo órgão do Estado (Magistrado) as funções que hoje competem ao Ministério Público e ao Juiz. De fato, ao tempo da accusatio, o processo não podia ser iniciado sem acusação. Esta era, com efeito, uma condição e obstáculo para o exercício do poder repressivo. Com o abastardamento dos costumes,

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houve uma indiferença dos cidadãos, e muitos delitos ficaram impunes pela sua inércia.0 que foi um sacrifício em benefício da República, uma honra disputada pelos mais ilustres cidadãos, converteu-se, então, em uma ruindade alimentada pelo ódio e pela avidez. As recompensas prometidas aos delatores fizeram destes, como diz Hélie, "aves de rapina" que se lançavam sobre as pessoas que a fantasia sangrenta do amo lhes indicava.

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Um instrumento de justiça e uma garantia para a liberdade, como foi o

direito de acusar, converteu-se em meio de despotismo e opressão' Esse resultado tão pouco satisfatório explica as severas medidas que se adotaram contra os delatores e o decreto que, finalmente, ditara Trajano: dispondo que o acusador fosse objeto das mesmas medidas cautelares que afetavam o acusado, isto é, que ambos fossem detidos até a conclusão do processo (cf. Vélez Mariconde, Estudios, cit., v. 1, p. 37).G&n o novo procedimento, procurou-se evitar aquela degeneração. Procedia-se a uma inquisição preliminar, e havia, à semelhança da nossa

Polícia Judiciária, funcionários encarregados de proceder a tais investigações preliminares. Eram os curiosi, os irenarchae, os nuntiatores, os stationarii, os digiti duri. Importa notar, especialmente, que, depois, o Magistrado atuava ex officio, "sem atender nem à acusação nem à denúncia", procedimento esse que se tornou regra geral.Acusador e julgador estavam consorciados numa só pessoa. Ojul-

gamento não mais ficava afeto aosjudicesjurati, mas a um Magistrado: o praefectus urbis ou o praefectus vigilum.

A apelação, neste novo procedimento, era dirigida ao Imperador, appelatio adprincipem. Depois o recurso de apelo passou a ser dirigidoMagistrados Superiores, "y el Emperador no conoce más que de Ia apelación interpuesta contra los fallos de los judices ilustres".

0 processo da cognitio extra ordinem faz introduzir, entre os romanos, a tortura, para a obtenção de confissões. A princípio torturava-

se o réu. Depois, não só o réu como também as testemunhas para que falassem a verdade.

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3. 0 Processo Penal entre os germânicos

blicoEsntre os germânicos houve, também, a distinção entre crimes púe crimes privados. A Justiça, para os primeiros, era

administradapor urna Assembléia presidida pelo rei, príncipe, duque ou conde. Aconfissão tinha um valor extraordinário. Se o réu confessasse, seria condenado. Feita a acusação, era o réu citado para comparecer ante a Assembléia. 0 ônus da prova, diz Pertile, não incumbia ao autor, mas sim

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ao réu, que devia demonstrar sua inocência, sob pena de ser condenado.As principais provas eram os ordálíos, ou Juízos de Deus, e o jura

inento. 0 acusado jurava não ter praticado o crime de que era processado, e tal juramento podia ser fortalecido pelos Juízes, os quais declara-

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vam sob jurairiento que o acusado era incapaz de afirmar uma falsidade. Essa prova do juramento baseava-se "na crença de que Deus, conhecendo o passado, pode castigar aquele que jura falsamente".Quanto ao Juízo de Deus, que, segundo Manzini, não era propriamente uma prova, mas uma devolução a Deus da decisão sobre a controvérsia, sua prática foi demais generalizada. Conforme as pessoas, reafizava-se, como Juízo de Deus, o duelo judicial: se o acusado vencesse, seria absolvido, pois era inocente. Havia outros Juízos de Deus, chamados, posteriormente, purgationes vulgares, como o da "água fria" e o da "água fervente". 0 primeiro consistia em arremessar o acusado à água: se submergisse, era inocente; se permanecesse à superfície, era culpado. 0 outro consistia em fazer o réu colocar o braço dentro da água fervente e, se, ao retirá-lo, não houvesse sofrido nenhuma lesão, era ínocente... Pelo Juízo de Deus do "ferro em brasa", devia o acusado segurar por algum tempo um ferro íncandescente; caso não se queimasse, era inocente...

Quando da invasão de Roma pelos germânicos, estes levaram consigo seus costumes, aparecendo, assim, entre os romanos, um verdadeiro processo misto "formado de elementos germânicos e romanos".

4. 0 Pirocesso Penal canÔnico

Ajurisdição eclesiástica, doutrina Mariconde, aparece primeiro como instrumento para defender os interesses da Igreja e subtrair os clerigos dajurisdição secular. Até o século XII, o processo era de tipo acusatório: não havia juízo sem acusação. 0 acusador devia apresentar aos Bispos, Arcebispos ou Oficiais encarregados de exercer a função jurisdicional a acusação por escrito e oferecer as respectivas provas. Punia-se a calúnia. Não se podia processar o acusado ausente.Do século XIII em diante, desprezou-se o sistema acusatório, estabelecendo-se o "inquisitivo". Muito embora Inocêncio 111 houvesse consagrado o princípio de que Tribus modis processi possit: per accusationem, per denuntiationem et per inquisitionem, o certo é que somente as denúncias anônimas e a inquísição se generalizaram, culminando o processo inquisitivo, per inquisitionem, por tornar-se comum.A acusação fora abolida nos crimes de ação pública. Abolida, também, fora a publicidade do processo. 0 Juiz procedia ex officio e em segredo. Os depoimentos das testemunhas eram tomados secretamente.

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0 interrogatório do imputado era precedido ou seguido de torturas. Regulamentou-se a tortura: "deve cessar quando o imputado expresse a vontade de confessar. Se confessa durante os tormentos e, para que a confissão seja válida, deve ser confirmada no dia seguinte".

"La pena del delito era a veces menos grave que Ia tortura..."

Baseado no interesse superior de defender a fé, fomentavam-se a indignidade e a covardia.111enhuma garantia era dada ao acusado. Uma simples denúncia

anônima era suficiente para se iniciar um processo. Não se permitia defesa, sob a alegação de que esta poderia criar obstáculos na descoberta da verdade... 0 Santo Ofício (Tribunal da Inquisição), instituído para reprimir a heresia, o sortilégio etc., era por demais temido.

S. 0 sistenía inquisitivo nas legisfalúes laicas

0 sistema inquisitívo, estabelecido pelos canonistas, pouco a pou-

co dominava as legislações laicas da Europa continental, convertendose em verdadeiro instrumento de dominação política.

Na Itália, os processos per denuntiationem et per inquisitionem desenvolveram -se tamanhamente que, até hoje, em numerosas cidades

da Itália, como Roma e Vêneza, dentre outras, podem ser vistas, em algumas praças, esculturas com formato de cara de leão, com a boca aberta, "as bocas da verdade" (Boccas della Verità) destinadas a receber as denuncias secretas dos alcagüetes e digiti duri. Tal processo, iniciado

por informes anônimos, ia caindo em desuso, e, já no século XVI, Farinácio ponderava: processus per viam secreti denuntiatores improbatus est a jure... Malefaciuntjudices et notarii recipientes istas notificationes... (o processo iniciado por denúncias secretas é reprovado pelo Direito...

agem mal os Juízes e notários que recebem tais comunicações).Na Espanha, vigorou o Código chamado Libro de las Leyes, mais conhecido com o nome de Las Siete Partidas.

Na Alemanha, o sistema inquisitivo foi consagrado em fins do século XV, por muitas leis, sendo a mais importante a Lei Imperial de 1503, mais conhecida como Constitutio Críminalis Carolina. Foi levado aos maiores extremos no Tribunal da Santa Punição (Vehmgericht), instituído para perseguir os delitos contra a religião, a paz pública e a honra. Eram secretos o lugar e a forma do processo. Não se conheciam

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o acusador, os Juízes e até mesmo a sentença (cf. Marizini, Derecho,cit., p. 55).

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Na França, o sistema inquisitivo fora também adotado. Proibia-se a defesa. 0 processo corria em segredo. Dizia-se que, "se o imputado era inocente, não precisava de defensor, e, se culpado, era indigno de defesa". 0 processo iniciava-se de ofício. Acusador e julgador eram uma só pessoa. Torturava-se o imputado para conseguir-lhe a confissão.Em 1670, no reinado de Luiz XIV, devido à iniciativa de Colbert, surgiu a grande Ordonnance sur la procédure criminelle - "a mais

perfeita expressão técnica do sistema inquisitivo".0 Processo Penal de que tratava a Ordonnance de Luiz XIV era eminentemente inquisitivo. Era escrito, secreto e não contraditório.Compunha-se de três fases: a primeira, que era a fase das informações, a segunda, que era a da instruçao preparatória, e a última, a do julgamento. A fase das informações, como o proprio nome está a indi~car, restringia-se às averiguações, à colheita de provas. Tais averigua~ ções eram realizadas secretamente.Dirigia esta fase um Magistrado, que se denominava lieutenant criminel du bailliage. 0 acusador ou era o Procureur du roi ou o próprio Juiz. Seguia-se a fase da instrução, que era dirigida pelo mesmo Magistrado. 0 interrogatório do acusado era realizado secretamente e sempre precedido de juramento. 0 acusado, até então, desconhecia as provas contra si apuradas. Nesta fase da instrução, o Juiz, se o crime lhe parecesse pouco grave, fazia prosseguir o processo segundo as regras do Processo Civil. Se grave fosse o crime, tinha lugar o processo extraordinário, isto é, a instrução tinha seguimento de acordo com os princípios do processo inquisitivo. Renovavam-se os depoimentos, precedidos de juramento, na ausência do acusado. Interrogava-se o réu, "a quem o Juiz impunha a obrigação de prestar juramento". Faziam-se as acareações. "La présence d'un défenseur n'est admise que pour les affaires compliquées..." Os resultados das investigações e da instrução formavam os cahiers du procés - os autos do processo. 0 julgamento erarealizado ante um Tribunal formado do lieutenant criminel e de seus assessores. 0 processo, lido na ausência do réu. Um relator, que podia ser o próprio lieutenant, expunha ao Tribunal os resultados da instrução. Antes de ser julgado, o acusado era novamente interrogado, sem a presença do defensor. Caso só existissem presunções e indícios graves,completava-se a prova com a tortura, cuj a finalidade era obter a melhor das provas: a confissão...

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Enquanto o sistema inquisitivo dominava a Europa continental, com seus processos secretos e indispensáveis torturas, na Inglaterra, após o IV Concílio de Latrão, que aboliu os "Juízos de Deus", considerava-se o processo, diz Beling, umfair trial, e se entendia que se devia tratar o acusado como a um gentleinan. Ali, naquele clássico país do liberalis-

mo, dominava a instituição do Júri, sendo que a persecução ficava a cargo de qualquer do povo.L#via o grande Júri e o pequeno Júri. Quando ocorria um crime, o acusador solicitava do justice of peace uma ordem de detenção, ou de citação do imputado. Se reputasse a acusação fundada e

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séria, o Magis-

trado emitia um warrant contra o acusado. Submetia-se o caso à apreciação do grande Júri, composto de vinte e três membros. 0 grande Júri

ou Júri de acusação manifestava-se, tão-somente, sobre a procedência da acusação. A votação era tomada por maioria absoluta. Se o grande Júri declarasse procedente a acusação, era o imputado levado à presença do Juiz presidente do pequeno Júri, que lhe perguntava se se considerava culpado ou inocente (guilty or not guilty). Confessado o crime,

o Juiz impunha-lhe a pena. Negado, reunia-se o pequeno Júri, constituído de doze jurados. Note-se, aí, a influência do Juízo de Deus: doze foram os apóstolos, batizados no dia de Pentecostes, pelo Divino Espí-

rito Santo. A matéria probatória era aí analisada, seguindo-se os debates. Concluídos, o Juiz fazia um resumo, e os jurados se reuniam para proferir o seu veredictuni, "que había de darse por unanimidad". Curiosamente, ap6s a acusagdo, osjurados "were confined withoutineat, drink, fire or candle, or conversation with others, until they were agreed..." (eram isolados, sem comida, bebida, fogo ou vela, nem podiam conversar com outras pessoas, enquanto estivessem reunidos) (J. H. Baker, An

introduction to English legal History, third edition, London, Butterworths, 1996, p. 86.). E arremata o referido autor: "The constraints of discomfort

were primarily intended to encourage unanimity (J. H. Baker, Anintroduction, cit., p. 87).

Enquanto a Inglaterra continuava a cultuar suas instituições liberais, na Europa continental surgia, no século XVIII, um movimento de combate ao sistema inquisitivo. Montesquieu condenava as torturas,

elogiava a Instituição do Ministério Público, uma vez que fazia desaparecer os delatores. Beccaria proclamava que o direito de punir nada mais

era senão o direito de defesa da sociedade e que, por isso mesmo, devia ser exercido dentro dos limites da justiça e da utilidade. Voltaire, por

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sua vez, censurou a Ordonnance de Luiz XIV. A lei, dizia, parece obrigar o Juiz a se conduzir perante o acusado mais como inimigo do que mesmo como Magistrado. EmNápoles, aboliam-se as torturas, e, já por volta do ano 1774, exigia-se sentença motivada. Em Toscana proibiamse as denúncias secretas e as torturas. Na França, um édito de 1788 proibia as torturas, exigia sentença motivada e concedia ao acusado absolvido uma reparação moral consistente na publicação da sentença.

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6. As inovações após a Revolução Francesa

Na França, logo após a maior revolução de que se tem memória, foram adotadas três ordens de jurisdições que correspondiam. a três espécies de infrações: o tribunal municipal para os delitos, o tribunal correcional para as contravenções, e o tribunal criminal para os crimes. Introduziu-se o Júri para os crimes e, à maneira do Direito inglês, compunha-se de duas fases: o Júri de acusação e o Júri de julgamento. Na primeira fase, que era a fase de instrução, interrogava-se o réu e tornavam-se os depoimentos das testemunhas. Era o Júri de acusaçao presidido por um Juiz, e oito cidadãos formavam o conselho. Terminada a instrução, o presidente perguntava aos jurados: "faut-il doriner suite à l'accusation?". Os jurados, então, se reuniam, secretamente, sob a presidência do mais idoso. A decisão era tomada por maioria. Deviam os jurados responder: "Oui, il y a lieu", ou, então, "non, il n'y a pas lieu".

Respondido afirmativamente - "oui, il y a lieu" - submetia-se o acusado ao Júri de julgamento, composto de um Juiz-presidente e de três assessores, afora os jurados, em número de doze. 0 julgamento era público, oral e contraditório (cf. Donnedieu de Vabres, Traité, v. 1, p. 5 84).

Com o advento do Código de Napoleão, em 1808, que começou a viger em janeiro de 1811, foi mantida a tripartição dos Tribunais: os Tribunais Correcionais, que eram constituídos de três Juízes e Cortes de Apelação, julgavam os delitos em primeira e segunda instâncias; os Tribunais de Polícia, as contravenções, e as Cours d'Assises, formadas por cinco Juízes (um presidente e quatro assessores) e mais um jurado popular, para o julgamento dos crimes, salvo quando estes eram de rebelião, homicídio praticado por bando armado; nesses casos, a competência era das Cortes Especiais, compostas de cinco Magistrados e de três militares de alta graduação (Garraud, Traité, v. 1, p. 91).

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A ação penal era

sempre pública e exercida pelo Ministério Público. Ao ofendido só se permitia o direito de propor a ação para o ressarcimento do dano.

0 Processo Penal que sucede à Revolução sofre modificação. Ado ta-se um sistema misto de inquisitivo e acusatório. Havia três fases nc processo: a da Polícia Judiciária, a da instrução e a do julgamento ÇVe Ia poliçãe judlciaire, de 1'instruction et du jugement").

Os princípios do sistema inquisitivo eram consagrados na fase da instrução preparatória: o processo, dirigido por um Magistrado, desenvolvia-se por escrito, secretamente e sem ser contraditório. A defesa eranula durante a instrução preparatória. Na sessão de julgamento tornavase acusatório o processo: oral, público e contraditório.A instituição do Júri também sofreu modificações. Suprimiu-se o Júri de acusação. Havia, contudo, a fase instrutória, presidida por um

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Magistrado, e que se desenvolvia secretamente e sem contraditório. Concluída a instrução, era o processo remetido à Chambre des mises en accusation. Admissível a acusação, submetia-se o réu ao Júri de julgamento nas Cours dAssises.

0 sistema misto teve reflexos bem acentuados em quase toda a Europa, penetrando em todas as partes "bajo el manto imperial de Napoleón".

Já no segundo quartel do século passado, surge um novo movimento no sentido de extinguir o sistema inquisitivo da fase instrutória. Nesse sentido, surgiram alguns diplomas processuais, na segunda metade do século passado, que, embora não extinguissem de todo o sistema inquisitivo da fase instrutória, permitiram, de certo modo, a intervenção da defesa. Sem embargo de a intervenção verificar-se em algumas hipóteses, já constituía meio caminho andado para a extinção do sistema inquisitivo na fase da instrução.0 Código austríaco de 1873 permitia ao imputado fazer-se acompanhar do seu defensor, salvo algumas exceções. 0 imputado preso podiaconferenciar, conversar com seu defensor em presença de um funcionário da Justiça. Todavia nem a defesa nem a acusação podiam presenciar o interrogatório e os depoimentos. Em 1877 surge o Código alemão, salientando que o imputado podia fazer-se acompanhar de um defensor em qualquer fase do processo, mas a defesa somente era obrigatória em casos graves ou especiais. Na instrução preliminar, a defesa tinha escas-

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sa intervenção. Com mais liberalidade, o Código norueguês, em 1877, estabeleceu, como princípio geral, a publicidade dos atos instrutórios e a possibilidade de "as partes formularem observaçoes e perguntas que julgassem oportunas". Contudo havia exceções.Seguiam-lhe as pegadas os Códigos da Hungria, de 1896, o da Espanha, de 1882, e, finalmente, foi promulgada na França a Lei Constans, de 1897, abolindo o caráter inquísitivo da instrução. Esta deixou de ser secreta para converter-se em contraditória. Em 1913 surgiu o Código de Processo da Itália, sob o mesmo influxo liberal, modificado mais tarde pelo Código de 1930, onde se consagrou a "concepção política imperante da superior e totalitária autoridade do Estado".De 1930 para cá, novas modificações surgiram. 0 liberalismo exerceu influência manifesta na França, por volta do ano de 1933, mas, de 1935 em diante, operou-se a volta ao sistema, restaurando-se o caráter inquisitivo da instrução criminal. Hoje, na Europa, em quase todas as legislações predomina, com maior ou menor intensidade, o sistema misto.

Do estudo que empreendemos sobre o desenvolvimento histórico do Processo Penal, podemos já agora afirmar que no curso da História floresceram três sistemas ou tipos de processo: o acusatório, o inquisitivo e o misto, cujos caracteres serão, a seguir, analisados.

7. Tipos de Processo Penal

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Levando-se em conta os princípios que o informam, o Processo Penal pode ser acusatório, inquisitivo e misto.No processo acusatõrio, que campeou na India, entre os atenienses e entre os romanos, notadamente durante o período republicano, e que, presentemente, com as alterações ditadas pela evolução, vigora em muitas legislações, inclusive na nossa, são traços profundamente inarcantes: a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo (excepcionalmente se permite uma publicidade restrita ou especial); d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas, e, logicamente, não é dado ao Juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois "non debet lícere actori, quod reo non permittitur";

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g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou órgão do Estado. Presentemente, a função acusadora, em geral, cabe ao Mi-

nistério Público. Mas não desnatura o processo acusatório o permitir-se ao ofendido ou ao seu representante o jus accusaflonis. Há, contudo, inconveniente: poderia haver transações, às vezes até vergonhosas, re-

ceio de vingança, e, assim, a defesa social ficaria prejudicada. Deixar-se a inicl¥iva a qualquer do povo, as conseqüências seriam as mesmas, se não piores. Os acusados poderosos, pondera Vitu, poderiam neutralizar os eventuais acusadores, pelo temor que eles poderiam inspirar, e, além

disso, muitas infrações ficariam impunes, porque muita gente não desejaria exercer as funções désagréables et périlleuses d'aceusateur (cf. Procédure pénale, p. 14). Ademais, ninguém se interessaria em reprimir as pequenas infrações, e, nas mais graves,,os acusadores sofreriam toda sorte de pressão dos acusados.

Não é da essência do processo acusatório atribuir~se a acusação a qualquer cidadão do povo, como se tem propalado. Diz-se até que nesse caso é que tem lugar o processo acusatório puro. Mesmo em Roma,

onde se costuma buscar o protótipo do processo acusatório, nem sempre a acusação ficava a cargo de qualquer do povo. As Institutas de

Gaio cuidavam de numerosos delitos, cuja persecução ficava a cargo exclusivo da vítima, e o Dígesto ampliou esse número "incluyendo figu-

ras típicas hoy eminentemente públicas y estadísticamente más numerosas". Ao lado disso, havia as entidades públicas que, a par de suas atividades normalmente estranhas à persecução, exerciam também a acusação. Os Judices Questionis não acusavam os homicidas? Quando o

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particular permanecia inerte, o Senado não procedia às investigações e, dependendo do caso, não exercia a acusação ante o Tribunal popular?

Nos delitos de maior relevo, não eram nomeados os Dictadores para as suas investigações? E os Irenarcas, os Stationari, os Digiti Duri não informavam ao Prefeito do Pretório a respeito das infrações penais cometidas, realizando diligências para os necessários esclarecimentos?

0 fato de a acusação, hoje entre nós, ficar a cargo do Ministério Público não desnatura, pois, o processo acusatório. Este, à evidência,

sofreu alterações, ditadas pela evolução dos tempos, aperfeiçoando- se. Mas seus princípios imanentes continuam íntegros: publicidade, contra-

ditório e, finalmente, acusação e jurisdição a cargo de pessoas distintas, 14 pués, la piedra de toque del sistema acusatorio, es siempre la separación de acusador y juzgador" (cf. Garcia~Velasco, Curso, cit., p. 8).

Nada obsta que o particular acuse. Mas, pelas razões expostas por Vitu, o ideal é atribuir-se a função persecutória ao Ministério Público, como personificação da lei e como representante da sociedade, permitindo-se, excepcionalmente, possa tal função ser exercida pelo ofendido (ação penal privada). Às vezes, permitia-se, entre nós, a qualquer do povo - ut civis -, nos crimes de responsabilidade cometidos pelo Procurador-Geral da República e Ministros do STF, o direito de promover a ação penal. Era a ação penal popular de que tratava a Lei ri. 1.079, de 10-4-1950. Hoje, essa ação penal popular foi extinta em decorrência do art- 129, 1, da Constituição. Contudo, em algumas legislações, notadamente as da Inglaterra, dos Estados Unidos, do Chile e da Espanha, permitese, em numerosos casos, possa o particular, ut civis, exercer a acusação.

0 processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório. Não exis-te o contraditório, e, por isso mesmo, inexistem as regras da igualdade e da liberdade processuais. As funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfeixadas em uma só pessoa: o Juiz. É ele quem inicia, de ofício, o processo, quem recolhe as provas e quem, afinal, profere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão. 0 processo é secreto e escrito. Nenhuma garantia se confere ao acusado. Este aparece em uma situação de tal subordinaçao que se transfigura e se transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito.

0 processo inquisitivo despontara em Roma, quandojá se permitia ao Juiz iniciar o processo de ofício, e, ao atingir a Idade Média, por influência da Igreja, o processoper inquisitionem passou a dominar toda ou quase toda a Europa continental, a partir do Concílio Lateranense, de 1215. Foi introduzido, na verdade, pelo Direito Canônico, mas, em seguida, viram os soberanos, naquele tipo de

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processo, uma arma poderosa, e por isso espalhou-se entre os Tribunais seculares. 0 processo inquisitivo, que surgiu, propriamente, para evitar injustiças, porquanto 1a enorme diferencia de clases y de fuerzas sociales y económicas, preponderante en Ia Edad Media, había anulado Ia pretendida igualdad de Ias partes en el proceso acusatorio, ora en favor del inculpado, ora del acusador, pero siempre en beneficio del poderoso y en contra Ios fines de Ia justicia, aquella igualdad había desaparecido", transmudou-se num instrumento de opressão.

Em determinada época, diz Beling, o processo inquisitivo converteu-se em um instrumento de poder desconhecedor dos interesses in-

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dividuais (cf. Derecho, cit.,,p. 21). E, por isso, dizia Voltaíre: "Les for

rne~ cri France on été inventées pour perdre les innocents"Os tais queÀs vezes, o processo inquisitórío era levado a extrem segredo alcançava o lugar e a forma dele, a pessoa do julgador, o pro

nunciamento da sentença e, também, às vezes, era secreto o própric momento da execução da condenação.

Garcia-Velasco assinalou os traços básicos do processo inquisitivo: a) codentração das três funções, acusadora, defensora e julgadora, em

mãos de uma só pessoa; b) sigilação; c) ausência de contraditório; d) procedimento escrito; e) os Juízes eram permanentes e irrecusáveis;j) as provas eram apreciadas de acordo com umas curiosas regras, mais

aritméticas que processuais; g) a confissão era elemento suficiente para a condenação; h) admitia-se a apelação contra a sentença (cf. Derecho procesal penal, p. 7).Muito embora, a princípio, coubesse unicamente ao Juiz dar início ao processo, mais ou menos em meados ou fins do século XIV, surgiu

na França um corpo de funcionários cuja função era a de promover a persecução em nome do poder social: les procureurs du roi. Sem embargo, os Juízes continuaram, também, com a mesma faculdade, e isto, diz Donnedieu de Vabres, explica o adágio: toutiuge estprocureur général (cf. Traité, cit., p. 579).Finalmente, o processo de tipo misto, também conhecido sob a denominação de sistema acusatório formal.

Surgiu após a Revolução Francesa. A luta dos enciclopedistas contra o processo inquisitivo, até então vigorante, não cessava, e, logo após a maior revolução de que se tem memória, ele desapareceu, e o Code XInstructíon Criminelle de 1808 introduziu na França o denominado processo misto, seguindo-lhe as pegadas todas ou quase todas as legislações da Europa continental.

0 processo, qual no tipo inquisitivo, desenvolve-se em três etapas: a) investigação preliminar (de la policie judiciaire), dando lugar aos procés verbaux; b) instrução preparatória (instruction

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préparatoire); e c) fase do julgamento (dejugement). Mas, enquanto no inquisitivo essas três etapas eram secretas, não contraditórias, escritas, e as funções de acusar, defender e julgar concentravam-se nas mãos do Juiz, no processo misto ou acusatório formal, somente as duas primeiras fases é que eram e continuaram secretas e não contraditórias. Na fase dojulgamen-

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to, o processo se desenvolve oralement, publiquement et contradictoiremenAs funções de acusar, defender e julgar são entregues a pessoas distintas.Esse sistema misto, que se espalhou por quase toda a Europa continental, no próprio século em que surgiu, começou a sofrer sérias modificações, dada a tendência liberal da época, exigindo fossem aumentadas as garantias do réu. E, realmente, na própria França, a Lei Constans, de 8-12-1897, assegurava ao acusado o direito de defesa no curso da instrução preparatória. Antes mesmo daquela lei francesa, outros Códigos europeus, como o austríaco, o alemão e o norueguês, já haviam sido atingidos pela corrente liberal.Na França, essa tendência chegou ao seu ponto culminante em 1933. Entretanto, de 1935 para cá, cedeu lugar à tendência autoritária, restaurando-se, assim, o processo de tipo misto, tal como surgira, e que, atualmente, à semelhança do que ocorre na França, domina várias legislações da Europa e até mesmo da América Latina. Exemplo disso é o Código de Enjuiciamiento Criminal da Venezuela.

8. Direito Pátrio

No Direito pátrio, o sistema adotado é o acusatório. A acusação, nos crimes de ação pública, está a cargo do Ministério Público. Excepcionalmente, nos delitos de ação privada, comete-se à própria vítima o jus persequendi in judicio. Pode também a vítima, nos crimes de ação pública, exercer a acusação, se, porventura, o órgão do Ministério Público não intentar a ação penal no prazo previsto em lei.Salvante o caso especial do processo do impeachinent, a função de julgar fica a cargo de Juízes permanentes, e, excepcionalmente, o julgamento está afeto a Juízes populares (Tribunal do Júri). E isto nos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados.0 processo é eminentemente contraditório. Não temos a figura do Juiz instrutor. A fase processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a Autoridade Policial procede a uma investigação não contraditória, colhendo, à maneira do Juiz instrutor, as primeiras informações a respeito do fato infringente da norma e da respectiva autoria. Com base nessa investigação preparatória, o acusador, seja o órgão do Ministério Público, seja a vítima, instaura o processo por

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meio da denúncia ou queixa. Já agora, em juízo, nascida a relação processual, o processo torna-se eminentemente contraditório, público e escrito (sendo que alguns atos são praticados oralmente, tais como

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debates em audiências ou sessão). 0 ônus da prova incumbe às partes, mas o Juiz não é um espectador inerte na sua produção, podendo, a qualquer instante, determinar, de ofício, quaisquer diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.Pê#mite-se às partes uma gama de recursos, e, tutelando ainda mais o direito de liberdade, concedem-se à defesa recursos que lhe são exclusivos, como o protesto por novo Júri e os embargos infringentes e de nulidade. Não adotamos a revisão pro societate. Só o réu é que pode promovê-la.

Nas infrações penais de menor potencial ofensivo, assim consideradas todas as contravençoes e os crimes apenados com detenção até o máximo de um ano, dês que não sujeitos a procedimentos especiais (ressalvadas as condutas tipificadas nos arts. 303, 306 e 308 do Código de Trânsito Brasileiro, que, embora apenadas com dois ou três anos no seu grau máximo, são também consideradas de menor potencial ofensivo por força do parágrafo único do art. 291 do citado diploma), será possível a transação, sob os olhos do Juiz, entre o Acusador e o autor do fato, sujeitando-se este a uma multa ou pena restritiva de direito, sem gerar reincidência.

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capítulo 3

1. "Vacatio legis"

Eficácia da Lei no Tempo

SUMÁRIO: 1. VacatiO legis. 2. Ab-rogação. Derrogação. Ab-

rogação expressa e tácita. 3. Princípio da retroatividade. 4. Princípio da irretroatividade. Ultra-atividade. 5. Eficácia da lei penal no tempo. 6. Eficácia da lei processual penal no tempo.

Depois de elaborada, sancionada e promulgada, a lei é publicada. Mas, mesmo publicada, ela só começa a viger, via de regra, depois de certo lapso de tempo, suficiente para se tornar conhecida. Esse lapso de tempo - vacatio legis - varia: 45 dias, 30 dias etc. 0 CPP, por exem-plo (DecAei n. 3.689, de 3-10-1941), publicado no Diário Oficial da União, de 13-10-194 1, começou a viger no dia L'- 1- 1942 (Lei de Introdução, art. 16).

2. Ab-rogação. Derrogação. AlfLrogação expressa e tácita

Como se extingue uma lei? Pela revogação. A revogação pode ser total ou parcial. No primeiro caso, fala-se, tecnicamente, em ab-rogação

e, no segundo, em derrogação. A ab-rogação pode ser expressa ou tácita. Diz-se expressa quando a lei nova revoga a anterior expressamente, regra geral dispondo em um de seus artigos: "revogam-se as disposições em contrário". Diz-se tácita quando há incompatibilidade entre a

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lei nova e a lei velha, ou, então, quando a lei nova regula inteiramente a matéria que era objeto da lei anterior.Quando surge uma lei nova, revogando total ou parcialmente a anterior, nasce o fenômeno da sucessão de lei ou conflito das leis no tempo. Como se resolve esse conflito? Pelos princípios da retroatividade ou da irretroatividade e pelas regras de direito transitório. A um fato ocorrido na vigência da lei anterior, sobrevindo uma nova lei, qual das duas se aplica? Grosso modo, o legislador lança mão das chamadas "disposições transitórias", visando à conciliação da aplicação da nova lei com as conseqüências da lei anterior. Muitas vezes, entretanto, ou não há essas disposições transitórias, ou há, mas não são suficientes para solucionar todas as hipóteses. Dada a inexistência das "disposições transitórias", ou dada a sua insuficiência, como solucionar o problema criado com o advento da lei nova? Dois princípios são chamados à decisão do problema: o da retroatividade e o da irretroatividade.Por primeiro, estudemos o assunto na lei penal.

3. Princípio da retroatividade

Os que defendem o princípio da retroatividade alegam que a lei começa a vigorar desde a data em que entra em vigência até a revogação. Operada a revogação, a lei não mais poderá ser aplicada, em hipótese alguma, não se lhe reconhecendo ultra-atividade.Tal princípio apresenta nuanças. Há quem defenda a tese da retroatividade absoluta. A lei nova retroage sempre, uma vez que, se o Estado a elaborou, é porque reconheceu que a anterior não satisfazia aos interesses sociais, e, assim, não se justifica a aplicação de medida defensiva, cuja inadequação foi proclamada pelo próprio Estado ao promulgáIa. Esta deve retroagir, pouco importando se mais grave ou mais doce. Mesmo que a lei posterior crie nova figura delituosa, será aplicada aos fatos passados que, quando foram cometidos, não eram incriminados.Há, contudo, outra corrente, defendendo o princípio da retroatividade com um pouco de brandura. Se o Estado elabora uma nova lei é porque a anterior já não satisfaz aos interesses sociais e, se não satisfaz, deve imperar a nova, regendo inclusive relações constituídas na vigência da anterior. Todavia (é o pensamento de Florian) não se deve cogitar de fazer retroativa uma incriminação nova. Como se vê, essa segunda corrente respeita apenas o princípio da reserva legal, expresso na máxima nullum crimen, nulla poena sine lege.

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0 princípio da retroatividade deve, pois, ter o sentido e alcance que lhe empresta Florian. Dizer, por outro lado, que a lei nova deve regular, também, situações passadas, inclusive fazendo retroativa uma incniminação nova, ou, como bem diz Maggiore, imaginar que a lei nova possa estender seu poder a fatos passados (factapreterita), como se por arte mágica estivesse vigendo ao tempo em que

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ainda não existia, é uma estultícia e uma loucura sem nome. E arremata: se isto fosse possível, todo cidadão teria de se transformar em vidente ou profeta para prever, com bastante antecedência, os fatos que um dia haveriam de inscrever-se no rol dos delitos. Ou, como diz Bettiol, citado por Maggiore, "fazer retroativa uma incriminação nova, como já fizeram os tiranos, é fato que se não prende à história do direito e sim à do crime legalizado". Na Roma antiga, várias leis tiveram efeito retroativo: a "Lex Julia municipalis", a "Lex Cornelia de sicariis", a "Lex Sempronia, de Caio Graco", e, finalmente, o "Senatus consultus" das bacanais apanhou excessos obscenos anteriores a ele.Contemporaneamente, os autores apontam como exemplos de leis penais retroativas o Código soviético de 1926, a Lei Vander Lubbe, de 1933, e, ainda, na Alemanha nazista, a lei pertinente a assaltos de automóveis, de 1933. Entre nós, vale a pena citar o Decreto-lei ri. 4.766, de U-10-1942, cujo art. 67 dizia: " ... esta lei retroagirá, em relação aos crimes contra a segurança externa, à data da ruptura de relações diplomáficas com a Alemanha, a Itália e o Japão".

4. Princípio da irretroatividade. Ultra-atividade

Pelo princípio da irretroatividade, a lei penal só pode imperar sobre fatos cometidos em sua vigência. A lei nova não pode regular situações pretéritas. Se determinado fato não era considerado ilícito ao tempo da lei anterior, e a lei nova vem a incriminá-lo, não poderá esta ser aplicada, pois, inclusive, feriria uma das maiores garantias concedidas ao cidadão: não há crime sem lei anterior que o defina.Inspira-se tal princípio na circunstância de que a lei para o futuro, não se lhe reconhecendo retro-olhos.

0 pode dispor

Bekker entende que esse princípio deva ser absoluto, pois há um como que direito do sujeito à pena estabelecida na lei transgredida.

A tese de que as leis penais são irretroativas começou a tomar alento a partir do século V. Pontes de Miranda cita o caso de Santo Ambrósio,

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que justificou o adultério de Abraão com o argumento de que, ao tempo em que o cometeu, a lei não o punia.

Posteriormente, tal princípio foi-se desenvolvendo e, já no século XVIII, deu entrada na Constituição de Maryland, em 1776: "that retrospective laws, punishing facts before the existence of such laws, and by them declared criminal, are oppressive, unjust, and incompatible with liberty".

Quinze anos mais tarde, teve acolhida na Constituição francesa (de 179 1): "nul ne peut être puni qu'en vertu d'une loi établie et promulguée antérieurement au délit et légalement appliquée".

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De ponderar, entretanto, que de há muito tempo se defende a tese de que o princípio da retroatividade não deve ser concebido em termos rígidos, absolutos. De fato, dizem, a lei penal não pode ser retroativa, porquanto as leis são feitas para o futuro. Entretanto, se a lei nova for mais branda, menos severa, mais doce, deve ter retroação. Trata-se, pois, de exceção ao princípio da irretroatividade, e exceção que sejustifica por razão de misericórdia, de humanidade, por motivo ético, enfim.

Tal exceção data de muitos anos. Remonta aos jurisconsultos do século XIV. Narra Pontes de Miranda que a cidade de Pádua proibiu a seus habitantes o comércio de sal com Veneza, sob pena de multa de 100 libras, sendo que, mais tarde, nova lei reduziu a pena para 25 libras. Entretanto um cidadão havia transgredido a lei, e, quando o processo estava em andamento, surgiu a lei nova. Ricardo Malumbrano, então, ponderou que se devia aplicar a lei nova, uma vez que a expiação ia ocorrer na vigência da lei posterior. Como bem diz Pontes de Miranda, o argumento era técnico-jurídico e não ético.

Na verdade, aceitando-se esse ponto de vista, aplicar-se-ia a lei nova, pouco importando se mais gravosa ou mais benigna.

Mais tarde, Farinacius firmou o princípio, alegando que a lei nova retrotraía todas as vezes em que fosse mais benigna, salvo se já houvesse decisão, se já houvesse sentença.

Muito embora as Constituições francesas e mesmo as nossas de 1824 e 1891 não fizessem referência ao princípio da retroatividade in mitius, o certo é que os nossos Códigos, quer o de 1830, quer o de 1890, introduziram essa exceção: a lei nova retroage, quando mais benigna, quando mais doce, menos gravosa. 0 Código espanhol de 1929 admitia

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também essa exceção, mas, talvez por influência do pensamento de Ferri, excluía do benefício os delinqüentes habituais.

Hoje, pois, em quase todas as legislações domina o princípio da irretroatividade da lei penal, e se admite apenas sua retroação quando a lei posterior for menos severa que a anterior.

S. Eficácia da lei penal no tempo400"Entre nos vigora também o princípio de que as leis são feitas para o futuro (irretro atividade), mas, excepcionalmente, permite-se a retroatividade quando a lei nova beneficiar o réu.

Esse princípio, aliás, constitui, no nossojus positum, dogma constitucional, pois o inc. XL do art. 5.' dispõe que a lei penal só retroagirá quando beneficiar o réu.

Entre nós, conforme frisamos, foi admitida a regra da "nãoretroatividade" da lei penal, com certa mitigação. Nos termos do art. 2.'

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e seu parágrafo único do CP, permíte-se a retroação da lei penal todas as vezes que a lei nova beneficiar o réu. Se a lei nova é mais severa,

aplica-se a lei antiga, que, assim, terá uma ultra- atividade, isto é, será aplicada a lei anterior, muito embora houvesse surgido lei nova.

A retroatividade benéfica vem devidamente disciplinada no art. 2.'e respectivo parágrafo do CP, e esses dois dispositivos cuidam de três hipóteses:

a) se a lei nova deixa de considerar crime fato incriminado pela lei anterior, haverá a retroação, pois, nos termos do art. 1% "ninguém pode

ser punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime, ces-sando em virtude dela a execuçao e os efeitos penais da sentença condenatória";

b) a lei nova descreve a figura típica de modo idêntico à lei anterior, mas a pena cominada é menos rigorosa;

c) a lei nova favorece o agente de outro modo. Aí estão as três hipóteses.

A) 0 primeiro caso versa sobre a abolitio criminis. Quando surge lei nova, não mais considerando infração penal determinado fato antes tido como tal, se o agente o cometeu na vigência da lei anterior, com o advento da novatio legis várias situações podem ocorrer:

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1.a ) A ação penal ainda não foi iniciada. Recebendo os autos do inquérito, o Promotor de Justiça requererá seja decretada extinta a punibilidade, nos termos do iric. 111 do art. 107 do CP e de acordo com o art. 1% caput, do mesmo diploma. Se a lei nova suprimiu a incrinúnação, ela retrotrai, extinguindo o direito de punir.2. ) A ação penal já foi iniciada. Não mais poderá prosseguir. Cum prirá ao Juiz, de ofício, ou a requerimento de qualquer das partes, decretar a extinção da punibilidade, nos termos do art. 61 do CPP combinado com os arts. 2.' e 107, 111, do CR3 a) 0 réu foi condenado. Nesse caso, mesmo havendo sentença com trânsito em julgado, aplica-se a lei nova, extinguindo-se ojus punitionis do Estado, desfazendo-se os efeitos da resjudicata, porquanto, nos termos do art. 1% última parte, do CP, "cessam, em virtude dela (da lei nova), a execução e os efeitos penais da sentença condenatória". Uma vez riscado do rol dos delitos pela lei nova ofato anteriormente considerado crime, tudo quanto na vigência da lei velha "começou e se ultimou, fica sem efeito". E Aloysio de Carvalho Filho explica a razão: se a não-retroatividade da lei penal (in pejus, acrescentamos nós) encontra o seu fundamento na necessidade de garantia e respeito à liberdade dos indivíduos, não deve essa liberdade continuar restringida ou anulada, quando a sociedade não

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tiver motivos para considerar criminoso o fato a que, antes, cominara pena (cf. Comentários ao Código Penal, v. 4, p. 195-6).Cessam, pois, a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Vale dizer, se o réu estiver cumprindo a pena, não mais continuará a cumpri-Ia; se houver mandado de prisão contra ele, a ordem será recolhida; seu nome, que fora lançado no rol dos culpados, conforme determina o art. 393, 11, do CPP, será riscado. Além disso, diz a lei: "Cessam os efeitospenais da sentença condenatória". Assim, todo e qualquer efeito penal que possua a sentença condenatória desaparece. 0 réu, se teve a sua primariedade quebrada com aquela condenação, volta ao statu quo ante. Enfim: se aquele foi o seu primeiro delito, cuja incriminação foi suprimida pela lei nova, mesmo esteja cumprindo pena, aquela mancha desaparece e se extingue. E como se ele jamais houvesse cometido crime. Subsistem apenas os efeitos civis. Afinal de contas, a lei nova suprimiu, tão-somente, a incriminação; deixou de considerar aquele fato como figura delitual penal. Não fez desaparecer ofato em si. Este houve; apenas deixou de ser considerado crime. Daí dizer o art. 2.' que cessam, apenas, os efeitos penais... não os civis. Se A danifica o automóvel de B

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propositadamente, comete o crime de dano. Se amanhã vier nova lei, riscando o crime de dano do rol dos delitos, pouco importará a fase em que se encontre eventual processo por aquele crime: extingue-se o jus puniendi ou o jus punitionis, conforme a fase processual. Restitui-selhe a primariedade (se aquele foi o primeiro crime). Nem por isso ficará B impossibilitado de promover contraA a competente ação de ressarcimento de dano, nos termos do art. 159 do CC. E que a lei nova fez desap4wcer o caráter criminoso do fato, e não o próprio fato.Exemplo: o CP de 1890 dispunha, no art. 267, que a pena era de prisão celular de 1 a 4 anos, para quem deflorasse mulher de menor idade, empregando sedução, engano ou fraude. Aquela época, como atualmente, o conceito de menoridade é a idade até os 21 anos. Assim, se A, empregando sedução, viesse a deflorar B, mulher de 20 anos, teria cometido o delito tipificado no art. 267 daquele estatuto penal. Pois bem: suponha-se que tal fato houvesse ocorrido em 1938 e que o réu houvesse sido condenado e estivesse a cumprir pena quando surgiu o CP de 1940. Este, definindo o delito de sedução, no art. 217, fixou a idade da ofendida: menor de 18 e maior de 14 anos. A lei nova, então, deixou de considerar como crime a sedução de mulher de idade igual ou superior a 18 anos. Se o processo não houvesse sido instaurado, não se instauraria; se houvesse sido, seria trancado, pela extinção da punibilidade. E se já houvesse sentença condenatória, com ou sem trânsito em julgado, cessariam a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Nada, contudo, impediria que a ofendida ou seu representante legal ingressasse no juízo cível, nos termos do art. 1.548 do CC, para exigir do "culpado" a reparação do dano. E, se houvesse sentença condenatória irrecorrível, poderia a ofendida ou quem de direito executar o decreto condenatório penal no j uízo cível, segundo a regra do art. 9 1, 1, do CP e art. 63 do CPP, Extinguem-se os efeitos penais da sentença condenatória, não os efeitos civis...

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B) A segunda hipótese verifica-se quando a novatio legis descreve o tipo de maneira idêntica à da lei anterior, mas a pena cominada é menos rigorosa. A incriminação continua, apenas a sanctio juris e mais benigna.Ocorrendo tal hipótese, a lei nova retroage e terá aplicação ainda que o fato haja sidojulgado por sentença trânsita cinjulgado. Se a pena cominada na lei anterior era de reclusão e a lei nova comina a pena de detenção, sendo esta menos rigorosa que a outra, aplica-se a de deten-

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ção. Se a pena era de reclusão ou de detenção e a lei nova comina pena de multa, esta será a aplicável. Se a pena era de detenção ou reclusão e continua sendo, mas naquela o mínimo era superior ao fixado na nova, haverá retroeficácia da novatio legis. Se alguém for condenado por homicídio qualificado pelo motivo fútil (CP, art. 12 1, § 1% 11) à pena mínima, que é de 12 anos, e amanhã (hipótese) vier nova lei riscando o motivofútil do elenco das qualificadoras, subsistirá apenas o homicídio simples, e a pena será reajustada: em vez de 12 anos, cumprirá ele tãosomente a pena cominada ao homicídio simples (6 anos), a menos que a lei nova haja diminuído esse mínimo, quando, então, será aplicado o mínimo fixado na lei posterior.C) A terceira hipótese ocorre quando a lei posterior de maneira diversa daquelas tratadas nos itens A e B venha a favorecer o agente. São tantos os modos de se favorecer o agente, sem se suprimir a incriminação do fato ou sem se cominar pena menos rigorosa, que seria perigoso fazer um elenco dos modos beneficiadores. À guisa de exemplificação: a) a lei nova estabelece causa extintiva de punibilidade não cuidada na lei anterior; b) permite a suspensão condicional da pena para determinada hipótese não contemplada na lei anterior; c) permite o livramento condicional para determinado caso não previsto na lei anterior; d) a lei posterior permite o perdão judicial para uma hipótese não contemplada pela lei velha etc.A Lei n. 6.416, de 24-5-1977, não só aboliu a denominada reincidência específica, como, também, instituiu a prescrição da reincidência. E a Lei n. 7.209, de 11-7-1984, que alterou a Parte Geral do CP, manteve tais inovações.Assim, seA foi condenado, definitivamente, a uma pena exasperada, em face de reincidência específica, nada obsta, mesmo tendo sido transitada em julgado a decisão, possa beneficiar-se com a nova lei.Nesse caso, compete ao Juízo das Execuções Penais, nos termos do art. 66, 1, verbis: "Compete ao Juiz da Execução: 1) aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado". Nesse sentido era, também, o art. 13 da Lei de Introdução ao CPP. Da decisão cabe, hoje, agravo de instrumento, segundo dispõe o art. 197 da Lei de Execução Penal.

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0 pedido deve ser formulado ao Juiz das Execuções, e como tal se entende o indicado na lei local de organização judiciária; na sua ausência, ao da sentença. Como vimos, a matéria já era tratada pelo art. 13 da

Lei de Introdução ao CPP. Com o advento da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 11-7-1984) e como a aplicação da lei nova aos casos julgados é um incidente da execução, a matéria foi repetida no novo diploma.A discussão surgida, quando do advento da Lei n. 6.416, de 24-51977, quanto ao órgão competente para a aplicação da lei nova no caso em testilha, hoje está superada, não só em face da Lei de Execução Penal, conio, também, de inúmeras decisões do STF (RTJ, 951758, 921 881, 88/1082 etc.) e, inclusive, da Súmula 23 do extinto Tribunal Federal de Recursos: "0 juízo da execução criminal é o competente para a aplicação de lei nova mais benigna a fatojulgado por sentença condenatória irrecorríve

Segundo dispõe o parágrafo único do art. 2.' do CP, a lei nova retroagirá sempre, haja ou não sentença com trânsito em julgado: a) se houver a supressão de incriminação, isto é, no caso da abolitio criminis; b) quando a lei nova favorece o agente, cominando ao fato por ele praticado, na vigência da lei anterior, pena menos rigorosa; e c) se a lei nova favorece o agente de outro modo, isto é, se a lei posterior beneficiar o réu de outro modo que não os acima explicitados.

A redação do parágrafo único do art. 2.0 da lei penal anterior levava o intérprete a pensar que, se o favorecimento da lex mitior ocorresse em hipóteses diversas das previstas no caput e na segunda parte do parágrafo único respectivo, ela só teria aplicação quando o fato não houvesse sido definitivamente julgado.

É bem verdade que aquela disposição fora revogada pelo § 29 do art. 141 da Constituição de 1946, ao prescrever que a lei penal "só retroagirá para beneficiar o réu", consagrando, assim, o princípio de verdadeira retroatividade in mitius, pouco importando, na observação de Pontes de Miranda, se havia condenação ou se ja passou em julgado a sentença de condenação. Enquanto puder ser beneficiado o condenado, a lei nova incide e pode, portanto, ser invocada (cf. Comentários à Constituição de 1946, v. 5, p. 342). No mesmo sentido, Magalhães Noronha (Direito penal, v. 1, p. 10 1 -2). Destarte, em qualquer daquelas hipóteses aplicava-se a lei mais doce, houvesse ou não sentença com trânsito em julgado.A Constituição atual, no inc. XL do art. 5.', determina: "A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". De sorte que a lei nova incidirá

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e poderá ser invocada sempre que for possível beneficiá-lo. Desse modo, se a lei nova diminui o prazo do sursis e se o réu fora beneficiado de acordo com lei anterior com tal medida, e, no dia em que a lei

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nova entrou em vigor, expirou-se o prazo do benefício, já não pode ser invocada a novatio legis, por manifesta impossibilidade. Mas, enquanto possível sua aplicação, terá retroprojeção. Hoje, contudo, em face da redação dada ao parágrafo único do art. 2.' do CP, qualquer discussão a respeito seria destituída de importância: "a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado".Quando se cuidou da retroeficácia de "la lois plus douce", houve quem encontrasse certa dificuldade em explicar como poderia ser desfeita a "coisa julgada" que, por necessidade social, é tida e havida como verdadeira (res judicata pro veritate habetur).A razão, ao que parece, está com Florian, ao explicar que a autoridade da coisa julgada não se fere, já que, ao desaparecer a lei, desaparece o substrato da própria coisa julgada (cf. Principii, v. 1, p. 208), sendo que Sebastian Soler entende justíssima tal observação (cf. Derecho penal argentino, v. 1, p. 206).Mas, se a lei nova é mais gravosa (lex gravior), ou porque erige à categoria de infração fato anteriormente tido como lícito, ou porque de algum modo desfavorece o réu, será irretroativa. Princípio ético e de humanidade impede tenha a lei gravosa retroeficácia. Nesse caso a lei anterior será aplicável. Embora revogada, continua tendo aplicação aos fatos ocorridos durante sua vigência. É o que se chama de ultra-atividade da lei penal. Não importa o modo pelo qual a lei nova se torna mais severa. Desde que mais gravosa, a novatio legis não se aplica aos fatos ocorridos antes da sua vigência. Pode acontecer de a lei nova aumentar a pena, substituí-Ia por outra mais grave, excluir o sursis ou o livramento condicional, abolir uma causa excludente de antijuridicidade ou de culpabilidade, criar circunstâncias qualificadoras, eliminar circunstâncias atenuantes ou causa extintiva de punibilidade etc. Em qualquer hipótese, se a lei anterior era, de qualquer modo, mais benigna, terá ultraatividade, isto é, será aplicada aos fatos que se passaram quando vigorava, a despeito do surgimento de nova lei. Todavia, se mais benéfica for a lei posterior, isto é, a lei nova, esta terá retroeficácia, sendo aplicável àqueles fatos que se cometerem antes da sua vigência.

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Como saber qual a lei mais benigna? Com acerto ensina Antolisei que a benignidade deve ser apurada comparando os resultados que derivam da aplicação das duas normas à situação de fato que se apresenta ao Juiz. E explica: se uma lei nova eleva o máximo da pena e diminui o mínimo, é mais favorável a lei anterior se, num caso concreto, entenda o Juiz deva ser aplicado o máximo (cf. Manual de derecho penal, trad. Juan del Rosal, 1960, p. 88). Mas, se o Juiz optar pela aplicação do miming, a evidência, mais benigna será a lei nova.Enfim, na apreciação da benignidade, devem ser analisados todos os elementos que "de cualquigr manera puedan influirle en el tratamiento del hecho justicial".Pode o Juiz, com elementos da lei anterior e da posterior, formar uma terceira combinação normativa? Quase toda a doutrina se insurge contra tal poder do Magistrado. Petrocelli (Principii, p. 162) entende possível. De fato, o problema é curioso e não pode ser solucionado com simplismo. Suponha-se que a lei anterior haja fixado o mínimo da pena em 1 ano, mas não permitido o sursis. Vem a lei

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nova e fixa o mínimo em 2 anos, mas permite o benefício. 0 réu cometeu o crime na vigencia da lei anterior. Está sendo julgado. Entende o Juiz estejam preenchidas as condições para a concessão da suspensão condicional da pena.Qual das duas leis é a mais benigna? A anterior que fixava o mínimo em quantidade inferior à lei nova, ou esta que, sem embargo de haver elevado o minimo, permite o sursis? Parece ser a posterior, em face da permissão do benefício. E se o benefício viesse a ser revogado? Deveria ele ser recolhido ao xadrez para cumprir aquele mínimo que lhe foi imposto, muito além do fixado na lei velha? Não estaria sendo violentada a Carta Magna? Nesse exemplo manda o bom senso deva o Juiz aplicar, se for o caso, a pena fixada na lei anterior e o benefício previsto na lei posterior.E quanto às leis excepcionais ou temporárias? Dizem-se excepcionais ou temporárias as leis quando, elaboradas em "anormais condiçoes da vida social (locais ou gerais), têm o prazo de vigência prefixado no seu próprio texto ou subordinado à duração do excepcional estado de coisas que as ocasiona" (cf. Hungria, Comentários, v. 1, p. 128).A respeito dessas leis, dispõe o art. 3.' do CP de 1940: "A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duraçao ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência".

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Nesses casos, pois, a lei sobrevive à sua própria ab-rogação. Ela se torna ultra-ativa, constituindo-se em exceção ao princípio da retroatividade benéfica. Nesse sentido, a lição de Anibal Bruno: "Há um caso em que o Código estabelece a ultra-atividade da lei. E em relação às leis temporárias e às excepcionais" (cf. Direito penal, v. 1, p. 265; também Costa e Silva, Código Penal, v. 1, p. 3 1; Magalhães Noronha, Direito, cit., p. 104).Se a lei temporária é aquela que tem o seu termo prefixado, decorrido o período da sua duração, ocorre a auto-revogação. Pois bem: mesmo revogada, continua aplicável aos fatos que ocorreram durante seu período de vigência. Também nas excepcionais, que vigem durante as circunstâncias que as determinaram, cessadas as circunstâncias, ocorrerá a auto-revogação. Embora revogadas, continuam sendo aplicadas aos fatos que se cometeram durante sua vigência.Na Exposição de Motivos que acompanhou o CP de 1940, esclareceu o Min. Francisco Campos a razão de ser dessa exceção: esta ressalva visa impedir que, tratando-se de leis previamente limitadas no tempo, possam ser frustradas as suas sanções por expedientes astuciosos no sentido de retardamento dos processos penais.Silvio Ranieri, no seu Manuale de diritto penale, v. 1, p. 55, apresenta, também, a mesma justificação: as leis temporárias ou excepcionais poderiam ser facilmente burladas, "particolarmente per quelli fatti criminosi che venissero comessi sul finire del periodo eccezionale o ditempo per it quale furono emanate".

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0 que se firma, pois, no art. 3.' do CP é a perduração dessas leis, "ainda quando esgotadas a época ou as circunstâncias da sua atuação, para atingir os fatos que as tenham infringido, evitando-se, assim, que se as condenassem àquela espécie de ineficácia preventiva" (cf. Osman Loureiro, 0 direito penal e o Código de 1940, p. 54).Por outro lado, se se sabe, com anterioridade, que tais leis estão destinadas a extinguir-se depois de certo tempo, os autores das infrações teriam praticamente a possibilidade de ilidir a sanção, especialmente com referência aos fatos cometidos, quando iminente o vencimento do término ou quando o estado excepcional chega ao seu fim, e essa possibilidade, na justa observação de Antolisei, determinaria injustiças graves, debilitando, notadamente, a eficácia intimidativa da lei (cf. Manual, cit., p. 90).

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Nem mesmo sobrevindo lex mitior, terá esta aplicação, salvo, diz Pontes de Miranda, se a nova lei é exatamente para corrigir a penalidade da anterior (cf. Comentários, cit., p. 341). No mesmo sentido, Magalhães Noronha (Direito, cit., p. 105).Mas, se a Lei Maior proclama o princípio da retroatividade da lei mais benigna, o disposto no art. 3." não afrontaria o dispositivo constitucional? Não. É que, na espécie, o tempus é preponderante elemento da estrutu#A da norma. Mas, diz Frederico Marques, por ter sido elaborada em função de acontecimentos anormais, ou em razão de uma eficácia previamente limitada no tempo, não se pode esquecer que a própria tipicidade dos fatos cometidos sob seu império inclui o fator temporal como pressuposto da ilicitude punível ou da agravação da sanção. E conclui: entendida a lei temporária ou excepcional como descrição legal de figuras típicas onde o tempus delicti condiciona a punibilidade ou maior punibilidade de uma conduta - a sua ultra-atividade não atinge os principios constitucionais de nosso Direito Penal intertemporal (cf. Frederico Marques, Tratado, cit., p. 220 e 222). No mesmo sentido, D. Evangelista de Jesus (Direito penal, v. 1, p. 154). E a lei mais doce não pode retroagir para ser aplicada aos fatos ocorridos durante a vigencia das leis temporárias ou excepcionais, "porque o delito mesmo não é idêntico e, por isso, não pode ter eficácia a lex mitior posterior".E Soler arremata: "En consecuencia, salvo razones políticas, Ia ley temporaria abarca todos los delitos cometidos durante su vigencia y sus efectos mas gravosos pueden ser ultraactivos, salvo expresa derogación por otra ley o por via de amnistia o indulto general" (cf. Derecho, cit., 2. ed., p. 214).Tratando-se de norma penal em branco, aquela cujo preceito está integrado por outra norma, parece que a maioria dos doutrinadores inclina-se pela irretroatividade da norma complementar. Se esta é de Direito Civil, de Direito Comercial, de Direito Administrativo e vem a ser alterada de maneira a beneficiar o agente, deve retroagír? Depende. Se a variação da norma complementar "importe una verdadera alteración de Ia figura abstracta del Derecho Penal y no una mera circunstancia que, en realidad, deje subsistente Ia norma", ensina Sebastian Soler, deve retroagir. Assim, num exemplo hipotético: suponha-se que a lei considere crime seduzir mulher virgem, enquanto menor. Ora, a menoridade, segundo a lei civil, termina aos 21 anos. Se alguém, na vigência dessa lei, viesse a seduzir mulher de 20 anos, cometeria um fato punível. Mas,

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se a lei civil, posteriormente, fixasse a menoridade em 18 anos, a ilicitude teria desaparecido, e a retroeficácia dessa norma complementar seria incontestável, mesmo porque "a tutela da menoridade pela norma punitiva está ligada estreitamente ao conceito desta pelo direito privado" (cf. Frederico Marques, Tratado, cit., v. 1, p. 227).Cremos que o problema pode ser solucionado adotando-se a seguinte regra: "se a norma complementar for temporária ou excepcional, não terá retroeficácia, segundo a regra do art. 3.' do Código Penal, mas, se não tiver caráter de temporalidade ou de excepcionalidade, a regra aplicável será a da retroatividade benéfica". A propósito, D. Evangelista de Jesus (Direito, cit., p. 160).Em se tratando de medida de segurança, a lei aplicável é a vigente ao tempo da sentença, prevalecendo, todavia, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução. Não há cuidar-se de violação ao preceito constitucional, mesmo porque, como esclarece Hungria, a medida de segurança não se impõe pelo que o indivíduo fez, mas pelo que é, ou pelo que pode vir a ser.Não é de se indagar, sequer, se a lei anterior previa, ou não, qualquer medida de segurança: aplica-se a lei sucessiva ainda quando institua ex novo, no caso concreto, medida de segurança.

6. Eficácia da lei processual penal no tempo

Em matéria de lei processual penal, o princípio estabelecido é de que ela "provee únicamente para el futuro, o sea, en orden a todos los procedimientos y a todos los actos procesuales que están aún por cumplirse en el momento en que entra en vigor, salvo las excepciones establecidas por la misma ley" (cf. Manzini, Derecho, cit., p. 230).E Paul Roubier completa: é que toda norma de processo obedece ao princípio geral do efeito imediato, principio que muitos confundem com a chamada retroatividade (cf. Les conflits de lois dans le temps, v. 2, p. 676).Entre nós, o princípio é o mesmo, isto é, a lei processual penal temaplicação imediata. Assim, dispõe o art. 2.' do nosso CPP: "A lei processual penal aplícar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior". Infere-se, pois, que a lei pro~ cessual penal não tem, como já se pensou, efeito retroativo.

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0 simples fato de haver o art. 2.' acentuado " ... sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior" indica, de logo, não ser retroativa a lei processual penal, pois, se fosse, o legislador teria invalidado os atos processuais praticados até a data da vigência da lei nova. Não o fez. Manteve-os. Logo, não há falar-se em retroatividade. 0 princípio é este: tempus regit actum.

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É certo, por outro lado, que quando o atual CPP passou a vigorar, em janotro de 1942, as leis processuais penais anteriores, em muitos casos, tiveram "ultra-atividade", de sorte que o atual Código não teve, por assim dizer, total aplicação. A sua "ultra-atividade"justifica-se uma vez que, do contrário, haveria verdadeira balbúrdia. Assim, por exemplo, nas disposições transitórias, o legislador, para evitar o choque profundo entre a lei anterior e a lei posterior, procurou acomodar a situação, dizendo em que casos teria aplicação a lei velha, solucionando o conflito das leis processuais no tempo. 0 art. 6.' da Lei de Introdução ao CPP (disposições transitórias) estabeleceu: "As açoes penais, em que já se tenha iniciado a produção de prova testemunhal, prosseguirão, até a sentença de primeira instância, com o rito estabelecido na lei anterior". E no art. 9.': "Os processos de contravenções, em qualquer caso, prosseguirão na forma da legislação anterior".Observe-se que o legislador optou pela lei anterior, nesses dois casos, apenas no que respeita ao rito, ao procedimento, ao iter do processo.Suponhamos que, errijaneiro de 1942, estivesse em andamento um processo por crime de furto, já se tendo iniciado a prova testemunhal. 0 rito, então, seria o mesmo da lei anterior. Entretanto, na fase da sentença, o Juiz entendeu que o crime não foi de furto, mas sim de apropriação indébita. Nesse caso, teria de ser aplicado o disposto nos arts. 383 ou 384 do atual Código de Processo, que permite ao Juiz "dar nova definição jurídica ao fato descrito na denúncia ou queixa", muito embora a lei anterior tal não permitisse.

Se porventura, na data em que entrou em vigor o atual Código de Processo, o Juiz devesse proceder a um interrogatório, teria de obedecer à lei nova, em face do princípio da "incidência imediata". Suponhamos que a lei anterior dissesse que as partes poderiam fazer perguntas diretamente às testemunhas, e, no dia L'-1-1942, data da vigência do atual Código, o Juiz devesse proceder à inquirição de uma testemunha. Nesse caso, corno em numerosos outros, o Juiz teria de seguir a lei nova e, então, não permitiria às partes formularem reperguntas diretamente à

III

LId 1 1 1 1 11 , 1111, 1 011

testemunha, pois a lei nova (art. 212), que tem aplicação imediata, aboliu aquela faculdade.Entretanto, em 1946, surgiu nova Constituição, e esta dispôs, no seu art. 141, § 27, que "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma da lei anterior".Tal dispositivo deu margem a opiniões desencontradas. Jorge Alberto Romeiro, em sua magnífica monografia Da ação penal, salienta, a fis. 2 10, que a Constituição Federal de 1946, naquele dispositivo, ab-rogou o art. 2.' do CPP. Não se cogitaria mais de aplicação imediata da lei processual penal, mas sim de sua ultra-atividade, isto é, a lei processual penal anterior continuaria a ser aplicada

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aos fatos ocorridos durante a sua vigência, pois ninguém poderia ser processado senão na forma da lei anterior... Basileu Garcia, por seu turno, preleciona: É forçoso convir, porém, que o art. 141, § 27, da Magna Carta torna passível de discussão e até de cerrada crítica esse entendimento, ao preceituar que 44ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma da lei anterior". E acrescenta: só não se pode dar por manifesto que esse inciso constitucional estende ao processo o princípio da anterioridade da lei, porque em termos muito semelhantes a regra constava das Constituições de 1891 e 1934, sem que a conímunis opinio tivesse como impossível a aplicação da analogia e da retroatividade em matéria de processo (cf. Instituições de direito penal, v. 1, t. 1, p. 153).Não se trata, como disse Basileu Garcia, de retroatividade, e sim de incidência imediata, conforme já vimos.Com argúcia observa Tornaghi: Note-se bem, o que a Constituição exige não é a aplicação da lei anterior ao delito. A norma de Direito Processual Penal tem que ver com os atos processuais, não com o ato delitivo. Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma da lei que lhe seja anterior, mas nada impede que ela seja posterior à infração penal. Não há, neste caso, retroatividade da lei processual,~I ~mas aplicação imediata (cf. Processo penal, v. 1, p. 42).

Cremos, assim, que o dispositivo constitucional não alterou de nenhum modo a regra que se contém no art. 2.' do CPP. 0 que a Constituição exigia e proclamava é que ninguém poderia ser processado sem que houvesse uma lei anterior que regulasse o respectivo processo. Se a lei traçasse, digamos, figura delituosa e não houvesse nenhuma lei regulando o respectivo processo, aquele que infringisse a norma não poderia ser processado, dada a inexistência de lei antecedendo e regendo o ato

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processual que deveria ser realizado. Nada impede, diz Tornaghi, que ela seja posterior. Mas, evidentemente, anterior ou posterior, exige-se que, antes de realizado o ato processual, haja uma lei regulando-o.Comentando, com a proficiência de sempre, a Constituição, explica Pontes de Miranda: o texto do art. 141, § 27, contém duas regras jurídicas: uma sobre o Juiz ou Tribunal competente, que há de ser o Juiz ou Tribunal já competente no momento de cada ato processual, para todo oato; e outra, sobre a forma de cada ato processual, que há de ser a da lei vigente ao tempo em que se vai praticar o ato processual e durante ele (cf. Comentàrios, cit., p. 332).Aliás, em sua obra citada, nota n. 105, Basileu Garcia dizia: A redação do texto constitucional vigente comporta, melhor que a de 1934, o entendimento de que a lei anterior é, simplesmente, a que antecede o ato processual a ser executado. Nesse mesmo sentido, Frederico Marques (Elementos, cit., p. 44) e Magalhães Noronha (Curso de direito processual penal, p. 16). Enfim, uma coisa é a anterioridade da lei ao fato, e que diz respeito ao Direito Penal, e, outra, é a anterioridade da lei ao ato, e que concerne ao Processo Penal.

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0 princípio da incidência imediata da norma processual penal, que também foi adotado (nos termos do atual CPP) no Anteprojeto Frederico Marques, é, como diz Manzini, "aplicación del principio general, válido para toda ley, en virtud del cual, en ausencia de contrarias disposiciones expresas, la normajurídica no puede aplicarse a hechos pasados..." (cf. Derecho, cit., p. 229)."Y esto parece natural" - diz Florian - "ya que si se seguise otro criterio, de un lado, el procedimiento carecería de toda estabilidad, y de otro, la dificultad práctica de realizar todo de nuevo sería extraordinaria" (cf. Elementos, trad. Prieto Castro, p. 43).

Portanto a norma processual penal, caso não haja expressa disposiçao em contrário, provê unicamente para o futuro, isto é, os atos processuais que estão por cumprir-se realizar-se-ão de acordo com o estabelecido na nova lei, pouco importando que o processo haja sido ou não iniciado na vigência de lei anterior. Pouco importa, também, se ela é mais severa ou mais branda.

Essa regra é plenamente justificável, posto que o Estado disciplina a administração da justiça da maneira que lhe parece a mais acertada, e deve-se presumir que a nova lei seja melhor que a anterior, não só para o interesse coletivo, como também para os interesses individuais reconhecidos e protegidos pelo Direito Público em geral.

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Esta é a co~nis opinio. A propósito, esclarece Astia, "... as leis processuais penais, posto que sejam estabelecidas no interesse geral da boa administração da justiça, devem aplicar-se desde o dia da sua entrada em vigor" (cf. Tratado, v. 2, p. 576 e s.).Dizíamos nós: entrando em vigor nova lei processual penal hoje, ela terá aplicação mesmo aos processos que estejam em curso, pouco importando sua severidade ou brandura.0 acusado, diz Asúa, só pode legitimamente pretender que a lei lhe dê os meios necessários para que se reconheça sua inocência. Todavia esses meios e o procedimento para fazê-los efetivos hão de ser determinados pelo órgão legislativo.Agora, se a lei processual penal nova coarcta a Defesa, suprimindo, por exemplo, recurso, proibindo-lhe esta ou aquela prova, obstaculizando, enfim, aquela ampla defesa a que se refere a Lei das Leis, é óbvio que tal norma não poderá ter aplicação. Não pelo fato de ser severa, que seria irrelevante, mas pela circunstância de ser supinamente inconstitucional.Assim sendo, resumindo tudo quanto dissemos: se se tratar de norma processual penal propriamente dita, isto é, que verse exclusivamente sobre matéria processual, que não obstaculize a ampla defesa a que se refere a Magna Carta, terá aplicação imediata, pouco importando se mais severa ou não, aplicando-se, como é óbvio, também aos processos em curso. Faz-se uma exceção: salvo se houver disposição expressa em contrário.

Exemplos:

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a) Pedro cometeu um crime de lesão corporal leve em 1990. 0 processo estava em curso quando, em março de 1991, surgiu nova lei, dizendo que nos crimes de lesão corporal leve, em vez dos debates a que se refere o § 2.' do art. 539, as partes têm três dias para fazer as alegações finais. Aplica-se a lei nova.b) Ontem foi oferecida denúncia ou queixa contra Pedro. 0 Promotor ou o querelante pediu a realização de exame pericial. A lei dizia que o exame devia ser realizado por dois peritos. 0 Juiz designou a perícia para o dia 15 do mês seguinte e nomeou os dois peritos. No dia 2 do mês seguinte, entra em vigor nova lei processual penal, dizendo que as perícias somente serão válidas se realizadas por quatro peritos. Obviamente, cumpre ao Juiz nomear mais dois... pois a lei processual tem incidên-

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cia imediata. Se, entretanto, n , esse exemplo, a perícia houvesse sido realizada um dia antes da entrada em vigor da lei nova, ela seria válida, uma vez que a lei processual penal não retroage, a menos haja expressa disposição em contrário. Senão, não.Porém, conforme ensinamento de Asúa, se a norma processual penal contiver predominante caráter de Direito Penal, se mais benigna, retroagirá e, se mais severa, aplicar-se-á a lei mais velha (cf. Tratado, cit., p. 5 8 1). No magno sentido a lição de Silvio Ranieri (La legge, p. 154-8) e de Manzini (Trattato, cit., p. 232).Urge, assim, distinguir a norma penal da norma processual penal.

São normas penais todas aquelas que atribuem virtualmente ao Estado o poder punitivo, ou, também, aos órgãos do mesmo Estado ou a particulares o poder de disposição do conteúdo material do processo, vale dizer, da pretensão punitiva (representação, queixa, perdão, anistia, índulto, graça, livramento condicional etc.). Assim, as normas jurídicas, por exemplo, que estabelecem quais os crimes e contravenções e quais as causas que condicionam, excluem ou modificam a punibilidade, são normas genuinamente penais.São normas de Direito Processual Penal, de modo geral, todas aquelas que regulam o início, desenvolvimento e fim do processo, as que estabelecem as garantias jurisdicionais na execução das coisas julgadas, que indicam as formas com que os sujeitos processuais podem valer-se das suas faculdades e direitos processuais etc.Desse modo, fácil concluir que uma norma que verse sobre ação penal é norma processual penal, porquanto a ação é instituto do Direito1Processual, como um direito instrumental para fazer valer em juízo uma pretensão. E o instrumento provocador da jurisdição e que vai realizarse no processo. Ora, é por meio da ação penal que o Estado torna efetivo o seu direito de punir. Logo, a ação é instituto eminentemente processual. Entretanto, às vezes, numa norma sobre ação podem coexistir 41 prevalentes caracteres de derecho penal material". Quando tal ocorre

aplicam-se os princípios da temporalidade das leis penais,

14 É o que sucederia, por exemplo, se surgisse uma norma dizendo:

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os crimes de furto simples são de ação privada". Evidente que essa

norma é de natureza processual, pois está a indicar a forma pela qual deve ser iniciado o processo nos crimes de furto simples. Por outro lado, existem nela prevalentes caracteres penais. Sendo de ação privada, o

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processo não será obrigatório... somente será instaurado se a vítima quiser.. se a vítima não propuser ação no prazo legal, ocorrerá a decadência, causa extintiva da punibilidade... a vítima pode renunciar... e a renúncia é causa extintiva da punibilidade... mesmo depois de iniciado o processo, é possível ocorrer a perempção, causa extintiva da punibilidade; pode, também, enquanto não transitar einjulgado eventual sentença condenatória, ser o réu perdoado pela vítima, e o perdão é causa de extinção da punibilidade... Como se percebe, a "ação penal privada" está profundamente vinculada ao direito de punir, por meio dos institutos da renúncia, decadência, perempção, perdão.Ora, são normas penais todas aquelas que atribuem ao Estado ou a particulares o poder de dispor do conteúdo material do processo, vale dizer, da pretensão. Assim, se pela renúncia, decadência, perempção e perdão, o particular dispõe da pretensão, fazendo extinguir-se o direito de punir, é claro que uma norma sobre "ação privaU', como no exemplo dado, tem prevalentes caracteres penais, ligada que está àqueles institutos.Assim, aplicam-se as regras próprias do Direito transitório penal.Dessa maneira, se em fevereiro de 1991 havia uma norma dizendo que o crime de lesão corporal leve era de ação pública, e em março surge nova lei passando tal crime para a alçada privada, se não se instaurou inquérito, este somente será instaurado mediante provocação do ofendido. Se o inquérito foi iniciado e, uma vez remetido ajuízo, o Promotor não pode oferecer denúncia, e, se já a havia oferecido, o órgão do Ministério Público afasta-se do processo, a fim de que o ofendido, querendo, sob pena de decadência intercorrente (pois, nesse caso, o prazo flui a partir da vigência da lei), venha assumir a posição de parte acusadora, ratificando os atos já praticados e prosseguindo no feito. Essa solução é ditada tendo-se em vista as profundas vinculações que o instituto da ação penal privada mantém com ojus puniendi. Logo, surgindo uma lei dizendo que, em tal ou qual crime, somente se procede mediante queixa, a despeito do seu caráter processual, apresenta, pelos motivos expostos, prevalentes caracteres penais, devendo, pois, ser regida pelo princípio da temporalidade das leis penais.E se o exemplo dado fosse invertido? Se o crime fosse de ação privada e se convertesse em crime de ação pública? A solução seria a mesma, isto é, a regra de direito intertemporal seria a do Direito Penal. Como a lei anterior era mais benigna, teria ultra-atividade.

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Aliás, quando o Código de 1940 entrou em vigor, para solucionar problemas que tais (e para reger situações futuras), sua Lei de Introdução dispôs no art. 20, 11: "Não poderá ser promovida ação pública, por fato praticado antes da vigência do Código Penal, quando, ao contrário do que dispunha a lei anterior, o Código Penal só admite ação privada".Por sua vez, o art. 5.' da Lei de Introdução ao CPP, que entrou em vigência em janeiro de 1942, salientou: "Se tiver sido intentada ação públiça!~or crime que, segundo o Código Penal, só admite ação privada, esta, salvo decadência intercorrente, poderá prosseguir nos autos daquela, desde que a parte legítima para intentá-la ratifique os atos realizados e promova o andamento do processo".Como a lei que versa sobre queixa, isto é, que diz se em tal ou qual crime "somente se procede mediante queixa", apresenta, conforme vimos, profundos caracteres penais, dadas as relações entretecidas com o direito de punir, retroage, sempre que in melius, e irretroage, se in pejus.E se se tratasse de requisição do Ministro da Justiça? Esta é condição de procedibilidade. A lei não lhe fixa prazo, pena de decadência, para sua feitura. Embora não exercida, "em nada influi, de forma direta, sobre o direito de punir". Tratando-se de norma de natureza processual, a regra a seguir é a da incidência imediata. Se a lei anterior não a exigia e a nova passa a exigi-Ia, é preciso distinguir: a) se a ação penal já foi intentada, continua normalmente; b) caso não o tenha sido, só poderá sê-lo com a autorização ministerial. Se a lei anterior exigia e a nova deixa de fazê-lo, teremos: a) se a requisição foi feita e a ação penal iniciada, continua o processo; b) se a ação penal ainda não foi intentada, para sê-lo não mais se exigira a requisiçao ministerial. *No caso de representação, o problema é mais delicado. Ela é, à maneira da requisição ministerial, condição de procedibilidade, de natureza processual, portanto. Todavia a lei fixa prazo para sua feitura, sob pena de decadência. De sorte que o seu não-exercício atinge de maneira direta ojus puniendi. Se a decadência é condição negativa de punibilidade, segue-se que a não-feitura da representação, no prazo legal, acarretará a extinção da punibilidade. Diga-se, portanto: a decadência do direito de representação "não atinge apenas ojus persequendi, mas também ojus puniendi do Estado; e tudo quanto impeça ou dificulte este último, além de favorecer o réu, insere-se no âmbito da lei penal".Destarte, se a lei nova passa a exigir representação para a propositura da ação, ao contrário do que dispunha a lei anterior, ou se a lei nova não

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mais a exige, ao contrário da lei revogada, pensamos deva ser invocado o princípio da temporalidade da lei penal: irretroatividade, se gravosa, e retroatividade, se benigna.

Se o princípio dominante é o da retroatividade da lei penal, sempre que beneficie o réu, ou o da ultra- atividade, desde que o favoreça, parece-nos que, em se tratando de lei que verse sobre

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representação, isto é, que diga se em tal ou qual crime sem ela não se poderá instaurar o processo, é de se aplicar o princípio da temporalidade da lei penal.

Sem embargo, o art. 21 da Lei de Introdução ao CP de 1940 dispôs: "Nos casos em que o Código Penal exige representação, sem esta não poderá ser intentada ação pública por fato praticado antes de 1.' de janeiro de 1942; pros seguindo- se, entretanto, na que tiver sido anteriormente iniciada, haja ou não representação".

Se se tratasse de preceito aplicável apenas àqueles casos ocorridos antes de janeiro de 1942, vá lá. Todavia tal princípio é inteiramente aplicável às hipóteses que surgirem durante a vigência do Código. Mas, após a Emenda Constitucional ri. 1, que colocou o problema da retroatividade in melius e o da ultra-atividade de la lois plus douce em termos amplos, tratando-se de lei penal, parece-nos induvidoso que oinstituto da representação deve ser regido pelo princípio da temporalidade da lei penal. No mesmo sentido, o inc. XL do art. 5.) da Constituição de 5-10-1988.

Ninguém duvida que uma lei que subordina a propositura da ação penal à representação seja mais benigna que outra que não faz tal exigência. Daí dizer Battaglini: "Che Ia disposizione attinente alla querela voglia dire una minore severità della legge, é fuori di dubbio. Ini`fati, se si esige Ia querela, puó darsi che il leso - per questo o per quel motivo utilitario (esempio: consegulta riparazione del danno) o no - renunci al suo diritto o che non si quereli oppure che revochi Ia già sporta doglianza~' (cf. La querela, cit., p. 176).

Certo que toda condição de procedibilidade representa um "plus" para o exercício do jus persequendi e, por isso, é sempre mais favorável. Na hipótese da representação, ou querela, como lhe chamam os italianos, ela representa algo mais: o seu não-exercício, no prazo previsto em lei, acarreta a extinção da punibilidade. Razão pela qual pensamos seja invocável o disposto no art. 2.' e parágrafo do CR

A matéria, contudo, não é pacífica.

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No sentido de se aplicar, na hipótese de representação, a lei mais benigna, vejam-se: J. Asúa (Tratado, cit., p. 581); Manzini (Derecho, cit., 1951, p. 231-2); Silvio Ranieri (La legge, cit., p. 154); Antolisei

(Manual, cit., p. 89): "...la cuestión debe resolverse afirmativamente y, por ello, considerarse másfavorable la ley que para la perseguibilidad del delito exige la querella". No mesmo sentido, G. Battaglini (La querela, cit., p. 178): " ... il processo pendente, iniziato d'qfficio, verrà da quel m#mento a trasformarsi in processo a querela, cosicchè, a meno che la querela non venga presentata, esso dovrà chiudersi con pronuncia di proscioglimento (di carattere meramente processuale)".Contra: Grispigni (Dirittopenale, v. 1, p. 365, nota 13); Frederico

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Marques (Tratado, cit., p. 213), com certa mitigação: " ... mas se a acusação pública jáfoi intentada e a instância já se instaurou, não incide

a lei nova porque não há que falar-se em decadência ou renúncia da representação".

Problema recente surgiu com a Lei ri. 9.099/95 ao estatuir no art. 88 que os crimes de lesão corporal leve e culposa são de ação penal pública subordinada à representação. E toda a doutrina admitiu que, em se tratando de norma processual penal com prevalente caráter penal,

devia ser aplicada aos processos em curso. E foi o que se fez. Os Tribunais, dezenas de vezes, determinaram a remessa dos autos, em face de recurso à primeira instância para a colheita da manifestação do ofendido, no prazo de 30 dias, conforme dispôs o diploma legal.

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capítulo 4

Eficácia da Lei Processual Penal no Espaço

SUMÁRIO: 1. Eficácia da lei penal no espaço. 2. 0 princípio da territorialidade. 0 da nacionalidade. 0 da proteção. 0 da Justiça Penal universal. 3. Lugar do crime. 4. Tempo do crime.5. Lei processual penal no espaço. 6. Ressalvas.

1. Eficácia da lei penal no espaço

Antes de entrarmos no estudo objeto do presente capítulo, é conveniente fazermos ligeira referência à eficácia da lei penal no espaço.

Sobre o assunto há quatro princípios: o da territorialidade, o da nacionalidade ou da personalidade, o da defesa ou da proteção, e o da Justiça Penal universal, também chamado da universalidade da lei penal.De acordo com o primeiro princípio, a lei penal de um Estado só impera dentro dos seus limites territoriais. Dentro dos limites territoriais do Estado que a promulgou, a lei penal é aplicável a todos quantos a infringirem, pouco importando se nacional ou estrangeiro. 0 princípio da nacionalidade, também chamado da personalidade, é aquele segundo o qual o indivíduo, onde quer que esteja, faz-se acompanhar do direito punitivo do seu Estado de origem. De acordo com tal princípio, se um cidadão brasileiro for à Grécia e praticar naquele país um fato punível,

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a lei penal aplicável será a brasileira. Costuma-se distinguir o principio da personalidade em ativo ou passivo. Ativo, quando se aplica ao cidadão a lei do seu Estado de origem, seja qual for o bem jurídico atingido pelo crime. De acordo com o passivo, só se aplica ao cidadão a lei penal do seu Estado de origem quando o bem jurídico pertença ao seu Estado ou a um co-nacional.

Pelo princípio real, da proteção ou da defesa, leva-se em consideração a nacionalidade do bem jurídico ofendido ou ameaçado pelo fato punível, sendo de nenhuma importância o lugar onde haja ocorrido o fato e a nacionalidade do seu autor.

Segundo o princípio da universalidade da lei penal, aplica-se ao autor do fato punível a lei penal do país em que se encontre, seja qual for o lugar onde o crime foi cometido, seja qual for sua nacionalidade ou o bem jurídico violado.

0 problema da aplicação da lei penal no espaço não pode, entretanto, ser solucionado por qualquer desses princípios, insuladamente. Nos Códigos Penais modernos vigora um verdadeiro sistema em que há predominância do princípio da territorial idade e aplicação dos demais princípios.

0 nosso CP, como veremos, adotou um sistema complexo com aplicação dominante do princípio da territorialidade. A matéria está contida em seus arts. 5.' e 7.0.

2. 0 princípio da territorialidade. 0 da nacionalidade.0 da proteção. 0 da Justiça Penal universal

0 art. 5.' assim dispõe: "Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional".

A regra central que se contém no dispositivo em exame é esta: aplicase a lei brasileira ao crime cometido no território nacional. Predomina, então, o princípio da territorialidade. Cumpre-nos, entretanto, esclarecer o que seja território e, feito o esclarecimento, cumpre-nos, ainda, dar a noção de lugar do crime.0 conceito de território que convém ao nosso estudo não deve nem pode cingir-se ao seu sentido estritamente material.A noção geográfica de território é por demais acanhada. Interessanos o sentido jurídico da expressão.

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Em termos gerais, o território do Estado é todo espaço de terra, mar,e ar sujeitos à sua plena e absoluta soberania.

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Por espaço de terra entende-se a extensão territorial contida dentro nos limites das fronteiras do Estado. Esses limites são fixados em tratados, pactos, quando não pela vontade do próprio Estado, por meio de ocupação bélica. As vertentes assinalam os limites nas montanhas, o Thalweg nos rios; nos lagos e mares internos, "sirve de limite Ia recta que une los confinéfde Ios dos Estados cri Ias riberas opuestas" (cf. Maggiore, Derecho penal, trad. esp., Bogotá, Ed. Ternis, 1954, v. 1, p. 216).

0 mar que se estende pela costa da faixa de terra do Estado também lhe pertence. Controvérsia há, entretanto, quanto aos limites dessa faixa marítima. 0 princípio consuetudinário era no sentido de que a soberania do Estado terminava onde chegasse o poder de suas armas -"terrae potestasfinitur ubifinitur armorum vis". Todavia, com os sucessivos progressos da balística, principalmente hoje com os foguetes intercontinentais, seria uma temeridade a adoção de tal critério, e, por isso, houve necessidade de substituí-lo, determinando-se por meio de tratados, leis internas e convenções, os limites das águas territoriais. Na década de 20 do presente século, fixou-se em 3 milhas, a partir da costa, na baixa maré, os limites da faixa marítima. Entre nós, esse era o limite. Em 1966, pelo Decreto-lei ri. 44, de 18 de dezembro, delimitou-se o mar em 6 milhas e também em 6 milhas a denominada zona contígua. Faixa contígua é a existente entre o mar territorial e o alto-mar, na qual o Estado passaria a exercer certos direitos, principalmente relacionados com a política sanitária ou aduaneira ou controle de pesca (cf. Hungria, Comentários, cit., 1955, p. 161-2). Em 1969, pelo Decreto-lei ri. 553, de 25 de abril, aumentou-se a extensão da faixa territorial para 12 milhas, incorporando- se-lhe a faixa pertinente à zona contígua. 0 Decreto-lei ri. 1.098, de 25-3-1970, fixou a faixa marítima em 200 milhas, contadas da linha da mais baixa maré do litoral continental ou insular. Mais tarde, a Lei ri. 8.617, de L'-4-1993, no seu art. 1.% estabeleceu a largura de 12 milhas, contadas a partir da maré baixa. Integram, também, o território nacional, as denominadas águas interiores (rios e lagos) e, por uma ficção, até mesmo as águas do mar quando formam baías. Nesses casos, para a contagem das 12 milhas, despreza-se o espaço ocupado pelas baías e ancoradouros. Quanto a Fernando de Noronha, as 12 milhas são contadas em seu derredor. De outra parte, o art. 3.' do referido diploma reconhece o direito de "passagem inocente" de qual-

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quer embarcação pelo nosso mar territorial. Isso significa que a Justiça brasileira não deverá tomar providências quanto a eventual crime cometido nessas embarcações, salvo se for prejudicial à paz, à boa ordem ou à segurança do Brasil, ex vi do § 1.' do art. 3." já citado. A mesma observação é válida para eventuais crimes cometidos em aeronaves estrangeiras quando atravessam o nosso espaço aéreo. Ao lado do mar territorial foi mantida a zona contígua, que se estende por mais 12 milhas além do mar territorial, e, nesse espaço, o Brasil poderá tomar medidas de fiscalização necessárias para: a) evitar as

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infrações às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de iinigração ou sanitários, no seu território ou no seu mar territorial; b) reprimir as infrações às leis e aos regulamentos, no seu território ou no seu mar territorial. Também há a plataforma continental, numa extensão de 200 milhas, sobre a qual o Brasil exerce soberania para efeitos de exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais. No conceito de território, compreende-se, também, o espaço aéreo.A soberania do Estado estende-se à massa de ar que lhe cobre o solo e as águas territoriais.

Muita discussão, todavia, surgiu a respeito do assunto. Houve quem quisesse estabelecer a mesma distinção que se fizera quanto à faixa marítima: parte sujeita à soberania e parte livre. Prevaleceu, entretanto, o princípio de que, quanto ao espaço aéreo que cobre o solo e as águas territoriais de um Estado, a soberania deste se estende ad in nitum. Defendendo esse 0princípio, Donnedieu de Vabres salienta: '11 existe, cri effet, cette différence essentielle qu'un navire, à certaine distance de Ia côte, cesse de pouvoir Ia bombarder, au lieu qu'un aéronef est cri mesure, quelle que soit sa hauteur, de jeter des explosifs sur le territoire. La protection de ce dermer exige que l'atmosphère soit placée, sans limitation, sous Ia pleine souveraineté de I'État souSiacent" (cf. Traité, cit., ri. 1.645, p. 93 1). Tal ponto de vista foi aceito na convenção internacional de 1919 e revisto em 1929.

Esse princípio, consagrado universalmente, foi adotado entre nós. 0 Decreto-lei ri. 483, de 8-6-1938 (Código Brasileiro do Ar - CBAr.), já dizia: "Os EE.UU. do Brasil exercem completa e exclusiva soberania sobre o espaço situado acima do território nacional e águas territoriais", e o Código que o sucedeu, aprovado pelo Decreto-lei ri. 23, de

18-11-1966, e altera-

do pelo Decreto-lei ri. 234, de 28-2-1967, manteve o mesmo princípio: "0 Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre o espaço aéreo acima de seu território e mar territorial". Não, contudo, ad infinitum.

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Atualmente, com a promulgação do Código Brasileiro de Aeronáutica - Lei ri. 7.565, de 19-12-1986 -, embora seu art. 11 disponha que o Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre os ares situados acima do seu território e mar territorial, parece-nos que essa soberania se estende até onde termina a camada atmosférica; a partir daí, surge o denominado espaço extra-atmosférico, que se assemelha ao altomar. Da mesma forma que em relação ao alto-mar todos podem dizer "o mar éÀ#hsso", quanto ao espaço cósmico, podem afirmar "o espaço cósmico é nosso".

Contudo, devemos fazer algumas considerações a respeito. 0 art. 1.' do Código Brasileiro de Aeronáutica dispõe que o Direito Aeronáutico é regulado pelos Tratados, Convenções e Atos

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Internacionais de que o Brasil seja parte, pelo CBAr. e pela legislação complementar. No que respeita a infrações cometidas a bordo de aeronaves, durante o vôo, competente para exercer ajurisdição sobre infrações e atos praticados a bordo é o Estado de matrícula da aeronave, nos termos do art. 111, 1, do Capítulo 11 da Convenção de Tóquio, da qual o Brasil é signatário, conforme o Decreto ri. 66.520, de 30-4-1970. Considera-se, para fins da referida Convenção, que "uma aeronave está em vôo desde o momento em que se aplica a força motriz para decolar até que termina a operação de aterrissagem" (art. 1, 3, do Capítulo 1 do Decreto já referido). As exceçoes àquela regra estão previstas no art. IV do Capítulo 11 desse mesmo diploma:

"0 Estado Contratante, que não for o da matrícula, não poderá interferir no vôo de uma aeronave a fim de exercer suajurisdição penal em relação a uma infração cometida a bordo, a menos que: a) a infração produza efeitos no território desse Estado; b) a infração tenha sido cometida por ou contra um nacional desse Estado ou pessoa que tenha aí sua residência permanente; c) a infração afete a segurança desse Estado; d) a infração constitua uma violação dos regulamentos relativos a vôos ou manobras de aeronaves vigentes nesse Estado; e) seja necessário exercer a jurisdição para cumprir as obrigações desse Estado, em virtude de um acordo internacional multilateral".

Por umafictiojuris considera-se como prolongamento do Estado a que pertencerem os navios e aeronaves utilizados em serviço militar ou em outra função pública ou, ainda, a serviço exclusivo de Chefes de

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Estado ou agentes diplomáticos. Tais navios ou aeronaves, ainda que estejam em território estrangeiro, subordinam-se à lei penal dos países a que pertencerem. Assim, a todos os crimes cometidos a bordo desses "territórios flutuantes" aplica-se a lei penal do Estado a que pertencerem, pouco importando estejam ou não em território estrangeiro.

Aliás, o § L" do art. 5.' do CP dispõe: "Para os efeitos penais, consideram-se como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro, onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar".

Observe-se, de início, que a lei diz "consideram-se", em vez de "são".

Normas consuetudinárias e princípios internacionais de há muitotêm-se firmado nesse sentido. Por essa razão, o legislador pátrio não se preocupou, anteriormente, em fixar no corpo do CP semelhante regra. Há, também, quem diga que, em se tratando de matéria afeta

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ao Direito Internacional, refoge à órbita normativa de um Código Penal. Daí a cautela do legislador italiano: "Le navi e gli aeromobili italiani sono considerati como territorio dello Stato, ovurique si trovino, salvo che siano soggetti, secondo il diritto internazionale, ad una legge territoriale straniera".

Contudo vale a explicitação, como sendo uma tomada de posição do legislador brasileiro. Dificuldades poderão surgir, na prática, para seidentificar a natureza pública de tais embarcações e aeronaves. Obviamente, públicas serão quando de propriedade da União, dos Estados, de uma empresa pública, autarquia, sociedade de economia mista, Município ou fundação mantida pelo Poder Público. Mas e se forem estrangeiras e estiverem a serviço do Governo brasileiro? As apreensões de Salgado Martíns são válidas (cf. Direito penal, Saraiva, 1974, p. 115).

0 Decreto ri. 15.758, de 8-1-1922, definia o navio como sendo "toda construção náutica destinada à navegação de longo curso, de grande ou pequena cabotagem, apropriada ao transporte marítimo ou fluvial". Contudo tal Decreto foi revogado pelo de ri. 99.999, de 11-1-1991. 0 entendi-mento, contudo, é de que o navio é uma embarcação de grande cabotagem, entendendo-se como tal a navegação feita entre dois ou mais Estados brasileiros, "em virtude do que o navio mais se afasta das costas nacionais, navegando mesmo pelo mar alto". E com melhor razão aqueles que empreendem viagens internacionais. 0 STJ, contudo, foi mais exigente:

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navio é a embarcação de grande cabotagem, autorizado e apto a realizar viagens internacionais, ex vi do inciso IX, art. 109, da CF (STJ, CC 14.48 8/PA, Relator Min. Vicente Leal, DJ de 11 - 12~ 1995).

As de pequeno porte são as embarcações. Em linguagem corrente, a expressão einbarcação é mais ampla. Navio, mais restrita. 0 CP, aqui,

usa de expressão ampla, ao contrário do que ocorre com o art. 109, IX, da Constituição, onde se usa o termo navios.Elf se tratando de embarcações privadas, quando em território es-

trangeiro, subordinam-se às leis do país em cujo mar estiverem. Quanto às aeronaves, observa-se a Convenção de Tóquio. Convém ponderada a observação de que, se nessas embarcaçoes privadas houver, entre os

passageiros, Chefe de Estado ou Representante Diplomático, seus aposentos, por cortesia internacional, gozam de extraterritorialidade, isto é, mesmo em águas territoriais estrangeiras, aqueles aposentos representam o território do país a que pertencerem seus ocupantes.

Se tais embarcações ou aeronaves estiverem em alto-mar ou sobrevoando-o, sujeitam-se ao Estado cuja bandeira ostentarem.Quanto às aeronaves e embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, assim dispõe a segunda parte do § 1 .'do art. 5.' do CP: " ... bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras,

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mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aereo correspondente ou em alto-mar".

0 princípio, aliás, é universal. "Le navi in alto mare sono sottoposte

alla potestá de¡ singoli Stati cuí appartengono, ed il trovarsi a bordo di una nave In tale acque equivale a trovarsi nel terrítorio dello Stato del quale la nave ha la bandiera" (cf. Cass., 18 jan. 1957, Gíust. Penale, 3/528, 1957).No mesmo sentido a li~áo de Soler: "... En cuanto a las naves privadas,

los crimines cometidos en alta mar corresponden a la nacionalidad de la bandera del barco y cuando está en aguas jurisdiccionales de otro Estado queda la nave sometida a la ley de éste" (cf. Derecho, cit., 1953, p. 167-8).

Universal é, tambérn, a norma pertinente á ficláo de se considerar

como prolongamento do território do Estado os navios e aeronaves públicas ou a servWo do Governo do respectivo Estado, onde quer que se encontrem. A propósito, Soler: "Las naves públicas son territorio del

Estado, tanto en alta mar como en aguas jurisdiccionales de otro Estado..." (cf. Derecho, cit., p. 167).

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Até aqui a reforma penal se linfitou a explicitar velhas regras atinentes à espacialidade da lei penal que, segundo alguns, integram o chamado Direito Penal Internacional e, segundo outros, direito de aplicação do Direito Penal (cf. E. Mezger, Derecho penal; parte general, trad. C. Finzi, Buenos Aires, Ed. Argentina, 1958, p. 70).

Outra velha norma consuetudinária veio explicitada no § 2.' do art. 5.` do CP: "É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil".Fato curioso ocorreu a bordo do navio Augustus, de procedência italiana, em abril de 1969, objeto até de uma reportagem de Ruy Portilho na Revista Manchete de abril ou maio daquele ano: F. B. fugira da Argentina, exilando-se no Uruguai. Ali se casou com M. Quando do pedido de extradição, o governo uruguaio negou-o, por se tratar de crime político. Do Uruguai, F. B. e sua família vieram para o Brasil. Em 1964, F. B. tomou, sozinho, o rumo da Europa. Ninguém sabia, ao certo, seu paradeiro. Na verdade, fora preso, na França, por emissão de cheque sem fundos. Ao se aproximar a data da sua libertação, o diretor da Penitenciária ofereceu-lhe a dispensa do restante da pena, caso ele abandonasse imediatamente a França. Como não tinha dinheiro, F. B. recorreu ao Consulado argentino em

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Marselha. 0 cônsul, então, não teve dúvida em conseguir-lhe passagem para a Argentina, com recomendação ao Comandante do Augustus de não permitir sua saída do camarote durante a permanência nos portos de escala. Em Lisboa, entretanto, F. B., com papel com timbre do Augustus, fez uma carta à sua esposa, residente no Rio de Janeiro, relatando-lhe que estava sendo seqüestrado e conduzido às mãos da polícia argentina. Algum passageiro, a seu pedido, deve ter posto a carta no Correio, em Lisboa, e, finalmente, quando o navio penetrou nas águas territoriais brasileiras, um pedido de habeas corpus já havia sido impetrado perante o Juiz da 2.' Vara da Justiça Federal da Guanabara, tendo o Magistrado, de início, encaminhado três ofícios: o primeiro, solicitando informações ao comandante do navio, com o prazo de 3 horas, em face da urgência; o segundo, à Capitania dos Portos, pedindo informações sobre a entrada do Augustus no porto e determinando que não fosse permitida a sua saída antes do julgamento do habeas corpus; e o terceiro à Polícia Marítima, prevenindo-a para a possibilidade de ser necessário reter o navio à força.

Afinal, comprovado que, na verdade, estava ele sendo levado, ilegalmente, às mãos da polícia argentina, entendeu o Magistrado que havia um constrangimento ilegal e, por isso, concedeu o writ, não obstante fosse ele estrangeiro, como estrangeiro era o navio em que viajava. Mas, no instante em que penetrou nas nossas águas territoriais, inteira aplicação tinha e tem a nossa lei penal. Se se tratasse de navio de guerra, seria diferente, por ser considerado, onde quer que esteja, como um prolonga-

ment90o Estado a que pertença, e, desse modo, a lei brasileira não poderia ter eficácia fora do seu território, ressalvadas as exceções legais.

E se um tripulante de navio ou aeronave públicos, em território estrangeiro, desce a terra e comete um crime, ficará sujeito à lei do Estado em cujo território foi praticado?

Tem-se entendido que, se o tripulante desceu a serviço, sujeitar-se-á à lei do país a que pertencer o navio ou aeronave. Se ele não for a terra a serviço, ficará sujeito à lei do Estado em cujo território se cometeu o crime. Todavia, observa Hungría, a prática tem consagrado, por uma questão de cortesia diplomática, a renuncia por parte do Brasil a puni-ção de delitos sem gravidade praticados por gente da tripulação de navios de guerra, ainda que tenham vindo a terra simplesmente a passeio (cf. Comentâríos, cít., p. 167).

Uma observação se impõe: se um navio privado apenas atravessou as águas territoriais do Brasil, não se aplica a nossa lei penal ao crime nele cometido, se, aqui, tal infração não se refletiu, muito embora legí-tima a intervenção pátria. Diga-se o mesmo a respeito das aeronaves que se limitam a cruzar o espaço aéreo nacional. E se um crime ocorrer

no interior de um navio privado, surto em águas territoriais estrangeiras, quid inde? Evidentemente, é de se aplicar a lei do Estado em cujo terri~ tório o crime foi cometido. Mas, se aí não forem tomadas

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as providências para o processo e julgamento do culpado, sendo o navio ou aeronave brasileira, é de se aplicar a lei pátria.

De acordo com a Convenção de Genebra, de abril de 1958, art. 19, § 1.', a jurisdição penal do Estado não deve ser exercida em relação às infrações penais cometidas a bordo de navios estrangeiros que estejam passando pelas águas territoriais, salvo nas seguintes hipóteses: a) se as

conseqüências da infração se estenderem ao Estado em cujas águas territoriais foi ela cometida; b) se a infração é de natureza a perturbar a paz pública do país ou a boa ordem no mar territorial; c) se a assistência

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das autoridades locais foi solicitada pelo capitão do navio ou pelo cônsul do Estado cuja bandeira o navio ostenta; d) se as medidas forem necessárias para a repressão de tráfico de entorpecentes.

Observa Battaglini que, na prática, a maioria dos países acolhe o conceito de que o navio privado somente se submete à lei do Estado em cujas águas territoriais se encontre, na hipótese de o delito relacionar-se com pessoas estranhas à tripulação, provocando perturbação da paz pública daquele Estado (cf. Direito penal, trad. Paulo José da Costa Jr. e Ada Pellegrini Grinover, Saraiva, 1964, p. 83). No mesmo sentido, Vidal (Cours de droit criminel, 8. ed., p. 1073). E a confirmar essa observação aí está o § 1.' do art. 3.' da Lei n. 8.617, de 1-4-1993, cuidando dapassagem inocente e salientando que a lei brasileira não será aplicada aos fatos ocorridos nas embarcações privadas estrangeiras que passem pelo seu mar territorial, salvo se o fato for prejudicial à paz, à boa ordem e segurança do Brasil.

A Corte de Cassação já decidiu assim: " ... soltanto i reati conimessi a bordo delle navi mercantili naviganti in acque territoriali di altro Stato sono considerati cominessi nel territorio dello Stato al quale appartiene Ia nave, mentre sono considerati conimessi nel territorio dello Stato rivierasco ove a questo, fuori del bordo della nave, si estendano le conseguenze di essi" (cf. Cass., Sez VI, 20 set. 1968, Skoufalos, Mass. tiff. 1968, 1293, in. 1092232).

Contudo a regra constante do § 2.' do art. 5.' do CP tem mais o alcance de se precisar o âmbito espacial da lei penal pátria do que mesmo desgravitar da órbita traçada pela Convenção de Genebra. Evidente que, não havendo reciprocidade de tratamento, o Brasil fará aplicar a sua lei, se lhe convier.

3. Lugar do crime

0 art. 4.' do CP, em sua redação anterior, dispunha que a lei brasileira era aplicável ao crime cometido, no todo ou em parte, no território nacional ou que nele, embora parcialmente, produziu ou devia produzir seu resultado.

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Estava, pois, consagrada a teoria da ubiqüidade.0 art. 6.' atual não se apartou do modelo de 1940. Deu-lhe, apenas, redação diferente, de molde a retirar da epígrafe "lugar do crime" a regra atinente à eficácia espacial da lei penal, desta tratando em dispositi-

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1 39vo a parte e, ao mesmo tempo, em vez da expressão "crime cometido , preferiu, para dissipação de dúvida, a fórmula do art. 6.' do Codice Penale italiano, "l'azione o Fomissione ......

Trata-se, aliás, de diretriz traçada pela Comissão Redatora do Código Penal Tipo para a América Latina. Assim ficou redigido o art. 6.' do citado diploma legal: "Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produA ou deveria produzir-se o resultado".

A disposição é por demais relevante. Se a lei brasileira é aplicável ao crime cometido no território nacional, quando se pode dizer que um crime foi cometido no território nacional? A respeito do assunto há várias teorias: a) Teoria da ação ou da atividade, segundo a qual o lugar do crime e aquele onde o agente praticou a atividade voluntária. Considerase, tão-somente, o momento da execução, sendo indiferente o do resultado. Assim, se alguém é ferido no Canadá e vem, em conseqüência da lesão, a falecer nos Estados Unidos, a lei aplicável é a do Canadá, porque ai e que se verificou a atividade voluntária; b) Teoria do resultado, que considera lugar do crime "ali, onde ocorreu, de fato, o resultado típico procurado pelo agente"; c) Teoria da intenção, em que se leva em consideração, na determinação do lugar do crime, a intenção do agente. Explica Maggiore: se o agente queria, por exemplo, envenenar uma pessoa na França, ali se teria cometido o delito, ainda quando o efeito letal se houvesse verificado noutra parte; d) Teoria mista ou da ubiqüidade. É a que tem prevalecido e que foi adotada pelo nosso Código. "Lugar do crime e aquele onde se realiza um dos momentos da sua marcha objetiva: um momento qualquer da execução ou do resultado final" (cf. Ambal Bruno, Direito, cit., p. 233).Para que se aplique a lei brasileira, basta que uma fração da atividade executiva do agente tenha sido praticada em território nacional ou tenha nele, embora em parte, produzido seu resultado. Com a teoria da ubiqüidade solucionam-se os problemas dos chamados crimes a distância. Assim, se A prepara em Aracaju uma bomba para ~ar B em Assunção, e remete o engenho para o seu destino e, realmente, vem a matar B ou a não matar por circunstâncias alheias à vontade do agente, este responde pelo crime perante a Justiça brasileira. Se o fato for punível também no lugar onde o crime produziu ou devia produzir seu resultado, aí, também, ele será punido. Mas, para evitar o bis in idem, isto é, a

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1 1 1 1 1 kg

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dupla condenação pelo mesmo fato, o art. V do CP proclama: "A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas".

0 exemplo dado pode ser invertido, e a situação, para a aplicação da lei brasileira, não se altera.0 art. 5.' do CP, estadeando o princípio da territorialidade, consigna,

entretanto: " sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito

internacional oferecendo, desse modo, diz Ambal Bruno, caminho àoportuna aplicabilidade de outros princípios, que aí estejam consagrados.Entre nós, à maneira do que se passa na maioria dos Estados soberanos, não vige, apenas, o princípio da territorialidade da lei penal. Este constitui a regra. Mas, ao seu lado, há outros princípios.

Assim, se alguém, na Argentina, vem a cometer um crime contra o património federal, estadual ou municipal, ou contra a fé pública da União, de Estado ou de Município brasileiro, aplica-se a lei penal pátria, a despeito de a atividade criminosa desenvolver-se, inteiramente, naquele país. Trata-se da adoção do princípio real ou da proteção, invocável, também, nos crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da República, bem como nos cometidos contra a administração pública, por quem está a seu cargo.

0 CP, no art. 7.', dispõe: "Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:

1 - os crimes:a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o património ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;

c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço".

Nesses casos predon-iina o princípio real ou da proteção. Pouco importa seja o agente nacional ou estrangeiro, pouco importa tenha sido o crime praticado fora do território nacional, pouco importa que o fato seja ou não punível no país em que foi cometido, que o agente tenha sido condenado ou absolvido no estrangeiro pelo mesmo fato, que o agente ingres-

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se ou não no território nacional. Enfim: a aplicação da lei penal pátria, nas hipóteses retrossalientadas, independe de qualquer condição. Falase, então, em extraterritorialidade incondicionada. Protegem-se aqui os interesses nacionais vulnerados pelo crime.

0 art. 7.', 1, d, do citado diploma dispõe, também, ser aplicável a lei brasileira ao crime de genocidio, quando o agentefôr brasileiro ou domiciliado no Brasil. Não se trata, como bem se percebe, da

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aplicação do pr&ípio real ou da proteção, mas, sim do da personalidade ativa, uma vez que se considera, apenas, a figura do agente: brasileiro ou domiciliado no Brasil. No mesmo sentido, Ambal Bruno e Nilo Batista (cf. Teoria da lei penal, Revista dos Tribunais, 1974, p. 23).

0 art. 7.", 11, do CP dispõe: "Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: a) os crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; b) praticados por brasileiro".

Na hipótese primeira, consagra-se o princípio da universalidade da lei penal, ou dajustiça cosmopolita, ou da extraterritorialidade absoluta. Tais crimes são em número reduzido: danificação de cabos submarinos, tráfico de mulheres ou crianças, comércio não autorizado de entorpecentes, comércio de publicações obscenas etc. Nessas hipóteses, o Brasil pode e deve perseguir e punir o autor do fato infringente da norma, sem se importar com a sua nacionalidade ou lugar da perpetração do crime.

Na segunda - crimes praticados por brasileiros - vigora o princípio da nacionalidade ou da personalidade. A lei do Estado segue o nacional.

Em qualquer dessas duas situações a aplicação da lei penal brasileira fica na dependência do concurso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato também punível no país onde foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido pena; e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.0 art. 7.' do CP, com a reforma, no seu iric. 11, c, trouxe uma novidade: "aplica-se a lei brasileira aos crimes praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados".

Trata-se de um novo principio, o da representação, recomendado pela Comissão Redatora do Código Penal Tipo para a América Latina, em face

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mil

de sugestão do saudoso Sebastian Soler (cf. Ambal Bruno e Nilo Batista, Teoria, cit., p. 15). Na verdade, se o agente não for brasileiro, tampouco a vítima, sem a adoção desse princípio não se aplicaria a lei brasileira.Tal princípio, segundo a reforma penal, sujeita-se àquelas condições fixadas nas alíneas a, b, c, d e e do § 2.' do art. 7.' do CP, isto é: entrar o agente no território nacional; ser o fato punível também no pais em que foi praticado; estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

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0 § 3.' do mesmo artigo reza que a lei brasileira é também aplicada ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil. A aplicação da lei brasileira, nesse caso, subordina-se não só àquelas condições referidas no § 2." já citado, mas, também, a duas outras: a) que não tenha sido pedida ou tenha sido negada a extradição; b) que haja requisição do Ministro da Justiça.Trata-se do princípio da personalidade passiva, segundo alguns autores, ou, segundo outros, simples extensão do princípio real, da defesa ou da proteção.

Desse modo, a lei penal pátria é eminentemente territorial, sem embargo de, em alguns casos, admitir a extraterritorialidade, conforme vimos. Nas hipóteses cuidadas no art 7.", 1, fala-se de extraterritorialidade incondicionada. Nos demais, condicionada.

Por outro lado, deve-se atentar ainda para a circunstância de que, embora a lei pátria seja aplicada aos crimes cometidos no território nacional, os agentes diplomáticos escapam à jurisdição criminal porque continuam submetidos à do seu próprio Estado, que pode julgá-los e puni-los. De modo geral as nações civilizadas concedem tais imunidades aos agentes diplomáticos, escapando eles dajurisdição penal do Estado onde se encontrem acreditados. Essas imunidades diplomáticas encontram seu fundamento nas relações entre os Estados, como Poderes Soberanos e iguais, regra que depende, contudo, da reciprocidade de tratamento. Os cônsules, porque agentes administrativos, não desfrutam desse privilégio, salvo se, em relação a eles, for celebrado algum tratado. Não o havendo, nos crimes comuns serão processados no Brasil e, nos funcionais, no seu país de origem (cf. RV, 63/65).

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Com razão pondera Ambal Bruno: Há de se reconhecer também tal imunidade ao Chefe de Estado estrangeiro, quando se encontre em território nacional, inviolabilidade esta que se estende, também, aos membros de sua comitiva (cf. Direito, cit., p. 240 e s.).Além disso, se algum crime for cometido no interior de um navio ou aeronave de natureza pública ou a serviço de Governo estrangeiro, em território nacional, sobre ele não incide a lei penal pátria. É que tais navio^u aeronaves são consideradas como extensão do território do Estado soberano a que pertencem.No pertinente às sedes das embaixadas, são elas consideradas como território nacional, de sorte que, se algum crime for ali cometido, aplicase a nossa lei penal (salvo se o agente gozar de imunidades). Sem embargo disso, o nosso CPP, no art. 369, adianta que as citações que houverem de ser feitas em legações estrangeiras serão efetuadas mediante carta rogatória. Trata-se, é bem de ver, de simples cortesia internacional.Os nossos deputados federais e senadores gozam de imunidades, desde a expedição do diploma. Tais imunidades são materiais e formais. São eles invioláveis por suas opiniões, palavras e votos. É como soa o art. 53 da CF. Por outro lado, não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença da sua Casa (Câmara ou Senado). Entretanto,

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se a Casa não der a licença (voto secreto da maioria de seus membros), enquanto durar o mandato fica suspenso o prazo prescricional (CF, art. 53, §§ 1.-, 2.' e 3.'). Mais democrático parece ser o art. 46 da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, notadamente pela remissão que faz ao art. 18 do mesmo diploma*. Os vereadores são também invioláveis por

* "Art. 46 (inviolabilidade e imunidade dos deputados).1. Um deputado nunca poderá, em qualquer altura, ser perseguido por via judicial ou disciplinar, nem responsabilizado de outra forma, fora do Parlamento Federal, em virtude de voto dado ou opinião emitida no Parlamento ou numa das suas comissões. Esta disposição não terá aplicação no caso de difamaçao e injuria.2. Por causa de atos sujeitos a sanção penal, um deputado só poderá ser responsabilizado ou detido com assentimento do Parlamento Federal, a não ser que seja detido em flagrante delito.3. 0 assentimento do Parlamento Federal será igualmente necessário para qualquer outra restrição da liberdade pessoal de um deputado ou para instauração de um processo contra um deputado, de acordo com o art. 18.4. Toda ação penal e todo o inquérito de acordo com o art. 18, instaurados em relação a um deputado, bem como qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal, têm de ser suspensos por solicitação do Parlamento Federal."

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suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circuns- icrição do Município (CF, art. 29, V111). A imunidade formal não lhes foiconcedida. Quanto aos deputados estaduais, aplicam-se as mesmas regras sobre imunidades de que tratam o art. 53 e seus incisos da CF, porforça do disposto no § 1.' do art. 27 do mesmo diploma.

4. Tempo do crime

0 CP de 1969, revogado antes de entrar em vigor, cuidava do tempo do crime. Dele trata, também, o art. 4.' do CP, com a redação que lhe deu a Lei n. 7.209, de 11-7-1984: "Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado".Sabe-se que a respeito do assunto há várias teorias: a) a da atividade; b) a teoria do evento ou resultado; c) teoria mista. De todos os critérios, a doutrina pátria sempre teve predileção pela teoria da atividade (cf. Magalhães Noronha, Direito, cit., p. 90, n. 41; Nélson Hungria, Comentários, cit., n. 24; Anibal Bruno, Direito, cit., p. 259; Frederico Marques, Direito penal, v. 1, § 3 3).Como bem diz Ambal. Bruno, "tempo do crime é aquele de quem a vontade de quem atua se faz manifesta no mundo exterior, executando o gesto que conduz ao resultado visado ou deixando de praticar aquilo que lhe cumpria fazer. Esse momento da ação é o que determina qual será a lei pela qual deverá ser julgada" (Teoria, cit., p. 40- 1).E Battaglini enfatiza: " ... é infatti piú razionale assumere come decisivo il tempo in cui é posta in essere Ia condotta" (é realmente mais racional tomar como decisivo o tempo em que a conduta se

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pratica) (cf. Diritto, penale, Torino, UTET, 1937, p. 45).Trata-se de inovação no nosso jus positum. Como bem diz Soler 4'así como se hacia necesario fijar criterios para resolver el problema relativo al lugar en que un delito se considera cometido, aí también es preciso fijar también las relaciones temporales de la infracción, para establecer el momento en el cual o desde el cual puede decirse que un delito ha sido cometido" (cf. Derecho, cit., p. 215).0 preceito tem relevancia, e grande relevância, no campo jurídicopenal, notadamente no da imputabilidade, o da lei aplicável à infração etc. Ainda Soler: "Si el autor era imputable y culpable al actuar, los momentos ulteriores no alteran la situación..." (cf. Derecho, cit., p. 217).

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Suponha-se que alguém, do Brasil, envie um engenho infernal para produzir efeitos na Argentina. Pouco importa que o resultado tenha-se verificado ou deixado de se verificar por circunstância alheia à vontade do agente. Suponha-se, ainda, que, ao remeter a maquina infernal, estivesse ele com 17 anos e 11 meses e, quando do resultado, houvesse atingido os 18 anos... Suponha-se, nesse mesmo exemplo, fosse ele, ao tempo da ação, imputável e, quando do resultado, inimputável, ou vice-versa...NL nos parece, contudo, que o princípio adotado pelo art. 4.' da reforma penal seja absoluto. No campo da prescrição, segundo a regra do art. 111, 1, do CP, antes de transitar em julgado a sentença final, a prescriçao começa a correr do dia em que o crime se consumou... Ora, o crime se consuma quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal (CP, art. 14, 1). Assim, se o motorista atropela um transeunte em julho de 1985, vindo a vítima a falecer, em conseqüência das lesões, em agosto do mesmo ano, o prazo prescricional começará a fluir a partir desta última data, nos termos do art. 111, 1, combinado com o art. 14, 1, ambos do CR Teoria do resultado, portanto.

5. Lei processual penal no espaço

E quando se tratar de lei processual penal? As leis penais incidem sobre os fatos delituosos cometidos no território nacional e, sob certas reservas, conforme observamos, sobre fatos delituosos perpetrados fora do nosso território, apresentando, assim, excepcionalmente, uma extraterritorialidade.

Entretanto, no que tange às leis processuais penais, estas não ultrapassam os limites do território do Estado que as promulgou. São eminentemente territoriais. E André Vitu explica essa diferença de regime: uma autoridade ou uma jurisdição repressiva exprime, por sua atividade, um dos aspectos da soberania nacional, que não pode ser exercida senão dentro nas fronteiras do respectivo Estado (cf. Procédure, cit., p. 11). Sendo, pois, o Processo Penal o meio de que se valem os órgãos Jurisdicionais penais para solução de lides penais, e seus órgãos Jurisdicionais representam parcela do Poder Soberano de um Estado, ou, se quiserem, o próprio Estado na sua função de administrar justiça, não pode este exercer seu Poder Soberano além do alcance da sua propria soberania. Por essa mesma razão

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fica excluída a possibilidade de ser aplicada a lei processual penal de um outro país em nosso território.

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Mesmo que certos atos processuais devam ser praticados no exterior, como, v. g_ uma citação, intimação, busca e apreensão, ouvida de testemunha etc., aplicável será a lei processual penal do país onde tais atos devam ser realizados, não podendo ter aplicação a nossa lei de processo. É o domínio da lexfori. Se porventura houver necessidade de se ouvir uma testemunha residente no Senegal, expedir-se-á, com as cautelas de praxe, carta rogatória, que será cumprida pelo Magistrado daquele Estado. E, se a lei processual penal de lá exigir que o depoimento da testemunha seja tomado ao som de instrumentos musicais (o exemplo é grosseiro), cumprir-se~á tal lei, porque a aplicável no território do Estado que a promulgou. Aliás e muito a propósito, o Código Penal Militar, cominando pena gravíssima, erigiu à categoria de crime, nos arts. 138 e 139, não só "praticar o militar, indevidamente, no território nacional, ato de jurisdição de país estrangeiro, ou favorecer a prática de ato dessa natureza", como também "violar o militar território estrangeiro, com o fim de praticar ato de jurisdição em nome do Brasil".

E, se, por acaso, vier uma rogatória do Senegal para ser cumprida no Brasil, com aquela finalidade, por exemplo, a testemunha será ouvida de acordo com o prescrito nas nossas leis. Daí dizer o art. 784, § 1.', do CPP: "As rogatórias, acompanhadas de tradução em língua nacional, feita por tradutor oficial ou juramentado, serão, após exequatur do Presidente do Supremo Tribunal Federal, cumpridas pelo Juiz criminal do lugar onde as diligências tenham de efetuar-se, observadas asforinalidades prescritas neste Código" (grifo nosso).

Pondere-se, entretanto, com Tornaghi, que, mesmo nesses casos em que o Juiz nacional pratica atos de cooperaçao com a Justiça alienígena e que são inoperantes para a nossa ordem jurídica, ele o faz não em cumprimento da lei estrangeira, mas em atenção ao pedido (cf. Processo, cit., p. 41).

E verdade que, às vezes, sobre certos fatos delituosos cometidos fora do território nacional incide a nossa lei penal; esta, contudo, somente será aplicável no território pátrio por meio das nossas normas processuais penais. Por outro lado, em determinadas infrações cometidas aliunde, por razões várias, conforme tivemos oportunidade de acentuar, a nossa lei penal é aplicável, mas não será nem poderá ser aplicada lá. Para que a lei processual penal fosse também extraterritorial, seria necessário, como bem diz Antón Oneca "que el proceso, no sólo el delito, se desarrollase fuera del territorio de la nación" (cf. Derecho penal, 1949, t. 1, p. 116).

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A regra da territorialidade da lei processual penal procede do Direito, Internacional Privado, que, para a forma dos atos e negócios jurídicos, estabeleceu o princípio do locus regit actum. Transplantado esse princípio para o Direito Processual, notadamente o Civil, resultou que "ordo judicii regitur legibus loci, ubi causa agitur" - o processo é regido pelas leis do lugar onde a causa deve ser tratada.

Sem embargo disso, Beling, Tornaghi, Garcia-Velasco, entre outros, afÉnitem a possibilidade de ser aplicada a lei processual penal de um Estado fora de seus limites territoriais. Beling faz referência às seguintes hipóteses:

a) aplicação da lei processual penal de um Estado em território nullius;b) quando houver autorização dó Estado onde deva ser praticado o ato processual;

c) em caso de guerra, em território ocupado (cf. Beling, Derecho, cit., p. 12; Tornaghi, Processo, cit., p. 41; GarciaVelasco, Curso, cit., p. 40-1).

Até a década de 30, havia o chamado regime das capitulações ou jurisdições consulares. Era comum, entre países europeus e outros da Ásia e África, a celebração de tratados segundo os quais as autoridades consulares dos países europeus acreditados no Oriente ou Extremo Oriente tinham poderes de investigar as infrações penais e proceder à instrução respectiva, como se fossem Juízes, aplicando a lei penal e a lei processual penal do seu respectivo Estado, desde que se tratasse de infração cometida por um co-nacional. Quando se tratava de infração penal de pouca monta, os próprios cônsules julgavam, de acordo com a lei do seu Estado, numa verdadeira capitis diminutio e restrição ao Poder Soberano do Estado onde o processo se desenvolvia. Se se tratava de infração grave, o cônsul limitava-se a proceder às instruções, e os autos do processo eram remetidos ao Tribunal competente do seu Estado. Tal costume, segundo Donnedieu de Vabres, remonta a Francisco 1 e se j ustificava em virtude das profundas diferenças de civilização e de costumes entre as nações do Oriente e Extremo Oriente e as européias (cf. Traité, cit., p. 938, ri. 1.659). Até mesmo os Estados Unidos da América do Norte celebraram vários tratados de capitulação com aquelas nações, notadamente com o Marrocos (cf. Donnedieu, Traité, cit., p. 938, nota

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1 1 1 0

5). E, ainda hoje, como reminiscência do regime dasjurisdições consulares ou regimes das capitulações, há os Tratados celebrados, por exemplo, entre os Estados Unidos da América do Norte e alguns países europeus e do Extremo Oriente, segundo os quais os membros das Forças Armadas norte-americanas, acantonadas aí, sujeitam-se à jurisdição do seu Estado de origem, numa verdadeira diminuição e

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restrição da soberania do Estado onde for cometida a infração. Em decorrência desses Tratados, por exemplo, o governo espanhol baixou o Decreto-lei de 23-121954, para excluir a intervenção dos Tribunais e a aplicação do processo espanhol às infrações cometidas pelas Forças Armadas norte-americanas no território espanhol. Tais infrações serão julgadas na Espanha, mas pelas autoridades jurisdicionais penais militares norte-americanas e de acordo com as normas penais e processuais norte-americanas. Por outro lado, as convenções de Londres e Otawa, pertinentes ao Tratado do Atlântico Norte (OTAN), estabeleceram princípios restritivos da soberania do Estado italiano e de outros Estados europeus, em favor dos Estados Unidos da América do Norte e de outros Estados membros da OTAN. 0 art. 7.0 da Convenção de Londres, de 195 1, é claro demais: "As autoridades militares do Estado de origem têm direito a exercer sobre o território do Estado de residência os poderes de jurisdição penal e disciplinar a elas conferido pela legislação do Estado de origem sobre todo o pessoal sujeito à jurisdição militar do referido Estado" (cf. Leone, Trattato, cit., p. 70).A propósito esta decisão do Tribunal italiano: "È sottratto alla giurisdizione italiana il reato commesso nel territorio italiano da un militare straniero delle forze della NATO a danno. di altro militare della stessa forza" (cf. Trib. Livorno, 10 nov. 1956, Riv. Pen., 21581, 1956).Salvante essas exceções, a lei processual penal é eminentemente territorial.0 CPP afirma, em seu art. 1.% a regra da territorialidade da lei processual penal, mas não faz alusão às hipóteses em que se permite sua extraterritorialidade. Diz simplesmente: "0 processo penal reger-se-á em todo o território brasileiro por este Código".No Anteprojeto Tornaghi, que esteve a ponto de ser convertido em lei, foi feita menção expressa a tais exceções. Assim dispunha o art. 1.': As normas deste Código aplicam-se "em todo o território brasileiro e, bem assim, em território estrangeiro, nos casos permitidos pelo Direito Internacional".

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0 art. 4." do Anteprojeto Frederico Marques, quase convertido em lei, com outras palavras, dizia a mesma coisa: "A jurisdição dos Juízes e Tribunais brasileiros vai até onde estender-se, segundo o direito interno, a aplicação da lei penal brasileira, bem como até os limites especiais permitidos em tratados, convenções e regras de direito internacional".

Diga-se, por outro lado, que o art. 1.' do CPP não firma, apenas, a regra da territorialidade da lei processual penal, mas sim, também, o princípio da unidade do Código de Processo Penal em território brasileiro.Cumpre adiantar que, contrariando a nossa tradição, a Constituição de 1891 autorizou os Estados-Membros a legislar sobre Direito Processual, e, por isso, cada Estado da Federação passou a elaborar os seus próprios Códigos de Processo, quer Civil, quer Penal. De nada valeu a grita dos juristas.

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Em 1934 surgiu nova Constituição, e, no seu art. 5.", XIX, a, dizia competir, privativamente, à União, legislar sobre Direito Penal, Civil, Comercial, Processual etc. A despeito disso, somente quase oito anos mais tarde é que se conseguiu extinguir o pluralismo das nossas leis processuais penais, com o advento do atual CPP, de 3-10-1941, e que entrou em vigor em janeiro de 1942.Foi, também, por essa razão que o legislador se apressou em declarar, logo no art. 1.' do CPP, que em todo o território nacional o processo penal será regido por este Código, revogando, assim, os Códigos Processuais Penais dos Estados-Membros.

6. Ressalvas

Dizendo o art. 1.' que "o processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código", dá a entender que toda lide de caráter penal que surgir no território pátrio será solucionada de acordo com as normas do CPP. E assim é. Todavia, por razões várias, foram feitas algumas ressalvas.

Assim, às vezes, embora a infração tenha sido cometida no território nacional, nem se aplica a nossa lei penal e muito menos a nossa lei processual penal. Um embaixador de Estado estrangeiro, servindo no Brasil, se vier a praticar aqui alguma infração penal, será processado em seu país de origem, de acordo com as leis do seu Estado.

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A) Tratados, convenções e regras de Direito Internacional

Obedecendo a certos tratados ou convenções que o Brasil haja firmado, ou mesmo em atenção a regras de Direito Internacional, a lei processual penal pátria deixa de ser aplicada. Muito embora os fatos tenham sido cometidos no território brasileiro, os tratados, convenções e regras de Direito Internacional criam, na expressão de Mayer, verdadeiros obstáculos processuais, impedindo, assim, a aplicação da lei processual penal brasileira.

Aos crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves públicas estrangeiras, em águas territoriais e espaço aéreo brasileiros, não se aplicam a lei penal nem a lei processual penal pátrias, salvo se a infração for praticada por ou contra brasileiro, ou se afetar ou ameaçar a ordem pública nacional.

Inaplicável, por outro lado, é nossa lei processual penal aos agentes diplomáticos aqui acreditados. Por agentes diplomáticos compreendemse não só os encarregados de certa missão especial, os que se acreditam para representar o Governo em conferências, congressos ou outros organismos internacionais, como também aqueles que representam o governo de um Estado perante outro, de maneira permanente. Não assim os cônsules, que exercem simples funções de caráter administrativo, salvo nos delitos funcionais (cf. RTI, 63/65). Atendendo, destarte, às relações de cortesia e respeito existentes

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entre os Estados, seus agentes diplomáticos, porque os representam, gozam de inviolabilidade e imunidade. Privilégios que, assim, resultam dessa consideração e do dever que daí provém, para o Estado que recebe o representante estrangeiro, de cercálo de condições que lhe permitam o desembaraço e perfeito desempenho

Por outro lado, certas infrações penais cometidas no território pátrio, por motivos vários, ficam sujeitas, quanto ao processo e julgamento, a disciplinamento diverso, e isto pelo fato de serem da alçada das Justiças especiais. Um militar, por exemplo, que venha a cometer um crime militar, o processo é regido por outras normas - CPPM -, e os órgãos competentes para a composição dessa lide serão os Juízes e Tribunais militares. Também as infrações eleitorais se sujeitam a disciplinamento diferente, traçado no Código Eleitoral.Às vezes, embora as infrações não fiquem subordinadas às Justiças especiais, o certo é que o processo a ser obedecido é regulado por leis extravagantes, tal como acontece com os crimes de imprensa e outros.

Vejamos as ressalvas:

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da sua missão e em que se exprima o respeito à dignidade de soberania do E~tado que representa (cf. Ambal Bruno, Direito, cit., p. 241).

Por outro lado, esses privilégios são irrenunciáveis, porquanto não são concedidos à pessoa, mas à função que exerce. E Vidal y Sauria esclarece: "El Estado es, en definitivo, el verdadero poseedor de ésta prerrogativa, el agente diplomático tiene, non ya el derecho, sino el deber de hacer respetar en su persona, la dignidad y la independencia del Estado qudlrepresenta" (cf. Vidal, apud Bento de Faria, Código de Processo Penal, v. 1, p. 16).

Os funcionários diplomáticos que vivam em companhia dos respectivos agentes gozam dessas prerrogativas. Os empregados particulares não, pouco importando se da nacionalidade do diplomata. Estendertise essas prerrogativas aos membros da família do agente diplomático que com ele vivam sob o mesmo teto: os pais, a mulher, os filhos etc. Na hipótese de falecimento do funcionário diplomático, sua família continuara gozando dos mesmos privilégios, por um lapso de tempo razoável, até que abandone o Estado onde se encontre (o assunto está regulado pela Convenção sobre funcionários diplomáticos adotada na Conferência de Havana, em 1928, e que foi promulgada, entre nós, aos 22- 101929, pelo Dec.-Iei ri. 18.956).

Desfrutam, também, de iguais privilégios os chefes de Estado sua comitiva, quando em território nacional.

E as sedes das embaixadas? Serão consideradas território alienígena? Pela velha e revelha concepção da extraterritorialidade, sim. Hoje, entretanto, as sedes das embaixadas ou legações são consideradas territórios do país onde se acham situadas, tanto que os crimes aí praticados por pessoas alheias às imunidades sujeitam-se à jurisdição do Estado onde se encontra a embaixada. Apesar disso,

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mas como conseqüência da inviolabilidade e imunidade concedidas aos agentes diplomáticos, considera-se também inviolável a sede das embaixadas. Acertada, critretanto, a li~áo de Vidal y Sauria: "La inviolabilidad de la residencia diplomática no puede estenderse más allá de los límites necesarios para el cumplimiento de los fines a que responde".

Essa inviolabilidade, todavia, que se estende às sedes dos consulados, seus arquivos e papéis, não vai ao extremo de permitir que o agente diplomático acolha, como refugiados, os acusados ou condenados por delitos de natureza comum, sendo obrigados a entregá-los à autoridade

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local competente que assim requeira (cf. Dec.-Iei n. 18.956, de 1929, art. 17).É bem verdade que o art. 369 do CPP dispõe que as citações que houverem de ser feitas em legações estrangeiras serão efetuadas mediante carta rogatória. E assim procedeu o legislador pátrio não porque o Brasil entenda que as sedes das embaixadas sejam território estrangeiro, mas tão-somente por cortesia. Uma vez que os diplomatas gozam de imunidade material e formal, o legislador considerou, num gesto delicado e amigo, como fisicamente invioláveis os locais onde funcionam as missões diplomáticas. Assim também os prédios onde residam os quadros diplomáticos, administrativo e técnico. Já os locais consulares "são invioláveis na medida estrita de sua utilização funcional". Da mesma forma os arquivos e documentos consulares, a exemplo dos diplomáticos, são invioláveis em qualquer circunstância e onde quer que se encontrem (cf. J. F. Rezek, Direito internacional público, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 173).B) Prerrogativas constitucionais do Presidente da República e de outras autoridadesA segunda ressalva feita pelo art. L" diz respeito às prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos Ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade.

As Cartas Políticas que sucederam à de 1937, sob cuja égide foi promulgado o atual Código de Processo Penal, estenderam aquela prerrogativa ao Vice-Presidente da República e ao Procurador-Geral da República. As Constituições Estaduais adotaram o mesmo princípio para os Governadores e Secretários de Estado, e a Lei n. 1.079, de 10-4-1950, além de definir os "crimes de responsabilidade", estabeleceu o respectivo rito. A Magna Carta de 1988 e os Estados, em suas Leis Maiores, ampliaram o rol das pessoas que fazem jus àquelas prerrogativas de que trata o inc. 11 deste art. 1.' sob comentário. Assim é que, ao lado do Procurador-Geral da República e dos Ministros do STF, a Carta Política incluiu o Advogado-Geral da União; já nos Estados, houve alterações que variam de um para outro. No Estado de São Paulo, por exemplo, fazem jus a esse foro especial, nos crimes de responsabilidade, Governador, Vice-Governador, Secretários de Estado, nos crimes de igual natureza conexos aos daqueles, Procurador-Geral de Justiça e Procurador-Geral

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do Estado. No Rio de Janeiro e em Piauí, o privilégio estende-se aos Vereadores. No Estado do Paraná, essa prerrogativa do Governador e do Vice-Governador estendeu-se ao Procurador-Geral de Justiça, Procurador-Geral do Estado e Defensor-Geral da Defensoria Pública, nos termos do art. 54, XIII, da Constituição local.

Nesses crimes de responsabilidade, em se tratando de Presidente, Vice-Presidente da República e Ministros de Estado em crimes de igual natureza conexos aos daqueles, de acordo com as Constituições de 46, 67 e EC n. 1, cabia a qualquer cidadão levar a notitia criminis à Câmara dos Deputados, que após regular instrução, se fosse o caso, julgava procedente a acusação, atuando como Tribunal de pronúncia, e, a seguir, remetia o processo ao Senado para o julgamento, elegendo, antes, uma Comissão Acusadora formada de três Deputados a quem cumpria ofertar o libelo acusatório e acompanhar na Câmara Alta o desenvolvimento do processo.

Se se tratasse de Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República, cabia a qualquer cidadão ofertar denúncia perante o Senado, que funcionava como Tribunal de pronúncia e como Tribunal de julgamento.Proclamando a atual Constituição que nos crimes de responsabilidade do Presidente, do Vice-Presidente da República e dos Ministros de Estado, nos cúmes conexos aos daqueles, tanto ojuízo de acusação quanto o julgamento competem ao Senado (art. 52, 1 e 11), e, uma vez que a Lei n. 1.079/50 dispõe que, em se tratando de crimes de responsabilidade de Ministros do STF e do Procurador-Geral da República, o judicium accusationis e o judicium causae ficam concentrados no Senado Federal, segue-se que sempre que alguém deva responder perante a Câmara Alta, por crime de responsabilidade, o Senado Federal atua como Tribunal de pronúncia e de julgamento. Deixou de haver acusaçao e processo na Câmara, cabendo ao Senado exercer na sua plenitude todo o processo, até final julgamento. Sem exceção. Contudo, permitimo-nos fazer duas observações: a) Em se tratando de Presidente, Vice-Presidente da República e Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos aos daqueles, haverá necessidade de a Câmara dos Deputados autorizar a instauração do processo (art. 51, 1, da CF). Trata-se de condição de procedibilidade, não exigida para as demais pessoas que, também, são processadas e julgadas pelo Senado, por esses mesmos crimes. b) Se o

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autor da conduta for uma daquelas pessoas referidas no art. 52, 11, da CF (Ministros do STF, Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União), o processo se inicia mercê de uma "denúncia" de qualquer cidadão, nos termos do art. 41 da Lei ri. 1.079/50, apresentada diretamente ao Senado Federal. A esse denunciante cabe ofertar o libelo acusatório e exercer ojus accusationis, nos termos do art.

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58 do citado diploma. Mas, em se tratando de Presidente, Vice-Presidente da República e Ministros de Estado, nos crimes de igual natureza conexos aos daqueles, a denúncia, atualmente considerada como ato de iniciativa do processo e não como simples delatio, deve ser ofertada à Câmara dos Deputados, e esta, se entender haver ofumus boni,juris, pode autorizar a instauração do processo, remetendo os autos ao Senado. Aí elege-se uma Comissão Especial que irá apreciar se a denúncia deve ou não ser objeto de deliberação. A Comissão pode, inclusive, determinar diligências para melhor esclarecimento. Realizadas, ou não, a Comissão emite um parecer, que é submetido à votação. Se rejeitado, extingue-se o processo. Aprovado, é sinal de que o Senado considerou a denúncia passivel de deliberação. Comunica-se o fato ao Presidente do STF para assumir a presidência do processo. 0 acusado será notificado para responder à acusação no prazo de 20 dias. Segue-se a instrução criminal, com a fase probatória e das alegações. Concluída a fase instrutória, a Comissão eleita emitirá parecer sobre a procedência ou improcedência da acusação. Se improcedente, arquíva-se o processo. Se procedente, será ofertado libelo acusatório e contrariedade. No julgamento, após a ouvida das testemunhas, haverá debates, inclusive com eventuais réplica e tréplica, e, por último, o julgamento.No impeachment do Presidente Collor de Mello, o Ministro Sydney Sanches, na qualidade de Presidente do STF, presidindo a sessão de julgamento no Senado, observou em notas que, "com a supressão do papel constitucional que tradicionalmente sempre foi outorgado à Câmara dos Deputados, já não mais lhe incumbe, sob a égide da Carta Política de 1988, a formulação dojuízo de acusação. Desse modo, adiantou, revela-se inviável - até mesmo por ausência de recepção da norma inscrita no art. 23, § 4.' , da Lei n. 1.079150 - a eleição, por essa Casa Legislativa, de uma comissão de três membros destinada a acompanhar, no Senado, ojulgamento do Presidente da República. Essa atribuição - nela incluída a faculdade processual de oferecer o libelo acusatório -pertence, agora, aos próprios denunciantes" (Diário do Congresso Nacional, Seção 11 - órgão Judiciário, 8-10-1992).

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Em face dessa observação, nos crimes de responsabilidade do Presidente, Vice-Presidente da República e Ministros de Estado, dês que conexos, a denúncia do cidadão apresentada à Câmara dos Deputados (art. 14 da Lei ri. 1.079/50) não é simples delatio, mera notitia criminis, mas peça acusatória, ato de iniciativa do processo do impeachment, como também o é aquela denúncia de que trata o art. 41 do mesmo diploma.

Qual a natureza da ação penal nesses crimes de responsabilidade? Ante@4 de perguntar: essas condutas definidas na Lei ri. 1.079, de 10-41950, são figuras delituais penais? Não obstante o legislador constituinte tenha distinguido o crime comum do crime de responsabilidade, este para expressar infração político-administrativa e aquele para abranger todas as demais infrações penais, numerosos crimes de responsabilidade apresentam profundo conteúdo de infração comum. Basta que se leia o texto do citado diploma e se conclui que, na verdade, muitas daquelas condutas são um misto de infração

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político-administrativa e comum. Não importa que as sanções sejam a perda do cargo e a inabilitaçao para o exercício de função pública. Estas são as sançoes impostas pelo Senado. Mas esse mesmo fato julgado pela Câmara Alta enseja, às vezes, na dicção do art. 50 do referido diploma, outras penas que somente poderao ser impostas pelo Supremo.

E pomos exemplos: dispõe o art. 7.', ri. 1, da Lei ri. 1.079/50 constituir crime de responsabilidade do Presidente da República "impedir por violência, ameaça ou corrupção, o livre exercício do voto" (crime de responsabilidade). Pois bem: dispõe o art. 301 do Código Eleitoral constituir crime eleitoral punido com reclusão até 4 anos, "usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar ou não votar..." (crime comum). 0 art. 7.', ri. 8, prescreve ser crime de responsabilidade "provocar animosidade entre as classes armadas ou contra elas" (crime de responsabilidade). Já a Lei de Segurança Nacional estatui no art. 23, 11, constituir crime, punido com reclusão de 1 a 4 anos, "incitar à animosidade entre as Forças Arinadas..." (crime comum).

Normalmente o crime de responsabilidade atribuído ao Presidente da República sujeita-o a duas penas diversas: uma de natureza política, imposta pelo Senado, e outra privativa de liberdade, imposta pelo Supremo Tribunal Federal. Aquele cabe, na hipótese de condenação, aplicar somente a pena de perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública pelo espaço-tempo de 8 anos, e ao Supremo Tribunal Federal, a pena privativa de liberdade.

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Ensina Pontes de Miranda que, nesse caso (já condenado pelo Legislativo), o Presidente será julgado, pelo crime comum, sem foro especial (Comentários à Constituição de 1946, Rio de Janeiro, Borsoi, 1963, t. 2, p. 141). Sem razão, nos parece, em face da Súmula 394 do STF: se o crime foi praticado durante a função, o agente não perde o foro especial.0 impeachment no Brasil "não é mero inquest ofpower (procedimento para afastar, por motivos exclusivamente políticos, uma autoridade), mas um processo de natureza mista, política e penal". São, pois, os crimes de responsabilidade figuras delituais penais, neles havendo, no entanto, um conteúdo político, ou figuras político-administrativas com profundo conteúdo penal. Para Pinto Ferreira, o impeachment não é um processo estritamente de natureza criminal (Comentários à Constituição brasileira, Saraiva, 1990, v. 2, p. 609). 0 saudoso Professor Raul Chaves, da Universidade da Bahia, com brilho invulgar, demonstrou que os crimes de responsabilidade são figuras delituais penais e que integram o nosso Direito Penal especial (Crimes de responsabilidade, Bahia, S1A Artes Gráficas, 1960, p. 89/102).A nosso juízo, pelo fato de haver, nos crimes de responsabilidade, um julgamento com predominância política, tem-se negado à ação penal, nesses crimes, o caráter penal. Que o processo do

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impeachment sej a polftico ndo hd ddvida. Disse-o Story: "... impeachment is a proceeding purely of political nature" (apud Pinto Ferreira, 0 "impeachment", Recife, Editora da Faculdade de Ciências Humanas de Pernamb~co, 1993, p. 33). Contudo a grande maioria das condutas que informam as figuras delituosas objeto do processo político têm, inegavelmente, prevalente conteúdo penal.Mesmo que a lei ordinária se limitasse à definição de figuras eminentemente políticas, como, por exemplo, "proceder de modo incompatível com o decoro do cargo", "ausentar-se do País sem autorização do Congresso Nacional" etc., ainda assim as condutas não perderiam o cunho penal, embora a sanção não consistisse em pena restritiva de liberdade ou até mesmo pecuniária.Embora a sanção consista apenas na perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública, a conduta não perde o caráter penal. Nos crimes de abuso de autoridade, a sanção penal pode consistir, também, na perda do cargo e na inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos (Lei n. 4.898, de 9-12-

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1965, art. 6.', § 1% c, c/c o § 4.0), e ninguém ousou dizer que as condutas aí tipificadas não sejam figuras delituais penais.Qual o sentido da frase "inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública" a que se refere o art. 33 da Lei n. 1.079/50? Note, por primeiro, que esse diploma foi elaborado sob a égide da Carta Política de 1946, cujo art. 62, § 1% dispunha:"Art. 62. Compete privativamente ao Senado Federal:

§ 3.' Não poderá o Senado Federal impor outra pena que não seja a de perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquerfunção pública..." (grifo nosso).Poder-se-ia pensar que a expressão "qualquer função pública" abraçasse, também, aquela resultante de mandato eletivo, mas, para evitar que os usufrutuários de dúvidas pudessem tirar proveito, o parágrafo único do art. 42 da Carta de 1967/69 retirou daquela expressão o termo "qualquer", reconduzindo, assim, o conceito de "função pública" ao seu leito normal.No mesmo sentido o parágrafo único do art. 52 da Carta Política de 1988:

"... limitando-se a condenação, que somente será proferida por 2/3 dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício defunção pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis" (grifo nosso).Certo que a Lei n. 1.079150 foi recepcionada pela Lei Maior. Digase, contudo: naquilo que não lhe contrariar. Por isso mesmo no julgamento do ex-Presidente Collor o Ministro Sydney Sanches, que o presidiu no Senado, observou que a Câmara Alta funcionaria como Tribunal de pronúncia e julgamento, ao contrário do disposto na Lei n. 1.079/50, porquanto esta, embora recepcionada pela Lei Maior, não poderia contrariáIa. Sendo assim, a "pena acessória" a que se refere o art. 33 da Lei n. 1.079/50 diz respeito, apenas, ao exercício de função pública.Eletiva, não eletiva ou ambas? Se dissesse "função pública eletiva e não eletiva", seria diferente. Talvez fosse diferente, também, se persistisse a expressão "qualquer função pública". Assim, a nosso

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juízo, a expressão cinge-se e restringe-se à "função pública não eletiva". Função pública, diz Hely, "é a atribuição ou o conjunto de atribuições que a Administração confere a cada categoria profissional... (Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 38 1).

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Ela não se confunde com a função pública que se exerce em decorrência de um mandato eletivo. Não é o Poder Público que confere a função ao Presidente, Governadores, Prefeitos, Senadores, Deputados e Vereadores, mas a soberania popular.Assim, se a expressão "função pública" compreendesse a eletiva e a não eletiva, seria inelegível o cidadão a quem fosse imposta, pelo Juiz, a pena acessória de "perda da função pública".Observe-se, ainda, que o Código Penal dispõe, no art. 92, 1, ser efeito da condenação "a perda do cargo, função pública ou mandato eletivo..." (grifo nosso).Assim também o art. 47 do CP:

"Art. 47. As penas de interdição temporária de direitos são:1 - proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo..." (grifo nosso).É de lembrar que a legislação subconstitucional a respeito do impeachment é objeto da Lei n. 1.079/50 e do Decreto-lei n. 201, de 272-1967. Pois bem. Enquanto a Lei n. 1.079150 fala em perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer função pública, o § 2.' do art. 1.0 do Decreto-lei n. 201, de 27-2-1967, que define os crimes de responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, assim dispõe:"§ 2.' A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo decinco anos, para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação..." (grifo nosso).Essa observação nos leva a acreditar que o legislador ao usar aexpressão "qualquer função pública" teve em mira a eletiva e a não eletiva. Tanto é verdade que esse sentido se refletiu no decreto-lei supracitado.Agora, dizendo o diploma magno que a inabilitaçao e para o exercicio de função pública, parece óbvio, por todas as razoes aqui expendidas, que a expressão se restringe à função não eletiva.Ademais, segundo o entendimento atual, inclusive do STF, os únicos crimes de responsabilidade de Prefeitos são os previstos no art. 4.' do citado decreto..., e a pena imposta consiste apenas na cassação do mandato... Os direitos políticos continuam íntegros.Entendendo-se que a expressão "função pública~'compreenda a eletiva e a não eletiva, nem os sábios das Sagradas Escrituras saberiam explicar

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a razão que levou o próprio legislador ordinário a distinguir uma da outra... E na lei não há palavras inúteis... Seriam excrescências repudiadas.Tudo está a demonstrar que o Direito brasileiro distingue a função pública eletiva da não eletiva. Tanto é verdade que qualquer funcionário público, por mais importante que seja o cargo ocupado, ao atingir os 70 anos de idade, será aposentado compulsoriamente, e a partir daí não poderá exercer nenhuma função pública, por mais modesta que seja (asceA)rista, p. ex.). Entretanto, poderá candidatar-se à Câmara dosDeputados, Senado, Prefeitura, Governo do Estado e até mesmo à Presidência da República. Nelson Carneiro exerceu a senatoria por muitos anos depois dos 70...Por derradeiro, a Carta de 1988 dispôs no art. 15:

"Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de:

gado;

1 - cancelamento da naturalizaçao por sentença transitada em jul-

11 - incapacidade civil absoluta;111 - condenação criminal transitada em julgado, enquanto dura-rem seus efeitos;IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5.', V111;V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4."'Embora, a nosso juízo, os crimes de responsabilidade sejam figuras delituais penais, não se pode invocar a regra do inc. 111 desse art. 15, porquanto ali se refere às decisões judiciais com trânsito em julgado; além do mais, a suspensão dos direitos políticos, nesses casos, se dá enquanto durarem os efeitos da condenação... Como no impeachment a condenação implica perda e não suspensão do cargo, logo, o Senado não pode suspender os direitos políticos enquanto durarem os efeitos da perda do cargo... Caso contrário não seria suspensão dos direitos políticos, e sim perda... E o inc. 111 do art. 15 cuida de "suspensão"... Tampouco a hipótese prevista no inc. V. Ela faz referência ao art. 37, § 4.", da CF, e este parágrafo dispõe, claramente, não ser auto-aplicável. A lei que o disciplinou (Lei n. 8.492/92), no art. 20, dispõe que "a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória". Antes mesmo da

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vigência desse diploma, o Procurador-Geral da Repúblicajunto ao TSE, no Recurso ri. 9.611 -ES, sessão de 27-8-1992, sob a presidência do ex-Ministro Paulo Brossard, Relator o Ministro Carlos Velloso,

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afirmou que "a perda ou a suspensão dos direitos políticos prevista no inc. V do art. 15 da CF, em razão de improbidade, por se inscreverem entre garantias fundamentais, somente poderão ocorrer por decisão judicial". E esse entendimento foi sufragado à unanimidade. Assim, o Senado, ao condenar qualquer pessoa por crime de responsabilidade, poderá tão-só impor a perda do cargo e a inabilitação para o exercício de função pública não eletiva. Entretanto, o STF (e guardamos reserva quanto a essa interpretação), pela sua Colenda 1.a Turma, apreciando o HC 234.223DF, decidiu, em L'-9-1998, ainda no caso Collor de Mello, que "a inabilitação para o exercício de função pública decorrente de perda do cargo de Presidente da República por crime de responsabilidade (CF, art. 52, parágrafo único) compreende o exercício de cargo ou mandato eletivo" (Informativo STF, n. 121, de 31-8 a 4-9-1998).Não se deve deslembrar que, não obstante o Presidente da República venha a cometer qualquer crime de responsabilidade ou todos eles, ainda que a Câmara dos Deputados os comprove e autorize a instauração do processo do impeachment, advindo a renúncia, a denúncia não pode ser recebida, na dicção do art. 15 da Lei n. 1.079150. Não o podendo, encerra-se o processo por "falta de objeto" (cf. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, Borsoi, t. 3, p. 127). Essa é a corrente majoritária (Pinto Ferreira, 0 "impeachment", cit., p. 173). E não poderia deixar de ser, pela própria redação do art. 15. E, em face da renúncia, nada o impede de exercer qualquer função pública, eletiva ou não...Se o Presidente da República for absolvido pelo Senado, a Justiça comum não poderá tomar conhecimento do crime de responsabilidade por ele cometido, ainda que essa infração apresente conteúdo penal, à semelhança dos exemplos citados. Sendo assim, parece claro que no impeachment não existe, apenas, um juízo político...Voltemos à indagação: qual a natureza dessa ação penal? Se os arts. 14 e 41 da Lei ri. 1.079150 permitem a qualquer cidadão o direito de "denunciar" o autor da conduta (tal como afirmado no julgamento do Presidente Collor de Mello), estamos diante de uma ação penal popular. Afigurou- se-nos, em edição anterior, devesse o ato de iniciativa

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ficar a cargo do Ministério Público, em face do art. 129, 1, da CF. Repensando, concluímos que da mesma forma que o legislador ordinário permitiu ao particular o jus accusation is nos crimes de alçada privada, nada poderia impedi-lo de, nesses crimes de responsabilidade, atribuílo a qualquer cidadão. Assim, parte legítima para acusar o autor de crime de responsabilidade referido na Lei n. 1.079/50, repita-se, é qualquer cidadão, até porque melhor convém aos postulados democráticos confoOr-lhe o direito de pretender afastar do cargo os dignitários da nossa pátria, tanto mais quanto, se o Senado proferir decisão condenatória, em se tratando de Presidente, Vice-Presidente da República ou Ministro de Estado nos crimes conexos aos daqueles, o processo pode ser remetido ao Supremo Tribunal Federal, para que este aprecie aquele mesmo fato sob o aspecto de infração penal comum, impondo, se for o caso, após regular instrução, pena privativa de liberdade.

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Na verdade, se a lei ordinária confere ao particular o direito de acusar nos crimes de alçada privada, por que charadística razão estaria o legislador impedido de, nos crimes de responsabilidade, atribuir o jus accusationis ao cidadão, ut civis?E se porventura o Presidente da República vier a cometer um crime comum? Ele será submetido a processo e julgamento perante o STF, apos a autorização da Câmara dos Deputados por 213 de seus membros (CF, art. 5 1, 1). Nesse caso, o ato de iniciativa será a denúncia ofertada pelo Procurador-Geral da República ou quem suas vezes fizer, ou a queixa oferecida pelo ofendido ou quem legalmente o represente. 0 procedimento vem traçado nos arts. 1.' a 11 da Lei n. 8.038, de 28-5-1990.

Quanto aos crimes de responsabilidade referidos nas Constituições dos Estados (e cuja definição, obviamente, é da estrita competência da União, nos termos do art. 22, 1, da CF), o processo e julgamento são da competência do órgão por elas indicado. No Rio Grande do Sul e no Parana, por exemplo, o processo e julgamento competem à Assembléia Legislativa. No Piauí, a um órgão misto composto de cinco Deputados e cinco Desembargadores sob a presidência do Presidente do Tribunal de Justiça.A Lei n. 1.079150 define os crimes de responsabilidade de Governadores e Secretários de Estado e regulamenta, também, o respectivo processo e julgamento. De acordo com esse diploma, a Assembléia Legislativa funciona como juízo da acusação, e o juízo da causa será o

1 -orgão que a Constituição determinar. Caso haja omissão do legislador

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estadual, funcionará como juízo da causa um Tribunal misto, composto de Deputados e Desembargadores.

No Estado de São Paulo, a Constituição estabeleceu normas a res-peito. Qualquer cidadão poderá denunciar o Governador por crime de responsabilidade, perante a Assembléia. Formalizada a denúncia, o plenário da Assembléia apreciará a sua procedência, e se reconhecida por 213 dos seus membros será o Governador imediatamente suspenso de suas funções, para o seu julgamento perante o Tribunal competente. Este Tribunal será constituído por sete Deputados e sete Desembargadores, sorteados pelo Presidente do Tribunal de Justiça, que o presidirá. No Estado do Piauí, também foi previsto um Tribunal especial constituído de cinco Desembargadores e cinco Deputados.

Em se tratando de processo por crime de responsabilidade do Governador do Distrito Federal ou de seus Secretários, a lei aplicável é a de ri. 7.106, de 28-6-1983.C) Justiça Militar

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Outra ressalva feita pelo art. 1.' do CPP é quanto aos processos da competência da Justiça Militar. A eles não se aplica o CPP. Vimos, anteriormente, que o Direito Processual Penal pátrio, quanto à natureza do direito material que informa a res injudicio deducta, abrange o Direito Processual Penal comum, cuj a fonte principal é o CPP (sem falarmos naConstituição, que é a fonte por excelência), o Direito Processual Penal Militar e o Direito Processual Penal Eleitoral.

A Justiça Militar é uma Justiça especial, tal como se vê pela redação do art. 124 da Magna Carta. Há um Código Penal Militar, que define os crimes militares, e um Código de Processo Penal Militar, que é o aplicável na composição das lides da natureza penal militar.

Não se trata de foro excepcional, mas especial. Não traz consigo oforo especial, como bem esclarece Tristão de Alencar Araripe, nenhum privilégio, nenhum favor particular, mas, ao contrário, acarreta maiores exigências, mais severo rigor. Trata-se, no dizer de Astolpho Rezende, de uma jurisdição especial, exigida e adequadamente justificada pela necessidade da disciplina.

Essa especialização sempre encontrou opositores doutrinários. Já Felipe 11 da Espanha havia tentado suprimir o foro militar e recuara ante os conselhos do Duque de Alba. No começo deste século, o caso Dreyffus, na França, deu causa à grita contra os Tribunais Militares. Entretanto,

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no consenso quase unânime da doutrina, a Justiça Militar é das poucas jurisdições especiais cuja existência se justifica.

0 Direito Penal Militar pátrio e o foro especial respectivo deitam raízes nas Ordenações Afonsinas, com o respectivo Regimento de Guerra ou de mais longe. Todavia, de todos os regimentos, ordenações, leis, cartas-régias, decretos, alvarás e regulamentos, o que se tornou mais célebre, no Brasil-Colônia e no Brasil-Império, foi o Regulamento da InfaAria e Artilharia, de 18-2-1763, com os celebérrimos "Artigos de Guerra", de autoria do conde prussiano Schaumburg von Lippe, regulamento esse que vigorou entre nós até o segundo quartel do século passado.

Atualmente, há o Código Penal Militar, de 21-10-1969 (Dec.-lei n. 1.00 1), e o Código de Processo Penal Militar, de igual data (Dec.-lei ri. 1.002). Compete à Justiça Militar processar.e julgar os crimes militares. Mas que são crimes militares? Eles vêm definidos no art. 9." do CPM, com as alterações introduzidas pela Lei ri. 9.299, de 7-8-1996.São de duas espécies: crimes militares proprios e improprios. Aqueles são os tipificados no CPM, "quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos". Exemplos: "Art. 139. Violar o militar território estrangeiro, com o fim de praticar ato de jurisdição em nome do Brasil"; "Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar".

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Crimes militares impróprios são os tipificados no CPM (art. 9.', 11), "embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

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e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado,contra o património sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

111 - Os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso 1, como os do inciso 11, nos seguintes casos:a) contra o património sob a adn-únistração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum". (Redação dada pela Lei n. 9.299, de 7-8-1996.)

Atente bem: a Carta Política, no art. 124, dispõe que "à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei".A Lei Maior atribuiu ao legislador ordinário defini-los. E quais são eles? Os tipificados no art. 9.' do CPM, com as alterações introduzidas

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pela Lei n. 9.299/96, destacando-se a supressão da alínea f do inc. 11 (que considerava militar o crime se praticado com arma da Corporação)e a introdução do parágrafo único, que deslocou para a Justiça Comum o crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil.

Assim, aparentemente, essa nova lei apresenta natureza processual ou penal. Contudo, inegável sua natureza híbrida. No que respeita aos

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crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, ela lhes deu nova definição: se cometidos contra militar, continuam sendo crimes militares improprios; se contra civis, passaram a ser comuns. Assim, se um militar cometer um crime doloso contra a vida de um civil, pouco importando a natureza do instrumento utilizado, se pertencente à Corporação, ou não, responderá perante a Justiça Comum, levando-se em consideração, por razões óbvias, o Código Penal Comum. Não é pelo fato de o agentSrr rifilitar que, num homicídio contra civil, deva responder segundo o art--- 2Ó5 do CPM, mas, sim, pelo art. 121 do CR Por outro lado, se o agente cometeu o crime prevalecendo-se da situação de serviço, não deve responder pela qualificadora prevista no art. 205, § 2.0, VI, do CPM. 0 homicídio contra civil deixou de ser crime militar e, por isso mesmo, não pode a Justiça Comum fazer um verdadeiro pastiche, isto é, julgar um n-iilitar, segundo as normas do CPP Comum e do Código Penal Militar.

Cuida o inc. 111 do art. 9.' do CPM de crime militar cometido por civil. E pode a Justiça Militar processar e julgar civis em tempo de paz? De acordo com o art. 124 da CF, compete-lhe processar e julgar os crimes militares. Ali não diz se praticados por militares ou por civis. Como o parágrafo único desse artigo dispõe que "a lei disporá sobre ... a competência da Justiça Militar", e se o parágrafo único do art. 82 do CPPM dispõe que "o foro militar se estenderá aos militares da reserva, aos reformados e aos civis, nos crimes contra a segurança nacional ou contra as instituições militares, como tais definidos em lei", obviamente compete à Justiça Militar da União, nesses casos, processar e julgar civis.

Quanto aos crimes contra a segurança nacional, crimes políticos que são, vêm eles definidos na Lei n. 7.170, de 14-12-1983. A competência para o processo e julgamento, hoje, é, por expressa disposição constitucional, da Justiça Federal, com recurso ordinário para o STF (CF, arts. 109, IV, e 102, 11, b).

Também os assemelhados podem ser processados pela Justiça Militar Federal, dês que cometam crimes militares. E por assemelhados entendem-se os indivíduos que, não pertencendo à classe militar, exercem funções de caráter civil ou militar, especificadas em leis ou regulamentos, a bordo de navios de guerra ou embarcaçoes a estes equiparadas, nos arsenais, fortalezas, quartéis, acampamentos, repartições, lugares e estabelecimentos de natureza e jurisdição militares e sujeitos, por isso, a preceitos de subordinação e disciplina previstos nas leis e regulamentos militares.

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Tratando-se de crime cometido por civil contra instituições militares estaduais, é diferente, porquanto o § 4.' do art. 125 da CF confere competência à Justiça Militar Estadual para processar e julgar tão-somente militares estaduais que cometerem crimes rnilitares. Por isso, quando o crime for praticado contra instituições militares estaduais, nos termos da Silinula 53 do STJ, será o agente processado e julgado pela Justiça Comum.

Respeitante à Justiça Militar Estadual, prescreveu o art. 124, XII, da Magna Carta de 1946: a Justiça Militar Estadual, organizada em observância dos preceitos gerais da lei federal (art. 5.', XV, f), terá, como órgão de primeira instância, os Conselhos de Justiça e, como órgão de segunda instância, um Tribunal especial ou o próprio Tribunal de Justiça.

Com base nesse dispositivo, vários Estados-Membros criaram um Tribunal Militar (São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul). 0 Estado que não o criou ficou impossibilitado de fazê-lo, uma vez que o art. 144, § 1.', d, da Emenda Constitucional ri. 1/69 dispunha que o órgão de segundo grau da Justiça Militar Estadual seria o proprio Tribunal de Justiça. Hoje, contudo, nada impede que os Estados que não o possuem possam tê-lo, tal como dispõe o § 3.' do art. 125 da CE Verbis: "A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos Conselhos de Justiça e, em segundo, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo da polícia militar seja superior a vinte mil integrantes".

Compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, cabendo ao Tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças, nos precisos termos do § 4.' do art. 125 da CF.

Embora a lei não se refira aos policiais das rodovias estaduais, a competência, nos termos do § 4.' do art. 125 da Lei Maior, a eles se estende, por serem integrantes da Polícia Militar.

Crimes militares definidos em lei são os propriamente militares (deserção, por exemplo) e os impropriamente militares (crimes definidos no CP Comum e no CP Militar).

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D) Tribunais especiais

0 art. 1.' do CPP, em seu inc. IV, ainda faz outra ressalva: não se aplica o CPP aos processos da competência de Tribunal Especial.

A Constituição de 1937 previa, no art. 122, ri. 17, a criação de Tribunais especiais, e, por isso, foi criado, entre nós, o famoso Tribunal de Segurança Nacional, cuja competência se restringia ao

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processo e julgamento os crimes que atentavam contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado, contra a ordem social e, finalmente, dos que atentavam contra a economia popular, sua guarda e seu emprego.

0 processo era especial, pois se tratava de "Justiça de exceção".

Não se deve confundir, adverte Frederico Marques, a Justiça de exceção com a Justiça especial. Esta, como esclarece Lucchini, "é permanente e orgânica", enquanto aquela "é transitória e mais ou menos arbitrária".

Além disso, como ensina Sampaio Dória, o Tribunal de Exceção caracteriza-se pela falta de garantia de imparcialidade dos Juízes e falta de garantia da defesa do acusado, sem meios nem recursos essenciais a ela (cf. Direito constitucional, v. 4, p. 667).

E Pontes de Miranda arremata: a proibição dos Tribunais de Exceção representa, no Direito Constitucional contemporaneo, garantia institucional. A Constituição de 1891, a de 1934 e a de 1946 elevaramna ao nível de direito fundamental dos indivíduos (cf. Comentários, cit., p. 327). E acrescentamos nós: a atual seguiu a mesma diretriz, proibindo terminantemente os Juízes e Tribunais de Exceção.

Entretanto, antes de a Constituição de 1946 (no seu art. 141, § 26) abolir os Tribunais de Exceção, já no governo José Linhares foi extinto o Tribunal de Segurança Nacional, por força da Lei ri. 14, de 17-11 -1945, e os crimes que eram da sua competência passaram para a de outros órgãos Jurisdicionais. Dois dias após a publicação da referida lei, foi publicado o Decreto-lei ri. 8.186 (de 19-11-1945), dizendo que o processo e julgamento dos crimes atribuídos em lei ao extinto Tribunal de Segurança Nacional competiriam à Justiça Militar, quando atentassem contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado e contra a ordem social; competiriam aos órgãos Jurisdicionais comuns aqueles que atentassem contra a economia popular, sua guarda e seu emprego.

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Assim, de acordo com aquele decreto-lei, passaram para a competência da Justiça Militar o processo e julgamento dos crimes que atentassem contra a personalidade internacional, a estrutura e a segurança do Estado e a ordem política e social.Posteriormente, surgiu a Lei n. 1.802, de 5-1-1953, salientando que nem todos os crimes contra a ordem política e social eram da competência da Justiça Militar (art. 42). Por força do Ato Institucional ri. 2, todos os crimes definidos na Lei n. 1.802 passaram para a competência exclusiva da Justiça Militar. Aos 13-3-1967, surgiu o Decreto-lei ri. 314 dando nova redação à Lei n. 1.802; aos

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29-9-1969, o Decreto-lei ri. 898, em lugar daquele, e, hoje, a Lei n. 7.170, de 14-12-1983. Atualmente, os crimes contra a segurança nacional, ordem política e social, verdadeiros crimes políticos, são da exclusiva competência da Justiça Federal, e eventual recurso será apreciado como se fosse apelação especial, pelo STF (cf. arts. 109, IV, e 102, 11, b, da CF).Ainda por força daquele Decreto-lei n. 8.186, de 19-11-1945, os crimes que atentavam contra a economia popular, sua guarda e seu emprego passaram para a competência da Justiça Comum. Posteriormente surgiu a Lei n. 1.521, de 26-12-1951, definindo os crimes contra a economia popular e traçando o respectivo procedimento. Atualmente tais infrações são da alçada da Justiça Comum.Essa lei instituiu o Júri de Economia Popular para os crimes definidos no seu art. 2.'. As demais infrações nela cuidadas tinham o seu "processo" subordinado às normas do CPP (art. 10 da referida lei), salvo quanto aos prazos para a investigação policial e oferecimento da denúncia.

Todavia, com a extinção do Júri de Economia Popular pelo Decreto-lei n. 2, de 14-1-1966, as infrações que eram da sua alçada passaram para a do Juiz singular. Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 1, mantendo a instituição do Júri e restringindo sua competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, sacramentou a extinção do Júri de Econoiriia Popular. Somente os crimes dolosos contra a vida seriam da alçada do Tribunal leigo. Sendo assim, o processo e julgamento de todas as infrações previstas na Lei ri. 1.521, de 26-12-1951, sujeitamse, hoje, ao disposto no art. 539 do CPP, que estabelece normas para o procedimento regra dos crimes apenados com detenção. Já as contravenções, sujeitam-se à Lei n. 9.099/95.

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Agora, entretanto, em face da Constituição de 1988, nada impede sejam criados outros Tribunais leigos para o julgamento de outras infrações penais, inclusive as de economia popular.

E) Crimes de imprensaFinalmente, a última ressalva feita pelo art. 1.' do CPP: não se aplica este Código aos processos por crime de imprensa.Tais crimes são da competência da Justiça Comum, e, por isso, em principio, aplicável seria o CPP. Entretanto entendeu o legislador que os crimes de imprensa deveriam ser tratados em lei extravagante, na qual se estabelecesse o respectivo processo. Era o que havia anteriormente e que, por sinal, foi mantido. Hoje, os crimes de imprensa, com o respectivo processo, estão disciplinados na Lei n. 5.250, de 9-2-1967.Todavia, tal como dispõe o parágrafo único do art. 1.' do CPP, este sera aplicado, nesses casos, "quando as leis especiais que o regulam não dispuserem de modo diverso".

Cumpre adiantar que os crimes de imprensa eram julgados, até há pouco tempo, por um Tribunal composto do Juiz de Direito que houves-se dirigido a instrução (e que era o seu presidente, com voto) e de quatro cidadãos. Era o que dispunha a antiga Lei de Imprensa. 0 Ato Institucional

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n. 2, no seu art. 24, estabeleceu que os julgamentos dos processos instaurados segundo a Lei n. 2.083, de 12-11-1953 (Lei de Imprensa, hoje ab-rogada), competiriam ao Juiz de Direito que houvesse dirigido a instrução do processo. Desapareceu, desse modo, aquele singular Tribunalde Júri. Por outro lado, consagrava-se, em tais processos, o princípio da identidade física do Juiz. Posteriormente, com a nova Lei de Imprensa (n. 5.250, de 9-2-1967), ficou mantida a abolição daquele Tribunal e não se exigiu mais que o julgamento ficasse afeto ao próprio Juiz que houvesse iniciado a instrução.

De qualquer sorte, ao processo e julgamento dos crimes de imprensa inaplicável é o CPP, subordínando-se à normatividade estabelecida naquela lei especial, extravagante.

F) Crimes eleitorais

Embora haja omissão na enumeração das ressalvas feitas pelo art. 1.' do CPP, podemos dizer ser este inaplicável às infrações eleitorais e às que lhes forem conexas. De fato. Se assim é, por que a omissão? Explica-se: quando da elaboração do CPP, vigia a Constituição de 1937,

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que não cuidava da Justiça Eleitoral e, muito menos, dos crimes eleitorais, pois o regime, àquela época, era de exceção. Com a Constituição de 1946, criou-se a Justiça Eleitoral (art. 109), e o inc. VII do art. 119 daquele Diploma Maior dispunha competir à Justiça Eleitoral o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes fossem conexos.

0 mesmo princípio foi mantido pela Emenda Constitucional n. 1/69. A Constituição atual, entretanto, no seu art. 12 1, limitou-se a dizer: "Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais", e, como até o momento não foi elaborada lei nesse sentido, tem-se entendido, sem discrepância, quea Carta Política de 1988 recepcionou o Código Eleitoral como se fosse a Lei Complementar, no que respeita à competência. Enquanto não vier a Lei Complementar, sua competência é esta: os crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos, à dicção do art. 35, 11, do Código Eleitoral. Nesses casos, o processo e julgamento ficarão afetos aos órgãos Jurisdicionais da Justiça Eleitoral, sendo que o processo deverá obedecer ao disposto na Lei n. 4.737, de 15-7-1965 (Código Eleitoral). 0 procedimento vem traçado nos arts. 355 a 364. Todavia, dispõe o art. 364: "No processo ejulgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito, aplicar-se-á, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal".

G) Outras exceções

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0 CPP fez, tão-somente, aquelas ressalvas. Entretanto, de lá para cá, foram surgindo leis processuais estabelecendo normas quanto ao processo e julgamento de determinadas infrações penais, de sorte que podemos, também, incluir, naquelas ressalvas, outras leis extravagantes. Nos denominados "crimes de entorpecentes", o processo e julgamento regulam-se pelo que dispõe a Lei n. 6.368, de 21-10-1976.

Nos crimes de abuso de autoridade, o processo e julgamento reguIam-se pelo que dispõe a Lei n. 4.898, de 9-12-1965.

Os crimes da competência dos Tribunais (ação penal originária) sujeitam-se a um procedimento diverso, tal como disciplinado nas Leis n. 8.038190 e 8.658193.

As infrações de menor potencial ofensivo, assim consideradas "as contravenções e os crimes punidos com um ano no seu grau máximo, dês

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que não sujeitos a procedimento especial", de acordo com a Lei n. 9.09W 95, passaram para a alçada do Juizado Especial Criminal, com procedimentos bem distintos.

Além disso, o Decreto-lei n. 7.661, de 21-6-1945 (Lei de Falências), estabelece normas especiais não só quanto à fase pré-processual (como é o caso do inquérito judicial), como também quanto à fase processual.

Assim, o Processo Penal, forma compositiva de litígios penais, contid-a sendo disciplinado pelas normas estabelecidas no CPP, que é a principal fonte do nosso Direito Processual Penal. Ao seu lado, contudo, complementando-o, há essas leis extravagantes, alterando, modificando ou dispondo de maneira especial a respeito do processo e julgamento.

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capítulo 5

1. Noções

Interpretaçao

SUMARIO: 1. Noções. 2. Interpretação autêntica. 3. Interpretação doutrinal. 4. Interpretação judicial. 5. Interpretação gramatical. 6. Interpretação lógica. 7. Interpretação sistemática. 8. Interpretação histórica. 9. Interpretação extensiva e restritiva. 10.

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Interpretação progressiva. 11. Interpretação analógica. 12. Analogia.

Interpretar a lei é descobrir ou revelar a vontade contida na norma jurídica ou, como diz Clóvis, é revelar o pensamento que anima as suas palavras.Do ponto de vista subjetivo, isto é, considerando-se o sujeito que interpreta a lei, a interpretação distingue-se em autêntica, doutrinal e judicial. Diz-se autêntica quando realizada pelo próprio legislador. 0 próprio sujeito que ditou a lei a interpreta. Essa nova lei, tornando mais claro o pensamento do legislador, contido na norma interpretada, chama-se interpretativa. Manzini fala da lei interpretativa específica e genérica: a primeira, quando o legislador se limita a aclarar o pensamento contido em alguns dispositivos da lei interpretada; a segunda, quando a lei interpretativa não tem a finalidade exclusiva de aclarar o pensamento contido na norma interpretada, mas a de "estabelecer normas que interpretam outras normas". Dizem-se autênticas, também, as leis retificativas, isto é, 1as que corrigen un error material deslizado en la redacción de una ley".

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Pode ser considerada lei interpretativa a Exposição de Motivos que acompanha as grandes leis, como o CP ou o CPP? Uns acham que sim, porquanto ela deve dar um entendimento exato da nova lei. Outros, a nosso ver, com maior razão, opinam negativamente, sob o fundamento de que uma grande lei é obra de vários e a Exposição de Motivos que a acompanha é redigida por uma só pessoa. Na sua redação pode ocorrer que o redator não revele, exatamente, o pensamento que animou os elaboradores.

2. Interpretação autêntica

A doutrina distingue a interpretação autêntica em contextual e por lei posterior Se a interpretação é feita no contexto, "mediante disposiciones que mutuamente se aclaran", diz-se contextual, tal como se vê no art. 150 e parágrafos do CP, notadamente os §§ 4.' e 5.', em que o próprio legislador procurou gizar os contornos da palavra "casa". Se a interpretação se dá por lei posterior - o que constitui a regra -, fala-se em interpretação "por lei posterior".Houve época em que a interpretação autêntica apresentava valor extraordinário. 0 Imperador Justiniano repelia qualquer outra exegese, isto é, qualquer outra interpretação que não partisse dele próprio. Generalizou-se, então, a seguinte regra: interpretar incumbe àquele a quem compete fazer a lei - ejus est interpretari legem cujus est condere (cf. Carlos Maximiliano, Hermenêutica, p. 120).Por outro lado, Laurent, citado por Carlos Maximiliano, pondera que não há propriamente interpretação autêntica. Se o Poder Legislativo declara o sentido e alcance de um texto, o seu ato, embora reprodutivo e explicativo de outro anterior, é uma verdadeira norma jurídica, e só por isso tem força obrigatória, ainda que ofereça exegese incorreta, em desacordo com os preceitos basilares da hermenêutica (cf. Hermenêutica, cit., p. 122).

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3. Interpretação doutrinal

Doutrinal é a interpretação feita pelos juris scriptores, pelos comentadores, pelos doutrinadores. Os Comentários ao Código de Processo Penal, feitos por Espínola Filho, Florêncio de Abreu, Basileu Garcia, Hélio Tornaglii, Frederico Marques, e. g., constituem verdadeira inter-

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pretação doutrinal, porquanto, em seus trabalhos, procuram revelar o verdadeiro sentido do dispositivo legal. Em determinado momento histórico da civilização, a interpretação doutrina] apresentava valor incomuni, e a tal extremo chegou sua importância que um Juiz não podia decidir, afastando-se da comniunis opinio doctorum, sem cometer grave arbitrariedade: "manifestum est quod judex in judicando debet judicare secundum cominunem opinionem doctorum... si judex judicat contra cominunem opinionem facit litem suam..." (é evidente que o Juiz, ao julgar, deve fazê-lo segundo a opinião comum dos doutores... se assim não proceder, faz sua a demanda ... ). A inobservância dessa regra acarretava a responsabilidade civil do Juiz em relação à parte sucumbente.A interpretação doutrinal, produto das pesquisas dos juristas, é de valor inexcedível. E seu prestígio será tanto maior quanto maior for a envergadura do jurista.

4. Interpretação judicial

E aquela levada a efeito pelos Juízes e Tribunais ao aplicarem a lei a um caso concreto. Sua importância é também extraordinária e, quando uniforme, duradoura e repetida, forma a jurisprudência, que, segundo muitos autores, pode até ser considerada como fonte do direito.

5. Interpretação gramatical

Do ponto de vista objetivo, isto é, levando-se em conta os meios ou expedientes intelectuais empregados para se proceder à interpretação, esta se distingue em gramatical ou literal, lógica ou teleológica, sistemática e histórica. Outros autores preferem dizer que os elementos "histórico" e "sistemático" são considerados na interpretação lógica ou teleológica.Gramatical ou literal é a que se inspira no próprio significado das palavras. Aliás, o Codex Juris Canonici dispõe: "Leges ecclesiasticas intelligendae sunt secundum propriam, verborum significationem..." (as leis eclesiásticas são interpretadas segundo o significado de suas próprias palavras).

Fenech explica: em casos de dúvida entre os vários significados de uma frase ou palavra, o intérprete gramatical deve aceitar o significado comum (significatio vulgaris), salvo se puder demonstrar um uso língüístico

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especial (significatioparticularis). Se os significados variam, é decisivo aquele don-iinante ao tempo da elaboração da lei (cf. Derecho, cit., p. 152).Por outro lado, o art. 2.' do CPPM assim dispõe: "A lei de processo penal militar deve ser interpretada no sentido literal de suas expressões. Os termos técnicos hão de ser entendidos em sua acepção especial, salvo se evidentemente empregados com outra significação".Assim, quando a lei fala em "sentença definitiva", deve entenderse como tal aquela que decide o fundo da questão, aquela que define o juízo, pois, na técnica jurídica, esse o seu significado.Quando a lei fala em "queixa", deve entender-se como tal a peça vestibular da ação penal privada. Esse o seu sentido técnico-jurídico. Entretanto vulgarmente se designa com esse vocábulo a notitia criminis que se leva ao conhecimento da Autoridade Policial. É comum dizer-se: Fulano foi fazer queixa à Polícia... Queixa, aí, está empregada no seu sentido vulgar.A interpretação gramatical é importantíssima, mas não exclui os outros métodos de interpretação, mesmo porque pode haver na lei textos ambíguos, anfibológicos, e, outras vezes, é possível que o legislador se mostre impreciso, e a lei, então, aparece como produto da inelutável necessidade de transigir com pequeninas exigências, a fim de conseguir a passagem da idéia principal.Em matéria de interpretação, não se pode nem se deve olvidar o ensinamento de Celso: "Scire leges, non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem ......

6. Interpretação lógica

Quando o intérprete se serve das regras gerais do raciocinio para compreender o espírito da lei e a intenção do legislador, fala-se de interpretação lógica ou teleológica, porquanto visa precisar a genuína finalidade da lei, a vontade nela manifestada. Poder-se-á aplicar o disposto no § 2.0 do art. 155 do CP, se houver um furto qualificado, e a resfurtiva for de pequeno valor e o agente primário? Se formos procurar a vontade manifestada na norma, concluiremos pela negativa. 0 furto qualificado vem disciplinado no § 4.' do art. 155, e o § 2.", que está acima, e que cuida do furto mínimo. Logo, se o legislador quisesse estender aquele benefício aos furtos qualificados, teria posto a regra que se contém no

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§ 2.", logo abaixo do furto qualificado. A interpretação aí é lógica. No exemplo dado, cumpre observar que grande parte da doutrina e considerável número de acórdãos entendem cabível a aplicação do § 2.' do art. 155 do CP àquelas hipóteses previstas no seu § 4.', por questão de política criminal. Da mesma forma que se admite um homicídio qualificado-privilegiado, nada impede se reconheça um furto qualificado-privilegiado. Vejam-se a propósito: Paulo José da Costa Júnior (Comentários ao Códoo Penal, São Paulo, Saraiva, 1988, v. 2, p. 203), Mirabete (Manual de direito penal, São Paulo, Atlas,

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1985, v. 2, p. 204), Hélio Pereira Bicudo (0 pequeno valor nos crimes patrimoniais, RT, 242125), Mário Hoeppner Dutra (0 furto e o roubo, Max Limonad, 1965, p. 167), Evangelista de Jesus (Direito penal, São Paulo, Saraiva, 1988, v. 2, p. 285), Delmanto (Código Penal anotado, 1988, p. 225 da jurisprudência); RT, 437/389, 4401441, 463/379, 485/334, 524/404, 5291367, 53 1/ 349, 536/340, 588/351, dentre outros v. arestos.

A lógica que rege a interpretação, diz Maggiore, é lógica de fatos, e a viva voz da realidade. Mesmo na interpretação gramatical ou literal, pondera François Gény, a lógica intervém, 1a mettant, de quelque sorte, en valeur .....

7. Interpretação sistemática

Recorre-se a este tipo de interpretação quando a dúvida não recai sobre o sentido de uma expressão ou de uma fórmula da lei, mas sim sobre a regulamentação do fato ou da relação sobre que se deve julgar. Aqui o intérprete deve colocar a norma em relação com o conjunto de todo o Direito vigente e com as regras particulares de Direito que têm pertinência com ela. A propósito, v. Manzini (Derecho, cit., p. 151 e s.).

Por outro lado, os títulos, capítulos, secções, artigos, parágrafos e alíneas facilitam ao intérprete alcançar a mens legis. Poderá, inclusive, para tanto, lançar mão da analogia e dos princípios gerais do Direito.

8. Interpretação histórica

A pesquisa do processo evolutivo da lei, isto é, a história da lei ou a história dos seus precedentes auxilia o aclaramento da norma. Os projetos de leis, as discussões havidas durante sua elaboração, a Exposição de Motivos, as obras científicas do autor da lei são elementos valiosos

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de que se vale o intérprete para proceder à interpretação. Diz-se, então, histórico tal método interpretativo.

9. Interpretação extensiva e restritiva

Quanto aos resultados, a interpretação pode ser extensiva ou restritiva. A linguagem da lei peca ou por excesso ou por defeito. As vezes, como diz Maggiore, é demasiado genérica (plus dixit quam voluit) - disse mais do que queria -, de sorte que, aparentemente, compreende relações que permaneceram, na vontade do legislador, excluídas. Outras vezes é demasiado restrita (minus dixit quam voluit) - disse menos do que queria -, de modo que, aparentemente, exclui relações queridas pela própria lei.

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Cumpre, então, ao intérprete, para restabelecer o equilíbrio, atribuir à norma, no primeiro caso, um alcance menos amplo. As verba legis, ensina Hungria, podem ser claras e propriamente empregadas, mas, à luz da interpretação lógica ou teleológica, podem apresentar-se exuberantes em relação ao que o legislador efetivamente pretendeu exprimir. Fala-se, pois, em interpretação restritiva, uma vez que a lógica não pode substituir a razão jurídica. Restritiva, repita-se, porque restringe a aparente extensão da norma.Assim, por exemplo, quando o legislador diz, rio art. 271 do CPP, que "ao assistente será permitido propor meios de prova", deve-se entender que está excluída a prova testemunhal, pois, de outro modo, estaria ilidida, por via oblíqua, a regra segundo a qual a Acusação deverá oferecer o rol das testemunhas (se quiser fazê-lo) quando da propositura da ação (art. 4 1, in fine), como se depreende da leitura do art. 397 do mesmo diploma processual. Atente-se para a circunstância de que o assistente de acusação ingressa em juízo após a instauração da instância penal, como se dessume do art. 268 do CPP, e não antes.Outras vezes, percebe-se que o legislador minus dixit quam voluit (disse menos do que queria dizer). Urge, assim, fazer as palavras da lei corresponderem ao seu espírito, e, para tanto, deverá o intérprete ampliar o sentido Ou alcance daquelas. Fala-se, aí, em interpretação extensiva.Muito embora Bobbio negue a distinção entre interpretação extensiva e aplicação analôgica (cf. 12 analogia e iI diritto penale, Rivista Penale, 1938, p. 526), o certo é que a diferença enire ambas quase atinge as

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raias da palpabilidade. A primeira é forma de interpretação; a segunda é integração.Exemplo: o art. 34 do CPP diz que o menor de 21 e maior de 18 pode exercer o direito de queixa. Pergunta-se: poderá exercer, também, o direito de representação? Claro que sim. Quem pode o mais, pode o menos. Na verdade, a representação é um minus em relação à queixa. Se ele pode exercer o direito de queixa, isto é, se ele pode praticar o ato instaulodor da instância penal, quanto mais dar o assentimento, a permissão (e nisto consiste a representação) para se processar o sujeito ativo do crime.

Outro exemplo: o art. 33 permite ao Juiz nomear um "curador especial" ao ofendido, nas hipóteses ali tratadas, para exercer o direito de queixa. Pois bem: tal preceito é aplicável, também, às infrações cuja ação penal dependa de representação pelos motivos acima alinhados.As leis penais também admitem a interpretação extensiva? Como bem diz Maggiore, a interpretação extensiva nada mais representa senão a reintegração do pensamento do legislador, e, de conseguinte, é aplicável também à penal (cf. Derecho penal, v. 1, p. 136). No mesmo sentido a lição de Ambal Bruno (Direito, cit., p. 125). Magalhães Noronha é, também, desse sentir (cf. Direito, cit., p. 197). Como exemplo de interpretação extensiva no campo penal, aponta Hungria o art. 235 do CP: incrínÚnando a bigamia, necessariamente está incrinúnando a poligamia.

10. Interpretação progressiva

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Diz-se progressiva a interpretação quando o intérprete, observando que a expressão contida na norma sofreu alteração no correr dos anos, procura adaptar-lhe o sentido ao conceito atual. Exemplificando: o § 2." do art. 5.' do CPP diz caber recurso ao Chefe de Polícia da decisão do Delegado que indefere requerimento visando à instauração de inquérito. Indaga-se: quem é o Chefe de Polícia? Quando da elaboração do Código de Processo Penal, em 1942, "Chefe de Polícia" era a denominaçao que se dava aos atuais Secretários da Segurança Pública. Na praça da Piedade, em Salvador, ainda há um velho prédio onde funcionava a Secretaria da Segurança Pública. E, na sua parte alta, ainda se consegue ver, meio esmaecida, a expressão "Chefatura de Polícia". Era ali que funcionava, com aquela denominação, a Secretaria da Segurança Pública. Depois, com a organização da Polícia Civil, o Chefe de Polícia passou a ser

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denominado Secretário da Segurança Pública, e, em face das inúmeras funções que lhe foram afetas, em razão mesmo do aumento populacional e do crescimento da criminalidade, criaram-se outros cargos, como o Delegado-Geral da Polícia Civil, o Comandante-Geral da Polícia Militar, os Delegados Seccionais e Regionais. Assim, aquele recurso, sem prazo para a sua interposição, pode ser dirigido ao Delegado-Geral ou até mesmo ao Delegado Regional ou Seccional. A finalidade do recurso é pedir a um órgão superior o reexame do ato do Delegado de Polícia que indeferiu o requerimento para a instauração de inquérito. E como os Delegados Regionais, Seccionais, o Delegado-Geral da Polícia Civil, como é chamado em São Paulo, ou que outro nome tenha nos demais Estados, exercem funções mais graduadas, o recurso pode ser dirigido a qualquer deles. Interpretação progressiva.

li. Interpretação analógica

Ao lado da interpretação extensiva e mantendo com esta certa similitude, está a interpretação analógica. Não se deve confundir, contudo, a interpretação analógica com a analogia. A primeira é forma de interpretação; a segunda é integração. Quando se pode proceder à interpretação analógica? Quando a própria lei a determinar. Algumas vezes, a lei penal (a própria lei penal) a permite, e o faz "quando uma cláusula genérica se segue a uma fórmula casuística", e, nessas hipóteses, "deve entender-se que aquela somente compreende os casos análogos aos destacados por esta, que, do contrário, seria ociosa". Assim, por exemplo, quando o art. 61, 11, c, do CP fala em "à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que dificultou ou tomou impossível a defesa do ofendido", pergunta-se: que outro recurso poderá ser este? Evidentemente deve ser um "recurso" semelhante, análogo à "emboscada", à "traição", à "dissimulação", em molde a dificultar ou tornar impossível a defesa do ofendido.

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Não teria sentido que o legislador ali catalogasse todas as hipóteses que guardassem semelhança com a "emboscada", com a "traição", com a "dissimulação". Preferiu, com boa técnica, fazer uso de uma fórmula casuística (à traição, de emboscada, mediante dissimulação) e, em seguida, lançar mão de uma fórmula genérica (ou outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido), entendendo-se, pois, que o recurso de que lança mão o agente, para se emoldurar no art. 61,

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11, c, do CP, há de ser semelhante à traição, à emboscada, à dissimulação. E ele o será, evidentemente, se dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido. Na interpretação analógica a vontade da norma é abraçar os casos análogos, semelhantes àqueles por ela regulados. Vejase, também, e a propósito, o art. 403 do CPP.

12. Analogia

Analogia é integração. Parte da doutrina entende que existe a plenitude do ordenamento jurídico e, por isso, não se pode cuidar de reintegrálo. A maioria, entretanto, entende que o ordenamento jurídico apresenta lacunas, vazios. E tais vazios, tais meatos devem ser preenchidos, e o processo usado para o preenchimento, para inteirar, para completar, para integrar o ordenamento jurídico chama-se analogia.Analogia é um princípio jurídico segundo o qual a lei estabelecida para um determinado fato a outro se aplica, embora por ela não regulado, dada a semelhança em relação ao primeiro. Supõe, como diz Maggiore: a) a falta de uma disposição precisa no caso a decidir; b) a igualdade de essência entre o caso a decidir e o caso já regulado (cf. Derecho, cit., p. 177).Como se percebe, nítida é a diferença entre a interpretação extensiva e a analogia. Naquela, o intérprete conclui que a lei contém a disposição para o caso concreto, mas, como a expressão é mais defeituosa, procura-se adaptá-la à mens legis. Já, na analogia, parte-se do pressuposto de que a lei "não contém a disposição precisa para o caso concreto, mas o legislador cuidou de um caso semelhante ou de uma matéria análoga". Nítida é a diferença, também, entre interpretação analógica e analogia. Ali, a vontade da lei é abranger os casos análogos àqueles por ela regulados. Aqui, não há essa voluntas legis, não existe essa vontade, mas o intérprete, assim mesmo, preenche o meato, o claro, o vazio.Por outro lado, como bem adverte Antolisei, para que exista uma real e autêntica analogia, é indispensável que o caso não contemplado ten a em comum com o que se prevê a ratio legis (cf. Manual, cit., p. 75).Distinguem-se, na doutrina, duas espécies de analogia: analogia "legis" e analogia "juris". A primeira seria o processo de integração da norma com outra norma, e a segunda, a integração da norma ou a integração do ordenamento com os princípios gerais do Direito.Manzini entende ser artificiosa essa divisão e, por isso, prefere falar em analogia simples, quando o processo de integração é feito com a

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própria lei, e em suplemento analógico, quando a integração se opera com norma heterogênea (cf. Derecho, cit., p. 155 e s.).

Alcalà-Zamora, por seu turno, considera que a analogia e os princípios gerais do Direito correspondem a critérios distintos de classificação: analogia é método de integração, e os princípios gerais do Direito não passam de fonte de inspiração, e, por isso, em tema de integração, prefere falar, à maneira de Carnelutti, em auto-integração e heterointegração (cf. Derecho, cit., v. 1, p. 154).

Assim, para Alcalà-Zamora ocorre a auto-integração quando as lacunas se colmatam, se preenchem, com a própria lei; a heterointegração verifica-se quando as lacunas são preenchidas com matéria distinta, isto é, por normas jurídico-processuais distintas da lei (sensu stricto), como, por exemplo, um decreto, uma portaria (cf. Derecho, cit., p. 155).

Não vemos inconveniente em afirmar que a auto-integração ocorre quando se colmam as lacunas com normas homogêneas, isto é, do próprio estatuto, e que a heterointegração se verifica quando as lacunas são preenchidas com normas heterogêneas, isto é, de outro estatuto.

Desse modo, quando o art. 368 do CPP dispoe que o reu no estrangeiro, em lugar certo e sabido, deve ser citado mediante rogatória (pouco importando seja o crime inafiançável ou não, ficando contudo suspenso o prazo prescricional), pergunta-se: que deve conter a rogatória? 0 Código não diz. Entretanto, no art. 354, esclarece o que deve conter aprecatória. Evidente que a carta precatória e a carta rogatória são peças análogas. 0 réu residindo fora da comarca do Juízo processante, mas no território nacional, será citado por precatória. Se no exterior, mediante rogatória. São peças similares a precatória e a rogatória. Assim, como o art. 368 do CPP não diz qual o conteúdo da rogatória, fazendo-o, entretanto, no que respeita à precatória, no art. 354, evidente, em face da analogia, que o vazio da norma que se contém no art. 368 deve ser preenchido com a norma contida no art. 354.

Quando, entretanto, o preenchimento da lacuna deva ser feito com norma extraprocessual-penal, vale dizer, com norma heterogênea, podese falar em heterointegração. E pomos exemplo: suponha-se que o Juiz penal seja amigo íntimo do filho do réu. Quer abster-se de funcionar no processo. Poderá fazê-lo? Nos termos da lei processual penal, não. 0 art. 254, que cuida das causas que podem dar origem à suspeição, não

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trata de amizade íntima entre o Juiz e o filho do réu. Também não admitiu, como causa de suspeição, o "motivo íntimo". Todavia dispõe o paragrafo único do art. 135 do CPC que o Juiz pode abster-se de funcionar no processo por motivo íntimo. Diante disso, se ele se sentir realmente constrangido em funcionar no feito, poderá invocar o disposto no art. 135, parágrafo único, do estatuto processual civil. E assim estaria colmado um meato do estatuto processual penal com uma norma do estatuto po(cessual civil. Heterointegração, portanto. Na verdade, não há motivo algum que impeça o Juiz penal de invocar motivo de foro íntimo para se abster de funcionar no processo. Se pode fazê-lo no cível, por que razão charadística não poderá fazê-lo no crime?

Por outro lado, pode o intérprete inspirar-se nos chamados princípios gerais do Direito. Diga-se de passagem que o art. 3." do CPP dispõe: "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito".

Mas que são esses princípios gerais do Direito? Não existe, a respeito, uniformidade conceitual. Há quem os identifique com os princípios do Direito natural; outros, com os extraídos do sistema da legislação vigente; outros, com os da eqüidade; outros, com os contidos nas obras dos antigos intérpretes etc. Hugo Alsina identifica-os com aqueles princípios da legislação estrangeira (cf. apud Alcalà-Zamora, Derecho, cit., nota 59). Para Battaglini, os princípios gerais do Direito espelham aquilo que de mais abstrato contém o ordenamento jurídico em vigor, atestando a unidade fundamental do Direito (cf. Direito, cit., p. 66). Para outros, são aquelas verdades que informam o sistema jurídico (não podem contradizê-lo, pois, então, não seriam fontes subsidiárias) e podem ser buscados na doutrina e na jurisprudêqcia.

Todavia parece que a grande maioria se inclina em identificá-los com os aforismos, os brocardos jurídicos "'que nada mais representam senão condensação de soluções e de noções tradicionais do nosso ordenamento jurídico". Desse entender são Alcalà-Zamora, De Diego, Giovanni Leone, entre outros. E, como exemplo, podemos citar: neprocedat judex ex officio, resjudicata pro veritate habetur, nulla poena sinejudicio, o princípio do contraditório, da indisponibilidade do processo etc.

E que falar da analogia no campo penal? Parte da doutrina entende que o processo analógico não tem aplicação no Direito Penal. Muitos, entretanto, defendem o ponto de vista de que o processo analógico não

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pode ser invocado no que respeita às chamadas normas penais incriminadoras. Realmente, em face do princípio do nuHum crimen, nulla poena sine lege, não é possível. Assim, não se concebe possa ser invocado o processo analógico para "admitir delito que não esteja expressamente previsto em lei". Com elevado acerto ensina Battaglini, sintetizando toda a doutrina, que, se o fato não constituir delito, de maneira alguma poderá o intérprete considerá-lo como tal (cf. Direito, cit., p. 63).Assim, como exemplifica Hungria, se alguém constrange outrem, mediante violência ou grave ameaça, a celebrar contrato de trabalho, comete crime (CP, art. 198). E se alguém constrange outrem, mediante violência ou grave ameaça, a não celebrar contrato de trabalho? As situações são semelhantes, análogas, entretanto tal fato não se subsume no tipo traçado no art. 198. Se, por acaso, no nosso ordenamento houver um tipo ao qual se possa ajustar o fato acima descrito, será ele punível, porque corresponde ao modelo legal; senão, não.Em algumas legislações, ferindo-se frontalmente o princípio da reserva legal, admitiu-se a analogia. Assim, o art. 16 do Código russo de 1926 dispunha: "Quando a ação socialmente perigosa (obstcestvenno - opasnoe deistvie) não for expressamente prevista pelo Código, o fundamento e os limites da respectiva responsabilidade serão deduzidos dos artigos que contemplam os delitos de índole mais análoga". Também na Alemanha nazista, a Lei de 28-6-1935 dispunha: "Na hipótese de o fato não se enquadrar imediatamente em determinada lei penal, será punido com base na lei cujo conceito fundamental melhor se aplique" (cf. Battaglim, Direito, cit., p. 62 e 160).Também o art. 1.' do CP dinamarquês de 1930 admite a analogia.As "advertências preliminares" do CP abissínio de 1931 contêm disposições interessantes. Assim, o art. 11: "É evidente que não faltarão ocasiões em que se apresentem casos não previstos por este Código; será necessário, então, indagar se o mesmo contém casos similares; resolver-se-ão aqueles, aplicando por analogia as disposições que regulamentarem estes". Art. 12: "Na hipótese de surgir caso novíssimo, jamais ouvido, será o Tribunal Superior o competente para julgá-lo".Afora essas exceções (e são bem poucas), vigora nas legislações, inclusive na nossa (CP, art. L'), o princípio de que não há crime sem lei anterior que o defina, e, como definir um crime é descrever o fato que o constitui, é claro que, se não se puder proceder à perfeita adequação

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típica, inexistirá fato punível, porquanto, em face do princípio da "reserva legal", o fato deve ser conforme ao tipo descrito em lei.Mas, quando se trata de norma não incrin-iinadora, a maioria se inclina por aceitar a aplicação analógica, desde que venha a beneficiar o réu. É a chamada analogia in bonam partem. A respeito, já dizia o grande Carrara: "Por analogia não se pode estender a pena de um caso a outro; deve ser estendida de um caso a outro ajustificativa por analogia" (cf. Programma, § 890,1~,ota).

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Na verdade, quando se trata de norma não incriminadora ou norma não propríamente penal, como lhe chama Battaglini (e são todas aquelas da Parte Geral do CP), não há inconveniente em que se adote o processo analógico, desde que in bonam partem.

Entre nós, Hungria dá-lhe combate, salientando que o nosso Código é profuso em causas de extinção da punibilidade; enumera em termos dúcteis as causas descriminantes e, além disso, ainda deixa grande arbítrio ao Juiz ao aplicar a pena. Assim, pouco lugar haveria para a analogia in bonam Partem. Como exemplo de aplicação analógica in bonam partem, cita Noronha o caso do aborto médico à mulher violentada em seu pudor. Realmente. "A lei penal permite o aborto médico à mulher estuprada e, portanto, pergunta-se: se a mulher violentada em seu pudor excepcionalmente se engravidar, poderá abortar? Não há norma a respeito, e, assim, a punição será fatal. A não ser pela analogia in bonam partem, aplicar-se-ão soluções diferentes a casos idênticos, o que é iníquo" (cf. Direito, cit., p. 99).0 Código consagra, como causa de extinção da punibilidade, nos crimes contra os costumes, o "casamento do agente com a ofendida". E se, por acaso, fosse a mulher a autora do crime e o homem a vítima? A situação é análoga à prevista pelo legislador. Não fosse a aplicação da analogia in bonam partem e não se decretaria a extinção da punibilidade nesse caso.

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Fontes do Direito Processual Penal

SUMÁRIO: 1. Sentido da palavrafonte. 2. As fontes formais e substanciais. 3. Classificação das fontes formais. 4. Modalidades das fontes diretas. 5. Fontes orgânicas. 6. Fontes indiretas. 7. Fontes secundárias. 8. Inovações.

1. Sentido da palavra "fonte"

Já se disse que origem e fonte do Direito são a mesma coisa. Para• nosso estudo, entretanto, reservamos à expressão "fontes" do Direito• sentido de formas de exteriorização do Direito. Fontes do Direito, portanto, nada mais são do que as formas pelas quais as regras jurídicas se exteriorizam, se apresentam. São, enfim, "modos de expressão do Direito".

2. As fontes formais e substanciais

Battaglini distingue as fontes em formais e substanciais. Aquelas são maneiras de expressão da norma jurídica positiva. Estas constituem a matéria em que se busca o conteúdo do preceito jurídico.

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Assim, certos princípios universais como o neminem laedere (negativo) são fontes substanciais (cf. Direito, cit., p. 37).

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3. Classificação das fontes formais

Interessam-nos as fontes formais. Como classificá-las? Não há, em doutrina, uniformidade de vistas quanto à classificação das fontes formais. Predominante, no entanto, a idéia de que se reduzem a duas: a lei e o costume. Outros ainda acrescentam a jurisprudência, a doutrina e os principios gerais do Direito.1A lei é, realmente, a principal fonte do Direito. Grosso modo, é por meio da norma jurídica que o Direito se manifesta e se revela. É a principal fonte, porque contém em si mesma a norma. Outras fontes, sem que contenham a norma, produzem-na indiretamente e "otras Ia producen de una manera secundaria o incidental".Com esse entendimento, podemos classificar as fontes formais, de acordo com Miguel Fenech (Derecho, cit., p. 10 1), em diretas, que contêm em si a norma, e em supletivas, que são de duas ordens: "indiretas", que, sem conterem a norma, produzem-na indiretamente, e "secundárias", as que a produzem de maneira secundária ou incidental.i

4. Modalidades das fontes diretas

As fontes diretas são constituídas pelas leis - entendendo-se estas em seu sentido mais amplo, isto é, como toda disposição emanada de qualquer órgão estatal na esfera de sua própria competência. Dentro das fontes diretas, fazem-se algumas divisões, "atendendo-se à finalidade ou importância das normas processuais nelas contidas".Desse modo podemos classificar as fontes diretas em: a) fontes processuais penais principais (CF e CPP); b) fontes processuais penais extravagantes; c) fontes orgânicas principais; e d) fontes orgânicas complementares.Interessam-nos, apenas, as fontes do Direito Processual Penal Comum.As fontes processuais penais extravagantes são de duas especies: complementares e modificativas. São fontes extravagantes complementares: a Lei ri. 5.250, de 9-12-1967 (Lei de Imprensa); o Decreto-lei n. 201, de 27-2-1967 (crimes de responsabilidade dos Prefeitos municipais e respectivo processo); a Lei n. 1.079, de 10-4-1950 (crimes de responsabilidade de Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do STF e Procurador-Geral da República); a Lei ri. 1.521, de

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26-12-1951 (crime contra a economia popular); a Lei n. 4.898, de 9-121965 (abuso de autoridade); a Lei n. 6.368, de 21-10-1976. Tais normas, em sua grande maioria, são aplicáveis a "setores que não foram compreendidos pelo Código de Processo Penal".Como fontes extravagantes modificativas, e como tais se entendem as que "modificam, ampliam ou extinguem normas e preceitos do Código", podemos citar: a Lei ri. 1.408, de 9-8-1951 (sobre a contagem è#Is prazos); a Lei n. 263, de 23-2-1948 (sobre a instituição do Júri); a Lei ri. 4.336, de 1.'-6-1964 (que acrescentou o § 4.' ao art. 600 do CPP); a Lei n. 5.941, de 22-11-1973 (que alterou a redação dos arts. 408 e 594 do CPP); a Lei n. 6.416, de 24-5-1977 (que alterou dispositivos sobre liberdade provisória); a Lei ri. 8.035, de 27-4-1990 (sobre fiança); a Lei n. 8.038, de 28-5-1990 (sobre a ação penal originaria da alçada do STF e do STJ e sobre o procedimento dos recursos extraordinário e especial); a Lei n. 8.072, de 25-7-1990 (sobre os crimes hediondos); a Lei n. 8.658, de 26-5-1993 (que revogou os arts. 556 a 562 do CPP); a Lei ri. 9.099, de 26-9-1995 (que instituiu os Juizados Especiais Criminais); a Lei n. 9.27 1, de 17-4-1996 (que deu nova redação aos arts. 366, 367, 368, 369 e 370 do CPP) etc.

5. Fontes orgânicas

Como fontes orgânicas principais temos as leis de organização judiciária, porquanto "revelam, em grande parte, as regras pertinentes à norneação, investidura e atribuições dos órgãos jurisdicionais e seus auxiliares".São fontes orgânicas complementares os Regimentos Internos dos Tribunais que contêm normas subsidiárias da legislação processual, como se constata pelos arts. 667, 666, 63 8 e 618 do CPP. Nesse rol se incluem os Regimentos Internos da Câmara Federal, do Senado e das Assembléias Legislativas, por força do que dispõem os arts. 38, 73 e 79 da Lei n. 1.079, de 10-4-1950 (Lei do impeachment).

6. Fontes indiretas

Fontes indiretas são aquelas que, embora não contenham a norma, produzem-na indiretamente. Assim, são considerados como tais: os costumes, a jurisprudência e os princípios gerais do Direito.

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Costume é o uso geral, constante e notório, observado sob a convicção de corresponder a uma necessidade jurídica. Laborde Lacoste assim se expressa: "um uso juridicamente obrigatório".Ninguém nega o extraordinário valor do costume na formação do Direito, porquanto, até à organização do Estado, o Direito nada mais era senão uma "estratificação dos costumes", e, ademais, "os monumentos legislativos da antigüidade mais remota foram condensação dos costumes".

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Compõe-se o costume de dois elementos: um interno, que se concretiza em uma observância constante, geral e uniforme, e outro externo, que e a opiniojuris et necessitatis (convencimento geral da necessidade jurídica).Geralmente, costumam os autores indicar três formas de costumes:Os costumes secundum legem (de acordo com a lei), que consistem na interpretação ou aplicação uniforme da lei; os costumes praeter legem (fora da lei), também chamados integrativos, uma vez que suprem as lacunas das normas ou especificam seu conteúdo e extensão; os costumes contra legem (contra a lei), que introduzem novas normas contrárias à lei, e isto de duas maneiras: ou criando normas ou não aplicando normas existentes.0 costume, diz Maggiore, é um fato do qual jus oritur "Es una fuente de derecho espontánea que tiene vida propia y aunque no esté escrita, obra sobre el derecho escrito sin necesidad de recibir de él su autoridad" (cf. Derecho, cit., p. 163).E Tuhr arremata: "Tôdas as tentativas para proibir o direito costumeiro têm sido ineficazes, porque o costume é uma potência igual ao próprio direito escrito e que não pode anular seus próprios limites" (cf. A. von Tuhr, apud Maggiore, Derecho, cit., p. 164).Tendo seu campo de ação no Direito Privado, pode parecer estranho, preleciona Alcalà-Zamora, que se fale em costume no Direito Processual Penal, que reclama a fixidade de contornos que a lei confere às suas normas. Todavia o costume é fonte do Direito Processual Penal. Os usos forenses, entretanto, para que tenham tal caráter, não devem ir contra os fins do processo nem, como adverte Fenech, coarctar 1a libertad o cualquiera de los otros intereses legítimos de los diversos sujetos procesales" (cf. Derecho, cit., p. 129). E desde que náo contravenham aos fins do processo, os costumes (usos forenses) podem ser valiosos auxiliares para interpretação e aplicação das normas.

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Jurisprudência. A jurisprudência (julgados repetidos e constantes em casos idênticos) é considerada, igualmente, fonte do Direito Processual Penal, muito embora não falte quem combata tal afirmativa, sob a alegação de que as sentenças judiciais não possuem força criadora.De fato, do ponto de vista legal, na exata observação de Fenech, o valor da jurisprudência, como fonte do Direito Processual Penal, é nulo, uma vez que a lei não a reconhece como tal. Mas, do ponto de vista da realida&, o seu valor é imensurável. As decisões constantes e ininterruptas dos nossos Tribunais, em casos idênticos, chegam a constituir, na observação de Alcalà-Zamora, verdadeira doutrina.E a jurisprudência, realmente, fonte supletiva para a interpretação da lei processual penal, cujos preceitos são elucidados, clareados, desenvolvidos e explicados, deterrninando, assim, seu significado e alcance.Não se pode, pois, contestar a influência da jurisprudência na formação do Direito, quando se sabe que a jurisprudência, ao lado da sua função interpretativa, tem uma função supletória, completando, inteirando a lei na deficiência desta e das suas fontes próprias ou diretas (cf, Carvalho de Mendonça, Tratado de direito comercial, v. 1, p. 138).

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Princípios gerais do Direito. Conforme salientamos, não há, na doutrina, uniformidade conceitual a respeito dos chamados princípios gerais do Direito. Entretanto grande parte da doutrina, senão a maioria, identifica-os com os brocardos jurídicos, "que nada mais representam senão condensação de soluções e de noções tradicionais do nosso ordenamento jurídico". No caso, tais princípios seriam aqueles que servem de base e fundamento à legislação vigente em matéria processual penal.

7. Fontes secundárias

As fontes secundárias, emprestando-se à expressão o sentido de fontes que, sem conterem a norma, produzem-na de maneira secundária ou incidental, têm, também, sua importância. Têm tal qualidade o Direito histórico, o Direito estrangeiro, as construções doutrinárias nacionais ou alienígenas que, inegavelmente, auxiliam a redação das leis, a sua interpretação e, às vezes, a própria aplicação da norma.Doutrina. A doutrina é obra dos juris scriptores, que estudam o Direito nos seus aspectos filosófico, científico, técnico e prático, em tratados, comentários e monografias. Ela revela, antes de mais nada, uma

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autoridade moral, e será tanto maior quanto o valor do jurista. Tão grande é o valor da doutrina que a obra de Pothier foi inspíração constante na elaboração do Código Napoleônico. Já houve até quem quisesse dar à obra de Correia Teles o valor de texto de lei... Lembre-se, também, que a ordenação processual de Madri, de 1499, reconheceu, como fonte supletiva, as opiniões de Bartolo, Baldo, Juan Andrés... E a Constituição da Catalunha deu força e valor de leis às doutrinas dos Doutores, "siendo preferidas Ias comunes a Ias particulares, mayormente si son de prácticos ......Fontes diretas mediatas ou remotas. A fonte direta remota do Direito Processual Penal pátrio é a legislação portuguesa. 0 primeiro Código português recebeu o nome de "Ordenações Afonsinas", em homenagem a D. Afonso V, em cujo reinado foi concluída a obra. Sua confecção, desde o seu início, durou cerca de quarenta e cinco anos. Surgiu, exatamente, no ano de 1446 e foi considerado um verdadeiro monumento de sabedoria. 0 Livro V, com cento e vinte e um títulos, versava sobre os crimes, as penas e o Processo Penal. Durante os setenta e cinco anos de sua vigência e para atender aos reclamos sociais, muitas e muitas leis foram elaboradas, como normas extravagantes, a ponto de D. Manuel 1, no limiar do século XVI, haver determinado se fizesse uma compilação, o que se deu por volta do ano de 1521, recebendo o novo Código a denominação "Ordenações Manuelinas".Logo em seguida às "Ordenações Manuelinas", e durante o seu período de vigência, surgiu o Código Sebastiânico, vigendo ao lado das Ordenações Manuelinas, sem, contudo, revogá-las. Como surgiu tal Código? 0 Cardeal D. Henrique designou Duarte Nunes de Leão para fazer uma compilação das leis extravagantes promulgadas depois das Ordenações Manuelinas, compilação essa que, depois de

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revista por uma comissão de juristas, foi batizada com o nome de "Código Sebastiânico" e teve força de lei, pelo Alvará de 14-2-1569.Em 1603, depois da batalha de Alcácer-Quibir, e já no reinado de Felipe II, surgiram as "Ordenações Filipinas", que chegaram a viger entre nós até o segundo quartel do século passado.Em todas essas Ordenações, o sistema adotado era o inquisitivo, com as indispensáveis torturas. 0 processo iniciava-se pela devassa, querela ou denúncia. As devassas nada mais eram senão as investigações empreendidas de ofício pelo Magistrado. Podiam ser especiais, quando promovidas pelo Juiz, em determinados crimes, e gerais, quando procedidas pelo Juiz de fora. Este chegava a uma cidade qualquer "e proce-

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dia às investigações sobre os crimes que ocorreram naquele lugar a fim de processar todos os responsaveis pelos crimes havidos ate aqueIa época".Proclamada a Independência do Brasil, surgiu a lei de 20-9-1823, determinando vigerem no País as Ordenações, leis, regulamentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis de Portugal. A Constituição 1 perial, no seu art. 179, XVIII, prometia ao povo brasileiro um Códjé Civil e um Criminal fundados nas sólidas bases da justiça e da eqüidade.Em 1830, surgiu o Código Criminal, vindo a seguir, em 1832, o Código de Processo Criminal. Este diploma trouxe profundas modificações, destacando-se a extinção das devassas, a formação da culpa, que passou a ser pública, a instituição do habeas corpus.Duas leis posteriores ao Código de Processo Criminal tiveram repercussão: a de 3-12-1841 e a de 20-9-1871. A primeira, referindo-se, particularmente, às funções da Polícia e ampliando suas atribuições. A segunda, estabelecendo regras sobre fiança, criando o habeas corpus preventivo, estendendo essa garantia, na sua feição liberatória ou preventiva, aos estrangeiros, e o inquérito policial, que, pela primeira vez, aparece com esse nomenjuris.

Em 1889 modificou-se o regime político do Brasil. A Constituição de 1891 outorgou aos Estados-Membros a competência para legislarem sobre matéria processual civil e penal. Muitos Estados, senão a grande maioria, elaboraram seus estatutos processuais, e outros continuaram sendo regidos pelas leis imperiais (modificadas e completadas por sua legislação esparsa sobre Processo Penal), até que, em 1934, a Carta Política aboliu aquela prerrogativa dos Estados.A competência para legislar sobre Direito Processual deslocou-se para a União. E, sem embargo daquela abolição, não se empreendeu a realização de um Código de Processo Penal. A Carta Magna de 1937 repetiu a exigência da anterior, e, assim, em 1941, surgiu o nosso atual CPP, que começou a vigorar em L'-1-1942.0 CPP brasileiro, que entrou em vigor a 1.'- 1 - 1942 e que continua vigendo, é dividido em livros; estes, em títulos; os títulos em capítulos e os capítulos, por sua vez, em artigos, com um total de 8 11 artigos.Os livros são em número de seis: o 1.' dedicado ao processo em geral; o 1% aos processos em espécie; o 1% às nulidades e aos recursos

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em geral; o 4.', à execução; o 5., às relações jurisdicionais com autoridades estrangeiras; e, finalmente, o 6.', versando sobre as disposições gerais.0 Livro 1 contém doze títulos, tratando, respectivamente, das disposições preliminares, inquérito policial, ação penal, ação civil (actio civilis ex delicto), da competência, das questões e processos incidentais (abrangendo as prejudiciais, as exceções, incompatibilidades e impedimentos, conflito de jurisdição, restituição de coisas apreendidas, medidas assecuratórias, incidente de falsidade e insanidade mental), da prova, dos sujeitos processuais, prisão e liberdade provisória (o título sobre prisão e liberdade provisória compreende as disposições gerais sobre a prisão, flagrante, preventiva, apresentação espontânea do acusado, prisão administrativa, liberdade provisória com ou sem fiança), citações e intimações, da aplicação provisória de interdições de direito e medidas de segurança, sentença.0 Livro 11 encerra três títulos versando, respectivamente, sobre o processo comum, os processos especiais e os processos da competência originária do STF e Tribunais de Apelação, hoje denominados Tribunais de Justiça.0 Livro 111 compreende dois títulos: um sobre as nulidades e outro sobre os recursos em geral.0 Livro IV versa sobre a execução, tendo títulos pertinentes às disposições gerais, à execução das penas em espécie (das penas privativas de liberdade, das penas pecuniárias, das penas acessórias); aos incidentes da execução (suspensão condicional da pena e livramento condicional); à graça, ao indulto, à anistia e à reabilitação; e à execução das medidas de segurança.0 Livro V, com um único título, compreende disposições gerais, cartas rogatórias, homologação das sentenças estrangeiras.Finalmente, o Livro VI, pertinente às "disposições gerais".

8.1novações

0 CPP, que começou a viger entre nós em janeiro de 1942, trouxe algumas inovações e, ao mesmo tempo, fez desaparecer certas imperfeições encontradiças no Direito Processual anterior. Inegavelmente, para aquela época, cinqüenta anos atrás, o CPP representou uma grande conquista.

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Hoje, entretanto, não são poucas as críticas que se fazem ao atual diploma. Na verdade, há certos institutos obsoletos e que precisam, com urgência, de uma alteração. Cremos não ser necessária uma modificação total. Bastará corrigir alguma coisa. Poder-se-á, por exemplo: a) abolir o recurso em sentido estrito e fazer surgir, em seu lugar, o agravo de instrumento, tal como previsto no Projeto n. 633/75; b) abolir o libelo, ficando a acusação cristalizada na sentença de pronúncia, pois todos sabeno^ que o libelo tem sido fonte de numerosas nulidades; c) permitir que o juízo de admissibilidade da demanda suceda à resposta do réu; d) abolir a carta testemunhável; e) permitir que o Ministério Público funcione, também, em primeira instância, nos pedidos de habeas corpus; J) atualizar o capítulo das

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nulidades, seguindo-se a orientação do Projeto n. 633/75 (Anteprojeto Frederico Marques); g) permitir a revisão especial, nos moldes daquele Projeto, para a hipótese de o réu ter sido condenado à revelia, em face de citação edital; aliás, o art. 366 do CPP, com a redação dada pela Lei n. 9.271/96, não permitindo a condenação do citado por edital que não atende ao chamamento a juizes nem constitui advogado, já atendeu àquela observação; h) não permitir o trânsito em julgado de sentença condenatória, a não ser por intimação pessoal, quando o reu houver sido citado por edital e o feito correr à sua revelia (renovamos aqui a observação anterior); i) não permitir que os pedidos de dilação de prazo para a conclusão de inquérito sejam feitos ao Juiz, e sim ao Ministério Público;j) admitir apenas dois tipos de prisão processual: a prisão em flagrante e a preventiva, podendo esta ser decretada em qualquer fase do inquérito ou da instrução, inclusive na pronúncia e na sentença penal condenatória recorrível; k) estender os embargos infringentes ou de nulidade à Acusação, à maneira do que se passa na Justiça Militar; 1) não permitir à Acusação apelar com fundamento na letra d do inc. 111 do art. 593 do CPP; m) nos casos de revisão criminal, se procedente a ação, fazer publicar na imprensa da Comarca a decisão que inocentou o condenado; n) colocar o habeas corpus e a revisão criminal em título especial; o) preservar o princípio do contraditório, não permitindo ao Ministério Público, em segunda instância, ao examinar os recursos, manifestar-se sobre o mérito, limitando-se a analisá-los sob o aspecto formal. A alegação de que sua manifestação é a de custos legis não passa de subterfúgio para esconder a coima do acusador que sempre foi durante mais de vinte anos... Aí estão algumas sugestões. No 4.' volume desta obra, ao tratarmos das formas procedimentais, voltaremos ao assunto.

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Cremos que uma alteração assim, embora não transforme o Código num verdadeiro modelo de perfeição, pelo menos o modifica para melhor.Já em 1963, o governo incumbiu o Prof. Hélio Bastos Tornaghi de elaborar um anteprojeto ao CPP. Em pouco tempo a obra estava pronta. Todavia as críticas ao trabalho do excelso mestre, embora injustas, foram tantas que o anteprojeto nem sequer foi encaminhado ao Legislativo. No Governo Médici, o Ministro da Justiça, Prof. Alfredo Buzaid, deu a incumbência de elaborar o novo anteprojeto ao Prof. José Frederico Marques. Este apresentou um trabalho de fôlego, mantendo muita coisa do atual Código e, por outro lado, criando institutos novos, à maneira do que se passou no Processo Civil. 0 anteprojeto chegou a converter-se em Projeto. Recebeu inúmeras emendas, e já estava no Senado, onde dezenas e dezenas de sugestões o aguardavam, quando o governo o retirou, sob a alegação de que as introduções feitas no nosso sistema repressivo pelas Leis n. 5.941, de 22-11-1973, e 6.416, de 24-5-1977, emprestaram ao Código um colorido de atualização.Em fins de 1980, o Ministro da Justiça confiou a uma Comissão de Juristas, sob a presidência do Dr. Francisco de Assis Toledo, então Subprocurador-Geral da República, a tarefa de revisar o CP e elaborar um novo CPP, obedecendo, mais ou menos, às linhas estruturais do Projeto n. 633175, de autoria do Prof. Frederico Marques.

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Cremos, com Tornaghi, não haver necessidade de um novo CPP, mas, tão-somente, de sua atualização. Esse o entendimento generalizado entre Professores, Juízes, membros do Ministério Público, Advogados e Autoridades Policiais.Neste estudo que ora fazemos, atinente às inovações, cumpre-nos, apenas, salientar as novidades que, em 1942, o atual CPP introduziu.Admitia-se, no Direito anterior, o procedimento ex officio, nos crimes inafiançáveis, quando a denúncia não fosse apresentada no prazo legal (CP de 1890, art. 407, § 3.'). 0 diploma de 1942, entretanto, consagrou o princípio do ne procedatjudex ex officio. 0 Juiz não mais poderia dar início ao procedimento. Se houvesse negligência do Ministério Público, cabia ao ofendido (e ainda cabe) ou ao seu representante legal oferecer queixa substitutiva da denúncia, nos precisos termos do art. 29 do CPP. 0 legislador de 1942 fez, no particular, uma ressalva: as contravenções. Quanto a estas, foi mantido o procedimento ex officio, como se constata pelos arts. 26 e 531 do CPP. A Lei ri. 4.611, de 2-4-1965, ampliou o quadro do procedimento ex officio, conforme já salientamos.

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As dúvidas que surgiam quando o Promotor de Justiça requeria o arquivamento de autos de inquérito foram dirimidas com a seguinte norma: se o órgão do Ministério Público, em vez de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial, ou de quaisquer peças de informação, o Juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará a remessa dos autos ao Procurador-Geral e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-Ia ou jOsistirá no pedido de arquivamento, ao qual, só então, estará o Juiz obrigado a atender (CPP, art. 28).

"0 projeto, ajustando-se ao Código Civil e ao Código Penal, manteve a separação entre a ação penal e a actio civilis ex delicto", rejeitando o instituto ambíguo da constituição de "parte civil no processo penal".0 ofendido não pode, no Processo Penal, pleitear a satisfação dos danos causados pela infração (princípio hoje mitigado com a Lei dos Juizados Especiais Criminais). A ação civil deverá ser proposta no juízo cível. Quando o titular do direito à satisfação do dano for pobre, a execução da sentença condenatória ou a ação civil será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.Deixou de ser proibido o princípio dojura novit curia. E mais ainda: foi este consagrado.

No Direito anterior, o Juiz não podia retificar a classificação feita na denúncia para impor ao réu sanção mais grave. Era o Juiz obrigado a julgar nulo o processo ou improcedente a ação penal, conforme o caso, e devia o Ministério Público apresentar nova denúncia, se não estivesse extinta a punibilidade pela prescrição.0 Código de 1942 corrigiu semelhante falha, adotando as regras insertas nos arts. 383, 384 e seu respectivo parágrafo único.

Respeitante às nulidades, assim se expressou o Min. Francisco Campos na Exposição de Motivos: 0 projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. E

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consagrado o principio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa.Não será declarada a nulidade de nenhum ato processual quando este não haja influído concretamente na decisão da causa, ou na apuração da verdade substancial.Somente em casos excepcionais é declarada a nulidade.

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1

Respeitante aos processos dos crimes contra a honra, de competência do Juiz singular, o art. 520 trouxe uma inovação: antes de receber a queixa, o Juiz oferecerá às partes oportunidade para se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as, separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo. Na hipótese de reconciliação (art. 522), depois de assinado pelo querelante o termo de desistência, a queixa será arquivada.E não é só: quanto às provas, prisão em flagrante, prisão preventiva etc., houve inúmeras alterações, e seria mesmo superfluidade citar inovação por inovação, modificação por modificação, quando uma simples leitura da Exposição de Motivos que acompanha o CPP esclarece, com sobejidão, a matéria objeto desse estudo.Em face da Constituição de 5-10-1988, surgiram várias alterações: a) aboliu-se o procedimento ex officio (art. 129, 1); b) tornaram-se inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5.', LVI); c) a identificação dactiloscópica do civilmente identificado fica proibida, salvo as hipóteses que a lei vier a estabelecer (art. 5.', LV111); d) a busca domiciliar só será feita mediante determinação judicial (art. 5.', X1); e) o réu passou a ter direito ao silêncio (art. 5.', LX111); J) ficou proibida a incomunicabilidade do preso (art. 136, § 1% IV); g) a Justiça Militar não mais poderá processar e julgar os crimes contra a segurança nacional; e, como tais crimes são políticos, a competência passou para a Justiça Federal com recurso ordinário para o STF; h) as imunidades material e formal dos Deputados e Senadores ampliaram-se; i) conferiu-se aos Vereadores imunidade material; j) os Prefeitos só podem ser processados e julgados nos crimes comuns pelo Tribunal de Justiça; k) ins-tituiu-se o Juizado Especial Criminal para o processo e julgamento das infrações de menor potencial ofensivo, inclusive a transação como fórmula para julgar a pequena criminalidade etc.Essas, entre outras, as inovações trazidas pela Constituição Federal de 5-10-1988.

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capítulo 7

uçao§i* -Da persec '

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SUMÁRIO: 1. Da investigação preparatória. 2. Polícia. 3. Divisão. 4. Polícia de Segurança. 5. Polícia Civil. 6. Do inquérito policial. 7. Finalidade do inquérito. 8. Inquéritos extrapoliciais. 9. Competência. 10. 0 inquérito é indispensável? 11. Natureza do inquérito. 12. Incomunicabilidade.

1. Da investigação preparatória

Da análise dos incs. XXXV (a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito), XXXV11 (não haverá juízo ou tribunal de exceção), 1,111 (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente) e principalmente do inc. LIV (ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal), todos do art. 5.' da CF, conclui-se que os princípios nulla poena sinejudice e nullapoena sinejudicio foram erigidos à categoria de dogrnas constitucionais. Realmente. Se a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, infere-se que a lei não pode atribuir o julgamento de uma causa a outras pessoas que não integrem o Poder Judiciário, porquanto, se isso fosse possível, a referida causa estaria sendo excluída da apreciação do Poder Judiciário, cujos orgãos estão previstos, implícita ou explicitamente, na Lei Maior. Podemos então afirmar: somente os órgãos Jurisdicionais é que podem julgar, compor os litígios: nulla poena sine judice. E verdade que a própria Constitui-

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1 1 1 ~ ~ 11

ção atribui o poder de julgar a outro órgão que não o Judiciário. É o caso do Senado Federal, no julgamento dos crimes de responsabilidade cometidos por aquelas pessoas referidas no art. 52 da CF.Por outro lado, se ninguém pode ser privado da sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal, é sinal de que o julgamento de uma causa penal é precedido de ampla defesa e de um regular contraditório. Assim, para que alguém possa ser punido é preciso haja aquele due process of law. Tal princípio implica defesa ampla, regular. contraditório, duplo grau de jurisdição, igualdade das partes. On última análise, como bem diz Couture, o due process of law consiste no direito de não ser privado da liberdade e de seus bens, sem a garantia que supõe a tramitação de um processo desenvolvido na forma que estabelece a lei (cf. Fundamentos del derecho procesal civil, Depalma, 1972, p. 100). Nulla poena sine judicio: nenhuma pena poderá ser imposta ao réu senão por meio de um regular processo.Como o Estado Soberano, titular do direito de punir, por razões analisadas anteriormente, autolimitou tal direito, é claro que, quando alguém transgride a norma penal incriminadora, sua punição somente se efetivará por meio do processo. E, para que isso ocorra, é preciso que o Estado-Administração leve a notícia daquele fato ao conhecimento do Estado-Juiz (apontando-lhe o respectivo autor), a fim de que, apreciando-o, declare se procede ou improcede, se é fundada ou infundada a pretensão estatal.

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0 Estado, para tanto, desenvolve intensa atividade que se denomina persecutio criminis in judicio, por meio do órgão do Ministério Público, por ele criado para, preferentemente, exercer tal função, personificando o interesse da sociedade na repressão às infrações penais. Assim, é o órgão do Ministério Público quem leva ao conhecimento do Juiz, por meio da denúncia, o fato que se reveste de aparência delituosa, apontando o seu autor, a fim de que o Juiz possa verificar "se ricorrano le condizioni di legge per condennarlo o per assoverlo" (Sabatini, Istituzioni di diritto processuale penale, 1939, p. 9).Apenas para se

compreender bem essa atividade, atentemos para esse exemplo, um tanto quanto grosseiro. Se uma empresa quiser mover uma ação contra Pedro, compete a ela, titular do direito de crédito, procurar os documentos necessários, comprobatórios da dívida, e, impossibilitada que está de, pessoalmente, ingressar em juízo para deduzir sua pretensão (porquanto a lei, por razões óbvias, exige, de regra, para

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se postular em juízo, habilitação técnica), entregar os documentos ao seu advogado, para que este ingresse em juízo com a competente ação.0 fenômeno é idêntico ao que se passa com a atividade persecutória do Estado. Como titular do direito de punir, quando alguém infringe a norma penal, deverá o Estado, para fazer valer o seu direito, procurar os elementos comprobatórios do fato infringente da norma e os de quem tenha sido o seu autor, entregando-os, a seguir, ao órgão do Ministério Públ~W para promover a competente ação penal.0 Estado realiza essa tarefa ingente por meio de órgãos por ele criados. 0 órgão do Ministério Público incumbe-se de ajuizar a ação penal e acompanhar o seu desenrolar até final. É o que se chama persecutio criminis injudicio. Mas, para o órgão do Ministério Público poder levar ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato infringente da norma, apontando-lhe o autor, é intuitivo tenha em mãos os elementos comprobatórios do fato e da respectiva autoria. E como consegui-los? Para tanto, o Estado criou outro orgão, incumbido precipuamente dessa missão. É a Polícia Civil, como lhe denomina o § 4." do art. 144 da Carta Política (mais conhecida como Polícia Judiciária), cuja finalidade é investigar o fato infringente da norma e quem tenha sido o seu autor, colhendo1os necessários elementos probatórios a respeito. Feita essa investigação, as informações que a compoern são levadas ao Ministério Público, a fim de que este, se for o caso, promova a competente ação penal.A essa atividade do Estado denomina-se persecutio criminis. Daí dizer Frederico Marques: "Vérifica-se, portanto, que apersecutio criminis apresenta dois momentos distintos: o da investigação e o da ação penal" (cf. Elementos, cit., p. 130).Como a investigação preliminar, primeiro instante da persecução, comumente está afeta à Polícia, passemos a estudar esse orgão estatal, vendo a sua origem, analisando suas principais funções e, finalmente, detendo-nos no exame de sua mais importante atividade, que é a de investigar as infrações penais e quais seus autores.

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2. Policia

0 vocábulo polícia, do gregopolitéia - de pólis (cidade) - significou, a princípio, o ordenamento jurídico do Estado, governo da cidade e, até mesmo, a arte de governar. Em Roma, o termopolitia adquiriu um sentido todo especial, significando a ação do governo no sentido "de manter a ordem pública, a tranqüilidade e paz interna"; posteriormente,

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passou a indicar "o próprio órgão estatal incumbido de zelar sobre a segurança dos cidadãos".A Polícia, com o sentido que hoje se lhe empresta - órgão do Estado incumbido de manter a ordem e a tranqüilidade públicas -, surgiu, ao que parece, na velha Roma. À noite, os larápios, aproveitando a falta de iluminação, assaltavam a velha urbs, e seus crimes ficavam impunes, porque não eram descobertos. Para evitar aquela situação, criaram os romanos um corpo de soldados que, além das funções de bombeiros, exerciam as de vigilantes noturnos, impedindo, assim, a consumação de crimes.Ao tempo do Império, quando se desenvolveu a cognitio extra ordinem, havia, em Roma, funcionários incumbidos de levar as primeiras informações sobre a infração penal aos Magistrados. Eram os curiosi, os irenarche, os stationarii, os nuntiatores, os digiti duri, que desempenhavam papel semelhante ao da nossa Polícia Judiciária.

3. Divisão

Quanto ao lugar onde desenvolve sua atividade, a Polícia Pode ser terrestre, marítima ou aérea. Quanto à exteriorização, ostensiva ou secreta, conforme desenvolva sua atividade ostensiva ou secretamente. Quanto à organização, pode ser leiga ou de carreira. Finalmente, quanto ao seu objeto, costumam os autores distinguir a Polícia em Administrativa, de Segurança e Judiciária. A primeira é aquela que tem por objeto "as limitações impostas a bens jurídicos individuais", limitações essas que visam assegurar "completo êxito da administração". Como exemplo de Polícia Administrativa, podemos citar a Polícia Aduaneira, a Polícia Rodoviária e a Polícia Ferroviária Federal de que tratam os §§ 2.' e 3." do art. 144 da Lei Maior.

4. Polícia de Segurança

Já a Polícia de Segurança tem por objetivo as medidas preventivas, visando à não-alteração da ordem jurídica. Ela age com certo poder discricionário, isto é, com poderes mais ou menos amplos, sem as limitações impostas pela lei. Não se confunda discricionariedade com arbitrariedade; esta encerra o abuso do poder, prepotência, condenados por lei. A atuação da Polícia de Segurança independe de qualquer autorização judicial.

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Se a Polícia de Segurança estivesse subordinada a quaisquer determinações judiciais, deixaria de ser Polícia de Segurança; desapareceriam suas características especiais, e ela, por vezes freqüentes, atuaria quando a infração que devesse evitarjá estivesse consumada. A Polícia de Segurança, é óbvio, atua dentro da lei, mas, para o seu exercício, independe de quaisquer determinações dos Juízes. Não seria possível nem admissível que a Polícia, para evitar um "tiroteio" ou um "quebraquebrW', devesse procurar as Autoridades Judiciárias a fim de receber autorização para agir.. A função da Polícia de Segurança, confori-ne adverte Sabatini, exterioriza-se em meios preventivos que se realizam para evitar toda possível causa de turbação da ordem jurídica, ou de dano, ou de perigo as pessoas ou as coisas.

5. Polícia Civil

Mas, enquanto a Polícia de Segurança visa a impedir a turbação da ordem pública, adotando medidas preventivas, de verdadeira profilaxia do crime, a Polícia Civil intervém quando os fatos que a Polícia de Segurança pretendia prevenir não puderam ser evitados... ou, então, aqueles fatos que a Polícia de Segurança nem sequer imaginava poderem acontecer..

Até então, a Polícia incumbida dessa tarefa era denominada Polícia Judiciária. Todavia, a Constituição Federal, no art. 144, § 4.', dispõe que: "As polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares".

A Polícia Civil tem, assim, por finalidade investigar as infrações penais e apurar a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos para ingressar em juízo. Ela desenvolve a primeira etapa, o primeiro momento da atividade repressiva do Estado, ou, como diz Vélez Mariconde, ela desempenha uma fase primária da administração da Justiça Penal.

A função precípua da Polícia Civil consiste em apurar as infrações penais e a sua autoria. Sempre vigilante, pondera Pimenta Bueno, ela indaga de todos os fatos suspeitos, recebe os avisos, as notícias, forma os corpos de delitos para comprovar a existência dos atos criminosos, seqüestra os instrumentos dos crimes, colige todos os indícios e provas que pode conseguir, rastreia os delinqüentes, captura-os nos termos da

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lei e entrega-os à Justiça Criminal, juntamente com a investigação feita, para que a Justiça examine e julgue maduramente (cf. Processo penal brasileiro, p. 11).

6. Do inquérito policial

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As Ordenações Filipinas, além de não fazerem distinção entre Polícia Administrativa e Polícia Judiciária, não falavam em Inquérito Policial. 0 Livro 1 tratava das atribuições dos alcaides e da maneira de escolhê-los. 0 Código de Processo surgido em 1832 apenas traçava normas sobre as funções dos Inspetores de Quarteirão, mas tais Inspetores não exerciam atividades de Polícia Judiciária. Embora houvesse vários dispositivos sobre o procedimento informativo, não se tratava do "inquérito policial", com esse nomenjuris.Foi, contudo, com a Lei n. 2.033, de 20-9-1871, regulamentada pelo Decreto-lei n. 4.824, de 28-11-187 1, que surgiu, entre nós, o inquérito policial com essa denominação, e o art. 42 da referida lei chegava inclusive a defini-lo: "0 inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito".A elaboração do inquérito constitui uma das funções da Polícia Civil. 0 Código de Processo, no seu art. 4.", deixa bem clara tal função: "A Polícia Judiciária (Civil) será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria" (redação dada pela Lei n. 9.043, de 95-1995).Onde se lê, no texto supra, "circunscrições", constava "jurisdições", que deve ter o sentido de espaço dentro do qual as Autoridades Policiais têm atribuições para desenvolver suas atividades. De fato, já ponderava Tornaghi, até com sobeja razão, que melhor ficaria no texto do art. 4.' a expressão "circunscrições" em lugar de "jurisdições", pois a jurisdição designa a atividade dos Orgãos Jurisdicionais, isto é, daqueles que podem jus dicere... vale dizer, dos Juízes.A Polícia Judiciária exerce aquela atividade, de índole eminentemente administrativa, de investigar o fato típico e apurar a respectiva autoria. É o conceito que se infere do art. 4.' do CPP. Contudo, o art. 144, § 1.', IV, e § 4.0, da CF distinguem as funções de apurar as infra-

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ções penais e as de Polícia Judiciária. Já que houve tal distinção, é lícito afirmar, nos termos do § 4.' do art. 144 da Lei Maior, que às Polícias civis, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de investigar as infrações penais e sua respectiva autoria, bem como fornecer às Autoridades Judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos; realizar as diligências requisitadas pela Autoridade Judiciária ou Ministério E>Íblico; cumprir os mandados de prisão expedidos pelas autoridades competentes; representar ao Juiz no sentido de ser decretada a prisão preventiva ou temporária; representar ao Juiz no sentido de se proceder ao exame de insanidade mental do indiciado; cumprir cartas precatórias expedidas na área da investigação criminal; colher a vida pregressa do indiciado; proceder à restituição, quando cabível, de coisas apreendidas, realizar as interceptações telefônicas, nos termos da Lei n. 9.296, de 24-7-1996 etc.Já sabemos que o Estado é o titular do jus puniendi. Pois bem: quando se verifica uma infração, o titular do direito de punir, quer dizer, o Estado, desenvolve, inicialmente, uma agitada atividade por

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meio de órgãos próprios, atividade essa que visa colher informações sobre o fato tido como infracional e a respectiva autoria. Essa investigação, ou, se quiserem, essa primeira atividade persecutória do Estado, que, grosso modo, é realizada pela Polícia Judiciária, é informada de uma série de diligências, tais como: buscas e apreensões, exames de corpo de delito, exames grafoscópicos, interrogatórios, depoimentos, declarações, acareações, reconhecimentos que, reduzidos a escrito ou datilografados, constituem os autos do inquérito policial.Se Antônio, na cidade de Bauru, cometeu contra Pedro um crime de lesão corporal, a Autoridade Policial, sabendo do fato, determina a abertura de inquérito policial, isto é, determina sejam feitas as necessárias investigações a respeito daquele fato e acerca da autoria. Tornamse, então, as declarações da vítima, depoimentos das testemunhas que assistiram ao fato ou dele tiveram ciência; submete-se a vítima a exame de corpo de delito, ouve-se o indiciado, isto é, o pretenso autor do crime, procura-se apreender o instrumento do crime, e, caso se consiga, será ele submetido ao competente exame para se constatar sua eficiência. Enfim, colhem-se todas as provas a respeito do fato e da autoria. Isso é inquérito.Colhidas todas essas informações, que são reduzidas a escrito ou datilografadas, a Autoridade Policial faz um relatório de tudo quanto fez

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à frente das investigações e encaminha esses autos de inquérito ajuízo, a fim de que o Estado, por meio de outro órgão próprio, que é o Ministério Público, sobre eles se manifeste, ou iniciando a ação penal com o oferecimento da denúncia, ou requerendo o arquivamento, por entender que o fato não constitui crime ou por se tratar de autoria desconhecida, ou requerendo a decretação da extinção da punibilidade ou, enfim, solicitando sua devolução à Polícia, para que se procedam a outras diligências, desde que imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.Inquérito policial é, pois, o conjunto de diligências realizadas pela Polícia Judiciária para a apuração de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa ingressar em juízo.

7. Finalidade do inquérito

Qual a finalidade do inquérito policial? Pela leitura de vários dispositivos do CPP, notadamente o 4." e o 12, há de se concluir que o inquérito visa à apuração da existência de infração penal e à respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos que o autorizem a promovê-la. Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. Para tanto, a Polícia Civil desenvolve laboriosa atividade, ouvindo testemunhas que presenciaram o fato ou que dele tiveram conhecimento por ouvirem a outrem, tomando declarações da vítima, procedendo a exames de corpo de delito, exames de instrumento do crime, determinando buscas e apreensões, acareações, reconhecimentos, ouvindo o indiciado, colhendo informações sobre todas as circunstâncias que circurivolveram o

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fato tido como delituoso, buscando tudo, enfim, que possa influir no esclarecimento do fato. Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autor do fato infringente da norma, porquanto, não se sabendo quem o teria cometido, não se poderá promover a ação penal. Na verdade, sendo desconhecido o autor do fato infringente da norma, não poderá o órgão do Ministério Público ou o ofendido, se se tratar de crime de alçada privada, dar início ao processo, vale dizer, ingressar em juízo com a denúncia ou queixa, pois o art. 41 do CPP, por razões óbvias, exige, como um dos requisitos essenciais para a peça vestibular da ação penal, a qualificação do réu ou, pelo menos, esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, sob pena de ser a denúncia ou queixa rejeitada por manifesta inépcia formal.

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8. Inquéritos extrapoliciais

0 inquérito, de regra, é policial, isto é, elaborado pela Polícia Civil. Todavia o parágrafo único do art. 4.' do CPP estabelece que "a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função". Observa-se, desse modo, que o dispositivo invocado deixa entrever a existência de inquéritos exeapoliciais, isto é, elaborados por autoridades outras que não as policiais, inquéritos esses que têm a mesma finalidade dos inquéritos policiais.Note-se que o texto do parágrafo único do art. 4." fala em "autoridade administrativa a quem por lei seja cometida a mesma função", isto é, a função de apurar as infrações penais e sua autoria. Como bem disse Tornaghi, o parágrafo quis, apenas, ressalvar a competência de outras autoridades administrativas para procederem a inquéritos.Assim, nos crimes contra a saúde pública, em determinadas infrações ocorridas nas áreas alfandegárias, têm as autoridades administrativas poderes para elaborar inquéritos que possam servir de alicerce à denúncia. Veja-se, ainda, a alínea b do art. 33 da Lei ri. 4.77 1, de 15-91965.

Além disso, quando uma autoridade administrativa, sem aquela função que a lei atribui à Polícia Civil ou mesmo a certas autoridades administrativas, elabora um inquérito administrativo com objetivo de apurar a responsabilidade de um funcionário, caso constate a existência não de simples irregularidade funcional, mas de verdadeiro ilícito penal, deve, pelos canais competentes, fazê-lo chegar às mãos do órgão do Ministério Público para oferecimento de denúncia.Temos também os inquéritos policiais militares, conhecidos pela sigla IPM. Tais inquéritos nada mais são do que investigações levadas a cabo pelas autoridades militares para apurar a existência de crime da alçada da Justiça Militar e suas respectivas autorias. Entretanto, se ao fim das investigações a autoridade competente entender tratar-se de infração da competência da Justiça Comum, remeter-lhos-á e, se for o caso, o órgão do Ministério Público oferecerá denúncia embasado nas informações colhidas naquele inquérito policial-militar.

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A investigação ainda pode ficar a cargo do próprio Juiz. Tal ocorre nos crimes falimentares, como se constata pelos arts. 103 a 108 da Lei Falencial. Esse inquérito é denominado "judicial", justamente porque

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presidido pelo Juiz de Direito da Vara por onde esteja tramitando o processo de falência. Além dessa particularidade, existe outra de especial relevo: o art. 106 da Lei Falimentar permite possa o falido, que é o indiciado, contestar as argüições contidas nos autos do inquérito e requerer o que entender conveniente. É com base nesse inquérito que o órgão do Ministério Público oferece denúncia por crime falimentar.A Lei n. 1.579, de 18-3-1952, dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito, que, como o nome está a indicar, procedem a investigações de maior vulto, e, caso a Comissão constate a existência de crime da alçada da Justiça Comum, pode o órgão do Ministério Público, com base naqueles inquéritos parlamentares, praticar o ato instaurador da instância penal, isto é, oferecer denúncia.Temos ainda o inquérito civil criado pela Lei n. 7.347, de 24-71985. Tal inquérito, presidido pelo órgão do Ministério Público, tem por objetivo colher elementos para a propositura da ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.Conclui-se, pois, que os inquéritos nem sempre são policiais; os extrapoliciais têm a mesma finalidade.

9. Competência

A quem cabe a presidência do inquérito? Normalmente, à Autoridade Policial. Em alguns casos, não. Vejam-se, a propósito: a) o art. 40, parágrafo único, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n. 8.625, de 12-2-1993); b) o art. 43 e respectivo parágrafo do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal; c) a Stimula 397 do Supremo Tribunal Federal; e d) o art. 33 da Lei Complementar n. 35, de 14-31979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional).Salvante esses casos, excluída a ressalva feita pelo parágrafo único do art. 4." do CPP, e deixando de lado os inquéritos extrapoliciais (militar, judicial, parlamentar), a competência para a realização de inquéritos policiais é distribuída a autoridades próprias, de acordo com as normas de organização policial dos Estados. Essas autoridades são normalmente Delegados ou Comissários que dirigem as Delegacias de Polícia, e, em se tratando de infrações da alçada da Justiça Comum Federal, a competência é dos Delegados de Polícia Federal, nos termos do art. 144, § L% 1, da CF.

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A expressão "competência" é aqui empregada no seu sentido vulgar: poder atribuído a um funcionário de tomar conhecimento de determinado assunto.

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Há entendimento no sentido de que o art. 144, § 4.", da Constituição Federal não mais permite seja o inquérito, nas infrações penais comuns, presidido por outra autoridade que não a policial. Na verdade, assim dispõe o citado parágrafo: "As polícias civis, dirigidas por delegados~4k polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares".A toda evidência não ficou excluída a existência dos inquéritos judiciais nas falências, nem tampouco aquela competência referida na Lei Complementar n. 40/8 1, na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, na Súmula 397 etc. 0 preceito constitucional quis, apenas e tão-somente, dizer o que compete à Polícia Civil. 0 que o preceito constitucional quis, também, foi excluir aqueles delegados que não eram de carreira, muito comum nos Estados do Norte e Nordeste. Cabos e Sargentos da PM normalmente exerciam as funções de Delegado de Polícia. Agora, não. A função de investigar o fato típico não mais poderá ser por eles exercida. Se, por acaso, a Constituição dissesse que tal competência passaria a ser privativa da Polícia, o entendimento seria outro. Aliás, quando da promulgação da Lei Complementar n. 40 (Lei Orgânica do Ministério Público) houve muita gente que afirmou que o procedimento ex officio havia sido expungido do nosso ordenamento, pela simples razão de o art. 3." daquele diploma dizer ser função institucional do Ministério Público a propositura da ação penal pública... E o Supremo Tribunal Federal pôs as coisas no seu devido lugar, através da Súmula 601: "Os arts. 3.', 11, e 55 da Lei Complementar n. 40/81 (Lei Orgânica do Ministério Público) não revogaram a legislação anterior que atribui a iniciativa para a ação penal pública, no processo sumário, ao Juiz ou à autoridade policial, mediante Portaria ou Auto de Prisão em Flagrante"...Posteriormente, a Constituição de 1988 resolveu abolir o procedimento ex officio, dispondo no art. 129, 1, que a ação penal pública é privativa do Ministério Público. Mutatis mutandis, o mesmo equívoco cometido por aqueles que atribuíram ao art. 3." da Lei Orgânica do Ministério Público um alcance muito maior que o delimitado em lei é renovado, agora, no que respeita às funções da polícia civil.A distribuição da competência, grosso modo, é feita ratione loci, isto é, levando-se em consideração o lugar onde se consumou a infra-

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ção. Sabemos que os Estados, para efeito de administração, são divididos em pequenas áreas territoriais denominadas municípios e distritos. Em cada município e até mesmo distrito (dependendo da importância deste) há uma Autoridade Policial para proceder às investigações a respeito de infração penal e sua autoria. Para superintender os serviços afetos às Delegacias de Polícia de municípios e distritos, há, no Estado de São Paulo, os Delegados Seccionais, que supervisionam os serviços afetos às Delegacias de sua Secção, que abrange um determinado número de municípios e distritos.

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Assim, se ocorreu um crime no município de Bagé, a Autoridade Policial competente para investigar tal fato será o Delegado de Polícia de Bagé. Se aí houver vários Delegados de Polícia, qualquer um deles será competente. Se o crime se consumou em Jequié, o inquérito deverá ser elaborado pelo Delegado de Polícia de Jequié, e assim por diante. 0 próprio art. 4.' diz: "A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas jurisdições ......Nada obsta, entretanto, que se proceda à distribuição da competência ratione materiae, isto é, levando-se em conta a natureza da infração. E, na verdade, nos grandes centros, faz-se a distribuição não só ratione loci, como também ratione materiae. Tal ou tais critérios são ditados pelas vantagens que a divisão do trabalho proporciona. Quando determinado órgão da Polícia tem competência ratione materiae, fala-se em órgão especializado ou simplesmente "Delegacia Especializada", querendo essa expressão significar que tal ou qual Delegacia tem competência para elaborar inquérito a respeito desta ou daquela infração penal.

Na Grande São Paulo por exemplo, há, atualmente, 102 Delegacias de Polícia. São Delegacias de Distrito, Delegacias de determinadas Circunscrições e que, por isso mesmo, compreendem vários bairros. VejaMOS: 1.a) Sé; 2.') Bom Retiro; 3.') Campos Elíseos; 4 a) Consolação; 5.') Aclimação; 6.) Cambuci; 7 a ) Lapa; 8 a ) Brás-Belém; 9.') Carandiru; 1 0.a) Penha; 1 1.a) Santo Amaro; 12 a) Pari; 13 a) Casa Verde; 14.') Pinheiros; 15.') Itaim Bibi; 16 a) Vila Clementino; 17 a) lpiranga; 18.') Alto da Mooca; 19.a) Vila Maria; 20 a) Água Fria; 21 a) Vila Matilde; 22.a) São Miguel Paulista; 23 a) Perdizes; 24 a ) Ermelino Matarazzo; 25. a) Parelheiros; 26 a) Sacomã; 27 a) Campo Belo; 28 a ) Freguesia do ó; 29.') Vila Diva; 30.') Tatuapé; 3 1.a) Vila Carrão; 32 a) ltaquera; 33 a) Pirituba; 34 a) Vila Sônia; 35 a) Jabaquara; 36 a) Vila Mariana; 37 a) Campo Limpo; 38.') Vila Amália; 39 a) Vila Gustavo; 40 a) Vila Santa Maria; 41 a)

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Vila Rica; 42.') Parque São Lucas; 43.') Cidade Ademar; 44.) Guaianazes; 45.') Vila Brasilândia; 46.') Perus; 47.') Capão Redondo; 48.') Cidade Dutra; 49.') São Matheus; 50.') Itaim Paulista; 5 U) Rio Pequeno; 52 a) Parque São Jorge; 53.') Parque do Carmo; 54.') Cidade Tiradentes; 55. a) Parque São Rafael; 56 a) Vila Prudente; 57 a ) Parque da Mooca; 58.') Vila Formosa; 59 a) Jardim dos Ipês; 60 a) Vila Esperança; 61 a) Cangalba; 62 a) Jardim Popular; 63 a) Vila Jacuí; 64.') Cidade A. E. Carvalho; 65.') Artur Aiim; 66 a) Jardim Aricanduva; 67 a) Jardim Robru; 68 a ) Lageado; 69.') Jardim Centenário; 70.') Vila Ema; 71.') Santana; 72 a) Curuçá; 73 a) Jaçanã; 74 a) Jardim Damasceno; 75.') Anhangabaú; 76.') D. Pedro 11; 77.') Santa Efigênia; 78 a) Paulista; 79 a ) Bela Vista; 80 a ) Aclimação (é a 5.' e a 80 a) ; 81 a ) Belém; 82 a) Canindé; 83 a) City Lapa; 84.') Vila Madalena; 85 a) Vila Nova Conceição; 86 a ) Barra Funda; 87 a) Vila Pereira Barreto; 88.') Cidade Jardim; 89.') Jardim Taboão; 90.') Jaraguá; 91.a) Jaguaré; 92 a) Jardim São Luiz; 93.') Saúde; 94 a) Jardim São Bernardo; 95 a) São João Clímaco; 96 a) Monções; 97 a ) Americanópolis; 98 a) Jardim Miriam; 99.a) Campo Grande; 100.a) Jardim Ângela; 101.a) Jordanópolis; 102.') Socorro.

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Em cada uma dessas circunscrições, há Autoridades Policiais com atribuições para proceder às investigações sobre infrações penais cometidas nos respectivos territórios circunscricionais.

Assim, se alguém cometer uma infração na rua Clélia, como esta rua está situada na Lapa, a Autoridade Policial competente para elaborar o inquérito será aquela da circunscrição a que pertencer a Lapa. Ora, aa zona da Lapa integra a 7. Delegacia Circunscricional e, portanto, será o Delegado dessa Circunscrição o competente.

Por outro lado, cada grupo de Delegacias Circunscricionais, ou distritais, sujeita-se à supervisão de um Delegado Seccional, e, além disso, cada grupo de Delegacias Seccionais subordina-se a uma Delegacia Regional.

Assim, a 1.a Delegacia Regional compreende as Delegacias Seccionais das Zonas Sul, Centro e Oeste. A 2.' Delegacia Regional da Capital abrange as Delegacias Seccionais das Zonas Norte e Leste. Existe, também, a Delegacia Regional de Polícia da periferia, à qual se subordinam a Delegacia Seccional de Polícia do ABCD e a de Guarulhos.

A divisão da Grande São Paulo em pequenas áreas territoriais, chamadas "circunscrições", é de manifesta utilidade, pelas vantagens que

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proporciona ao bom desempenho da atividade policial. Assim, a Grande São Paulo funciona como se fosse um pequeno Estado, e as Delegacias Circunscricionais, como Delegacias de municípios.No interior, a Autoridade Policial, fora do seu município, não pode atuar diretamente. Se precisar praticar qualquer ato relacionado com o seu ofício em outro município, somente poderá fazê-lo por intermédio da respectiva Autoridade Policial local. Por exemplo: se o Delegado de Polícia de Agudos estiver elaborando um inquérito policial e uma das testemunhas do fato residir em Jaú, não poderá aquela Autoridade ir a Jaú ouvi-Ia e, muito menos, obrigá-la a comparecer à Delegacia de Agudos. Deverá a Autoridade Policial de Agudos, aplicando por analogia o disposto no art. 222 do CPP, fazer expedir carta precatória, solicitando ao seu colega de Jaú a tomada do depoimento daquela testemunha.Na Capital, ou mesmo em outra comarca em que haja mais de uma circunscrição policial, não haverá necessidade de tais expedientes. Uma Autoridade Policial de determinada circunscrição pode, nos inquéritos a que esteja procedendo, ordenar diligências em outras circunscrições, independentemente de precatória, requisições ou solicitações, nos precisos termos do art. 22 do CPP.Por outro lado, cumpre esclarecer que a Polícia Civil de São Paulo exerce suas atividades repressivas, preventivas, técnicas e administrativas por meio de grandes órgãos, que são os Departamentos, chefiados pelos Delegados -Diretores.

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Atualmente, em face dos Decretos n. 20.872/83; 21.754183; 24.9181 86; 27.082/87; 24.919186; 27.314/87 e 27.409/87, a Polícia Civil no Estado de São Paulo passou a ter a seguinte estrutura básica:1 - órgão de direção geral: Delegacia Geral de Polícia (DGP).11 - órgãos de apoio à Delegacia Geral de Polícia:a) Corregedoria-Geral de Polícia (CORREGEPOL);b) Departamento de Planejamento e Controle da Polícia Civil (DEPLAN);c) Departamento de Administração da Delegacia Geral (DADG).111 - Orgãos de execução:a) Departamento das Delegacias Regionais de Polícia da Grande São Paulo (DEGRAN);b) Departamento das Delegacias Regionais de Polícia São PauloInterior (DERIN), compreendendo, dentre outros setores, 48 Delegacias Seccionais de Polícia e 11 Delegacias Regionais de Polícia;

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c) Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC);d) Departamento Estadual de Polícia do Consumidor (DECON); e) Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP); J) Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil (DCS); g) Departamento Estadual de Investigações sobre Narcóticos (DENARC);h).Repartamento Estadual de Trânsito (DETRAN).IV - órgãos de apoio aos órgãos de execução:

a) Departamento Estadual de Polícia Científica (DEPC);b) Academia de Polícia (ACADEPOL).

V - órgão consultivo: Conselho de Polícia Civil (CPC).

Vimos, assim, que, ao lado da competência fixada pelo lugar da infração, há, também, a competência fixada pela natureza da infração (ratione materiae), sendo que, de regra, essa competência é fixada, em São Paulo, exatamente pelo intenso movimento do município.

Desse modo, se ocorre uma infração contra a Fazenda na Capital do Estado, cumpre à respectiva "Especializada" elaborar o inquérito, pouco importando o bairro onde tal crime se tenha consumado. E se ocorrer no interior? Nada impede que o próprio Delegado de Polícia elabore o inquérito ou, então, comunique-se com a Especializada, e esta, se achar conveniente, vá ao interior proceder à investigação.Analisadas as competências ratione materiae e raflone loci, convém frisarmos: se, porventura, ocorrer um crime de furto na Mooca e a vítima levar a notícia do crime à Autoridade Policial de outra circunscrição, e esta, sem maior exame, elaborar o inquérito, será este imprestável, nulo? Não. Houve mera irregularidade. Tratando-se, como se trata, de inquérito policial, peça informativa de valor probatório relativo, não se pode exigir tamanha formalidade. Diga-se até, de passagem, que mesmo a incompetência relativa dos Juízes anula apenas os atos decisórios, quanto mais em se tratando de inquérito policial.

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Suponha-se mesmo que o crime de furto ocorreu no município de São Paulo e, porfas ou por nefas, a notitia criminis foi levada à Autoridade Policial de Santo André, e esta, desavisadamente, elaborou o inquérito. Concluído, será ele remetido ao Fórum, e, então, o órgão do Ministério Público, observando que o crime se consumou em São Paulo, limitar-se a requerer ao Juiz a remessa dos autos àquela Comarca, onde deverá tramitar o processo.

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Tratando-se de prisão em flagrante, a autoridade competente não é a do lugar onde ocorreu o crime, e sim a do lugar onde se efetivou a prisão (CPP, art. 308), mas os atos ulteriores serão praticados pela Autoridade Policial do lugar onde ele se consumou.

10. 0 inquérito é indispensável?

0 inquérito policial é peça meramente informativa. Nele se apuram a infração penal com todas as suas circunstâncias e a respectiva autoria. Tais informações têm por finalidade permitir que o titular da ação penal, seja o Ministério Público, seja o ofendido, possa exercer ojus persequendi in judicio, isto é, possa iniciar a ação penal.Se essa é a finalidade do inquérito, desde que o titular da ação penal (Ministério Público ou ofendido) tenha em mãos as informações necessárias, isto é, os elementos imprescindíveis ao oferecimento de denúncia ou queixa, é evidente que o inquérito será perfeitamente dispensável. E claro que se exige o inquérito para a propositura da ação, porque, normalmente, é nele que o titular da ação penal encontra elementos que o habilitam a praticar o ato instaurador da instância penal, isto é, a oferecer denúncia ou queixa. Todavia, conforme vimos, não é o inquérito necessariamente imprescindível. 0 próprio art. 12 do CPP deixa bem claro esse raciocínio: "0 inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra".E possível, pois, que a denúncia ou a queixa não se faça acompanhar do inquérito... Em que hipótese? Quando o inquérito não lhe servir de base, isto é, quando a denúncia ou queixa puder ser oferecida sem inquérito...E não é só: o art. 27 do CPP dispõe que qualquer pessoa do povo poderá provocar a iniciativa do Ministério Público, fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato e a autoria e indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção.Recebendo, assim, de qualquer pessoa do povo, nos casos em que caiba ação pública, os elementos imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, para que inquérito? Servir-lhe-ão de base apenas aqueles elementos de convicção.Mais ainda: o art. 39, § 5.', do CPP acentua que o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito se, com a representação, forem ofe-

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recidos elementos que o habilitem a promover a ação penal. Neste caso, a denúncia será oferecida no prazo de 15 dias.Por derradeiro: estabelece o § 1.' do art. 46 do mesmo estatuto: "Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informação ou a representação".Diga-se o mesmo em relação aos crimes de alçada privada. Se o ofendid~ ou o seu representante legal tiver em mãos os elementos necessarios a propositura da ação, poderá iniciá-la, sem necessidade de recorrer à Polícia para a feitura de inquérito. Elucidativa a palavra do eminente Espínola Filho: "dada a sua finalidade, bem se compreende que não é muito aconselhável prescindir-se dele, pela possibilidade de vir a apurar fatos e circunstâncias ainda desconhecidas que possam, eficazmente, contribuir para a consecução da verdade. Mas, se está a parte privada ou o Ministério Público na posse de todos os elementos, pode, sem necessidade de requerer a abertura de inquérito, oferecer, desde logo, a sua queixa ou denúncia, o que, muita vez, é um procedimento obrigatório, dado o risco da prescrição iminente ou mesmo da decadência do direito de queixa".0 que não se compreende, na sistemática processual penal brasileira, é a propositura de ação penal sem o indispensável suporte fático. Estando em jogo a liberdade individual, será rematada violência a instauração de processo-crime contra alguém sem que a peça acusatória esteja amparada, arrimada em elementos sérios, indicando ter havido a infração e que o acusado foi o seu autor.0 processo criminal, diz, com acerto, Ada P. Grinover, representa, por si só, um dos maiores dramas para a pessoa humana; por isso e que um mínimo de "fumo de bom direito" há de exigir-se, para que se leve adiante o processo (cf. As condições da ação pena~, Bushatsky, 1977, p. 129). Para a instauração de um processo não são necessárias provas capazes de gerar um juízo de certeza da veracidade da imputação; basta qu e tomem verossímil a acusação. 0 que não se concebe é uma acusação carente de elementos de convicção. Na verdade, tais elementos, de regra, são colhidos melhormente pela Polícia. Às vezes, contudo, a acusação encontra-os com facilidade.Suponha-se que, num processo-crimejá findo, ou por findar-se, se constate que a testemunha Belmiro mentiu deslavadamente sobre fato relevante. Ficou demonstrado, pelos demais test emunhos, que seu de-

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poimento foi exageradamente prestativo. Haverá, neste caso, necessidade de inquérito para o oferecimento de denúncia pelo crime de falso testemunho? Claro que não. Com as certidões dos depoimentos estará o órgão do Ministério Público habilitado a oferecê-la.Nos crimes de imprensa a denúncia ou queixa normalmente é instruída com um exemplar do jornal em que se publicou a notícia caluniosa, difamatória ou injuriosa, e, se praticado crime por radiodifusão, basta para instruir a peça acusatória a notificação judicial ou extrajudicial dirigida à empresa para não se desfazer do texto do programa em que se divulgou a notícia contumeliosa, nos termos do art. 43 da Lei n. 5.250/67.

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Nos crimes de que trata a Lei n. 6.368176, ocorrendo prisão em flagrante, a Autoridade Policial, além da imediata comunicação da prisão ao Juiz competente, dentro de 5 dias lhe encaminha o auto de prisão acompanhado do laudo de constatação, nos termos do art. 21 do citado diploma, e, com respaldo nesses elementos, a denúncia é ofertada.0 art. 12 da Lei n. 4.898165 dispõe que a ação penal será iniciada, independentemente de inquérito policial ou justificação, por denúncia do Ministério Público, instruída com a representação da vítima do abuso.Por todas essas razões, é de se concluir que o inquérito não é necessariamente indispensável à propositura da ação penal.

11. Natureza do inquérito

Nos termos do art. 9." do CPP, todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade. 0 inquérito é, pois, escrito.Em muitos Estados da Federação, até há pouco tempo, as peças do inquérito policial eram simplesmente reduzidas a escrito. Hoje, não só no Estado de São Paulo, como nos demais, todas as peças do inquérito são datilografadas. Datilografando-se, ganha-se tempo; não haverá necessidade de se "interpretar" a caligrafia dos Escrivães de Polícia, e, além dessas vantagens, as peças datilografadas sujeitam-se menos a borrões motivados por água ou substância análoga.Atendendo à sua finalidade, que outra não é senão a de prestar as devidas informações ao titular da ação penal, e informações que irão dar-lhe arrimo, não se concebe a existência de inquérito policial oral.Certo que até hoje a legislação francesa fala emprocés verbaux, e a legislação italiana mantém a denominação processo verbale, mas tais

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expressoes - do uso surgido dos tempos em que os Juízes eram ignorantes e o Direito muito incerto (cf. A. Buzaid, Estudos de direito, 1972, p. 243) - são conservadas apenas pela tradição, pois tais processos verbais são... escritos.

Além de escrito, ele ainda é sigiloso. Se o inquérito policial visa à investigação, à elucidação, à descoberta das infrações penais e das respectivas autorias, pouco ou quase nada valeria a ação da Polícia Civil senão p1111esse ser guardado o necessário sigilo durante a sua realização. 0 princípio da publicidade, que domina o processo, não se harmoniza, não se afina com o inquérito policial. Sem o necessário sigilo, diz Tômaglii,

o inquérito seria uma burla, um atentado. Se até mesmo "na fase judicial a lei permite ou impõe o sigilo", quanto mais em se tratando de simples investigação, de simples colheita de provas. 0 art. 486 do CPP não faz assegurar o sigilo da votação? Na apreciação do pedido de reabilitação, o Juiz não pode ordenar as diligências necessarias, cercando-se do sigilo possível, como salienta o art. 745 do CPP? 0 que diz o § U' do art. 792 do mesmo diploma? Apenas isto: "Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente

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grave ou perigo de perturbação da ordem, o Juiz, ou o Tribunal, Câmara, ou Turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de ess---

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P que possam estar presentes".Ora, se em juizo o Princípio da publicidade sofre restrições, não é de estranhar deva haver sigilo na fase do inquérito policial, na fase em que se colhem as primeiras informações, os pr~meiros elementos de convicção a respeito da existência da infração penal e sua autoria.

A propósito, assim dispõe o art. 20 do CPP:

"A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade".

Com muito acerto observa Amintas Vidal, no seu excelente Manual do delegado: Impor-se-á a providência no primeiro caso, se se admitir que a divulgação das diligências venha a causar embaraços ao desvendamento do fato que esteja em investigação, bem como das suas circunstâncias, por dar azo a que os responsáveis, por seus parentes, desfaçam vestígios da ação principal, ocultem instrumentos, destruam papéis, removam valores, afastem ou subordinem testemunhas, ou, por

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outra forma, anteponham barreiras aos trabalhos de elucidação. A localização do indigitado criminoso tornar-se-ia mais difícil, sem dúvida, se ele viesse a ter ciência, por qualquer via, das diligências projetadas ou em curso, visando à sua captura.Por outro lado, conforme acentua Espínola Filho, crimes há cuja repercussão no meio social pode causar sérios danos à tranqüilidade pública e, por isso, às vezes, o interesse da sociedade exige a sigilação.

Pondere-se, contudo, que, muita vez, o sigilo pode causar embaraços à ação da Autoridade Policial. Em certos casos, torna-se necessária a publicação da fotografia do criminoso em jornais e até mesmo sua retransmissão pela televisão, com a divulgação do fato. Os jornais, rádio e televisão passam, então, a contar o que houve e quem teria sido o autor do crime, permitindo, assim, que os bons cidadãos possam, de qualquer modo, colaborar com as autoridades. Sem embargo disso, a regra ainda é a sigilação. E claro que tal sigilação não é exigida em todo e qualquer inquérito. Apenas naquelas hipóteses apontadas no art. 20.

Com o sigilo haverá restrição à defesa? Evidentemente, não. Se no inquérito não há acusação, claro que não pode haver defesa. E, se não pode haver defesa, não há cogitar-se de restrição de uma coisa

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que não existe. Por isso mesmo os Advogados dos indiciados, quando se fizer necessário o sigilo, não podem acompanhar os atos do inquérito policial. Este é mera colheita de provas, mero procedimento informativo sobre o fato infringente da norma e sua autoria. Ojus accusationis não se exerce nessa fase. A acusação inicia-se com o oferecimento da denuncia ou queixa. Proposta a ação, sim, é que deve haver o regular contraditório, erigido, aliás, entre nós, à categoria de dogma constitucional, como se infere do inc. LV do art. 5.' da CF (a propósito, RT, 522/396, e DJU, 169-1977, p. 628).Argumenta-se, com base nesse dispositivo constitucional, que, mesmo na fase do inquérito, a defesa deverá ser plena. Há, entretanto, manifesto equívoco. 0 texto constitucional fala em "acusados", e no inquérito policial não há "acusados", e sim "indiciados". 0 que o legislador quis dizer e o que realmente diz olexto legal é que em j uízo, isto é, iniciada a acusação, Defesa e Acusação devem situar-se no mesmo plano, com os mesmos direitos, embora colocados em pólos opostos, e, então, a

defesa será ampla, "com todos os recursos essenciais a ela E em queconsistirá essa ampla defesa? Responde o saudoso Frederico Marques:em resguardar os "direitos fundamentais" do indiciado, como é, por exem-

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plo, o direito à liberdade, pois a Polícia não pode, sem autorização judicial, prender quem quer que seja a não ser em flagrante delito.

Se a Polícia, durante a elaboração de um inquérito, sem que houvesse flagrante ou ordem escrita do Juiz para prender o indiciado, prendesse-o, estaria a Autoridade Policial cometendo arbitrariedade e, assim, além de se poder responsabilizar a autoridade atrabiliária, o indiciado ou alguém por ele poderia fazer uso do habeas corpus, "recurso" essencia4^ defesa do seu direito de ir e vir...

Se se tratar de infração apenada com detenção, ou prisão simples, e a autoridade recusar-se a conceder-lhe a fiança, o preso, ou alguém por ele, valendo-se daquela garantia de que ninguém será levado à prisão ou nela detido se prestar fiança nos casos em que a lei a permite, poderá, então, fazer valer o seu direito, bastando, para isso, simples petição dirigida ao Juiz competente, nos termos do art. 335 do CPP.

Outro sentido não tem nem pode ter o texto constitucional, que fala em "ampla defesa com os recursos essenciais a ela", sob pena de se transformar o inquérito em verdadeira instrução e ser admitida, também, a ingerência do Ministério Público, no sentido de fazer reperguntas etc., como se estivesse atuando em juízo. Seria um contra-senso sem nome se isso ocorresse.

Por outro lado, nada de extraordinário existe quando o órgão do Ministério Público acompanha o desenrolar das investigações policiais, porquanto é o Ministério Público o titular da ação pública, e ninguém melhor que ele para acompanhar aquelas diligências preliminares.

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Países há onde as investigações preliminares são realizadas pela Polícia em estreita colaboração com os membros do Ministério Público. Assim, por exemplo, na França, 1a police judiciaire agit en étroite collaboration avec les membres du ministère public, auxquels elle est d'ailleur étroitement subordonnée... " (a Polícia Judiciária atua em íntima colaboração com os membros do Ministério Público, aos quais ela está, aliás, estritamente subordinada) - cf. André Vitu, Procédure, cit., p. 30.

0 Código Procesal Penal de Córdoba, no art. 189, acentua que "los oficiales y auxiliares de la Policía Judicial... cumplirán susfunciones bajo la superintendencia directa del Ministerio Fiscal ......

Na Alemanha, o Ministério Público pode proceder às diligências preliminares para a propositura da ação penal, e tal procedimento preparatório (vorbereitendes Verfahren) é um verdadeiro inquérito. Esse pro-

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cedimento é denominado "stawanwaltschaffiches Ennitt1ungsverfiahren" (procedimento de investigação do Ministério Público). A pesquisa do crime (Hanzai no kosa), no Japão, que outra coisa não é senão um inquérito, pode ser levada a cabo pelo Ministério Público.E, sem embargo da participação do órgão do Ministério Público no transcorrer das investigações, não se permite a intromissão da Defesa. "Dans Ia pliase policière du procès pénal, le defenseur n'a pas le droit d'irítervenir...", diz Donnedieu de Vabres, a propósito das investigações preliminares na França.

E César Salgado, que por muitos anos perolou no Ministério Público paulista, com sobeja razão observou: Imagine-se a que extremos de inanidade se reduziria a ação do Estado, em face do crime, se fosse permitido colocar-se um Advogado à ilharga da Autoridade Policial, durante o inquérito...Seria perfeito contra-senso admitir-se o contraditório em atos processuais inquisitivos, que traduzem mera atividade administrativoinvestigatória fora da relação processual, conforme ensina Massari. Não teria sentido admitir-se o contraditório na primeira fase da persecutio criminis, em que o cidadão-indiciado é apenas objeto de investigação e não um sujeito de direito de um procedimento jurisdicionalmente garantido, como diz Birkemayer (Justitia, 191149).Note-se, por último, que entre nós, quando o membro do Ministério Público intervém no inquérito, fá-lo como custos legis, e, como observa César Salgado, a sua presença na Polícia é garantia dos interesses do imputado; a melhor prova da veracidade de tal acerto são as reiteradas solicitações da defesa a fim de que o membro do Ministério Público acompanhe o inquérito (cf. Direito, cit., p. 150).Somente no Brasil é que se pretende transformar inquérito em verdadeira instrução...

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Nem mesmo na França, que até hoje se vangloria de ser a pátria da liberdade, admite-se a intervenção da defesa na fase policial. E mais até: não é só durante o inquérito (la poursuite) que o defensor não pode intervir. Até mesmo na fase da instrução não se admite a defesa, e, mesmo quando o Juiz instrutor remete o processo à "Chambre d'aceusation", que exerce o juízo de acusação, o processo continua sendo secreto... 1a chambre d'accusation demeure entièrement non contradictoire..." (Vitu, Procédure, cit., 1957, p. 271).

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Somente na fase do julgamento é que o processo se torna público e contraditório...No Brasil, entretanto, a luta tem sido ingente para não se permitir a ingerencia da Defesa na fase policial. Observe-se que, se Pedro pretende mover ação investigatória de paternidade contra Leão, evidentemente não teria sentido procurasse Leão e solicitasse o seu auxílio na colheita de provas para a propositura da ação... Pois bem: faz sentido o Estado~Titular do direito de punir e da "poursuite", convidar um representante do indiciado para auxiliá-lo na colheita de provas, para, posteriormente, acusá-lo? Seria um disparate inqualificável. Note-se que todas as provas colhidas na fase policial poderão ser renovadas em juizo, sob o crivo da Defesa. Poder-se-ia, todavia, permitir que naquelas perícias que, pelo passar do tempo, não puderem ser renovadas, a Defesa tivesse a oportunidade de formular quesitos. Até aí sim. Mas o que não se admite, pela manifesta absurdidade, é a intromissão da Defesa durante o inquérito, de molde a conhecer as diligências já realizadas e aquelas por realizar, pois, se tal fosse possível, a não ser em casos raros, as infrações cujas investigações exigissem sigilo dificilmente seriam descobertas...Sem embargo disso, o Estatuto da Advocacia (Lei n. 8.906194) dispõe, no seu art. 7.', serem direitos do advogado: '111 - comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis"; XIV - "examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos".É verdade que o § 1.' do art. 7.' faz restrições. Estas, contudo, não alcançam os incs. 111 e XIV do art. 7.'.Como o Estatuto da Advocacia é lei federal, e posterior ao CPP, logo, o sigilo dos inquéritos praticamente desapareceu.Tecnicamente, não há que se cuidar, pois, de sigilo...0 inquérito também é inquisitivo. Fácil constatar- se-lhe esse caráter. Se a Autoridade Policial tem o dever jurídico de instaurar o inquerito, de ofício, isto é, sem provocação de quem quer que seja (salvante algumas exceções); se a Autoridade Policial tem poderes para empreender, com certa discricionariedade, todas as investigações necessárias à elucidação do fato infringente da norma e à descoberta do respectivo autor; se o indiciado não pode exigir sejam ouvidas tais ou quais teste-

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munhas nem tem o direito, diante da Autoridade Policial, às diligências que, por acaso, julgue necessárias, mas, simplesmente, pode requerer a realização de diligências e ouvida de testemunhas, ficando, contudo, o deferimento ao prudente arbítrio da Autoridade Policial, nos termos do art. 14 do CPP (salvo em se tratando de exame de corpo de delito ou de diligência imprescindível ao esclarecimento da verdade, ficando esta última ajuízo da autoridade, nos termos do art. 184 do CPP); se o inquérito policial é eminentemente não contraditório; se o inquérito policial, por sua própria natureza, é sigiloso; podemos, então, afirmar ser ele uma investigação inquisitiva por excelência. Durante o inquérito, o indiciado não passa de simples objeto de investigação, Nele não se admite o contraditório. A autoridade o dirige secretamente. Uma vez instaurado o inquérito, a Autoridade Policial o conduz à sua causa finalis (que é o esclarecimento do fato e da respectiva autoria), sem que deva obedecer a uma seqüência previamente traçada em lei. Ora, o que empresta a uma investigação o matiz da inquisitorialidade é, exatamente, o não permitirse o contraditório, a imposição da sigilação e a não-intromissão de pessoas estranhas durante a feitura dos atos persecutórios. Nela não há Acusação nem Defesa. A Autoridade Policial, sozinha, é que procede à pesquisa dos dados necessarios a propositura da ação penal. Por tudo isso, o inquérito é peça inquisitiva.Constata-se também esse caráter inquisitorial do inquérito pela análise do art. 107 do CPP, que assim dispõe:

"Não se poderá opor suspeição às autoridades policiais nos autos do inquérito, mas deverão elas declarar-se suspeitas, quando ocorrer motivo legal".

Tal dispositivo é uma decorrência do caráter inquisitivo do inquérito policial, pois que o indiciado não é um sujeito de direito em face da Autoridade Policial, mas, sim, um objeto de investigação. Todavia, havendo motivo legal que torne a Autoridade Policial suspeita, deverá ela abster-se de funcionar no inquérito, pois, certamente, seria um rematado disparate que o Estado, procurando fazer justiça, fosse permitir que a investigação policial ficasse a cargo de autoridade... suspeita, podendo, com sua conduta, causar vexames aos indiciados ou, então, não colher elementos probatórios sérios, que poderia ter colhido, criando obstáculo à persecutio criminis in judicio. Deverá, pois, a autoridade, havendo motivo legal de suspeição (art. 254, por analogia), deixar de intervir nos autos do inquérito. Mas o que não se admite é poder o indiciado

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ou mesmo a vítima opor suspeição à Autoridade policial, tal qual podem fazer as partes em relação ao Juiz, ao Promotor e aos Serventuários ou Funcionários da Justiça.Com acerto preleciona Espínola Filho: o que não se permite é as partes argüirem, de suspeitas, as Autoridades Policiais que procedem a

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inquéritos, medida de evidente prudência, pois as investigações policiais seriam, a todo transe, perturbadas na sua marcha normal, exigindo celeriÀ*de e independência de movimentos, pelas constantes argüições dos que têm os seus passos sujeitos à sindicância da Autoridade Poli-cial, sempre dispostos a, por isso, se considerarem perseguidos e vítímas de inimizades capitais" (Comentários, cit., 1954, v. 2, p. 284).

Observe-se, ainda, que os únicos inquéritos que admitem o contraditório são o falimentar, consoante o art. 106 da Lei de Falências, e o inquérito administrativo, cuja instauração é determinada à Polícia Federal, pelo Ministro da Justiça, visando à expulsão de estrangeiro, nos termos do art. 102 do Regulamento da Lei ri. 6.815/80.

Note-se, ainda, esta particularidade: neste último caso, o inquérito é mesmo contraditório, obrigatoriamente contraditório.Na hipótese do inquérito falimentar, o art. 106 da Lei de Falências confere ao falido o prazo de 5 dias para contestar as argüições contidas

nos autos do inquérito e requerer o que entender conveniente. Contudo, tal prazo corre em cartório, consoante dispõe o art. 204 do estatuto falimentar. Assim, se o falido tomar ciência, poderá contraditar. Senão, não. 0 inquérito falimentar, portanto, pode ser contraditório.

12. Incomunicabilidade

Incomunícabílídade é qualidade de incomunicável. Incomunicável significa: que não tem comunicação, que não deve comunicar-se. Quando se diz que o indiciado está incomunicável, quer dizer-se: indiciadoque não pode comunicar-se com quem quer que seja, salvo, é evidente, com as próprias autoridades incumbidas das investigações.0 parágrafo único do art. 21 do CPP sofreu profunda alteração, introduzida pelo art. 69 da Lei ri. 5.010, de 30-5-1966. In verbis:

"A incomunicabilidade, que não excederá de três dias, será decretada por despacho fundamentado do Juiz, a requerimento da Autoridade Policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no art. 89, 111, da Lei ri. 4.215, de 27 de abril de 1963".

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1

Por outro lado, o art. 21, caput, estabelece:

"A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir".

Tratava-se, pois, de verdadeira restrição imposta ao indiciado e que se justificava pela própria natureza e finalidade do inquérito policial. Privado o criminoso, nos primeiros momentos que se seguiam

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à infração, da liberdade de se comunicar com o exterior da prisão, poderia a autoridade, com relativa facilidade, achar os vestígios e provas que seriam de interesse do responsável destruir, e, assim, aproveitá-los a favor da causa social, conforme ponderação de Bento de Faria (Comentários, v. 1, p. 80).A incomunicabilidade, evidentemente, era medida severa e, por isso

1 mesmo, só poderia ocorrer quando o interesse da sociedade ou a conve1

niência da investigação estivesse a exigi-Ia.A atual Constituição, entretanto, no Capítulo destinado ao "Estado de Defesa e Estado de Sítio" proclama, no art. 136, § 10, IV:

"É vedada a incomunicabilidade do preso".

Ora, se durante o estado de defesa, quando o Governo deve tomar medidas enérgicas para preservar a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, podendo determinar medidas coercitivas, destacando-se restrições aos direitos de reunião, ainda que exercida no seio das associações, o sigilo da correspondência e o sigilo de comunicação telegráfica e telefônica, havendo até prisão sem determinação judicial, tal como disciplinado no art. 136 da CF, não se pode decretar a incomunicabilidade do preso (CF, art. 136, § 1% IV), com muito mais razão não há que se falar em incomunicabilidade na fase do inquérito policial. Desse entendimento comunga Mirabete (Processo penal, 2. ed., Atlas, p. 92).

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o

.01-

1. "Notitia criminis"

§ 2*0 -

Da persecuçao

SUMÁRIO: 1. Notitia criminis. 2. Início do inquérito. 3. Instauração de ofício. 4. Instauração por meio de requisição. 5. Instauração por meio de requerimento. 6. Conteúdo do requerimento. 7. A Autoridade Policial tem o dever de instaurar inquérito? 8. Pode a Autoridade Policial indeferir requisição do Ministério Público? 9. Providência que o ofendido pode tomar. 10. A delatio criminis. 11. Inquérito policial nos crimes de ação penal pública condicionada. 12. A hipótese de requisição do Ministro da Justiça.

É com a notitia criminis que a Autoridade Policial dá início às investigações. Essa notícia do crime pode ser de "cognição imediata", de "cognição mediata" e até mesmo de "cognição coercitiva". A

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primeira ocorre quando a Autoridade Policial toma conhecimento do fato infringente da norma por meio das suas atividades rotineiras: ou porque o jornal publicou a respeito, ou porque um dos seus agentes lha levou ao conhecimento, ou porque soube por intermédio da vítima etc. Diz-se que há notitia criminis de cognição mediata quando a Autoridade Policial sabe do fato por meio de requerimento da vítima ou de quem possa representáIa, requisição da Autoridade Judiciária ou do órgão do Ministério Público ou mediante representação. Ela será de cognição coercitiva no caso de prisão em flagrante, em que, junto com a notitia criminis, é apresentado à Autoridade Policial o autor do fato.Assim, tomando ciência de prática infracional, a Autoridade Policial iniciará a investigação.

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2. Início do inquerito

Mas como se inicia o inquérito policial? Qual a sua primeira peça? Depende da natureza do crime. Tratando-se de crime de ação pública incondicionada, isto é, aquele cuja propositura da ação penal pelo órgão do Ministério Público independe de qualquer condição - e tais crimes constituem a regra geral, nos termos do art. 100 do nosso CP -, a Autoridade Policial, dele tomando conhecimento, instaura o inquérito: a) de ofício, isto é, por iniciativa própria, quando o fato chegar ao seu conhecimento por meio de notitia criminis de cognição imediata; b) mediante requisição da Autoridade Judiciária; c) mediante requisição do órgão do Ministério Público, ou, enfim, mediante requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.0 art. 5.' do CPP dispõe:

ciado:

"Nos crimes de ação pública, o inquérito policial será im-

1 - de ofício; 11 - mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo".

3. Instauração "de ofício"

Se a Autoridade Policial souber, por meio das suas atividades de rotina, da existência de um crime, cumprir-lhe-á de logo examinar se se trata de crime de ação pública incondicionada. Sendo-o, a Autoridade Policial terá o deverjurídico de instaurar o inquérito, isto é, de determinar sejam feitas investigações para se apurar o fato infringente, da norma e sua autoria, e isto por iniciativa própria, sem necessidade de qualquer solicitação nesse sentido, vale dizer, de ofício.Mas como saber se o crime é ou não de ação pública incondicionada? 0 art. 100 do CP diz que a ação penal é pública, salvo quando a lei penal a declara privativa do ofendido. A regra geral, então, é esta: a ação penal é pública. Excepcionalmente ela será privada, mas, para tanto, é preciso que a própria lei assim o declare.

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Quando a ação penal for pública, será promovida pelo Ministério Público. Se privada, pelo ofendido ou por quem legalmente o represente.

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0 § U' do art. 100 do CP, entretanto, prevê certas hipóteses em que, mesmo sendo pública a ação penal, não poderá ela ser intentada, se ausente a condição estabelecida em lei. Essa condição ou é a representação ou a requisição do Ministro da Justiça. Mas, nesses casos, tornase indispensável que a própria lei consigne a exigência especial.

Desse modo, se a lei não disser que a ação penal depende de iniciativa do ofendido, temos, então, que a ação penal será pública. Mesmo sendg#ública, resta indagar se a sua propositura fica ou não subordinada a representação ou à requisição do Ministro da Justiça. Se a lei não fizer tal exigência, pode-se afirmar que a ação penal é pública incondicionada, isto é, para ser promovida não depende de qualquer condição.0 nosso CP não discrimina em um só dispositivo todos os crimes cuja ação penal seja exclusivamente privada, como o faz o Código de Processo Penal da Alemanha (StPO, § 374), todos os crimes cuja ação penal dependa de representação ou de requisição do Ministro da Justiça. Em cada caso, quando a ação penal for privada, o legislador consigna expressamente, dizendo: "somente se procede mediante queixa". Se depender de representação ou de requisição do Ministro da Justiça, consigna, também, a condição especial, dizendo, "somente se procede mediante requisição do Ministro da Justiça", "somente se procede mediante representação".

Torna-se, pois, imprescindível saber se o crime é ou não de ação pública incondicionada. Se a Autoridade Policial tiver conhecimento, por meio de suas atividades normais, que Joaquim caluniou Bernardo, não poderá, por iniciativa própria, isto é, de ofício, dar começo ao inquérito, porquanto este somente será instaurado, de ofício, quando o crime for de ação pública incondicionada. Ora, o crime de calúnia, previsto no art. 138 do CP, é de ação penal privada, conforme dispõe a primeira parte do art. 145 do mesmo diploma.E se o crime de calúnia for praticado contra funcionário público em razão de suas funções9

0 crime será de ação pública condicionada à representação, nos termos do art. 138, combinado com o art. 141, 11, e parágrafo único do art. 145, todos do CR Observe-se que, em tal caso, o parágrafo único do art. 145 dispõe:

"Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do n. 1 do art. 141, e mediante representação do ofendido, no caso do n. 11 do mesmo artigo".

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Suponhamos que a Autoridade Policial tenha tido conhecimento de que uma menina de 15 anos tenha sido estuprada. Poderá ser iniciado o inquérito "de ofício"?0 crime de estupro, à maneira do que ocorre com os demais crimes contra os costumes, é de ação privada, consoante a regra que se vê no art. 225, caput, do CRTodavia os §§ 1.'e 2.'do citado artigo cuidam de outras hipóteses. Assim, nos termos do § 1.', 1, do art. 225 do CP, se a ofendida ou seus pais forem pessoas pobres, isto é, não puderem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, a ação penal será pública, mas, como acentua o § 2.' do referido artigo, dependerá de representação.Em outras palavras: nos crimes contra os costumes, se a ofendida ou seus pais forem pessoas de posses, a ação penal será privada. Se forem pobres, e pobres serão se não puderem prover às despesas do processo sem privar-se de recursos à manutenção própria ou da família, a ação penal será pública condicionada à representação.Nessas duas hipóteses, pois, não poderá a Autoridade Policial instaurar o inquérito "de ofício".Mas o § L', 11, do art. 225 deixa patente que a ação penal será pública se o crime contra os costumes for cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. A lei, nesse caso, após salientar que a ação penal é pública, silenciou a respeito de qualquer condição. Logo, a Autoridade Policial só poderá de ofício instaurar inquérito no exemplo dado, como em qualquer dos crimes contra os costumes, se se verificar o caso previsto no art. 225, § 1.', 11, do CRHá mais: nos casos de estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento, poderá o inquérito ser iniciado "de ofício", pouco importando que o crime tenha sido ou não cometido com abuso de pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, pouco importando que a ofendida seja ou não pessoa de posses. Quando? Se, porventura, da violência empregada (observe-se que tais crimes pressupõem o emprego de violência) resultar à vítima lesão grave ou morte (cf. art. 223 do CP). E como soa o art. 225, caput, do CR Verbis: "Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa". Ora, os crimes de estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento encontramse, precisamente, nos Capítulos 1, 11 e 111 do Título VI, enquanto as formas qualificadas (art. 223) encontram-se no Capítulo IV, exatamente onde está o art. 225.

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E se da violência empregada resultar lesão corporal leve? Segundo o disposto nos arts. 223 e 225, caput, do CP, a ação penal somente será pública se da violência resultar lesão grave ou morte. Logo, sendo leve, a ação penal continua sendo privativa do ofendido, ou subordinada à representação. 0 texto é de uma clareza de doer nos olhos. Sem embargo, o Excelso Pretório, em copiosas decisões, passou a entender que, nesses casos, a ação penal será pública. Tantas foram as decisões nesse sentido que elas se corporificaram na Súmula 608: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada".

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Sem embargo disso, quase toda a doutrina entende, e, com razão, que, na hipótese, não é de se aplicar a regra do art. 101 do CP, que fala do crime complexo, em face da regra especial contida no art. 225. Ademais, se no estupro, advindo da violência lesão leve, o crime é de ação pública, tal como salientado na Súmula, é evidente que o art. 223 do CP já não tem razão de ser. Foi revogado pelo direito pretoriano.Se a violência for presumida, aplicar-se-á a regra do art. 225.Hoje, entretanto, como o crime de lesão corporal leve passou a ser de ação pública condicionada à representação, diz-se que a Súmula 608 perdeu sua razão de ser, pela inaplicabilidade do art. 101 do CP Não nos parece. Voltaremos ao assunto no ri. 20 do § 4.' deste volume.Quando a lei diz que o inquérito policial, nos crimes de ação pública, sera iniciado "de ofício", quer dizer, repita-se, dever a Autoridade Policial instaurá-lo por iniciativa própria, em decorrência da sua função, por força do seu ofício.Já sabemos que a Autoridade Policial só deverá iniciar o inquérito "de ofício" nos crimes de ação pública incondicionada. É verdade que o art. 5." do CPP fala simplesmente em "crimes de ação pública", sem distinguir os de natureza incondicionada daqueles cuja persecução é condicionada. Mas é claro que o legislador quis, efetivamente, referir-se aos crimes de ação pública incondicionada, pois, adiante, no § 4.' do mesmo artigo, dispôs que, se a ação penal depender de representação, sem esta o inquérito não poderá ser iniciado.

4. Instauração por meio de requisição

Inicia-se, também, o inquérito policial, nos crimes de ação pública incondicionada, por meio de requisição da Autoridade Judiciária ou do

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1 1 1 1 =

1

orgão do Ministério Público. Chegando ao conhecimento do Juiz a notícia pertinente a um crime, cuja ação penal seja pública incondicionada, poderá ele requisitar à Autoridade Policial a instauração do competente inquérito.Tal requisição também poderá ser feita pelo órgão do Ministério Público.Em ambas as hipóteses, a requisição deverá conter, se possível, os necessários esclarecimentos sobre o fato incriminado, a individualização do pretenso culpado ou seus sinais característicos e o rol de testemunhas. Uma requisição com esse conteúdo muito facilitará a investigação que a Autoridade Policial deverá empreender. Frise-se, contudo, que a lei não exige deva a requisição conter todos esses dados. Indispensável, entretanto, forneça a autoridade requisitante os esclarecimentos, sem os quais seria impossível qualquer investigação.Recebendo o ofício requisitório, a Autoridade Policial mandará "autuálo"e, já no mesmo despacho, poderá determinar uma série de diligências.

5. Instauração por meio de requerimento

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Poderá a própria vítima, ou seu representante legal, requerer a instauração de inquérito policial nos crimes de ação pública incondicionada? Efetivamente. 0 inc. 11 do art. 5.' do CPP dispõe que nos crimes de ação pública o inquérito será iniciado mediante "... requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo".Convém assinalar, entretanto, que, embora o ofendido possa, nesses crimes, requerer a instauração de inquérito, normalmente, em casos que tais, em vez de requerer, ele procura a Autoridade Policial, relatalhe o fato verbalmente, após o que o inquérito será instaurado. Cumprirá à Autoridade Policial, ad cautelam, determinar, de imediato, sejam tomadas as declarações do ofendido.Nos crimes de ação penal pública incondicionada, a primeira peça do inquérito será: a) a requisição da Autoridade Judiciária; b) a requisição do órgão do Ministério Público; c) o requerimento da vítima ou de quem tiver qualidade para representá-la; d) excepcionalmente, o auto de prisão em flagrante, conforme veremos mais adiante, analisando o art. V; e) e, finalmente, e em todos os demais casos, aportaria da Autoridade Policial.

222

Nada obsta, contudo, possa a Autoridade Policial baixar a portaria, niesmo havendo requisiçao ou requerimento. Nesta hipótese, deverá fazer menção àquela ou a este, na peça inaugural do inquérito.

A portaria é uma peça singela, na qual a Autoridade Policial consigna haver tido ciência da prática de um crime de ação pública incondicionada, declinando, se possível, o dia, lugar e hora em que foi cometido, o prenome e nome do pretenso autor e o prenome e nome da vítima,'é conclui determinando a instauração do inquérito. Além disso, algumas autoridades, e dependendo do caso concreto, costumam, na portaria, determinar, também, a realização de algumas diligências. Após a sua efetivação e conforme o caso e o curso das investigações, a Autoridade Policial determina as diligências que julgar necessárias à apuração do fato e sua autoria.Costuma a Autoridade Policial usar, na portaria, bem como na requisição da Autoridade Judiciária ou do órgão do Ministério Público e no requerimento da vítima, a expressão "A. esta". Constitui a abrevia-ção destoutra "autuada esta" ou "autuado este". Qual o sentido?Autuar significa documentar, reduzir a auto (ou a ato), reunir em forma de pro-cesso. A palavra "auto", no plural (autos), significa o conjunto das peças de um processo. Daí falar-se em "autos de inquérito" para traduziro conjunto de todas as peças que integram o inquérito (portaria, notificações, depoimentos, declarações, exames periciais etc.).

Assim, quando, por exemplo, naportaria, a autoridade determina: "autuada esta", quer dizer que o Escrivão de Polícia, que e seu auxiliar, deve registrá-la, encapá-la, de molde a ser dada forma de processo, e àproporçao que as diligências forem sendo realizadas e reduzidas a ato, tais peças serão colocadas dentro nos "autos do inquérito".

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Note-se ademais que autuar expressa a idéia de reduzir a auto, vale dizer, reduzir a ato. Assim, como o inquérito é eminentemente escrito, nos termos do art. 9.' do CPP, todas as diligências realizadas no curso de uma investigação devem ser autuadas, vale dizer, reduzidas a atos.

Também se usa a expressão "Autuada, conclusos". Quer dizer: reduzida a ato, voltem-me os autos para novo exame. Conclusos significa "ultimados", "concluídos". Assim, quando a autoridade diz "a seguir conclusos", quer significar que o Escrivão, após o cumprimento daquilo que foi determinado pela autoridade, deve fazer retomar os autos

22~

1111n1III~I

do inquérito às mãos dela para que, examinando as investigações realizadas, determine o que entender convinhável para melhor elucidação do fato.

6. Conteúdo do requerimento

Que deve conter o requerimento a que se refere o art. 5.', 11, do CPP? Nos termos do art. 5.-, § 1.% a, b e c, do mesmo estatuto, deverá• interessado narrar o fato com todas as suas circunstâncias; individuar• pretenso culpado ou dar-lhe os sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou ainda os motivos de impossibilidade de o fazer e, finalmente, nomear testemunhas com indicação de sua profissão e residência.Tais requisitos serão sempre exigidos? 0 § U' do art. 5." diz ... sempre que possível".Logo, não sendo possível, por exemplo, a individuação daquele que cometeu a infração, ou, ao menos, a indicação dos sinais característicos, nem por isso o requerimento perde o seu valor.Suponha-se que, na calada da noite, alguém arrombe a porta de uma casa e cometa um furto. Ninguém presenciou o fato. Não se sabe quem o cometeu. Nada obsta que a vítima ingresse na Delegacia com um requerimento solicitando a instauração de inquérito para a apuração do fato e sua autoria.Vimos que, na portaria, no requerimento ou mesmo na requísição, a Autoridade Policial determina algumas diligências para o início da elucidação do fato e sua autoria. Após a realização daquelas diligências, os "autos do inquérito" voltam conclusos à Autoridade Policial, e esta, então, apreciando o que já se fez, observa que outras diligências deverão ser feitas. Neste caso, determina tantas quantas necessárias: buscas e apreensões, ouvida de testemunhas, acareações, reconhecimentos, exames periciais, avaliações, expedições de precatórias para a realização de diligências fora da sua circunscrição territorial etc.

7. A Autoridade Policial tem o dever de instaurar inquérito?

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A Autoridade Policial tem o dever ou a faculdade de determinar a instauração de inquérito? 0 art. 5.' diz: "Nos crimes de ação pública, o inquérito policial será iniciado". Com tal expressão, que demonstra

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imperatividade, a própria lei criou para a Autoridade Policial o dever jurídico de instaurar o inquérito nos crimes de ação pública. Evidente que o artigo se refere aos crimes de ação pública íncondicionada.

Assim, se a Autoridade Policial tiver ciência de que nos limites da sua circunscrição policial ocorreu um crime de ação pública incondicionada e se, sem embargo disso, não instaurar o inquérito, poderá, conforme o caso concreto, infringir o disposto no art. 319 do CP, independentemente de s-áf-ção disciplinar imposta pelo seu superior, já que, nesses casos, a instauração de inquérito não constitui mera faculdade, mas sim um verdadeiro deverjurídico decorrente do princípio da obrigatoriedade do processo, que tem no inquérito sua fase informativa. Certo que na fasepolicial não há processo. 0 inquérito é a fase preambular da ação penal. Mas, se a Autoridade Policial não investiga o fato nem procura saber quem o cometeu, dificilmente poder-se-á instaurar o processo contra o criminoso. 0 Estado tem interesse irrefragável em punir todos aqueles

que cometerem infrações, e, por isso, seus agentes, no campo da persecução, não podem negligenciar, pois, do contrário, conceder-se-ia à Autoridade Policial uma espécie de poder de indultar.

8. Pode a Autoridade Policial Ministério Público?

indeferir requisição do

E se se tratar de requisição do Ministério Público ou da Autoridade era para a Judiciária, ou de requerimento do ofendido, ainda assim hav J Autoridade Policial o deverjurídico de instaurar o inquérito'? Em princípio há, pois o próprio art. 5.' salienta que, nos crimes de ação pública, o inquérito será iniciado. E nos vários incisos desse mesmo artigo estabelece as formas pelas quais ele deve ser iniciado: de ofício (i. e., por meio de portaria), mediante requisição ou requerimento.Dissemos que, nesses casos, em princípio, há o mesmo dever. De fato. Tratando-se de requisição da Autoridade Judiciária ou do Ministério Público, muito embora não seja a Autoridade Policial inferior hierárquico da Autoridade Judiciária, ou do Ministério Público, e, sim, colaboradora da Justiça Penal, não poderá deixar de atendê-la.

Observe-se que o legislador, no inc. 11, fala em requísição e requerimento, procurando, assim, distinguir as duas situações. Requisição é exigência legal. Requisitar é exigir legalmente. Já a palavra requerimento traduz a idéia de solicitação de algo permitido por lei.

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Note-se, também, que no art. 13, 11, o legislador criou para a Autoridade Policial o dever de realizar as diligências requisitadas pelo Juiz ou pelo Ministério Público e silenciou, como não podia deixar de ser, quanto à possibilidade de indeferir tais requisições.Não poderá, pois, a Autoridade Policial deixar de atender às requisições da Autoridade Judiciária ou do Ministério Público.E se a requisição não fornecer nenhum dado de molde a permitir a investigação? Já vimos que a requisição deve conter aquele mínimo indispensável para permitir a investigação. Se, contudo, os dados fornecidos forem vagos, cumprirá à Autoridade Policial oficiar à autoridade requisitante, mostrando-lhe a impossibilidade de qualquer investigação e, ao mesmo tempo, solicitando-lhe outras informações.E se a autoridade não atender à requisição, sem embargo de se lhe fornecer o quantum statis para a persecução? Poderá ser processada por desobediência, sem prejuízo de eventuais sançoes disciplinares, a menos que haja alguma lei cuidando especificamente do caso e estabelecendo outra sanção administrativa. Nesse caso, a autoridade será punida apenas administrativamente, salvo se essa lei disser: além da pena administrativa será processada por desobediência (a propósito, Hungria, Comentários, cit., 1958, v. 9, p. 417).Tratando-se de requerimento do ofendido ou de quem legalmente o represente, a própria lei permite o indeferimento. Cuida-se de exceção àquele dever de instaurar o inquérito? Evidentemente não. Não quis o legislador que a Autoridade Policial ficasse obrigada a atender solicitações absurdas de vítimas e daí lhe conceder a faculdade de indeferir requerimentos. Não se infira, pela redação do § 2.' do art. 5.' do CPP, permissiva do indeferimento, possa a Autoridade Policial fazê-lo quando bem quiser. Isso seria absurdo e conflitaria com o princípio de que à Polícia Judiciária incumbe investigar o fato e sua autoria.E quando, então, poderá ela indeferir tais requerimentos? Nas seguintes hipóteses: a) se já estiver extinta a punibilidade; b) se o requerimento não fornecer o mínimo indispensável para se proceder à investigação; c) se a autoridade a quem foi dirigido o requerimento não for a competente; d) se o fato narrado for atípico; e) se o requerente for incapaz.

9. Providência que o ofendido pode tomar

Indeferido o requerimento, que providência poderá tomar o requerente? A propósito, o § 2.' do art. 5.`.

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"Do despacho que indeferir o requerimento de abertura do inquérito caberá recurso para o Chefe de Polícia".

A lei não fala como deve ser interposto tal recurso e silencia quanto ao prazo. Nada obsta, pois, que a parte se dirija ao Chefe de Polícia, em petição fundamentada, mostrando a falta de razão da Autoridade Policial. Como aquele despacho que indeferir requerimento de abertura de inqueritV não faz coisa julgada, pois o instituto da resjudicata é carac-.,1

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terístií~5'da jurisdição, poderá o requerente recorrer a qualquer tempo (a lei não fixa prazo), e, caso não seja "provido" seu recurso, poderá renoválo, apresentando novos argumentos e indicações de prova. Nada obsta também que o requerente solicite à Autoridade Policial reconsideração do seu despacho, nem estará ele impossibilitado de, mesmo que o Chefe de Polícia venha a negar provimento ao seu recurso, ingressar em juízo, a fim de que sejam tomadas as providências que se fizerem necessárias. A expressão "Chefe de Polícia", àquela época, correspondia ao que hoje se denomina "Secretário da Segurança Pública". Assim, quer-nos parecer que nos Estados onde houver um Delegado-Geral responsável por toda a Polícia Civil, o recurso a ele deve ser dirigido. Pretendia-se fosse o recurso dirigido a alguém, na Polícia, que exercesse função superior àquela desenvolvida pelos Delegados ou Comissários de Polícia. E o orgão superior era o Chefe de Polícia. Algum tempo depois, esse órgão superior, vale repetir, passou a chamar-se Secretário da Segurança Pública. Com o aumento da população e da criminalidade, houve necessidade de se dar melhor estruturação à Polícia Civil; foram criados então os cargos de Delegados Regionais, Delegados Seccionais, DelegadoGeral da Polícia. Logo, nada impede que o recurso seja dirigido ao Delegado Regional, Seccional ou Delegado-Geral. (Veja-se, a propósito, o verbete "Interpretação progressiva".)

Ou ao próprio Secretário. Poderá também o requerente procurar o orgão do Ministério Público e relatar-lhe o fato. Convencido o membro do Ministério Público da sem-razão do indeferimento, poderá oficiar à Autoridade Policial recusante, requisitando a instauração de inquérito.

10. A "delatio criminis"

Além dessas modalidades de se iniciar o inquérito nos crimes de ação pública incondicionada, existem mais duas: pelo auto de prisão em flagrante, cujo estudo será feito no final, ou, então, por meio da delatio criminis, nos termos do § 3.' do art. 5." do CPP:

4

227

111 1 11 1

Como bem se percebe pela redação do texto supra, o legislador deu ao cidadão a faculdade de levar ao conhecimento da Autoridade Policial a notitia criminis. Mera faculdade. Tanto é faculdade que, se alguém deixar de fazer tal comunicação, não sofrerá nenhuma sanção. Evidente que não se trata, aqui, de "denúncia anônirna", mesmo porque, segundo Aloisi e Mortara, a denúncia anônima "não é uma denúncia no significado jurídico do termo, pelo que não pode ser tomada em consideração na lei processual penal".Na verdade, se o nosso CP erigiu à categoria de crime a conduta de todo aquele que dá causa à instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que

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o sabe inocente, como poderiam os "denunciados" chamar à responsabilidade o autor da delatio criminis, se esta pudesse ser anônima? A vingar entendimento diverso, será muito cômodo para os salteadores da honra alheia vomitarem, na calada da noite, à porta das Delegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros, da impunidade. Se se admitisse a delatio anônima, à semelhança do que ocorria em Veneza, ao tempo da inquisitio extraordinem, quando se permitia ao povo jogasse nas famosas "Bocas dos Leões" suas denúncias anônimas, seus escritos apócrifos, a sociedade viveria em constante sobressalto, uma vez que qualquer do povo poderia sofrer o vexame de uma injusta, absurda e inverídica delação, por mero capricho, ódio, vingança ou qualquer outro sentimento subalterno. Daí a razão de o nosso CPP não acolher tal modalidade espúria de notitia criminis.Assim, quem o desejar poderá fazer a delatio. Contudo é preciso que assuma a responsabilidade, identificando- se. Cuidando da "denúncia facultativa", observa Leone:"Non é richiesta alcuna particolare legittimazione: non la cittadinanza, essendo autorizzato anche lo straniero a presentare denuncia; non la capaciffi, non essendo richiesto alcun requisito di età o di maturità psichica; e nepure é richiesto un interesse ad agire, costituendo un atto di volontaria collaborazione con lo Stato nella ricerca e persecuzione dei reati, tanto che puà presentare denuncia anche colui

"Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública, podera, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito".

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che dal reato non ha riportato offesa o danno e perfino Vautore stesso del reato (autodenuncia). Naturalmente é posta una garanzia di carattere sostanziale per assicurare la genuinità della denuncia: ed é la minaccia de sanzione per la denuncia calunniosa " (Giovanni Leone, Trattato di diritto processuale penale, Napoli, 196 1, v. 2, p. 11).Sublinhe-se que o art. 340 do CP pune, com detenção, todo aquele que venha a provocar a ação da autoridade, comunicando-lhe a ocorrência de tfime ou de contravenção que sabe não se ter verificado. Assim, se o nosso diploma repressivo pune a denunciação caluniosa e a comunicação falsa de crime ou de contravenção, parece óbvio não se poder admitir o anonimato nanotitia criminis. Do contrário,já não teriam aplicação os arts. 339 e 340 do CP, em face da preferência que seria dada à notícia anônima...

Malgrado essa delatio criminis ser facultativa, há, contudo, algumas exceçoes, e estas estão previstas no art 66 da Lei das Contravenções:

"Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente: 1 - crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;

II - crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha

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o cliente a procedimento criminal.

Pena - multa, de seiscentos cruzeiros a seis mil cruzeiros". (Como não há valor equivalente em nossa moeda padrão - o Real -, fica apenas registrado "multa".)Outra exceção está no art. 269 do CP:

"Art. 269. Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:Pena - detenção de seis meses a dois anos, e multa".Assim também o art. 45 da Lei n. 6.538, de 22-6-1978:"Art. 45. A autoridade administrativa, a partir da data em que tiver ciência da prática de crime relacionado com o serviço postal ou com o serviço de telegrama, é obrigada a representar, no prazo de dez dias, ao Ministério Público Federal contra o autor ou autores do ilícito penal, sob pena de responsabilidade".

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~~ li 1 1 1

11. Inquérito policial nos crimes de ação penal pública condicionada

Tratando-se de crime de ação pública condicionada à representação, diz o § 4.' do art. 5.': "0 inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado". Conclui-se daí que, se o crime for de ação pública, mas condicionada à representação, a Autoridade Policial não poderá iniciar o inquérito ex officio.

Não poderá também a Autoridade Judiciária, ou o orgão do Ministério Público requisitar a instauração de inquérito para apurar crimes dessa natureza, salvante a hipótese de, juntamente com o ofício requisitório, encaminhar a representação, que, nos termos do art. 39 do CPP, poderá ser feita diretamente à Autoridade Policial, ou à Autoridade Judiciária, ou ao Ministério Público. Assim, se feita à Autoridade Judiciária, ou ao Ministério Público, e desacompanhada de outros elementos que autorizem de pronto a propositura da ação penal (art. 39,caberá à Autoridade Judiciária ou ao Ministério Público (se feita a qualquer deles) encaminhá-la à Autoridade Policial, juntamente com ofício requisitório.Com maior razão, nessas hipóteses, nenhuma aplicação terá o § 3.' do art. 5.', isto é, não se admite a delatio criminis nos delitos cuja ação penal fique subordinada à representação.

Suponha-se que um investigador tenha tido conhecimento de que Joaquim ameaçou Manoel, por palavra, escrito ou gesto, de causar-lhe mal injusto e grave. Levou tal fato à ciência da Autoridade Policial. Esta, entretanto, sem embargo de tratar-se de crime de ação pública, nenhuma iniciativa poderá tomar no sentido de instaurar inquérito, porquanto o crime de ameaça, previsto no art. 147 do CP, é

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de ação pública condicionada à representação, como se vê pelo parágrafo único do referido dispositivo: "sornente se procede mediante representação".Que é a representação? Quem pode fazê-la? Como pode ser feita? A quem deve ser dirigida? Haverá prazo para fazê-la? De início, cumpre assinalar que no capítulo próprio estudaremos as razões que levaram o Estado a condicionar a propositura da ação penal, em certas infrações, à representação.

A representação (querela no Direito italiano,plainte no Direito francês, antrag no Direito alemão, querella ou instância privada entre os povos

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de língua espanhola) outra coisa não é senão simples manifestação de vontade da vítima ou de quem legalmente a representa no sentido de permitir que o Estado, por meio dos órgãos próprios da persecução, desenvolva as necessárias atividades administrativo-judiciárias tendentes às investigações da infração penal, à apuração da respectiva autoria e à aplicação da lei penal objetiva.Ou simplesmente, como diz Tornaglii: é a manifestação de vontade da vítii~fa ou do seu representante legal, de não se opor ao procedimento (cf. Comentários, v. 1, p. 149).Quem pode fazê-la? 0 § 4.' do art. 5.' do CPP silencia a respeito. 0 § 1.' do art. 100 do CP fala apenas em representação do ofendido, parecendo, assim, que somente à vítima é dado fazê-la.Já o art. 24 do CPP ministra maior esclarecimento, falando em representação "do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo".

Segue-se, então, que a representação poderá ser feita pelo ofendido ou por quem legalmente o represente. 0 ofendido poderá fazê-la, se maior de 18 anos. Não há disposição expressa nesse sentido, mas, como o art. 34 do CPP concede ao ofendido maior de 18 anos o direito de queixa (ato instaurador da instância penal dos crimes de alçada privada), por interpretação extensiva se infere que o maior de 18 anos poderá, também, fazer a representação. Se pode o mais, que é a queixa, nada impede que faça o menos, que é a representação.Por outro lado, o maior de 18 anos poderá exercer tal direito mesmo na hipótese de haver oposição do seu representante legal, e viceversa, como se constata, ainda por interpretação extensiva, pelo parágrafo único do art. 50 do CPP.Observe-se que a incapacidade relativa a que se refere a lei civil sofre uma exceção no Direito Processual Penal. Como indiciado, o menor de 21 (e maior de 18 ... ) continuará sendo relativamente incapaz, tanto que os atos que deva realizar dentro do inquérito deverão ser assistidos pelo curador. Mas, como vítima, poderá exercer o direito de queixa ou de representação, com ou sem assistência do seu representante legal e, até mesmo, contra a vontade deste.Se o ofendido for menor de 18 anos, ou mentalmente enfermo (pouco importando, nesta última hipótese, se maior ou menor), o direito de representação será exercido por quem legalmente o represente, nos termos do art. 24 do CPP.

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1

Não se infira que o representante legal não possa exercer o direito de representação se o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos. A lei concede tal direito, na hipótese do art. 34 (interpretado extensivamente), tanto a um quanto a outro. Se um não fizer, o outro poderá fazêlo, pouco importando haja ou não oposição de um deles. A outra conclusão não se poderá chegar analisando-se o art. 34 e parágrafo único do art. 50 do CPP.Que se entende por representante legal? A pessoa que, de acordo com a lei, deva representar outrem. Assim, conforme a lei civil, os pais representam os filhos; os tutores, os tutelados; os curadores, os curatelados.

Convém assinalar, entretanto, que ajurisprudência, nos crimes contra os costumes, tem sido humana no sentido de não permitir rígida interpretação da expressão "representante legal". Veja-se, a propósito, o magnífico acórdão inserto na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, 11/465:

"... Diante de tal redação, que ampliou e distendeu o pátrio poder a ambos os cônjuges, sem as restrições do passado, temse que nos crimes contra os costumes, a representação pode ser feita tanto pelo pai como pela mãe da menor, indistintamente, ou até mesmo por quem tem o encargo de zelar pela mesma, visto que tudo que se tem em conta, nesse ponto, é a proteção da ofendida, que não pode ser relegada diante de fórmulas frívolas que, uma vez prestigiadas, só serviriam para esvaziar a efetividade da proteção referida. Por isso que o Excelso Pretório em aresto recente admitiu que a representação pode ser feita por irmão, tio e até mesmo por intermédio de amásio da mãe da ofendida, conforme as circunstâncias" (RTJ, 40/120).

Hoje a jurisprudência é tranqüila no sentido de permitir que a representação, nos crimes contra os costumes, possa ser feita pelos avós, tios, irmãos, pais de criação, amásio da mãe da vítima, por pessoa ligada por relação de parentesco, por pessoa que tenha a menor sob sua guarda (RTJ, 57/90, 61/343, 62126, 85/482, e RT, 466/321, 586/400 etc.).Convém lembrar que nos termos do art. 39 a representação poderá ser feita também por procurador, desde que se lhe concedam poderes especiais. Tal procurador não precisa ser bacharel em Direito (embora

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na prática isso não ocorra), pois a lei exige a habilitação técnica apenas para os atos em juízo e não para os extrajudiciais.Ela poderá ser feita oralmente ou por escrito. Feita oralmente, ou mesmo por escrito, mas sem a autenticação da assinatura, deverá a autoridade reduzi-Ia a termo, isto é, deverá determinar ao Escrivão que reduza a instrumento escrito a representação feita naquelas condições. Esse documento assim formado, que se chama "termo de representação", défIverá ser assinado pela autoridade, pela pessoa que

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fizer a representação e, se esta for analfabeta, convém, alêm de ser tomada a impressão digital de apenas um dos seus dedos (comumente se tira a impressão do polegar), convidar duas testemunhas para assiná-lo. Finalmente, será ele subscrito pelo Escrivão.

A representação poderá ser feita à Autoridade Policial, ao Juiz ou ao órgão do Ministério Público. Quando feita ao Juiz, observado o que dispõe o § L' do art. 39, será ela remetida à Autoridade Policial, acompanhada de ofício requisitório (art. 39, § 4.'). Se feita perante o membro do Ministério Público e se com ela forem fornecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, não haverá necessidade de ser remetida à Autoridade Policial. Nesse caso, caber-lhe-á oferecer denúncia, tal como se vê pelo § 5.' do art. 39. Do contrário, restar-lhe-á encaminháIa com ofício requisitório à Autoridade Policial.Pensamos que, se feita perante o Juiz, e se com ela forem fornecidos outros elementos de prova que tornem dispensável o inquérito, cumprirá ao Magistrado encaminhá-la, juntamente com os demais elementos de convicção, ao órgão do Ministério Público, aplicando-se, por analogia, o disposto no art. 40.

Dentro de que prazo deverá ser feita a representação? Dentro de 6 meses, a partir da data em que a pessoa que estiver investida do direito de representação vier a saber quem foi o autor do crime (cf. CP, art. 103, e CPP, art. 38). Esse prazo é decadencial. De fato. Se a lei diz "decairá

do direito de representação inegavelmente quis dizer que o prazo éde decadência e, assim, não está sujeito às causas interruptivas oususpensívas, tão comuns nos prazos prescricionais. Na decadência, oprazo não se suspende nem se interrompe. Trata-se de prazo fatal. Senão for exercido o direito de representação no prazo legal, não maispoderá sê-lo, e extinta ficará a punibilidade pela decadência.A representação poderá ser feita, como vimos, oralmente ou por escrito. Por outro lado, sendo a representação simples manifestação de

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IIIIIII III ~i

1

vontade do ofendido ou do seu representante legal, no sentido de permitir o procedimento criminal, não está ela sujeita a fórmulas ou termos sacramentais. Vejam-se estes acórdãos que refletem o entendimento doutrinário:

"Prestada perante a Autoridade Policial, como foi, e reduzida a termo, vale perfeitamente. 0 essencial é o espírito que a ditou e que tenha sido manifestada a vontade de que a Justiça se movimente para as providências necessárias" (cf. D. A. Miranda, Repertório de jurisprudência, v. 7, p. 76).

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"E exato, consoante reiterada jurisprudência, que a representação não precisa de formalidades especiais, nem requer terminologia sacramental" (D. A. Miranda, Repertório, cit., p. 76).

No mesmo sentido: RTJ, 78/109, 98/670, e RT, 492/407 e 5261314. Muito embora a representação possa ser feita por escrito, o comum, entretanto, é a representação feita oralmente. Neste caso, o ofendido ou quem legalmente o represente comparece perante a autoridade, que de regra é a Policial, relata-lhe o fato e pede a instauração de inquérito. A autoridade, então, determina ao Escrivão que reduza a termo tudo quanto foi dito oralmente. Nessa hipótese, a primeira peça do inquérito será o termo de representação. Nada obsta, repita-se, seja a representação feita por escrito, sob a forma de requerimento, assinada pelo ofendido, se capaz, pelo seu representante legal (se for incapaz o ofendido ou se ocorrer a hipótese do art. 34) ou, então, por meio de procurador com poderes especiais, nos termos do art. 39 do CPP.É comum ver-se a exigência de atestado de pobreza nos inquéritos ou processos. Esclareça-se: nos crimes de ação penal pública incondicionada, é irrelevante a circunstância de ser a vítima rica ou po-bre. Nos crimes de ação penal exclusivamente privada, como o processo deve ser iniciado pelo particular, que, obviamente, deverá contratar advogado e efetuar o pagamento das custas respectivas, pode ocorrer a hipótese de a vítima ser pobre. Nesse caso, requererá ao Juiz, exibindo o atestado de pobreza, a nomeação de um advogado, nos termos do art. 32 do CPP. Tratando-se de crime de ação penal pública condicionada, porque iniciada por meio de denúncia, é despicienda a circunstância de ser a vítima rica ou pobre. Todavia, exclusivamente nos crimes contra os costumes (CP, arts. 213 a 222), há esta singularidade: a) tais crimes serão de ação pública incondicionada se cometidos com abuso do pátrio

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poder ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, ou, então, se houver violência e desta resultar lesão corporal grave ou morte; b) se da violência empregada nos crimes de estupro, atentado violento ao pudor ou rapto violento resultar lesão corporal leve (Súmula 608 do STF); c) serão de ação pública condicionada à representação se a vítima ou seus pais não puderem prover às despesas do processo sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família; d) serão de ação pjiovada nos demais casos.Assim, tratando-se de crime contra os costumes, cuja ação penal pública seja condicionada à representação, é indispensável a prova da pobreza, feita, normalmente, por meio de um atestado de miserabilidade, fornecido pela própria Autoridade Policial.

Desse modo, quando a vítima ou seus pais forem pessoas pobres, urge anexar à representação o respectivo atestado de pobreza. Se a representação for feita oralmente, a pessoa que a fizer solicitará, também, à Autoridade Policial lhe forneça o documento comprobatório do seu estado de pobreza.

A jurisprudência, no afã de tutelar, mais ainda, as vítimas dos crimes contra os costumes, tem decidido que a prova da miserabilidade pode ser feita no curso da ação penal (RTJ, 491395 e 50/127). A

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tal ponto chegou ajurisprudência que se tem decidido, também, que a prova da miserabilidade pode ser feita mesmo após o decurso do prazo de 6 meses a que se refere o art. 38 do CPP (RTJ, 39/15, 49/97, 69/720 e 92/72 1). Há, ainda, o entendimento, razoável por sinal, de se presumir a miserabilidade... Se a vítima e uma empregada doméstica, haverá necessidade de se comprovar seu estado de pobreza?

12. A hipótese de requisição do Ministro da Justiça

Há casos em que a ação pública fica subordinada à requisição do Ministro da Justiça? E, nessas hipóteses, como se inicia o inquérito? Na verdade, em pouquíssimas hipóteses a nossa lei condiciona a propositura da ação penal à requisição ministerial. De fato. Ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, a instauração do processo fica subordinada, além de outras condições previstas em lei, à requisição ministerial, nos termos do art. 7.", § 1% b, do CR Os crimes contra a honra, pouco importando se cometidos publicamente ou não, contra Chefe de Governo estrangeiro são, também, de ação pública condicio-

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nada à requisição do Ministro da Justiça, como se constata pela leitura do art. 145, parágrafo único, do CRA outra hipótese referida no parágrafo único do art. 145 do CP (crime contra a honra do Presidente da República) apresenta a seguinte particularidade: a) tratando-se de injúria, aplica-se a norma contida no parágrafo único do art. 145 do CP; b) se for calúnia ou difamação, a ação penal dependerá de requisição ministerial se, por acaso, não se tratar de "crirne contra a segurança nacional". Sendo-o, independerá da requisitio. E a calúnia ou difamação contra o Presidente da República é crime contra a segurança nacional quando tem por escopo atingir as instituições e o regime. Se a ofensa ao Presidente da República não atinge a segurança interna ou externa do Brasil, o crime é comum, e a ação penal dependerá de requisição do Ministro da Justiça. Observe-se que os arts. 1.' e 2.' da Lei n. 7.170/83 procuram caracterizar os crimes contra a segurança nacional levando em conta a motivação, os objetivos do agente e a lesão à integridade territorial, à soberania nacional, ao regime representativo e democrático, à Federação, ao Estado de Direito e à pessoa dos chefes dos Poderes da União. Assim, nem toda calúnia, nem toda difamação cometida contra o Presidente da República configura crime contra a segurança nacional.Ao lado desses casos, a Lei de Imprensa cuida de outras hipóteses que exigem a requisição ministerial: crimes contra a honra de Ministro de Estado, Chefe de Estado ou Governo Estrangeiro, seus representantes diplomáticos, Ministros do Supremo Tribunal Federal. Mais ainda: crimes de injúria cometidos pela Imprensa contra Presidente da República, Presidente da Câmara dos Deputados, Presidente do Senado e Presidente do Supremo Tribunal Federal.Há, também, outras hipóteses tratadas no Código Penal Militar e que serão vistas no capítulo próprio.

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Mas, quando subordinada a ação penal a tal condição, como se inicia o inquérito? 0 Código silenciou. Subentende-se deva a requisição ministerial ser encaminhada ao Chefe do Ministério Público (Federal ou Estadual, conforme o caso), e este, então, se entender de necessidade as diligências, requisitá-las-á à Autoridade Policial. Nessa hipótese, deve o Promotor, ao requisitar o inquérito, encaminhar também a requisição ministerial, uma vez que, se na ação penal subordinada à representação, o inquérito sem ela não pode ser instaurado, pela mesma razão não o poderá também se não lhe for encaminhada a requisição.

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§ 390 -

Da persecuçao

SUMÁRIO: 1. 0 inquérito policial nos crimes de ação privada. 2. A mulher casada e o direito de queixa. 3. Prazo para se requerer a instauração de inquérito. 4. Conteúdo do requerimento.

1. 0 inquérito policial nos crimes de ação privada

Tratando-se de crime de alçada privada, a Autoridade Policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tiver qualidade para intentá-la. E o que diz o § 5." do art. 5.' do CPP. Somente quem tiver qualidade para promover a ação privada é que poderá requerer a instauração de inquérito. De consequencia, se o crime for de alçada privada, não poderá a Autoridade Policial iniciar o inquérito de ofício nem mediante requisição da Autoridade Judiciária ou do Ministério Público. Somente a pessoa com o direito à ação privada é que poderá requerer a instauração do inquérito. Ninguém mais.0 requerimento, com firma reconhecida, é dirigido à Autoridade Policial competente, e esta, caso o requerente forneça elementos que possibilitem a instauração do inquérito, determinará seja este iniciado.Dizendo o § 5." do art. 5.' que nos crimes de ação privada a autoridade somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la, pergunta-se: e quem é que tem tal qualidade? Responda-se com o art. 30: "o ofendido ou quem tiver qualidade para representá-lo". Na hipótese de morte, ou ausência judicialmente declarada, o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. É o que diz o art. 3 1.

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li 1 1 1 1

Se o ofendido for menor de 18 anos, ou mesmo maior, mas mentalmente enfermo ou retardado mental, caberá ao seu representante legal requerer a instauração de inquérito e promover posteriormente a queixa, ou, se tiver em mãos elementos que o habilitem a promover a ação penal, ingressar em juízo com a queixa.

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Caso o ofendido esteja entre os 18 e os 21 anos, o requerimento tanto poderá ser feito por ele como pelo seu representante legal. Se um deles quiser fazê-lo e o outro se opuser, prevalecerá a vontade daquele que quiser instaurar o inquérito, nos termos do art. 34 e do parágrafo único do art. 50, todos do CPP.

2. A mulher casada e o direito de queixa

A mulher casada poderá requerer a instauração de inquérito nos crimes de ação privada? 0 § 5.' do art. 5." diz que poderá requerer instauração de inquérito quem tiver qualidade para promover a ação penal privada. Contudo, nos termos do art. 35 do CPP, a mulher casada não pode exercer o direito de queixa sem assentimento do marido, salvo se estiver dele separada ou se a queixa for contra ele.Temos, então, duas hipóteses em que será possível à mulher casada exercer o direito de queixa:a) quando estiver separada do marido (pouco importando que se trate de separação de fato ou de direito);b) quando a queixa for contra ele.Entretanto, em face do art. 226, § 5.", da Constituição de outubro de 1988, o art. 35 do CPP foi revogado. 0 homem e a mulher têm, na sociedade conjugal, os mesmos direitos e obrigações. Logo, se o homem pode exercer o direito de queixa sem o assentimento da esposa, esta também poderá exercê-lo, sem a outorga marital. Aliás, desnecessariamente, a Lei n. 9.520, de 27-11-1997, deforma expressa, revogou essa disposição.

3. Prazo para se requerer a instauração de inquérito

Qual o prazo para o ofendido ou seu representante legal requerer a instauração de inquérito, quando o crime for de alçada privada? 0 Código não diz. Mas, por outro lado, dizendo o art. 38 que o direito de queixa deve ser exercido dentro do prazo de 6 meses, a partir da data238 1

em que se souber quem foi o autor do crime, fácil concluir que o interessado deverá requerer a instauração do inquérito antes de se completar aquele semestre a que se refere o art. 38, de molde a haver tempo suficiente para ingressar em juízo com a queixa dentro daquele prazo de 6 meses.

ia vimos que a queixa é o ato por meio do qual se inicia a ação penal privada em qualquer de suas modalidades. Ora, a ação penal inicia-se perantA Juiz. Logo, se o prazo de 6 meses é para a propositura da queixa, fácil concluir que o inquérito deverá estar terminado, concluído, antes daquele prazo, possibilitando ao ofendido ou a quem legalmente o represente ingressar em juízo com a queixa no prazo de 6 meses.Se o ofendido soube, no dia L'-1-1991, quem foi o autor do crime e requereu instauração do inquérito no dia 21 de junho, e este foi concluído no dia 3 de julho, já não poderia exercer o direito de queixa, pois o prazo foi ultrapassado. Se se tratasse de representação, seria diferente, pois esta pode ser feita ao Juiz, Delegado ou Promotor... A queixa não; somente ao Juiz. Assim, se a ação deve ser

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iniciada dentro do prazo de 6 meses, é óbvio que o inquérito deverá ser requerido com certa antecedência, de maneira a possibilitar ao ofendido, dentro daquele prazo, ingressar em juízo com a queixa.Pode o ofendido ou seu representante legal dispensar o inquérito e ingressar logo em juízo com a queixa. Todavia, para que isso aconteça, é indispensável possua ele elementos necessarios para instruir a ação penal.

4. Conteúdo do requerimento

Como deve ser feito tal requerimento? Sua feitura obedece ao disposto no § 1.' do art. 5.". Poderá ser indeferido? A lei não diz. 0 § 2." do art. 5.' refere-se apenas ao requerimento de que trata o inc. 11 do art. 5.". Mas, se extinta estiver a punibilidade, ou se o fato não constituir infração, nada impede que a autoridade o indefira. E se a autoridade não for competente? Nesse caso, nada obsta se aplique, por analogia, o que dispõe o § 3." do art. 39, isto é, o requerimento será encaminhado àquela que o for.Nada impede, também, em face de um indeferimento, possa o requerente recorrer ao Chefe de Polícia (antiga denominação dos atuais Secretários da Segurança Pública).

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§ 4*0 -

Da persecuçao

SUMÁRIO: 1. Diligências. 2. Apreensão de objetos e instrumentos do crime. 3. Da busca e apreensão. 4. Da ouvida do ofendido. 5. Da ouvida do indiciado. 6. Do reconhecimento. 7. Das acareações. 8. Dos exames periciais. 9. Reprodução simulada. 10. A identificação. 11. Tipos e subtipos. 12. Pode o indiciado recusar-se a ser identificado? 13. Folha de antecedentes.

1. Diligências

Dispõe o art. 6.' do CPP:

"Logo que tiver conhecimento da prática de infração penal, a autoridade policial deverá:1 - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais (redação dada pela Lei n. 8.862, de 28-3-1994);11 - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais (redação dada pela Lei n. 8.862, de 28-3-1994);III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;IV - ouvir o ofendido;V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo 111 do Título VII, deste Livro" (arts. 185 e s), "devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas

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que lhe tenham ouvido a leitura;

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VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;VIII - ordenar a identificação do indiciado Pelo processo dactiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;"6'0, IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter".

A alteração introduzida no inc. 1 do art. 6.' não apresentou nenhum significado, pois sempre se entendeu que a Autoridade Policial devia e deve tomar aquela providência, para que ninguém possa criar embaraços às atividades dos peritos.Por outro lado, o texto anterior era bem melhor que o atual. Aqui se diz que a Autoridade Policial deve dirigir-se ao local, providencian-

do enquanto o texto anterior acrescentava: "se possível e convenien

te Assim, se a Autoridade souber que alguém, à porta de um bar, ouem outro lugar, cometeu um crime de lesão corporal leve, que motivosjustificariam sua ida ao locus delicti?0 mesmo sucede com a nova redação dada ao inc. 11 do art. C. Agora, a apreensão dos objetos que tiverem relação com o fato, inclusive os instrumentos do crime, claro, somente poderá ocorrer "após liberados pelos peritos". Se, por acaso, no município não houver peritos disponíveis, alguém deverá ficar montando guarda daqueles objetos sem poder apreendê-los...Analisemos os incisos do citado artigo. Observe-se, contudo, que tais regras servem de excelente programa para um bom Delegado.Quando a Autoridade Policial tomar conhecimento da prática de uma infração penal que deixa vestígios - delictafactis permanentis -, como homicídio, roubo, furto qualificado etc., deverá, se possível e conveniente, dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e conservação das coisas, enquanto necessário.Na verdade, é de suma importância a presença da Autoridade Policial no locus delicti, isto é, no lugar em que ocorrer a infração, deven-

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do levar consigo o Escrivão, Médico-Legista (se for o caso e se possível) e até mesmo Fotógrafo. 0 exame do lugar do crime é de interesse inestimável na elucidação das infrações e descoberta da autoria. Proibindo a alteração do estado e conservação das coisas, até terminarem os exames e pericias, a Autoridade Policial visa, com tal atitude, impedir a possibilidade de desaparecerem certos elementos que

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possam esclarecer o fato e até mesmo determinar quem tenha sido o seu autor. Um simples objeto de insignificante valor encontrado no locus delicti pode ser uma pista segura para a determinação do autor do crime. Uma impressão digital, deixada no instrumento do crime, ou mesmo em objetos que estejam por ali, poderá desaparecer se a Autoridade Policial não se houver com a devida cautela, deixando de tomar a providência apontada no inc. 1 do art. 6.', ora em estudo.Tratando-se de crime de homicídio, e. g., é interessante constatarse a posição em que a vítima foi encontrada. 0 próprio locus delicti, quando possível, pode e deve ser registrado fotograficamente, "constituindo elemento de primeira ordem na elucidação dos fatos e na comprovação perante o julgamento de particularidade às vezes impossível de ser representada, por outra forma, nos autos do inquérito".Para que se perceba a utilidade de regra contida no iric. 1 do art. C, basta atentar para este caso citado por Marc Bischoff: acharam-se no local de um roubo, em uma pequena cidade próxima a Lausanne, três objetos deixados pelo ladrão. Entre eles, uma tesoura comum, que, de especial, apenas revelava a existência de uma massa preta, pegajosa, aderida ao metal. A análise dessa substância mostrou que se tratava de matéria que sempre se encontra em tesouras de sapateiros e proveniente do pó comum dos calçados. Pesquisas em casa de seis sapateiros da redondeza logo revelaram que um deles tinha uma atividade suspeita durante a noite. Foi o suficiente para se apurar a autoria do delito (Conferência do Prof. Marc Bischoff, in Amintas Vidal Gomes, Manual, cit., p. 144).0 art. 169 do CPP, por seu turno, adianta que, para o efeito do exame do local onde houver sido praticada a infração, a autoridade providenciará imediatamente para que não se altere o estado das coisas atéa chegada dos peritos, que poderão instruir seus laudos com fotografias,1desenhos ou esquemas elucidativos. Todavia, se se tratar de acidentesautomobilísticos, aplicar-se-á o disposto no art. 1.' da Lei ri. 5.970, de

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11-12-1973, que os "exclui da aplicação do disposto nos arts. C, 1, 64 e 169, do CPP". Verbis: "Em caso de acidente de trânsito, a autoridade ou agente policial que primeiro tomar conhecimento do fato poderá autorizar, independentemente de exame do local, a imediata remoção das pessoas que tenham sofrido lesão, bem como dos veículos nele envolvidos, se estiverem no leito da via pública e prejudicarem o tráfego. Para autorizar a remoção, a autoridade ou agente policial lavrará boletim de ocorrência, nele consignando o fato, as testemunhas que o presenciaram e todas as demais circunstâncias necessárias ao esclarecimento da verdade" (cf. Lei ri. 5.970, de 11-12-1973). Muito embora a Lei ri. 8.862/ 94, que alterou o inc. 1 do art. 6." do CPP, houvesse revogado as disposições em contrário, o certo é que a Lei ri. 5.970/73, no particular, continua em vigor. Se houver um acidente na Dutra, com vítimas, e intenso transtorno no trânsito, não tem sentido devam os Policiais Rodoviários ficar no aguardo da chegada da Polícia Técnica... Ao que parece, o inc. 1 do art. 6.' do CPP cuida de outros tipos de infração penal, tais como homicídio doloso, latrocínio, furto qualificado etc.

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2. Apreensão de objetos e instrumentos do crime

Deverá, também, a Autoridade Policial determinar a apreensão dos instrumentos do crime e de todos os objetos que tiverem relação com o fato, após a liberação feita pelos peritos.A importância dessas diligências é facilmente constatável. Nos termos do art. 11 do CPP, "os instrumentos do crime, bem como os objetos que interessarem a prova, acompanharão os autos do inquérito". De acordo com a letra a do inc. 11 do art. 91 do CP, são efeitos da sentença condenatória... a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé, dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito. De acordo com o art. 124 do CPP, os instrumentos do crime, cuja perda a favor da União for decretada, serão inutilizados ou recolhidos a museu criminal, se houver interesse na sua conservação.Por outro lado, dispõe o art. 175 do CPP: "Serão sujeitos a exame os instrumentos empregados para a prática da infração, a fim de se lhes verificar a natureza e a eficiência".Pela análise desses dispositivos bem se percebe da real importância da apreensão dos instrumentos do crime. Ademais, os objetos que

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interessarem à prova devem ser apreendidos, e a necessidade dessa medida dispensa qualquer comentário.

3. Da busca e apreensão

A busca e apreensão dos instrumentos do crime e de outros objetos que interessarem à prova poderá ser levada a efeito ou no proprio locus delicti, ou em domicílio, ou até mesmo na própria pessoa. Quanto à busca e apreensão no locus delicti, não haverá maior dificuldade para o encarregado dessa tarefa. Tratando-se de busca domiciliar ou mesmo pessoal, o assunto merece maior exame.Em se tratando de busca domiciliar, a Constituição Federal, no art. 5.', XI, prescreve: "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".Assim, as buscas domiciliares somente poderão ser realizadas com autorização do Juiz. Melhor seria devesse o Legislador Constituinte atentar para a segunda parte do art. 13 da Constituição da República Federal da Alemanha. Verbis: "Buscas apenas podem ser ordenadas pelo Juiz e, caso a demora implique perigo, também pelos demais órgãos previstos pela lei e somente na forma nela preceituada".Em se tratando de busca pessoal, esta poderá ser realizada com mandado ou sem mandado. Se a própria Autoridade realizar a diligência (Juiz, Delegado), não haverá necessidade de mandado (CPP, art. 241). Sem mandado, também, quando a busca pessoal se faz durante a diligência domiciliar, ou então, no caso de prisão, ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito.

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As buscas podem ser realizadas a qualquer dia e qualquer hora? Nada impede seja a busca realizada em domingo ou feriado, pois até mesmo atos processuais podem ser realizados nesses dias, conforme se constata pelo art. 797 do CPP.. Todavia, quanto à hora, a lei estabelece que as buscas domiciliares serão executadas de dia. À noite não é possível. Embora haja discordância entre os autores em determinar o espaço de tempo considerado noite, admite-se seja aquele período compreendido entre as 18 e as 6 horas. Já o nosso Pimenta Bueno ensinava: "Pela palavra noite deve entender-se o tempo que medeia entre a entrada e a

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saída do sol". 0 fato de o art. 172 do CPC dispor que os atos processuais podem ser praticados das 6 às 20 horas, segundo a redação dada pela Lei n. 8.952194, não significa que a expressão "dia" se estenda do período das 6 às 20 horas. Se entendêssemos assim, teríamos de interpretar a Lei dos Juizados Especiais, ao dispor que as audiências podem ser realizadas no período noturno, como sendo aquele período entre as 20 e as 6 da manhã...4Tuando a Lei dos Juizados permite a prática de atos processuais no período noturno, obviamente se refere àquele espaço-tempo além das 18 horas. 0 bom-senso está a mostrar que e o espaço de tempo entre as 18 e as 22 horas, se tanto. 0 fato de os atos processuais poderem ser praticados entre as 6 e as 20 horas não quer dizer que às 20 horas ainda seja dia...Tal proibição nada mais é senão a efetivação da garantia constitucional pertinente à inviolabilidade do domicílio, que "só em situações extremas admite a entrada em casa alheia à noite, facultando-a durante o dia, em casos expressos em lei, por considerar as necessidades do preponderante interesse social imperando sobre as garantias individuais".A nossa Carta Magna não se refere, expressamente, ao período noturno. Mas, pela sua redação, percebe-se, claramente, que durante a noite a busca domiciliar somente será possível: a) com assentimento do morador; b) no caso de flagrante delito; c) no caso de desastre; e d) para prestar socorro. Já durante o dia, a entrada é permitida não só nessas hipóteses, como, também, quando houver determinação judicial.0 Código Penal, por seu turno, dispõe no art. 150: "Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena - detenção, de um a três meses, ou multa".Todavia o proprio Código estabelece no § 3.' do mesmo artigo: "Não constitui crime a entrada ou permanencia em casa alheia ou em suas dependências: 1 - durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência; 11 - a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser".A busca, entretanto, poderá ser realizada à noite, se a tanto não se opuser o morador. E se, durante o dia, houver oposição do morador? Será arrombada a porta e forçada a entrada, procedendo-se, em seguida, à busca e apreensão. E se, durante o dia, o morador nela não estiver?

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Qualquer vizinho, se houver e estiver presente, será notificado a assistir à diligência (CPP, art. 245, § 4.').É de notar que pode haver apreensão sem busca. Suponha-se que o próprio indiciado apresente à Autoridade Policial o instrumento do crime ou qualquer objeto que interesse à prova; suponha-se que um circunstante arrebate o instrumento do crime das mãos do criminoso e o entregue à Autoridade Policial. Nessas hipóteses, cumprirá à Autoridade determinar a lavratura de um auto de exibição e apreensão.A matéria pertinente à busca e apreensão está contida no art. 240 usque 250 e parágrafos do CPP, e, quando do seu estudo, faremos uma análise mais minudenciosa.Deverá a Autoridade Policial colher as provas que servirem para o esclarecimento do fato, de suas circunstâncias e autoria. A autoridade deverá, antes de tudo, saber colher as provas. É comum, em inquéritos policiais, serem tomados depoimentos de pessoas que nem sequer souberam do fato... quando outras pessoas o testemunharam.Mas não são apenas as testemunhas. Tudo o que puder esclarecer o fato, suas circunstâncias e autoria, deverá ser colhido: um sapato, uma corrente, um retrato, um lenço, um documento, uma impressão digital etc. poderá, em determinado caso, ser de valor inestimável. Às vezes, um objeto de insignificante valia poderá ser suficiente para desvendar um crime e sua autoria.

4. Da ouvida do ofendido

Deverá a autoridade, quando possível, ouvir o ofendido. 0 sujeito passivo do crime, de regra, é quem melhor poderá fornecer à Autoridade Policial elementos para o esclarecimento do fato. Certo que a palavra do ofendido apresenta valor probatório relativo em face do interesse que tem na relação jurídico-material. Mas, às vezes, sua palavra é de extraordinária valia, pois constitui o vértice de toda a prova, como sucede nos crimes contra os costumes. Tais crimes se cometem longe dos olhares de testemunhas e, por isso mesmo, se não se atribuir à palavra da vítima excepcional valor, dificilmente se conseguirá punir os autores dessas infrações.Cumpre, assim, à Autoridade Policial, se possível, determinar a notificação do ofendido a fim de comparecer na Delegacia, em dia e hora designados, para ser ouvido. E se o ofendido desatender à notifica-

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ção? Poderá parecer, prima facie, Possa a Autoridade Policial valer-se do disposto no art. 219 do CPP (com a redação que lhe deu a Lei ri. 6.416, de 24-5-1977), por aplicação analógica. Entretanto é de se ponderar que o art. 219 fala em testemunha e não em ofendido. Mais: analogia poderia ser feita, não estivesse a hipótese regulada em lei... Poderá, e isso é diferente, ser o ofendido processado por

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desobediência. Afora essa providência, o mais que a Autoridade Policial poderá fazer é deterq*ar sua condução coercitiva, tal como lhe permite o parágrafo único do art. 201 do CPP: "Se, intimado para esse fim" (o "fim" está esclarecido no caput do artigo), "deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade". É a chamada condução coercitiva.Dependendo do caso concreto, poderá até a Autoridade Policial determinar sua busca e apreensão, nos termos do art. 240, § 1.', g, do CPP.Cumpre salientar, por derradeiro, que dificilmente ocorrerá a hipótese de o ofendido não atender à notificação da Autoridade Policial, uma vez que ele próprio tem interesse em ver processado e afinal punido aquele que o ofendeu. Assim, procurará atender ao chamado para prestar os esclarecimentos que se tornarem necessários.

S. Da ouvida do indiciado

A Autoridade Policial, quando da elaboração do inquérito, deverá, se não for impossível (caso de fuga, de autoria desconhecida etc.), ouvir o indiciado, vale dizer, a pessoa contra quem for instaurado o inquérito.

Como acentua o iric. V do art. 6.' do CPP, deverá a Autoridade Policial observar o disposto no Capítulo 111 do Título VII do Livro 1, isto é, os arts. 185 e s. do CPR Com tal expressão, quer o legislador dizer que o interrogatório do indiciado deverá ser realizado dentro daquelas mesmas normas e garantias que norteiam o interrogatório levado a efeito pela Autoridade Judiciária. Feita a advertência a que se refere o art. 186, restringindo-se-lhe a parte final, em face do seu direito ao silêncio, procederse-á de acordo com o disposto no art. 188 do CPP, no que for aplicável.Se o indiciado não atender à notificação, nada impede seja ele conduzido à presença da Autoridade Policial. 0 mesmo se diga se se tratar de testemunhas. 0 inquérito é eminentemente peça inquisitiva e inquisitio sine coercitione nulla est...

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1

Quando do interrogatório, não deve a Autoridade Policial esquecer que reus res sacra (o réu é coisa sagrada). Injustificável seria o procedimento da autoridade que pretendesse extorquir confissões. Espancando o indiciado para conseguir confissão, esta perderia o seu valor, e a autoridade seria criminal e administrativamente responsabilizada. Condena-se, por razões óbvias, qualquer processo que vise devassar o íntimo psíquico do indiciado e mesmo de testemunhas, tais como o automógrafo, o retinoscópio, mais conhecido por look-him-in-the-eyes, o psicogalvanômetro, o pneumógrafo, o esfiginógrafo, o lie detector e, inclusive, a narcoanálise. A psicoterapia profunda, por meio de estupefaciente, como a escopolamina, amital sódico, pentotal, evipan, metedrina (derivados do ácido

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barbitúrico), possibilita devassar amplos desvãos do inconsciente. Com o emprego de tais drogas, diz-se, o indivíduo adormece ligeiramente, estreitando o campo de ação de sua consciência, sem desaparecer completamente o contato dele com o meio ambiente. Háum relaxamento geral da atividade da pessoa, que é, por isso mesmo, levada a fazer confidências íntimas, revelando fatos que até então recusava confessar.A narcoanálise, entretanto, como bem diz Hungria, constitui verda-

deiro constrangimento ilegal.Em seu trabalho E1 narcoanálisis como procedimiento diagnóstico y criminalistico, Heinrich Kranz observou que "es posible utilizar elnarcoanálisis para obtener confesiones forzadas de hechos falsos. No veo que ventaj as puede tener el sistema con respecto a Ios procedimientos medievales de obtener una confesión. Es más aséptico, menos brutal, pero más cruel. Encierra un mayor desprecio por Ia persona humana, tanto más cuanto que no se usa solo, sino como coronamiento de una técnica prolongada de aniquilamiento de Ios resortes psiquicos y físicos del ser humano".Diga-se o mesmo a respeito do lie detector, detector de mentiras, ou cardiopneumopsicograma, não usado, felizmente, entre nós.Aliás, para postergar todo e qualquer ato que avilte o indiciado, aí está o art. 5.', 111, da CF: "Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".E a tal ponto chegou o respeito à dignidade humana que a Magna Carta concedeu aos indiciados ou réus o direito ao silêncio (art. 5.', LX111).0 auto do interrogatório será subscrito pelo escrivão e assinado pela Autoridade Policial, pelo indiciado e por duas testemunhas. Não há necessidade de as testemunhas assistirem ao interrogatório. 0 próprio

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texto legal frisa: " ... e assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura". Se o indiciado não quiser ou não souber assinar seu nome, tal fato será consignado no final do auto do interrogatório, como, aliás, prescreve o parágrafo único do art. 195 do CPP.

6. Do reconhecimento

ÀrAutoridade Policial deverá, quando necessário, proceder a reconhecimento de pessoas ou coisas. Os reconhecimentos devem ser feitos segundo as prescrições dos arts. 226, 227 e 228 do CPP:

"Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:1 - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;11 - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;111 - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

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IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais"."Art. 227. No reconhecimento de objeto, proceder-se-á com as cautelas estabelecidas no artigo anterior, no que for aplicável.""Art. 228. Se várias forem as pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas."

7. Das acareações

A Autoridade Policial deverá, também, quando necessário, proceder às acareações. Estas poderão ser feitas sobre fatos ou circunstâncias relevantes, entre indiciados, entre indiciados e testemunhas, entre teste-

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munhas, entre indiciado ou testemunha e a pessoa ofendida, entre os ofendidos, sempre que divergirem em suas declarações.Os acareados serão reperguntados sobre os pontos de divergência, reduzindo-se a termo o ato da acareação. Repita-se: a acareação é cabível quando a divergência entre depoimentos, declarações, interrogatórios ou entre uns e outros versar sobre fato ou circunstância relevante. Do contrário, não. Se a testemunha X disse que o indiciado fora agredido, por primeiro, pela vítima, e a testemunha Y alegou que a agressão inicial partira do indiciado, tal circunstância sobre o início da agressão é relevante. Positiva a primeira hipótese, poder-se-á cogitar de legitimidade de ação. Verdadeira a segunda, afasta-se a possibilidade de legítima defesa.Entretanto, se a divergência for sobre ponto irrelevante para a decisão da causa, desnecessária será a acareação. Desse modo, se a vítima alegou que o indiciado lhe desferira quatro murros e a testemunha X disse terem sido três, para que acareação?Note-se que o auto de acareação somente terá valor se a Autoridade Policial tiver o cuidado de, no final deste, fazer observações sobre as reações fisionômicas dos acareados, bem como análise da sua compostura, coerência e firmeza. Faz-se a acareação colocando-se os acareados (testemunhas, testemunha e indiciado, indiciados, testemunha e vítima, vítimas) um frente ao outro, em presença da Autoridade Policial. Esta, então, procede à leitura dos trechos dos depoimentos conflitantes e, se forem testemunhas, lembra-lhes o compromisso que prestaram antes de depor, para, em seguida, indagar-lhes se confirmam seus depoimentos anteriores ou se têm alguma modificação a introduzir. Concluída a acareação, lavrar-se-á um auto, que será por todos assinado.Se ausente alguma pessoa (testemunha, vítima, indiciado) cujas declarações divirjam das de outra que esteja presente, a esta se darão a conhecer os pontos de divergência, consignando-se no auto o que explicar ou observar. Se subsistir a discordância, expedir-se-á precatória à Autoridade Policial do lugar onde resida o outro acareando, transcrevendo-se as declarações deste e as do outro, nos pontos em

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que divergirem, bem como o texto do referido auto, a fim de que se complete a diligência, ouvindo-se o ausente pela mesma forma estabelecida para o presente. Tal diligência, que a rigor não se pode chamar de "acareação", somente poderá ser realizada se não importar demora para a conclusão do inquérito e, à evidência, se a Autoridade Policial reputá-la conveniente.

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Se a Autoridade pretender proceder à acareação entre indiciado e testemunha ou vítima, não se deve olvidar que, tendo aquele o direito constitucional ao silêncio, não será obrigado a participar do ato. Fálo-a se quiser.

8. Dos exames periciais

SO-for o caso de se proceder a exame de corpo de delito ou a quaisquer outras perícias, a Autoridade Policial deverá determiná-las, de conformidade com o art. 158 usque 184 do CPRProcede-se a exame de corpo de delito todas as vezes que a infração deixar vestígios. Quando se fala em corpo de delito, a primeira idéia que se tem é a do corpo da vítima. Nada mais errado. Corpo de delito ou corpus delicti, ou ainda corpus criminis, é o conjunto dos vestígios materiais deixados pelo crime. Assim, o exame de corpo de delito pode ser feito num cadáver, numa pessoa viva, numa janela, num quadro, num documento...Há infrações que deixam vestígios - delictafactis permanentis e as que não deixam - delictafactis transeuntis. Se alguém falsifica um documento, os vestígios materiais deixados pelo crime são o documento falsificado. Este, pois, será objeto do exame de corpo de delito. Se a vítima apresenta um ferimento na testa, produzido por um golpe desferido pelo agente, os vestígios materiais deixados pelo crime são aquela ferida deixada na fronte do sujeito passivo da infração penal. A lesão, pois, será objeto de exame de corpo de delito.

tígios.

Já a calúnia, a injúria e a difamação, se verbais, não deixam ves-

Porém não são apenas os exames de corpo de delito que podem ser realizados durante a feitura do inquérito policial, mas quaisquer outras pericias. Certo que a lei guindou o exame de corpo de delito à categoria de pressuposto processual de validade, ao salientar, no art. 564, 111, b, do CPP, que haverá nulidade se não for feito o exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, ressalvada a hipótese do art. 167. Certo, também, que a autoridade não pode indeferir requerimento da vítima ou do indiciado no sentido de que se realize o exame de corpo de delito, como se constata pelo art. 184 do mesmo estatuto. A despeito dessa relevância que o exame de corpo de delito oferece, não podendo sequer ser

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suprido pela confissão do indiciado (CPP, art. 158), não se infira daí que os demais exames periciais são de pouca valia. Ele é importante, porquanto constata a materialidade do fato delituoso de maneira eloqüente.Todavia os demais exames periciais que se fazem têm notável relevância, porquanto esclarecem, elucidam e aclaram a compreensão de algum fato ou circunstância relacionada com a persecução. A análise da composição química de um objeto, o exame realizado para se constatar a existência de sangue humano num determinado objeto, a pesquisa de sangue oculto, o exame caligráfico, o exame realizado numa arma para se constatar se ela foi ou não utilizada recentemente, o exame psiquiatrico para constatação da saúde mental da vítima etc. mostram a imensa gama de perícias que podem ser realizadas durante o inquérito policial. Pode, pois, a Autoridade Policial determinar a realização de quaisquer perícias, menos o exame para constatação da saúde mental do indiciado. Nesse caso, cumpre à autoridade representar ao Juiz competente no sentido de que se faça como determina o § 1.' do art. 149 do CPP.Tais exames são realizados por pessoas que, pelos seus conhecimentos técnicos, científicos, artísticos ou de qualquer ramo do saber, estão em condições de ilustrar a Justiça. São os peritos. Estes podem ser oficiais ou inoficiais. Os primeiros são aqueles que exercem função pública, com atribuições previamente determinadas em lei. Quando não houver peritos oficiais, os exames serão realizados por duas pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior, escolhidas, de preferência, entre as que tiverem habilitação técnica relacionada à natureza do exame. Os primeiros não prestam compromisso de bem e fielmente desempenhar a tarefa que lhes tenha sido atribuída, mesmo porque, quando assumiram o cargo público de perito, já o prestaram. Entretanto, se se tratar de perito não oficial, o compromisso é formalidade essencial, como se percebe pela leitura do § 2.' do art. 159 do CPP.Sejam oficiais ou não oficiais, os peritos não podem ser indicados pela vítima ou indiciado, e, mesmo quando realizada a pericia eriajuízo, não podem eles ser escolhidos pelas partes. No nosso sistema, a nomeação dos peritos é ato exclusivo da Autoridade, seja Judicial, seja Policial (CPP, art. 276).Insta acentuar que a doutrina reconhece a perícia como verdadeira função social, pelo que não podem as pessoas nomeadas para tal encargo recusá-lo. No particular, bastante claro o disposto no art. 277 do CPP.

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Formulados os quesitos pela autoridade e apresentado aos peritos o objeto do exame, deverão eles, após a inspeção, responder às questões apresentadas.

Os peritos devem ser dois. Sejam eles oficiais ou não. É o que determina, expressamente, a Lei n. 8.862, de 28-3-1994, dando nova redação ao art. 159 do CPR Nos crimes falimentares, contudo, devem ser observadas as regras ali contidas, por se tratar de lei especial e, além do mais,Áeisciplinando ela, de maneira diversa, o problema do número de peritos (art. 63, V), é razão séria para que não se

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invoque regra processual penal. Admite-se, contudo, a subsidiariedade do CPP quando, em matéria processual penal, for ela omissa.Diz o art. 176 do CPP que a autoridade e as partes poderão formular quesitos até o ato da diligência. Logo, como no inquérito policial não há partes - a pessoa que pede e aquela contra quem se pede a aplicação da lei -, força é convir que a regra do art. 176 é aplicável tãosomente na fase judicial. Durante o inquérito - e esta tem sido a praxe - somente a Autoridade Policial é quem formula os quesitos, que, para maior comodidade, já vêm impressos. Pelo menos para os casos mais correntes. Assim, se se tratar de exame cadavérico, estes os quesitos: 1.') Houve morte? 2.') Qual a sua causa? 3.') Qual o instrumento ou meio que a produziu? 4.') Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel? (resposta especificada). Tratando-se de lesão corporal, formulam-se as seguintes indagações: 1.') Houve ofensa à integridade corporal ou à saúde do paciente? 2.') Qual o instrumento ou meio que a produziu? 3.') Foi produzida por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel? (resposta especificada). 4.') Resultou incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias? 5.') Resultou perigo de vida? 6. ) Resultou debilidade permanente ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função? (resposta especificada). 7.') Resultou incapacidade permanente para o trabalho, ou enfermidade incurável, ou deformidade permanente? (resposta especificada). Se a vítima for mulher, formula-se mais um quesito: "Resultou aceleração de parto ou aborto?".Não se deve olvidar que a perícia, entre nós, na maioria dos casos, é feita na fase pre-processual, e constitui grave ofensa aos direitos do indiciado o mau vezo de não se lhe permitir o direito de formular quesitos. Certo que o inquerito é inquisitivo e que o advogado do indiciado

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dele não participa, isto é, não intervém nos atos que nele se realizam, mesmo porque não há acusação no inquérito. Mas é de se ponderar que, muitas e muitas vezes, os exames periciais não podem ser renovados na instrução criminal, porque os vestígios já desapareceram, e, assim, impossibilitada ficará a Defesa de insistir na feitura de novo exame. Por outro lado, se as provas colhidas na Polícia (depoimentos, declarações: interrogatórios) não apresentam valor probatório absoluto e, por isso são renovadas na instrução, já agora sob o crivo do contraditório, e se as provas periciais feitas na Polícia dificilmente podem ser repetidas em juízo, é curial devam as Autoridades Policiais, em exames dessa natureza, permitir aos indiciados a formulação de questões a respeito. Note-se que o art. 316 do CPPM expressamente lhos permite.

Deverá, também, a Autoridade Policial averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime, e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.

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Tal providência da Autoridade Policial é de valor inestimável para o Juiz, quando da aplicação da pena (CP, art. 59).

9. Reprodução simulada

Às vezes deverá a Autoridade Policial, para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública.De regra a reprodução simulada é feita pelo próprio indiciado. E se este a tanto se opuser? Não comete nenhuma infração. Se ele não é obrigado a acusar a si próprio (nemo tenetur se detegere), se ele tem o direito constitucional de permanecer calado, não teria, como não tem sentido, ser eventualmente processado por desobediência pelo simples fato de se recusar a contribuir para a descoberta de "alguma prova" contra ele...

10. A identificação

Podemos dizer que a identificação é o processo usado para se estabelecer a identidade. Esta, por sua vez, vem a ser o conjunto de dados e sinais que caracterizam o indivíduo.

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0 primeiro processo usado para se identificarem os criminosos foi a mutilação. Depois passou-se a usar o ferro em brasa. Na França, por exemplo, os condenados à galé levavam, gravadas com ferro em brasa, as letras GAL; outros criminosos levavam, gravada com ferro em brasa, uma flor-de-lis.0 Floral de Lourinhã, confirmado por D. Afonso 11, em 1218, dizia: "0 que furtar na casa, no campo, ou na eira, seja logo pela primeira vez rM#rcado na testa com ferro quente; pela segunda, ponham-lhe um sinal; pela terceira, enforquern-no".Mesmo no Brasil, no segundo quartel do século XVIII, havia disposiçao no sentido de que "a todos os negros que forem achados em quilombos, estando neles voluntariamente, se lhes ponha uma marca em uma espádua com a letra F, que, para este efeito, haverá nas Câmaras e se, quando se for a executar esta pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha, tudo por simples mandado do Juiz ......

Tais processos eram, à evidência, profundamente desumanos, e, por isso mesmo, desapareceram. Sem outro meio para a identificação dos criminosos, era por demais difícil às autoridades saberem se este ou aquele era ou não reincidente, mesmo porque os criminosos astutos trocavam de nome, modificavam a fisionornia, deixando, por exemplo, crescer a barba e outros expedientes que tais. Entretanto a luta pela identificação não cessava. No início do século passado, era comum nas prisões da França os condenados ou presos correcionais ficarem andando em círculo durante algum tempo, quase que todos os dias, e, enquanto isso, alguns policiais ali postados observavam as suas fisionomias, procurando, tanto quanto possível, gravá-las, para mais

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tarde, quando eles dali saissem e viessem a cometer outra infração, saberem se eram ou não1reincidentes...Depois, surgiu a fotografia. Esta, contudo, não satisfazia aos interesses da Justiça, porque pessoas diversas se apresentavam e se aprer sentam parecidas, e, por outro lado, os retratos de uma mesma pessoa, mediante processos fraudulentos, ostentam aparências fisionômicas variadas. As contrações do rosto, as perucas, o falso bigode, a maneira de repartir os cabelos, a simulação de um gilvaz, tudo são processos utilizáveis de molde a mostrar quão falível é a fotografia como meio de identificação.Com o aumento da criminalidade, com as recidivas criminais constantes e dado o interesse de os Estados reprimirem com severidade os

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reincidentes, o mundo inteiro ficou a braços com o problema da identificação dos criminosos. Com o desprestígio da fotografia surgiu na França, no século passado, o chamado "retrato falado" de Bertillon. A seu respeito, diz Almeida Júnior: registram-se no retrato falado: a) três grupos de caracteres essenciais relacionados com: 1) a fronte; 2) o nariz; 3) a orelha direita; b) oito grupos de caracteres complementares relacionados com: 4) os lábios, a boca, o queixo; 5) os contornos gerais do perfil e da face; 6) as sobrancelhas, as pálpebras, os globos oculares e as órbitas; 7) as rugas; 8) o sistema piloso; 9) os membros superiores e inferiores; 10) a atitude geral e certos caracteres especiais (robustez, andar, gesticulação, olhar, voz, vestuário); 11) a idade aparente (cf. Lições de medicina legal, 1962, p. 17).Em meados do século passado, o mesmo Alphonse Bertillon, simples funcionário da Prefeitura de Paris, revolucionou toda a França, com profundos reflexos na Europa e até mesmo na América, com o processo denominado antropometria. Cansado de guardar fotografias (às vezes mal tiradas) dos criminosos e dada a complexidade do "retrato falado", lembrou-se Bertillon de que o grande Quetelet afirmara que a probabilidade de duas pessoas possuírem a mesma altura era de 1 para 4. Assim, imaginou que, se se tomassem outras medidas do corpo, a proporção seria bem maior e a probabilidade de duas pessoas apresentarem as mesmas dimensões corporais passaria a ser de 1 para 8, para 16, para 32 etc., dependendo do número de medidas tomadas. Partindo desse princípio, criou ele a antropometria, processo segundo o qual se deviam tomar certas medidas do corpo do criminoso: altura, diâmetro anteroposterior da cabeça, diâmetro biparietal, diâmetro bizigomático, busto, dedos etc. E, ao lado desses elementos, havia ainda o retrato do criminoso, de frente e de perfil, sempre tirado de uma mesma distância e com a redução constante de 1/7 do retrato obtido.A princípio, dado o número de criminosos, não lhe foi difícil conseguir um êxito retumbante. Todo delinqüente, antes de ser recolhido à prisão, passava pelo "laboratório" de Bertillon, e este, então, além de lhe tirar a fotografia, passava a tomar-lhe as medidas do corpo.

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Quando um determinado cidadão era preso e havia dúvidas sobre se era ou não reincidente, Bertillon tomava-lhe as medidas e procurava confrontá-las com outras existentes nos arquivos. 0 processo era infalível. A bertillonagem ganhou fama e passou a ser adotada em quase todo o mundo.

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Mais ou menos por essa época, William Herschell, funcionário inglês em serviço em Hoophly, na índia, observava que os mercadores chineses, às vezes, selavam documentos com a impressão de um polegar enegrecido. Notara também as curiosas figuras que dedos e mãos sujas deixavam sobre a superfície de vidros, madeiras e outros objetos. Certa feita, determinou a um indiano que premesse toda a mão direita numa almofada para carimbos de borracha e a imprimisse sobre um contrato. Fez aquilo sem saber por que o fazia. Depois, passou a notarque os desenhos curiosos que os dedos sujos deixavam sobre papel, parede, vidros e outros objetos eram diferentes...

Herschell passou a fazer observações nos anos seguintes e notou que os desenhos existentes nas pontas dos dedos não se alteravam.

Enquanto isso se passava na índia, um médico escocês, Henry Faulds, que se encontrava no Japão ensinando fisiologia e que, nas horas de folga, dedicava-se a estudos etnológicos, ao examinar trabalhos de cerâmica pré-históricos, teve sua atençãd despertada para certas marcas de dedos que neles foram deixadas, enquanto a argila estava mole. Essa circunstância, aliada ao costume então existente no Japão de se assinarem documentos com a impressão de dedos, em tinta preta ou vermelha, mais lhe despertou a curiosidade. Certa feita, avisaram ao médico escoces que um ladrão saltara um muro pintado de branco e nele deixara inúmeras impressões de dedos. Por coincidência lhe avisaram, também, que o larápio havia sido preso. Após examinar as marcas digitais existentes no muro, dirigiu-se Faulds à Polícia e pediu para tirar as impressoes dos dedos do capturado. Após compará-las, afirmou categoricamente que o preso não havia sido o autor do furto. Dias mais tarde, prendeu-se o verdadeiro ladrão, e suas marcas digitais correspondiam as do muro.Tal descoberta foi enviada à revista inglesa Nature, e, com base nessas informações, Francis Galton, na Inglaterra, passou a estudar o "fenômeno", mas, sem embargo de muitos anos de trabalho, não conseguiu elaborar logo uma classificação das digitais.

Alguns anos mais tarde, na Argentina, um funcionário da Polícia, dálinata de nascimento, D. Juan Vucetich, recebera a incumbência de instalar uma sala para os trabalhos antropornétricos, muito em uso na Europa, principalmente na França, e, ao mesmo tempo, despretensiosamente, lhe foi entregue, também, um exemplar da Revue Scientifique, onde se davam notícias das experiências de Galton.

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Entusiasmou-se Vucetich pelo trabalho, passando a estudá-lo mais detidamente, e, dentro em pouco tempo, descobriu os quatro tipos fundamentais: Arco, Presilha Interna, Presilha Externa e Verticilo. 0 arco apresenta linhas de um a outro bordo da polpa digital, descrevendo pequenas curvas com convexidade para a ponta dos dedos. As presilhas são formadas por linhas que partem de um dos bordos da polpa do dedo, descrevem uma curva alongada e voltam ao bordo de onde partiram, e, no lado oposto, a confluência das linhas discordantes forma um pequeno ângulo ou delta. Quando o delta é formado à direita da pessoa que observa sua impressão, diz-se presilha interna; se à esquerda, presilha externa. Já os verticilos são formados por linhas que descrevem círculos concêntricos ou em espiral. Apresentam, por isso, dois deltas, um no lado esquerdo e o outro no direito.

Quando essas saliências papilares eram encontradas no polegar, Vucetich classificava-as por letras (A, B, C e D) e, quando encontradas nos demais dedos, por números (1, 2, 3 e 4). Posteriormente, a classificação das impressões encontradas nos polegares se fez com outras letras: A (arco), I (presilha interna), E (presilha externa) e V (verticilo). Nos demais dedos, A corresponde a 1; 1 corresponde a 2; E corresponde a 3 e V corresponde a 4.

Ninguém dava atenção ao trabalho de Vucetich, quando, em 1892, chegou a Buenos Aires a notícia de que em Necochea, pequena cidade próxima da capital argentina, fora cometido um duplo homicídio numa cabana. Tudo estava a indicar que o culpado era Velasquez. A Polícia ainda estava confusa em face da acusação que a mãe das vítimas, Francesca Rojas, fazia a Velasquez. Após várias investigações, ali chegara o inspetor Alvarez. Este não acreditara na culpa de Velasquez, embora nada pudesse provar. Todavia, indo ao locus delicti, viu uma mancha na madeira da porta. Percebendo que se tratava de impressão digital (polegar manchado de sangue), serrou a parte da porta que continha a mancha e, em seguida, levou-a ao posto policial e ordenou que Francesca Rojas premesse o dedo sobre uma almofada de carimbo e, em seguida, sobre uma folha de papel. De posse de uma lente de aumento, confrontou as impressões e notou a perfeita semelhança. Depois, fez com que Francesca também observasse. E ela, que, peremptoriamente, vinha acusando Velasquez, reconheceu sua culpa.

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Daí para a frente, a dactiloscopia tornou-se o centro de todas as atenções e, hoje, é usada no mundo inteiro, como sistema infalível para as identificações.Ainda no século passado, outros critérios foram aventados como sistemas infalíveis. Frigério achava que se devia examinar a orelha, suas circunvoluções, bem como sua implantação na caixa craniana. Era a otometria. Capdeville e Levinsohn cuidaram da oftalinografia (estrutura daÁ#Is); Amoedo, da odontoscopia, sendo certo que alguns atribuem tal sistema a Daniel Harwood (Boston, 1839); Tamásia julgava poder identificar as pessoas por meio das veias do dorso das mãos; Ameulli, pelas veias das frontes (era aflebografia); Stokis, pelos sulcos palmares; Wilder, pelos sulcos plantares; Bert, pelas particularidades do umbigo...

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Nenhum deles sobrepujou a dactiloscopia. Nada impede, contudo, que, num determinado caso concreto, se lance mão de um desses critérios. Suponha-se que a Polícia tenha feito levantamento de sulcos plantares deixados pelo criminoso. Preso o suspeito, pode-se fazer a comparação. Diga-se o mesmo em caso de dentadas...

Respeitante à dactiloscopia, cumpre salientar, contudo, que, desde o século XI ou talvez antes, o povo do Celeste Império fazia uso das impressões digitais em documentos, embora de maneira empírica. No Schwinhu-chuen, livro que descreve os costumes da China, no século XI, lê-se: "Então, Li-chung, depois que o secretário copiou o que ele ditara, marcou o seu sinal característico, firmando sua impressão ma-

nual E mais adiante: " mandou que as duas mulheres (suspeitas deassassinato) se aproximassem e as obrigou a impregnar de tinta os dedos, premendo-os, a seguir, no documento ......No Arquivo de Medicina Legal de Lisboa há umfac simile de um contrato feito em Macau, em 1865, por portugueses, para locação de serviços de chineses, em que a assinatura destes era uma impressão digital.Assim, a dactiloscopia era usada no Celeste Império e no Impériodo Sol Nascente, embora sem cunho científico. Tudo faz crer que os chineses e japoneses notaram que os desenhos papilares eram diferentes entre os indivíduos, de sorte que cada pessoa possuía seus desenhos papilares próprios. Não passaram daí. Somente em fins do século passado, graças aos trabalhos de Faulds e Herschell, coube a Francis Galton publicar um trabalho de cunho científico - Fingerprint directories -e, mais tarde, o gênio de Vucetich revolucionou o mundo, sem que conhecesse a classificação de Galton.

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0 maior achado de Vucetich revelou-se na chave da sua memorável classificação alfabético-numérica, em que, da ciranda entre arcos, presilhas e verticilos nos dez dedos das mãos, resultou um conjunto de 1.048.576 combinações identificadoras, perenes, intransinissíveis, imutáveis e diferentes.0 valor, pois, da dactiloscopia está na imutabilidade (desde o sexto mês de gestação até a putrefação), na perenidade (não pode ser modificada por vontade do possuidor) e na variedade (as impressões digitais são diferentes entre os homens).

Todavia Leonídio Ribeiro e Antônio Aleixo informam que as impressões digitais são suscetíveis de desaparecimento: a) por amputação ou putrefação dos dedos; b) por largas e profundas cicatrizes das polpas digitais; e c) em certas doenças como a hanseníase.

Por outro lado, valendo-se do cálculo das probabilidades, afirmam Kodiceck e Windt serem necessários 4.660.337 séculos para que possam surgir na superfície da Terra duas individuais dactiloscopicas iguais...

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0 sistema dactiloscópico foi lançado sob a denominação "lcnofalangometria". Posteriormente, coube ao Dr. Francisco Latiniza nomeá-la "Dactiloscopia" (daktylos - dedos - e skopein - examinar).

Hoje, a dactiloscopia é processo usado em todo o mundo, e o Brasil foi o primeiro país que, oficialmente, adotou o processo Vucetich como meio de identificação, pelo Decreto ri. 4.764, de 5-2-1903. 0 Chile, também, em 1924 a adotou e estendeu tal forma de identificação aos recém-nascidos. Entre nós, Leonídio Ribeiro bateu-se pela mesma idéia, mas não logrou êxito.

Na dactiloscopia, os quatro tipos básicos são: Arco, Presilhas Interna e Externa e Verticilo. Quando o desenho se apresenta sob a forma de arco, recebe essa denominação. Quando apresenta um delta à direita e as linhas convergem para a esquerda, presilha interna; se o delta for à esquerda e as linhas convergirem para a direita, presilha externa; e, finalmente, quando há dois deltas (do lado direito e do lado esquerdo), chama-se verticilo. Quando tais desenhos forem encontrados nos polegares, serão eles denominados alfabeticamente e, se nos demais dedos, numericamente.

11. Tipos e subtipos

Desse modo, temos os quatro tipos: A-1; 1-2; E-3; V-4. Assim, se alguém, no polegar da mão direita, apresenta um verticilo; no indicador,

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uma presilha externa; no médio, um arco; no anular, um verticilo e, no mínimo, uma presilha interna, teremos, então, a seguinte classificaçãodenominação: V-3-1-4-2.Além desses símbolos, usam-se também a letra X (para indicar cicatriz) e a letra 0 (para indicar amputação).

Posteriormente, criaram-se subtipos:S7~ subtipos do arco: Arco Plano (PL); Arco Angular (AG); Arco bifúreado à direita (Bd); Arco bifurcado à esquerda (Be); Arco dextro apresilhado (Da); Arco sinistro apresilhado (Sa).São subtipos da presilha interna: presilha interna normal (Nr) e presilha interna invadida (Vd).

São subtipos da presilha externa: presilha externa normal (Nr) e presilha externa invadida (Vd).

Quanto ao verticilo, temos: circular (cr); espiral (sp); ovoidal (ov); sinuoso (sn); duvidoso (dv).

Ao lado desses subtipos, há os tipos especiais:

2Dp - presilha interna dupla;

2G - presilha interna ganchosa;

3Dp - presilha externa dupla;

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3G - Presilha externa ganchosa;

4G - verticilo ganchoso.

Nos Arquivos do Instituto de Identificação, fazem-se fichas das anomalias, tais como sindactilia (dedos ligados), polidactilia (dedos em número maior que o normal), ectrodactilia (dedos em número menorque o normal) e desenhos anômalos, que são representados, respectivamente, pelos seguintes símbolos: SIN, POL, ECT, AN.A tal ponto chegou o desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema dactiloscópico, que por meio da impressão digital de um só dedo pode a Polícia Técnica identificar a pessoa, desde que haja no Instituto de Identificação ou no Instituto da Polícia Técnica o arquivo mono ou decadactilar daquela.

Pode acontecer que duas ou mais pessoas apresentem no dedo médio, por exemplo, uma presilha externa, e suponha-se que o criminoso tenhadeixado perfeitamente visível, no locus delicti, a impressão do seu dedo que apresenta, também, uma presilha externa. Nesse caso, feito o levantamento da digital e levada para a Técnica, lá, no arquivo monodactilar,

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tiram-se todas as fichas dos dedos médios (da mão esquerda e direita) que apresentem aquele desenho. Em seguida, passa-se ao exame de todas elas, procurando o perito os chamados pontos de referências, que são: ponto, ilhota, cortada, confluência, bifurcação, fim de linha, começo de linha, encerro, anastomose ou haste ou crochet. Se forem encontrados de 12 a 15 pontos de referência na ficha investigada e coincidentes com a "impressão" que se analisa, dúvida não há de que se trata da mesma pessoa.

E como se faz o levantamento da digital? Tratando-se de suporte escuro, lança-se mão do carbonato de chumbo, e, se o suporte for claro,negro fumo. 0 primeiro é um pó branco, e o segundo, um pó escuro.

Exemplo: houve um furto numa determinada residência, e tudo indica que o larápio deixou impressões digitais na geladeira. Coloca-se um pouco de negro fumo (pó semelhante ao grafite) sobre a superfície e, com auxilio de uma lanterna, vai-se afastando o pó (negro fumo) com um pincel bem macio e bem de leve. Localizado o dactilograma, coloca-se sobre ele uma fita durex e, após calcar um pouco, retira-se o durex, pregando-o, a seguir, sobre um quadrilátero de vidro. Está feito o levantamento. Tal vidro será encaminhado à Técnica, e lá, então, devidamente ampliado o dactilograma, feito o exame de comparação.

Se numa carteira de identidade houver esta anotação:

Série: V-1-2-4-0

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Seção: E-3-3-3-1podemos afirmar que o seu portador apresenta, na mão direita (série), as seguintes saliências papilares: polegar (verticilo); indicador (arco); médio (presilha interna); anular (verticilo) e mínimo (sofreu amputação). E na mão esquerda (seção): polegar (presilha externa); indicador (presilha extema); médio (presilha externa); anular (presilha externa) e mínimo (arco).

A CF, no seu art. 5.', LVIII, dispõe: "0 civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei".

Assim, desde que o cidadão, mesmo preso em flagrante, já tenha sido identificado civilmente - e para tanto basta exibir o seu RG -, não será ele identificado dactiloscopicamente. Salvo nas hipóteses previstas em lei. Como até o momento a lei não foi elaborada, explicitando as hipóteses, permanece a regra proibitiva do texto constitucional: não haverá identificação, dês que civilmente identificado.

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Não tendo sido identificado civilmente, cumprirá à Autoridade Policial, no curso do inquérito, se possível, proceder à identificação dactiloscópica. Cumprirá, então, a um funcionário da Delegacia colher as impressões digitais de ambas as mãos. São tiradas varias impressões em algumas folhas de papel, de sorte que cada folha, chamada planilha, conterá as impressões dos dez dedos. Uma acompanha os autos do inquérito; outra permanece nos autos suplementares do inquérito e as demais são encaminha~W ao Departamento de Investigação.

12. Pode o indiciado recusar-se a ser identificado?

Pode o indiciado Ou réu recusar-se a que tirem suas impressões digitais? Numerosos julgados mostram haver o crime de desobediência nessa recusa (cf. RT, 240/339, 413/263, 368/388, e M, 34/55 1). Todavia, se o cidadão já se achar identificado na unidade da Federação onde ocorreu a infração penal, para que identificá-lo novamente? Tal procedimento constitui verdadeira medida vexatóri a. Espínola Filho observava: "... sendo esta a finalidade da identificação, está-se a ver que não há por que sujeitar a tal medida o indiciado, que, exibindo carteira de identidade, documentar a realidade de já estar identificado no distrito da culpa; de acordo com as indicações da mesma carteira, o Instituto de Identificação terá conhecimento da acusação (sic) e estará apto a fornecer a folha de antecedentes judiciários" (cf. Comentários, cit., v. 1, p. 287). No mesmo sentido, Ary Franco (Comentários, v. 1, p. 54). Por outro lado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já decidiu: "Concede-se habeas corpus a quem, já tendo sido civilmente identificado, é convocado à identificação criminal, porque a preexistência daquela nos assentamentos policiais, nos quais se encontram todos os seus elementos de individualização, como fotografia, sinais morfologicos e impressões digitais, torna dispensável a formalidade vexatória e constrangedora da identificação criminal" (cf. RF, 191/297).

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0 STF, entretanto, dirimiu a controvérsia, estabelecendo na Súmula 568: "A identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente".Houve tentativas com o objetivo de a Suprema Corte alterar tal entendimento, mas o Excelso Pretório continuou irredutível, como se constata pelos arestos publicados no DJU, 30-11-1979, p. 8986 (Recurso Criminal ri. 90.543-0-DF; Recurso Criminal ri. 90.896-0-DF; Recur-

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so Extraordinário n. 90.894-3-1317; Recurso Extraordinário ri. 90.899-4DF; Recurso Criminal n. 90.906-1-DF); DJU, 6-6-1980, p. 4138 (Recurso Criminal n. 92.126-5 -PR); DJU, 26-6-198 1, p. 6306 (Recurso de Habeas Corpus ri. 58.919-7-DF).Na verdade, pessoas há (notadamente os estelionatários) que possuem o RG (registro geral, identificação) falso, e tal circunstância pode criar embaraços à Justiça.Observe-se que a Súmula 568 do STF não exige a identificação dactiloscópica. Diz apenas que, mesmo na hipótese de o indiciado já ter sido identificado civilmente, se a Autoridade Policial entender dever identificá-lo, não haverá constrangimento.Aliás, nem poderia ser de outra forma. Mas, se a pessoa já foi identificada para fins civis, e é pessoa conhecida, para que identificá-la dactiloscopicamente? Se isso for feito, das duas uma: ou a Autoridade Policial agirá sem raciocinar ou, então, manifestará o desejo insopitável de humilhar, vexar e abater a pessoa do indiciado.0 Prof. Paulo Cláudio Tovo, que perolou na magistratura gaúcha, integrando a instância superior, ensina: "Finalmente a Súmula 568 do Pretório Excelso há de ser aplicada, apenas, quando houver dúvida à identidade física do indiciado (não do denunciado), não obstante sua identificação civil. Fora daí, segundo nos parece, não há necessidade nenhuma da dualidade de identificações. 0 princípio da necessidade é que há de ditar a incidência da Súmula. Adotamos esse posicionamento por nos parecer o mais lógico e justo" (Apontamentos e guia prático sobre a denúncia no processo penal brasileiro, Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, Editor, 1986, p. 32).E se o indiciado houver fugido? Nesse caso, à evidência, não será possível a identificação dactiloscópica. Ainda assim, cumpre à Autoridade Policial qualificá-lo indiretamente, isto é, colhendo de pessoas conhecidas ou de parentes dados a respeito da sua qualificação. E, se esses dados forem perfeitos e completos, uma cópia é encaminhada ao D. 1. (Departamento de Investigação), e lá, por meio daqueles informes, será possível saber tratar-se ou não de reincidente.Por isso, uma vez tiradas as impressões ou mesmo feita a qualificação indireta, cumpre à Autoridade Policial remeter duas planilhas ao D. 1. (ou os dados colhidos quando da qualificação indireta) e indagar daquele Departamento se o indiciado (ou réu) já foi ou não processado

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em outra comarca. Com a planilha, o D. I., em 10 ou 15 minutos, localiza a ficha da pessoa cujos antecedentes se pedem (se elajá foi identificada, ainda que para efeitos civis) e presta as necessárias informações, dizendo, por exemplo, que o cidadão já foi processado em Ribeirão Preto etc. Ante tal informação, oficia-se ao juízo daquela comarca solicitando-lhe certidão de eventual sentença condenatória ali proferida contra o indiciado.Se não constar dos arquivos a identificação do indiciado, informará o D. 101não ter elementos para prestar as informações. Pode acontecer que o indiciado seja natural de outro Estado da Federação. Nessa hipótese, deverá a Autoridade Policial solicitar informações ao D. 1. daquele Estado, sempre tendo a cautela de remeter uma cópia da planilha. Esta é uma folha de papel contendo as impressões dos dedos das mãos direita e esquerda.

Hoje, conforme vimos, o legislador constituinte proibiu a identificação dactiloscópica daqueles já civilmente identificados. Não obstante isso, e mesmo sem o advento da nova lei que explicitará as hipóteses em que sera possível identificar os criminosos mesmo quando civilmente identificados, nada impede, antes aconselha, possa a Autoridade Policial proceder à identificação criminal, em determinados casos. Por exemplo: suponha-se seja preso em flagrante um estelionatário. Em seu poder foram apreendidas três ou quatro Registros Gerais. Qual o verdadeiro? Algum deles? Nenhum? Aconselha o bom-senso deva ser feita a identificação.É de se esclarecer que no Habeas Corpus ri. 174.132/9 de São Bernardo-SP, a Colenda 2.' Câmara do Eg. Tribunal de Alçada de São Paulo entendeu que o preceituado no inc. LVIII do art. 5." da Lei Maior não é self-executing, ficando, pois, na dependência de lei regulamentar. Assim, enquanto não vier uma lei disciplinando a matéria, as identificações continuam, sem que se possa falar em constrangimento ilegal.Data venia, não nos parece. Evidente que a lei não vai permitir que uma pessoa radicada numa cidade, e devidamente identificada civilmente, seja-o dactiloscopicamente para fins de inquérito. Assim, malgrado o legislador constituinte houvesse acenado com uma lei restringindo o direito de o identificado civilmente não o ser em inquérito policial, nem por isso deverá faltar bom-senso à Autoridade Policial para evitar a identificação dactiloscópica de uma pessoa conhecida e civilmente identificada. E, como bem diz Celso Ribeiro Bastos, "na hora presente, em que inexiste a lei que definirá as ressalvas ao preceito, prevalece o caráter estrita-

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mente proibitivo da disposição" (cf. Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 1989, v. 2, p. 281). Todavia, em se tratando de um marginal com duas ou mais identificações civis, ou até mesmo quando houver séria suspeita quanto à autenticidade do documento de identidade do criminoso, é natural deva a Autoridade Policial, ad cautelam, identificálo. Concluindo: embora a Constituição ressalve as hipóteses previstas em lei, não pode passar despercebido da Autoridade Policial que esses casos a serem previstos em lei outros não poderão ser senão aqueles por nós indicados, ou, então, que com eles

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guardem certa similitude.Se o indiciado estiver envolvido com ação praticada por organizações criminosas, será ele, nos termos do art. 5.' da Lei ri. 9.034, de 3-51995, identificado dactiloscopicamente, ainda que já identificado civilmente.

13. Folha de antecedentes

Deverá a Autoridade Policial, também, diligenciar, se possível, a folha de antecedentes do indiciado. Tal documento apresenta relevante valor, pois, por meio dele, constata-se se o criminoso é ou não reincidente, circunstância relevantíssima para a aplicação da pena, como se pode constatar pelos arts. 61, 1, e 77, 1, todos do CP.Evidente que a possível reincidência apontada nafolha de antecedentes não é suficiente para agravar a pena. Mas, naquele documento, se diz onde e quando o indiciado foi processado. Tal informação será útil à Justiça, pois, já agora, o Promotor ou o Juiz poderá solicitar, do Juízo onde teria tramitado aquele processo, certidão de eventual sentença condertatória, com a nota de haver transitado em julgado. Sim, porque a reincidência pressupõe haja alguém praticado uma infração penal após haver sido condenado por sentença transitada em julgado, salvo se a condenação anterior ocorreu há mais de 5 anos, quando, então, ocorrerá a prescrição da reincidência, nos termos do art. 64, 1, do CR

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1. Prisão em flagrante

§ 5*" - Da persecuçao

SUMÁRIO: 1. Prisão em flagrante. 2. 0 curador no auto de prisão em flagrante. 3. Conclusão do inquérito. 4. Indiciado menor. 5. Relatório. 6. Arquivamento. 7. Juizado de Instrução.

0 art. 5.', 1 e 11, do CPP, esclarece como se inicia o inquérito policial nos crimes de ação penal pública incondicionada; no § 4.' desse mesmo artigo, como ele é instaurado em se tratando de ação pública condicionada e, finalmente, no § 5.0, o legislador traçou normas a respeito do ato inaugural do inquérito, nas hipóteses de ação penal privada.Como o inquérito, em quaisquer dessas infrações penais, pode ser iniciado, também, pelo auto de prisão em flagrante, o legislador deixou para tratar da matéria num único dispositivo. Trata-se do art. V. Verbis:"Havendo prisão em flagrante, será observado o disposto no Capítulo 11 do Título 1X deste Livro".

E assim o fez porque, em qualquer tipo de ação penal, havendo prisão em flagrante, a peça inaugural do inquérito será o auto de prisão em flagrante. Como se cuida de peça comum para todas as modalidades de ação penal (pública incondicionada, pública condicionada ou privada), a boa técnica aconselhava fosse a matéria disciplinada em um só dispositivo.

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Desse modo, se houver flagrância (art. 302, 1, 11, 111 e IV do CPP), pouco importando a modalidade de ação penal, a peça inaugural do inquérito será o auto de prisão emflagrante. Evidente que, em se tratan-

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do de crime de ação pública condicionada, ou de ação privada, o auto somente poderá ser lavrado se o titular do direito de representação ou queixa a tanto não se opuser.Considera-se em flagrante delito quem: a) está cometendo a infração; b) acaba de cometê-la; c) é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa em situação que faça presumir ser autor da infração; e d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração.Preso o cidadão em estado de fiagrância, será conduzido à presença da Autoridade Policial do lugar onde ocorreu a prisão ou, se aí não houver, deverá ser apresentado à Autoridade Policial do lugar mais próximo. Na Delegacia, então, lavra-se um auto que se denomina "auto de prisão em flagrante", no qual fica documentado tal fato. 0 auto deve conter a data e o local onde foi lavrado, a indicação da autoridade que o presidiu e, a seguir, será qualificado o condutor (isto é, aquele que conduziu o preso à presença da autoridade). Após sua qualificação, será compromissado e indagado sobre o fato que motivou a prisão e as circunstâncias em que esta se verificou. Após o depoimento do condutor, ouvem-se, no mínimo, duas testemunhas que teriam presenciado o fato ou a prisão, e, na sua ausência, deverão assinar o auto pelo menos duas testemunhas que hajam assistido à apresentação do preso à autoridade. Após a qualificação e compromisso da testemunha, será ela indagada sobre o fato. A seguir, ouve-se a segunda testemunha e, por último e na mesma peça, será o preso, que se chama de "conduzido", interrogado. Por primeiro, procede-se ao interrogatório de qualificação (nome, filiação, estado civil, naturalidade, idade, profissão etc.). Em seguida, vem o interrogatório de mérito, em que ao conduzido será perguntado se é verdadeira aquela imputação; enfim, será interrogado de acordo com o que dispõe o art. 188 do CPP. Concluído o auto, que deverá ser assinado pela autoridade, pelo condutor, pelas duas testemunhas, pelo conduzido e subscrito pelo Escrivão, determinará a autoridade: a) a imediata soltura do conduzido, na hipótese de livrar-se solto; b) o seu recolhimento ao xadrez, na hipótese de infração inafiançável ou afiançável, enquanto não prestar a fiança; c) a expedição de nota de culpa, nos termos e prazo do art. 306 do CPP; d) a imediata remessa de cópia do auto à autoridade competente (Juiz); e) a identificação dactiloscópica do conduzido, se for o caso, determinando seja ele pregressado, nos termos do inc. IX do art. 6.' do CPP.

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2. 0 curador no auto de prisão em flagrante

E se o conduzido for menor de 21 anos, deverá a autoridade nomear-lhe curador? Claro. 0 art. 15 do CPP exige a nomeação de curador ao indiciado menor. Certo que ajurisprudência entende que a não-observancia daquele preceito não acarreta nulidade, mesmo porque não há nulidade em inquérito, peça meramente informativa que é, salvo naqueles atos que dificilmente se renovam em juizo, como, por exemplo, os exames periciais. Fora daí, não há cuidar-se de nulidade. Todavia, tratando-se de inquérito policial iniciado por meio de auto de prisão em flagrante, para que este seja válido como peça coercitiva, haverá necessidade de se nomear curador ao menor. Tratando-se de auto de prisão em flagrante,forma dat esse rei... e, desse modo, se não forem observadas as formalidades legais, imprestável será ele como peça capaz de autorizar o encarceramento do indiciado. E se a autoridade deixar de nomear o curador? Quando da remessa da cópia do auto ao Juiz, este relaxará a prisão. Sem embargo disso, a Autoridade Policial continuará nas investigações, concluindo o inquérito, e, uma vez remetidos os autos ao Fórum, se for o caso, o Promotor oferecerá denúncia, pois, apesar da ausência daquela formalidade, o inquérito não perdeu o seu valor como peça meramente informativa.

Note-se que o curador nomeado, quer para o auto de prisão em flagrante, quer para os inquéritos em geral (art. 15), não intervém nos atos praticados. Limita-se a presenciá-los. E assiste apenas àqueles atos aos quais deva estar presente o menor. Nem havia razão para se transmudar o inquérito de inquisitivo em contraditório, pelo simples fato de o indiciado ser menor.Esse curador precisa ser bacharel em Direito? Não. Basta que seja pessoa suijuris, em pleno gozo do seu status libertatis. E sua intervenção se dá, tão-somente, para suprir a incapacidade relativa do menor.E se, após a lavratura do auto, o conduzido não souber, não quiser ou não puder assiná-lo? Nesse caso, observar-se-á o disposto no § 3." do art. 304 do CPR Veja-se no verbete Indiciado menor logo a seguir mais observação.

3. Conclusão do inquérito

Nos termos do art. 10 do CPP, o inquérito deverá ser concluído dentro do prazo de 30 dias, quando o indiciado não estiver preso. Na

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hipótese de estar preso, o mesmo dispositivo legal faz distinção: a) se a prisão foi decorrente de haver sido o indiciado surpreendido em estado de fiagrância, o inquérito deverá estar concluído dentro do prazo de 10 dias, a partir da data da prisão; b) se o indiciado estiver preso em virtude de "preventiva" (arts. 311 a 316), o inquérito deverá, também, ser concluído no prazo de 10 dias a partir do dia em que se efetivou a prisão.

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Na Justiça Federal, o prazo para a conclusão do inquérito, estando o indiciado preso, é de 15 dias, podendo ser prorrogado por mais 15 dias, a pedido, devidamente fundamentado, da Autoridade Policial, e deferido pelo Juiz a que competir o conhecimento do processo, tal como dispõe o art. 66 da Lei n. 5.010, de 30-5-1966.Na Justiça local, entretanto, a regra é aquela exposta no art. 10, cuja redação é esta:

"0 inquérito deverá terminar no prazo de dez dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de trinta dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela".

0 prazo de 30 dias, estando o indiciado solto, começa a fluir da data em que a Autoridade Policial receber a requisição, o requerimento, ou, então, do dia em que tiver conhecimento do fato. Poder-se-ia dizer da data da portaria. Na prática, leva-se em conta a data da expedição da portaria, isto porque, de regra, a Autoridade Policial determina seja baixada portaria no mesmo dia em que o fato chegar ao seu conhecimento. Pode acontecer, entretanto, que a Autoridade Policial, tendo conhecimento do fato a 1.' de janeiro, venha a baixar a portaria a 4 de maio. Se tal acontecer e dependendo do fato concreto, poderá a Autoridade Policial ser responsabilizada, em face dos prejuízos que, em tese, seriam acarretados à administração dajustiça. Por outro lado, é muito difícil provar-se que a Autoridade Policial teve conhecimento do fato nesta ou naquela data, e isto porque, quando ela determina seja baixada portaria, vai logo

afirmando: "Chegando ao meu conhecimento, nesta data Por estarazão, os 30 dias são contados a partir da data da portaria

Esse prazo é fatal? Quando o fato for de difícil elucidação e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao Juiz a dilação de prazo. Cumpre-lhe, contudo, remeter os autos do inquérito, como estiverem, a juízo e, em despacho motivado, deverá dizer que não pôde concluir as

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investigações, por se tratar de caso de difícil elucidação, e, assim, requerer a devolução deles para ulteriores diligências. 0 Juiz, então, após ouvir o Ministério Público, ou o querelante, se for o caso, determinará a devolução dos autos, marcando novo prazo para a sua conclusão. É o que prescreve o § 3.' do art. 10. Ali não se fala na ouvida do Ministério Público e, muito menos, do querelante. Todavia é curial que assim se proceda. 0 titular da ação penal, lendo os autos inconclusos, poderá chegaçà conclusão de que já possui elementos para a sua propositura e, então, a promoverá. Poderá, por outro lado, concordando com a devolução, sugerir esta ou aquela diligência...A lei fala em devolução à Polícia, para ulteriores diligências, quando o fato for de difícil elucidação. Todavia já constitui lugar-comum o pedido de dilação de prazo mesmo em casos banais, como lesão leve de autoria certa, cujo inquérito poderia ser concluído em 24 horas... E as dilações de prazo são concedidas, porquanto os Juízes e Promotores reconhecem que nas Delegacias não existe apenas um inquérito em andamento, e, ademais, outras funções são também cometidas às Autoridades Policiais.

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Embora não haja dispositivo expresso a respeito, dizíamos, costumam os Juízes, antes de proferir despacho autorizando a dilação do prazo para as conclusões dos inquéritos, ouvir o titular da ação penal. Às vezes, acontece que as diligências que a Autoridade Policial pretende realizar não são imprescindíveis ao oferecimento da denúncia ou queixa. Se forem importantes, mas não imprescindíveis, poderá ser proposta a ação penal, e o autor, ao promovê-la, poderá requerer ao Juiz se oficie à Polícia, requisitando a realização das diligências a que a Autoridade Policial se propôs.Deferido o pedido de dilação de prazo, cumpre ao Juiz fixar outro, dentro do qual deverá o inquérito estar concluído. Evidente que esse novo prazo não poderá exceder àquele que normalmente se concede à Autoridade Policial para a conclusão dos inquéritos (30 dias).Note-se que os pedidos de dilação de prazo somente poderão ser formulados na hipótese do § 3.' do art. 10. Em outros casos, embora outro remédio não haja senão deferir o pedido, bem poderá o Juiz ou o órgão do Ministério Público levar o fato ao conhecimento do Secretário da Segurança Pública, pelos cariúnhos normais, ou ao Delegado Seccional, para as providências disciplinares cabíveis. E, dependendo do caso concreto, poderá a autoridade ser responsabilizada por prevaricação.

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E se o indiciado houver sido preso em flagrante? Nesse caso, deverã a Autoridade Policial concluir o inquérito dentro do prazo de 10 dias, a partir da data em que se verificou a prisão. Aqui a lei não permite a dilação. Não sendo o inquérito concluído dentro do termo prefixado em lei, além daquelas medidas que se podem tomar contra a autoridade desidiosa, o indiciado ou alguém por ele poderá impetrar ordem de habeas corpus, com fundamento no art. 648, 11, do CPR Nesse sentido: RTJ, 33/191, 33/785, 58/181, e RT, 516/354.Cumpre observar que o prazo de 10 dias tem o seu termo a quo na data da prisão. Não se aplica, por outro lado, a regra contida no art. 798, § 1.', do CPP, mesmo porque o prolongamento do prazo coarctaria ojus libertatis. Se na hipótese de prisão preventiva, tal como diz o art. 10 do CPP, o prazo para a conclusão do inquérito deve ter início a partir do dia em que se executar a medida, não há razão seria que justifique seja o prazo, na hipótese de flagrância, contado nos termos do § 1.' do art. 798 do CPP, isto é, a partir do dia seguinte. Como se trata de restrição de liberdade, a nosso juízo a contagem do prazo deve obedecer à regra do art. 10 do CP, que determina a inclusão do dies a quo. Observe-se que já se registrou, com muita propriedade, que "os prazos relativos aos efeitos jurídicos do crime ou da pena, os que atuam contra o réu, são regulamentados pela lei substantiva, pois esta prevê uma situação mais benigna" QTACrimSP, 46/193).

Aliás, a Excelsa Corte já decidiu que, em se tratando de indiciado preso, o inquérito deve ser entregue à distribuição no decêndio legal (RTJ, 581181). Há entendimento, também, de que o prazo se

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conta nos termos do art. 798, § V, do CPP (cf. RT, 5231380). Cuidando-se de crime contra a economia popular, o prazo para a conclusão do inquérito, esteja preso ou solto o indiciado, é de 10 dias, consoante o disposto no § 1.' do art. 10 da Lei ri. 1.521, de 26-12-1951.

Em se tratando de entorpecente, o prazo para a conclusão do inquérito, estando o indiciado preso, é de 5 dias, nos termos do art. 21 da Lei n. 6.368, de 21-10-1976. Todavia, se a infração for uma daquelas definidas nos arts. 12, 13 ou 14 da citada lei, o prazo é contado em dobro, consoante a regra do parágrafo único do art. 35 do referido diploma.

E se, nesses casos, ele estiver solto? Se o prazo para a conclusão do inquérito é de 30 dias, a teor do § 1.' do art. 21 do citado diploma, nos crimes referidos nos arts. 12, 13 e 14 da Lei de Tóxicos o prazo será de 60 dias.

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Se o flagrante ocorrer tal como previsto no art. 307 do CPP, tão logo se conclua o auto, deverá este, imediatamente, ser remetido à autoridade competente, nos próprios termos do art. 307.

Tratando-se de indiciado preso preventivamente (CPP, arts. 311 a 316), o inquérito deverá estar concluído dentro de 10 dias, a partir da data em que se executar a ordem de prisão. Assim, de acordo com o art. 10 do CPP, se for instaurado inquérito no dia L" de junho, e no dia 15 do mesmo mês o Az decretar a prisão preventiva do indiciado e a ordem de prisão for cumprida, digamos, no dia 17, o inquérito, que deveria estar concluído no dia 30, sê-lo-á até o dia 26, pois a conclusão, nesse caso, dar-se-á no prazo de 10 dias, a partir da data em que se cumpriu a ordem de prisão.Sem embargo da clareza meridiana do art. 10, os nossos Tribunais, com acerto, aliás, vêm entendendo que, se há elementos nos autos da investigação que autorizem a decretação da prisão preventiva, melhormente os haverá para a propositura da ação penal. E, assim, injustificável se torna a devolução dos autos à Polícia, concedendo-lhe mais os 10 dias referidos no preceito citado. Na verdade, se a lei é mais exigente no traçar os pressupostos para a decretação da prisão preventiva (prova da existência do crime e indícios suficientes da autoria) do que mesmo para oferecimento de denúncia ou queixa (desde que haja crime em tese e indícios, embora não suficientes, de autoria, poderá ser proposta ação penal), segue-se que, se houver elementos para a decretação da prisão preventiva, com maiores razoes esses mesmos elementos serão mais que suficientes para a propositura da ação penal. E se, mesmo assim, os autos forem devolvidos? 0 constrangimento sofrido pelo indiciado poderá ser sanado por meio de habeas corpus.

4. Indiciado menor

0 art. 15 do CPP assim dispõe:

"Se o indiciado for menor, ser-lhe-á nomeado curador pela autoridade policial".

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Evidentemente, a lei faz referência ao menor de 21 e maior de 18 anos, uma vez que os menores de 18 anos são penalmente irresponsáveis, nos precisos termos do art. 27 do CP:

"Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial".

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11[11 1 11 11~ 1 1 11~

Qual a razão que levou o legislador a melhor amparar o indiciado menor, concedendo-lhe curador na fase do inquérito policial? A exigência do art. 15 prende-se ao fato de ser o menor de 21 e maior de 18 relativamente incapaz. É verdade que, de certo modo, o CPP faz abstração dessa incapacidade relativa, tanto que o direito de queixa ou de representação poderá ser exercido pelo menor de 21 e maior de 18, sem a assistência de seu representante legal, tudo nos termos do art. 34 do CPP. Mais ainda: até mesmo contra a vontade do seu representante legal, poderá ele exercer tal direito (CPP, art. 50, parágrafo único).A lição do ex-Ministro Aníbal Freire, no sentido de que, "quando a lei prescreve a obrigação de dar curador ao indiciado menor, na fase do inquérito policial, foi prevendo as circunstâncias notórias em que esses inquéritos se realizam e, por isso mesmo, procurou preservar a situação do indiciado menor de qualquer sorte de constrangimento", é um ensinamento que convence em parte. Não plenamente. Se certo fosse o seu ponto de vista, não teria sentido a regra que se contém no art. 194 do CPP, exigindo a presença do curador quando do interrogatório do menor em juízo... Observe-se que, quando se trata de réu maior, a lei não exige, às expressas, a presença do defensor no ato do interrogatório... Logo, deve-se concluir que a lei, exigindo o curador, na fase do inquérito, fê-lo atendendo à sua relativa incapacidade. E esta é a mesma razão de se exigir em juízo. Embora penalmente responsáveis, os menores de 21 e maiores de 18 anos são relativamente incapazes, nos termos da lei civil. Nesta, o limite mínimo desce para 16 anos.Assim, não poderia o legislador processual penal fazer total abstração das normas consagradas na lei civil sobre incapacidade.Mas, no nosso entender, o legislador processual penal não foi coerente. Se o menor de 21 é relativamente incapaz, por que lhe foi permitido oferecer queixa ou fazer representação, mesmo contra a vontade do seu representante legal? Dir-se-á que, nesses casos, o Estado tem interesse em lhe dar capacidade para tanto, para poder exercer o seu magistério repressivo. Mas não poderia, nesses casos, o menor envolver-se numa denunciação caluniosa? Cumpre notar, aqui, que é possível que o direito pretoriano, em face do novo CC, fixando a maioridade aos 18 anos, venha a dar nova interpretação aos arts. 15, 194, 262 e 449, todos do CPP.E se o menor não quiser exercer o direito de queixa ou de representação? Seu representante legal poderá exercê-lo, mesmo contra a vonta-

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de do menor... Conclui-se, pois, que o problema da incapacidade relativa, no Processo Penal, é regulado de maneira toda sui generis.Sem embargo disso, tratando-se de menor de 21 anos e maior de 18, na qualidade de indiciado ou réu, será ele sempre relativamente incapaz, e, para se amparar o seu status libertatis, concede-se-lhe curador.Mas, ainda aqui, o instituto da incapacidade é regulado por normas e principios proprios, uma vez que os atos praticados pelo menor -interjOgatório, confissão, reprodução simulada, acareação etc. -independem do assentimento do curador. Serão válidos se assistidos, isto é, se presenciados pelo curador.E se, por acaso, a Autoridade Policial não der cumprimento ao prescrito no art. 15? Em outras palavras: se a Autoridade Policial deixar de nomear curador ao indiciado menor, qual a conseqüência? A pergunta tem suscitado respostas diversas. Há quem diga que tal falha contamina de nulidade não só o inquérito, como também o processo judicial, por duas razões: a) o art. 564, 111, c, do CPP diz: "A nulidade ocorrerá por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: ... (c) a nomeação de defensor ao réu presente, que não o tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos"; b) na Exposição de Motivos que acompanha o CPP, o ex-Ministro Francisco Campos acentuou que a defesa é uma indeclinável injunção legal, antes, durante e depois da instrução, como a indicar que é exigida em todas as fases do processo, desde o inquérito. Comungam desse entendimento os ex-Ministros Orozimbo Nonato e Goulart de Oliveira.

Outros sustentam que tal omissão acarreta, apenas, a nulidade do inquérito e não do processo propriamente dito, pois que o inquérito não é parte constitutiva do processo criminal.

Acórdãos há, por outro lado, no sentido de que inválido sera apenas o ato realizado no inquérito sem a presença do curador, e, assim mesmo, se se tratar de um ato indispensável ao processo, cuja falta não haja meio de suprir.José Duarte já teve oportunidade de frisar: Se um ato do inquérito se apresenta sem integral preenchimento das formalidades legais, o seu valor probante ficará certamente prejudicado, poderá mesmo tornar-se nenhum... Com isso sofrerá o processo em sua prova, mas não em sua validade.

A maioria, entretanto, defende a tese de que a falta de curador ao menor, na fase do inquérito policial, não acarreta a nulidade do proces-

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1 1

1

so, desde que, einjuízo, lhe seja nomeado um. 0 art. 564, 111, c, do CPP fala em "defensor ao réu presente que não o tiver, ou ao ausente, e do curador ao menor de 21 anos". A lei fala em réu, e, no

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inquérito policial, não há a figura do réu, mas sim a do indiciado. Na técnica, reserva-se a expressão réu para o sujeito contra quem é proposta ação penal e indiciado, ao sujeito objeto de investigação durante a fase do inquérito. Além disso, as nulidades a que se referem os arts. 563 a 573 não dizem respeito àquelas porventura ocorridas na fase das investigações preliminares, e, desse modo, não há excogitar-se de nulidades em inquérito, pois este nada mais representa senão simples informação, a fim de possibilitar ao titular da ação penal o exercício desta, tanto que o inquérito policial, como vimos, é dispensável.Note-se que o art. 571, dispondo sobre o momento processual em que as nulidades devem ser argüidas, refere-se, exclusivamente, às nulidades ocorridas a partir da propositura da ação penal.Assim, a falta de nomeação de curador ao menor, na fase de inquérito, constituirá, quando muito, mera irregularidade, corrigida, aliás, com a nomeação feita em juízo. Agora, se o Juiz não o fizer, como exigem os arts. 194 e 262 do CPP, inteira aplicação terá o disposto no art. 564, 111, c, do mesmo diploma.Entretanto, tratando-se de auto de prisão em flagrante, entendemos que a não-nomeação de curador para assistir à lavratura do auto nulifica a peça coercitiva como tal. Assim, se a Autoridade Policial prender um menor de 21 anos em flagrante e, quando da lavratura do respectivo auto, deixar de nomear curador, a prisão em flagrante será relaxada, embora sirva aquele como peça informativa, para suporte de eventual ação penal. Muito a propósito, RT, 543/412 e 553/422.A jurisprudência, de uns tempos para cá, remansosamente quase, tem acolhido a tese de que a falta de curador ao indiciado menor, na fase do inquérito, constitui mera irregularidade, sem maiores consequencias. Esses acórdãos, colhidos à ventura, são o testemunho eloqüente dessa afirmação:

"A ausência de curador ao indiciado menor na fase do inquérito não fúlinina de nulidade o processo judicial, se neste a falta for suprida" (RT, 114145)."Não constitui a falta de curador nulidade absoluta, salvo nos processos por contravenção, de vez que pode ser suprida

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na instrução criminal, não sendo portanto de ordem a autorizar o habeas corpus" (Jurisprudência e Doutrina, 21279)."A falta de nomeação de curador a acusado menor em inquérito não constitui nulidade, desde que não se trate de processo por contravenção" (Direito, 371385).

No Habeas Corpus n. 78.454, o STF, aos 2-6-1970, decidiu, por unaffligidade:'Iff-

"A omissão, quanto à nomeação de curador, no inquérito policial, peça meramente informativa, não prejudica a ação penal regularmente instaurada" (cf. ficha n. 223/71 fornecida pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).

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Mais tarde, o Excelso Pretório, chamado a se pronunciar a respeito, observou: "Não constitui nulidade a falta de nomeação de curador ao reu menor no inquérito policial que investiga crime que enseja processo de rito ordinário, mormente quando na instrução foram dadas todas as garantias à defesa" (cf. RV, 911476). No mesmo sentido, RV, 53/651 e 611363.

Sem embargo disso, pensamos que a Autoridade Policial deve nomear curador ao indiciado menor. Não porque sua omissão possa carretar qualquer nulidade, porquanto não se pode falar em nulidade de peça simplesmente informativa (cf. RTJ, 531650), mas por uma razão muito simples: os menores são sugestionáveis e, assim, frente a frente com os policiais, talvez nem saibam fazer valer seus direitos, inclusive os atinentes ao respeito à sua integridade física e moral; talvez nem saibam se os têm. Sem a necessária maturação biopsíquica e, ausente, muitas vezes, a experiência da vida, ficariam eles mais desamparados se não houvesse alguém, notadamente da sua confiança, ao seu lado, durante os atos a que devam estar presentes durante o desenvolvimento das investigações. Não nos parece possa o curador fazer reperguntas. Do contrario, quando o indiciado fosse maior, o inquérito seria inquisitivo e, se menor, contraditório. Evidente, por outro lado, que a função do curador nos atos do inquérito não é para emprestar-lhes maior credibilidade em juízo. Se fosse, ganharia o reino dos céus quem explicasse a razão de o art. 194 do CPP exigir a presença do curador quando do interrogatório em juízo... Sua função consiste em evitar qualquer tipo de constrangimento e, se necessário, antes mesmo da propositura da ação penal, tomar as medi-

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das judiciais em seu prol. De preferência deve ser um parente, sob pena de, muitas vezes, como já se disse, "ser o seu papel minimizado a ponto de transformá-lo numa figura decorativa, distante e impessoal, ou numa mera assinatura lançada, com apatia, num ato policial a que não assistiu". Se impossível a presença de um parente, pelo menos uma pessoa responsável e digna que desempenhe o seu papel.

A jurisprudência, entretanto, com a chancela do mais alto Tribunal do País, entende, como tivemos oportunidade de ver, que a ausência do curador na Polícia não afeta a ação penal e o desenvolvimento da relação processual.

Deverá o curador ter participação ativa, fazendo, por exemplo, reperguntas às testemunhas? Não. No nosso entender, o curador, no inquérito, somente poderá assistir, presenciar aqueles atos que devem ser praticados pelo menor, ou, pelo menos, que devem ser realizados em sua presença, tais como interrogatório, confissão, acareação, reprodução simulada, reconhecimento. Poderá, outrossim, nos

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termos do art. 14 do CPP, requerer quaisquer diligências, cuja realização ficará ao prudente arbítrio da Autoridade Policial, salvo se se tratar de exame de corpo de delito, cuja feitura não fica à discrição da autoridade, como se percebe pela leitura do art. 184 do diploma processual penal.0 que passar daí é mera liberalidade inominável. Dá-se curador ao menor em face da sua relativa incapacidade. Logo, quando o menor estiver presente à realização do ato, deverá estar também o curador. Ao contrário: se o ato puder ser realizado sem a presença do indiciado menor, para que curador? E, quando da ouvida da vítima ou das testemunhas, deverá o curador estar presente? Evidentemente, não. Não há dispositivo que acentue devam as provas, no inquérito, ser colhidas em presença do indiciado. Ademais, pela natureza sigilosa do inquérito, é óbvio que as testemunhas não devem ser ouvidas em presença dele. Ora, se o indiciado, nesses casos, não deve estar presente, por que a presença do curador? Repita-se: a regra, aliás, pela própria natureza do inquérito, é a sigilosidade, correndo este sem que o indiciado tenha conhecimento das diligências realizadas ou por realizar, e, dessa forma, não sejustifica tenha o curador conhecimento das provas que estão sendo produzidas ou por produzir. Seria um rematado desconchavo houvesse sigilação, quando o indiciado fosse maior, e não-sigilação, quando menor.Note-se não haver necessidade desse curador ser bacharel em Direito. Basta tratar-se de pessoa suijuris, que esteja em pleno gozo do

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seu status libertatis e que possa, por isso mesmo, rebelar-se contra possiveis desmandos da Autoridade Policial. Dever-se-á, na medida do possível, nomear-se um parente do menor. Já constitui lugar-comum o curador ser chamado depois de concluído o ato para Iegalizá-lo".

Concluindo: a função do curador restringe-se a requerer diligências e a acompanhar o menor nos atos a que deva estar presente, podendo projestar e até mesmo tomar as medidas cabíveis, quando houver_OF excessos por parte da autoridade.

E se o indiciado menor se diz maior? Em face do número de julgados salientando não haver nulidade se for omitida a nomeação de curador ao indiciado menor, conclui-se, então, ser mais irrelevante ainda o fato de o menor alegar maioridade. Mesmo que tal aconteça em juízo, a nãonomeação de curador nenhuma conseqüência traria, pois não seria lícito beneficiá-lo com a propria malícia. Além disso, seria um expediente vantajoso para os indiciados e réus menores: diziam-se maiores e, caso a sentença não lhes fosse favorável, alegariam a nulidade... A especie aplica-se a norma contida no art. 565 do CPP:

"Nenhuma das partes poderá argüir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interessa".

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Por derradeiro: a menoridade referida no art. 15 é aquela verificada por ocasião do interrogatório, e não a da data do fato. Assim, se Mévio, com 21 anos incompletos, comete um crime e já com 21 anos cumpridos é interrogado na Polícia, não se observa o disposto no art. 15.

5. Relatório

Concluídas todas as diligências, terminado, enfim, o inquérito, deverá a Autoridade Policial fazer um relatório, nos próprios autos, de tudo quanto houver apurado nas investigações.

"A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará os autos ao Juiz competente."

Esse relatório não encerra, não deve nem pode encerrar qualquer juízo de valor. Não deve, pois, a Autoridade Policial, no relatório, fazer apreciações sobre a culpabilidade ou antijuridicidade. Deverá limitar-se

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a historiar o que apurou nas investigações. Por outro lado, se por quaisquer circunstâncias outras testemunhas deixaram de ser ouvidas, poderá a Autoridade Policial, no relatório, indicá-las, mencionando o lugar onde poderão ser encontradas (CPP, art. 10, § 2.").

Concluído o inquérito, elaborado o relatório, a Autoridade Policial determinará a sua remessa, juntamente com os instrumentos do crime e outros objetos por acaso apreendidos e que interessarem à prova, ao Juiz competente (art. 11).

Deve a Autoridade Policial, quando da feitura de inquérito, ou mesmo quando se tratar de contravenção ou homicídio e lesão corporal culposos, extrair cópias dos atos praticados, formando-se, assim, autos suplementares, que ficarão arquivados na Delegacia.

6. Arquivamento

Vimos que a finalidade precípua do inquérito consiste em apurar a infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal, seja o Ministério Público, seja o particular, possa exercer o jus accusationis. À Polícia Judiciária cumpre colher os elementos de informação. Não cabe à Autoridade Policial dizer, por exemplo, que o indiciado não se houve em legítima defesa, estado de necessidade, que não se houve com culpa etc. Não pode, enfim, a Autoridade Policial apreciar os autos do inquérito policial e sobre eles emitir um juízo de valor. A opinio delicti cabe ao titular da ação penal e não àquele que se limita, simplesmente, a investigar o fato infringente da norma e quem tenha sido o seu autor. Por isso mesmo não pode, em qualquer circunstância, determinar o arquivamento dos autos do

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inquérito. Cumpre-lhe, nos termos do § 1.' do art. 10 do CPP, "enviar os autos ao Juiz competente", e, para ser mais incisivo ainda, cortando qualquer possibilidade de arquivamento, dispõe o legislador, no art. 17, que a Autoridade Policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito policial. 0 pedido de arquivamento, nos crimes de ação pública, fica afeto ao órgão do Ministério Público. Somente este é que poderá requerer ao Juiz seja arquivado o inquérito, e, caso o Magistrado acolha as razões invocadas por ele, determiná-lo-á. Do contrário, agirá de conformidade com o art. 28 do CPP.

Tratando-se de crime de alçada privada, não há excogitar-se de arquivamento: arquivado será se a pessoa com o direito de queixa dei-

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xar de intentar a ação penal. Nada obsta, entretanto, que a pessoa que possa exercer o direito de queixa requeira ao Juiz o arquivamento dos autos do inquérito (inquérito que diga respeito a crime de alçada privada, é lógico). Mas tal pedido de arquivamento equivale à renúncia, e, nesse caso, cumpre ao Juiz decretar a extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, V, do CR

Convém ponderar a observação de que, se o Juiz determinar o ar-. owquivamento de inquérito, em virtude de não haver o órgão do Ministério Público encontrado elementos para a propositura da ação penal, nada obstará possa a Autoridade Policial, tendo ciência de outras provas, empreender novas investigações, nos termos do art. 18 do CPP, mesmo porque o despacho que determina o arquivamento não faz coisajulgada, como, aliás, percebe-se pela leitura do dispositivo supra-indicado. Nem poderia fazer, porque não se trata de decisão definitiva, de mérito. E somente as decisões que definem o juízo, que resolvem o meritum causae, é que transitam em julgado.

Essas novas investigações por acaso empreendidas serão encaminhadas ajuízo e apensadas aos autos arquivados, tendo, então, o órgão do Ministério Público nova oportunidade de se manifestar a respeito. Se, com as novas provas, com as novas investigações, houver elemento que possibilite a propositura da ação penal, esta será promovida.

Tratando-se de crime de alçada privada, os autos de inquérito serão remetidos ajuízo, onde aguardarão, em cartório, a iniciativa de quem de direito (titular do direito de queixa). Poderão os referidos autos ser entregues ao titular do direito de queixa, se ele o requerer, devendo ser extraído traslado, isto é, o cartório confecciona cópia do referido inquérito, autentica e o entrega ao requerente.

De uma forma ou de outra, aguarda-se a propositura da ação penal. Decorrido o prazo legal sem que tenha sido exercido o direito de queixa, declarar-se-á extinto o direito de punir, pela decadência, nos termos do art. 107, IV, do CR De regra esse prazo decadencial é de 6 meses, consoante a regra inserta no art. 38 do CPP. Mas pode ser menor, como na hipótese de adultério, que é de 1 mês (CPP, art.

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240, § 2.'). Às vezes, embora o prazo seja o mesmo, o marco inicial varia, como na hipótese do parágrafo único do art. 236 do estatuto repressivo. No momento oportuno veremos esses prazos.

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Nos casos de crime de alçada privada, quando os autos do inquerito chegam a juízo, o Magistrado, muitas vezes, determina que se dê vista ao órgão do Ministério Público. Este, então, percebendo que os autos do inquérito cuidam apenas de crime de alçada privada, dará o seu parecer, no sentido de que permaneçam em cartório, aguardando a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, enfim, aguardando a iniciativa de quem de direito, nos termos do art. 19 do CPR

7. Juizado de Instrução

Não adotou nosso Código o Juizado de Instrução. Dele tampouco cogitou o Anteprojeto Frederico Marques. No Juizado de Instrução, a função da Polícia se circunscreveria a prender os infratores e a apontar os meios de prova, inclusive testemunhal. Caberia ao "Juiz Instrutor" colher as provas. A função que hoje se comete à Autoridade Policial ficaria a cargo do "Juiz Instrutor". Assim, colhidas as provas pelo citado Magistrado, vale dizer, feita a instrução propriamente dita, passar-se-ia à fase do julgamento. 0 inquérito seria suprimido.

Em vários países da Europa há o Juizado de Instrução. E o próprio Juiz quem ouve o pretenso culpado, as testemunhas e a vítima e, enfim, quem colhe as provas a respeito do fato infringente da norma e respectiva autoria. Concluída a instrução (que na França é inquisitiva), cumpre ao Magistrado (Juge Xinstruction) proferir decisão (equivalente à nossa pronúncia), julgando acerca da procedência ou não dojus accusaflonis. Se se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, remeterá os autos ao Juiz competente, onde haverá lugar a audiência de julgamento.

A Exposição de Motivos que acompanha o CPP, no seu ínc. IV, esclarece as razões pelas quais deixamos de adotar o Juizado de Instrução: "0 preconizado juizado de instrução, que importaria limitar a função da Autoridade Policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas extensas e posto que deva ser excluída a hipótese de criação de juizados de instrução em cada distrito, seria preciso que o Juiz instrutor possuísse o dom da ubiqüidade".

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Por essas razões foi mantido o inquérito policial como "processo" preliminar ou preparatório da ação penal.

Ambos os sistemas oferecem vantagens e desvantagens. E certo que as desvantagens do Juizado de Instrução, apontadas na Exposição de Motivos, reduzem-se a uma nonada.

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A despeito disso, o Anteprojeto Hélio Tornaghi e o Anteprojeto Frederico Marques acolheram e aceitaram o inquérito policial como4,1preparatório da ação penal.

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ftcapítulo 8

1. Noções gerais

§ V' - Da açao

SUMÁRIO: 1. Noções gerais. 2. Fundamento do direito de ação e base constitucional. 3. Ação penal. 4. Fundamento constitucional da ação penal. 5. Natureza jurídica do direito de ação. 6. Windscheid e Muther. 7. Adolph Wach e a autonomia do direito de ação. 8. Plósz e Degenkolb. 9. A teoria do direito potestativo. 10. 0 conceito de direito de ação. 11. 0 direito de ação no plano estritamente processual. 12. 0 conceito de ação penal.

Vimos, em capítulos anteriores, que, em determinado momento histórico, o Estado chamou a si a tarefa de administrar justiça, fazendo-o por meio do processo, verdadeiro "substitutivo civilizado da vingança privada". 0 Estado, então, passou a ser o detentor do monopólio da administração da justiça. É certo que não proibiu, terminantemente, as outras formas compositivas de litígios, como a "autodefesa" e a "autocomposição". Esta é, até, muito comum em conflitos que surgem no campo extrapenal, quando em jogo interesses disponíveis. Também a "autodefesa" não foi de todo excluída. Todavia "autodefesa" e "autocomposição" são excepcionais formas de resolução do litígio. Na primeira, há imposição da decisão por uma das partes à outra e, na segunda (que equivale à solução ou resolução), a decisão do litígio é obtida pelas próprias partes, contrastando, assim, com o "processo", em que a resolução da lide é decretada, de maneira imparcial, pelo Juiz. Se

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encararmos essas estranhas formas compositivas de litígio como um meio excepcional de se aplicar a sanctiojuris ao culpado, podemos asseverar serem elas estranhas ao campo penal. 0 nulla poena sine

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judice e o nulla poena sine judicio são dogmas constitucionais que coíbem e cerceiam a possibilidade, ainda que remota, de se infligir uma sanctiojurispenal, senão por meio do Estado-Juiz, com a observância das normas processuais. Mesmo nos delitos de alçada privada, em que, por motivos vários, se comete ao próprio ofendido ojus accusationis, não se concebe uma "autocomposição", com o sentido de as partes ajustarem a pena a ser imposta. Se Tício, falsamente, imputa a Mévio fato definido como crime, pratica um delito de calúnia, que, no nosso Direito, é de ação privada. A pena cominada é a de detenção cumulada com a de multa. Mesmo que Tício e Mévio venham a se entender e o caluniador reconheça a sua culpa, propondo-se, inclusive, a reparar o mal que fizera, tudo será possível, menos o cumprimento sponte sua, ou, por exigência do caluniado, da sanctiojuris cominada ao delito de calúnia.

A "autocomposição" não deixa de ser uma estranha forma de se aplicar a sanctiojuris ao culpado. Quer-nos parecer que a "transação" que se realiza no Juizado Especial Criminal visando à solução do litígio, em se tratando de infrações penais de menor potencial ofensivo, é verdadeira "autocomposição", uma vez que as partes, elas mesmas, procuram a solução do litígio. Diga-se de passagem que essa forma de composição de lides, quando em jogo infrações insignificantes, ou de bagatela, como se costuma dizer, foi autorizada pela própria Constituição Federal, no art. 98, 1. Não fosse assim, haveria lesão ao princípio do devido processo legal. Na "transação", o titular da ação penal faz uma proposta ao autor do fato no sentido de lhe aplicar uma pena restritiva de direito ou multa e, desde que aceita, o Juiz limita-se a homologar o acordado, nos termos do § 4.' do art. 76 da Lei n. 9.099/95.

Entende Alcalà-Zamora que a "autocomposição" pode classificarse, em face de sua relação com o processo, em extraprocessual, intraprocessual e pós-processual (cf. Processo, autocomposición y autodefensa, 2. ed., México, 1970, p. 80).

Assim, a "transação" realizada na fase preliminar (art. 76) seria uma autocomposição extraprocessual; a "transação" operada no curso do procedimento sumariíssimo, a teor do art. 79 do referido diploma, uma autocomposição intraprocessual. Contudo, é uma autocomposição sui generis, porquanto não se admite a inflição de pena privativa de liberdade.

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0 ilustre processualista espanhol cita, ainda, como forma deautocomposíção" no campo penal, a figura do reconhecimento, que ele define como sendo a submissão da parte acusada à pretensão litigiosa contra ele dirigida, e, como exemplo, indica o caso dojuicio penal truncado, em que o réu renuncia ao direito de defesa, que é um direito réplica ou reverso do de acusar (cf. PI-oceso, cit., p. 85).Na verdade, o juicio penal truncado constitui forma de 4'auto ipmposiçao". Trata-se de maneira sumariíssima de resolução doÀ

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itígio por meio do processo. Instaura-se o processo e, desde que o réu reconheça sua culpa, perante o Juiz, inflige-se-lhe a pena, sem necessidade de ulteriores investigações. Por outro lado, é de se ponderar que pouquíssimas legislações admitem essa forma sumariíssima de procedimento. A Ley de Enjuiciamiento Criminal da Espanha dá, para isso, uma denominação toda especial: "Çonformidad del acusado con Ias penas solicitadas", matéria objeto do art. 655 do citado diploma.

No Anteprojeto Frederico Marques, que se converteu no Projeto n. 633/75, admitiu-se também o juicio penal truncado para várias infrações de natureza privada, quando apenadas com detenção (art. 63 1, 1), e, inclusive, na ação pública, em face do que dispunham os arts. 93, § 1% e 233, § L', in verbis:

"Art. 93. Ao invés de devolver o inquérito policial para novas diligências, pode o Ministério Público, antes de oferecer denúncia, ouvir o indiciâdo, o ofendido e as testemunhas. 0 indiciado será intimado para assistir aos depoimentos, que serão tomados sem a sua presença, se deixar de comparecer"."§ 2." Ao ouvir o indiciado, poderá o Ministério Público propor-lhe a condenação íniediata em multa, segundo o previsto no art. 233, §§ 1.' e 2,"-"

"Art. 233. ..."

" § 1.' Tratando-se de processo de ação penal pública, darse-á a perempção nos cas os expressamente previstos neste Código, quando o réu, por aceitar a pena de multa imposta, desiste, tacitamente, de exercer os poderes e faculdades inerentes a seu direito de defesa, para que se extinga a relação processual."

Muito se fala, também, sobre a "autodefesa" (rectius: autotutela) na esfera penal.

Realmente, ela existe, não cckmo forma de composição da lide, no genuino sentido que esta expressão possui, mas como um poder de pra-

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ticar determinados atos, normalmente proibidos, tal como ocorre na legítima defesa, estado de necessidade, exercício regular de um direito eestrito cumprimento de dever legal.Se Tício, injustamente, vibra um golpe de faca em Mévio e este reage desferindo-lhe uma pancada de maneira a produzir-lhe lesão corporal grave, inegável a licitude da conduta de Mévio. Seu ato não foi criminoso, por ser justo, conforme ao Direito. A situação especial em que praticou o ato constitui uma causa de justificação de sua conduta. Agiu em legítima defesa. Este seria um dos casos da

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"autotutela". Pergunta-se: a lide penal foi solucionada? Não. Mesmo sofrendo lesão corporal grave, o agressor ainda responderá perante a Justiça, para sofrer a verdadeira sanctiojuris, pelo fato de haver ofendido fisicamente a Mévio. Se, porventura, Tício não mais pudesse ser processado, pelo fato de já haver sido "castigado" pelo agredido, poder-se-ia dizer que a lide se compôs por meio da "autotutela".Por outro lado, ainda que se admita haja "autotutela", como forma compositiva de litígio nos atos praticados sob o pálio de uma excludente de antijuridicidade, estes deverão ser comprovados judicialmente. E AlcalàZamora observa que, na "autotutela", "suele ser necesario un proceso ulterior, precisamente para declarar Ia licitud de Ia misma en el caso concreto" (cf. Proceso, cit., p. 58).Já no cível, o desforço incontinenti (CC, art. 502), o corte das raízes e ramos de árvores que ultrapassam a extrema do prédio (CC, art. 558), a retenção da coisa pelo credor pignoratício (CC, art. 772) e a retenção da coisa pelo depositário (CC, art. 1.279) são verdadeiros exemplos de autotutela, que, todavia, nem sempre existem como sub-rogado absoluto da solução processual.Mesmo no cível, "autotutela" e "autocomposição" são formas extraordinárias de solução de conflitos de interesses. A regra é de que somente o Estado, por meio do processo, pode compor, solucionar a lide, dando a cada um o que é seu, com imparcialidade, sem "egoísmo" e sem "altruísmo". E tanto é verdade, que o fazer justiça com as próprias mãos foi alçado à categoria de crime.

2. Fundamento do direito de ação e base constitucional

Para poder exercer tal função - administrar justiça - que pertence aos fins do Estado, este põe à disposição de todos os órgãos da admi-

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nistração da justiça. E, por isso, o dever do Estado de administrar justiça aparece em relação aos particulares como o dever dos órgãos da administração da justiça (instituídos pelo Estado) de desenvolver uma atividade, na forma regulada em lei, visando ao cumprimento daquele dever de garantir justiça (cf. Eberhard Schmidt, Los fundamentos teoricos y constitucionales del derecho procesal penal, trad. J. M. Nuñez, Ed. Argentina, 1957, p. 19).Wr isso Goldschmidt falava de "direito à garantia dajustiça". Se o Estado detém o monopólio da administração dajustiça, é lógico que ele tem o direito de garanti-Ia. E tal direito à garantia da justiça, que outro não é senão o de se invocar a tutela do Estado-Juiz, considera-se, em relação aos particulares, como uma emanação do status civitatis.Uma vez que o Estado proibiu aos particulares fazerjustiça com as proprias mãos (veja-se o art. 345 do CP de 1940), surgiu para estes o direito de se dirigirem ao Estado (representado pelos órgãos incumbidos de administrar justiça) para reclamar a aplicação da sanção contra aquele que, por acaso, lhes violou o direito. Se é o Estado que distribui justiça e, para tanto, instituiu órgãos adequados, é claro que aqueles que dela necessitam têm o direito subjetivo de levar-lhe ao conhecimento um litígio, invocando-lhe a aplicação da norma agendi. Aí está, pois, o direito de ação. Direito subjetivo, público, abstrato, genérico, indeterminado. Direito que todos nós temos de nos dirigir ao Estado-Juiz, invocandolhe a garantia, a tutela jurisdicional.

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E exatamente nessa proibição imposta pelo Estado aos particulares de fazerem justiça com as próprias mãos repousa o fundamento do direito de ação. Realmente. Uma vez que o Estado proibiu aos particulares fazerem justiça com as próprias mãos, surgiu para eles o direito de se dirigirem ao Estado-Juiz - representado pelos órgãos incumbidos de administrar justiça - reclamando a aplicação do direito objetivo.0 fundamento do direito de ação repousa, pois, na proibição da autodefesa, e seu fundamento jurídico está no próprio capítulo dos direitos e garantias individuais:

"A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5.', XXXV).

Havendo violação de qualquer direito individual, cabe ao Poder Judiciário apreciá-la. E nem mesmo a lei pode impedir que o cidadão se dirija ao Poder Judiciário.

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No mesmo sentido o art. 8.' da Universal Declaration of Human Rights: "Everyone has the right to an effective remedy by the competent national tribunals for acts violating the fundamental rights guaranted him by the Constitution or by the law".

Assim também o art. 24 da Costituzione italiana: "Tutti possono agire in giudizio per Ia tutela dei propri diritti e interessi legittimi".

Assim, não pode a lei ordinária excluir da apreciação dos órgãos jurisdicionais a defesa dos direitos individuais que se fundem em normas da Constituição e, muito menos, os direitos individuais que se incorporam em leis ordinárias.

Quem quer que se sinta ofendido em seu direito pode exigir a tutela jurisdicional. É a consagração, de forma eloqüente, do direito de ação em texto constitucional.

3. Ação penal

E quanto à ação penal? Já observamos que, para manter a h~imonia e a ordem no meio social, regular as relações entre seus membros e assegurar o equilíbrio e paz sociais, o Estado, por meio das normas, estabeleceu limitações à conduta humana. 0 desrespeito às normas acarreta a aplicação da sanção, que poderá ser de natureza civil, administrativa ou penal.

Já frisamos, também, que algumas normas tutelam, de maneira severa, determinados bens ou interesses, porque eminentemente públicos e sociais, e sua observância é indispensável à convivência social. A transgressão dessas normas foi elevada à categoria de infração penal, e a sanção é a pena, a mais grave de todas as sanções, porquanto os atos que constituem as infrações penais são

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profundamente perturbadores da tranqüilidade social.

Se a infração penal ofende gravemente a ordem ético-jurídica e sendo dever precípuo do Estado defendê-la, permanece claro que o direito de punir lhe pertence como uma das expressões mais características da sua soberania. Ao impor a todos quantos se encontrem no seu território a observância das normas penais, surge para o Estado um direito de punir em potencial, um direito de punir em abstrato. E a esse direito corresponde o dever de todos de absterem-se de realizar a conduta prevista em lei como infração penal.

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A princípio, esse poder de punir era exercido de maneira discricionária. Para a sociedade e, em particular, para o cidadão, que garantia poderia haver se o Estado não discrin-iinasse, previamente, as ações humanas reprovaveis e não estabelecesse as respectivas sanções? Com a evolução do Direito Penal, surge o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege, que é, na sugestiva expressão de Beling, a Magna Carta que protege o indivíduo contra toda extralimitação do poder estatal.

*tnhuma conduta humana será punida se não puder subsumir-se em um tipo penal. Ainda que pareça imoral ou contrária aos interesses sociais, uma ação humana não será punida se não for objeto de lei anterior. E, ainda que o seja, não será punida se a lei anterior não estabelecer a respectiva sanção. "Permittitur quod non prohibetur". 0 que a lei penal não proíbe, diz Flungria, é penalmente lícito ou indiferente. "Lo no prohibido", arremata Soler, "es zona de libertad". 0 nullum crimen, nulla poena sine lege tornou-se "dogma da dernocracia". "E questa una delle piú fondamentali garanzie della libertil individuale, dello Stato moderno, il quale lia soppresso l'antica insidiosa facoltà di condannare a pena arbitraria quando il fatto non fosse preveduto come reato" (cf. Manzini, Istituzioni di diritto penale, v. 1, p. 47).

Pertencendo ojus puniendi ao Estado, esse direito subjetivo de punir permanece in abstracto, enquanto não se infringe a lei penal. Com a prática da ação violadora da norma penal, antecipadamente estabelecida, aquele direito subjetivo de punir, que, indistinta e abstratamente, visa aos possíveis infratores da lei penal, modifica-se em relação ao seu real infrator, transformando- se num direito efetivo, atual, concreto, de punir.

Quando o direito de punir sai do plano abstrato para o concreto, diz-se que surgiu para o Estado a "pretensão punitiva". Assim, da violação da norma penal nasce a pretensão punitiva, isto é, surge para o Estado o direito de fazer atuar a lei penal.

De nada valeria o princípio da reserva legal que embasa o sistema jurídico-penal do Estado liberal, se o Estado pudesse, como titular da pretensão punitiva, aplicar ele próprio o preceito sancionadol, arbitrária e discricionariamente. 0 Estado de Direito, então, impede que o poder repressivo seja exercido de maneira arbitrária. Assim como o Estado impede ao particular fazer justiça com as próprias

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mãos, cria também, para si, essa limitação. 0 Estado, pois, autolimitou a executoriedade do seu poder de punir. Somente o Estado-Juiz é que pode aplicar a lei ao

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caso concreto. "Les juges de Ia nation ne sont que Ia bouche qui prononce les paroles de Ia loi."Como corolário dessa situação surgem os princípios do nulla poena sine judice e nulla poena sine judicio, que são elevados à categoria de dogmas constitucionais. Ninguém poderá ser punido senão pela autoridade competente (i. e., o órgão incumbido da administração da justiça, o Juiz) e por meio de um regular processo. Daí dizer Manzini que o Direito Penal não é um direito de coação direta, mas sim indireta, pois "o poder repressivo não pode efetuar-se imediatamente, com o uso direto da força, como simples poder de polícia" (cf. Istituzioni, cit., p. 106), porquanto o uso ilimitado do poder se presta a abusos. Daí os cânones nulla poena sinejudice e nulla poena sinejudicio: nenhuma pena poderá ser imposta senão por meio do Juiz e de um regular processo, pois, no dizer de Calamandrei, "non sembra concepibile civiltà senza garanzia giudiziaria" (cf. apud Frederico Marques, Instituições, cit., p. 35).

Em conseqüência, o poder punitivo do Estado, derivado da violação de uma norma penal, não pode ser exercitado sem uma comprovação e uma declaração judicial, infligindo o castigo no caso concreto.

4. Fundamento constitucional da ação penal

Os cânones "nenhuma pena senão através do Juiz" e "nenhuma pena senão através do processo" são postos não só como autolimite da função punitiva do Estado, "ma, anche come limite alla volontà del privato, al quale é negato di assoggetarsi alla pena" (cf. G. Leone, Istituzioni di diritto processuale penale, Napoli, 1956, v. 1, p. 5).Destarte, se o Estado não pode executar o seu direito de punir, deverá, se pretender fazê-lo, dirigir-se ao Juiz, invocando-lhe a aplicação da sanctio juris. E esse direito de se pedir a tutela jurisdicional, que também se assegura ao Estado-Administração para pedir a atuação do Direito Penal objetivo, outra coisa não é senão o direito de ação.Por isso, conforme explica Frederico Marques, da mesma forma que a proibição da autodefesa criou o direito de ação para os particulares, a limitação da auto-executoriedade do direito de punir fez nascer para o Estado o direito de agir (cf. Curso, cit., v. 3, p. 332). Pois bem: nessa autolimitação do jus puniendi, realçada nos incs. XXXV, LIII, LIV e LV do art. 5." da Lei Maior reside e descansa o fundamento constitucional da ação penal, como direito do Estado-Administração de pedir ao Estado-Juiz a aplicação da lei penal objetiva.

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Observe-se que o nulla poena sine judicio não apenas obsta ao Estado o direito de impor a pena sem o due process - sem o regular processo -, como também impede, a quem quer que seja, a

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faculdade de sujeitar-se a ela. Portanto impossível, em matéria penal, a aplicação da pena por outra via que não a processual.

No campo extrapenal, é possível a composição do litígio sem o processo. No penal, não. Mesmo nos casos de exclusiva ação penal privada,À~que é possível é a composição extrajudicial quanto à satisfação do dano ex delicto, jamais quanto à pena, isto é, não será possível a irrogação de uma sanctiojuris com abstração do processo. 0 que pode ocorrer nos denominados delitos de ação privada, ou até mesmo naqueles cuja ação penal é subordinada à manifestação de vontade da vítima, é um desinteresse quanto à aplicação da pena ao culpado. Mas, e isto é o que temos afirmado, não se concebe, em qualquer tipo de infração penal, a imposição de pena sem o due process of law.

5. Natureza jurídica do direito de ação

Analisado o fundamento constitucional da ação, in genere, indagase: que se entende por direito de ação? Num sentido bem abstrato, ação é o direito de se invocar a garantia jurisdicional. Uma vez que o Estado impediu o fazer justiça com as próprias mãos - e proibição que se estende a ele proprio -, surgiu para os particulares e, inclusive, para o próprio Estado o direito de se dirigirem aos órgãos incumbidos da administração da justiça, pedindo o julgamento de uma pretensão.Mas qual a natureza jurídica da ação? 0 problema é, como já se disse, inquietante. Há até quem diga que a ação não é propriamente um direito, mas, tão-somente, um poder, uma faculdade.Segundo velha e revelha definição de Celso, a ação é o direito de se pedir em juízo aquilo que nos é devido "nihil aliud est actio, quam jus, quod sibi debetur, judicio persequendi".

Muito tempo depois, quando se dispuseram os juristas, notadamente os pandectistas, a estudar a natureza jurídica da ação, "dominados que estavam pela idéia de que ação e processo eram simples capítulo do direito privado", é que o problema se apresentou em toda a sua complexidade, A definição de Celso foi o ponto de partida para os estudos.

Surgiu, por primeiro, a teoria civilista ou escola francesa, como prefere Couture (Introdução ao estudo do processo civil, p. 19). Sus-

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tentavam os civilistas (e processualistas também) que a ação era o próprio direito material, também chamado substancial, reagindo contra a ameaça ou violação. Consideravam a ação como o próprio direito material em movimento, "algo assim como sua manifestação dinâmica". Entre direito material e ação não podia haver diferença. A tal ponto chegaram, na sua obstinação, que Demolombe ensinava que,

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quando a lei fala em "direitos e ações", incorre em pleonasmo (cf. Demolombe, apud Couture, Introdução, cit., p. 19). Garsonnet dizia a mesma coisa: "A ação não é outra coisa senão o próprio direito... e a expressão 'direitos e ações', usada algumas vezes pela lei, é um pleonasmo" (cf. Précis de procédure civile, ri. 132).

Identificava- se, assim, a ação com o próprio direito que ela procurava tornar efetivo em juízo. A ação outra coisa não seria senão o proprio direito em movimento, em atividade, ou melhor, "em pé de guerra". Aliás, Unger via na ação o direito "em pé de guerra" e acrescentava: "0 direito de ação é um direito do direito que vai a guerra" (cf. Unger, apud João Monteiro, Programma do curso de processo civil, 4. ed., Rio de Janeiro, Off. Graph. do Jornal do Brasil, 1925, p. 74).Idêntico era o pensamento de Roguin: 'Uaction n'est autre chose que le droit lui mêrne, casqué et armé en guerre, à Fétat de lutte contre ceux qui le contestetiC (cf. La science juridique pure, v. 3, p. 88).

Tão grande foi a influência dessa escola que dominou os espíritos de vários processualistas, chegando a empolgar o do velho João Monteiro, para quem o direito de ação outro não era senão o mesmo direito violado ou ameaçado (cf. Direito das ações, p. 16).Havia, contudo, quem afirmasse que o direito de ação era uma for-ma de manifestação do direito lesado, algo assim como uma metamorfose do próprio direito. Savigny explicava: "Todo direito, em conseqüência de sua violação, toma imediatamente o aspecto que passo a descrever. No conjunto dos nossos direitos, uns existem, perante todos os homens, os outros se referem unicamente a certos indivíduos determinados, e as obrigações têm essencialmente esse caráter. Mas a violação dos nossos direitos só é concebível mediante fato de pessoa determinada, fato que estabelece entre nós e esta pessoa uma relação de direito especial e nova. Este processo a exercer contra uma determinada pessoa por um objeto determinado, tem, portanto, o caráter de uma obrigação; aquele que sofreu a violação e aquele que a cometeu, ou o autor e o réu; se acham na posição respectiva de um credor e de um devedor... Esta

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relação resultante da violação, isto é, o direito conferido à parte lesada, se chama de direito de ação ou ação" (cf. Direito romano, § 205).

Em resumo: tal doutrina, a despeito das nuanças, apresentava como ponto central a idéia de que não havia diferença entre direito e ação, e que sem direito não se concebia a ação e vice-versa; desse modo, não poderia haver direito sem ação nem esta sem aquele.

o6. W102scheid e Muther

Tal concepção foi veementemente combatida. E a luta começou, propriamente, após a célebre polêmica entre Windscheid e Muther.

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0 primeiro, em 1856, escreveu um livro sob o título A actio do direito romano do ponto de vista do direito moderno, mostrando, num estudo comparativo, a profunda diferença existente entre a noção da actio entre os romanos e o moderno conceito de ação. Os romanos, dizia, não distinguiam aação do direito. Para eles a actio "estava ínsita no proprio direito, tanto que não se dizia, por exemplo, que Tício tinha tal ou qual direito e sim que possuía uma actio" (Windscheid, apud H. B.Tornaghi, Instituições, v. 3, p. 222 e 254).

Modernamente, dizia Windscheid, entende-se por ação aquele direito que serve para, por meio dele, se pedir ao Juiz a manutenção de um direito preexistente, por ter sido lesado (cf. Windscheid, apud João Monteiro, Processo, cit., 1925, p. 74).

Segundo Windscheid, os romanos concebiam a actio tal como nós entendemos a pretensão (Anspruch), isto é, como o poder de exigir algo de outrem, o poder de pretender alguma coisa de alguém, e não como um direito exercitado em juízo contra o réu. Mesmo não havendo violação de um direito, julgavam os romanos que possuíam a actio. Atualmente, observava Windscheid, entende-se por ação o direito que deriva da ofensa a outro direito. Antes da ofensa, antes da lesão, não há o direito de ação, tal como supunham os romanos. Com a lesão surge a Anspruch, isto é, a pretensão, podendo, já agora, o titular do direito violado exigir, por meio do Estado, algo de quem praticou o ato lesivo.

No ano seguinte, Theodor Muther publicou um trabalho, em revide aquele de Windscheid, fazendo consideraçoes a respeito da actio entre os romanos em confronto com a moderna conceituação da ação, para concluir que eles usavam o termo actio tal qual é empregado nos dias

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atuais. A actio, afirmava, não era, como supunha Windscheid, um direito do autor contra o réu, mas um verdadeiro direito contra o Estado, representado pelo praetor Atualmente, é o que sucede. Entende-se por ação o direito de se pedir ao Estado a aplicação do direito objetivo. A actio, afirmava, era o direito de se pedir proteção judiciária, direito contra opraetor, no sentido de que fizesse justiça. Não era um direito contra o réu. Sernelhanternente, dizia, é o que ocorre hoje. A ação é um direito contra o Estado e não contra o réu. A Klage (ação) é o direito de reclamar, de exigir do Estado-Juiz torne respeitado o direito violado. 0 Estado, iniciada a ação, é que tem direito contra o réu. 0 direito de ação, embora pressupondo a lesão de um direito material, é distinto deste, porque dirigido, voltado contra o Estado. (Sobre a natureza jurídica da ação, veja-se o excelente trabalho do Prof. H. B. Tornaghi, Instituições, cit., p. 207-99.)

A polêmica teve, dentre outros méritos: L') o de estabelecer diferença entre pretensão e direito material (cf. Couture, Introdução, cit., trad. M. V. Russomano, Konfino, 195 1, p. 2 1); 2.') o de negar

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identidade entre direito de ação e direito material e, finalmente, o de qualificar o direito de ação como um direito público. Público, porque diz respeito ao exercício de uma função pública, qual a de provocar a atividade do Estado-Juiz, e também porque tem como sujeito passivo o próprio Estado-Juiz do qual visa à prestação jurisdicional.Era, assim, a primeira manifestação e reaçao contra a escola jus materialista. Concebendo-se o direito de ação como um direito público subjetivo, escapava, assim, "às lindes do direito privado a disciplina de uma faculdade que é de direito público".0 quod sibi debeatur, a que se referia Celso, passou a ser algo distinto do jus persequendi in judicio.

7. Adolph Wach e a autonomia do direito de ação

Estava, assim, declarada a guerra contra aqueles que identificavam a ação com o direito material, bem como contra os que entendiam que a ação era um direito contra o réu. 0 que o titular do direito tem contra quem o violou é a pretensão, que, mais tarde, Camelutti definia como exigência de subordinação de um interesse alheio a um interesse proprio. A ação não era um direito contra o réu, mas o direito de se pedir a

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tutela jurisdicional do Estado, porque somente este é que podia obrigar o réu a satisfazer a pretensão do titular do direito violado.Em 1885, Adolph Wach deu ênfase à autonomia do direito de ação, mostrando que, na verdade, não se confunde este com aqueloutro que a ação tende a tomar efetivo. E afirmava: "A pretensão de proteção ao direito é o meio que permite fazer valer o direito, sem ser o direito em si mesmo". Além de autônomo, é de natureza pública, porquanto a ação é um difeito de se exigir do Estado a proteção jurídica, e do adversário, a submissão. Com suas próprias palavras: "A pretensão de proteção do direito é de natureza pública; dirige-se, por um lado, contra o Estado, e, por outro lado, contra a parte contrária. Aquele deve outorgar a proteção do direito - o ato de administração da justiça - enquanto que esta (parte contrária) deve tolerá-lo" (cf. La pretensión de declaración, p. 59).Mas, aí o grande mérito do processualista tedesco, a ação não pressupõe, necessariamente, um direito subjetivo violado ou ameaçado, mesmo porque, nas "ações declaratórias", o autor pretende, apenas, obter a declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica. Entretanto afirmava Wach que o direito de ação estava condicionado à existência de um direito material ou de um interesse. Para se exercer o direito de ação era necessário houvesse um direito material violado ou um interesse juridicamente protegido, donde concluir que o direito de ação era um direito à sentença favorável. "Só existia o direito de ação quando procedente o pedido do autor." Daí a denominação da sua teoria de "Konkrete Rechtsschutzanspruch" (Teoria da concreta pretensão à proteção do direito pelo Estado). Não explicava Wach que direito teria o autor exercido em juízo quando a demanda fosse julgada improcedente...

8. PlUz e DegenkoIb

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Ainda no fim do século passado, dois notáveis juristas, Plósz e Degenkolb, em trabalhos que tiveram grande repercussão, proclamaram o caráter abstrato do direito de ação, na sua forma mais radical. Consideravam a açãõ como um direito público, subjetivo, abstrato, genérico, indeterminado. Não se confundia com o direito, porque sua existência independia de um direito subjetivo material e de que o autor tivesse ou não razão. 0 réu podia ganhar a demanda, mas não podia im-

. 1 -pedir o ingresso do autor em juizo. A ação era um direito que pertencia mesmo aqueles que não tinham razão.

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Certo que, anos após a publicação do seu primeiro trabalho, Degenkolb modificou seu critério, exigindo que o demandante, para que tivesse o poder de acionar, se julgasse, sinceramente, armado de direito (cf. Couture, Introdução, cit., p. 22).0 direito de ação tomava, assim, uma nova roupagem. Não era apenas autônomo, distinto do direito que ele tende a fazer valer em juízo; não era um direito contra o réu, mas contra o Estado, para que este exercesse o seu poder de jurisdição; não era um direito condicionado à existência de um direito material violado, mas independente, porquanto o direito de ação existe ainda que a demanda seja julgada improcedente. E, além de independente, além de ser distinto do direito material, de ser público, genérico e indeterminado, era, acima de tudo, um direito abstrato, isto é, com existência pré-processual. Concebia-se, pois, a ação, sob um ângulo bem vasto, como um direito subjetivo do cidadão, emanado do status civitatis, de se dirigir incondicionalmente ao Poder Judi-

ciário. Esse o sentido da expressão abstrato usada por Degenkolb.

9. A teoria do direito potestativo

Após as obras de Muther e notadamente as de Degenkolb e Wach, que proclamaram a autonomia daação, surgiram várias teorias que, embora guardando a idéia primitiva da autonomia, emprestaram ao direito de ação um colorido novo, às vezes original. Uma delas é a de Chiovenda, que considera a ação como um direito potestativo. A ação, dizia, é um direito autônomo. Não é um direito contra o Estado. Se o fosse, suporia um conflito de interesse entre o cidadão e o Estado, o que não ocorre, porquanto é interesse do próprio Estado dar a cada um o que é seu. É, antes de mais nada, um direito que se exerce em relação ao adversário, visando à produção de um efeito jurídico a favor de quem a propôs e em detrimento da pessoa contra quem foi proposta, sendo que esta nada pode fazer para impedir aquele efeito, limitando-se a aguardar sua produção. Assim, a ação não passaria de simples direito potestativo.

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Até há pouco tempo, os direitos subjetivos classificavam-se em públicos e privados, e estes, por sua vez, em patrimoniais e não patrimoniais. Havia até quem acrescentasse um tertio genus, direitos subjetivos mistos (sucessão). Criou-se, mais tarde, nova categoria: a dos direitos subjetivos potestativos ou faculdades jurídicas. Nesses direitos potestativos não existe uma obrigação correlativa de outrem. Em suma:

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na relação jurídica engendrada pelo direito potestativo, não existem direito e dever em contraposição. A situação é esta: o direito potestativo é o poder de influir, com a própria manifestação de vontade, sobre a situação jurídica de outro sujeito, sem o concurso da vontade deste. Como exemplos podemos citar: o poder do contratante de impugnar o contrato, o poder do mandante de revogar a procuração, o poder do vendedor de exercer o pacto de retrovenda etc.

ACntando para essa nova categoria de direitos subjetivos, Chiovenda notou a seguinte particularidade: "questi poteri tendono alla produzione di un eflêno giuridico afavore di un soggetto e a carico di un altro, il

1quale nu11a deve fare, ma nu11a nemineno puo fare per rimuovere quell'effetto, rimanendo soggetto alla sua produzione. Lo stato di soggezi . one, cosi individuato, caratterizza il diritto potestativo". Ao pé da letra: estes poderes tendem à produção de um efeito jurídico, a favor de um sujeito e com encargo para o outro, o qual nada deve fazer e nada tampouco pode fazer para remover aquele efeito, permanecendo sujeito à sua produção. 0 estado de sujeição, assim individualizado, caracteriza o direito potestativo (cf. Principii, p. 46).

Observando Chiovenda que o réu não pode impedir o ingresso do autor em juízo, da mesma forma que o mandatário não pode impedir que o mandante revogue a procuração, viu perfeita semelhança entre o direito de ação e os denominados direitos potestativos, para afirmar que o direito de ação e um direito potestativo exercido em frente ao réu.

Definiu, assim, Chiovenda o direito de ação: '11 potere giuridico di porre in essere Ia condizione, per l'attuazione della volontà di legge. 12 azione é un potere che spetta di fronte all'avversario rispetto a cui si produce 1'effetto giuridico dell'attuazione della legge. L'avversario non é tenuto ad alcuna cosa dinanzi a questo potere: egli é semplicemente soggetto ad esso. L'azione si esaurisce col suo esercizio, senza che l'avversario possa far nulla nè per impedirla nè per soddisfarla" (o poder jurídico de dar vida à condição para atuação da vontade da lei. A ação é um poder que compete ante o adversário, a respeito do qual se produz o efeito jurídico da atuação da lei. 0 adversário não está obrigado a coisa alguma ante esse poder: está simplesmente sujeito a ele. A ação se esgota com o seu exercício, sem que o adversário nada possa fazer nem para impedi-Ia, nem para satisfazê-la) (cf. Principii, cit., p. 45-6).

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A ação, pois, para Chiovenda, não era um direito contra o Estado, mas exercido em face do adversário. 0 Estado funcionaria, apenas,

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11 1 1 1 1em

como simples condutor da pretensão. Por outro lado, Chiovenda, ao contrário do pensamento primitivo de Degenkolb, entendia por ação o direito que compete a quem tem razão contra quem não a tem. De fato. Segundo o conceito chiovendiano, a ação visa à atuação da vontade da lei (a observação é de Sansó), sendo, portanto, condicionada à existência da vontade da lei da qual se pede a atuação. Tem a ação, assim, um caráter concreto, no sentido de que pertence à parte que tem razão, e, por isso, seria um direito à obtenção de uma sentença favorável (cf. Sansó, La correlazione, cit., p. 30).Também Leone observou que a concepção de ação para Chiovenda é a de um direito que pertence a quem tem razão contra quem não a tem (cf. G. Leone, Trattato, cit., p. 119).

10. 0 conceito de direito de ação

0 conceito de ação passou, assim, por profundas alterações. Desde o conceito de Celso, de se perseguir em juízo aquilo que nos é devido, até à concepção da sua autonomia e do seu caráter abstrato, muitas águas rolaram. Direito em pé de guerra, direito metamorfoseado, direito que deriva de outro direito, meio de tutela jurídica autônoma, direito abstrato, direito potestativo, direito contra o Estado, direito contra o réu, direito ou faculdade perante o Estado, direito ou faculdade em face do adversário, direito que compete a quem tem razão.Afinal, com quem a razão?Tornaglii, em considerações a respeito do ponto de vista de Chiovenda, na parte em que sustenta que a ação não é contra o Estado, observa que não é o autor quem tem o poder de criar direitos e obrigações para o réu, mas, sim, o próprio Estado, por intermédio do Juiz, e, por isso, na sua concepção, Chiovenda amesquinha o papel do Juiz (cf. Instituições, cit.,p. 285).Liebman fizera, no particular, crítica semelhante, alegando ser unilateral a concepção de Chiovenda: "subjetiva" e não "objetiva", isto é, uma concepção que considera o fenomeno processual externamente e não internamente, "dal di fúori, e non dal di dentro" (cf. L'azione, p. 52).Assim também Sansó (La correlazione, cit., p. 31) anotou que Chiovenda considerou o fenômeno processual do ponto de vista da parte que tem razão e, por isso, considerou como direito apenas a ação funda-

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da, fazendo abstração da função própria do Juiz no processo e da intensa atividade processual que deve desenvolver para saber se a ação é ou não fundada.

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Hoje, o entendimento dominante é o de que a ação e um direito contra o Estado. Se o Estado aboliu a vingança privada como forma de composição de litígios e avocou o monopólio da administração dajustiça, obviamente surgiu para o cidadão o direito de se dirigir a ele, exigindo-lheafgarantiajurisdicional.

Por outro lado, se ação e direito material se identificam, se o direito de ação é o próprio direito material em atitude defensiva, e se não pode haver direito material sem ação e vice-versa, como se explicam os casos de ação sem direito e de direito sem ação? E os casos das ações meramente declaratórias? 0 art. 4.' do nosso CPC prevê, às expressas, tais modalidades de ações, e, nesses casos, "o interesse do autor pode decorrer, muitas vezes, de fatos que não são imputados a quem quer que seja". Vej am-se, a propósito, os exemplos de Lopes da Costa, citados por Moacyr Amaral Santos, in Direito processual civil, 3. ed., v. 1, p. 207.Quando alguém ingressa einjuízo, exercendo o seu direito de ação e, a final, o Juiz proclama que o autor não tem razão, que não houve lesão ou violação ao seu direito material, que o autor não tem propriamente um direito válido a proteger, não se exerceu o direito de ação? Quando o Juiz julga uma ação infundada ou improcedente, não foi exercido o direito de ação? 0 autor não exigiu do Estado a prestação jurisdicional?

11. 0 direito de ação no plano estritamente processual

De observar que o prOprio Chiovenda "foi constrangido a admitir, de conformidade a Degenkolb", que existe pelo menos, no caso de quem age sem ter razão e a seu favor, "uma simples faculdade jurídica" (cf. Chiovenda, Instituições, cit., v. 1, p. 23). Aliás, o próprio Wach, no particular, pensava sernelhantemente.A mesma crítica feita a Chiovenda estendeu-se à teoria do "Konkrete Rechtsschutzanspruch" de Wach, porquanto este entendia que o direito de ação existia quando a sentença fosse favorável, isto é, quando procedente o pedido do autor. E, quando a ação fosse julgada improcedente, que é que se fez até à prolação da decisão? Não houve um efetivo exercício do direito de ação?

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li ~~ 1 1 1 1

Por que simples faculdade, como queria Chiovenda? Respondeu Alfredo Rocco que, "se qualquer pessoa pode sempre exigir dos órgãos Jurisdicionais que empreguem a própria atividade em seu favor, desde que o queira, é claro que quem pode pretender alguma coisa de outrem, se o quiser, tem, sem mais nada, direito subjetivo" (cf. A. Rocco, apud Tornaghi, Instituições, cit., p. 292).

Qual, então, a posição correta? Sera a ação, realmente, aquele direito público, subjetivo, autônomo, genérico, indeterminado de se invocar do Estado a tutela jurisdicional como a princípio a

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conceituava Degenkolb? Uma parte da doutrina entende, e ao que parece com razão, que a ação assim considerada, indeterminada, sem conteúdo e sem qualquer pressuposto fáctico, não é propriamente aquele direito de ação a que se refere a lei processual. Um direito assim concebido se coloca num plano mais alto, mais amplo, isto é, no campo constitucional, e, assim, o direito de ação, sem base material, tal como o concebia, inicialmente, Degenkolb, existe como garantia constitucional, porquanto o Estado não permite que se faça justiça com as próprias mãos, e por isso fez surgir o direito de nos dirigirmos a ele (Estado), invocando-lhe a garantiajurisdicional. Este é o direito constitucional de ação. Daí a ratio essendi do inc. XXXV do art. 5.' da nossa Lei Maior. Todos nós, inclusive o próprio Estado-Administração, temos o direito de invocar a garantia jurisdicional. Poderá ser hoje, amanhã ou a qualquer tempo. Não importa quando. 0 certo é que temos esse direito. Ele existe, em estado potencial, em estado latente, não condicionado a qualquer pressuposto fáctico.

Num plano estritamente processual, não se pode conceber o direito de ação como um direito abstrato, genérico, indeterminado, isto é, sem estar condicionado a qualquer pressuposto. Para o processo, o direito de ação existe, isto é, o direito de ação tem relevância, existe realmente, só adquire vida, "quando existir um interesse emergente de um estado de fato contrário ao direito, e interesse que possa fazer-se valer através da via jurisdicional". Pouco importa que esse estado de fato contrário ao direito seja ou não real. Observe: Tício pode exercer o direito de ação, pois a Constituição lho permite. Poderá promover a ação possessória, uma ação investigatória de paternidade, de despejo, de separação judícial etc. Tal direito ele o tem, simplesmente, porque o Estado lhe impediu (como a todos nós) de fazer justiça com as próprias mãos. Trata-se, pois, de um direito genérico (i. e., sem conteúdo), abstrato (no sentido

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1 1de pré-processual) e indeterminado (porque não pressupõe concretamente nenhum estado de fato contrário ao direito). Pois bem. Ontem, Mévio turbou a posse de Tício ou, pelo menos, supôs este houvesse ocorrido a turbação. Hoje, Tício pode exercer aquele direito de ação, porquanto surgiu uma concreta situação de fato. Desse estado de fato contrário ao direito (turbação ou presumível turbação da posse), surgiu para Tício uma pretensão, como poder de exigir algo de Mévio. Tício pretende fazer cÃ#sar aquele estado de fato e ressarcir-se dos prejuízos e, como não pode fazê-lo com as próprias mãos (i. e., com o uso da força), tem o direito subjetivo processual de se dirigir ao Estado-Juiz, dele reclamandojustiça.

Pode acontecer que, afinal, o Estado-Juiz entenda não ter havido turbação. Pode acontecer, afinal, que o Estado-Juiz venha a entender que o possuidor era Caio e não Tício. Nem por isso Tício deixou de exercitar o seu direito de ação.

Sansó, com apoio em Liebman e Monacciani, entende por ação, no aspecto processual, aquele direito subjetivo instrumentalmente conexo a um caso concreto e, por isso, pertencente apenas ao titular

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de uma situação jurídico-material (cf. La correlazione, cit., p. 32).Esse caso concreto, por óbvio, pode não ter ocorrido. Imagina-se tenha-se verificado. Mas se na verdade não ocorreu, nem por isso deixou de haver o direito de ação. Se o Promotor oferece denúncia contra Mévio, imputando-lhe a morte de Tício, a morte deste é o fato concreto, No fim do processo, apura-se que a vítima não morreu... Deixou de haver o exercício da ação penal?

Por meio da ação, o titular de uma situação jurídico-material vaijuízo, expõe-lhe a pretensão, e o Magistrado, então, põe-se em movimento a fim de analisá-la, investigá-la; procura, enfim, instruir-se para, por último, dizer se o pedido é ou não fundado, procedente ou improcedente, se o autor tem ou não tem razão.

Aí estão gizados, pois, os contornos da ação, quer no plano constitucional, quer no processual.

Trata-se de um direito autônomo, porque distinto do direito ou ínteresse que ele tende a tornar efetivo em juízo. Por isso fala Liebman da ação como "diritto al mezzo e non al fine". É um "direito subjetivo", visto que o seu titular pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional, e "quem pode exigir alguma coisa de outrem, se o quiser, tem, sem mais

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nada, direito subjetivo". É um "direito público", porque serve para 1a realización de un derecho público", qual o de provocar a atuagao jurisdicional (cf. Alcalá-Zamora, Derecho, cit., v. 2, p. 67).É um "direito instrumentalmente conexo a um caso concreto", como reconhecem Liebman, Luigi Sansó, Monacciani, entre outros (v. Sansó, La correlazione, cit., p. 34) - "diritto strumentalmente connesso ad una fattispecie concreta". E por meio dele que se pede ao Estado-Juiz uma decisão sobre um caso concreto. Este caso concreto, como bem diz Sansó (La correlazione, cit., p. 37), é aquele quid em relação ao qual se exercita a ação. De fato, ninguém ingressa em juízo sem saber o que pretende. Se o faz, deve pretender algo: a punição do réu, a desocupação do prédio, a reintegração da posse, o divórcio, a satisfação do dano etc. Por isso, pode-se afirmar, também, que a ação (no conceito processual) é não só específica, isto é, apresenta um conteúdo, que no caso é a pretensão deduzida, como também determinada, porquanto ligada a um fato ou interesse concreto.G. Sabatini observava, com acerto, que a ação penal (e pode-se tirar o adjetivo penal) não deve ser concebida in abstracto, como fim em si mesma, porque deve sempre referir-se a qualquer coisa.Pode-se dizer, entretanto, que o direito de ação, embora instrumentalmente conexo a um caso concreto, é um direito abstrato, no sentido de que ele existe ainda naquelas hipóteses em que o Juiz julga o pedido infundado, improcedente, inviável. Vale dizer: mesmo quando o seu titular não tenha razão. Certo que a palavra "abstrato" tem sido usada no estudo da teoria da ação em dois sentidos: como direito reconhecido pela ordem jurídica em estado potencial e como direito de se exercer a ação, haja ou não razão. Quando se diz que o direito de ação, no plano processual, é abstrato, tal palavra é

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empregada com aquele sentido definido por G. Leone: "astratto é il diritto d'azione perchè, configurato nel massimo di autonomia, prescinde dalla fondatezza o meno della pretesa dedotta" (cf. Istituzione, cit., p. 130).Assim, se, para o efetivo exercício da ação, não se exige tenha a pretensão deduzida fundamento, permanece claro o caráter abstrato do direito de ação.Desse modo, quando o Juiz penal proclama, na sentença, que não houve o crime, ou que o fato que se imputa ao réu não constitui crime, deixou, por acaso, de existir o direito de ação? Porventura ele não se fez

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presente? Houve o efetivo exercício do direito de ação, mas a pretensão deduzida não tinha fundamento.Então podemos dizer, em resumo, que a ação é o direito subjetivo de se invocar do Estado-Juiz a aplicação do direito objetivo a um caso concreto. Tal direito é público, subjetivo, autônomo, específico, determinado e abstrato.

12. 0 x*55nceito de ação penal

E no que respeita à ação penal? 0 conceito de ação apresentado pelos cultores do Direito Processual Civil não diverge daquele que se formula quanto à ação penal. Ação, tanto no campo cível como no penal, é o direito de se invocar a prestação jurisdicional. 0 que distingue uma da outra é a pretensão que lhes serve de conteúdo.Às vezes, parte da doutrina define a ação penal como um poder jurídico ou simplesmente como um poder. Mas, das duas uma: ou a palavrapoder está empregada no sentido de direito subjetivo, poder de exigir algo de outrem, e, nesse caso, será questão de mera terminologia, ou, então, na acepção de direito potestativo, numa demonstração de adesão à teoria chiovendiana. Nesse último sentido, Lanza, para quem a ação é "o poder de fazer incondicionada a atuação do direito penal objetivo". Massari, para quem a ação é o "direito potestativo público", define-a como "o poder jurídico de ativar o processo com a finalidade de obter sobre o direito deduzido uma decisão judicial ......Todavia, como bem diz Tornaghi, o titular do poder não tem direito de exigir que outro faça alguma coisa (cf. Instituições, cit., p. 210).Já o titular da ação tem o direito de exigir do Estado-Juiz o julgamento da sua pretensão. Assim, se o Estado chamou para si a função de dar a cada um o que e seu, ficou obrigado, desde que invocado, a solucionar o litígio. Logo, se o Estado é o titular do direito de punir e se lhe cumpre, por outro lado, manter o equilíbrio social Profundamente afetado pelo crime, tem ele, à evidência, o deverjurídico de reprimir as infrações penais. Contudo, não podendo fazê-lo motu proprio, pelas razões já expostas, mas sim por meio do devidoprocesso legal, é intuitivo que, para lograr o cumprimento daquele dever, tem o direito de exigir do orgão incumbido de fazer justiça o julgamento da sua pretensão. Encontramos, então, nos dois pólos: de um lado, o titular da pretensão punitiva a exigir do Juiz uma decisão sobre a lide penal, e, do outro, o Estado-

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Juiz com a obrigação de proferi-Ia. Essepoder de exigir do Estado-Juiz, que, por sua vez, tem a obrigação de atender, outra coisa não é senão um verdadeiro direito subjetivo.0 exercício desse direito é que constitui um dever do Estado-Administração. Se este deve reprimir as infrações penais e se a imposição da sanctiojuris é feita pelo Estado-Juiz, logo, para poder cumprir aquele dever, o Estado-Administração, impossibilitado que está de auto-executar o seu direito de punir, tem o direito de se dirigir ao órgão Jurisdicional pedindo o julgamento da sua pretensão.Podemos, assim, definir a ação penal como sendo o direito de se pedir ao Estado-Juiz a aplicação do Direito Penal objetivo. Ou o direito de se pedir ao Estado-Juiz uma decisão sobre um fato penalmente relevante.Processualmente, não há diferença entre ação penal e ação civil, salvo no que respeita à pretensão que lhes serve de suporte fático. Se a pretensão é de natureza penal, ação penal; ação civil, se extraperial a pretensão.A circunstância de o Estado-Administração ter o dever de exercer o direito de ação penal e, no cível, o particular ter apenas a faculdade de exercê-lo -facultas agendi - não desnatura o conceito de ação como um direito em face do órgão Jurisdicional que está obrigado a se manifestar sobre a pretensão deduzida.Num ou noutro caso o direito de ação é exercido em relação ao

Juiz.

0 dever ou a faculdade de se exercer o direito de ação está profundamente ligado ao interesse na solução do litígio, o que é coisa diversa. 0 particular promove a ação, se quiser (facultas agendi). Já o Estado tem o dever de satisfazer a um interesse da coletividade, qual o de reprimir as infrações. Se os interesses tutelados pelas normas penais são públicos, sociais, a repressão às infrações constitui indeclinável dever do Estado para lograr um dos fins essenciais para os quais ele foi constituído -segurança e reintegração da ordem jurídica. Logo, é de se concluir que a faculdade ou dever de se exercer o direito de ação está intimamente ligada à natureza do interesse tutelado pela norma, não afetando o próprio conceito de ação.Por outro lado, nos Estados em que se permite à própria vítima ou mesmo a qualquer do povo promover ação penal, não se pode dizer que

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o exercicio desta seja um poder-dever Poder-dever será na Itália, na França, no México, onde vigora o princípio monopolístico da ação pelo Estado.Desse modo, não havendo diferença de conceito no campo processual entre ação penal e ação civil, tudo quanto falamos sobre o direito de ação é inteiramente aplicável à ação penal. É um

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direitopúblico subjetivo, determinado (porque instrumentalmente ligado a um fato concreto); autônÃo (porque distinto do direito que ele tende a tornar efetivo em juízo); específico (porque apresenta um conteúdo, e este nada mais é que a pretensão que se deduz em juízo); e, finalmente, abstrato, porque, embora instrumentalmente conexo a um fato concreto, o direito de ação existe e se exercita, ainda naquelas hipóteses em que o Juiz;ulga opetitum3improcedente ou infundado.Claro que, quando se exercita o direito de ação penal, o titular da pretensão deve expô-la, com clareza, ao órgão Jurisdicional, apontando-lhe o fato que teria acontecido. Daí dizer-se ser o direito de ação instrumentalmente conexo a um fato concreto. Se, após laboriosa e intensa atividade, o Juiz chega à conclusão de que aquelefato não ocorreu, ou, se ocorreu, o réu não foi o seu autor, a ação penal será julgada improcedente. Sem embargo disso, foi ela exercitada. Por isso se diz que, mesmo no plano estritamente processual, o direito de ação é um direito abstrato, porque pode ser exercido ainda que a pretensão venha a ser considerada infundada.

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§ 2*" - Da açao penal

SUMÁRIO: 1. Enquadramento da ação penal no sistema legal normativo. 2. A influência do Código de Instrução Criminal da França. 3. A orientação do legislador pátrio de 1890. 4. A orientação nos trabalhos legislativos de 1940. 5. A opinião de Jorge A. Romeiro e de Vicente de Azevedo. 6. Críticas de Frederico Marques. 7. Normas penais e processuais. 8. Classificação da ação penal. 9. Classificação subjetiva. 10. Razão de ser da divisão da ação penal e da subdivisão da ação penal pública. 11. Subdivisão da ação penal pública. 12. Ação penal pública incondicionada. 13. Classificação quanto à pretensão.

1. Enquadramento da ajao penal no sistema legal normativo

A despeito da natureza processual do direito de ação, tema inquietante tem sido o pertinente ao enquadramento do instituto da ação penal no sistema legal normativo. Entre nós, os legisladores do Código Criminal de 1830 dispensaram poucas referências ao instituto da ação penal e, assim mesmo, o fizeram na parte especial, "dela cuidando para preceituar, em relação a determinados crimes, sobre a condição de acusação". Dizia, por exemplo, o art. 262:

"Não se dará ação de furto entre marido e mulher, ascendentes e descendentes e afins nos mesmos graus; nem por ela poderão ser demandados os viúvos ou viúvas, quanto às coisas que pertencerem ao cônjuge morto, tendo somente lugar, em todos esses casos, a ação civil para a satisfação".

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2. A influência do Código de Instrução Criminal da França

0 instituto da ação penal era disciplinado pelo Código de Processo Criminal. Seguia, assim, o legislador imperial a orientação do legislador francês. De fato. 0 Code d'Instruction Criminelle de 1808 é que cuidava da matéria. Considerava-se, conseqüentemente, a ação penal como instituto processual. Muito embora os Códigos Penais da Áustria e da Norueft houvessem tratado da ação penal, o certo é que o Código francês teve maior divulgação, e, dada a influência dessa legislação, não foi difícil aos nossos juristas do Império se orientarem pelas leis napoleônicas.

3.

A orientação do legislador pátrio de 1890

Com a Proclamação da República, entretanto, novas idéias vieram inspirar os nossos legisladores. Surge o CP de 1890, trazendo uma regulamentação genérica da matéria, deixando assim entrever sua consagração como instituto de direito material.

4. A orientação nos trabalhos legislativos de 1940

0 legislador de 1940 seguiu-lhe o mesmo piso, como se vê pela leitura dos arts. 102 a 107 do CP (hoje, arts. 100 a 106). Todavia, sem embargo desses dispositivos, o nosso CPP dedicou um capítulo inteiro ao citado instituto (arts. 24 a 62). Idêntica orientação foi tomada pelos autores dos Anteprojetos dos Códigos Penal e Processual Penal, que estavam em estudo no Congresso, na década passada.

5. A opinião de Jorge A. Romeiro e de Vicente de Azevedo

Entende Jorge A. Romeiro que a matéria pertence tanto à lei material quanto à formal. E, citando Alimena, conclui: "É possível estabelecer fronteiras, tendo em vista a cumeada das montanhas, mas, nos vales, serão elas sempre incertas, controvertidas e violáveis" (cf. Da ação penal, Forense, 1949, p. 21-6).

Vicente de Azevedo, partindo do pressuposto de que a ação penal é campo comum ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, conclui que a matéria foi regulada com acerto, isto é, tanto pelo CP como pelo CPI? (cf. Apostilas de direito judiciário penal, Saraiva, 1952, p. 154).

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6. Críticas de Frederico Marques

A matéria é, com efeito, de Direito Processual. Oportuna a lição de Frederico Marques~ Justifica-se a atitude do legislador de 1890, que procurou firmar preceitos uniformes relativamente à

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persecução penal, num sistema normativo de caráter pluralista do Direito Processual, uma vez que a idéia federativa dos albores da República acabou por deixar aos Estados-Membros a competência exclusiva para legislar sobre Processo Civil e Processo Penal (cf. Curso, cit., v. 3, p. 330).Assim sendo, extinguindo-se com a Constituição de 1934 a competência dos Estados-Membros para legislar sobre matéria processual, o legislador de 1940 não agiu com acerto ao disciplinar o instituto da ação penal.As regras contidas nos arts. 102 a 107 do CP (hoje 100 a 106), pondera Frederico Marques, melhor ficariam no CPP. Na legislação penal deveriam permanecer, tão-somente, os preceitos da parte especial que discriminam, nos delitos em espécie, os casos de ação penal pública dependentes de representação do ofendido e os casos de ação privada (cf. Curso, cit., p. 330).

7. Normas penais e processuais

Inteira razão assiste ao mestre. Se as normas de Direito Penal, na exata observação de Tomaghi (Processo, cit., p. 19) e de Manzini (Derecho, cit., p. 108), são as que descrevem as infrações penais, as que cominam penas, as que regulam a capacidade de delinqüir, as que regulam a culpabilidade, as que conferem aos órgãos do Estado, ou aos cidadãos, o poder de dispor da pretensão punitiva, as que determinam as causas de exclusão de antijuridicidade ou de culpabilidade, e se as normas processuais penais visam a regular a atividade necessária para tornar evidente a relação jurídico-penal, não se pode negar seja a ação penal um instituto nitidamente processual penal.Aquela atividade necessária a que se refere Tornaghi se inicia com a ação penal. Seu instituto, pois, pertence ao Direito Processual Penal, sem embargo de o nosso CP dedicar-lhe todo um capítulo. Embora instrumentalmente conexo a uma pretensão, a ação penal não se confunde com o próprio direito material que ela tende a tornar efetivo em juízo. A autonomia do direito de ação, nos dias atuais, somente encontra resis-

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tência por parte de alguns civilistas impenitentes. A ação é direito público subjetivo por meio do qual se provoca a função jurisdicional que se plasma no processo.0 fato de haver sido disciplinada também no CP não lhe ofusca a natureza jurídica, que continua sendo processual. 0 caráter processual penal danorma, diz G. Leone, infere-se não da sua localização - que constitui um dado de identificação importante, mas, certamente, não vincuAte - e, sim, do objeto, do seu conteúdo, da sua finalidade (cf. Trattato, cit., p. 40).Realmente, há normas no Processo Penal que não têm, evidentemente, caráter processual penal. Vejam-se, a propósito, aquelas pertinentes à prisão administrativa (CPP, arts. 319 e 320).Por outro lado, há normas no Processo Penal que apresentam prevalentes caracteres penais, tais como as pertinentes à queixa e à representação.E certo que há interesse em se distinguir uma da outra. Disse-o muito bem Vannini: A determinação do caráter material ou processual da norma é de grande importância, especialmente aos fins da

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disciplina da sucessão das normas no tempo. Efetivamente, respeitante às disposições de caráter material, rege o princípio da retroatividade ou extraatividade da lei mais favorável ao réu, enquanto para as disposições de caráter processual rege o princípio da imediata aplicação - tempus regit actum (cf. Manuale di diritto processuale penale, Milano, 1948, p. 6).

8. Classificação da ação penal

Há dois critérios para se classificar a ação penal: um tradicional, em que se leva em conta o elemento subjetivo, isto é, em que se considera o sujeito que a promove, sua titularidade enfim. É a chamada classificação subjetiva. Assim, temos a ação penal pública, promovida pelo Ministério Público; a ação penal privada, exercida pela vítima; a ação penal popular, cujo exercício fica a cargo de qualquer pessoa etc.Tal classificação encontra-se sistematizada em nossos Códigos Penal e Processual Penal. E, por isso mesmo, a mais vulgarizada.Alguns autores, decerto pela influência que sofreram dos processualistas civis, procuraram e procuram adaptar ao Processo Penal a moderna classificação das ações do Processo Civil, classificação esta

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que se baseia na tutela jurisdicional invocada. Teríamos, assim, a seguinte classificação:

de conhecimento

Ação penal

condenatóriaconstitutivadeclaratória positiva

negativa~l

cautelar executóriade execução executiva

1!

A ação se diz de conhecimento, porque obriga o Juiz ao exame da lide "para o fim de descobrir e formular a regra jurídica concreta que deve regular o caso", como bem diz Liebman (cf. Processo de execução, 2. ed., Saraiva, 1963, p. 32). Tomando conhecimento da pretensão deduzida e da resposta do réu, colhe as provas, analisa-as, interpreta a norma, desenvolvendo, assim, intensa atividade para poder aplicar a lei àquele caso concreto. Essa sua tarefa - e é Liebman quem fala - se assemelha, sob certos pontos de vista, à de um

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historiador, quando reconstrói e avalia os fatos passados (Processo, cit., p. 32).Essa ação de conhecimento pode ser condenatória, constitutiva ou declaratória. Diz-se condenatória quando visa a uma sentença de condenação. Nesses casos, o Juiz declara a existência da relação jurídicomaterial e, ao mesmo tempo, impõe a sanctio juris ao transgressor da norma. Se Tício move ação de cobrança contra Mévio, julgando-a procedente, o Juiz, além de declarar a existência daquela relação jurídicomaterial entre autor e réu, impõe a este a sanctiojuris, condenando-o a pagar determinada importância. Ação condenatóri a, portanto. Constitutiva é aquela destinada a criar, extinguir ou modificar uma situação jurídica. Na ação de divisão de terras, por exemplo, a coisa comum entre condôminos torna-se separada em glebas distintas, extinguindo-se as relações que havia por força do condomínio. Finalmente, declaratórias, também denominadas "meramente declaratórias", que visam apenas à declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica. Já se disse que a tarefa do Juiz, antes de mais nada, é necessariamente declaratória. Mas, nas denominadas ações declaratórias, objetiva-se tão-só uma providência jurisdicional meramente declaratória. Quando o pedido visa à decla-ração da existência da relação jurídica, a ação se diz declaratória posi-

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tiva; quando objetiva a declaração dàinexistência da relação jurídica, é denominada declaratória negativa. 0 CPC, no art. 1% diz que para propor ação é necessário ter interesse. E, logo no artigo seguinte, dispõe que esse interesse pode limitar-se à declaração: a) da existência ou inexistência de relação jurídica; e b) da autenticidade ou falsidade de documento.

Os exemplos citados por Costa Manso são por demais elucidativos:

ã~ Sou portador de um título de crédito não vencido. Quero descontálo porque necessito já de dinheiro. Encontro, porém, sérios obstáculos, porque o devedor propalou na praça, ou declarou mediante protesto judicial, que o título é falso, ou que a dívidajá foi paga. Não posso intentar ação de cobrança para demonstrar o meu direito, mas a lei me assegura a faculdade de descontar o título, de transformá-lo de imediato em dinheiro. Impor-me paralelamente o sacrifício de aguardar o vencimento da dívida, para só então agir, será tornar ilusória a garantia, será diminuir a extensão do meu direito. A ação meramente declaratória, entretanto, me acudirá, pois, por meio dela, afasto a dúvida suscitada, torno límpido o direito, evito o dano que estive ameaçado de sofrer.b) Quero efetuar um empréstimo, mas encontro o meu crédito abalado, porque alguém se diz meu credor de avultada soma, ou me acusa de impontual, em relação a certo débito. Como sair pacificamente dessa situação embaraçosa, sem o auxilio do Juiz? E como pedir o auxilio do Juiz sem o uso da ação meramente declaratória, pois nenhum direito exigível tenho no momento? Dir-se-a que posso recorrer a ação de perdas e danos; mas, se o réu estiver de boa-fé, convicto de que é realmente meu credor? Se for insolvente, não podendo assim indenizar-me? Ainda uma hipótese: certa mulher,

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que viveu na companhia de um homem, jacta-se, depois de rompidas as relações, de ser casada legitimamente com ele. Esse indivíduo vê-se colocado numa situação angustiosa. Pode pretender casar e encontrará justa repulsa nas famílias, em conseqüência do seu suposto estado. Desejará alienar um imóvel, e lhe exigirão a outorga da pretendida mulher. Dando-se-lhe, porém, a faculdade de pedir a declaração do seu estado civil, mostrará ele a sentença do Juiz, e a sua situação jurídica se tornará definida (apud Odilon de Andrade, Código de Processo Civil e Comercial do Distrito Federal comentado, 1927, v. 1, p. 322 e s.).Ação cautelar A decisão, no processo de conhecimento, é, muitas vezes, demorada, e tal demora pode carretar prejuízos à parte. Assim,

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para assegurar os efeitos de uma providencia principal, a parte pode solicitar, por meio da ação cautelar, medidas urgentes e provisórias. Calamandrei, citado por Frederico Marques (Instituições, cit., v. 2, p. 56), ensina: sempre que a eficácia prática da função jurisdicional, só atingível por meio de longo procedimento, corra o risco de ser diminuída ou anulada pelo retardamento (periculum in mora), o processo cautelar, antecipando provisoriamente as prováveis conseqüências do processo principal, visa a fazer com que o pronunciamento final possa, a seu tempo, produzir efeitos.0 procedimento cautelar, contudo, é sempre dependente do processo principal, vale dizer, a ação cautelar é sempre subordinada à ação principal. 0 CPC, no seu Livro 111, cuida das medidas cautelares, destacando o arresto, o seqüestro, a caução e a busca e apreensão, dentre outras.Ação executiva. Quando o Juiz, na ação de conhecimento de tipo condenatório, declara o direito a favor do autor e impõe a sanctio ju ris ao réu, se este não atender ao preceito sancionador contido na sentença condenatória, restará ao vencedor, para tomar efetiva a sanctio ju ris, promover "ação executiva", em que se realizam atos executórios visando a satisfazer o direito do exeqüente, já proclamado na sentença final da ação de conhecimento. A lide já foi solucionada. 0 direito do autor foi reconhecido. Mas, como o vencido insiste em não satisfazê-lo, restará ao vencedor ingressar em juízo com a ação executiva para que o Juiz promova "as necessárias atividades à efetivação da regra sancionadora formulada no título executório" (cf. Liebman, Processo, cit., p. 44).Liebman distingue: Há ações executórias e ações executivas em sentido estrito. As primeiras são aquelas cuja pretensão descansa na condenação. A sentença condenatória será, assim, o título executório. Executivas em sentido estrito são aquelas cuja pretensão descansa em créditos aos quais a lei atribui eficácia de título executório.Hoje, o nosso CPC fala em execução fundada em título judicial e execução fundada em título extrajudicial. Trata-se de mera terminologia. Pode-se falar em ação de execução por título judicial (ação executória) e em ação de execução por título extrajudicial (ação executiva).

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Isto posto, pergunta-se: Tal classificação - feita em razão da tutela jurisdicional invocada -pode ser adaptada ao Processo Penal? Creio que quem primeiro tratou do assunto foi Eduardo Massari, nos seus Lineamenti, em 1929. Sustentava o professor napolitano - no dizer de Alcalà-Zamora o processualista penal que mais sofreu a influência do

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processualismo civil -, que a ação penal não visa apenas a provocar a deci~são do Magistrado sobre a existência do crime e obter a aplicação da sanctio juris. E, a propósito, citava vários exemplos: o pedido de reabilitação, o pedido visando a uma decisão jurisdicional em matéria de extradição passiva, o pedido visando à declaração da existência de causa extintiva da punibilidade. Nesses casos, dizia, há verdadeiras ações penais e, entretanto, nelas não se pede que se declare a existência de crimeÃ"ito menos se pede a condenação de quem quer que seja. Concluía, assim, pela existência, no Processo Penal, de ações condenatórias, constitutivas e declaratórias. A própria sentença absolutória, dizia, é declaratória. Mais tarde, Santoro, criticando tal doutrina, salientou que, nesses exemplos dados por Massari, não havia variedade de ação penal, mas sim dos direitos subjetivos que ela visa a proteger.Alcalà-Zamora (Derecho, cit., p. 70) de certo modo se rebela contra tal adaptação. É certo, diz ele, que, ao afirmarmos que a ação penal é sempre de condenação, não queremos dizer que todas as ações contidas nas leis processuais penais sejam de condenação, posto que há algumas que não têm por objeto pretensão punitiva. E, como exemplo, cita o "recurso de revisão", que, para ele, não passa de ação constitutiva. Entretanto, pondera, "aún en el caso de que la mencionada clasificación fuese inobjetable en cuanto a los sectores en que se descompone, no sería en realidad, una catalogación de acciones, sino de pretensiones y, además, que si por acción se entiende, como generalmente sucede, la promovida por el actor, en lo penal ella es de condena, sin perjuicio de que el resultado del proceso (o sea la sentencia) puede no serlo, o de que pretensiones incidentales o ulteriores del acusado motiven provimientos de signo declarativo o constitutivo" (cf. Derecho, cit., nota 23).Giovanni Leone (Trattato, cit., p. 150 e s.) ensina que, sempre que se peça a atuação da lei penal, existe ação penal, pouco importando que ela vise ou não à condenação do réu. Por isso, distingue a ação penal principal das ações penais complementares, sendo que estas podem ser declaratórias ou constitutivas. Declaratória é a ação tendente à decisão acerca do requerimento de extradição passiva, e constitutiva e a ação tendente à reabilitação, e, em geral, a declaratória das causas extintivas de pena de natureza afim à reabilitação, ou à aplicação de uma lex superveniens ab-rogativa; assim, também, a ação dirigida ao reconhecimento da sentença penal estrangeira.Frederico Marques, por seu turno, acrescenta: Desde que se invoque o Direito Penal objetivo e desde que a sentença se baseie em normas

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de Direito Penal, não cabe dúvida de que se trata de ação penal (cf. Elementos, cit., v. 4, p. 5 e s.). Por quê? Responde Leone: Porque o que se pretende por meio dessas ações reflete o direito de punir ou, então, o direito de liberdade; porque essas atividades provocam a intervenção do Juiz penal e, finalmente, porque sua disciplina está enquadrada no vasto campo do Processo Penal (cf. Trattato, cit., p. 150 e s.).

Embora se diga que nos exemplos dados não haja verdadeira ação penal e sim meros procedimentos incidentais (Sabatini), responde Leone que não se trata de procedimento penal incidente, senão de procedimentos autônomos, que pressupõem definitivamente concluída a relação processual instaurada por efeito da ação penal principal, ou que se referem a uma relação processual por instaurar-se (cf. Trattato, cit., p. 150).

Frederico Marques, que tem sido, entre nós, o defensor da adaptação dessa classificação ao Processo Penal, dá como exemplo de ação declaratória o pedido de habeas corpus com fundamento no art. 648, VII. Como exemplos de ação constitutiva, a revisão criminal, o pedido de homologação de sentença penal estrangeira e o pedido de extradição passiva; como ação cautelar, o habeas corpus com fundamento no art. 648, V, e as medidas a que se referem os arts. 311 a 316 do CPP. Quanto às ações executivas, dizia ele, o único caso é o do art. 688, 1, do CPP, que equivale, afirmamos agora, ao art. 164 da Lei de Execução Penal, que trata da ação de execução da pena de multa.

Aceitando-se essa classificação, teremos a ação penal no sentido restrito, compreendendo aquela disciplinada nos arts. 100 a 106 do CP, que seria a ação penal condenatória e a ação penal em sentido amplo, abrangendo todas as modalidades de ação penal, desde a condenatória até a executória.

Levando-se em conta o sujeito que a promove, a ação penal se classifica em pública e privada. Esta a summa divisio da ação penal no Direito pátrio. Há, contudo, subdivisão e, além desta, outros tipos de ação penal, como veremos em capítulos posteriores.

Embora não haja razão que impeça fazer-se tal classificação, cuidaremos, em nosso curso, da ação penal em sentido restrito, que apresenta uma classificação tradicional e é mais difundida.

9. Classificação subjetiva

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Assim dispõe o art. 100 do CP:

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"A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido".

Por sua vez, o § 1.' do art. 100 reza:

"A ação pública é promovida pelo Ministério Público, ,0~ dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça".

0 caput do artigo estabelece a summa divisio da ação penal: pública e privada. Já o parágrafo distingue a ação penal pública promovida pelo Ministério Público, sem se subordinar à manifestação de vontade de quem quer que seja, da sernipública, isto é, daquela em que a atividade do Ministério Público fica condicionada àquela manifestação de vontade. Temos, então, a subdivisão da ação pública: incondicionada e condicionada.

10. Razão de ser da divisão da ação penal e da subdivisão daação penal pública

Já vimos que o jus puniendi pertence ao Estado, como uma das expressoes mais características da sua soberania. Só o Estado detém o direito de punir. Quando ocorre uma infração penal, o Estado, para tutelar os interesses sociais e assegurar a manutenção da ordem jurídica, desenvolve, como detentor do poder de punir e como titular da ação penal, uma atividade no sentido de promover e realizar a atuação do Direito Penal objetivo. Em outras palavras: o Estado desenvolve a necessária atividade para processar e julgar o infrator, em virtude de ser a função penal de índole eminentemente estatal. Nem se compreenderia pudesse o Estado conceder ao particular o exclusivo exercício da ação penal, mesmo porque (caso o fizesse) veria periclitar, com funestas conseqüências, a efetiva aplicação da lei penal. Bastaria a inatividade do particular, e impune ficaria o criminoso.

Como se desenvolve essa atividade do Estado?

Como vimos anteriormente, a persecução penal inicia-se, via de regra, na Polícia, que, após as investigações necessárias, organiza a peça informativa, a fim de servir de base a acusação. Como o Estado não

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pode auto-executar o seu poder de punir, porque a condenação que ele exige e pretende "deve resultar de processo e sentença da autoridade judiciária", em virtude dos princípios nulla poena sine judicio e nulla poena sine J . udice; como para tal fim é necessária a ação penal, porque o processo não se inicia sem provocação da parte; como o Estado, embora sendo a verdadeira parte, o verdadeiro interessado, não pode intervir diretamente no processo, como parte, em virtude da sua qualidade de pessoajurídica, instituiu-se um órgão encarregado de exercer aquela funçáo pública: o Ministério

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Público. "Su institución responde, no sólo a la necesidad de esa ingerencia, por la imposibilidad de abandonar en manos de] individuo la acción penal y la defensa del interés público correlativo., sino también a la imposibilidad de atribuir su ejercicio, o sea la función requirente, a los mismos órganos que ejercitan la jurisdicción."Portanto, quando é o órgão do Ministério Público que promove a ação penal, diz-se que a ação penal é pública.

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Esse caráter publicístico da ação penal, que impera em outros sistemas legislativos, como o francês (na França a ação penal é sempre pública), não foi erigido, no nossojus positum, à categoria de princípio absoluto. De fato. Às vezes, o Estado, embora considerando o interesse da repressão, leva em conta outros interesses, ou outras situações. Às vezes, o delito cometido afeta tão profundamente a esfera íntima e secreta de um indivíduo, que o Estado, em face da gravidade, faz respeitar a vontade da vítima ou de quem legalmente a represente, evitando, assim, que a intimidade ferida pela infração o seja novamente pelo strepitus fori (v. Sebastian Soler, Derecho, cit., v. 2, p. 500). Nesses casos, adverte o insione Frank, surge um conflito de interesses entre a necessidade da repressão e o respeito à intimidade pessoal. 0 Estado prefere, então, deixar ao arbítrio do ofendido a apreciação dos interesses familiares, íntimos e sociais que podem estar errijogo. Concede-lhe o Estado o direito de julgar da conveniência ou inconveniência da propositura da ação. 0 Estado, portanto, condiciona o seu poder repressivo: se o ofendido manifestar a vontade de ver iniciada a ação penal, esta será iniciada pelo órgão estatal da acusação: o Ministério Público; se o ofendido achar conveniente silenciar, a ação penal não será promovida.

Convém ponderar que, nessas hipóteses, a ação penal ainda continua sendo pública, tanto que não só o ato de iniciativa como toda a acusação ficam afetos ao Ministério Público. No primeiro caso, a ação penal é denominada pública propriamente dita, ou pública incondicionada, porque, para ser promovida, é irrelevante a vontade contrária do ofendi-

do ou de quem quer que seja. Na segunda hipótese, temos a ação penal pública condicionada, ou pública subordinada, ou sernipública, porque so sera promovida se o ofendido, ou quem o represente legalmente, manifestar vontade nesse sentido.

Mas não é só: ocorre muitas vezes que o interesse tutelado pela lei penal tem um caráter tão assinaladamente particular "que podría decirse que cuando éste no se manifesta lesionado, en realidad no existe lesión", na argttfa~ observação de Solen São os casos de ação penal privada. Nessas hipóteses, a lei, atendendo à tenuidade da lesão, atendendo ao seu caráter tão profundamente particular, cujo strepitusjudicii, afetando a honra das pessoas e a dignidade das famílias, pode causar maior mal que a impunidade do próprio crime à sociedade, e atendendo, ainda, que, nesses casos, a produção da prova

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depende quase exclusivamente do concurso do ofendido, o Estado, então, concede ao particular ou a seu representante legal ojus persequendi injudicio. Vale dizer, o Estado, embora continue como detentor dojuspuniendi, concede, nesses casos excepcionais, ao ofendido, a titularidade da ação penal. Diz-se privada tal ação, porque somente o ofendido ou o seu representante legal é que pode promovê-la. E mais ainda: mesmo depois de iniciada, ela não perde o seu caráter privatístico, já que a todo momento, antes do pronunciamento definitivo do órgão jurisdicional, pode o seu autor dela desistir.

Como saber se determinado crime é de ação pública ou deação privada?

Dispondo o CP que "a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido", à evidência, distinguiu duas modalidades de ação penal: a) pública, e b) privada.Salientando o texto invocado, em sua primeira parte, que a ação penal é pública, não há necessidade de a lei, ao definir as figuras típicas, fazer, de forma expressa, referência à modalidade da ação penal. Ela é pública. Excepcionalmente ela é privada, di-lo o próprio texto, e, para tanto, é necessário que a lei a declare como tal.

Trata-se, aliás, de regra de hermenêutica: as exceções devem ser expressamente declaradas. Se, como regra geral, a ação penal é pública, não há necessidade de a lei, expressamente, salientar que tal ou qual infração dá lugar à ação penal pública, o que não acontece em se tratando de ação penal privada.

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Quando um crime dá ensejo à ação penal privada, o próprio texto legal declara que "somente se procede mediante queixa", significando tal expressão que o ofendido ou o seu representante legal é que pode dar início à ação penal, pois que, na técnica jurídica, a palavraqueixa tem o sentido de peça inicial da ação penal privada. Quando houver silêncio no texto legal quanto à titularidade da ação penal, entender-se-á que a ação penal é pública.Por exemplo, o art. 163 do CP dispõe:

"Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa"."Art. 167. Nos casos do art. 163.---somente se proc mediante queixa."

Assim, no exemplo dado, a ação penal é privada, pois a própria lei salientou: "somente se procede mediante queixa".

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0 art. 197 do CP define o crime de "atentado contra a liberdade de trabalho". Todavia o legislador, no capítulo pertinente aos "crimes contra a organização do trabalho" (arts. 197 a 207), silencia quanto ao modus procedendi, não indicando se a ação penal se inicia por meio de queixa. Logo, a ação penal nesse crime é de ação pública.

Tal distinção não é destituída de interesse, pois sabemos que, quando a ação penal é pública, somente o órgão do Ministério Público pode iniciá-la, e, quando privada, sua promoção compete, exclusivamente, ao ofendido ou a quem o represente legalmente. Tão importante é essa divisão que os autores costumam classificar as infrações penais, quanto ao processo, em crimes de ação pública e em crimes de ação privada.

11. Subdivisão da ação penal pública

Já vimos que, no nossojus positum, a ação penal se divide em pública e privada, atendendo ao sujeito que a promove. Há, contudo, subdivisão. 0 § 1.' do art. 100 do CP dispõe:

"A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça".

Um simples exame do texto legal mostra, à evidência, que há duas categorias, duas espécies de ação penal pública: a) ação penal pública

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plena, também chamada incondicionada; b) ação penal pública condicionada, ou sernipública.A primeira é aquela promovida pelo Ministério Público, sem a interferência de quem quer que seja. É irrelevante, para a sua promoção, a vontade contrária do ofendido. 0 crime de lesão corporal grave, e. g., é de ação penal pública plena. Pois bem, se A fere gravemente B, mesmo que este não queira processar o seu agressor, o processo será instaurado. GDelegado iniciará o inquérito e o Promotor de Justiça promovera a ação penal.A segunda, ação penal pública condicionada, como o próprio nome está a indicar, é aquela iniciada pelo Ministério Público, dependendo, contudo, de uma condição: representação do ofendido ou de quem legalmente o represente ou requisição do Ministro da Justiça.Do exposto, infere-se que, no nossojuspositum, a regra é a de que toda ação penal é pública. Aliás, em certas legislações, como na francesa, italiana e mexicana, a ação penal é sempre pública, isto é, promovida por órgãos do Estado. Pode, às vezes, não ser o Ministério Público quem deva prornovê-la, mas, nem por isso, a ação penal perde seu caráter publicístico, uma vez que é promovida por órgãos do Estado. Na França, por exemplo, "l'action pour l'application des peines n'appartient qu'aux fonctionaires auxquels elle est confiée par Ia loi" (a ação para aplicação de penas não pertence senão aos funcionários aos quais ela é conferida por lei). E esses funcionários nem sempre são os órgãos do Ministério Público. Assim, além do Ministério Público, certas administrações, em determinadas infrações, podem iniciar a ação penal. E o que ocorre com "l'administration des dotianes, des eaux et forêts, des porits et chaussées, de 1'octroi".

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Na Espanha, por exemplo, nos delitos de contrabando e defraudação, a ação penal pode, também, ser promovida pelos abogados del Estado.

Na Alemanha, em infrações pertinentes à matéria fiscal, impostos, taxas e alfândega, a ação penal pode, também, ser promovida por outros órgãos da administração pública, tal qual na França.

No Brasil, embora, de regra, seja o Ministério Público o competente para promover a açao penal, quando se tratar de crime de ação pública, como se infere da leitura do art. 24 do CPP, há uma única exceção: se, no crime de ação pública, condicionada ou incondicionada, o órgão do Ministério Público deixar de prornovê-la no prazo legal, a vítima, seu representante legal ou qualquer uma das pessoas enumeradas no art. 31

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110,11 ,

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do CPP, poderá fazê-lo, por meio de queixa, nos termos do art. 29 do CPP e art. 5., LIX, da Constituição Federal.Havia outras exceções: contravenções e homicídio e lesão culposos. Contudo, o art. 129, 1, da Constituição de 1988, conferiu a titularidade da ação penal pública exclusivamente ao Ministério Público, apenas com aquela ressalva feita no art. 5.', LIX, do mesmo diploma.Há, por outro lado, Estados em que não existe esse monopólio estatal da ação penal, isto é, nem sempre a ação penal deve ser promovida por órgãos do Estado. E o que se dá, por exemplo, na Alemanha, na Inglaterra, na Espanha, América do Norte, em vários Estados sul-americanos, inclusive o Brasil etc., em que, em várias hipóteses, comete-se o exercício da ação penal à vítima do crime ou a qualquer pessoa do povo, como teremos oportunidade de ver.0 Brasil não adotou o critério monopolístico da ação penal pelo Estado. Todavia a regra geral é de que a ação penal é pública e, como tal, promovida pelo órgão do Ministério Público. Repita-se: nesses casos de ação penal pública, parte legítima para exercitá-la é o Estado, por meio de um dos seus órgãos - o Ministério Público. Entre nós, e é bom que se frise, quando o crime for de ação pública, quem instaura o processo, por meio da denuncia, e o orgão do Ministério Público. Durante o exercício do cargo de Promotor de Justiça, jamais vimos ou soubemos houvesse a vítima exercido o direito de queixa em crime de ação pública, tal como previsto no art. 29 do CPP.Deixando de lado a exceção, podemos afirmar que o orgão competente para dar início ao processo nos crimes de ação pública, entre nós, é o Ministério Público. Bem que o Estado podia cometer essa função a qualquer do povo. Entretanto seria perigoso, pela indeterminação do móvel ou interesse que a impulsionaria, podendo ser arma de paixões excitadas, ódio, vingança. Como bem diz Donnedieu de Vabres, talvez apenas os mais audazes se apresentassem, talvez houvesse margem para as confabulações entre os pseudo-acusadores populares e a defesa do inculpado (cf. Traité, cit., p. 605 e s.).

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12. Ação penal pública incondicionada

Convém repetir: a ação penal pública apresenta-se, no Direito pátrio, sob duas modalidades: incondicionada e condicionada. Em ambas, como

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se deduz do § 1.' do art. 100 do CP e do art. 24 do CPP, quem a promove e o orgão do Ministério Público.Na incondicionada, o órgão do Ministério Público a propõe, sem que haja manifestação de vontade de quem quer que seja. Desde que provado o crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti, o órgão do Ministério Público deve promover a ação penal, sendo até irrelevante contr~Wa manifestação de vontade do ofendido ou de quem quer que seja.

Quando falamos em provado o crime a parte subjecti, evidentemente não aludimos àquelas provas capazes de gerar um juízo de certeza da veracidade da imputação, mas, tão-somente, àquelas que tornem verossímil a acusação.

Na condicionada, é ainda o órgão do Ministério Público quem a promove, mas sua atividade fica subordinada, condicionada a uma manifestação de vontade, que se traduz por meio da representação (manifestação de vontade do ofendido ou de quem o represente legalmente) ou da requisição do Ministro da Justiça (manifestação de vontade ministerial).Quais os crimes que dão lugar à ação penal pública incondicionada? Já salientamos que essa modalidade de ação penal constitui a regra no nosso Direito, e, sendo esta a regra, sempre que a lei quer que a ação penal seja promovida pelo Ministério Público, sem qualquer alheia interferência, silencia a respeito. Quando quer que ela seja promovida exclusivamente pelo ofendido ou por seu representante legal, usa da expressão "somente se procede mediante queixa". Por outro lado, quando a lei subordina a propositura da ação penal pelo Ministério Público à manifestação de vontade do ofendido ou de quem o represente legalmente, ou até mesmo a requisição do Ministro da Justiça, di-lo às expressas, usando, para tanto, das expressões: "somente se procede mediante representação" ou "somente se procede mediante requisição do Ministro da Justiça". Se a lei silenciar quanto a essas condições, a ação se diz pública incondicionada.

No caso de furto simples, ou qualificado, previstos, respectivamente, no art. 155, caput, e no art. 155, § 4.", do nosso CP, por exemplo, não há nenhuma disposição fazendo subordinar a atividade do Ministério Público a qualquer condição. Segue-se, então, que nessas hipóteses o Ministério Público poderá iniciar a ação penal, sem depender da mani-

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festação da vontade de quem quer que seja, desde que, é óbvio, possua em mãos os elementos indispensáveis para fazê-lo.

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Já o mesmo não ocorre com o furto de coisa comum, previsto no art. 156 do mesmo diploma, uma vez que o § 1.' do referido artigo dispõe: "somente se procede mediante representação".Neste caso, o Ministério Público não poderá iniciar a ação penal enquanto não for satisfeita a condição: a representação, isto é, a manifestação de vontade do ofendido ou de quem legalmente o represente, permitindo o procedimento.Vejamos a regra.Sabido o que seja a ação penal pública incondicionada, indaga-se: quais os princípios que a regem? São cinco: o princípio da oficialidade, o da indisponibilidade, o da legalidade ou da obrigatoriedade, o da indivisibilidade e o da intranscendência.

Oficialidade

Ninguém ignora que a repressão às infrações penais constitui não só necessidade indeclinável, como também um fim essencial do Estado. Essa repressão é, pois, função eminentemente estatal. Ao Estado, e só ao Estado, cumpre punir aquele que inobservou a norma penal. 0 Estado é o titular do direito concreto de punir. Quando se comete uma infração penal, já vimos, surge a pretensão punitiva, isto é, aquele direito abstrato que o Estado tem de punir se transmuda em um direito concreto de punir. Já agora pode o Estado providenciar a repressão.Mas como poderá o Estado deduzir em juizo sua pretensão punitiva? Por meio da ação penal, que outra coisa não é senão o instrumento para fazer atuar o Direito Penal objetivo. Logo, a ação penal pertence ao Estado. Como este não pode estar em juízo, dada a sua qualidade de

pessoa jurídica, instituiu órgãos com essa finalidade: são os órgãos do Ministério Público. Daí dizer-se que o Ministério Público tem o exercício da ação penal, mas esta não lhe pertence, e sim ao Estado. Aí está, pois, o princípio da oficialidade. Quem propõe a ação penal pública incondicionada é um órgão do Estado, o Ministério Público. órgão "oficial", órgão do Estado, portanto. De fato. Sendo dever precipuo do Estado reintegrar a ordem jurídica abalada com a perpetração do crime, sendo por meio da ação penal que ele poderá reintegrá-la e estando o

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exercício da ação penal confiado ao Ministério Público, este tem o dever de prornovê-la "de ofício", isto é, por iniciativa própria, sem qualquer alheia interferência (salvante os casos de ação pública condicionada e, por razões óbvias, os casos de ação privada).

Indisponibilidade

P.Wtencendo a ação penal ao Estado (salvo as exceções), segue-se que aquele a quem se atribui seu exercício, o Ministério Público, não pode dela dispor. Acertada a lição de Donnedieu de Vabres: "Les magistrats du ministère public n'agissent qu'au nom de Ia société qu'ils réprésentent. Ils ont Fexercice, mais non Ia disposition de l'action publique; elle ne leur appartient pas" - Os órgãos do Ministério

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Público não agem senão em nome da sociedade que eles representam. Eles têm o exercício, mas não a disposição da ação penal; esta não lhes pertence (cf. Traité, cit., p. 606).

E, por não lhes pertencer, não podem os órgãos do Ministério Público dela desistir, transigindo ou acordando, pouco importando seja ela incondicionada ou condicionada. Entre nós, o art. 42 do CPP, às expressas, veda a desistência da ação penal pública: "0 Ministério Público não poderá desistir da ação penal". E esta proibição é tão extensa que chega a atingir matéria recursal, como se vê pelo art. 576 do mesmo estatuto: "0 Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto". Observe-se, por outro lado, o que dispõe o art. 385 do CPP: "Nos crimes de ação pública, o Juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição ......Costuma-se dizer, às vezes, que o Promotor "abandonou a acusação". Tal afirmativa, no sentido de que o Promotor desistiu da ação penal, sabe a disparate. Significa, como bem lembra Donnedieu de Vabres, que o órgão do Ministério Público se pronunciou favoravelmente ao imputado, o que é diferente (cf. Traité, cit., p. 606).Nada impede que, no direito a ser constituído, seja tal princípio amenizado, permitindo-se ao Ministério Público, em determinadas situações, desistir da ação penal, ensejando, assim, a extinção do processo seinjulgamento do mérito, como na hipótese de ser inafastável a prescrição pela pena a ser concretizada na sentença, ou se de todo a prova acusatória for imprestável.

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I ~ I III I II I

Já demos um avanço. Na verdade, em se tratando de infração penal de menor potencial ofensivo, assim consideradas as contravenções e os crimes apenados no máximo com 1 ano de detenção, dês que não subordinados a procedimentos especiais, será possível a disponibilidade do processo, a teor do art. 79 da Lei ri. 9.099/95, uma vez que se realize a "transação" entre acusador e acusado.

Legalidade ou obrigatoriedade

Há discussão a respeito do sistema que melhor consult resses do Estado: se o da legalidade ou obrigatoriedade, que Ministério Público o dever de promover a ação penal, ou o da dade, que lhe permite julgar da conveniência ou não da prop ação penal. 0 princípio da obrigatoriedade se embasa no apodelicta maneant impunita (os delitos não podem ficar impun

Nas legislações que permitem ao órgão do Ministério P gar da conveniência ou não da propositura da ação penal, a ra dessa faculdade repousa no aforismo minima non curatprae tado não se preocupa com as coisas mínimas).

E legislações há em que se permite ao Ministério Públic conveniência ou não da propositura da ação penal?

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Na Noruega, permite-se ao Ministério Público (quando a prescrição está iminente ou há circunstâncias particularm ente atenuantes) abs-ter-se de iniciar a ação penal. Na Rússia, deve o Ministério Público absterse se a infração não parece socialmente perigosa, em razão de sua insignificância ou de ausência de consequencias prejudiciais.

0 Regulamento Processual austríaco de 1876 aceitou o principio da oportunidade, ao estabelecer em seu art. 2.': "Extingue-se a ação pública, quando o Imperador manda que a causa não se inicie ou cesse" (cf. Alcalà-Zamora, Derecho, cit., v. 1, p. 390, nota 39).

Na Alemanha, em certas infrações leves, ou quando as conseqüências forem insignificantes, pode abster-se, nos termos do § 153 a da StPO. Isto nada mais representa senão a corporificação do princípio da insignificância (geringfflhskeitsPrinzip).

Mesmo na França, segundo relato de André Vitu, "si le procureur estime une poursuite nécessaire, il met en mouvement l'action publique; sinon, il classe l'affaire sans suite..." (cf. Procédure, cit., p. 242).

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0 princípio da legalidade é o que melhor atende aos interesses do Estado. Dispondo o Ministério Público dos elementos minimos para a propositura da ação penal, deve promovê-la (sem inspirar-se em critérios políticos ou de utilidade social). 0 contrário implicaria atribuir-lhe um desconchavado poder de indulto.

Por isso, como acertadamente diz Vélez Mariconde (Estudios, cit., v. 2, p. 75), embora inexata a afirmativa de que do crime surge a ação penal,,Oeve esta ser aceita, no sentido de que do delito surge, necessariamente, para os órgãos da persecução, o dever de atuar em procura da repressão.Cabendo ao Ministério Público o exercício da ação penal pública (princípio da oficialidade), o princípio da legalidade impõe-lhe outro dever, qual o de promover a ação penal sem inspirar-se em motivos políticos ou de utilidade social.

A luta contra o crime, diz Carnelutti, interest rei publicae. Assim, o órgão do Ministério Público é obrigado a promover a ação penal cum lege et secundum legem, sem que nada o possa deter.

Tal princípio vigora entre nós? A consagração do princípio da legalidade está inserta no art. 24 do CPP, na fórmula: "Nos crimes de ação

pública esta será promovida por denúncia do Ministério Público Eo Prof. Frederico Marques, no seu Curso de direito penal, v. 3, p. 357,ensina que, apesar de não haver texto explícito sobre o assunto, o que sededuz da sistemática legal é que vigora no direito brasileiro o chamado"dogma da ação penal obrigatória".E, na verdade, vigora mesmo esse princípio, à maneira do que ocorre na maioria das legislações, uma vez que satisfaz melhor às exigencias da defesa social, que é o fundamento moderno do Direito

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Penal. AlcalàZamora arremata: Do ponto de vista político não é demais assinalar que t'el principio de oportunidad parece responder mejor a los postulados de las dictaduras" (Derecho, cit., p. 389).0 Prof. Euclides Custódio da Silveira, de saudosa memória, secundado por Frederico Marques, entendia que o art. 28 do CPP, falando em "razões invocadas" e não dizendo quais sejam tais razões (podendo ser de oportunidade), permitia, com certa parcimônia, um poder discricionário ao Ministério Público, nas infrações leves (cf. Frederico Marques,Elementos, cit., v. 1, p. 338)."A necessidade de o Ministério Público invocar razões que o dispensem do dever de propor a ação falam bem alto em favor da tese

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oposta, segundo a qual o nosso Código se filiou ao sistema da legalidade da ação penal" (Hélio Ivo Angrisani Dóri a, Estudos de direito processual, in memoriam do Min. Costa Manso, p. 36 e s.).

E permitimo-nos acrescentar: o Código Eleitoral, no art. 342, erigiu à categoria de crime a não-apresentação da denúncia pelo órgão do Ministério Público, no prazo legal. E, por outro lado, dispõe o art. 357 do mesmo diploma: "Verificada a infração penal, o Ministério Público oferecerá a denúncia dentro do prazo de dez dias".

Pois bem: esse mesmo diploma adotou, no § 1.' do art. 357, com as mesiníssimas palavras, a regra que se contém no art. 28 do CPP. Ora, se verificada a infração penal eleitoral, o órgão do Ministério Público deve oferecer a denúncia no prazo legal, sob pena de ser responsabilizado criminalmente, como se concebe possa requerer o arquivamento de informações ou eventual inquérito, uma vez verificada a infração? Evidentemente, a expressão "razões invocadas", inserta no art. 28 do CPP e no § 1.' do art. 357 do Código Eleitoral, reforça a tese da obrigatoriedade da ação penal pública. 0 órgão do Ministério Público tem o dever de promover a ação penal. Evidente que tal dever não é absoluto. Para o exercício da ação é indispensável concorram determinados requisitos expressamente previstos em lei. São os "pressupostos gerais", a que se referia Florian, isto é, as condições mínimas para que a ação possa ser promovida: autoria conhecida, fato típico não atingido por uma causa extintiva da punibilidade e um mínimo de suporte probatório. Sem esses 44pressupostos gerais", impossível será a propositura da ação. Mesmo assim - e aí está a razão de ser daquela expressão - deve o Representante do Ministério Público justificar, dar as razões do não-oferecimento da denúncia. Enfim, deve dizer, fundamentadamente, por que não o faz. Observe-se que, conforme o caso concreto, pedindo o arquivamento ao invés de denunciar, poderá ele responder pelo crime de prevaricação.

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Nos dias de hoje a Política Criminal está voltada para o desafio da pequena criminalidade. As soluções têm sido diversas: descriminalização pura e simples de certas condutas, convolação de determinados crimes em contravenções, dispensa de pena etc. 0 § 42 do CP austríaco cuida da "falta de dignidade penal da infração" (mãngelnde Strafwurdigkeit); o arquivamento condicionado pelo grau reduzido de periculosidade social do fato do Direito polonês, o arquivamento contra injunções ou regras de conduta (Einstellung gegen Auflagen und Weisungen) germänico, a transação do Direito holandês (possível até entre Polícia e indiciado),

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o classer sans suite do Direito francês, tudo é demonstração viva de ser adotado, na futura legislação, o princípio da legalidade mitigado. A tal respeito, vejam-se: C. E. Paliero, Minima non curatpraetor, Padova, CEDAM, 1985, p. 423; P. Hunerfeld, A pequena criminalidade e o processo penal, Rev. de Dir e Economia, 1978, p. 29.Entre nós, desde há algum tempo, vinha despontando uma certa tendência para não se dar importância a essa criminalidade de bagatela. A propósito a lição do Min. Assis Toledo, nos seus Princípios básicos de dire ito penal, 5. ed., Saraiva, p. 133, e a v. decisão do STJ, in RSTJ, 59/108. No mesmo sentido, JTACrimSP, 66/394; RT, 541/399; RHC n. 3.210, DJU, 13-12-1993 (STJ); APn 13 (STJ), DJ, 18-3-1991; RHC n. 2.119 (STJ), DJ, 10-5-1993, e RHC n. 2.919, DJ, 18-10-1993.A idéia de se permitir ao Ministério Público deixar de denunciar infrações de pouca monta era sedutora, tanto mais quanto o § 153 da StPO e o art. 40 do Code de Procédure Pénale, para citarmos dois grandes ordenamentos jurídicos, de há muito estavam em vigor, com expressivo sucesso. Todavia, o requerer arquivamento de inquéritos atinentes a infrações inexpressivas, ditas de bagatela, não revelava, como não revela, uma conduta ética. Poderia até ser justa, mas não era nem é ética. Se o Estado, através do Poder Legislativo, guindou determinadas condutas à condição de infração penal, não faria sentido pudesse o Ministério Público ignorá-las, sob a alegação de que a infração era por demais inexpressiva. Assim procedendo, ele estaria julgando o próprio Estado... Nem poderia invocar o principio de que minima non curat Praetor.. Se o Estado não se interessasse pelas "coisas pequenas", não as teria elevado à posição de infrações penais.Hoje, contudo, aquela tendência foi aperfeiçoada, com o instituto da transação, já prevista, obviamente, no art. 98, 1, da CF. Ao contrário do Direito alemão (§ 153 da StPO) e do Direito francês (art. 40 do Code de Procédure Pénale), que adotam o princípio da oportunidade para determinadas infrações penais, permitindo ao órgão do Ministério Público deixar de iniciar a ação penal, o legislador pátrio simplesmente mitigou o principio da legalidade. Na verdade, em se tratando de infrações penais de menor potencial ofensivo (e que são aquelas definidas no art. 61 da Lei dos Juizados Especiais Criminais), o Ministério Público pode celebrar um acordo com o autor do fato, propondo-lhe uma pena restritiva de direito ou multa. Se houver conformidade, o Juiz homologa a transação. Não haverá processo, no sentido correto da expressào, mas um acordo na presença do Juiz. Não haverá interrogatório nem qualquer outro ato

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processual além da proposta, aceitação e homologação. A adoção do princípio da oportunidade para os delitos de bagatela implicaria julgar o legislador, o que não se dá com a transação... Preferiu, assim, para essas hipóteses de pouca monta, proceder-se à composição da lide mercê de simples transação. E ao que parece, com acerto. Se o legislador entender que determinadas condutas não afetam o convívio social por não possuírem "dignidade penal", restar-lhe-á, apenas, não tipificá-las. Tipificando-as, evidente que o Ministério Público, deixando de instaurar o processo por entendê-las de bagatela, estará julgando o legislador, ou, o que é pior, estará usurpando a função legislativa.

Indivisibilidade

1

Í.

A ação penal, seja pública ou privada, é indivisível, no sentido de que abrange todos aqueles que cometeram a infração. Quanto à ação privada, há, a respeito, texto expresso (CPP, art. 48). E isto por uma razão muito simples: se a propositura da ação penal constitui um dever, é claro que o Promotor não pode escolher contra quem deva ela ser proposta. Ela deve ser proposta contra todos aqueles que cometerem a infração (nec delicta maneant impunita). Se Tício e Caio mataram Mévio, é evidente que a ação penal deve ser promovida contra ambos. Aliás, analisando-se o art. 77, 11, combinado com o art. 79 do CPP, infere-se que a ação penal é indivisível.Em se tratando de ação privada, porque regida pelo princípio da oportunidade, poder-se-ia pensar que a vítima teria o direito de promover a ação penal contra quem quisesse, isto é, poderia escolher dentre os culpados o que deveria ser processado. Daí a regra do art. 48 do estatuto processual penal: "A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigara ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade". Na verdade, o Estado concedeu-lhe o direito de acusar e não o direito de vingança...Contudo, essa "indivisibilidade" apresenta exceções, como se constata pelos arts. 79 e 80 do CPP, o primeiro determinando a disjunção obrigatória dos processos, o que vale dizer, das ações penais, e o segundo cuidando da separação facultativa.

Intranscendência

Com tal expressão, queremos afirmar que a ação penal é proposta apenas contra a pessoa ou as pessoas a quem se imputa a prática da infração.

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Note-se que há sistemas legislativos, como o mexicano, que consideram a satisfação do dano ex delicto como parte integrante da pena, e, por isso, deve ser reclamada de quem de direito, ainda que pelo próprio

1 -orgão encarregado da propositura da ação penal. A propósito, Bustamante: "La vigente legislación mexicana establece que la reparación del daño forma parte integrante de la pena y que debe reclamarse de oficio por el organo encargado de promover la acción, aún cuando no la demande el ofendffio, y que si este la renuncía, el Estado lo hará efectiva en los bienes del responsable, aún cuando hubiese fallecido..." (Principios, cit., p.41).Entre nós, embora seja efeito da sentença penal condenatória trânsita em julgado tornar certa a obrigação de satisfazer o dano, somente na esfera civil é que o interessado pode pleiteá-la. A ação penal é sempre promovida contra as pessoas a quem se imputa a prática de uma infração.

13. Classificação quanto à pretensão

Pode haver no Processo Penal a classificação da ação penal segundo a pretensão? Não. No cível, pode-se falar em ação de despejo, de divórcio, possessória etc. No penal, não se pode falar em ação de furto, de roubo e assim por diante, embora haja autores estrangeiros sustentando que a cada figura delituosa corresponde uma modalidade de ação. À evidência, trata-se de um absurdo, pois o fim da ação penal é sempre o mesmo, desde que se tome a expressão "ação penal" no sentido do comumente empregado, isto é, o instrumento de que se vale o Estado, ou o particular, para tornar realidade o jus puniendi. Se o conteúdo é o mesmo, pretensão punitiva, não se pode proceder a tal classificação. Como bem diz Alcalà-Zamora, a doutrina da tipicidade não pode projetar-se do campo dos delitos ao das ações (cf. Derecho, cit., v. 2, p. 69).

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blico, mas este não poderá promovê-la enquanto não for satisfeita a condição.

3. Razão de ser

Já vimos que, às vezes, o crime cometido afeta tão profundamente a esfera íntima do indivíduo que a lei, a despeito da sua gravidade, respeita,0 vontade do ofendido, evitando, assim, que a intimidade ferida pelo crime sangre ainda mais com o strepitusjudicii. 0 ofendido pode ter razões em não levar o fato ao conhecimento da Justiça, preferindo não divulgar sua própria desgraça. 0 perigo do escândalo,

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advertia João Mendes, é mais temível que a própria impunidade do criminoso. 0 Estado, então, respeita a vontade do ofendido, deixando a propositura da ação penal ao seu critério, condicionando, deste modo, o seu poder repressivo: se o ofendido manifestar a vontade de punir o seu ofensor, estará satisfeita a condição, e o órgão do Ministério Público iniciará a ação penal. Em uma palavra: nesses casos, o ofendido julga sobre a conveniência e oportunidade de provocar a instauração do processo. A condição exigida é a representação do ofendido ou de quem legalmente o represente, isto é, torna-se necessária sua manifestação de vontade ou do seu representante legal no sentido de se instaurar o processo contra o ofensor. Se o ofendido não manifestar tal vontade, o órgão do Ministério Público não poderá iniciar a ação penal. E mais ainda: nem mesmo poderá ser instaurado o inquérito policial (CPP, art. 5.', § 4.').

Observe-se, porem, que, feita a representação e iniciada a ação penal, o Ministério Público assume em toda a sua plenitude a posição de dominus litis, sendo irrelevante, a esta altura, uma vontade contrária do ofendido.Por que a lei, em certos casos, condiciona a persecutio criminis à manifestação de vontade do ofendido?

0 pressuposto genérico de se condicionar a propositura da ação à manifestação de vontade do ofendido repousa na divisão que se faz dos crimes: a) Uns afetam sobremaneira o interesse geral. Nesses casos, a ação penal é pública incondicionada. b) Outros afetam imediatamente o interesse do particular e mediatamente o interesse geral. Nesses casos, quem promove a ação penal é o Ministério Público, dês que haja consentimento, permissão do ofendido. c) Finalmente, outros afetam tão imediata e profundamente o interesse privado que o Estado nem exerce ojus accusationis. Transfere-o ao ofendido (ação privada).

ao penal `blica§ 3*" - Da aç' pu

condicionada

SUMÁRIO: 1. Ação penal pública condicionada. 2. Ação penal pública condicionada à representação. 3. Razão de ser. 4. Crítica. 5. Crimes cuja ação penal depende de representação. 6. Natureza jurídica da representação.

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1. Ação penal pública condicionada

Ação penal pública condicionada é aquela cujo exercício se subordina a uma condição. Esta ou é manifestação de vontade no sentido de proceder, externada pelo ofendido ou por quem legalmente o represente (representação), ou é a requisição do Ministro da Justiça, que também é manifestação de vontade no sentido de proceder.

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Quem promove a ação penal nesses casos? 0 órgão do Ministério Público, tal como se vê pela leitura do art. 24 do CPP. A ação penal, nesses casos, se diz pública, porque promovida pelo Ministério Público, e condicionada, porque subordinada a uma daquelas condições: re-

presentação ou requisição do Ministro da Justiça.

2. Ação penal pública condicionada à representação

A ação penal pública dependente de representação, também chamada secundária, é uma exceção, por isso que a regra é a ação penal pública plena. Na ação penal dependente de representação, a ação continua sendo pública, isto é, seu exercício é cometido ao Ministério Pú-

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1 Vejamos a hipótese b. Na verdade, há crimes que afetam imediata-mente interesses particulares, e o Estado, embora ciente das consequencias que advêm da sua prática e a despeito do seu poder-dever de reprimi-los, prefere deixar a critério do particular (lesado) a apreciação daconveniência da repressão, não só pela tenuidade do interesse públicoafetado pelo crime, como também para resguardar interesses íntimos oufamiliares do próprio lesado. Para sossego deste, é preferível, muitasvezes, a impunidade do culpado que o escândalo que o processo pode1 provocar.

Ao lado desses argumentos, a doutrina alinha outros: dificuldade de ser colhida a prova sem o concurso da vítim a e, finalmente, a conveniência política de evitar a exasperação e enrijecimento da hostilidade entre os particulares.

Nesses casos, então, o Estado condiciona o seu poder repressivo à manifestação de vontade do lesado ou de quem legalmente o represente.

4. Crítica

4Cumpre ponderar que, na doutrina, inúmeros juristas têm profunda aversão em reconhecer a influência da vontade particular quanto à aplicação da lei penal. Binding, no seu Handbuch, ri. 1.706, apresentou sete inconvenientes e que são conhecidos como o "ato de acusação de Binding". Ei-los:

1.') prejuízo do Estado, como titular dojus puniendi e do poder de indultar;1 ~" 2.') prejuízo do ofendido, a quem não foi possível apresentar a tempo

a representação, ou que teve um representante inativo;

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3.") lesão ao princípio de justiça de que toda a culpa deve ter sua retribuição;

4.') abandono da autoridade do Estado ao arbítrio privado;

5.') condições favoráveis ao criminoso, que, com freqüência, se subtrai à pena;

6.') condição favorável para o ofendido, que, às vezes, comercia o seu direito e é impelido a extorsões;

7.') facilidade do representante legal do ofendido para descuidar, sem consciência, os interesses do representado.

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No mesmo sentido, as objeções de Tolomei, Ottorino Vannini, Ricio, Florian, Ferri, Maggiore e outros. Maggiore entende que não se concebe permitir-se tal direito ao particular. Só o Estado é que deve ser o árbitro sobre o direito de se proceder ou não. E pergunta: Não existem nas leis penais institutos que mitigam o rigor da pena (perdão judicial, sursis, livramento condicional, indulto, graça etc.)? Poderá o Estado, com outras formas de renúncia, intervir em favor de casos merecedores de especia^tenção, mas nunca permitir que a vontade privada estorve ou paralise sua missão de justiça (cf. Derecho, cit., 1954, v. 2, p. 33 1).

A despeito dessas críticas, várias legislações, inclusive aquelas em que se consagrou o princípio monopolístico da ação penal pelo Estado (italiana, francesa, mexicana etc.), admitem, tal qual a brasileira, a ação penal sernipública, isto é, subordinada à representação, pelas razões já por nos acentuadas.

Observe-se que a ação penal condicionada à representação é uma verdadeira exceção, e, por isso mesmo, quando a lei quiser subordinar a atividade do Ministério Público à manifestação de vontade do ofendido, deve fazê-lo expressamente, como se constata pelo § 1.' do art. 100 do CP.

5. Crimes cuja ação penal depende de representação

Quais as infrações, no nosso jus positum, cuja perseguibilidade depende de representação? São poucas. A propósito, vejam-se os arts. 130, § 1% 145, parágrafo único, 147, parágrafo único, 151, § 4.", 152, parágrafo único, 153, parágrafo único, 154, parágrafo único, 156, § L', 176, parágrafo único, 182, 196, § 1% e 225, § 1% todos do CR Na lei de imprensa há, também, casos em que a ação penal fica condicionadaka representação (veja-se o art. 40, 1, b, que faz alusão aos crimes contra a honra cometidos contra funcionário público em razão de suas funções e contra orgão ou autoridade* que exerça função de autoridade pública).

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Ao lado dessas hipóteses, a Lei n. 9.099/95, no art. 88, dispôs que os crimes de lesão corporal leve e culposa são de ação penal pública subordinada à representação.

* Leia-se "... órgão ou entidade que exerça função de autoridade pública". Houve um evidente lapsus calami do revisor da imprensa oficial.

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Outras legislações também admitem, conforme vimos, a representação, como condição sine qua non para a propositura da ação penal pelo Ministério Público.

Na Alemanha, por exemplo, há várias hipóteses em que a atividade persecutória do Estado se subordina à Antrag (representação).Na França, em pouquíssimos casos, o Ministério Público somente poderá promover a ação penal se houver un depôt d'une plainte, isto é, se for feita a representação. E isto ocorre nos crimes de adultério, difamação e injúria, rapto seguido de casamento e no crime de abandono material (Vabandon du foyer). Na Itália, a nossa "representação" encontra, no instituto da querela, seu equivalente. No México, encontramos a querella. Na Argentina, há o instituto da instancia privada, que outro papel não tem senão o de verdadeira representação.

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6. Natureza jurídica da representação

Qual a natureza jurídica da representação? A discussão, a respeito, surge em torno de três pontos fundamentais: a) a representação é de direito material ou de direito processual? b) é de natureza mista? c) num ou noutro caso, que natureza específica terá?Há inúmeros autores que sustentam ser a representação de direito material. Nesse sentido, KohIer, Von Bar, Schutze, Birkmeyer, De Marsico, Massari e cremos que Tornaglii, pelo que afirmou nos seus Comentários ao Código de Processo Penal, 1956, t. 2, p. 46, também se incluía nesse rol. Dizemos "se incluía", porque, posteriormente, passou a adotar outro ponto de vista.Outros lhe atribuem natureza mista. Nesse sentido, a lição de Binding: a Antrag (representação), como pressuposto da ação, é de natureza processual; encarada como necessidade de satisfação do ofendido, é um fato, portanto, de direito material (cf. Binding, apud G. Battaglini, La querela, cit., p. 147, nota 6).A maioria, entretanto, entende, com acerto, aliás, tratar-se de instituto de natureza nitidamente processual. Nesse sentido: Allfeld, Beling, Dolina, Hippel, Welzel, Maggiore, Battaglini, Antolisei, Vannini, Bettiol, Grispigni, Delitala e, entre nós, Frederico Marques.

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Para aqueles que entendem seja a representação de direito material, qual seria sua natureza específica? A representação, dizem, é condição

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objetiva de puniffilidade. Sendo as chamadas condições objetivas de punibilidade matéria de Direito Penal, isto é, de direito material, e sendo a representação uma dessas condições, logo, é de direito material.Não é condição objetiva de puníbilidade. Por quê? Antes é preciso saber o que se entende por "condições objetivas de punibilidade", para que se constate que, realmente, a representação não pode ser tida como tal.0 4sunto é tormentoso. Não existe, a respeito, uniformidade conceitual. Parte da doutrina conceitua as "condições objetivas de punibilidade" como "elementos constitutivos do crime", entrando, assim, a "condição objetiva de punibilidade" no seu conteúdo. Outros, com palavras diversas, dizem a mesma coisa: as "condições objetivas de punibilidade" são "elementos essenciais do crime". Entre nós, Heleno Fragoso assim conceitua as condições objetivas de punibilidade: "são, sem sombra de dúvida, elementos constitutivos do crime, desde que, sem elas, o fato é juridicamente indiferente". E exemplifica: condição objetiva de punibilidade existe claramente no art. 122 do CP, que subordina a punibilidade do induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio à efetiva consumação deste ou ao resultado lesão corporal grave (na hipótese de suicídio tentado) (cf. Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade, in Estudos de direito em homenagem a Nélson Hungria, p. 176).Assim também pensa Sebastian Soler, ao afirmar que a morte, no suicídio, é condição de punibilidade (cf. Derecho, cit., v. 3, p. 109).

Ora, considerando-se as condições objetivas de punibilidade como 44elementos essenciais do crime" ou "elementos constitutivos do crime", outra coisa não se faz senão confundi-Ias com os "elementos do tipo". No exemplo dado, a morte ou as lesões corporais graves não passam de elementos objetivos do tipo, de sorte que, não havendo morte nem lesoes corporais graves, o fato se torna atípico, juridicamente irrelevante, portanto.Pois bem, considerando-se (como essa parte da doutrina o faz) as condições objetivas de punibilidade como "elementos essenciais do crime" ou "elementos constitutivos do crime" é claro que a "representação" não pode ser considerada condição objetiva de punibilidade. De fato. Se a "representação" é manifestação de vontade do ofendido ou de quem legalmente o represente, permitindo a instauração da persecução,

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pressupõe, evidentemente, um crime já perpetrado. Logo não pode ser considerada como "elemento essencial ou constitutivo do crime". Fosse '4elemento essencial ou constitutivo do crime", claro que a existência do crime dependeria da vontade do ofendido. Só haveria crime, nos casos dependentes de "representação", se... a vítima quisesse. Tal afirmativa sabe, pois, a disparate. Assim, sendo a

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"representação" um quid que intervém, que surge após a consumação do crime, não pode, à evidência, ser elemento constitutivo deste.Outra parte da doutrina ensina que as condições objetivas de punibilidade são essenciais à existência do crime e também extrínsecas ao "fato" proibido no preceito penal ("al fatto violatore dell'interesse protetto dalla norma"). Nesse sentido, a lição de Ottorino Vannini (cf. Manuale, cit., p. 25). E cita como exemplo o "escândalo público", no delito previsto no art. 564 do CP italiano, in verbis:

"Aquele que, de modo a causar escândalo público, cometa incesto com um descendente ou ascendente, ou com um afim em linha reta, ou com uma irmã ou irmão, será punido com reclusão de um a cinco anos".

Quer-nos parecer que, na hipótese, o "escândalo público" não passa daquilo que Mezger denomina "elemento típico normativo", sendoÍ que, no caso em apreço, trata-se, mais precisamente, de elemento típico01 de juízo valorativo (que exige uma valoração) (cf. Mezger, Derecho,

cit., p. 1947).Por isso mesmo, Maggiore (Derecho, cit., v. 1, p. 81),

criticandoffi aqueles que vêem no "escândalo público" do delito previsto no art; 56411

do Código italiano uma condição objetiva de punibilidade, explica que o

"escândalo público", aí, é efeito de uma conduta dolosa ou culposa e,

portanto, elemento do fato e não condição objetiva de punibilidade. Nomesmo sentido, a lição de Antolisei (Manual, cit., p. 535).

Ainda assim, não pode a "representação" ser tida como condiçãoobjetiva de punibílidade, porquanto não se trata de "condição essencialà existência do crime".

Outra parte da doutrina entende por condições objetivas depunibilidade as "circunstâncias extrínsecas que nada têm que ver com aação delituosa riem com os seus elementos constitutivos, ao contrário,são completamente distintas" (cf. Liszt, Strafrecht, § 44, ri. 111, apud338

Maggiore, Derecho, cit., p. 279). Desse entendimento comunga Maggiore, e tal, constitui a corrente dominante. Antolisei explica bem: As condições objetivas de punibilidade pressupõem um delito perfeito, isto é, completo em todos os seus elementos constitutivos. A condição não integra o crime, mas somente torna aplicável a pena. 0 delito existe ontologicamente. A condição é requerida pela lei a fim de que se possa exercitar o poder estatal de castigar (cf. Manual, cit., p. 533).Ngíson Hungria define-as como "circunstâncias extrínsecas ao crime, isto é, diversas da tipicidade, da injuridicidade e da culpabilidade. Representam um quidpluris indispensável para que, à violação da lei penal, se siga a possibilidade de punição" (cf. Comentários, cit., 3. ed., t. 2, p. 26). E o saudoso mestre dá como exemplo "o oferecimento da queixa ou da representação etc.".

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Data maxima venia, embora certo o conceito, não o estão os exemplos. A representação não é condição objetiva de punibilidade, mas sim de procedibilidade (Bedingungem der Strafverfiolgung).A representação é um quid que, sem influir na punibilidade ou existência do crime, "constituye un obstáculo para comenzar Ia acción penal".

Mesmo que se aceite como certo o conceito mais difundido de condições objetivas de punibilidade, não se pode considerar a "representaçao" como tal. Realmente. Como bem diz Antolisei, a condição objetiva de punibilidade, embora não integrando o tipo, é requerida pela lei a fim de que se possa exercitar o poder estatal de castigar. Sem ela o crime não pode ser punido. Sem ela não haveria a punibilidade. Pois bem: fosse a representação condição objetiva de punibilidade, sem ela não haveria punibilidade. Ora (e o argumento é de Frederico Marques), a representação deve ser feita no prazo de seis meses (CPP, art. 38), sob pena de decadência. Se feita após o prazo legal, haverá a decadência, que e causa extintiva de punibilidade. Assim se chegaria a esse absurdo: extinguiu-se a punibilidade; desapareceu o direito de punir, antes de surgir.Por outro lado, a doutrina dominante é no sentido de que ausente a condição objetiva de punibilidade, o Juiz profira decisão terminativa de mérito, por sinal apelável, nos termos do art. 593, 11, do CPP. Entretan-to, se falta a representação, o que o Juiz deve fazer é rejeitar a denúncia (CPP, art. 43, 111, 2.' figura) ou, se a ausência for notada em qualquer fase procedimental, anular o processo, proferindo em ambos os casos

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decisão de natureza eminentemente processual, e cujo recurso é o previsto no art. 5 8 1, 1 e X111, do CPR Enquanto lá a decisão é de mérito, porque negou a existência do direito de punir, aqui é nitidamente processual.

Desse modo, a representação não é de direito material.

Será de natureza mista, como queria Binding? Battaglini não concebe um instituto jurídico cuja essência, cuja natureza seja ao mesmo tempo de direito material e de direito processual. A essência, diz ele, ou é material ou é processual. A coexistência de ambas as naturezas é inadmissível. Seria um ermafroditismo giuridico (cf. La querela, cit., p. 147). Tal como Binding pensa Von Liszt (Tratado de derecho penal, trad. Quintiliano Saldaña, Madrid, t. 2, p. 462). Entretanto, á p. 463, o ilustre professor da Universidade de Halle observa: "Según el Derecho vigente, la querella es siempre una condición del proceso, no de la punibilidad. La falta de la querella tiene como consecuencia, según el § 259 de la Strafprozessordnung, la suspención del proceso, pero no la absolución delacusado".

A representação, segundo a maior parte da doutrina, é instituto de natureza processual. Entretanto, entre os que defendem tal tese, uns a consideram "pressuposto processual" e outros, "condições de

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procedibilidade". Embora não haja interesse prático em se distinguir, no caso, o pressuposto processual das condições de procedibilidade, pois que a ausência de qualquer deles acarreta a nulidade do processo, inclinamonos pela segunda corrente. Condições de procedibilidade são condições específicas da ação. São os requisitos especiais exigidos por lei para que seja admissível a acusação. Ora, a representação é um requisito específico da ação. Em alguns casos a lei condiciona a propositura da ação penal à existência da representação. Logo, é condição de procedibilidade.

No Direito brasileiro não é difícil afirmar que a "representação" seja condição de procedibilidade. Em primeiro lugar, observe que, quando a lei exige a representação, usa a seguinte expressão: "somente se procede mediante representação", querendo significar que a ação penal só poderá ser exercitada, a acusação será admissível... se houver a representação. Em segundo lugar, porque o CPP, no art. 564, 111, a, fala em nulidade do processo, se falta_a representação. Portanto esta é condição para a validade da relação processual.

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Magalhães Noronha (Direito, cit., p. 136) não vê nítida diferença entre as condições objetivas de punibilidade e as condições de procedibilidade. E arremata: "De qualquer maneira, se distinção hou-ver, será nenhuma no terreno prático".Data vema, não nos parece acertado seu ponto de vista, e isto sem nenhum desar ao alumiado mestre. A sentença que encerra o processo, por falta de condição objetiva de punibilidade, nega a pretensão punitiva e, se isgcorrível, tem força preclusiva, formando a coisa julgada formal e coisa julgada material; a que encerra o processo, por falta de condição de procedibilidade, nega a ação e, mesmo irrecorrível, caso não haja a extinção da punibilidade por qualquer causa, não impede o fluir da instância desde que possível satisfazer a condição. Nesse sentido, vejamse Vannini, Manuale, cit., p. 26; Beling, Derecho, cit., p. 67, nota 1; Giovanni Leone, Trattato, p. 158 e s.

No Direito italiano há grande dúvida em se precisar a natureza jurídica da representação (querela), em face do art. 44 do CP peninsular, que diz: "Condizione objetiva di punibilità. - Quando, per Ia punibilità del reato, Ia legge richiede il verificarsi di una condizione ......Por isso, grande parte da doutrina passou a entender que a querela era, pois, condição objetiva de punibilidade. Sem razão, contudo. Mesmo porque o art. 158 do referido diploma dispõe: "Quando Ia leggefa dipendere Ia punibilità del reato dal verificarsi di una condizione, il termine della prescrizione decorre dal giorno in cui Ia condizione si é verificata. Nondimeno, nei reati punibili a querela, il termine della prescrizione decorre dal giorno del cominesso reato" (Quando a lei faz depender a punibilidade da infração à verificação de uma condição, o prazo prescricional começa a fluir a partir do dia em que se verificou a condição. Todavia, nas infrações cuja ação penal é subordinada a representação, o prazo prescricional começará a fluir a partir da data em que se cometeu a infração).

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Na sua essência, a representação é, pois, uma condição de procedibilidade, porquanto toma admissível, nos casos em que a lei a exige, o jus accusationis.

Ela é uma declaração de vontade no sentido de se remover um obstáculo existente quanto ao exercício da ação penal. Ocorrendo um crime de ação pública subordinada à representação, o Estado, como titular do direito de punir, tem, também, interesse em querer aplicar a

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sanctio juris ao culpado. Mas o ofendido pode também ter interesse em que não se instaure o processo: a discussão do caso, o estrepitusfori, a divulgação do fato seriam para ele uma nova e grave ofensa, com funestas conseqüências para a tranqüilidade do seu lar, do círculo íntimo de suas relações de amizade e até de interesses pessoais. Ante essa situação, o Estado subordina a sua atividade persecutória à manifestação de vontade do ofendido: se este quiser, fará a representação, e, então, remover-se-á o obstáculo à persecução; se não, o processo não poderá ser instaurado.

Inegável, pois, seja a representação uma condição de procedibilidade.

Por outro lado, se o ofendido não fizer a representação no prazolegal, ocorrerá a decadência, que afeta sobremodo o direito de punir,extinguindo-o. Temos, pois, esta situação: o não-exercício do direito derepresentação acarreta a decadência, extinguindo-se, pois, ojuspuniendi,e todas as causas extintivas do direito de punir se inserem no âmbito dasnormas penais. Assim, a norma que verse sobre representação, poucoimportando sua posição topográfica, é processual, como requisito que épara a propositura da ação. Mas a ela se aplicam as regras de DireitoPenal intertemporal, em virtude da profunda vinculação que apresentacom o direito de punir, se não for apresentada no prazo legal. Hoje, ocrime de ameaça é de ação pública subordinada à representação. Amanhã (exemplo hipotético), o crime de ameaça passa a ser de ação públicaindependente da representação. Ontem, Mévio cometeu um crime deameaça. Sem embargo da lei processual penal ter incidência imediata aação , nenal. continua subordinada à representação. Invoca-se a regra àeDireito Penal intertemporal: aplicável será a lei mais favorável, e maisfavorável é, na hipótese, a lei anterior, pelas razões já expostas quandoestudamos a eficácia da lei no tempo.Em virtude disso, conclui-se: a representação, embora não perca seu caráter eminentemente processual, como condição de procedibilidade que é, sujeita-se, contudo, às regras de Direito Penal intertemporal.

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Sob esse prisma, pode-se dizer que, embora a sua natureza jurídica seja processual, ela apresenta faceta de natureza penal. Não se trata de dúplice natureza. E a razão é, como diz Battaglini, lógica: uma mesma coisa não pode ter duas essências, duas naturezas Ç'... di una stessa cosa non possono darsi due essenze").Sendo a representação aquela condição à qual se subordina a propositura da ação penal, nos casos previstos em lei, inegavelmente sua natureza é processual.

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0 Tribunal italiano já decidiu: "Ma il giudice, mancando la querela, non si pronunzia in alcun modo circa Vesistenza del reato. Si limita a rilevare che sussiste un ostaculo processuale, e percià la sentenza che egli emette, é meramente processuale" (apud Battaglini, Diritto, cit., p. 153, nota 13).A despeito de ser processual sua natureza, há nela consideráveis aspectos penais, pois o seu não-exercício acarreta a decadência, que é causa---t#xtintiva da punibilidade.

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-0§ 49" - Da açao penal publicao ocondicionada

SUMARIO: 1. Ação penal pública condicionada. 2. Representação. 3. A quem é dirigida a representação? 4. Quem pode fazer a representação? 5. 0 ofendido incapaz e sem representante legal. 6. Natureza jurídica do curador especial. 7. Cessação da atividade do curador. 8. Morte do ofendido. 9. Retratação. 10. É possível a retratação depois do oferecimento da denúncia? 11. É possível a retratação da retratação? 12. A pessoa que faz a representação é obrigada a definir juridicamente o fato? 13. Eficácia objetiva. 14. Prazo para a representação. 15. É possível a representação se o representante legal veio a saber quem foi o autor do crime quando a ofendida, que já o sabia, estava com mais de 18 anos e 6 meses? 16. Prazo para a representação na hipótese do § 1.o do art. 24 do CPP. 17. Prazo para a representação nos crimes de imprensa. 18. Como provar que o titular do direito de representação soube quem foi o autor do crime nesta ou naquela data? 19. Como se conta o prazo para a representação? 20. Ação penal nos crimes contra os costumes. 21. Requisição do Ministro da Justiça.

1. Ação penal pública condicionada

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Se a propositura da ação penal, pelo órgão do Ministério Público, depender de representação do ofendido ou de quem o represente legalmente, ou de requisição do Ministro da Justiça, diz-se que a ação penal é pública condicionada. Pública, porque promovida pelo órgão do

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Ministério Público. Condicionada, porque este não poderá promovê-la sem,que esteja satisfeita a condição exigida pela lei: representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça, ou, como espirituosamente explica Carnelutti: "si para abrir una caja fuerte no basta la llave confiada al cajero, sino es necesaria también la del director del banco, no se dirá que el poder de abrir corresponde soltamente al primero, pero tampoco al segundo; la verdad es que corresponde a los dos" (cf. Camelutti, Lecciojoes, cit., p. 16). Assim, também, a ação penal pública condicionada: o ofendido não poderá, por si só, promovê-la, tampouco o órgão do Ministério Público. Para que este possa fazê-lo, é necessário que aquele o permita...Quando o crime for de ação pública condicionada, a própria lei consigna a exigência especial. 0 crime previsto no art. 151 do CP, e. g., é de ação penal pública condicionada, como se infere do § 4." do referido artigo: "somente se procede mediante representação". Na hipótese prevista no art. 7.", § 3.', do CP, o órgão do Ministério Público só poderá oferecer denúncia se houver requisição ministerial, porquanto dispõe a letra b do § 3.' do citado artigo que a lei penal brasileira terá aplicação naquela hipótese "se houver requísição do Ministro da Justiça".Frise-se, mais uma vez: em todos os casos de ação penal pública condicionada, é o órgão do Ministério Público quem pode promover a ação penal, como se infere, claramente, do art. 100, § 1.', do CP, roborado pela redação do art. 24 do CPP.

2. Representação

Esta, como vimos, é a manifestação de vontade do ofendido ou de quem legalmente o represente, no sentido de ser instaurado o processo contra o seu ofensor. 0 art. 24, in fine, do estatuto processual penal esclarece quem pode fazer a representação: o ofendido ou quem legalmente o represente.A representação deverá conter as necessárias informações, possibilitando, assim, a apuração do fato. Bem claro é o § 2.' do art. 39 do CPP.

3. A quem é dirigida a representação?

Destinatários dessa notitia criminis são o Juiz, a Autoridade Policial ou o órgão do Ministério Público, como se vê pelo disposto no art. 39 do estatuto processual penal, in verbis:

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"0 direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração escrita ou oral, feita ao Juiz, ao órgão do Ministério Público ou à Autoridade Policial".

Da leitura do art. 39 percebe-se que o direito de representação não será exercido, sempre e sempre, pessoalmente. Bem pode o ofendido ou o seu representante legal outorgar mandato a qualquer pessoa suijuris, para que esta exerça, em nome de qualquer deles, o direito de representação. 0 instrumento procuratório, nessa hipótese, deverá mencionar os poderes especiais, a fim de se fixar a responsabilidade do mandante e do mandatário.

A representação poderá ser feita oralmente ou por escrito.

Se feita por escrito à Autoridade Policial, esta iniciará o inquérito policial (CPP, art. 5.', § 4."), e, se não for competente para promovê-lo, deve remetê-la à autoridade que o for. Se feita oralmente, será reduzida a termo. Proceder-se-á por igual forma se, feita por escrito, a assinatura não estiver devidamente autenticada.

Se a representação for feita ao órgão do Ministério Público, será preciso distinguir: a) se por escrito, com firma autenticada e com elementos que o habilitem a promover a ação penal, esta será promovida dentro do prazo de 15 dias, a partir da data em que receber a representação; b) se feita oralmente, ou por escrito, sem a firma devidamente autenticada, o órgão do Ministério Público determinará no sentido de ser ela reduzida a termo, em sua presença, e nesse termo constarão as assinaturas do órgão do Ministério Público e de quem fez a representação ou de alguém por ele, se não souber assinar o nome. Vale acentuar que, mesmo nessas hipóteses, se forem fornecidos elementos que habilitem o Ministério Público a promover a ação penal, esta será promovida.

A representação, quando feita ao Juiz ou perante este reduzida a termo, será remetida à Autoridade Policial, para que esta proceda a inquérito.

E se com a representação dirigida ao Juiz forem fornecidos elementos que habilitem o órgão do Ministério Público a iniciar a ação penal? Ainda assim, deverá o Juiz remetê-la à Autoridade Policial? De acordo com o § 4.' do art. 39, analisado insuladamente, a resposta deve ser afirmativa. Entretanto Espínola Filho assim se expressa: "Se a represen-

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tação for endereçada ao Juiz, cumpre a este fazê-la reduzir, na sua presença, a termo, que assinará, quando não tiver sido apresentada por escrito, com a assinatura reconhecida por Tabelião, da parte ou do seu procurador. Em seguida, compete-lhe dar vista ao MP, que oferecerá a denúncia dentro de 15 dias, se se sentir a isso habilitado, em face dos elementos constantes da mesma representação, tornando dispensável o inquérito" (cf. Espíriola Filho, Comentários, cit., 1955, v. 1, p. 413).

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Creio que a razão está com Espínola Filho. Na verdade, se, de acordo com o art. 40 do CPP, os Juízes e Tribunais, verificando em autos ou papéis de que conhecem, a existência de crime de ação pública, devem remeter ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia, por que razão não poderia o Juiz encaminhar a representação, com elementos que possibilitam o início da ação penal, ao Ministério Público? Proceder de modo contrário seria render imoderada vassalagem a um dispositivo legal cuja interpretação insulada contraria a sistemática do Código.

Penso que o legislador, ao traçar o disposto no § 4.' do art. 39, teve em mira a possibilidade de, com a representação, não serem fornecidos elementos, sem os quais o titular da ação penal não se sentiria habilitado a praticar o ato instaurador da instância penal. Deixou, entretanto, subentendido, no § 5.' do art. 39, como bem diz Tornaghi, que, se com ela forem fornecidos elementos que possibilitem a apresentação da denúncia, deverá o Juiz determinar a abertura de vista ao órgão do Ministério Público. Este, então, se entender que os elementos fornecidos com a representação são suficientes para a apresentação da denúncia, oferecêla-á dentro em 15 dias. Caso contrario, requererá sua devolução à Polícia, para diligências imprescindíveis ao oferecimento daquela, ou, se for o caso, requerera seu arquivamento.

4. Quem pode fazer a representação9

Já vimos, pela análise do art. 24, que a representação poderá ser feita pelo ofendido ou por quem tiver qualidade para representá-lo. Não quer com isso dizer a lei deva ela ser feita pessoalmente, pois, mais adiante, no art. 39, prevê, expressamente, a possibilidade de ser feita a representação por procurador, desde que no instrumento procuratório sejam consignados os poderes especiais.

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E se o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, poderá exercer o direito de representação sem a assistência do seu representante legal? Não há texto de lei que afirme tal coisa. Mas o art. 34 esclarece que o direito de queixa poderá ser exercido pelo referido menor ou por seu representante legal. Ora, se o menor pode exercer o direito de queixa, com maior razão poderá exercer o de representação. De fato. Se a representação é um minus em relação à queixa, logo, podendo fazer o mais, pode fazer o menos, e isto é permitido pelo art. 3." do CPP ao falar da interpretação extensiva.0 CPP, aqui, desconhece, de certo modo, a incapacidade relativa, porquanto permite ao menor exercer o direito de representação ou queixa sem que haja assistência do representante legal. E mais

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ainda: mesmo que haja oposição do representante legal, ainda assim poderá o menor de 21 e maior de 18 exercer esse direito, como se constata pela leitura do parágrafo único do art. 50 do mesmo diploma.Se menor de 18 anos, a representação será feita por quem legalmente o represente: tutor, curador, pai, mãe. Maior de 18 e menor de 21 anos, poderá o ofendido fazer a representação, mas, se não o fizer, poderá fazê-la seu representante legal, uma vez que o art. 34 do CPP o permite. Ao contrário: se o representante legal não quiser fazer a representação, poderá fazê-la o ofendido menor de 2 1. Em suma: na hipótese do art. 34, prevalecerá sempre a vontade manifestada no sentido de ser instaurada a instância penal. Battaglini vê até, nessa hipótese (art. 34), um caso de "representação legal subsidiária". E com acerto. 0 instituto da representação (no sentido de se suprir a incapacidade) diz respeito ao caso de um sujeito, chamado representante, praticar atos jurídicos em nome e no interesse de um outro sujeito, que se chama representado. A representação se diz voluntária quando o representado escolhe seu representante (por meio de instrumento procuratório); é legal quando a própria lei atribui a pessoa diversa do titular do direito o exercício deste. Assim, o pai representa o filho menor de 18 anos etc. Estando o ofendido incapacitado juridicamente de fazer a representação, como na hipótese de menores de 18 anos, quem poderá fazê-la é o seu representante legal. Ora, no caso do art. 34, o ofendido, sendo maior de 18 e menor de 21, não está incapacitado de fazer a representação. Poderá fazê-la. Todavia dispõe a lei que tanto poderá ser feita por ele como pelo seu representante legal. Logo, aí se trata de representação legal subsidiária (reppresentanza legale sussidiaria) (cf. Battaglini, La querela, cit., p.

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384), porque o representado não está incapacitado de exercer o direito de representação, e, a despeito disso, a lei permite igual direito ao representante legal.

5. 0 ofendido incapaz e sem representante legal

Nessa hipótese, a representação poderá ser feita por curador especial, n~ado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo Juiz competente para o processo penal, de conformidade com o art. 33 do CPP, em face da regra contida no art. 3.' do mesmo estatuto, permitindo a interpretação extensiva. Se no caso de queixa o Juiz pode nomear um curador especial para o ofendido, com maior razão poderá fazêlo em se tratando de simples representação.A mesma providência será tomada: a) se, mesmo tendo representante legal, os interesses deste colidirem com os do menor; b) se o ofendido, sem embargo de ser maior de 18 anos, for mentalmente enfermo, ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou, tendo-o, os interesses de um colidirem com os do outro.Suponha-se que uma menor de 18 anos, pobre e sem representante legal, seja vítima de um crime contra os costumes. Vai à Delegacia levar o fato ao conhecimento da Autoridade Policial, para as devidas providências. Esta, não podendo receber a representação - porque feita por pessoa sem capacidade para tanto -, solicita ao Juiz a nomeação de um curador especial para fazê-la. Feita, o inquérito e,

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posteriormente, eventual processo já instaurado seguirão seus trâmites normais.Outro caso: a menor B foi seduzida por C. B levou o fato ao conhecimento do pai. Este, todavia, recusa-se a fazer a representação, em virtude de haver recebido certa soma do sedutor, ou do pai deste, a título de... indenização. Nessa hipótese, haverá colidência de interesses e, levando a menor o fato ao conhecimento do Juiz, poderá ser nomeado um curador especial.Cumpre assinalar que a expressão contida no art. 33 - "colidência de interesses" - não tem o sentido apenas de contraste de natureza patrimonial "puó essere anche un contrasto soltanto morale" (G. Leone, Lineamenti, cit., p. 290; Manzini, Trattato, cit., v. 4, p. 48; Battaglini, La querela, cit., p. 377). E, por outro lado, como bem advertem Saltelli e Romano Di Falco (Commento, v. 2, p. 179), deve tratar-se "non di un conflito ipotetico o probabile, ma di un conflito realmente esistente".

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De se ponderar, ainda, que a nomeação de curador especial, pelo Juiz, não cria para aquele a obrigação de fazer a representação, e sim "a ponderar-lhe a conveniência de agir, se julgar oportuno". Do contrário,

1 ia representação tornar-se-ia obrigatória nesse caso, o que seria absurdo.

6. Natureza jurídica do curador especial

Battaglini vê, na hipótese, uma representação legal sui generis (cf. La querela, cit., p. 383). Manzini (Trattato, cit., p. 42) entende tratar-se de um verdadeiro substituto processual, porquanto o curador especial (que é o curador ad hoc do Direito italiano) age em nome próprio na defesa de um interesse alheio.Parece-nos que a razão está com este último.

7. Cessação da atividade do curador

,1 ,Suponha-se nomeie o Juiz um curador especial, estando a vítima com 17 anos e 10 meses. Ao completar 18 anos, o Curador ainda não havia feito a representação. Poderá fazê-la? Entendemos que, nesse caso, cessa a razão de ser da curatela, cessando, igualmente, se a menor passa a ter representante legal (se a menor, no exemplo dado, é adotada... No mesmo sentido, Battaglini (La querela, cit., p. 385).

8. Morte do ofendido1 1

E se o ofendido morrer ou for declarado ausente por decisão judicial? Nessa hipótese, o direito de representação passará ao cônjuge,~ 1ascendente, descendente ou irmão.

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Pode acontecer que o ofendido morra ou seja declarado ausente por decisão judicial. A prova da morte é feita com a certidão de óbito, e a da ausência, com a certidão da inscrição no Registro Público da sentença que nomear curador ao ausente. Nesses casos, qualquer das pessoas enumeradas no § 1.0 do art. 24* do CPP poderá fazer a representação.

* 0 art. 24 do CPP, hoje, tem dois parágrafos, por força da Lei n. 8.699, de 27-81993. 0 parágrafo único passou a ser § 1.', e o § 2." dispõe que "seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do património ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública".

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E se aparecerem, ao mesmo tempo, duas ou mais pessoas com direito de representação? Suponha-se que, morto o ofendido, seu cônjuge e seu pai façam, ao mesmo tempo, a representação. Nessa hipótese, creio que terá aplicação a regra que se contém no art. 36 do CPP, isto é, terá preferência o cônjuge e, em seguida, o parente mais próximo, na ordem da enumeração do § 1.' do art. 24 do CPP.0 curador do ausente poderá fazer a representação?

Entende Tornaghi que o curador do ausente não pode fazer a representação, pois que o curador nomeado no juízo cível apenas cuida do património do ausente. Por outro lado, o § 1.' do art. 24, segunda parte, é lei especial que prima sobre a lei geral do art. 24, in fine (cf. Hélio Tornaghi, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 50).

Espínola Filho responde afirmativamente , como se percebe pelas considerações traçadas em torno do art. 31 e do art. 24, § 1.', do CPP.Também entendemos não ser possível. É verdade que o art. 24 diz que a representação será feita pelo ofendido ou por quem tiver qualidade para representá-lo, e, evidentemente, o curador do ausente a tem.Todavia o legislador, ao tratar da hipótese de o ofendido ser declarado ausente por decisão judicial, taxativamente discriminou as pessoas quepodem exercer o direito de representação: cônjuge, ascendente, descendente e irmão. Se o legislador quisesse estender esse direito ao curador do ausente, fácil lhe seria repetir no § 1.' do art. 24: o representante legal. Entretanto não o fez, e, por não o fazer, exclui-se a figura do curador.

Somente os ascendentes, descendentes e irmãos legítimos é que podem exercer o direito de representação? A lei não faz qualquer restrição. Logo, ubi lex non distinguet, nemo potest distinguere... E a companheira do ofendido poderá exercer o direito de representação, na hipótese do § 1.' do art. 24? Não. Este parágrafo fala em "cônjuge", afastando, assim, como preleciona Espínola Filho, qualquer ligação extramatrimortial.

Convém salientar que, nos casos de crimes contra os costumes, a jurisprudência tem sido um tanto benevolente no que respeita à representação. Insta acentuar que o Excelso Pretório tem decidido não

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haver nulidade quando a representação é feita por tio da ofendida em crime de sedução. E acentuou o Relator: E preciso opor-se ao excessivo formalismo em casos dessa natureza, que envolvem gente pobre, ignorante das filigranaslegais (cf. RT, 2521106).

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De lá para cá, nesses crimes contra os costumes, a legitímação para fazer a representação tem sofrido acentuado alargamento. 0 direito pretoriano admite, tranqüilamente, possa ela ser feita por qualquer pessoa, desde que responsável pela menor, "ligada por algum laço de parentesco ou que a tenha sob dependência econômica" (RTJ, 11211093). Mais ainda: desde que não haja vontade em sentido contrário dos legítimos representantes legais da vítima, a jurisprudência admite a representação feita pela tia ou tio (cf. RTJ, 85/482, e RT, 5251342), pela avó (STF, HC 56.684, DJU, 28-12-1978, p. 10573), pela irmã (RT, 498/ 296 e 572/313) e até pelo amásio da mãe (RTJ, 32/109) (cf. anotações colhidas em Celso Delmanto, Código Penal anotado, Saraiva, 1984, p. 304).Ademais, entende o Excelso Pretório que o inc. 1 do § U' do art. 225 do CP cuida não só das pessoas realmente pobres, como também de pessoas da classe média, desde que, para as despesas do processo, tenham de privar-se de recursos indispensáveis à sua manutenção ou da família (cf. RV, 851761, 88199, 911474; RT, 510/349, 5201499, 525/ 466, 5341447).Por outro lado, não infirma a miserabilidade o fato de haver assistente de acusação em processos promovidos pelo Ministério Público, com fulcro no art. 225, § 1.% 1, do CP. A miserabilidade pode ser provada até sentença final (cf. RTJ, 92/123, e RT, 549/315) e por qualquer meio, inclusive pela notoriedade do fato (RT, 5591413) e presunção, tal como ocorre com as domésticas (cf. RT, 527/381, e RF, 265/354).

9. Retratação

Feita a representação, quem a fez poderá retratar-se, impedindo, assim, a propositura da ação penal? 0 art. 104 do CP, anterior à reforma introduzida pela Lei n. 7.209/84, dizia que a representação era irretratável depois de iniciada a ação. Daí se concluía que, antes de ser iniciada a ação, aquele que fez a representação poderia retratar-se, isto é, desdizer-se, e, em tal caso, a ação penal não poderia ser promovida, iniciada. 0 CP dizia: " ... depois de iniciada a ação". Mas quando se inicia a ação? Não competindo ao legislador penal determinar tal momento, tratou de fazê-lo o legislador processual penal, salientando no art. 25 do CPP: "A representação será irretratável, depois de oferecida a denúncia". Assim, a ação penal dependente de representação se iniciava, como efetivamen-

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te se inicia, com o oferecimento da denúncia. Mas havia entendimento de que o início da ação penal se dava com o recebimento da denúncia, de sorte que, enquanto a denúncia não fosse recebida, possível seria a retratação. A propósito, RV, 59/373, e RT, 443/409.

Após a reforma penal introduzida pela Lei n. 7.209/84, certamente para evitar entendimentos diversos, esta a redação do art. 102: "A representação será irretratável depois de oferecida a denúncia".r,_~Assim, feita a representação, aquele que a fez poderá retratar-se, desde que a denúncia ainda não tenha sido oferecida (veja-se RTJ, 56/ 94). Se o Promotor apresentar a denúncia, poderá a parte retratar-se, uma vez que o Juiz ainda não a recebeu? Cremos que não. A lei fala em oferecimento da denúncia, e não em recebimento. Logo, se o Promotor oferecer denuncia, ja não poderá a parte retratar-se e querer retirar a representação, sob a alegação de que o Juiz ainda não a recebeu.Suponha-se que uma moça de 19 anos, vítima de crime cuja ação penal dependa de representação, compareça perante a autoridade competente e aí exerça o seu direito de representação, nos termos do art. 34 do CPP, interpretado extensivamente. Poderá seu representante legal fazer a retratação, isto é, torná-la sem efeito? Obviamente não. Se isto fosse possível, o direito que o art. 34 do CPP confere ao ofendido que j a completou 18 anos para promover a queixa ou fazer a representação seria anulado. E todos sabemos que, na hipótese do art. 34, há dois titulares do direito de queixa ou de representação, prevalecendo sempre a vontade daquele que desejar exercer o direito. Se fosse possível, quando o representante legal fizesse a representação, o ofendido maior de 18 e menor de 21 anos também poderia fazer a retratação e, desse modo, seus direitos seriam anulados.

10. E possível a retratação depois do oferecimento da denúncia?

Obviamente não, como acabamos de ver. Mas qual a razão de se permitir a retratação antes do oferecimento da denúncia e de não se permitir depois?Justifica-se a relatividade da norma, diz Aloysio de Carvalho Filho, por atender ao interesse particular e resguardar o prestígio do Ministério Público, aquele, muitas vezes, ditando a retirada da representação na evidência de vantagens de uma solução de paz sobre a persistência da demanda que as paixões da primeira hora ocasionaram: o Ministério

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III

Público, por seu lado, posto a salvo de apreciaçoes menos lisonjeiras, na suspeita de conivências em inconfessáveis combinações que pudessem injustamente comprometê-lo, quando só se movimentou para

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a denúncia, depois de estimulado pelo ofendido, na forma da lei (cf. Comentários, cit., p. 41).Insta acentuar, por último, que a retratação a que se refere o art. 25 do CPP não é aquela de que cuida o inc. VI do art. 107 do CR Aqui, é o agente quem se retrata, é o autor do crime quem se desdiz, e tal retra-tação, nos casos perinitidos em lei, constitui, expressamente, causa extintiva de punibilidade. Consultem-se, a propósito, os arts. 143 e 342, § 1% do CP, e o art. 26 da Lei de Imprensa - Lei ri. 5.250, de 9-2-1967.Na hipótese do art. 25 do CPP, quem se retrata é a pessoa que fez a representação (ofendido, representante legal do ofendido), ou, na hipótese do § L" do art. 24 do CPP, qualquer das pessoas ali enumeradas, desde que se trate da mesma pessoa que o haja feito.

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11. É possível a retratação da retratação?

Havendo retratação da representação, poderá o Promotor de Justiça requerer o arquivamento dos autos do inquérito policial ou das peças de informação? A retratação, na hipótese, assemelha-se, em tudo e por tudo, à renúncia, e, assim, devem os autos ser arquivados, em face da ausência de representação, condição a que se subordina, às vezes, ojus accusationis. Permitir-se a retratação da retratação é entregar ao ofendido arma poderosa para fins de vingança ou outros inconfessáveis. Sem embargo disso, alguns arestos do Tribunal de Justiça paulista têm permitido a retratação da retratação, contanto que se verifique dentro do prazo decadencial. Assim, de acordo com tal entendimento, se o ofendido, investido do direito de representação, soube quem foi o autor do crime no dia L'-2-1992, o prazo para a feitura da representação expirar-se-á a 31 de julho do mesmo ano. Se fez a representação em fevereiro e em março se retratou, devem os autos permanecer em cartório até o dia 31 de julho, porquanto até aquela data poderá o ofendido desfazer a retratação. Se tal não se der, requerera o Promotor a decretação da extinção da punibilidade, pela decadência. Vejam-se, a propósito, os venerandos arestos na RT, 371/136, 338/78, 383/179, 390/204.Data venia, pensamos que a retratação da representação, embora não elencada entre as causas extintivas da punibilidade, apresenta idên-

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tica conseqüência. Sabemos que o art. 107 do CP não esgota todas as causas extintivas dojus puniendi. A morte do cônjuge inocente não constitui causa extintiva da punibilidade no crime de adultério? Assim também a retratação da representação não deixa de ser causa extintiva dojuspuniendi, equivalente que é à renúncia.

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Frederico Marques comunga desse entendimento ao aplaudir observações que fizemos no sentido de não se conceber retratação da retrataÇ?o (cf. Tratado de direito processual penal, Saraiva, 1980, v. 2, p. 104, nota 8).Parece-nos que o Excelso Pretório diverge da orientação do Tribunal paulista, pois, chamado a pronunciar-se sobre o assunto, fê-lo de modo muito particular, como salientado pelo eminente Ministro Relator: "... Alegado ter sido feita por erro a retratação, é de admitir que tenha andamento a ação penal, a fim de que nela também se possa apurar se ocorreu o erro invocado, ou se a representaçãofoi regularmente manifestada" (grifos nossos) (RTJ, 72/50).

12. A pessoa que faz a representação é obrigada a derínirjuridicamente o fato?

Feita a representação por um crime contra os costumes e constatando o órgão do Ministério Público ter ocorrido crime contra os costumes, diverso daquele a que fez referência a representação, ainda assim poderá oferecer denúncia? Nessa hipótese, nada impede. Como bem diz Ottorino Vannini, objeto da representação é o fato que o ofendido ou o seu representante legal não está obrigado a definir juridicamente (cf. Manuale, cit., p. 26).

13. Ericácia objetiva

Feita a representação apenas contra um, poderá ser oferecida denúncia contra os demais partícipes do mesmo fato? Claro que sim, e isto em decorrência do princípio da indivisibilidade da ação penal. No Código italiano há até preceito expresso. E o art. 123: "La querela si estende di diritto a tutti coloro che hanno conimesso il reato".

Assim, se Mévio, funcionário público, foi caluniado em razão de suas funções por A e B, a representação feita apenas em relação a A deve abranger a ambos. Se, entretanto, no prazo legal (CPP, art. 25),

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quem fez a representação vier a se retratar, não será oferecida denúncia contra nenhum. Aplica-se, por analogia, o disposto no art. 49 do mesmo diploma processual. Mas, não havendo a retratação por quem de direito, lícito será ao Promotor oferecer denúncia contra ambos. Não fosse assim, permitir-se-ia aos ofendidos um direito de vingança. Tratando-se de ação penal privada, há texto expresso a respeito da indivisibilidade da ação penal. É o art. 48. No que tange à ação pública incondicionada, ou condicionada (desde que satisfeita a condição), não havia, como não há, necessidade de texto

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semelhante. 0 princípio da indivisibilidade é consectário lógico da ação pública.

Sobre a matéria, assim se expressa Candian: "E conforme ai principi che 1'ordinarnento riconosca all'offeso Ia facoltil di impedire Ia persecuzione di determinati reati ma non anche Ia facoltà di influire sul modo 1'estensione di questa persecuzione, limitandola ad uno o ad alcuni soltanto dei compartecipi" (La querela, Giuffrè, 1951, p. 56).No mesmo sentido Stoppato: "Uazione penale debba dirigersi verso tutti coloro che del fatto sono gli autori" (Dell'azione periale, in Commento, UTET, v. 4, p. 8).

14. Prazo para a representação

Dentro de que prazo deve ser feita a representação? Qual a natureza desse prazo? Quando se inicia? Como se conta?Entre nós, o prazo é de 6 meses e se inicia na data em que o ofendido, se capaz, ou o seu representante legal, vier a saber quem foi o autor do crime. Igual critério é adotado na Alemanha e na Suíça. Apenas naqueles dois países o prazo é mais diminuto: 3 meses. Na doutrina, apontam-se três critérios para a fixação do marco inicial do prazo para a representação: a) a partir da data do fato; b) a partir da data em que o ofendido, ou o seu representante legal, teve ciência do fato; e c) a partir da data em que o ofendido, ou seu representante legal, soube quem foi o autor do crime.0 Código italiano adota o primeiro critério. Na verdade, assim dispõe o art. 124 do CP peninsular: "Salvo che Ia legge disponga altrimenti, il diritto di querela" (representação) "non puà essere esercitato, decorsi tre mesi dal giorno della notizia delfatto che costituisce il reato".Na nossa Lei de Imprensa, o prazo começa a fluir a partir da data do fato, isto é, a partir da data da publicação ou da retransirússão da notícia

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incriminada. Entre nós, contudo, em se tratando de representação, há tão-somente dois critérios: a) a partir da data do fato, em se tratando de crime de imprensa; e b) a partir da data em que a pessoa investida do direito de representação vier a saber quem foi o autor do crime.0 nosso CPP, no art. 38, estabelece:

"Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu repreÁM sentante legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem e o autor do crime ......

Assim, salvante a hipótese em que a lei estabelecer prazo diferente, o direito de representação deverá ser exercido dentro de 6 meses, a partir do dia em que o ofendido ou seu representante vier a saber quem foi o autor do crime. A representação deverá, pois, ser feita dentro desse prazo, sob pena de se consumar a decadência. A lei diz: "... decairá do

direito de queixa ou de representação Trata-se, pois, de prazo

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decadencial, que é fatal, improrrogável. Escoado o prazo sem que tenhasido feita a representação, já não poderá o ofendido ou quem legalmenteo represente apresentá-la, em face do disposto no art. 38 do CPP, combinado com o art. 107, IV, segunda figura, do CRTratando-se de ofendido menor de 18 anos, ou mesmo de doente mental, ainda que maior de 18, é evidente que o prazo para a representação não flui para ele, pois, se é incapaz, não pode exercitá-la. Sendo assim, como fluiria o prazo para o exercício de um direito que não pode ser exercido? Fluirá, entretanto, para quem o represente legalmente, se este, porventura, soube quem foi o autor do crime, e a partir da data em que teve tal ciencia e que o prazo começara a correr, sem qualquer interrupção. E se o representante legal do menor não soube sequer do fato? Nessa hipótese, o prazo fluirá quando ele vier a saber da sua existência e quem teria sido o seu autor, a não ser que tais informações lhe cheguem após o ofendido completar os 21 anos, quando, então, cessará a representação legal, salvo, evidente, a hipótese de ser o ofendido doente mental, o que é diferente, pois a representação legal, nesse caso, continuará, como efetivamente continua, enquanto não cessar a incapacidade. Se antes desse conhecimento a ofendida completou os 18 anos, o prazo para a representação fluirá para ela, uma vez que, nos termos do art. 34 do CPP, combinado com o art. 3.' do mesmo diploma, já ficou

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investida do direito de fazê-la. No dia em que completar os 18 anos, o prazo de 6 meses terá o seu início. Decorrido esse prazo sem que ela o exerça, a toda evidência, extinta estará a punibilidade pela decadência, pois que o direito não foi exercido dentro no prazo legal. Nem se diga que ela não estava investida daquele direito. Claro que estava, nos precisos termos do art. 34 do CPP. Se o representante legal tomar conhecimento quanto à autoria quando a ofendidajá houver completado 18 anos e 6 meses, no nosso entendimento, nada mais poderá ser feito. Contudo o STF, na Súmula 594, como veremos no verbete seguinte, deu ao art. 34 uma interpretação mais abrangente, visando a amparar, mais ainda, os interesses dos ofendidos enquanto menores de 21 anos de idade. Certo que a Súmula não se restringe aos crimes contra os costumes, mas o objetivo foi esse.Suponha-se que uma menor tenha sido vítima de crime, cuja ação penal dependa de representação, a L'- 1 - 1992. Nessa data ficou sabendo quem foi o autor do crime. Seu representante legal não soube sequer da existência do fato. Nessa hipótese, se o seu representante legal continuar insciente, quando ela completar 18 anos, a partir daí, porque já investida do direito de representação, começaria a fluir para ela, e apenas para ela, o prazo, pois que, antes de completar 18 anos, não podia a menor, pessoalmente, exercê-lo, e o prazo corre a partir da data em que a pessoa a quem se reconhece a capacidade para fazer a representação vier a saber quem foi o autor do crime.Imaginemos, entretanto, que, durante a menoridade da ofendida, seu representante legal veio a saber do fato e quem foi o seu autor. Aí, se o representante legal não fizesse a representação dentro dos 6

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meses, consumar-se-ia a decadência, e até mesmo a ofendida, ao completar os 18 anos, não mais poderia fazê-la, pois o prazo decadencial. é um só. Salvo se, ao completar os 18 anos, o prazo para o seu representante legal estivesse fluindo. Exemplificando: einjaneiro de 1992, a ofendida estava com 17 anos e 10 meses, e, naquela mesma data, narrou o fato ao seu representante legal, dizendo-lhe também quem foi o autor do crime. Até o mês de julho poderia o representante legal exercer o direito de representação. Acontece que, em março, a ofendida completou 18 anos, e seu representante legal ainda não tinha feito a representação. Ela, agora, poderia fazê-la, conquanto dentro no prazo de 4 meses. Se o prazo e um só e se iniciou em janeiro, evidente que se expiraria em julho. Se em março ela completou 18 anos, a partir de então poderia exercer tal direi-

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to, não no prazo de 6 meses, e, sim, de 4, pois o prazo decadencial é um só e se iniciou anteriormente, isto é, em janeiro.

15. E possível a representação se o representante legal veio asaber quem foi o autor do crime quando a ofendida, que

já o sabia, estava com mais de 18 anos e 6 meses?

5ponha-se que uma menor tenha sido vítima de crime cuja ação penal dependa de representação. Na mesma data ficou sabendo quem foi o seu autor. Completou os 18 anos e 6 meses e nenhuma providência tomou. Quando atingiu os 19 anos, seu representante legal veio a ter ciência do fato e da autoria. Nessa hipótese, já não poderia seu representante legal fazer a representação, pois, sendo uno o prazo, segue-se que começou a fluir para a menor quando esta atingiu os 18 anos, e começou a fluir porque ela sabia quem era o autor do crime. Ora, depois de completar 18 anos, a ofendida não fez a representação, deixando mesmo escoar o semestre, e, assim, seu representante legal não poderia exercer tal direito. Caso contrário, haveria dois prazos.Não obstante, o entendimento dominante é no sentido de se lhe conferir esse direito. Frederico Marques (Curso, cit., v. 3, p. 408) entende que, nesse caso, a representação pelo pai da ofendida é possível. Há numerosos acórdãos, ora num ora noutro sentido. Vejam-se a propósito aqueles insertos na RT, 259/77, 252/126, 3111150, 2731161, 257/183, 249/87, 303/53, 394/111, 409/75, 407/81, 415/98, e na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, 2/396. 0 Tribunal italiano ja decidiu em sentido afirmativo (cf. Battaglini, La querela, cit., p. 465, nota 124). Battaglini é do mesmo entender: "... anche se per il minore il termine é gia trascorso, puó essere valida Ia querela sporta in tempo sucessivo dal rappresentante..." (La querela, cit., p. 465).Magalhães Noronha entende não ser possível (Direito, cit., p. 473 e s.). A nós nos parece não ser possível também. A ofendida, ao completar 18 anos, já possui capacidade para fazer representação ou exercer o direito de queixa, mesmo contra a vontade do seu representante legal (CPP, arts. 34 e 50, parágrafo único). Se, sabendo quem foi o autor do crime e podendo exercer o direito à persecução, ao atingir os 18 anos, deixa passar in albis o prazo de 6 meses, que o art. 38 lhe assina, mesmo que seu representante legal, após o transcurso desse prazo, venha a

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tomar ciencia do fato e fique sabendo quem foi o seu autor, não mais poderá exercer o direito de queixa ou de representação. Do contrário, haveria dois prazos decadenciais, o que não se concebe. 0 art. 34 do CPP prevê dois titulares alternativos do direito de queixa ou de representação, direito que poderá ser exercido tanto por um quanto pelo outro, mas, se um deles decair do direito, tollitur quaestio.Observe-se que tal prazo (de 6 meses) é ditado por necessidade de ordem social e jurídica de não deixar indefinidamente em suspenso a procedibilidade, e ainda "per ragionevole presunzione del cessato interesse della persona offesa".Se não dermos ao art. 34 essa interpretação, como proceder na hipótese do § 1.' do art. 24 do CPP? Chegaríamos, também, a este absurdo: M foi ameaçada ontem. No mesmo dia do crime, a ofendida veio a falecer por outra causa qualquer. Um mês após, seu marido soube do fato e ficou sabendo também quem foi o seu autor. Deixou expirar os 6 meses, sem tomar providências. Dez dias após haver es-coado o prazo, o pai da ofendida tomou conhecimento do fato e nenhuma medida adotou. Em seguida, o filho da ofendida também soube e nada diligenciou. Depois foi a vez de um dos irmãos. E assim por diante. Teria sentido, nessa seqüência de desinteresse, viesse um terceiro ou quarto irmão da ofendida, que tomou conhecimento do fato tardiamente, mais de 2 anos depois, fazer a representação? Seria, data venia, um encimado desconchavo.Todas aquelas pessoas mencionadas no § 1.' do art. 24 podem fazer a representação. Qualquer uma delas poderá exercer tal direito. 0 que não se concebe é que haja um prazo para cada uma delas. Mutatis mutandis, a situação é idêntica àquela do art. 34.0 STF já decidiu a favor da tese vencedora (RTJ, 48/90; RT, 436/ 308). Todavia, no Recurso de Habeas Corpus n. 48.570, sendo Relator o eminente Min. Aliornar Baleeiro, a 1.' Turma do STF, por unanimidade, decidiu que a lei não pode dar ao representante legal direito que a vítima já tinha e não exerceu em tempo oportuno. E, por isso, "ocorre a decadência do direito de queixa ou de representação se não foi exercido nos 6 meses após a vítima da sedução ter completado 18 anos". E, concluindo, afirmou o eminente Relator: "Repugna à lógica jurídica que se dê ao representante legal um direito que a representada já tinha e não quis exercer no prazo concedido pela lei" (RTJ, 58126).

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Note-se que, no penal, os maiores de 18 anos são responsaveís, tendo, assim, discernimento ético para entender o caráter criminoso do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento. Há, pois,

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uma presunção de maturidade mental. Não se concebe, pois, que a ofendida haja deixado passar in albis o prazo de 6 meses, após completar os 18 anos, numa inequívoca demonstração de desinteresse, e, em seguida, venha o seu representante legal pretendendo exercer aquele mesmo direito Wfte a filha deixou caducar. Seriam, então, dois, e não um o prazo decadencial, o que parece disparate.Aliás, permitindo-se ao representante legal, nesses casos, o direito de representação, estar-se-ia criando a possibilidade de uma rematada colusão pouco honesta. Suponha-se que a ofendida não tenha ofertado a representação no prazo legal. Suponha-se que o seu representante legal de há muito soubera do fato e quem fora o seu autor. Suponha-se que a ofendida, um ano após haver completado 18 anos, desejasse, porfas ou por nefas, exercer aquele direito. Como dele já havia decaído, não lhe seria difícil solicitar ao pai que o exercesse, sob o argumento de que "somente agora" ele viera a ter conhecimento.Sem embargo, o STF, guiando-se pelo que normalmente acontece, dirimiu a controvérsia por meio da Súmula 594: "Os direitos de queixa e de representação podem ser exercidos, independentemente, pelo ofendido ou por seu representante legal".

16. Prazo para a representação na hipótese do § V do art. 24do CPP

Dentro de que prazo poderá ser exercido o direito de representação quando o ofendido morre ou é judicialmente declarado ausente? 0 parágrafo único do art. 38 do CPP dispõe: "verificar- se-á a decadência do direito de queixa ou de representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, § LO, e 31".Segue-se então que, na hipótese, o prazo será também de 6 meses. Não disse o legislador a partir de quando começa a fluir tal prazo, se da morte, da declaração da ausência ou se a partir do dia em que a pessoa que deva exercer o direito de representação veio a saber quem foi o autor do crime. Parece-nos que o prazo começa a fluir da data em que o sucessor veio a saber quem foi o autor do crime. Tornaghi abre uma

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exceção: quando por ocasião da morte ou declaração da ausência o sucessor já sabia quem fora o autor da infração.Convém ponderada a observação de que, sendo uno o prazo decadencial, o dies a quo será um só também. Suponha-se que, 8 meses após a morte do ofendido, o filho deste venha a saber quem foi o autor da infração. Todavia a esposa do ofendido, quando da morte deste, teve ciência do fato e de quem foi o seu autor. Assim, se o cônjuge não exerceu seu direito de representação dentro do semestre que o parágrafo único do art. 38 lhe concede, ninguém mais poderá exercê-lo, pois o prazo é um só, e a decadência se consumou.

17. Prazo para a representação nos crimes de imprensa

0 prazo para a feitura da representação será sempre de 6 meses? Insta acentuar que, embora o art. 38 do CPP diga "salvo disposição em

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contrário o certo é que, tanto no CP como no CPP, não existe para arepresentação outro prazo que não aquele. Na Lei de Imprensa (Lei n.5.250, de 9-2-1967), que é extravagante, estabeleceu-se o prazo de 3meses, quer para a representação, quer para a queixa. Referido prazo,ao contrário do que dispõe o art. 38 do CPP, começa a fluir a partir dadata da publicação do escrito incriminado ou da retransinissão da notícia incriminada. Assim, para a Lei de Imprensa, o prazo para a representação se inicia na data do fato, enquanto para o CP, começa a partirdo instante em que a pessoa investida do direito de representação vier asaber quem foi o autor do crime.

18. Como provar que o titular do direito de representação soube quem foi o autor do crime nesta ou naquela data?1 R 4

Como provar que em tal ou qual data o ofendido ou o seu representante legal ficou sabendo quem foi o autor do crime? De Espínola Filho esta acertada lição: parece-nos que, toda vez que a queixa (ou a representação) for apresentada logo após um semestre da data do crime, o querelante (ou quem fez a representação) deve fazer a prova de só lhe ter chegado a notícia sobre o autor do crime em epoca posterior e compreendida em tempo inferior a 6 meses, contado da data da queixa (ou da representação) para trás; ao réu incumbe provar, de modo mais convincente, que a notícia em questão chegara ao conhecimento do outro

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em dia mais remoto, além de 6 meses entre esse dia e o da apresentação da queixa ou da representação (cf. Código de Processo Penal brasileiro anotado, v. 1, p. 403).

19. Como se conta o prazo para a representação?

Prazo é o espaço-tempo dentro do qual deve ou pode ser realizado dete?nado ato. Todo prazo tem o seu início e o seu término. Assim, os p situam-se entre dois pólos: o inicial e o final. Tais pólos são denominados termos. Há, pois, o termo inicial, também chamado de termo "a quo " ou "dies a quo ", e o termo final, denominado termo "ad quem " ou Vies ad quem". Termo "a quo" ou "dies a quo" é o momento inicial do ato. Termo "ad quem" ou Vies ad quem" é o seu instante final, data da expiração do prazo.

Os prazos podem ser fixados em minutos (ex.: CPP, art. 538, § 2."); em horas (ex.: CPP, art. 536); em dias (ex.: CPP, art. 39, § 5.'); em meses (ex.: CPP, art. 38) e até em anos (ex.: CPP, art. 687, 11).Como se contam os prazos? Há dois critérios: um estabelecido pelo art. 798, § 1.% do CPP, para os prazos processuais, e outro fixado pelo art. 10 do CP, quando disser respeito a matéria penal.Quando se tratar de prazo processual, isto é, de prazo fixado exclusivamente pelo CPP, o termo a quo vem fixado, de modo geral, no art. 798, § 5.'. Uma vez determinado o dia do início, passa-se a observar a regra que se contém no § 1.' do art. 798 do CPP, segundo a qual não se computa o dia do início na contagem dos prazos. Assim, o dia do início não se confunde com o início da contagem dos

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prazos. Por exemplo: o reu foi absolvido e o Promotor de Justiça quer apelar. 0 prazo para a interposição do recurso de apelo é de 5 dias, consoante a regra do art. 593 do CPP. Procura-se, então, por primeiro, o termo a quo, isto é, o dia do início do prazo. Segundo a regra geral inserta no art. 798, § 5.', a, do CPP, o prazo se inicia com a intimação, isto é, o prazo processual tem o seu dia inicial na data em que a pessoa, que deve ou pode praticar o ato, tomou ciência do despacho ou decisão do Orgão Jurisdicional. Assim, se o Promotor tomou ciência da sentença condenatória no dia 20-71992 (segunda-feira), este é o termo a quo. Estabelecido o dia inicial, aplica-se a regra do art. 798, § 1.', do CPP, segundo a qual dies a quo non computatur, isto é, não se computa o dia do início. Portanto, aquele prazo seria contado a partir do dia 21 de julho e findar-se-ia no dia 25 do

363

1

mesmo mês. Este o último dia. Como, no exemplo, esse último dia era sábado, o prazo seria prorrogado até o primeiro dia útil imediato, nos termos do art. 798, § 1% do CPP, alterado pelo art. 3.' da Lei ri. 1.408, de 9-8-195 1.

Na fixação do dia inicial para a contagem do prazo é de se observar que, atentando para a circunstância de que os sábados e domingos são praticamente dias inúteis, diz a Súmula 3 10 que, se o prazo tiver início numa sexta-feira, será contado a partir de segunda-feira, e, se esta não for dia útil, a partir do primeiro que se seguir.Também para a determinação do termo ad quem há duas regras: a) se o prazo expirar num domingo ou feriado, será prorrogado até o primeiro dia útil imediato, nos termos do § 3." do art. 798 do CPP; b) se o prazo vencer aos sábados, onde o expediente forense se encerre ao meiodia, será prorrogado de um dia útil, nos termos do art. 3.' da Lei ri. 1.408, de 9-8-1951.

Há, contudo, prazos fixados pelo CP e pelo CPP. Quando isto ocor-~ 1,E '. rer, a contagem do prazo obedecerá ao disposto no art. 10 do

CR Diz omo 1. citado dispositivo:

"Art. 10. 0 dia do começo inclui-se no cômputo do prazo.Contam-se os dias, os meses e os anos pelo calendário comum".

Na contagem dos prazos penais, há duas regras importantíssimas: a) dies a quo computatur, isto é, o dia inicial coincide com a data inicial da contagem, diferindo, assim, do prazo processual; b) os dias, meses e anos são contados de acordo com o calendário comum, que é o gregoriano. Assim, se o Juiz condena alguém a 15 dias, recolhido o réu ao xadrez no---i dia 10, às 19 horas, sua pena expirar-se-á às 24 horas do dia 24.

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Segundo o calendário comum ou gregoriano, os dias são contados pelo sistema romano, isto é, entendendo-se por dia o espaço de tempo que decorre entre zero hora e meia-noite. Os meses e os anos são contados não ex numero, mas ex numerationem dierum, isto é, não se atribuem invariavelmente 30 dias ao mês (como faz o art. 125, § 1% do CC), o que importaria 360 dias para o ano, mas 28, 29, 30 ou 3 1, de acordo com o calendário comum (cf. Hungria, Comentários, cit., v. 1, p. 298).Então, o cumprimento de pena, o sursis, o livramento condicional, a prescrição, a reabilitação sujeitam-se à contagem dos prazos de acordo com o art. 10 do CR

364

i,

Nessa mesma ordem está oprazo decadencial. 0 direito de queixa ou de representação deve ser exercido, normalmente, dentro do prazo

de 6 meses, segundo a regra contida nos arts. 103 do CP e 38 do CPP, sob pena de decadência.

Como o direito de queixa ou de representação está profundamente vinculado ao direito de punir, uma vez que o não-exercício daquele direito acarreta a decadência, que é causa de extinção da punibilidade, e 44 cornAudo que impeça ou dificulte ojus puniendi se insere no âmbito

da lei penal", não só se aplicam ao direito de queixa ou de representação as regras do Direito Penal intertemporal, como também aquelas pertinentes à contagem dos prazos, porque mais favoráveis ao réu.Por exemplo, se M foi vítima de uma ameaça, o direito de repre-

sentação deve ser exercido no prazo de 6 meses. 0 termo a quo desse prazo vem fixado tanto pelo art. 103 do CP como pelo art. 38 do CPP:

o prazo terá o seu início a partir da data em que a pessoa investida do direito de representação vier a saber quem foi o autor do crime. Se ela for pessoa maior de 18 anos e souber quem foi o autor do crime no dia 2-1 -1992, o prazo expirar-se-á à meia-noite do dia U' de julho do mesmo ano.Considera-se mês o período de tempo contado do dia do início até às 24 horas do dia correspondente ao imediatamente anterior do mês subseqüente. Assim, iniciado o prazo no dia 1.' de janeiro, expirar-se-á

às 24 horas do dia 31 de janeiro. Se o ano não for bissexto e o prazo se iniciar no dia 1.' de fevereiro, terá o seu término às 24 horas do dia 28 do respectivo mês.

Há, contudo, entendimento isolado, no sentido de que o art. 10 do CP teria sido revogado pela Lei ri. 8 10, de 6-9-1949. Nesse sentido, os venerandos arestos na RT, 230/306 e 364/196. Sem razão, uma vez que a Lei ri. 8 10 regula o ano civil...No sentido oposto, e que forma ajurisprudência dominante, vejamse os venerandos arestos na RT, 369/218, 397/62, 404/276, 432/369,

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435/329, 426/426; RV, 47/590; Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 3/76 e 84.Quanto à aplicação do art. 10 do CP aos prazos para exercício de

queixa ou de representação, consultem-se Basileu Garcia, Instituições, cit., p. 19 1; Anais da 1.' Conferência de Desembargadores, in Espínola Filho, Código, cit., v. 9, p. 313; D. Evangelista de Jesus, Direito, cit., p.222; RT, 4041276, 184/84 e 186152.

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1

1 ,

É claro que a contagem dos prazos para a queixa ou representação, segundo o CP, redunda em benefício do réu, o mesmo ocorrendo com a contagem dos prazos em matéria processual penal, conforme o disposto no art. 798, § 1 .', do CPP. Mas, se o prazo para a queixa ou representação fosse contado de acordo com as normas do estatuto processual penal, o pretenso culpado seria prejudicado. Sê-lo-ia, também, se quisesse recorrer e devesse observar a norma do art. 10 do CR

Observe-se que o prazo para a representação vem previsto no CP (art. 103) e no CPP (art. 38), e, quando isso ocorre, prevalece o critério adotado pelo estatuto repressivo.

Repita-se: o prazo para o exercício de representação ou queixa é decadencial e, de conseqüência, fatal. Ao contrário do que ocorre com a prescrição, o prazo decadencial não se suspende e não se interrompe. Não admite, por outro lado, prorrogação. Expirando-se num domingo ou feriado, não pode ser prorrogado, como normalmente acontece com os prazos processuais.

20. Ação penal nos crimes contra os costumes

Nos crimes contra os costumes a ação penal, de regra, é privada, conforme dispõe o art. 225, caput, do CR 0 legislador, entretanto, admitiu três exceções: a) se cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador; b) se da violência empregada resultar lesão corporal grave ou morte; c) se a vítima e seus pais não puderem prover as despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família.

Nessas três exceções, a ação penal será pública ou sernipública. Nas duas primeiras, por razões óbvias, será pública incondicionada. 0 órgão do Ministério Público promovê-la-á sem depender da manifestação de vontade de quem quer que seja e, se for caso, até mesmo contra o desejo da ofendida e de seus familiares. Da primeira exceção cuida o art. 225, § 1.', 11, do CP; da segunda, o art. 223 do

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CP; e, finalmente, da terceira, o art. 225, § 1.', 1, c/c o § 2.' desse mesmo artigo do mesmo diploma repressivo.

Note-se que o art. 225 está situado no Capítulo IV do Título VI da Parte Especial do Código Penal. Dispondo esse artigo serem de ação privada os crimes definidos nos capítulos anteriores, obviamente não sereferiu às hipóteses previstas no art. 223, pois tal dispositivo não se encontra

366

4'nos capítulos anteriores", mas, sim, naquele em que está o art. 225. De conseqüência, os casos previstos no art. 223 e respectivo parágrafo único são de ação pública incondicionada. Esses casos são dois: se da violência empregada (estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento) resultar lesão corporal grave; se da violência empregada resultar a morte. Resultando apenas lesão corporal leve, segundo a doutrina, e por ser ela elementar da violência, inteira aplicação terá o disposto no art. 225.

Afente-se para a redação deste artigo: "Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa". Ora, os arts. 223 e 225 do CP estão no Capítulo IV, e o estupro, atentado violento ao pudor e rapto violento, nos capítulos anteriores. Logo, esses crimes, por expressa determinação legal, são de ação privada. Deixarão de sê-lo: a) se ocorrer uma das hipóteses previstas no art. 223 e respectivo parágrafo, porque a matéria está contida no Capítulo IV e não nos anteriores; b) se cometidos com abuso do pátrio poder etc.; e, finalmente, c) nos casos de miserabilidade (art. 225, § 1.', 1, c/c o § 2.' do CP).

Se o crime de estupro, na sua forma singela, fosse de ação pública incondicionada, como o é quando qualificado, o legislador, no art. 223

do CP, teria dito: "Se da violência resulta lesão corporal No entanto,outra é a redação: "Se da violência resulta lesão corporal de natureza

grave Assim, em face do art. 225, caput, parece claro que, no crimede estupro, se da violência empregada resulta lesão corporal leve, o crime será de ação privada, se a ofendida tiver posses, ou de ação públicasubordinada à representação, se pobre for.

Contudo, o Supremo Tribunal Federal de há muito vinha entendendo que se da violência empregada no "estupro" resulta lesão corporal leve, o crime é, também, de ação penal pública. E as decisões foram tantas que se solidificaram na Súmula 608: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada. Praticado com violência real, diz o preceito sumular, pouco importa se da vis compulsiva resulte lesão grave, leve ou morte.

Se resultar lesão grave ou morte, sim, porquanto já existe a previsão no corpo do art. 223 c/c o art. 225, ambos do CR E se resultar lesão leve? Segundo a Súmula, a ação penal será pública

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incondicionada. Qual a razão desse entendimento? Seria complexo o crime de estupro e, por esse motivo, estaria sendo invocada a regra do art. 101 do CP? Assim dispõe este artigo:

367

1

li, "Quando a lei considera como elemento ou circunstância

do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabeação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do MinistérioPúblico".

Seria o crime de estupro um crime simples ou complexo? A nós nos parece tratar-se de crime complexo. Não um crime complexo em sentido estrito, que se verifica com a fusão de duas figuras delituais, como no latrocínio (furto mais homicídio), mas um crime complexo no sentido amplo. Tal ocorre, como diz Frederico Marques, quando a uma figura típica se acrescentam outros elementos "para que se verifique um tipo delituoso novo" (Curso de direito penal, São Paulo, Saraiva, 1956, v. 2, p. 360). Sob essa ótica, pode-se dizer que o estupro é crime complexo, pois, ao crime de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, de que trata o art. 146 do CP, acrescentaram- se outros elementos: "mulher" e "conjunção carnal". Mas, ainda que fosse complexo no sentido estrito, não se aplicaria a regra do art. 10 1 do CP, em face do que se contém no art. 225 desse mesmo diploma, que é norma especial.1.

E, como cediço, norma especial derroga a geral. Desse modo, para o~ 1,legislador, "constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça" será crime de ação privada se a ofendida tiver posses; de ação pública condicionada, se for pobre; e, finalmente, de ação pública incondicionada, se da violência resultar lesão grave, ou morte, ouraticado com abuso do pátrio poder ou da qualidade de pa-então se pdrasto, tutor ou curador. Apesar disso, a Súmula 608 do STF permanece incólume às críticas doutrinárias: no estupro cometido com violência, pouco importa se da vis compulsiva resulta lesão grave, leve ou morte, a ação penal será pública incondicionada.Estranho que o art. 214, praticamente irmão siamês do estupro, não tenha sido abrangido pela Súmula. Assim, temos: se alguém constrange uma mulher à conjunção carnal e da violência empregada resulta lesão leve, aplica-se o preceito sumular. Mas se alguém constranger uma mulher1

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àfelatio ou coito anal, mediante violência, e desta resulta lesão leve, não se aplica a Súmula... Nesse caso, se a ofendida tiver posses, a ação será privada; se pobre, subordinada à representação... Estranho que o preceito sumular não tenha feito alusão, também, à grave ameaça. Nesse caso, também, se a ofendida tiver posses a ação penal será privada, e, se po-

368

bre, subordinada à representação. A Súmula 608, à semelhança de todas as outras, representa a condensação de inúmeros julgados uniformes do STF sobre a mesma matéria. Tantos foram os recursos extraordinários e habeas corpus versando sobre o tipo da ação penal no estupro de cuja violência empregada resultava lesão leve, e tantas foram as decisões da Excelsa Corte, nesses casos, no sentido de ser pública incondicionada a ação penal, que se cristalizaram na Súmula 608. 0 Supremo não legislou. SWamanhã for levado à Suprema Corte o mesmo tema, já agora versando sobre um atentado violento ao pudor, a solução será aquela da Súmula 608. A nosso juizo, o que o Excelso Pretório não podia era estender, sem provocação, o conteúdo da Súmula ao atentado ao pudor. Aí, sim, estaria ele legislando.E renovamos a indagação: será o crime de estupro um crime complexo?A melhor doutrina distingue as duas modalidades de crime complexo: em sentido estrito e em sentido amplo. Haverá crime complexo, no primeiro caso, "quando Ia legge considera come elementi costitutivi, o come circostanze aggravanti di un solo reato, fatti che costituirebbero, per se stessi, reato". Praticamente, é a redação do art. 101 do nosso diploma repressivo. No crime de estupro, os elementos "mulher" e "conjunçao carnal", seus elementos constitutivos, por si mesmos, não constituem crimes, logo, não pode ser considerado crime complexo em sentido estrito. Sustenta-se tratar-se de crime complexo em sentido amplo. Sob esse aspecto, observa-se que ao crime definido no art. 146 do CP acrescentaram- se os elementos "mulher" e "conjunção carnal", dando nascimento a uma figura delitual diversa, que é o estupro, ou, como diz Antolisei, para la existencia de estafigura jurídica (delito complejo en sentido lato) no se requiere la reunión de dos o más delitos, siendo suficiente uno solo al que se aflada un elemento ulterior Proporciona un ejemplo de ello la violencia carnal (artículo 519 del Código Penal), compreensiva de la violencia privada (artículo 610) y del ulterior elemento del ayuntamiento carnal, elemento que en sí mismo no constituye delito (Francesco Antolisei, Manual de derecho penal, Buenos Aires, UTEHA, 1960, p. 385). Sob esse ângulo, ele é complexo.Todavia esse conceito alargado de crime complexo não foi adotado entre nós. 0 art. 101 do CP cuida do crime complexo em sentido estrito e, no estupro, a toda evidência, não se vislumbra o crime complexo tal como definido nesse dispositivo. Quais seriam as figuras delituais que

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1

1,

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I.,

$1 1.

estariam entrelaçadas para a configuração do estupro? Aí existe, apenas e tão-somente, o crime de "constranger alguém mediante violência ou

grave ameaça definido no art. 146 do CR A essa figura delitualagregaram-se as expressões "mulher" e "conjunção carnal", e dessa mesclasurgiu o tipo definido no art. 213 do CR Desse modo, às escâncaras, oestupro não é, na dicção do art. 101 do CP, um crime complexo. Não osendo, é indiferente que o crime de lesão corporal leve, hoje, tenha-sedeslocado, por força do art. 88 da Lei n. 9.099/95, da sua feição decrime de ação penal pública incondicionada, para a categoria de crimede ação pública subordinada ou condicionada. 0 crime de lesão corporal leve não é um componente do crime de estupro. A violência a que serefere o art. 213 já está ínsita no tipo descrito no art. 146. Por isso mesmo é indiferente, em face do preceito sumular, tenha o crime de lesãocorporal leve se despegado da sua tradicional categoria de crime de açãopenal pública incondicionada. A figura delitiva que entra na composiçaodo crime de estupro é a tipificada no art. 146 do CP, de ação penal pública incondicionada. Daí, apesar das críticas feitas à Súmula 608, apóso advento da Lei ri. 9.099/95, a Excelsa Corte manteve o preceito sumularem decisão proferida em junho de 1996 (HC 73.994-6, Rel. Min. Francisco Rezek, DJU, 25-4-1997, p. 15200).

Não se pode olvidar, é bom repetir, que o nosso CP, no art. 101, limitou-se a definir o crime complexo no sentido estrito. Não o considerou sob o aspecto amplo. E, como não o fez, não se pode dizer que o estupro seja crime complexo. De jure constituto, o crime complexo resulta da fusão de duas figuras delituais penais, o que não se dá no crime de estupro. 0 preceito sumular, pois, tendo em vista o disposto no art. 225 do CP, foi elaborado contra legem. Mas, ainda que o art. 10 1 do CP houvesse cuidado, também, do crime complexo em sentido amplo, a Súmula 608 estaria afrontando a lei, porquanto a norma do art. 225 do CP, por ser especial, teria prevalência em relação àquela do art. 10 1 do mesmo diploma.

Alguém ousará duvidar que os responsáveis pela elaboração daquele preceito sumular não sabiam que o crime de estupro não se ajusta ao modelo definido no art. 10 1 do CP? Se eles entenderam que era complexo, desprezando o conceito legal para congraçar-se com a melhor doutrina, que razões os levaram a excluir da Súmula o crime do art. 214? Que motivos os conduziram a excluir, também, a grave ameaça?

370

A nosso juizo, dois: a) como a crônica judiciária não registra, com frequencia, casos de estupro com grave ameaça e muito menos os atentados violentos ao pudor; como, de regra, os crimes de estupro, em quantidade extraordinária e alarmante, são cometidos mediante violência da qual resulta lesão leve, o STF, provocado por meio de recurso e habeas corpus, e procurando amparar, mais ainda, a honra das

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vítimas desses crimes, guindou-os à posição de crime de ação pública incondicionada; b) a Sè~rema Corte não foi provocada, seja pela via do recurso extraordinario, seja por habeas corpus, sobre o estupro mediante grave ameaça ou atentado violento ao pudor, de cuja violência tenha resultado lesão leve. Se houvesse sido a solução seria idêntica. 0 mesmo propósito inspirou a Excelsa Corte a conceder certa elasticidade ao conceito de legitimidade para fazer a representação nos crimes contra os costumes, conferindo poderes não só aos verdadeiros representantes legais, como também ao irmão, tio, avós, amásio da mãe da ofendida, pessoa ligada por relação de parentesco, e até mesmo à pessoa que tenha a menor sob sua guar a a qua quer i u o 1 1 1 1 1

143;RT, 397/59,709/391, 716/533, 396/366,582/315). Criação pretoriana contra legem, mas, sob esse aspecto, incensurável, porquanto objetiva resguardar interesses da ofendida pobre. Note-se que nos crimes contra os costumes, quando pobre a ofendida, a denúncia era instruída com a prova da miserabilidade, precisamente para conferir legitimidade ao Ministério Público. Pois bem: a Excelsa Corte de há muito vem entendendo, pacificamente, que essa prova poderá ser feita por qualquer meio (RTJ, 81/629). A pobreza poderá até ser presumida. 0 fato de a ofendida constituir um advogado para atuar na assistência (art. 268 do CPP) não desnatura seu estado de pobreza. Alie-se a tudo isso a Súmula 594 do STF - não obstante não se restrinja aos crimes contra os costumes, é neles que se registra sua maior aplicação. Por todas essas razões, justifica-se essa política criminal pretoriana, visando a acautelar e resguardar os interesses das vítimas de estupro cometido com violência, sejam elas pobres, "remediadas" ou ricas. É um pouco que se faz para deter a escalada da criminalidade violenta. Trata-se, a nosso juízo, de excelente medida de política criminal, pois, não fosse assim, a punibilidade seria angustiada na mesa dos conchavos...

Poder-se-á dizer que se o estupro for praticado mediante grave ameaça, ou mesmo se se tratar de atentado violento ao pudor de cuj a vis compulsiva resulte lesão leve, que o Ministério Público não terá o respaldo sumular

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para defender as ofendidas. Certo. Observe-se, contudo, que a Súmula 608 não representa um dispositivo legal. Ela é fruto, conforme observamos, de reiteradas decisões sobre o estupro de cuja violência resultou lesão leve. Mas nada impede seja ela aplicada por analogia.Se a violência for presumida, lógico que não se aplica o preceito sumular.

Na terceira exceção, isto é, quando a vítima e seus pais forem pobres, a ação penal será pública condicionada à representação (CP, art. 225, § 1.', 1, e § 2.'). Neste caso, a lei exige duas condições a fim de que o Ministério Público possa intentar a ação penal: 1.a ) a representação; 2 a) a prova da miserabilidade, que, de regra, é feita por meio de atestado fornecido pela Autoridade Policial. Sem a

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representação, como vimos, o órgão do Ministério Público não poderá intentar a ação penal e muito menos poderá a Autoridade Policial praticar atos persecutórios (cf. CPP, arts. 24 e 5.", § 4.'). Também, sem prova de estado de pobreza da ofendida e de seus pais, não poderá o órgão do Ministério Público oferecer denúncia, pois se trata de uma condição que confere legitimidade ao órgão oficial da acusação.0 STF, contudo, vem entendendo não ser importante demonstrar o estado de pobreza quando da feitura da representação; a prova da miserabilidade pode ser feita depois... RV, 39/15, 49/97, 69/720 e 92n20.Aliás, a Excelsa Corte, no Recurso de Habeas Corpus n. 55.625ES, publicado no DJU, 31-10-1977, p. 7589, decidiu: "... Para a representação basta a manifestação inequívoca da vontade no sentido de que o processo seja iniciado. A miscrabilidade pode ser comprovada por qualquer meio idôneo, não a desfigurando, por si só, a nomeação de advogado como assistente de acusação". E válida, até, a presunção de pobreza (cf. RTJ, 91/474).Se nos crimes contra os costumes a ação penal é, de regra, privada, por que razão, quando a ofendida e seus pais forem pessoas pobres, a ação não continua particular? Dir-se-á que, sendo pobres, não poderão suportar as despesas do processo. Mas o art. 32 do CPP não diz que, nos crimes de ação privada, o Juiz, a requerimento da parte que comprovar sua pobreza, nomeará advogado para a propositura da queixa? Exato. De ponderar, entretanto, que, se a ação penal, no caso, continuasse privada, a vítima e seu representante legal continuariam com o poder de dispor do conteúdo material do processo (da lide), e a todo o tempo,

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antes de a sentença transitar em julgado, poderiam conceder o perdão ou, no curso do processo, abandonar a instância, dando ensejo à perempção, ambas causas extintivas da punibilidade, exclusivas da ação privada. Proposta a ação pelo Promotor de Justiça, a disponibilidade só poderia ocorrer antes do oferecimento da denúncia, nos termos do art. 25 do CPR Haveria, então, diz Magalhães Noronha, menos possibilidade de traficância e transações vergonhosas. Dir-se-á, continua o ilustrado mestre, que 0.wesmo pode acontecer em se tratando de vítima possuidora de recursos financeiros. E exato, porém a ocorrência será mais difícil. A miséria seria, freqüentemente, fator decisivo no comércio da honra ou na perseguição para fins ilícitos (Crônica de junho de 1959, Diário de São Paulo).Observe-se que as razões que levaram o Estado a admitir a ação privada, nos crimes contra os costumes, perduram, mesmo quando a ofendida for pobre. Nestes crimes, a ofendida ou seu representante legal tem o direito de julgar da conveniência ou não da propositura da ação. Se a ofendida for pessoa de posses, iniciará a ação penal se quiser, podendo ainda, antes de transitar einjulgado eventual sentença condenatória, dispor do conteúdo material do processo. Se for pobre, terá também o direito de julgar da conveniência ou não quanto à propositura da ação penal. Querendo, bastará apresentar o atestado de pobreza e permitir a propositura da ação, não podendo, contudo, após o oferecimento da denúncia, dispor da ação penal, como aconteceria se a ação se a iniciasse por meio de queixa.

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A representação, nos casos em que a lei a exige, não está sujeita a fórmula sacramental. Desde que haja inequívoca intenção de se permitir a persecução, esta será iniciada.

21. Requisição do Ministro da Justiça

A ação penal subordinada à requisição ministerial também constitui exceção, pois, conforme vimos, a ação penal, de regra, é pública incondicionada. Essa modalidade de ação, em que a persecução se subordina à manifestação de vontade do Ministro da Justiça, encarta-se na moldura da ação pública condicionada.Nesse caso, a ação penal é pública porque promovida pelo Ministério Público, mas, para que este possa promovê-la, é preciso haja requisição do Ministro da Justiça, sem o que impossível será a instaura-

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~ i

ção do processo, como se constata pelo art. 24 do CPP e § 1.' do art. 100 do CP. E se, por acaso, for oferecida denúncia, sem que tenha sido atendida a exigência legal, deverá o Juiz proferir despacho liminar negativo, isto é, rejeitar a peça acusatória, com fundamento na última parte do inc. 111 do art. 43 do CPP, pois, in casu, estaria faltando uma condição exigida por lei para o exercício da ação penal.

A requisição, na espécie, é um ato político, porque "há certos crimes em que a conveniência da persecução penal está subordinada a essa conveniência política".São raras as hipóteses em que a lei subordina a persecução àquele

ato político: a) Nos crimes cometidos por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil (CP, art. 7.', § 1% b). b) Nos crimes contra a honra cometidos contra Chefe de Governo estrangeiro (CP, art. 141, 1, c/c o parágrafo único do art. 145). Note-se que a expressão "Chefe de Governo estrangeiro" é ampla e, por isso mesmo, compreende não só o "soberano" ou "Chefe de Estado", mas, também, o "Primeiro-Ministro" ou

1 d4 ,, 14li 1,1 presidente do conselho", pois também este é Chefe de Estado (Hungria,

Comentários, cit., v. 6, p. 78, n. 132). Há quem entenda, todavia, que

não se pode igualar o Primeiro-Ministro e Chanceler com o Chefe deEstado. Mas como Hungria foi um dos autores do Código Penal de 40,e se o seu pensamento é o que acabamos de ver, sua lição vale comoverdadeira interpretação autêntica. c) Nos crimes de injúria

praticadoscontra o Presidente da República (cf. art. 141, 1, c/c o parágrafo

único1C

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111 do art. 145 do CP e art. 26 da Lei de Segurança Nacional). Nos crimesde calúnia e difamação contra o Presidente da República, se presentes1.9 ~11 as condições expostas nos arts. 1.' e 2.' da Lei de Segurança Nacional,a ação penal independerá de requisição ministerial. Será públicaincondicionada, e a competência é da Justiça Federal. Entretanto, se nãoatingirem a segurança interna ou externa do País, serão crimes comuns,cuj a ação penal fica subordinada à requísição ministerial. d) Nos crimescontra a honra cometidos contra Chefe de Estado ou Governo estrangeiro ou seus representantes diplomáticos, por meio da imprensa (cf.art. 23, 1, c/c o art. 40, 1, a, da Lei ri. 5.250, de 9-2-1967 - Lei de1

Imprensa). Aqui o legislador, em face da discussão sobre se a expressão "Chefe de Governo estrangeiro" está ou não compreendida na de "Chefe de Estado", preferiu fazer uso de ambas: "Chefe de Estado ou Governo estrangeiro". e) Nos crimes contra a honra praticados por meio de imprensa contra Ministro do Supremo Tribunal Federal (exceto o seu

374

1

Presidente, pois em relação a ele vigora o disposto no art. 26 da Lei de Segurança Nacional, no que respeita à calúnia e difamação, se estiverem presentes as condições previstas nos arts. 1.' e 2.' da citada Lei. Do contrário, a ação penal dependerá, também, de requisição ministerial). Contudo, em se tratando de injúria aos chefes dos Poderes da União, a ação penal é pública condicionada a requí . si . ção do Ministro da Justiça, nos termos do art. 23, 1, c/c o art. 40, 1, da Lei de Imprensa, uma vez que a Lei ~e Segurança Nacional, no art. 26, não cuidou da injúria. f) Nos crimes contra a honra cometidos pela imprensa contra Ministro de Estado (cf. art. 23, 1, c/c o art. 40, 1, a, da Lei de Imprensa - Lei ri. 5.250, de 9-2-1967). g) Nos crimes de injúria cometidos pela imprensa contra o Presidente da República, Presidente do Senado, Presidente da Câmara dos Deputados (cf. art. 23, 1, c/c o art. 40, 1, a, da Lei ri. 5.250, de 9-2-1967).

Note-se, contudo, que nos referimos apenas a Direito Penal comum. Na Justiça Militar, há outra hipótese em que a ação penal fica condicionada à requisição do Ministro da Justiça. Assim, no crime definido no art. 141 do CPM, se o agente for civil e não houver co-autor militar, a propositura da ação penal depende de requisição do Ministro da Justiça, nos precisos termos do art. 122 do referido diploma.

Ainda na Justiça Militar vamos encontrar a figura da requisição do Ministro do Exército, do Ministro da Marinha ou do Ministro da Aeronáutica. De fato. Ação penal, nos crimes previstos nos arts. 136 e 141 do CPM, quando o agente for militar ou assemelhado, depende da requisição do Ministério Militar a que ele estiver subordinado, salvo na hipótese do art. 141, se o agente for civil e não houver co-autor militar, quando, então, a ação penal se subordina a requisiçao do Ministério da Justiça, conforme determina o art. 122 do mesmo diploma.

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Trata-se de verdadeira exceção porque a ação penal em todos os crimes militares, sejam próprios, sejam impróprios, somente pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da Justiça Militar, independentemente de manifestação de vontade de quem quer que seja, a teor do art. 121 do CPM, salvo a hipótese supracitada. Nem mesmo pode ser aplicada na Justiça Militar, a nosso juízo, a regra do art. 88 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, exigindo a representação para dar início àpersecutio. Nesse sentido a magnífica decisão unânime do Superior Tribunal Militar ao julgar a correição parcial (So) 1:540-6/CE, Relator eminente Min. Aldo da Silva Fagundes, DJU, 19-8-1996, p. 160.

375

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.40mo ~ . ,~ 1 *0 1

A dependência da ação pública, nos casos expressamente previstos em lei, à conveniência do governo (i. e., requisição ministerial), explicase "pelo interesse público de ser evitada (a ação), quando possa dar lugar o seu exercício a exploração de funestas consequencias, pela tendenciosidade das dissensões políticas" (Jorge A. Romeiro, Da ação, cit., p. 124).

Com esse poder de julgar da conveniência quanto à propositura da ação penal, o governo, representado pelo Ministro da Justiça, evita, quandoconvém, "a repercussão pouco favorável que poderiam ter certos episódios".Assim, a requisição nada mais é senão mera autorização para proceder, permissão para ser instaurado o processo, manifestação de vontade que tende a provocar a atividade processual. Ela é, por assim dizer, a representação política.

Qual o conteúdo da requisição? 0 CPP silenciou a respeito. É natural, entretanto, deva indicar a qualidade da vítima, a qualificação, se possível, do autor da infração penal e a exposição do fato. Se se tratar de crime praticado fora do Brasil por estrangeiro contra brasileiro, a requisição deverá, também, referir-se a tais circunstâncias. Se, com a requi-sição, forem fornecidos elementos que possibilitem a propositura da ação penal, esta será promovida.Na hipótese de o Ministério Público julgar necessário maiores esclarecimentos ou novos elementos de convicção, deverá requisitá-los da Polícia ou de quaisquer autoridades ou funcionários que devam ou possam fornecê-los, consoante a regra do art. 47 do CPP.

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Dentro em que prazo deve ser feita a requisição? 0 legislador silenciou. No silêncio da lei, conclui-se que a qualquer tempo; enquanto não estiver extinta a punibilidade, poderá ser feita a requísição.Será ela retratável? Encaminhada a requisição ministerial ao Ministério Público, poderá o Ministro da Justiça retratar-se, impedindo, assim, a propositura da ação penal? Jorge A. Romeiro entende que sim e acentua: os motivos de relevante interesse público que vinculam à conveniência do governo a ação penal nos casos especificados em lei, podem ocorrer ou ser vislumbrados, após a requisição do Ministro daJustiça, mas antes de se haver iniciado a ação penal pela denúncia do Ministério Público (cf. Da ação, cit., p. 125).

376

Data venia, dissentimos do ilustrado jurista. 0 art. 24 do CPP diz: 44nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo".E, mais adiante, no art. 25, declara a irretratabilidade da representação depois de oferecida a denúncia. Ora, se o legislador quisesse, também, tornar Retratável a requisição ministerial, tê-lo-ia feito no próprio corpo do art. 25 ou em parágrafo. Silenciou a respeito, numa demonstração inequívoca de considerar a requísição irrevogável, irretratável, uma vez encaminhada ao Ministério Público. Fosse ela retratável, não se compreende que, no art. 24 do CPP, falasse o legislador em requisição e representação como condições para o exercício da ação penal nos casos expressos em lei e, no art. 25, vale dizer, imediatamente em seguida, po endo traçar normas quanto à revogabilidade da requisição, se houvesse limitado, estritamente, à retratação da representação. Tal circunstância constitui prova eloqüente de não ter querido o legislador estender a retratação à requisição.Ademais, a requisição não se subordina a qualquer prazo, podendo ser encaminhada ao Ministério Público enquanto não estiver extinta a punibilidade pela prescrição ou por outra qualquer causa, tendo, assim, o Ministro da Justiça tempo suficiente para sopesar a conveniência ou inconveniência da propositura da ação.Observe-se que, no Direito italiano, o prazo para ser expedida a requisição (richiesta) é de 3 meses, e, a despeito disso, ela é irretratável. Di-lo o art. 129 do CP peninsular: "La richiesta dell'Autorità é irrevocabile". E a razão dessa irretratabilidade foi esclarecida na Relazione que acompanhou o Projeto do CP italiano de 1930: " ... storicamente 1'irrevocabilità ripete Ia sua giustificazione non dalla natura giuridica della richiesta, ma da vedute di carattere politico accreditate da una ormai sçcolare tradizione, per le quali 1'irrevocabilità é un segnacolo di progresso nel diritto penale e un mezzo acconcio per sottrarre alle fluttuazioni dei partiti politici Ia funzione punitiva" (historicamente, a irrevogabilidade da requisição encontra sua justificação não em sua natureza jurídica, e, sim, em consideraçoes de índole política acreditadas por uma secular tradição, pelas quais a irrevogabilidade constitui um sinal de progresso no Direito Penal e um meio idôneo para subtrair a função punitiva às flutuações dos partidos

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políticos) (cf. Relazione, apud G. Battaglini, La querela, cit., p. 220).

377

Um ato administrativo, como é a requisição, partindo do governopor meio do Ministro da Justiça, há de ser, necessariamente, um ato quese reveste de seriedade. Dispondo de larga margem de tempo paraencaminhá-la ao Ministério Público, de certo terá oportunidade parajulgardas suas vantagens ou desvantagens, da sua conveniência ou inconveniência.

A revogação ou retratação demonstraria que a prematura requisi

ção foi fruto de uma irreflexão, de uma leviana afoiteza, o que não se

concebe, não só porque o ato proveio do governo, como também pelodilatado espaço de tempo de que dispôs para expedi-lo.

A requisição ministerial vincula o Ministério Público? Ou, em ou

tras palavras, feita a requisição, o órgão do Ministério Público será obri

gado a intentar a ação penal? Entendemos que não. No nosso sistema,cabe ao Ministério Público, nos delitos de ação pública, seja

incondicionada,1 0# seja condicionada, formar a opinio delicti, isto é, analisar as peças da1

1:11 informatio delicti, procurando ver se os elementos nela constantes auto

rizam ou não a propositura da ação penal. Essa tarefa, nos crimes de

ação pública, é exclusiva do Ministério Público, como se constata pela1 é simples leitura do art. 28 do CPP.

Suponha-se que o Ministro da Justiça expeça uma requisição, a fim

de ser instaurado processo contra X, um estrangeiro que teria praticado

um crime contra um brasileiro em território alienígena. Suponha-se que,

nas investigações levadas a cabo, apure-se que X não se encontra em

território nacional. Como poderia o Ministério Público dar inicio a ação

L. ' penal se o agente não entrou no território pátrio, tal como exige o § 3.'

do art. 7.', combinado com o § 2.', a, do mesmo artigo do CP? E se,

porventura, o fato nela descrito não configurar infração penal? Tudo está

a demonstrar, pois, que a requisição ministerial não obriga o Ministério

Público a promover a ação penal.A requisição ministerial não passa de mera condição de

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procedibi 1 idade, cuja natureza é eminentemente processual. Ela apenas

condiciona a propositura da ação. Satisfeita a condição, cumpre ao ór

gão do Ministério Público: a) oferecer denúncia; b) requerer a decreta

ção da extinção da punibilidade; c) requerer o arquivamento; d) requisi

tar à Polícia ou a quem de direito (art. 47) as informações que entenda

imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.

378

A requisição, tal qual a representação, tem eficácia objetiva: abrange a todos aqueles que cometeram a infração penal, e isto em virtude do princípio da indivisibilidade da ação.

Quem é o destinatário da requisição? Esta deve ser encaminhada ao Ministério Público. Se se tratar de crime cuja competência seja do

STF, STJ, ou mesmo da Justiça Federal, a requisição deve ser encaminhada ao Procurador-Geral da República. Se da competência da Justiça local, iro Chefe do Ministério Público do Estado respectivo, e este, en-tão, conforme a hipótese, a fará chegar ao Promotor de Justiça, se não preferir, ele próprio, oferecer denúncia ou tomar uma daquelas provi~ dências (arquivamento etc.).

E se o crime cometido no exterior, por estrangeiro contra brasileiro, for de ação penal privada ou de ação pública subordinada à represen~ tação? Arredada a possibilidade de o Ministro da Justiça requisitar ainstauração da ação penal, posto competir ao ofendido ou a quem legalmente o represente julgar da sua conveniência, e, por outro lado, considerando também caber, exclusivamente, ao Ministro da Justiça, nos cri~

mes praticados no exterior contra brasileiros, nos termos do art. 7.", § 3.", b, do CP, julgar da conveniência ou não da instauração do processo,

parece-nos que, nas hipóteses a que estamos nos referindo, se o ofendido quiser promover a ação, cumprir-lhe-á, antes de qualquer outra provi-

dência, solicitar autorização ao Ministro da Justiça. Uma vez concedida, se o crime for de ação pública subordinada à representação, cumprirá àpessoa investida desse direito exercê-lo perante qualquer das autoridades a que se refere o art. 39 do CPP. Se de ação privada, requererá a

instauração do inquérito, ou, dependendo dos elementos de que disponha, já poderá promover a queixa.

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se o crime for de ação pública condicionada, o inquérito ou as peças de informação que servirem de base à denúncia devem conter a representação ou a requisição ministerial, conforme o caso.

§ 5*0 - Inicio da açao penalpÚblica

SUMÁRIO: 1. Como se inicia a ação penal pública condicionada ou incondicionada? 2. Instante inicial da ação penal pública. 3. Conteúdo da denúncia. 4. Prazo para o oferecimento da denúncia. 5. Denúncia fora do prazo. 6. Devolução do inquérito. 7. Extinção da punibilidade. 8. Guarda em cartório. 9. Inviabilidade da relação processual. 10. Arquivamento do inquérito.

1. Como se inicia a ação penal pública condicionada ou incondicionada?

Neste estudo preliminar, interessam-nos, apenas, o modo e o instante inicial da ação penal pública.

Nos termos do art. 24 do CPP, a ação penal pública, seja condicionada, seja incondicionada, é iniciada por meio da denúncia. In verbis:

"Nos crimes de ação pública, esta será promovida pordenúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei oexigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo".

A primeira parte do dispositivo estabelece o modo de se dar inícioà ação penal pública. A segunda parte deixa entrever, claramente, que,

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Este é o modo. Quanto ao instante do seu início, o art. 102 do CP, combinado com o art. 25 do CPP, está a mostrar que tal se verifica com o simples oferecimento da denúncia.Não se deve confundir início da ação penal com o seu ajuizamento. AquelKe dá com o oferecimento da peça acusatória. Tanto é verdade que o STF já teve oportunidade de salientar que a expressão contida no art. 104 do CP, com a redação existente antes da reforma ocorrida em 1984 ("A representação é irretratável depois de iniciada a ação"), tinha o mesmo significado que aquela contida no art. 25 do CPP: "A representação será irretratável depois de oferecida a denúncia"(RTJ, 56/94). Logo, o início se dá com a oferta da peça acusatória. Já o ajuizamento se dá quando o Juiz profere despacho determinando a citação. A propósito, Frederico Marques: "... Vê-se, pois, que o ato constitutivo da instância, que e a citação válida, só se opera em seguida a despacho judicial. E é a este ato processual preambular que Lopes da Costa denomina, com bastante propriedade, ajuizamento da ação" (Instituições de Direito Processual Civil, Forense, v. 3, § 110, p. 89).

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Assim, com o recebimento da denúncia, estava o pedido ajuizado; com a oferta da denúncia, estava a ação iniciada...Certo que doutrina e jurisprudência divergiam a respeito daquelas expressões contidas nos arts. 104 do CP e 25 do CPP. Hoje, a discussão que havia em face da redação do antigo art. 104 do CP e do art. 25 do CPP perdeu sua razão de ser, porquanto o CP atualmente dispõe, no seu art. 102, que "a representação será irretratável depois de oferecida a denúncia", redação idêntica àquela do art. 25 do CPP.Por conseguinte, se o Promotor ofertou denúncia nos crimes de ação pública condicionada, a representação tornou-se irretratável. A irretratabilidade se dá com a oferta e não com o recebimento.

2. Instante inicial da ação penal pública

A ação penal pública inicia-se, pois, com a denúncia, oferecida pelo órgão do Ministério Público. A denúncia, na técnica processual brasileira, significa a peça inaugural da ação penal, quando promovida pelo Ministério Público. Pouco importa seja a ação penal pública incondicionada

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ou condicionada. Se o Ministério Público inicia a ação penal, esse ato vestibular, em que se formaliza o direito de ação, recebe, no nosso Direito, o nomen juris de denúncia.

E a petição inicial, quando se tratar de crime de ação pública, a petição que corresponde àquela do Processo Civil. Nas hipóteses em que se permite ao ofendido dar início à ação (ação penal exclusivamente privada, privada subsidiária da pública ou privada persortalíssima), a sua peça inaugural, no nosso Direito, toma a denominação de queixa.Por força do princípio ne procedatjudex ex officio (o Juiz não pode dar início ao processo), é natural deva o interessado dirigir-se ao Estado-Juiz invocando-lhe a garantia jurisdicional. Se se tratar de crime de ação pública, o Estado-Administração, que é a parte interessada, por meio da denúncia, provoca a atividade jurisdicional. Assim, a denúncia é o ato processual por meio do qual o Estado-Administração, pelo seu órgão competente, que é o Ministério Público, dirige-se ao Juiz, dandolhe conhecimento de um fato que reveste os caracteres de infração penal e manifestando a vontade de ver aplicada a sanctiojuris ao culpado.

3. Conteúdo da denúncia

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Que deve conter a denúncia? Di-lo o art. 41 do CPP:

"A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas".

A) Exposição dofato criminoso, com todas as suas circunstâncias 0 órgão do Ministério Público, na petição dirigida ao Juiz competente, descreve o fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Não há necessidade de minúcias, não devendo, contudo, ser sucinta demais. A exposição deve limitar-se ao necessário à configuração do crime e às demais circunstâncias que circurívolveram, o fato e que possam influir na sua caracterização, como, inclusive, as que digam respeito a qualificadoras, causas de aumento ou diminuição da pena, agravantes, atenuantes etc. Exigindo a lei a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, haverá necessidade, sempre que possível, de se fazer referência à hora, dia, mês, ano e local em que o crime foi cometi-

382

do. Tais circunstâncias podem envolver problemas de prescrição e competência. Além da indicação do tempo e do lugar, deve ser feita referência ao modo como foi perpetrado e aos instrumentos usados. A exposição circunstanciada torna-se necessária não só para facilitar a tarefa do Magistrado, como também para que o acusado possa ficar habilitado a defender-se, conhecendo o fato que se lhe imputa.

Na denuncia, o orgão do Ministério Público pede a condenação do réu. E,~ara pedi-Ia, obviamente lhe deve imputar a prática de um crime. 0 fato criminoso, pois, é a razão do pedido da condenação, a causa petendi. Não se concebe, por absurdo, uma peça acusatória sem que haja a causa petendi. Para que exista a ação, é preciso que se deduza uma pretensão e, ao mesmo tempo, que se aponte o seu fundamento, a sua razão de ser. Como bem diz Bonucci, a ação penal é "Ia richiesta o pretesa, da parte dello Stato, della protezione giurisdizionale penale di un rapporto giuridico violato " (Laccusa, p. 14).

Binding, por seu turno, ensina que o objeto do Processo Penal é o fato delituoso - "é il fatto che forina ogetto del processo penale" (Binding, apud Bettiol, La correlazionefra accusa e sentenza nel processo penale, Milano, 1936, p. 17). Como não se admite Processo Penal sem objeto, e se este é o fato, é curial deva a peça acusatória descrevê-lo.

A parte acusadora deve investir o Juiz do conhecimento de um fato, descrevendo-o, como bem afirma Beling, "alfine difacilitare il compito del giudice e dipermettere alVimputato dipreparare leproprie difese " (Beling, apud Bettiol, La correlazione, cit., p. 19).

Já o nosso João Mendes ensinava que a peça acusatória é uma exposiçao narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, apontado o seu autor (quis),

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os meios que empregou (quibus auxiliis), o mal que produziu (quid), os motivos (cur), a maneira como o praticou (quomodo), o lugar (ubi) e o tempo (quando) (cf. Processo criminal brasileiro, 4. ed., v. 2, p. 183)*.

Deve ser demonstrativa, porquanto o órgão do Ministério Público dá as razões do seu convencimento e indica as provas.

* Estas expressões contidas em antiga fórmula latina (Quis? Quid? Ubi? Quibus auxiliis? Cur? Quomodo? Quando?) correspondem à alemã: Wer? Was? Wos? Womit? Warum? Wie? Wann?, "expressivamente designada pelos sete W dourados da cri minalística".

383

1

De observar, contudo, que simples omissão de qualquer circunstância acidental não tem o condão de invalidar o requisitório, mesmo porque o Ministério Público, a todo tempo, antes da sentença final, poderá supri-Ia, nos termos do art. 569 do CPP. Aliás, o STF, em acórdão da lavra do Min. Edinundo Litiz, afirmou: A data e o lugar do crime são requisitos acidentais - meras circunstâncias do fato - os quais podem ser preenchidos depois... (Arquivo Judiciário, 14/127). Cumpre, ainda, advertir, na palavra do Min. Francisco Campos, que o CPP é infenso ao excessivo rigorismo formal que dava margem, no Direito anterior, a uma infindável série de nulidades processuais.

E bem verdade que sem tais circunstâncias a peça inicial da ação

li

penal não está, a rigor, perfeita. Mas, como explica Espínola Filho, o que se não justifica é levar o formalismo a ponto de rejeitar a ação penal, sob fundamento de inexistência, na queixa ou na denúncia, daquela ou daquelas circunstâncias (cf. Espínola Filho, Comentários, cit., v. 1, p. 420).

Nos crimes de autoria coletiva é muito comum o Promotor de Justiça não especificar, na peça acusatória, o modo de participação de cada um, preferindo uma maneira mais cômoda, com a expressão "atuando

de comum acordo e identidade de propósito Algumas decisões, in-clusive do STF, têm aceito denúncias assim nos crimes societários, semque haja a individualização da conduta dos sócios. A propósito, RSV,65/157, 68/91; RT, 713/402, 719/514. Mas, na advertência de ManoelPedro Pimentel, "se a responsabilidade penal é subjetiva, não pode recair indistintamente sobre todos os diretores, mas apenas sobre os quetiveram participação efetiva no fato delituoso" (Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, Revista dos Tribunais, 1987, p. 173). E, seassim é, a denúncia deve descrever a participação de cada um dos sócios

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ou diretores. Dispõe o art. 41 do CPP que a denúncia deve conter aexposição do fato criminoso "com todas as suas circunstâncias". Esseimperativo se vincula, por um lado, ao fato de que no Processo Penal aacusação corresponde aopedido do Processo Civil de conhecimento. Apartir dessa identificação, ensina J. Frederico Marques ser imprescindível que na imputação da denúncia "se fixe, com exatidão, a conduta doacusado, descrevendo-a o acusador, de maneira precisa, certa e bemindividualizada" (Elementos de direito processual penal, Rio de Janeiro, Forense, 1961, v. 2, p. 153).

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526, 7191518.

Essa exigência de descrição circunstanciada, contida no art. 41 do CPP, torna-se mais essencial se a acusação e dirigida a diversas pessoas ou, melhor dizendo, quando convivem, na denúncia, várias acusações, e muito especialmente se essas pessoas são reunidas pela circunstância de exercerem cargos de direção ou serem sócias de uma empresa. A propósito: "... sem a descrição de condutas específicas que vinculem cada diretor ao evento criminoso, não e possível viabilizar a denúncia. Esta, pelas cogsequencias graves que acarreta, não pode ser produto de ficção literária.^ Não pode deixar de descrever o porque da inclusão de cada acusado como autor, co-autor ou partícipe do crime" (STJ, RHC 4.2141, Rel. Min. Assis Toledo, DJU, 27-3-1995, EJSV, 121281).

"Os princípios do contraditório e da ampla defesa", diz o Ministro Vicente Cernicchiaro, "exigem imputação, de modo que o denunciado conheça o fato" objeto da acusação, o "que é válido também para os delitos coletivos" (STJ, RHC 4.727,6 a Turma, DJU, 20-11-1996, p. 39640-1).

No mesmo sentido, decisões outras do STJ: RT, 718/475, 715/

Apreciando a matéria, a 5. Turma do Colendo STJ, ao julgar o HC 5.647-SP, decidiu que: "1. Nos chamados crimes societarios, imprescindível que a denúncia descreva individualizadamente a participação de cada acusado; caso impossível, é preciso que descreva o modo como concorreram para o crime. 2. Ser acionista, sócio ou membro do conselho consultivo não é crime. Assim, a invocação dessa condição sem a descrição de condutas específicas não basta para viabilizar a peça acusatória, por impedir o pleno direito de defesa. 3. Inépcia da denúncia configurada. 4. Ordem concedida para trancar a ação penal quanto ao ora paciente" (Rel. Min. Edson Vidigal, DJU de 29-9-1997, p. 4823 1). Na verdade, a prática de incluir todos os sócios ou diretores de uma empresa em acusação criminal relacionada ao desempenho dessa empresa é mais que uma ilegalidade: é um equivoco que desserve a própria Justiça Criminal, e é equívoco de muitas faces.

Tem-se admitido, também, a denúncia alternativa. Assim, quando o Promotor de Justiça, em face das provas colhidas no inquérito, tem dúvida, entre duas condutas, sobre qual deva ser imputada,

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diz-se, pode ele atribuir ambas ao réu. Por exemplo, na dúvida quanto a ter havido receptação dolosa ou culposa. Há, por outro lado, entendimento contrário. Nas Mesas de Processo Penal, realizadas na Faculdade do Largo de

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São Francisco, sob a coordenação da Prof.a Ada Pellegrini Grinover, Juízes do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo deixaram assentado na Súmula 1 que "a acusação deve ser determinada, pois a proposta a ser demonstrada há de ser concreta. Não se deve admitir denúncia alternativa, principalmente quando haja incompatibilidade lógica entre os fatos imputados".

B) Qualificação do acusadoNa denúncia, o órgão do Ministério Público deve fixar a relação de causalidade entre o fato criminoso e o suposto culpado. E, ao fazê-lo, deve individualizar a pessoa do acusado, a fim de saber contra quem será instaurado o processo. Qualificação, diz Tornaghi, é o ato de qualificar e, por extensão, o conjunto de qualidades que individuam a pessoa (cf. H. Tornaghi, Comentários, cit., v. 1, p. 210).Individualiza- se a pessoa pelo prenome, nome, apelido, pseudônimo, idade, estado civil, profissão, filiação, residência. 0 problema da qualificação do acusado é de suma importância, porquanto, em se tratando de qualidade personalíssima, não pode ser atribuída a outra pessoa que não a verdadeira culpada. Ensina, com autoridade, Carnelutti: "No puede haber, sin un imputado, un juicio penal, puesto que éste se hace, no confines teóricos,para resolver una duda, sino confines prácticos, para infligir una pena " (F. Carnelutti, Lecciones, cit., v. 1, p. 195).As circunstâncias identificatórias devem coincidir com a pessoa do verdadeiro culpado. Por isso, salvo raríssimas exceções, será temeridade indicar apenas o nome e prenome. Todos conhecem os freqüentes casos de homonímia. Quantos Antônio da Silva não existem por aí? E a homonímia pode acarretar vexames e sobressaltos.

Se, porventura, não for possível determinar a identidade do acusado pela formajá indicada, o Ministério Público pode apontar os esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo. Calcado no

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dispositivo legal retro, esclarece Espínola Filho: No que tange à qualificação do acusado, não impede a instauração da ação penal o fato de ser desconhecida a sua identificação completa; desde que se possam mencionar traços característicos, pelos quais se lhe faculte a individuação futura, permitindo distingui-lo dos outros homens, a queixa ou a denúncia é de ser recebida.Esses traços característicos devem ser suficientes para distinguir o verdadeiro culpado. Se não forem bastantes para distingui-lo das demais pessoas, nenhuma valia terá o requisitório. Não faz muito tempo, em uma comarca do interior (e os jornais noticiaram a ocorrência), o

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Promotor, à míngua de outros dados identificatórios, apresentou denúncia contra "Fulano de Tal, preto, alto e magro", sem aduzir outros elementos de identificação. Rejeitando-a, o Juiz, com acerto, observou que Fulano de Tal é indicação vaga de pessoa incerta que impede até mesmo a citação inicial, impossibilitando o andamento do feito. A referência 4'preto, alto e magro" é tão vaga que um hipotético prosseguimento do processo poria em perigo o sossego e a liberdade de todos os pretos, altos Spagros.E mais recentemente, em Pimenta Bueno, Rondônia, denunciou-se "Antônio, brasileiro, alto, moreno escuro, cabelos crespos, um pouco magro, barba e bigode fechados, olhos escuros, com aproximadamente 36 anos, lavrador, faltando um dente no maxilar superior" (Processo n. 3.549/9 1).

Se não for possível individualizar o acusado, nem mesmo com esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, não pode o Ministério Público apresentar a denúncia, e não pode pelas razões tão bem expostas por Fenech: "El proceso en sentido propio exige para su viabilidad la existencia de las Partes necesarias o esenciales, una de las cuales es el imputado, y malpuede cumplirse esta condición cuando no se conoce la persona a quien deba atribuirse esta calidad" (M. Fenech, Derecho, cit., p. 419).Todavia, se o crime for cometido por várias pessoas, não se podendo de maneira alguma identificar ou apontar os sinais característicos de algumas delas, nada impede seja a denúncia apresentada contra as conhecidas, e, posteriormente, se forem aquelas identificadas, poderá o Ministério Público apresentar outra denúncia contra aquelas que, a principio, não eram conhecidas ou, dependendo da fase em que se encontrar o processo, fazer um aditamento ao requisitório.

"0 presente processo está nulo ab initio. Foi processado como autor de um crime de sedução um indivíduo completamente desconhecido", circunstância esta que já vinha apontada no relatório do inquérito policial de fis. A denúncia, contrariando, expressamente, o dispositivo do art. 41 do CPP, acusa um réu "não qualificado", cuja identidade física não menciona (D. A. Miranda, Repertório, cit., ri. 4.239).

C) Classificação do crime

A classificação do crime, exigida pelo art. 41 do CPP, nada mais é senão a indicação do dispositivo legal que descreve o fato criminoso.

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Classificando o crime na denúncia, o Ministério Público está, apenas, indicando o dispositivo legal em cuja pena se encontra incurso o acusado. Não basta, preleciona Tornaghi, a simples indicação do nomenjuris, pois sob a mesma denominação podem aparecer crimes diferentes, como a calúnia prevista no CP e a calúnia prevista na Lei de Imprensa.0 art. 41 do CPP erige à categoria de requisito essencial da denúncia a indicação da norma penal violada.

Vale salientar, entretanto, que uma errada classificação do crime não tem a força de invalidar a denúncia. Se o Promotor de Justiça classificar o crime erradamente, o Juiz, ao tomar conhecimento da peça acusatória, não poderá rejeitá-la sob tal aspecto. Não será esse o momento propicio para a apreciação do verdadeiro dispositivo violado, mesmo porque o Juiz não fica vinculado à classificação do crime feita na denúncia.

Assim também se houver uma capitulação excessiva. Se o Promotor, na denúncia, imputa ao réu o crime contra a ordem tributária e o1

crime de falsidade (meio utilizado para a sonegação), embora ofalsum

seja absorvido pelo crime de sonegação, essa circunstância não é motivo

C11 1%q para se rejeitar a peça acusatória, ou anulá-la, via habeas

corpus. E istopor uma razão muito simples: o momento oportuno para o Juiz

apreciara classificação do crime e lhe dar a correta qualificação

jurídico-penal é9,, é fixado no art. 383 do CPP, vale dizer, quando da prolação da

sentença.Ademais, não haverá prejuízo para o réu.

E Frederico Marques, com apoio em Hugo Alsina, doutrina:... irrelevante, para isso, é que a classificação do crime esteja exata e

certa. 0 perfeito enquadramento da espécie, nas normas legais que so

bre ela incidem, é tarefa do magistrado: narra mihi factum dabo tibi

. " ",: 1 jus" (Elementos, cit., v. 2, p. 158).

. 1 ~ 1Não obstante o momento propício para o Juiz dar a

perfeita qualificaçãojurídico-penal ao fato seja o da prolação da sentença

(art. 383 doCPP), o certo é que, em determinadas hipóteses, ele não só

pode comodeve fazê-lo no ato do recebimento da peça acusatória. Assim,

se o Promotor classifica o homicídio como qualificado, descabe a

liberdade pro

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visória de que trata o parágrafo único do art. 3 10, em face do que dispõe

o art. 2.', 11, da Lei n. 8.072/90. Sendo simples, não haverá outro empe

cilho a não ser aquele imposto pelo próprio parágrafo do citado disposi

tivo. É lícito ao Juiz, portanto, no momento do despacho liminar, anali

sar e investigar com escrúpulo a pretensa qualificadora, para evitar que

o cidadão sofra injustificável restrição no seu direito de liberdade. Aliás,

í1 388

ao tempo em que vigorava, entre nós, a prisão preventiva obrigatória, Frederico Marques observava: "A qualificação do fato delituoso, na denúncia, só por si não basta para autorizar a prisão obrigatória_" (Elementos, cit., v. 4, p. 5 1). Mutatis mutandis é o que se dá quanto aos homicídios qualificados, por exemplo. Se o homicídio simples permite a liberdade provisória, cumpre ao Juiz perquirir se há ou não, nos autos, prova da qualificadora que autorizaria a negativa da liberdade provisória.

D^ol de testemunhasDiz o art. 41 do CPP: "A denúncia deverá conter.... quando necessário, o rol das testemunhas".Apresentando a denúncia, cumpre ao órgão do Ministério Público procurar provar o fato alegado por quaisquer meios de prova permitidos em Direito. 0 art. 399 do CPP, por outro lado, permite ao órgão do Ministério Público e ao querelante, quando do oferecimento da denúncia ou queixa, requererem as diligências que julgarem convenientes.Pois bem: se o Promotor de Justiça quiser provar o fato por meio de documentos, poderá apresentá-los em qualquer fase do processo, conforme dispõe o art. 400 do CPP, havendo apenas aquelas duas restrições referidas pelos arts. 406, § 1% e 475, todos do CPP. Se pretende provar o fato com testemunhas, cumpre-lhe arrolá-las na peça inauguraT da ação penal, vale dizer, na denúncia. Não as apresentando naquela oportunidade, não lhe será lícito fazê-lo posteriormente. Poderá, sim, requerer substituição de testemunha não encontrada, mas a substituição pressupõe tenha sido arrolada testemunha na denúncia (CPP, art. 397). Poderá requerer a audiência de testemunha referida (art. 499). Nunca, porém, arrolar testemunha em outro momento processual que não o da apresentação da denúncia. É certo que já se decidiu, por meio de correiçao parcial, ser lícito ao Promotor arrolar testemunhas, embora não o tenha feito quando do oferecimento da peça vestibular da ação penal, invocando-se o art. 569 do CPP. Data venia, não nos parece acertado esse ponto de vista. 0 art. 569 não tem, na espécie, qualquer aplicação.Nos procedimentos escalonados, como ocorre nos crimes da competência do Júri, poderá o Promotor arrolar testemunhas, sem que o tenha feito na denúncia (art. 417, § 2.'), mas a hipótese é por demais difícil de se concretizar, porquanto não se concebe que em crimes da competência do Júri o Promotor não venha a arrolar suas testemunhas na peça inicial. Entretanto, de qualquer forma, poderá arrolar, no libelo, as mesmas testemunhas já ouvidas, ou outras.

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k,

Veja-se, também, a exceção prevista no art. 523 do CPP.

0 art. 41 diz: "e, quando necessário, o rol das testemunhas". Não haverá, pois, obrigação de o Ministério Público apresentar o rol de testemunhas na denúncia. Ele o fará, entretanto, quando entender que o fato deva ser provado com elas. Tratando-se, por exemplo, de falso testemunho, poderá, conforme o caso, ser dispensado o rol. Todavia, grosso modo, é por meio de testemunhas que o orgão estatal da acusaçao procura provar a procedência da denúncia. Em regra, as testemunhas arroladas na denúncia são as ouvidas perante a Autoridade Policial. Mas nada impede possa o Ministério Público indicar outras.

Quantas testemunhas poderão ser arroladas na denúncia? Cumprenos salientar, de logo, inexistir exigência quanto ao mínimo, podendo-se até deixar de arrolar, como já vimos. Quanto ao máximo, há limitações. Quando a pena cominada ao crime for de reclusão, o Ministério Público poderá arrolar até 8 testemunhas, sendo indiferente haja, no mesmo processo, um, dois, ou três acusados (art. 398); se de detenção, ainda que alternada com a de multa, o número máximo é de 5 (art. 539, infine); tratando-se de contravenção, o número será de 3 (art. 533, infine).

Nos denominados "processos especiais", a despeito de a pena cominada ao crime ser de detenção, o Promotor de Justiça ou o querelante (ação privada) poderá arrolar até 8 testemunhas. E o que ocorre nos crimes falimentares (CPP, art. 512); nos crimes de responsabilidade de funcionário público, quando o processo for da competência do Juiz singular (CPP, art. 518); nos crimes de calúnia, difamação ou injúria (CPP, art. 519); nos crimes contra a propriedade imaterial (CPP, art. 524); nos crimes de infanticídio e de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (CP, arts. 123 e 124 c/c o art. 398 do CPP).

Por outro lado, há crime apenado com reclusão cujo numero máximo de testemunhas não pode exceder a 5 (entorpecentes, Lei n. 6.368, de 21-10-1976).

Uma advertência se impõe: não se computará como testemunha a pessoa que nada souber que interesse à decisão da causa (CPP, art. 209, § 2.'), nem aquela que não prestar compromisso ou as referidas (CPP, art. 398, parágrafo único, c/c o art. 208 do mesmo estatuto).Embora silencie o art. 41 do estatuto processual penal, há outras exigências de ordem formal. É claro, por exemplo, deva a peça inaugural da ação penal indicar o Juiz a quem é dirigida. Procurado o Juiz competente, de acordo com as normas sobre competência fixadas na

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Constituição, no CPP e nas leis sobre Organização Judiciária, o acusador a ele se dirige. Nesse cabeçalho da denúncia não se indica a pessoa física do Juiz, mas o órgão Jurisdicional com competência para o julgamento da respectiva pretensão. Desse modo, a denúncia deve ser dirigida ao Juiz de tal Vara ou de tal Comarca ou a Presidente deste ou daquele Tribunal.

Deve, também, ser escrita em vernáculo. Embora não haja, entre nós, dispositivo semelhante ao art. 109 do atual Codice di Procedura PenqW. "gli atti del procedimento penale sono compluti in lingua italiana", o que se infere do nosso diploma processual, notadamente dos arts. 193, 223, 236 e 784, § 1.', é que os atos processuais devem ser praticados em português, que é a língua pátria.A denúncia precisa ser subscrita pelo órgão do Ministério Público que tiver atribuições para funcionar no juízo do qual invoca a prestação jurisdicional, salvo se o Chefe da Instituição, o Procurador-Geral de Justiça, com os poderes de que dispõe, indicar um outro membro da Instituição para fazê-lo.Deve, também, o órgão do Ministério Público requerer, na peça acusatória, a citação do réu, a fim de comparecer em juízo para ser interrogado e, enfim, para defender-se da acusaçao que contra ele se formula.

Atendendo a todos esses requisitos, a denúncia está formalmente regular.Alguns desses requisitos são indispensáveis: a exposição do fato criminoso, a individualização do culpado, a escrita em vernáculo, a assinatura do Promotor de Justiça, o pedido de citação do réu, a indicação do Juiz ou Tribunal a que é dirigida. Outros, como rol de testemunhas e classificação da infração, não se revestem de tanta importância. Quanto ao rol de testemunhas, pode até o Promotor deixar de oferecê-lo, se bem que, da sua omissão, podem advir amargas decepções. No que tange à classificação do crime, é, já se disse, irrelevante, esteja certa, em face do princípio da livre dicção do direito, consagrado no art. 383 do CPP.

Ausentes aqueles requisitos essenciais, a denúncia toma-se formalmente inepta e, por isso mesmo, pode ser rejeitada.

4. Prazo para o oferecimento da denúncia

A matéria vem disciplinada no art. 46 do CPP:

"0 prazo para oferecimento da denúncia, estando o réupreso, será de cinco dias, contado da data em que o orgão do

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1

Ministério Público receber os autos do inquérito policial, e de quinze dias, se o réu estiver solto ou afiançado. No último caso, se houver devolução do inquérito à autoridade policial (art. 16), contar-se-á o prazo da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos".

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Concluído o inquérito e remetido a juizo, será distribuído e registrado. A distribuição nada mais é do que a repartição eqüitativa dos processos judiciais entre Juízes e Escrivães. Feita a distribuição, sabese qual o Cartório onde o inquérito tramitará, se, por acaso, na Comarca houver um só Juiz. Havendo mais de um, a distribuição indicará a Vara1e o Cartório. Após a distribuição, vem o registro, ato por meio do qual se documenta a entrada do inquérito em juízo.Após a distribuição e registro, o Escrivão, sem qualquer outra providência, encaminha os autos do inquérito ao Juiz, e este, de regra, profere o seguinte despacho: "Vista ao Ministério Público", significando que o Escrivão deve apresentar os autos do inquérito ao Promotor de Justiça, a fim de que este se pronuncie a respeito. Encaminhados os autos ao Promotor, este poderá tomar uma das seguintes providências: a) oferecerá denúncia; b) requererá que os autos permaneçam em cartório, aguardando a iniciativa do ofendido, nos termos do art. 19 do CPP, se se tratar de crime de alçada privada; c) requererá a decretação da extinção da punibilidade; d) requererá o seu arquivamento; e) poderá requerer sua devolução à Polícia, para novas diligências imprescindíveis ao oferecimento da peça acusatória;f) poderá argüir algum fato que tome inviávei a relação processual, tal como coisajulgada, litispendência e até mesmo incompetência do juízo e, de conseqüência, falta de atribuições para emitir seu pronunciamento.

Qualquer uma dessas providências deve ser tomada dentro do prazo fixado pelo art 46.Denúncia. Entendendo o Promotor de Justiça que os autos fornecem elementos idôneos para a propositura da ação penal, deverá ofertar a denúncia dentro de 5 dias, se o indiciado estiver preso, ou de 15, se solto estiver. Tais prazos devem ser contados a partir da data do recebimento do inquérito. A regra geral, em matéria de prazo processual, é a de que não se computa o dia do começo, incluindo-se, Porém, o do vencimento (CPP, art. 798, § U). 0 art. 46, entretanto, não se refere a início do Prazo; refere-se à sua contagem, salientando que o prazo é contado a partir da data em que o órgão do Ministério Público recebe os

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autos do inquérito. Trata-se, como diz Tornaghi, de lex specialis e que por isso derroga a lex generalis. Note-se que o art. 800, § 2.', do CPP estabelece que os prazos para o Ministério Público serão contados do termo de vista, salvo quanto à interposição de recurso.

Dentro, pois, do qüinqüídio legal, deve o Ministério Público apresentar a peça vestibular da ação penal. Estando solto o indiciado, o prazo para oferecimento da denúncia será de 15 dias, contado da data em

1que o

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.,#rgao do Ministério Público receber os autos do inquérito.0 dispositivo em exame cuida, na segunda parte, da possibilidade de os autos do inquérito retomarem à Polícia. In verbis: "No último caso, se houver devolução do inquérito à autoridade policial, contarse-á o prazo da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos". A expressão "último caso" refere-se, evidentemente, à hipótese de estar o indiciado solto. No verbete Devolução do inquérito, cuidaremos do assunto. Se o Promotor de Justiça requerer a devolução do inquérito à Polícia, fato que pode acontecer se o indiciado estiver solto, conforme a linguagem da segunda parte do art. 46 do CPP, o prazo de 15 dias para ofertar denúncia será contado a partir do dia em que receber novamente os autos do inquérito.

Cumpre observar que existem prazos especiais para a oferta da denúncia. Assim, por exemplo, em se tratando de crime eleitoral, o prazo é de 10 dias, consoante o art. 357 do Código Eleitoral. Ali não se cuida da hipótese de estar o indiciado preso (a hipótese e rara, mas pode acontecer). Neste caso, cremos que é de se aplicar a regra do art. 46 do CPP, que é subsidiário do Código Eleitoral. Tratando-se de crime de imprensa, a denúncia deve ser oferecida no prazo de 10 dias, segundo dispõe o art. 40 da Lei ri. 5.250, de 9-2-1967. Em sendo crime contra a economia popular, o prazo é de 2 dias, pouco importando esteja solto ou preso o indiciado (Lei n. 1.52 1, de 26-12-195 1, art. 10, § 2.); cuidando-se de crime falimentar, é preciso distinguir: se se tratar de falência cujo passivo seja igual ou superior a cem vezes o maior salário mínimo vigente no País (redação dada pela Lei ri. 4.983, de 18-5-1966), o prazo para a denúncia ser ofertada ao Juiz da falência será de 5 dias (Lei de Falências, art. 109); se se tratar de falência cujo passivo seja inferior àquela quantia, o prazo para a denúncia ser oferecida perante o Juiz da falência será de 3 dias (art. 200, § 5.', da respectiva lei). Conforme ressaltamos com os grifos, esses prazos devem ser observados para o oferecimento da denúncia perante o Juiz falencial. Nada impede possa o Ministério Público, a qualquer tempo, enquanto não estiver extinta a

393

i

punibilidade, oferecê-la no juízo criminal, conforme dispõe o art. 194 do estatuto falitário. Menos no Estado de São Paulo, em face do art. 15 da Lei estadual n. 3.947, de 8-12-1983, que determina sejam as ações por crimes falimentares e as que lhe sejam conexas processadas no respectivo juízo universal da falência. Vej a-se, a propósito, no 4.' volume desta obra, o verbete Procedimento dos crimes falimentares.

Nos crimes de abuso de autoridade, a denúncia deve ser ofertada em 48 horas, nos termos do art. 13 da Lei n. 4.898, de 9-12-1965. Nos crimes definidos na Lei ri. 6.368, de 21-10-1976, com exceção dos previstos nos arts. 12, 13 e 14, o prazo é de 3 dias, pouco importando se o indiciado está solto ou preso. Nas hipóteses previstas

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nos arts. 12, 13 e 14, por força do contido no art. 10 da Lei n. 8.072, de 25-7-1990, o prazo é contado em dobro; logo, 6 dias.Por outro lado, o § 1.' do art. 46 do CPP dispõe:

"Quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informações ou a representação".

0 inquérito policial, já sabemos, não é uma peça necessariamente indispensável a fim de que o Ministério Público possa oferecer denúncia. Grosso modo, o inquérito é o instrumento que serve de embasamento ao Promotor de Justiça para iniciar apersecutio criminis injudicio, uma vez que, normalmente, é nele que o Ministério Público encontra elementos para a propositura da ação penal.

,0 , ~Que não há, sempre e sempre, indeclinável necessidade de inqué-

rito para a propositura da ação penal, di-lo o próprio § 1.' do art. 46, ora[.1 , 0, em exame, quando ressalta a possibilidade de o órgão do MinistérioPúblico dispensá-lo para oferecer denúncia. E o órgão do Ministério Públicoo dispensará em dois casos: a) quando recebe as peças de informação;b) quando recebe a representação. Vejamos:a) Qualquer pessoa do povo pode, sendo o crime de ação pública

incondicionada, provocar a iniciativa do Ministério Público, levando-lheao conhecimento a notitia criminis. Se as informações fornecidas nãolhe possibilitarem iniciar a ação penal e a pessoa (informante) não pudercomplementá-la suficientemente, o órgão do Ministério Público, então,encaminhará a informação à Autoridade Policial, requisitando a abertura de inquérito, nos termos do art. 5.', 11, do CPP. Mas, se as informa-

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ções fornecidas forem suficientes à propositura da ação penal, o órgão do Ministério Público deverá iniciá-la, oferecendo a denúncia.b) Quando se tratar de crime de ação pública dependente de representação, esta poderá ser feita diretamente ao Ministério Público (CPP, art. 39, § L'), e, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, o órgão do Ministério Público promovê-la-á, dispensando-se, nessa hipótese, o inquérito policial (CPP, art. 39,1¥.§ 5.").

Nessas duas hipóteses (a e b), o prazo para oferecimento da denúncia será de 15 dias, porquanto se trata, evidentemente, de indiciado solto. Tal prazo começa a fluir da data em que o Ministério Público receber as informações ou a representação. Pergunta-se: como se fixar a data para a fluência do prazo? Diz a lei: a partir da data em que o Ministério Público receber as informações ou a representação (art. 46, § 1.0).

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Como se fixar essa data se as peças de informação e a representação são entregues ao Ministério Público por particular? Uma das Câmaras do Tribunal de Justiça do antigo Distrito Federal já alvitrou dever o Promotor de Justiça dar recibo, a fim de evitar dúvidas quanto à aplicação dos arts. 29 e 801 do CPR Entendemos que o órgão do Ministério Público, ao receber as peças de informação ou a representação, deverá dirigir-se ao Juiz, solicitando-lhe a sua remessa à distribuição. Nada obsta sejam elas distribuídas como se fossem inquéritos. Com tal providência, quando o Cartório as remeter ao órgão do Ministério Público, a partir de então começará a fluir o prazo (CPP, art. 800, § 2.). Ademais, procedendo-se à distribuição, identificar-se-a o orgão do Ministério Público com atribuição para apreciar as peças de informação ou representação, se, na Comarca, houver mais de uma Vara Criminal.

5. Denúncia fora do prazo

Já sabemos que, estando o indiciado preso, o prazo para o oferecimento da denúncia é de 5 dias, e será de 15, se estiver solto.

Se estiver preso e o órgão do Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo de 5 dias, várias conseqüências podem advir da sua inércia: a) 0 indíciado, ou alguém por ele, poderá impetrar uma ordem de habeas corpus, alegando estar preso por mais tempo que o determinado em lei, nos termos do art. 648, 11, do CPP. Nesta hipótese, haverá um indisfarçável constrangimento ilegal, corrigível por meio de habeas corpus, caso o Juiz não se antecipe com a expedição de alvará de soltu-

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ra. Esta a lição dos nossos Tribunais. Espíriola Filho, a propósito, ensina: É de salientar que, estando o indiciado preso, o não-oferecimento da denúncia, nos 5 dias, faz se torne ilegal o constrangimento a que está submetido, pelo que deverá ser solto até mediante habeas corpus (cf. Comentários, cit., p. 440). b) A vítima ou a pessoa que legalmente a represente poderá dar início à ação penal, por meio de queixa, substituindo, assim, o Promotor desidioso, nos termos do art. 29 do CPP. c) 0 Promotor, dada a sua incúria, perderá, nos termos do art. 801 do CPP, tantos dias de vencimentos quantos forem os excedidos. d) Poderá ainda, conforme o caso concreto, incorrer o órgão do Ministério Público faltoso nas sanções do art. 319 do CP (prevaricação).Vale salientar que não socorre o Ministério Público o disposto no § 3.' do art. 800 do CP, pois que esse dispositivo se refere exclusivamente ao Juiz.Se houver um indiciado solto e outro preso e deva ser instaurado um só processo contra ambos (casos de conexão ou continência), o prazo para oferecimento da denúncia será de 5 dias.Se, entretanto, o indiciado estiver solto, o prazo para a oferta da denúncia será de 15 dias. Caso o órgão do Ministério Público deixe de apresentá-la no prazo legal, poderão advir aquelas conseqüências apontadas para a hipótese de não-oferecimento de denúncia no prazo legal, quando preso estiver o indiciado, salvo a possibilidade de ser impetrada ordem de habeas corpus.

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Todavia, é bom que se diga, em qualquer caso, se o Promotor deixar de oferecer denúncia no prazo legal e se a vítima ou quem legalmente a represente não vier suprir a sua inércia, com o oferecimento de queixa, nos termos do art. 29 do CPP, o órgão do Ministério Público, a todo tempo, enquanto não estiver extinta a punibilidade, poderá ofertar denúncia, sujeitando-se, contudo, às sanções disciplinares e, se for o caso, à apuração da sua responsabilidade criminal, mesmo porque não há decadência para a oferta da denúncia.

kw , .1 lu , 11.

Muitas vezes inexistem, nos autos do inquérito policial, certos elementos imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Nesses casos, o órgão do Ministério Público poderá requerer ao Juiz sua devolução à Delegacia de origem, a fim de ser realizada a diligência tida como imprescindível. É preciso, pois, que a diligência seja imprescindível, como,

6. Devolução do inquérito

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aliás, salienta o art. 16 do CPP: "0 Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia".E comum, entretanto, o Promotor de Justiça requerer a devolução dos autos do inquérito à Polícia para a realização de uma diligência que poderia ser requerida ao próprio Juiz, quando do oferecimento da denúncia, nos termos do art. 399 do CPP.A,irigor, a devolução só poderá ocorrer na hipótese do art. 16 do estatuto processual. E se a diligência não for imprescindível ao oferecimento da denúncia e o Promotor requerer a devolução dos autos à Polícia? Diz Tornaghi, com acerto, que a única consequencia sera um despacho do Juiz indeferindo o pedido.E, se o Promotor entender que a diligência é imprescindível, poderá o Juiz indeferir o pedido de devolução dos autos à Polícia? Entendemos que não, porquanto o dominus litis é o Ministério Público. A ele cabe formar a opinio delicti.Suponha-se que a Autoridade Policial não tenha qualificado o indiciado, por haver este desaparecido, nem mesmo o fazendo indiretamente, dando-lhe os sinais característicos, sem embargo de uma testemunha haver salientado conhecê-lo. 0 Promotor deverá requerer a devolução dos autos à Polícia, a fim de que a Autoridade Policial reinquira aquela testemunha sobre os dados característicos do indiciado. Tal diligência é imprescindível, porque o órgão do Ministério Público não poderá iniciar a ação penal senão contra determinada pessoa. Sem imputação não pode haver processo. Há, pois, manifesta necessidade de se indicar a pessoa contra quem se propóe a aqáo penal. "El llamado proceso penal contra ignorados, es una investigación preliminar al juicio, pero no un juicio penal, el cual sin imputacion no se puede hacer" (Carnelutti, Lecciones, cit., p. 193).Se, por acaso, o Juiz indeferir o pedido de devolução do inquérito à Polícia, para diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, poderá o Promotor interpor "correição parcial". Nesse sentido, os julgados insertos na RT, 288/51, 318/282 e 4551402.

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Entretanto, em Comarcas de pouco movimento, é muitas vezes preferível o Promotor de Justiça requisitar diretamente à Autoridade Policial a feitura da diligência, consoante lhe permite o art. 13 do CPR Já nas grandes Comarcas, se não houver possibilidade de o Promotor de Justiça conseguir, diretamente, a realização da diligência, nos termos do art. 13 ou 47 do CPP, em tempo diminuto, outro recurso não lhe restará senão requerer ao Juiz a devolução do inquérito.

397

o !",: ~-,

Se o indiciado estiver preso, poderá o órgão do Ministério Público requerer a devolução dos autos do inquérito à Polícia, para novas diligências? Pela redação do art. 46 do CPP, não. A segunda parte do referido artigo dispõe: "No último caso, se houver devolução do inquérito à

autoridade policial A expressão "último caso" refere-se, evidente-mente, à hipótese de estar o indiciado solto ou afiançado. Assim, emface do art. 46 do CPP, a devolução do inquérito à Polícia somente serápossível se o indiciado estiver em liberdade. E por que isso? Na fase dasinvestigações policiais, o indiciado só poderá ser preso em duas hipóteses: a) no caso de flagrante delito; b) na hipótese de ser decretada suapreventiva, nos termos do art. 311 do CPP.No caso de flagrante, que é a certeza visual do crime, presume-se terem sido colhidos todos os dados necessários à propositura da ação penal. Nem sequer pode haver dúvida quanto à autoria. Para que o Juiz decrete a prisão preventiva, há necessidade indeclinável, nos próprios termos do art. 312 do CPP, de prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria. Nestas condições, estando preso o indiciado, o órgão do Ministério Público não terá, em princípio, razões para requerer a devolução do inquérito, para diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia.Se os autos do inquérito forneceram elementos para a decretação da prisão preventiva, melhormente os terá para o oferecimento da denúncia. De notar que a lei é mais rigorosa no traçar os requisitos para a decretação da preventiva do que para a propositura da ação. A lei exige, como pressupostos da medida vexatória, no art. 312 do CPP, prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Estes são os que se avizinham da certeza. Para a denúncia, basta o fumus boni juris, a fumaça do bom direito. Se houver elementos mais ou menos idôneos quanto ao fato e autoria, já pode o Ministério Público dar início à ação penal.

Hoje, os nossos Tribunais vêm entendendo, com acerto, aliás, que, se o Juiz decretar a prisão preventiva e os autos do inquérito forem devolvidos à Polícia, pode o indiciado impetrar ordem de habeas corpus, com fundamento no art. 648, 11, do CPP.

E se, por acaso, mesmo estando preso o indiciado, entender o Promotor ser necessária a realização de uma diligência, sem o que não poderá oferecer denúncia? A hipótese é rara, mas pode acontecer.

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Nas Comarcas de pouco movimento, dentro do prazo de 5 dias, poderá o Promotor dirigir-se diretamente à Autoridade Policial, nos termos do art. 13 do CPP, requisitando a feitura da diligência, que deverá ser rea-

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lizada em tempo exiguo, de molde a possibilitar-lhe a oferta da denúncia no prazo fixado pelo art. 46. Entretanto, se tal não for possível, outro caminho não lhe restara senão requerer a devolução do inquérito, relaxando-se, neste caso, a prisão.

Muito a propósito, os § § 2.0 e 3.' do art. 231 do Regimento Interno do STF. Assim também o art. 217, § V, b, do Regimento Interno do STJ, verbis:

,o,

"As diligencias complementares não interromperão o prazo, se o relator, ao deferi-las, determinar o relaxamento da prisão".

No mesmo sentido, o art. 207, § 1% do Regimento Interno do TRF da 4.' Região, o art. 204, § 3.', do Regimento Interno do TRF da 1.` Região, o art. 195, § 3.', do Regimento Interno do TRF da 3.' Região e, dentre outros, o § 2.' do art. 538 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Idêntico procedimento deve ser observado em qualquer juízo.

7. Extinção da punibilidade

Recebendo os autos do inquérito ou peças de informação, pode o Promotor de Justiça entender que já se extinguiu a punibilidade, pela prescrição ou por outra qualquer causa. Nesse caso, cumpre-lhe requerer ao Juiz seja proferida decisão nesse sentido.

8. Guarda em cartório

Pode acontecer que o inquérito policial verse sobre crime de exclusiva ação penal privada. Recebendo-o, deve o Promotor de Justiça, nos termos do art. 19 do CPP, requerer que os autos do inquérito permaneçam em Cartório, aguardando a iniciativa da vítima ou de quem de direito.

9. Inviabilidade da relação processual

1

Se o Promotor de Justiça, analisando os autos do inquérito, concluir que o indiciado, pelo mesmo fato, está sendo processado naquela mesma Vara ou em outra, deverá abster-se de oferecer denúncia, argüindo a existência de litispendência. 0 réu não pode responder a dois processos pelo mesmo fato. Ne bis in idem. Se, por acaso, o Promotor concluir que o indiciado i à foi absolvido ou condenado pelo mesmo fato, restar-lhe-a requerer seja reconhecida a coisajulgada. Se entender que

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i

o crime se consumou em outra Comarca, ou se a competência já se firmou pela prevenção ou por precedente distribuição (CPP, arts. 75, parágrafo único, e 83), abster-se-á de oferecer denúncia, requerendo a remessa dos autos do inquérito ao juízo competente. Da mesma forma agirá se o crime for da competência de outra Justiça. Por exemplo: na Comarca de Bauru o Delegado instaurou inquérito para apurar um crime contra a organização do trabalho. Remetido o inquérito ajuízo, o Promotor, sabendo que tal crime é da alçada da Justiça Federal, nos termos do art. 109, VI, da Magna Carta, requererá sua remessa à Justiça Federal.

10. Arquivamento do inquérito

li:

Já vimos que a ação penal pública incondicionada é regida por vários princípios: oficialidade, indivisibilidade, indisponibilidade e legalidade ou obrigatoriedade. Sujeita-se aos mesmos princípios a ação penal pública condicionada, uma vez satisfeita a condição. Impondo o princípio da legalidade ou obrigatoriedade a promoção da ação penal, quer dizer que o Ministério Público deve, sempre e sempre, promovê-la? Evidentemente não. Quando o art. 24 do CPP diz que a ação penal será promovida por denúncia do Ministério Público, outra coisa não quer dizer senão que este, nos crimes de ação penal pública incondicionada, ou condicionada, presente a condição, deve oferecer denúncia, se satisfeitos aqueles pressupostos gerais de que falava Florian: autoria conhecida, fato típico e provas mais ou menos idôneas a respeito da relação da causalidade. Se, por exemplo, o fato investigado for atípico; se a autoria for ignorada; se os autos do inquérito ou peças de informação não fornecerem elementos de convicção mais ou menos sérios, é óbvio que o Ministério Público não poderá oferecer denúncia. Nesses casos, cumprir-lhe-á requerer ao Juiz o arquivamento do inquérito, das peças de informação ou da representação.Deverá, entretanto, o Ministério Público fundamentar o pedido de arquivamento, isto é, mostrar as razões de seu proceder. Se, porventura, o Juiz discordar do Pedido de arquivamento, remeterá o inquérito ou as peças de informação ou a representação ao Procurador-Geral de Justiça, a fim de submetê-lo à sua apreciação. Se o Procurador entender que a razão estava com o Promotor, insistirá no pedido de arquivamento, ficando o Juiz obrigado a atender ao pedido; arquivar-se-á, então, o inquérito, ou a peça de informação ou a representação. Entretanto, se o Pro-

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curador-Geral julgar o Promotor falto de razões, isto é, achar que não havia motivo para ser requerido o arquivamento, o próprio Procurador poderá oferecer a denúncia, ou, então, designar outro órgão do

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Ministério Público para oferecê-la. E a regra que se contém no art. 28 do CPP.

"Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denuncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o Juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao Procurador-Geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o Juiz obrigado a atender".

De observar, entretanto, que alguns Promotores, ao requererem o arquivamento, usam de um laconismo ímpar: "pelo arquivamento", quando, na verdade, a lei exige seja o pedido fundamentado, como se percebe pela análise do art. 28: "o Juiz, no caso de considerar improcedentes as

razões invocadas A lei fala, pois, em razões invocadas, significandoque o órgão do Ministério Público deve apresentar as razões que o levarama pedir o arquivamento. Em uma palavra: deve fundamentar o pedido.0 art. 28 do CPP, ora invocado, comporta alguns esclarecimentos e suscita algumas indagações:L') Se o Ministério Público é o dominus litis, se ele pode e deve apreciar a viabilidade da ação penal, por que, ao pedir o arquivamento do inquérito, pode o Juiz discordar do Promotor? Não deveria o Juiz, sempre que houvesse um pedido de arquivamento, com ele concordar, mesmo divergindo da apreciação feita pelo órgão do Ministério Público? Se o Juiz devesse acatar o pedido de arquivamento mesmo entendendo que nenhuma razão assistisse ao Promotor para formular tal pedido, estaria sancionado o arbítrio deste. Este, de órgão da lei e fiscal da sua execução, passaria a ser fiscal das suas conveniências pessoais. Por sentimentalismo piegas ou por injunções políticas, o Promotor pediria o arquivamento e... toffitur quaestio, ruiria por terra o princípio da obrigatoriedade da ação penal, vale dizer, o princípio da legalidade, ficando, o que é mais grave, a repressão ao crime na dependência do Promotor. 0 absurdo é manifesto. Por outro lado, dissentindo da apreciaçao feita pelo Promotor, que se recusa a apresentar denúncia, não pode o

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Juiz obrigá-lo a apresentá-la, sob pena de violar, como lembra Tornaghi, ainda que por via oblíqua, o princípio do ne procedatjudex ex officio, dogma do sistema acusatório.Assim, para fugir àquele inconveniente e para evitar a lesão ao princípio que proíbe ao Juiz o procedimento ex officio, a lei concedeu a este "uma função anormal, qual a de velar e fiscalizar o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública". De que maneira o Juiz exerce tal função anormal? Do seguinte modo: discordando do pedido de arquivamento feito pelo Promotor, submeterá o caso à apreciação do Procurador-Geral de Justiça, Chefe do Ministério Público. Se o Procurador entender que o inquérito deve ser arquivado, nessa hipótese, o Juiz estará obrigado a atender: nemojudex sine actore...

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2.') Essa obrigação de o Juiz atender ao pedido de arquivamento, quando insistido pelo Procurador-Geral, levou o eminente Camara Leal a censurar o art. 28 do CPP, sob o prisma da inconstitucionalidade, alegando que ali se consagra "uma invasão de atribuição judiciária pelo Ministério Público. 0 direito de decidir é inerente à judicatura".Determinando o art. 28 que o Juiz estará obrigado a atender ao pedido de arquivamento, quando insistido pelo Procurador, outra coisa não fez senão "violar as prerrogativas judiciárias" (cf. Camara Leal, Comentários ao Código de Processo Penal, Freitas Bastos, 1942, v. 1, p. 150).Discordamos, data venia, do insignejurista. Para que houvesse invasão de atribuições, era de mister que o Procurador-Geral praticasse ato jurisdicional. Ora, o ato por ele praticado, insistindo no arquivamento, é um ato normal de dominus litis, de dono da ação. 0 exercício da ação penal pública cabe ao Ministério Público. Se este concluir pela nãopropositura da ação penal, nada mais fará senão manifestar a vontade do Estado, de que é órgão, no sentido de não haver pretensão punitiva a ser deduzida. 0 mais que o Juiz poderá fazer será exercer aquela função anormal, a que se refere Frederico Marques, fiscalizando o princípio da obrigatoriedade da ação penal, evitando, assim, o arbítrio do órgão do Ministério Público. Ora, se o Juiz submeteu o caso à apreciação do Chefe do Ministério Público e este entendeu que o Promotor estava com a razão, cessou o arbítrio, arquiva-se então o inquérito.0 Ministério Público tem o "poder de ação", e o Juiz, o "poder jurisdicional". Como bem adverte Carnelutti, "jurisdictio denota el re-

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sultado al que el juicio tíende, que es de jus dicere del judex, o sea su respuesta a las preguntas de las partes en cuanto que la acción es esencialmente desarrollo de un interés" (Lecciones, cit., v. 2, p. 55).Angrisani Dória (Estudos, cit., p. 43) reviveu, em página brilhante, o problema da inconstitucionalidade do art. 28, alegando que "exerce, do mesmo modo, a ação penal declaratória, o órgão do Ministério Público que visa a obter um pronunciamento do Poder,ludiciário sobre a falta dos rç,#aisitos legais para o exercício da persecutio criminis num caso concreto". E, tratando-se de verdadeira ação, não pode o ProcuradorGeral de Justiça obrigar o Juiz a aceitar o pedido de arquivamento.Data venia, entendemos diferentemente. Não há, in casu, qualquer invasão de Poder, pois o Procurador-Geral não está jus dicendi, mas, tão-somente, recusando-se a exercer aquele poder de ação a que se refere Carnelutti.

De ressaltar que o titular do jus puniendi é o Estado, e o órgão incumbido de promover a ação penal é o Ministério Público. A este cumpre verificar se é caso ou não de promovê-la. Do contrário, estaria o Juiz (aí, sim) invadindo seara alheia, pois exerceria, de maneira oblíqua, o poder de ação. Mesmo na França, onde a ação penal é sempre pública, o Procurador da República pode, quando julga infundada a notitia criminis, ç'classer sans suite" (deixar de iniciar a ação penal), e, como diz Vitu, 1e classement sans suite est une mesure d'administration et non un acte judiciaire..." (Procédure, cit., p. 243).

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Entre nos, jamais houve um julgado proclamando a inconstitucionalidade do art. 28. Pelo contrário. 0 Excelso Pretório já teve oportunidade de anular um processo sob o seguinte motivo: o Promotor requereu o arquivamento de inquérito que versava sobre crime contra a saúde pública. 0 Juiz determinou o arquivamento, mas, nos termos do art. 7.' da Lei n. 1.521/5 1, recorreu ex officio. 0 Tribunal deu provimento ao recurso e determinou fosse oferecida a denúncia. 0 Promotor ofereceu-a. Afinal, em recurso, foi o réu condenado. Apreciando habeas corpus impetrado, o STF anulou o processo, sustentando, com acerto, que a iniciativa da ação penal cabia, com exclusividade, ao Ministério Público. 0 Tribunal não podia obrigá-lo a oferecê-la.

3.") 0 despacho que determina o arquivamento do inquérito faz coisa julgada? Em outros termos: se o Juiz determinar o arquivamento do inquérito, ou das peças de informação a que se refere o art. 27, ou a representação, poderá, posteriormente, ser apresentada denúncia?

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i

Que não faz coisajulgada é uma afirmativa que resulta do disposto no art. 18 do CPP: "Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia".

0 arquivamento não impoe perpetuo silêncio ao inquérito. Enquanto não estiver extinta a punibilidade, poderá ser oferecida denúncia. Sempre se entendeu, na doutrina, que, sendo levados ao Promotor, que pediu e obteve o arquivamento, novos elementos de convicção, se lhe conceda nova oportunidade para apreciar a espécie, e então poderá ofertar a denúncia. A jurisprudência também era nesse sentido. E ainda é. E se lhe não forem apresentados novos elementos? Na doutrina, o entendimento era este: o Promotor ficaria moralmente incompatibilizado de funcionar em um processo que entendeu não devera ser promovido. Espínola Filho chegou mesmo a observar: "esquisita é a posição do Juiz e do Promotor que, após efetuarem o arquivamento de um inquérito, venham a dar andamento a uma ação penal baseada nele, sem qualquer elemento novo, pois é difícil afastar a consideração de um arquivamento, realizado levianamente, sem o devido exame" (cf. Comentários, cit., 3. ed., p. 365).

Apesar da crítica, os Tribunais vinham admitindo a possibilidade de o Promotor ofertar denúncia com base em inquérito arquivado, ainda que não houvesse novas provas (cf. RT, 73145, 172/46, 245/293).

Pouco importava, também, fosse a denúncia oferecida pelo mesmo Promotor que requereu o arquivamento, ou por outro.

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Em belíssima pagina, Serrano Neves demonstra, à saciedade, o desacerto de tal entendimento: "... Anote-se, de pronto, que, havendo o Ministério Público como dominus litis, a despeito de presidencialista o sistema processual brasileiro, o legislador a ele remeteu, na pessoa de seu chefe, o conhecimento de todos os casos não tranqüilos de arquivamento de inquéritos policiais, as segurando- lhe, outrossim, o direito de insistir no pedido formulado pelo Promotor".

Ora, acrescenta, se o Ministério Público, em casos que tais, pode oferecer denúncia ou insistir no pedido de arquivamento (e a faculdade se comete ao Procurador-Geral desprovido de novas provas), parece-nos lógico que possa, também este, por via de conseqüência, desarquivar, de ofício, tais inquéritos, a menos que impedido de fazê-lo, por força de um óbice

de procedibilidade, como, e. g., a extinção da punibilidade do fato.

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Raciocinemos praticamente. Sem novas provas o Procurador-Geral pode, em face de provocação do Juiz, oferecer a denúncia (contrariando requerimento de um Promotor de Justiça) ou insistir no seu pedido de arquivamento. Por que charadística razão pode quando provocado e não pode "ex officio"? Não é exato que o mesmo motivo inspirador da provocação inspira a iniciativa do dominus litis9

... Suponha-se, com efeito, que numa Comarca do interior (e quantas estão^ o domínio do "coronelismo político"), um Promotor de Justiça - conivente o Juiz - consiga o arquivamento de sucessivos e determinados inquéritos. Nesse caso, o Procurador-Geral - oráculo da grave tarefa fiscalizadora da aplicação das leis - haveria de a tudo fechar os olhos, apenas porque desprovido de novas provas em torno dos fatos mandados ao arquivo? (cf. Revista Brasileira de Criminologia, 8/179).

Na verdade, se o despacho determinando o arquivamento não faz coisa julgada, nada impede possa o Procurador-Geral determinar o desarquivamento. Nada impede, também, que outro Promotor, analisando o parecer do seu colega, conclua pela existência de elementos suficientes para a instauração do processo. Sem embargo, as decisões do Excelso Pretório, no sentido de não permitir o desarquivamento sem novas provas, foram tantas que se converteram em stimula: "Arquivado o inquérito policial por despacho do Juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas" (Súmula 524).

Além disso, a Excelsa Corte já observou: "Novas provas capazes de autorizar o início da ação penal, segundo a Súmula 524, serão somente aquelas que produzem alteração no panorama probatório dentro do qual fora concebido e acolhido o pedido de arquivamento. A nova prova há de ser substancialmente inovadora e não apenas formalmente nova" (cf. RV, 911831).Mesmo em face da Súmula 524 do STF, é bom que se frise: o desarquivamento sem novos elementos é negado quando o inquérito houver sido arquivado por falta de lastro probatório. Se, por

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exemplo, o Promotor de Justiça requer o arquivamento por entender não haver nos autos do inquérito a qualificação do indiciado nem possibilidade de esta ser feita, por se tratar de desconhecido, e, arquivado o inquérito, observa, depois, que a autoria era conhecida e que a qualificação fora feita indiretamente, à evidência, nada obsta se apresente denúncia. Dará prova

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1cabal de negligência, de desídia. Mas que poderá oferecer denúncia não há dúvida.

1,1 4.') 0 Tribunal, apreciando um recurso, anula todo o processo aepartir da denúncia. Pergunta-se: pode, nessa hipótese, o Promotor requerer o arquivamento em vez de oferecer nova denúncia? Se ele entender deva ser apresentada nova denúncia, poderá apresentá-la, e, se entender, apreciando novamente a espécie, de requerer o arquivamento, nada o impedirá também. 0 assunto já foi objeto de discussão no Tribunal de Justiça de São Paulo, e, por unanimidade, foi aceito o parecer do pranteado Magalhães Noronha, no sentido de que "uma vez que o venerando acórdão anulou a denúncia, anulando também todo o processo, nova oportunidade se oferecia ao órgão da acusação para apreciar a especie, pois processo não havia: nulla et non facta paria sunt" (RT, 2091130).5.') Como já vimos, submetido o pedido de arquivamento à apreciação do Procurador-Geral de Justiça, este, caso entenda não haver motivo para o arquivamento, apresentará a denúncia ou designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la. Pergunta-se: poderá o Procura-r,.: dor designar o mesmo Promotor que pediu o arquivamento? A respostai C, ~há de ser negativa. E por várias razões: a) Em virtude de expressa proibição legal, pois o art. 28 fala na designação de outro órgão do Ministério Público, excluindo, assim, a possibilidade de poder ser designado o mesmo orgão que pediu o arquivamento. b) Porque "ilpubblico ministero é sempre libero di conchiudere nel modo che la sua coscienza d'uomo e di magistrato gli detta. È questo il suo dovere: il cià stà la suar -,, r-- independenza e la sua dignità" (o órgão do Ministério Público tem li-!0:. ..

berdade de proferir seus pareceres de acordo com a sua consciência.Este é o seu dever: nisto residem sua independência e sua

dignidade). c)Porque seria violentar a consciência jurídica do Promotor de

Justiça,obrigando-o à retratação.

Assim, o gesto do Procurador-Geral de Justiça implicaria violar aquela independência funcional; seria coagir o Promotor a uma retratação. Por isso, se por acaso o Procurador-Geral designar o mesmo

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Promotor que requereu o arquivamento para oferecer denúncia, poderá e deverá ele declinar da incumbência, sem que haja em sua atitude qualquer desrespeito ao poder de direção que o Procurador-Geral tem quanto a todos os membros da Instituição.

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E se o Promotor designado for outro? A hipótese é diferente. Esse outro Promotor ainda não se manifestou sobre o inquérito, e, por isso, o "Procurador-Geral, ordenando que algum subordinado ofereça denúncia, não constrange a consciência funcional do Promotor, mas, tão-somente, determina que os fatos sejam levados ao conhecimento do poder competente, para apreciá-los e julgá-los" (cf. citação feita no Curso de direito penal, de José Frederico Marques, v. 3, p. 370).Qéz-se até que, nesse caso, o Promotor de Justiça estará agindo por delegação, em nome do Procurador-Geral de Justiça.Aliás, bastante expressiva a redação do art. 10, IX, d, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n. 8.625, de 12-2-1993):

"Compete ao Procurador-Geral de Justiça:IX - designar membros do Ministério Público para:

d) oferecer denúncia ou propor ação civil pública nas hipóteses de não-confirmação de arquivamento de inquérito policial ou civil, bem como de quaisquer peças de informação".

6.') Se o Promotor requerer o arquivamento e o Juiz entender que assiste razão ao Ministério Público, o inquérito será arquivado, sem que haja possibilidade de o Procurador-Geral de Justiça manifestar-se. Todavia a Lei n. 1.521, de 26-12-1951 (crimes contra a economia popular), abre uma exceção. Assim dispõe o art. 7.' da referida lei:

"Os Juízes recorrerão de ofício sempre que absolverem os acusados em processos por crime contra a economia popular ou contra a saúde pública, ou quando determinarem o arquivamento dos autos do respectivo inquérito policial".

Por primeiro, é de observar que, em infrações dessa natureza, se o órgão do Ministério Público requerer o arquivamento dos autos do ínquérito e o Juiz vier a discordar das "razões invocadas" pelo Ministério Público, eles subirão ao Procurador-Geral de Justiça, que, então, nos termos do art. 28, dirá a última palavra: se deve ser instaurado o processo ou se deve ser arquivado.Entretanto, se o Juiz vier a acolher o pedido de arquivamento, se achar que o Promotor tinha razão, determinará que os autos do inquérito sejam arquivados. Nessa hipótese (e é dessa que o art. 7.' da Lei n. 1.521/51 cuida), deverá o Juiz recorrer ex officio. Após determinar o

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i arquivamento, no mesmo despacho deverá dizer: desta decisão recorro

ex officio para o Eg. Tribunal. Em seguida, cumpre ao Escrivão remeteros autos do inquérito ao Tribunal. Este, então, caso concorde com o despacho de primeira instância, negara provimento ao recurso, vale dizer, oinquérito ficará mesmo arquivado. E se entender o Tribunal que não eracaso de arquivamento? Quid inde? Sustentava Frederico Marques que,nessa hipótese, a denúncia será obrigatória, devendo o Procurador-Geral designar outro Promotor para oferecê-la (cf. Ação penal, 0 Estado deS. Paulo, 21-1-1955, e Elementos, cit., v. 3, p. 384). Hélio Pereira Bicudo,uma das inteligências que o Ministério Público paulistajá teve, de há muitosustentava não ser correta essa exegese (cf. Parecer, in Frederico Marques, Ojúri no direito brasileiro, 2. ed., p. 336), salientando que a decisão do Tribunal não vincula o Ministério Público, pois, do contrário, estaria, por via oblíqua, quebrando o princípio do ne procedatjudex ex officio.E convenceul Tanto que Frederico Marques com ele concordou

1 1(Tratado de direito processual penal, Saraiva, v. 2, p. 94, nota 23).E, então, por que a lei, nesses casos, determina deva o Juiz submeter o despacho que determinou o arquivamento à apreciação do TribuZnal? 0 legislador, decerto, quis exercer um maior controle sobre os despachos que determinam o arquivamento de inquéritos que versam sobre crimes contra a economia popular e contra a saúde pública. 0 recurso ex 1 1 t,officio nada mais representa senão uma providência imposta por lei, por motivo de ordem pública, quando se exige maior cautela na solução de determinados litígios. Tecnicamente não se trata de um verdadeiro recurso, mesmo porque o Juiz recorre da sua própria decisão, sem ser parte, sem ser vencido, sem ter interesse na reforma do seu ato. Mas,1!. ""quando o legislador quer e exige que os Tribunais exerçam maior controle sobre certas decisões, impõe ao Juiz o dever de submetê-las à sua apreciação. Assim, das decisões concessivas de habeas corpus, das absolvições sumárias (art. 574), das que concederem reabilitação (art. 746), não podem os Juízes deixar de interpor recurso ex officio. Metem-se a rol, também, as hipóteses previstas no art. 7.' da Lei ri. 1.521, de 26-12-195 1.Interposto o recurso de ofício, o Tribunal irá apreciar os atos do

Promotor e do Juiz. Se entender não ser caso de arquivamento, os autos do inquérito devem ser remetidos ao Chefe do Parquet, isto é, ao Procurador-Geral de Justiça, e este, então, nos termos do art. 28 do CPP, dirá a última palavra. Aliás, o legislador não poderia encontrar outra fórmula

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para exercer um maior controle sobre os despachos que determinam o arquivamento de inquéritos que versem sobre crimes contra a economia popular e contra a saúde pública. Determinar que o Juiz aplicasse o art. 28 seria submeter uma decisão do Juiz a apreciaçao do Procurador. A rigor, o que o legislador quis foi submeter o pedido de arquivamento à apreciação do Procurador-Geral. Mas, como o Juiz pode acolher o pedido de arquivamento, seria estranho devesse ele submeter sua decisão a um ór4o da Administração. Para evitar essa situação e querendo exercer maior fiscalização naqueles pedidos, encontrou o legislador, no recurso ex officio, a fórmula ideal. Então será o Tribunal que irá apreciar a decisão do Juiz. E, se entender não ser caso de arquivamento, os autos devem ser remetidos ao Procurador-Geral, e este, então, dirá se se trata ou não de caso de arquivamento. Nem teria sentido, uma vez provido o recurso ex officio, devesse o Ministério Público promover a ação penal. Seria a consagração, por via indireta, do quebramento do princípio do ne procedatjudex ex officio.E tanto é esse o exato entendimento que, no Habeas Corpus ri. 39.779, a mais Alta Corte de Justiça do País, por unanimidade, anulou um processo por crime contra a saúde pública porque, tendo o Promotor requerido o arquivamento do inquérito, com ele não concordou o Juiz, e este, então, remeteu-o ao Procurador-Geral de Justiça. Como este houvesse insistido no arquivamento, o Juiz determinou que ele fosse arquivado e, no mesmo despacho, recorreu ao Tribunal. Este deu provimento ao recurso, e o Promotor, então, ofereceu denúncia. 0 réu foi processado e, afinal, absolvido. Houve recurso, e o Tribunal condenou-o. 0 réu impetrou habeas corpus, e o STF anulou todo o processo, sob a alegação de que a iniciativa da ação penal cabe exclusivamente ao Ministério Público, e a ação penal não podia ter sido iniciada (cf. Revista Brasileira de Criminologia, ri. 6, p. 183).

Daí se dessume: a) na hipótese do art. V' da Lei ri. 1.521/51, se o Promotor requerer o arquivamento e o Juiz não concordar com o pedido, deverá, nos termos do art. 28 do CPP, remeter os autos ao Procurador-Geral; se este insistir no arquivamento, cumpre ao Juiz arquivá-lo, sem o dever de recorrer de ofício; b) se o Promotor requerer o arquivamento e o Juiz concordar, deverá recorrer de ofício, e, caso o Tribunalnão acolha a decisão do Juiz, o único caminho é remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, cabendo a este a última palavra.

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0 art. 7.' da Lei n. 1.521151 cuida das decisões que determinarem o arquivamento dos inquéritos que versem sobre crimes contra a economia popular ou a saúde pública. Se porventura se tratar de crime previsto no art. 281 do CP (entorpecentes) e embora seja crime contra a saúde pública, descabe o recurso de ofício das decisões absolutórias e também daquelas que acolherem o pedido de

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arquivamento. Várias são as decisões nesse sentido, inclusive da Suprema Corte (cf. DJU, 24-8-1973, p. 6084; 14-9-1973, p. 6739; 5-10-1973, p. 7460; 9-11-1973, p. 8484 e 8485; 7-12-1973, p. 9372). No Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, o então Juiz Dínio Garcia (atualmente Desembargador) observou que pela Lei n. 5.726/71 (hoje, Lei ri. 6.368, de 21-10-1976), tendo regulado por inteiro matéria já regrada por leis anteriores e fazendo omissão ao recurso de ofício, revogado ficou o art. 7.' da Lei n. 1.521/51 no que respeita aos crimes de entorpecentes (cf. Apelação Criminal n. 57.001 - Piracicaba, em 9-8-1973).

7.0) Cabe recurso da decisão que acolhe pedido de arquivamento? Sim, exclusivamente naquela hipótese tratada no parágrafo único do art. 6.' da Lei ri. 1.508, de 19-12-195 1, verbis:

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"Quando qualquer do povo provocar a iniciativa do Ministério Público, nos termos do art. 27 do Código de Processo Penal, para o processo tratado nesta lei, a representação (rectius: as peças de informações), depois do registro pelo distribuidor do juízo, será por este enviada, incontinenti, ao Promotor Público, para os fins legais.Parágrafo único. Se a representação for arquivada, poderá o seu autor interpor recurso no sentido estrito".

A lei em apreço versa sobre o procedimento das contravenções do jogo do bicho e jogo sobre corridas de cavalos, feito fora dos hipódromos, e apostas sobre quaisquer outras competições esportivas.Qualquer pessoa do povo pode, nos termos do art. 6." da referida lei e do art. 27 do CPP, levar ao conhecimento do Promotor de Justiça informações sobre tais contravenções. Então, se o órgão do Ministério Público, em vez de oferecer denúncia, requerer o arquivamento, e se o pedido for acolhido pelo Juiz, aquele que deu as informações ou, na linguagem da lei, aquele que fez a "representação" poderá interpor recurso em sentido estrito (Lei n. 1. 508/5 1, art. 6.', parágrafo único, c/c o

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art. 581 do CPP). Interposto o recurso, bem poderá o Juiz, no Juízo de retratação a que se refere o art. 589 do CPP, entender que o recorrente tem razão. Quid inde? Antes da Constituição de 5-10-1988, o procedimento dessas contravenções podia ser iniciado por ato do Delegado, do Juiz ou do Promotor. Àquela época, se o Juiz entendesse que a razão estava com o recorrente, ele próprio, na fase do art. 589 do CPP, podia baixar a portaria. Agora, entretanto, em face do disposto no art. 129, 1, da CFotação penal pública é privativa do Ministério Público. Assim, entendemos que, na hipótese de o Juiz, na fase do art. 589, recuar, e impossibilitado de devolver a "representação" ao Promotor para a oferta de denúncia, outro caminho não lhe resta senão aplicar o disposto no art. 28 do CPR Se, entretanto, vier a manter a sua decisão, os autos do recurso sobem ao Tribunal, e se este entender não ter sido caso de arquivamento, aplicará o disposto no art. 28 do CPR Do contrário, mantendo a decisão, a

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"representação" fica arquivada.Hoje, contudo, em face da Lei n. 9.099195, que permite a transação e o procedimento sumariÍssimo, em casos dessa natureza, se o Procurador-Geral entender que a razão estava com o Tribunal, determinará a remessa daquelas peças ao Juizado Especial Criminal.

8.') E se, porventura, tratar-se da competência originária dos Tribunais? Nesses casos, somente a Procuradoria-Geral da República, nas infrações da competência do STF ou do STJ, a Procuradoria da República, nas infrações da alçada dos Tribunais Regionais Federais, e os Procuradores-Gerais da Justiça, nas infrações da competência dos Tribunais de Justiça, é que podem atuar, e, de conseguinte, é que podem denunciar ou pedir o arquivamento.

E óbvio que, se se tratar de crime de alçada privada, cumpre ao ofendido ou ao seu representante legal oferecer a queixa.

Ora, se o Procurador-Geral, recebendo as peças de informação ou• inquérito (se for o caso), entender que descabe a denuncia, requerera• arquivamento. Poderá o Tribunal deixar de atender ao pedido? Embora haja, em sentido afirmativo, a palavra sempre autorizada de Frederico Marques, dela discordamos, com a devida vênia. Onde, na lei, a atribuição do Poder Judiciário de exercer o controle da atividade inicial do Ministério Público nesses casos? Não há.

Em virtude da estrutura processual acusatória que tem entre nós a persecutio criminis, outro caminho não restará ao Tribunal senão aco-

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W.)

lher o pedido de arquivamento, quando formulado pelo Chefe do Ministério Público. Este, como verdadeiro dominus litis, é quem pode, no nosso Direito, dizer se é caso ou não de denúncia nos processos da competência originária dos Tribunais. 0 poder de ação lhe é conferido, sob pena de se quebrar o princípio do ne procedat judex ex officio. 0 argumento de que o Tribunal tem um controle jurisdicional absoluto sobre a propositura da ação penal, "mesmo porque o Ministério Público não goza de independência suficiente para poder opor-se a injunções governamentais", data venia, não convence. Nessa ordem de idéias, os Tribunais poderiam, também, exercer o controle sobre toda a ação pública, pois os Governantes poderiam pressionar o Ministério Público a não oferecer denúncia em casos da competência do Juiz singular.Além do mais, hoje, o Ministério Público é independente. Administrativa e funcionalmente.Ademais, o STF, nos idos de 1970, tomando conhecimento de recurso extraordinário do Ministério Público paulista, acolheu, nemine discrepante, o entendimento de que, se o Procurador-Geral de

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Justiça, em infração da competência originária do Tribunal de Justiça, requerer o arquivamento do inquérito ou das peças de informação, outro caminho não restará ao Tribunal senão determinar o arquivamento (cf. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, 12/468, 1. trim., 1970).Em outro aresto, manifestou-se o Excelso Pretório no sentido de que "é obrigatório o arquivamento quando requerido pelo ProcuradorGeral perante o Tribunal de Justiça, na sua competência originária". Esta é ajurisprudência dominante, salientou o Min. Eloy da Rocha. E aduziu: "E certo que alguns Tribunais têm decidido que o Tribunal pode solicitar reexame ao Procurador-Geral. Entretanto, o Ministério Público não se sujeita a essa recomendação. Se ele pede o arquivamento, porque julga que não há elementos para a ação penal, não há senão deferir o pedido" (RT, 4161407).Aliás, nem precisaria o Procurador requerer ao Tribunal o arquivamento. Se ele é o único dominus litis e se externou sua vontade no sentido de não dar início à ação penal, deverá, simplesmente, determinar o arquivamento. Por que o requereria, se tal requerimento não pode ser indeferido? Se o faz, é por uma deferência especial...Sem embargo disso, a Corte Especial do STJ, por maioria de votos, apreciando a Representação n. 30-0-CE, aos 29-10-1992, rejeitou pedi-

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do de arquivamento de inquérito formulado pelo Ministério Público. Esta a ementa: "Delito contra a honra. Configuração em tese. Representação do ofendido. Pedido de arquivamento rejeitado. 1 - 0 pedido de arquivamento de inquérito feito pelo representante do Ministério Público não vincula o Tribunal (Representação ri. 22-PR). 11 - A imputação contundente a alguém da prática de fatos de maior gravidade, com base em meras suspeitas e em excesso no exercício das próprias funções, revela^o menos em tese, a consciência e a vontade de ofender a honra alheia. 111 - Omitindo-se o Ministério Público em seu poder-dever de oferecer a denúncia, abre-se à vítima a possibilidade de aforar a ação penal privada subsidiária (art. 5.", LIX, da CF). Pedido de arquivamento de representação rejeitado, ressalvando-se a iniciativa da parte ofendida quanto a propositura da ação penal privada subsidiária" (STJ, Corte Especial, Rep. 30-0-CE, j. 29-10-1992, m. v., DJU, 14-12-1992, p. 23875).Contudo, a Suprema Corte, apreciando esse julgado, mercê de um habeas corpus, corrigiu o deslize, adiantando que se o pedido de arquivamento foi solicitado pelo Subprocurador da República, ainda era de aplicar-se a regra do art. 28 do CPP, com a remessa dos autos ao Procurador-Geral da República. E deixou bem claro que, mesmo fosse o pedido de arquivamento requerido pela Chefia do Ministério Público, não podia o Tribunal confundir ato comissivo (promoção no sentido de arquivamento) com ato omissivo (ausência de apresentação de denúncia no prazo legal). Apenas neste último caso, acentuou, é que a ordem jurídica indica a legitimação do ofendido, nos termos do art. 5.', LIX, da CF e art. 29 do CPP (Habeas Corpus ri. 7.0029-2-CE, DJ, 13-8-1993, Ementário ri. 1.7124).

A decisão do STJ (Rep. 30-0-CE) fez renascer entendimento superado há mais de quarenta anos, quando Basileu Garcia, Frederico Marques e Hélio Tornaglii sustentavam idêntica tese.

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Posteriormente Frederico Marques reconheceu que a razão estava com José Duarte, voto vencedor na Conferência dos Desembargadores realizada nos idos de 1943 no Rio de Janeiro.

Pergunta-se: e se por acaso o Colendo STJ houvesse acolhido o pedido de arquivamento? Obviamente, a vingar o entendimento já exposto, o ofendido poderia, também, ofertar queixa subsidiária da denúncia, o que nos parece um retrocesso. A lei pune, com a regra do art. 29 do CPP, o membro do Ministério Público desidioso, relapso. Se é for-

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mulado pedido de arquivamento, não há que se cuidar de inércia. Os que militam no foro sabem que é muito mais fácil denunciar do que pedir arquivamento. 0 fato de o Tribunal acolher ou desacolher o pedi-do, segundo a tese ora ressurgida, não impede a ação privada subsidiária, porquanto, de uma forma ou de outra, a denúncia não foi apresentada...

E indagamos: e se, ofertada a queixa, o querelante abandonar a instância? Como ficaria o princípio conviccional do membro do Ministério Público que pediu o arquivamento? Simplesmente sepultado, pois, ainda nos termos do art. 29 do diploma processual penal, ele seria, como efetivamente é, obrigado a retomar a ação como parte principal... o que nos parece, venia concessa, um encimado desconchavo*.9.0) E, se o Promotor requerer o arquivamento, poderá o Juiz, não concordando com o pedido, devolver os autos do inquérito à Polícia paranovas diligências? Cremos que não. Do contrário, estaria ele exercendo atividade persecutória fora dos casos em que a lei lhe permite. Isto porque, "antes de intentada a ação penal, com o oferecimento da denúncia, não tem o Juiz atribuição de determinar diligências, sejam quais forem e para que forem, o que é privativo do Ministério Público, como corolário de sua atribuição privativa de promover a ação penal" (Acórdão, in Espínola Filho, Comentários, cit., p. 363). Veja-se, no particular, RT, 4741350.

Se isso ocorrer, pensamos, caberá correição parcial. 0 máximo que o Juiz poderá fazer é remeter os autos ao Procurador-Geral, nos termos e para os fins do art. 28 do CPP.

Aliás, sobre a matéria, há inúmeros pronunciamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo:"Comete error in procedendo, passível de correição, o magistradoque não defere, nem indefere, pedido de arquivamento formulado pelo Promotor e tampouco se utiliza das providências contidas no art. 28 do CPP" (RT, 5071374).

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"Se houve pedido de arquivamento formulado pelo Promotor, ratificado pela Procuradoria-Geral de Justiça, ex vi do art. 28 do CPP, o fato de não ter sido o inquérito arquivado, por ordem do Juiz, que determina o seu retorno à Polícia para novas diligências, constitui gritante ilegalidade, remediável pelo habeas corpus" (RT, 508/319).

* 0 v. acórdão da Corte Especial do Colendo SU, ora comentado, foi objeto de 11~ junto ao Colendo STF, que concedeu a ordem. V., no Apêndice, o verbete "Arquivamento .

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Pode o Juiz determinar o desarquivamento de inquérito? Depende. Suponha-se que o Magistrado receba novas provas a respeito do fato objeto do inquérito arquivado. Evidente que, nessa hipótese, deverá determinar ajuntada dos documentos aos autos respectivos e a conseqüente vista ao Ministério Público. Se este entender haver suporte probatório, oferecerá a denúncia. Do contrário, poderá insistir no pedido de arquivamento. Se o Juiz dele discordar, em face das novas provas, nada o impeçl#-de aplicar o art. 28 do CPP.

10.') Se o réu cometer duas infrações penais e o Promotor de Justiça fizer alusão apenas a uma, haverá um implícito pedido de arquivamento quanto àquela excluída, e, por essa razão, nada impede que, por analogia, se aplique a regra do art. 28 do CPP. Idem se houver exclusão de partícipe (nesse sentido, Frederico Marques, Elementos, cit., v. 2, p. 174, n. 354). Quer-nos parecer, contudo, muito embora o Juiz possa fazer uso, nesses casos, do art. 28 do CPP, não haver, propriamente, um pedido de arquivamento, uma vez que esse dispositivo alude à circunstância de o Juiz discordar das "razões invocadas pelo Ministério Público". Logo, deve este apresentar os motivos que o levaram a não incluir na denúncia outra infração ou um terceiro. E deve ser assim. Caso contrário, oferecida a denúncia apenas em relaçao a um, mais tarde, se o Ministério Público concluir ter havido omissão da sua parte quanto à não-inclusão de outro indiciado, sua posição deve ficar um tanto quanto embaraçosa se pretender fazer um aditamento para incluir esse outro envolvido, porquanto, em relação a este, houve um pedido tácito de arquivamento...

11.") Tratando-se de inquérito civil, se o órgão do Ministério Público determinar seu arquivamento (ou o arquivamento das peças de informação que lhe forem encaminhadas) por estar convencido da inexistência de fundamento para a propositura de ação civil, os autos respectivos deverão ser encaminhados, no prazo de 3 dias, ao Conselho Superior do Ministério Público, sob pena de se incorrer em falta grave. Até que, em sessão do referido Conselho, seja homologada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão as associações legitimadas apresentar razões escritas ou documentos, que serao juntados aos autos do inquérito ou anexados às peças de informação. Rejeitada a promoção do órgão do Ministério Público, será de logo designado outro membro do Ministério Público para o ajuizamento da ação.

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~i 11 § 69" - Da açao penal privada1

SUMÁRIO: 1. Noções gerais. 2. Distinção entre ação penalpública e ação penal privada. 3. Críticas à ação penal privada.4. Os crimes de ação penal privada no Código atual. 5. Princípios. 6. Quem pode promovê-la? 7. A mulher casada pode exercero direito de queixa? 8. Pessoas jurídicas. 9. Prazo. 10. 0 prazona hipótese do art. 3 1. 11. Contagem do prazo. 12. Divisão da

W4 ação penal privada. 13. A morte do cônjuge ofendido na açãopenal privada personalíssima. 14. 0 ofendido incapaz e o direito de queixa na ação penal privada personalíssima. 15. Despesas judiciais.

i L,

1 1. Noções gerais1 Já vimos, inicialmente, que toda a ação penal é

pública. Entretanto,no Direito pátrio, à maneira do que ocorre em várias

legislações, admi1 te-se a ação penal privada, atendendo-se àquelas razões já aduzidas: a)

a tenuidade da lesão à sociedade; b) o assinalado caráter privado do bem

jurídico tutelado; c) o strepitusjudicii (o escândalo do processo, a pu

blicidade dada ao fato em decorrência do processo), que pode ser muito

mais prejudicial ao interesse da vítima do que a própria impunidade doi culpado etc.

Não se trata, repita-se, de criação indígena. Inúmeras legislações,

com maior ou menor intensidade, admitem-na. Na Alemanha, ao lado

da ação pública, existe a Privatklage, mediante a qual, havendo um

Privatklagedelikt (delito de ação privada), cabe à parte ofendida dar início

à ação. Certo que a ação penal privada na Alemanha apresenta peculia

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ridades. Assim, por exemplo, nos termos do § 337 da Strafprozessordnung (StPO), mesmo proposta a ação privada, se o Ministério Público divisar um interesse público, assumirá o papel de acusador principal, e, neste caso, o acusador privado (Privatklager) passará a exercer as funções de "assistente" (Nebenklager) (cf. Kern, Strafverfahrenrecht, 1959, p. 41). Mas, não havendo tal interesse, a acusação

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cabe ao particular. Na Austria, Espanha, Hungria, Suécia, Noruega, Finlândia, Argentina, Chile etc. ext*e a ação penal privada.0 Direito italiano não admite o instituto da ação penal privada. Não o admitem também as legislações francesa e mexicana. É conhecida a crítica de Manzini: o Estado fascista reivindica para si a essência e todos os atributos da soberania, e, por isso mesmo, a função penal não pode ser exercida senão por um orgão estatal (cf. Trattato, cit., p. 204). Sem embargo, admite, em numerosos casos, a ação penal subordinada à querela, equivalente à nossa "representação", com esta particularidade: proposta a ação, o ofendido pode perdoar o culpado, extinguindo-se, assim, a punibilidade. Claro, a esse respeito, o art. 152 do CP peninsular: "Nei delitti punibili a querela della persona offesa, Ia remissione extingue il reato " (Nos delitos puníveis em virtude de representação, o perdão extingue a punibilidade). E, para ficar mais claro ainda, este acórdão da Corte de Cassação: "Constitui perdão tácito o fato de a esposa que, após fazer a representação por difamação, contra o seu marido, do qual esta-va separada, vem a recebê-lo em sua casa, declarando-se pronta a seguilo para outra residência" (cf. Maggiore, Derecho, cit., v. 2, p. 371).Então, mesmo na Itália, sem embargo das críticas de Manziní, Maggiore, Beccaria, Tolomei, Varmini e Ricio, entre outros, existe uma ação penal privada "disfarçada" de pública, mesmo porque permite-se à parte ofendida, ainda que instaurada a instância, o direito de dispor do conteúdo material do processo por meio do perdão (remissione).

2. Distinção entre ação penal pública e ação penal privada

A distinção que se faz entre ação penal pública e ação penal privada descansa, única e exclusivamente, na legitimidade para agir. Se é o órgão do Ministério Público quem deve promovê-la, a ação se diz pública. Privada, se a iniciativa couber ao ofendido ou a quem legalmente o represente.Mesmo sendo privada, o direito de punir continua pertencendo ao Estado. Este, apenas, concede ao ofendido ou ao seu representante legal

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ojus persequendi in judicio. Trata-se de um caso, no campo processual penal, de substituição processual. As verdadeiras partes, em qualquer infração penal, são aquelas que têm interesse na lide. De

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conseqüência, as partes jurídico-materiais são: o genuíno infrator da norma penal, de um lado, e, do outro, o Estado, como titular exclusivo do direito de punir. Mas, em face daquelas razões já acentuadas, o Estado, a despeito de ser o unico interessado em reprimir as infrações, função que ele deve exercer para lograr um dos fins essenciais para os quais foi constituído, transfere ao particular o direito de acusar. 0 ofendido, então, passa a ser titular da ação penal (nos casos previstos em lei) e ingressar em juizo para, em nome proprio, defender um interesse alheio, vale dizer, um interesse exclusivo do Estado, qual o de reintegrar a ordem jurídica violentada pela infração penal. Por isso se diz que, nas hipóteses de ação privada, o particular é parte extraordinária legítima para agir, porquanto comumente, ordinariamente, a parte legítima para intentar a ação penal é o titular do interesse em litígio, vale dizer, o Estado.

3. Críticas à ação penal privada

Como se comporta a doutrina no que respeita à vinculação do direito de punir do Estado à vontade do particular?

Por influência dos Códigos de Instrução Criminal francês, de 1808, e italiano, de 1930, e de certas correntes doutrinárias, "considera-se que a intervenção do ofendido como acusador faz do processo penal reminiscência da vingança privada". Desse entender são: Vélez Mariconde,Sebastian Soler, Ricardo Levene, Maggiore, Binding, entre outros. Ferri também entendia que a vontade do particular devia ser irrelevante.Grosso modo, dizem, ou é um sentimento de vingança ou o interesse pecuniário que leva o particular a promover a ação penal, móveis esses incompatíveis com a finalidade da pena, que é de reeducaçao e defesa social. Por isso, grande parte da doutrina entende que não se deve conceder tal direito ao particular. Só o Estado é que deve ser o árbitro do direito de proceder ou não proceder. Não se deve permitir, diz Maggiore, que a vontade privada estorve ou paralise a função punitiva do Estado. Vimos, ao tratar da representação, o famoso ato de acusação de Binding, em que procurou combater a subordinação da função repressiva à vontade do particular.

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A despeito das críticas, inúmeras legislações, inclusive a nossa, admitem a ação penal privada não só em face da tenuidade do interesse público lesionado, e, conseqüentemente, predominância do interesse particular sobre o interesse social, como também porque o strepitusfori - o escândalo - poderá ser mais prejudicial à vítima que a impunidade do ofensor.

Não se trata de vivificação da vingança privada. É possível que algunjoentimento de ódio, de indignação ou repulsa inspire muitas vezes o ofendido, quando da propositura da ação penal. Mas, entre essa circunstância e a vingança propriamente, há uma distância de mais de cem léguas. Disse-o, muito bem, Frederico Marques: Se a ação penal privada estampasse qualquer forma de vingança primitiva, também as açoes civis teriam o mesmo aspecto e fisionomia. Em uma e outra o particular não tem qualquer atitude direta contra a parte contrária, mas, ao reves, invoca a prestação jurisdicional para a

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solução do conflito de interesses em que se traduz a lide ou controvérsia (cf. Curso, cit., v. 3, p. 375).Certo que o ofendido, na ação privada, não tem a mesma serenidade e imparcialidade do Ministério Público. Mas entre a falta de imparcialidade e a vingança há um mundo de diferença. Como falar-se em vingança se o ofendido se dirige ao Juiz, terceiro imparcial, para decidir? "Vingança privada existiria se o ofendido trancafiasse, ele próprio, o sujeito ativo do crime em carcere privado ou prisão, sem invocar a tutela do Estado".

Dizem que degrada o Processo Penal esse poder que se concede ao particular de promover ou deixar de promover a ação penal. Com razão indaga Alcalà-Zamora: 0 que degrada mais, a propositura da ação a critério do particular, ou se converter a morte, a honra, a honestidade, em matéria de porfia ou de lucro? (cf. Derecho, cit., v. 2, p. 25 e s.).

Assim, conclui-se que os argumentos contrários não resistem a uma análise. Não somos partidários da ação penal privada, analisada sob o prisma da conveniência ou vantagem para uma melhor defesa social. Deveria ela ser reservada a umas pouquíssimas infrações, como ocorre no Direito argentino e no Direito alemão ou, então, nesses pouquíssimos casos, condicionar a propositura da ação à representação, à maneira do Direito francês e do Direito italiano.

Critica-se também a ação privada dizendo-se que, sendo ela instituto de Direito Público, meio ou instrumento para tornar realidade o

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Direito Penal, que é ramo do Direito Público, há de ser pública. A crítica, entretanto, é improcedente. Demonstrou-o Nélson Hungria: Ojuspuniendi pertence ao Estado, mas não há incongruência alguma em conceder-se ao particular ojus persequendi injudicio. Nada impede que a titularidade da ação penal seja reconhecida a pessoa diversa do titular do direito subjetivo de punição. Múltiplos são os casos em que o particular é admitido ou chamado a cooperar nos fins do Estado... Que é o Tribunal do Júri senão uma cooperação de particulares na atividade juri sdicional do Estado?A tal ponto chegam as críticas à ação privada que alguns autores de nomeada se insurgem contra a divisão da ação em pública e privada, sob a alegação de que toda ação penal é pública. Esposam esse ponto de vista, entre outros, Canuto Mendes de Almeida, Vicente de Azevedo e Aloysio de Carvalho Filho. Se a ação penal visa à realização do Direito Penal, que é ramo do Direito Público, dizem, é inegável o seu caráter publicístico. 0 Prof. Aloysio de Carvalho Filho arremata: Definido o direito de punir como um direito do Estado e sendo a ação penal o instrumento da sua realização, não se compreenderia, a rigor, ação privada...

Já houve até quem chamasse a ação privada de ação intrinsecamente de ordem pública e extrinsecamente de ordem privada.

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Tais afirmações mostram quão resvaladio é o terreno do Direito, pois que nele deslizam, muitas vezes, os que escrevem com letras de ouro.Não é a natureza do Direito cuja realização se pretenda que dá à ação o qualificativo de pública ou privada. Tornaghi (com espírito) obtempera: "Afirmar que a ação é pública pelo fim a que visa é o mesmo que dizer que um brasileiro que se destina à Europa é europeu..." (cf. Co-1.1 ~, 1 W., , mentários, cit., v. 1, t. 2, p. 62).

Na verdade, se levarmos as nossas abstrações às últimas consequencias, concluiremos que toda ação penal é pública, não porque o Direito que se pretende realizado seja o Penal, ramo do Direito Público, mas sim porque o direito de ação nada mais é senão um direito público, subjetivo, posto que destinado a provocar a atividade do Estado-Juiz.

Ora, sendo a ação penal um direito público subjetivo do particular ou do próprio Estado em face do próprio Estado, não se lhe pode negar1 o caráter publicístico. Nesse sentido, toda ação é pública, 1a propiaacción del proceso civil, que representaría el ejercicio privado de unafunción pública" (cf. Camelutti, Sistema, cit., n. 356).

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Podemos, então, afirmar que a ação penal é sempre pública, desde que se empreste à expressão "ação penal" o sentido de instrumento para a realização de um direito público, "cual el de provocar Ia actuación del poder punitivo del Estado", como bem diz Alcalà-Zamora.

Vale, pois, repetir: quando se toma a ação penal no sentido de direito público subjetivo de provocar a atuação do Estado-Juiz, é inegável seu caráter publicístico, não se podendo excogitar de ação penal privada. Nj*se sentido, toda ação é pública, até mesmo aquelas que se exercem na esfera extrapenal.Mas, evidentemente, o legislador pátrio, ao distinguir a ação penal pública da privada, fê-lo, tão-só, levando em consideraçao o sujeito que a promove, 1a extensión que desde el punto de vista subjetivo, se asigna a su ejercicio". Se ao Ministério Público competir promovê-la, diz-se pública. Privada, se ao particular.A divisão atende, pois, à legitimidade para agir. Oportuna a lição de Basileu Garcia: Sem embargo do caráter publicístico que essencialmente a assinala, decorrente do seu escopo, a ação penal se considera pública ou privada, conforme o seu sujeito (cf. Instituições, t. 2, p. 635).Legislações existem, contudo, como a francesa, a mexicana e a italiana, em que impera o princípio de que a ação penal só pode ser exercida exclusivamente pelo Estado. A nossa não seguiu tal orientação, admitindo, como admite, a iniciativa privada, em certos casos.

4. Os crimes de ação penal privada no Código atual

0 nosso CP não enumera e não discrimina, taxativamente, em um dispositivo, como ocorre com o CP argentino (arts. 72 e 73) e com o CPP alemão (§ 374), todas as infrações que dão lugar à ação

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penal privada. Todavia, em relação a cada crime cuja ação penal só possa ser promovida pelo ofendido, o texto focaliza a exigência especial, dizendo: "Soniente se procede mediante queixa".Da leitura da Parte Especial do CP, fácil é indicar as hipóteses que dão lugar a esse procedimento excepcional:1.') Os crimes de calúnia, difamação e injúria, com as restriçoes previstas no art. 145 e seu paragrafo único.V) Os de alteração de limites, usurpação de águas e esbulho possessório (art. 161, § 1.', 1 e 11), quando não houver emprego de violência e se tratar de propriedade particular.

421

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3.') Os de dano, inclusive quando cometidos por motivo egoísticoou com prejuízo considerável para a vítima, e os de introdução ou abandono de animais em propriedade alheia (arts. 163, caput, parágrafo único, IV, e 164 c/c o art. 167).

4.') 0 de fraude à execução (art. 179 e parágrafo único).5 a) Os de violação de direito autoral, usurpação de nome ou

pseudônimo alheio, salvo quando praticados em prejuízo de entidades dedireito (arts. 184 a 186).

6 a) Os contra a propriedade industrial (contra as patentes, dese

nhos industriais, marcas, crimes cometidos por meio de marcas, título

de estabelecimento e sinal de propaganda, contra indicações geográfi

cas e demais indicações e concorrência desleal, todos definidos nos arts.

183 a 195 (exceto o de n. 191, que é de ação pública) da Lei ri. 9.279,

de 14-5-1996, que entrou em vigor em 15 de maio de 1997. (Os arts.1 11 1, ~ 187 a 196 do CP foram revogados pelo novo Código da Propriedade, , lá. , ,

~~N Industrial.)1,.%4 7 a) 0 de induzimento a erro essencial e ocultação de

impedimento1 . 1 M c: ~, o para fins matrimoniais (art. 236 e seu parágrafo).o

8 a) 0 de adultério (art. 240).9.a) Os de estupro, atentado ao pudor (mediante violência ou

fraude), posse sexual mediante fraude, sedução, corrupção de menores erapto, desde que: a) não sejam cometidos com abuso do pátrio poder,

ouda qualidade de padrasto, curador ou tutor; b) da violência

empregada1-, - , o

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I., # não resulte lesão corporal grave ou morte; c) possam a ofendida e seus0 ~ , i1.` 1 pais prover às despesas do processo, sem que fiquem privados dos re: ~ 1---~. cursos indispensáveis à manutenção própria e da família (cf. CP, arts.223 e 225, § 1.', 1 e 11).Obs.: 0 Supremo Tribunal Federal, entretanto, prescreveu na Súmula 608 que "no crime de estupro praticado com violência real, a ação penal é pública incondicionada", pouco importando se a lesão resultante da violência é grave ou leve. Para a Suprema Corte, se da violência empregada resultar lesão corporal de natureza leve, no crime de estupro, aplicase a Súmula 608.

Já houve até quem dissesse - risum teneatis - que a ruptura do hímen constitui lesão corporal de natureza leve. Claro que não. A lei fala em "constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave

422

ameaça". A vis corporalis, elementar do tipo, é aquela empregada pelo agente para lograr a conjunção carnal, e não a decorrente da própria conjunção. Se esta é a cópula secundum naturam, que, por sua vez, é a introductio penis intra vas, toma-se claro que, com a introdução da verga na gruta inexplorada, a ruptura himenal é inevitável, salvo a hipótese de hímen complacente. Logo o rompimento do himen é condição sine qua para a Í . ml . ssi . o peru . s, em se tratando de virgo intacta.A o legislador considerasse o dilaceramento da membrana que fecha parcialmente a vagina como lesão corporal, ganharia o reino dos céus quem explicasse o estupro com violência presumida...Por outro lado, no crime de sedução, teríamos, também, a violência (ruptura himenal) como elementar...A violência a que se refere o art. 213 do CP, repita-se, é aquela empregada pelo sátiro para subjugar sua presa. Se da vis corporalis resultar lesão corporal grave, a ação penal é pública, como se constata pela leitura dos arts. 223 e 225 do CR E se dela resultar lesão corporal leve? Mesmo em face do art. 88 da Lei n. 9.099195, inteira aplicação terá a Súmula 608. V., a propósito, as observações feitas no ri. 20 do § 4.' deste volume.10.') 0 de exercício arbitrário das próprias razões, desde que não haja violência (art. 345 e seu parágrafo único).Se cometido em detrimento de património ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública, ex vi do § 2.0 do art. 24 do CPP.

5. Principios

A ação penal privada é regida por quatro princípios: o da oportunidade ou da conveniência, o da disponibilidade, o da indivisibilidade e o da intranscendência.

Princípio da oportunidade ou conveniência. Exprime o exercício facultativo da ação penal pelo seu titular. Enquanto pelo princípio da legalidade, que rege a ação penal pública, o seu titular, que é o

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Ministério Público, é obrigado a promover a ação penal, sem atentar para motivos de ordem política ou de utilidade social, desde que satisfeitas as condições mínimas para que a ação se inicie e que são os requisitos que Florian denomina "pressupostos gerais" (prova da existência do crime),

423

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k, 41

quer a parte objecti (materialidade), quer a parte subjecti (autoria), pelo princípio da oportunidade, que vigora na ação penal privada, o seu titular, que é o ofendido ou seu representante legal, promove a ação penal se quiser. Muitas vezes é preferível, como dizia o velho Pimenta Bueno, a impunidade do criminoso ao escândalo do processo.0 Estado, nesses crimes, concede ao particular, isto é, ao ofendido ou a quem legalmente o represente, ojus accusationis, o direito de acusar, de invocar a prestação jurisdicional, e, se o interessado quiser fazer uso de tal direito, poderá fazê-lo. Usá-lo-á se quiser. Promovera a ação penal, se quiser promovê-la. Não há obrigação; há faculdade. Se Mévio injuria Caio, este, se quiser, poderá intentar ação penal contra aquele. Entretanto, se o ofendido não quiser processar o seu injuriador, ninguém, nem mesmo o Estado, poderá obrigá-lo a isso. Mesmo que a Autoridade Policial surpreenda alguém cometendo um crime de alçada privada, não poderá prendê-lo em flagrante se o ofendido ou quem legalmente o represente não o permitir. Poderá intervir, para evitar conseqüências outras. Dar-lhe voz de prisão e levá-lo à Delegacia, para lavratura do auto de prisão em flagrante, não. A menos haja permissão do ofendido. Nisto consiste o princípio da oportunidade.Princípio da disponibilidade. Nos crimes de ação privada, o seu titular é o ofendido ou quem legalmente o represente. 0 Estado, sem abrir mão do seu direito de punir, outorgou-lhe ojus accusationis, atendendo àquelas razões Ja por nos estudadas. 0 direito de ação, nesses casos, é exclusivo do particular, isto é, do ofendido. Poderá exercê-lo, se quiser. Senão, poderá deixar passar in albis o prazo para o exercício daquele direito (ocorrendo assim a decadência, que é causa extintiva da punibilidade), ou renunciá-lo expressa ou tacitamente, ocorrendo, igualmente, a extinção da punibilidade. E, mesmo que venha a promover a ação penal, poderá a todo instante dispor do conteúdo material do processo (lide), quer perdoando o ofensor, quer abandonando a causa, dando lugar à perempção. Perdão e perempção,

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nos crimes de exclusiva ação penal privada, são, também, causas de extinção da punibilidade.Antagônico a tal princípio é o da indisponibilidade, que rege a ação penal pública. Nesta, o órgão do Ministério Público dela não pode dispor, porquanto ela não lhe pertence, e sim ao Estado. Ora, o órgão do Ministério Público não pode dispor de algo que não lhe pertence. Incisivo, a respeito, o art. 42 do CPP.

424

i

Tratando-se de ação penal privada, esta pertence ao ofendido ou a quem legalmente o represente, e, assim, poderá o seu titular usá-la se quiser e, mesmo iniciada, dela poderá dispor, seja pelo perdão, seja pela perempção.

Tão extenso é o princípio da disponibilidade que, até mesmo depois de proferida sentença condenatória, pode o titular da ação penal perdoar o réu (querelado), desde que a sentença não haja transitado em JulgadomOrcomo se constata pelo art. 106, § 1% do CR In verbis:

"Não é admissível o perdão depois que passa em julgado a sentença condenatória".

Princípio da indivisibilidade. Este encontra-se consubstanciado no art. 48 do CPP: "A queixa contra qualquer dos autores do crime obriga-rá ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade".

Tal princípio, na verdade, não é exclusivo da ação penal privada, sem embargo de haver o legislador, no artigo em exame, usado da pala-vra "queixa". De fato. Se A, B e C praticam um crime de ação pública, o órgão do Ministério Público é obrigadi~ a oferecer denúncia contra todos os partícipes do crime, salvo se em relação a algum deles houver empecilho à propositura da ação penal, como, por exemplo, extinção da punibilidade pela morte, impossibilidade absoluta de se conseguir, ao menos, seus sinais característicos. Caso contrário, a denúncia será oferecida contra todos.

Aliás, vigorando no Direito pátrio o princípio da legalidade, quanto aos crimes de ação pública, seria superfluidade salientar o legislador que a denúncia contra um dos autores do crime obrigaria ao processo de todos.

0 mesmo princípio vigora em relação àqueles de ação privada. Se A, por exemplo, teve o seu veículo danificado porX, Ye Z, a ação penal privada poderá ser promovida pelo ofendido contra todos. 0 ofendido, é certo, proporá a ação penal, se quiser, do contrário os danificadores ficarao absolutamente impunes. 0 que se não concebe, sob pena de serem desvirtuados aqueles motivos de política criminal que determinaram a adoção da ação penal privada, é poder o ofendido processar somente um dos culpados. Se o ofendido oferecer queixa apenas contra um, cumpre ao órgão do Ministério Público, velando pelo princípio da indivisibilidade

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425

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14 §a 1 0, 1 ~ 11. , %

Tão importante é esse princípio que, se o ofendido renunciar ao direito de queixa, isto é, se abdicar do direito de promover a ação penal quanto a um dos culpados, a todos se estenderá sua abdicação, conforme dispõe o art. 49 do CPP. Por outro lado, se o ofendido perdoar um dos culpados, a punibilidade será declarada extinta em relação a todos os co-réus, salvo quanto àquele que recusar o perdão, segundo dispõe o art. 51 do CPP, e, nessa hipótese, o processo terá andamento em relaçao ao querelado recusante. A norma contida no art. 51 do CPP constitui, destarte, uma exceção ao princípio da indivisibilidade da ação penal.E se os outros culpados não forem conhecidos? Suponha-se que quatro indivíduos tenham danificado a propriedade de B. Este descobriu apenas dois dos culpados. Não lhe foi possível conhecer, ao menos, os

da ação penal, aditar a queixa, isto é, nela incluir os que haviam sido excluídos (sobre esse aditamento, veja-se, no apêndice, trabalho que publicamos a respeito).

sinais característicos dos demais. Nessa hipótese, a queixa poderá ser apresentada contra os autores conhecidos, podendo, mais tarde (caso venham a ser identificados aqueles que não foram conhecidos), ser feito um aditamento à queixa, ou, então, conforme a fase da instrução criminal, ser instaurado outro processo quanto àqueles que eram desconhecidos, se, porventura, não estiver extinta a punibilidade.Tornaghi sugere: "Havendo suspeita da existência de partícipes não conhecidos, devem aplicar-se as regras dos arts. 363, H, e 366, que mandam citar por editais o réu incerto e prosseguir à revelia daquele que, citado, não comparecer sem motivo justificado" (Comentários, cit., p. 96).Ousamos, data venia, dissentir do ilustrado processualista. Se alguns partícipes do crime não são conhecidos, nem haveria possibilidade de se promover a ação penal contra eles, pois o art. 44 proclama que, quando da propositura da queixa, por procurador, deverá constar do mandato o nome do querelado (a lei fala em querelante, mas há evidente equívoco). Ademais, o art. 41 exige, para a denúncia ou queixa, a qualificação do réu ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo. Desse modo, não seria possível oferecer queixa-crime contra pessoas totalmente desconhecidas.

Por derradeiro: quando o art. 363, 11, fala em citação por edital de pessoa incerta refere-se, evidentemente, àquelas pessoas não devidamente qualificadas, mas presurnivelmente identificadas por sinais ca-

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racterísticos. E tanto é certo que, mais adiante, no art. 365, falando o legislador sobre os requisitos intrínsecos do edital, diz:

"0 edital de citação conterá:

1 - o nome do Juiz que a determinar;11 - o nome do réu, ou, se não for conhecido, os seus sinais característicos...

93

Assim, se o réu não for conhecido, isto é, se for pessoa incerta, o edital. deverá indicar os seus sinais característicos, pois seria absurdo intentar-se ação penal contra uma pessoa que não se conhece.

Concluindo: consiste o princípio da indivisibi ]idade em dever a ação penal ser promovida contra todos (autores e partícipes), pois o Estado concedeu ao ofendido o direito de acusar, e não o direito de vingança. Além daquela regra que se contém no art. 48, há uma outra, mais genérica, abrangendo a ação pública e privada. Referimo-nos ao art. 77, 1, do CPP combinado com o art. 79 do mesmo estatuto. Segundo tais dispositivos, quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração (autores e partícipes), deve haver um simultaneus processus. Consagrase, aí, de maneira indireta, o princípio da indivisibilidade da ação penal.Tem-se alegado, em relação ao art. 48 do CPP, que, uma vez ofertada a queixa em relação a um dos querelados, extinta estará a punibilidade em relação aos demais em face da renúncia tácita.

Se a omissão de um dos querelados na queixa implicasse renúncia tácita, ganharia o reino dos ceus quem explicasse a regra contida no art. 48 do CPP, ao proclamar que "a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade".

Se a queixa em relação a um "obrigará ao processo de todos", parece óbvio que todos devem ser postos no pólo passivo da relação processual. E essa tarefa, nos termos dos arts. 48, 46, § 1% e 45 do CPP, compete ao Ministério Público, fazendo o aditamento. Mas, se o querelante manifestar-se contrário à inclusão de outro ou outros, aí sim inteira aplicação terá o disposto no art. 49.Maiores detalhes sobre o princípio da indivisibilidade da ação privada são expostos no final deste volume, no Apêndice.

427

1

Princípio da intranscendência. Trata-se de princípio comum a toda e qualquer ação penal e consiste no fato de ser a ação penal limitada à pessoa ou às pessoas responsáveis pela infração, não atingindo, desse modo, seus familiares ou estranhos.

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Tal princípio encontra exceção no Direito mexicano, dada a circunstância de estabelecer a legislação do México que a satisfação do dano emergente da infração penal integra a pena e, por isso, deve ser exigida pelo Ministério Público, se não o fizer o ofendido. Na hipótese de o ofendido renunciar àquele direito, deve o Estado tornar efetiva a satisfação com os bens do responsável, e, ainda que haja falecido, responderão seus herdeiros até às forças da herança (cf. J. J. G. Bustamante, Princípios, cit., 1971, p. 41-2).

~ j 6. Quem pode promovê-la?,, lá,, .. 0 § 2." do art. 100 do CP diz: "A ação de iniciativa privada é pro-movida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade pararepresentá-lo". É a mesma regra contida no art. 30 do CPP:

i . 1,11,1 "Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá~ N1,9, o, lo caberá intentar a ação privada".

Então, quando o crime for de ação penal privada, o titular da ação ~- -- ~Iserá o ofendido, isto é, o sujeito passivo do crime, ou quem o represente legalmente (pai, mãe, tutor, curador .

-,' , ~.: . 0 ofendido menor de 21 e maior de 18 anos pode promover açãoM, ,11.--- 11 penal privada? Pode. 0 legislador não considerou o menor de 21 e maiorde 18, nesse particular, relativamente incapaz, tal qual o considerou nalei civil. 0 menor de 21 e maior de 18 anos pode promover ação penalprivada sem necessidade de ser assistido. E mais até: poderá ele promover a ação penal, mesmo a contragosto do seu representante legal. Defato. 0 art. 34 do CPP dispõe: "Se o ofendido for menor de 21 e maiorde 18 anos, o direito de queixa poderá ser exercido por ele ou por seurepresentante legal".

0 legislador concedeu a ambos, ofendido e representante legal, a titularidade da ação penal privada. Tanto pode promover a ação penal privada o menor como seu representante leg*al. Se o ofendido menor não quiser exercer o direito de queixa, isto é, não quiser promover a ação

428

penal privada, poderá fazê-lo seu representante legal, ainda que aquele a tanto se oponha, e vice-versa. Muito elucidativo o parágrafo único do art. 50 do CPP.

E se ambos, ao mesmo tempo, ingressarem em juízo com a queixa,

qual das duas deverá prevalecer? Parece-nos que se deve dar prioridade àquela oferecida pelo ofendido, pela vítima do crime.E se o ofendido for menor de 18 anos? Nessa hipótese, o Código não lhe rdé'onhece capacidade para praticar atos processuais. Somente seu

representante legal é que poderá, em seu,nome, promover a ação penal. E se o ofendido não tiver represe~fitante legal e for menor de 18?

Page 375: Fernando Da Costa Tourinho Filho - Processo Penal, Volume 1

Nesse caso, o próprio menor poderá levar o fato ao conhecimento do Juiz, e este, então, de ofício, nomear-lhe-á um curador especial, que poderá promover a ação penal. Nessa hipótese, o próprio Promotor de Justiçapoderá (e deverá fazê-lo) requerer ao Juiz a nomeação de curador especial para aquele fim. De observar que o curador especial não é obrigadoa oferecer queixa. Ele poderá promover ou deixar de promover a ação penal. Suponha-se que o curador especial entenda ser mais conveniente aos interesses do menor a não-propositura da ação penal. É evidente que

não deve promovê-la. Caso contrário, seria admitir a obrigatoriedade da ação penal privada, o que redundaria em manifesta absurdidade.A mesma regra é aplicável, em se tratando de ofendido maior de 18 anos, caso seja mentalmente enfermo ou retardado e não tenha representante legal, ou, tendo-o, haja colidência nos seus interesses. É manifes-

to, também, que, se o ofendido for menor de 18, tiver representante legal, mas houver colidência entre seus interesses, a ação penal poderá serpromovida por curador especial. Disciplinando a matéria, diz o art. 33 do CPP:

"Se o ofendido for menor de 18 anos, ou mentalmenteenfermo, ou retardado mental, e não tiver representante legal, ou colidirem os interesses deste com os daquele, o direito de queixa poderá ser exercido por curador especial, nomeado, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, pelo Juiz competente para o processo penal".

E se o ofendido morrer ou for judicialmente declarado ausente? Aíé preciso distinguir: se a ação penal ainda não foi promovida, poderá promovê-la qualquer daquelas pessoas enumeradas no art. 31 do CPP: côn-

429

i

juge, ascendente, descendente ou irmão. Se a ação penal já havia sido iniciada, qualquer daquelas pessoas poderá dar-lhe prosseguimento. E o curador do ausente? Quando o Juiz declara a ausência, nomeia um curador ao ausente. Pergunta-se: tal curador poderá ser incluído entre aquelas pessoas a que se refere o art. 31 do CPP? Não, sem embargo da opinião contrária do festejado Espínola Filho. Se o legislador quisesse conceder1esse direito ao curador do ausente, teria, no art 3 1, outorgado a titularidade da ação penal, nesses casos, ao representante legal, expressão que, evidentemente, tem um sentido amplo. Entretanto não o fez. Pelo contrário. Restringiu o direito de queixa ou de prosseguir na ação ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

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Vimos, assim, que, se o ofendido morrer ou for declarado ausente por decisão judicial (CC, arts. 463 e s), o direito de promover a ação penal passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.

1 11 Suponha-se que o ofendido morra. 0 ascendente ou descendente1, ~..só poderá exercer o direito de queixa se o cônjuge deixar de exercê-lo?Não. Ali não há uma ordem que deva ser religiosamente seguida. E tan-i , ,1 o " to é verdade que o legislador, prevendo a possibilidade de, ao mesmo

IIN % tempo, duas daquelas pessoas oferecerem queixa, dispôs no art. 36:C N#1 k~", o- "Se comparecer mais de uma pessoa com direito de quei-: i[., ,

xa, terá preferência o cônjuge, e, em seguida, o parente maispróximo na ordem de enumeração constante do art. 3 1, podendo, entretanto, qualquer delas prosseguir na ação, caso o querelante desista da instância ou a abandone".

7. A mulher casada pode exercer o direito de queixa?

0 art. 35 do CPP dispõe:

"A mulher casada não poderá exercer o direito de queixa sem consentimento do marido, salvo quando estiver dele separada ou quando a queixa for contra ele.

Parágrafo único. Se o marido recusar o consentimento, o Juiz poderá supri-lo".

A mulher casada só podia exercer o direito de queixa se o marido desse o assentimento; caso contrário, não. A regra, entretanto, admitia algumas exceções: a) se a mulher casada estivesse separada do marido;

430

b) quando a queixa fosse contra ele; c) em qualquer caso, dês que houvesse suprimento judicial do denegado assentimento.

Alguns autores entendiam que a separação referida pelo art. 35 do CPP era a "separação de direito" e não a "de fato". Era preciso, diziam, que a mulher estivesse separada judicialmente ou divorciada, a fim de poder exercer o direito de queixa sem o assentimento marital.

De ponderar, entretanto, redargüia a outra parte da doutrina, acertadaIT6ihte, que se o legislador quisesse dizer tal coisa, teria dito: "se estiver dele separada judicialinente", ou, então, se for desquitada ou divorciada. Ora, se o legislador disse: "se estiver dele separada", não distinguiu nem quis distinguir a separação de direito da separação de fato. Logo, ubi lex non distinguet nemo potest distinguere. 0

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entendimento dominante era no sentido de que a mulher casada, separada de fato ou de direito, podia exercer o direito de queixa.

1 .A segunda exceção dizia respeito à queixa contra o proprio marido. Era intuitivo que, se a queixa fosse contra o próprio marido, não teria sentido exigisse a lei a permissão deste para que a esposa pudesse ingressar em juízo contra ele próprio. Suponha-se que o marido houvesse cometido o crime de adultério. Teria sentido a esposa pedir-lhe autorização para processá-lo? Como a permissão seria negada sempre, o legislador se adiantou, dispensando-a.

A terceira exceção vinha prevista no parágrafo único do art. 35 do CPP. Mesmo que a mulher casada não estivesse separada do marido, mesmo que a queixa não fosse contra ele, poderia ela, em caso especialíssimo, exercer o direito de queixa. Isso poderia ocorrer se o Juiz suprisse a outorga marital. Suponha-se que uma mulher casada houvesse sido vítima de calúnia, e, levado o fato ao conhecimento do marido, este se recusasse a dar-lhe permissão para mover a queixa. Ela insistia em acusar seu caluniador, mas, como o marido a tanto se opunha, restar-lhe-ia procurar o Juiz, em petição circunstanciada, e o Magistrado, então, após ouvir as ponderações do marido recusante, poderia suprir-lhe a permissão. Se entendesse que as razões do esposo eram ponderáveis, deixaria de suprir a outorga, e a queixa não seria ofertada. Mas, se se convencesse de que as razões invocadas pelo esposo não se justificavam, supri-la-ia, e a mulher casada, então, poderia exercer o direito de queixa, mesmo contra a vontade marital, nos termos do paragrafo único do art. 35 do CPP.

431

Além daquelas exceções, aparentemente havia outras. Aparentemente, porque no fundo as situações eram semelhantes à verdadeira separação. Estas outras exceçoes eram aquelas previstas no art. 251 do CC, ao dizer competir à mulher casada a direção e administração do casal quando o marido: a) estiver em lugar remoto e não sabido; b) estiver em cárcere por mais de dois anos; c) for judicialmente declarado interdito.

CAI!

0 art. 35 do CPP não teria sido revogado pela Lei ri. 4.121, de 278-1962, mais conhecida sob a denominação "estatuto da mulher casada"? Pareceu a Frederico Marques que sim (cf. Elementos, cit., v. 4, p. 338, nota 15). Cremos, entretanto, que o art. 35 permaneceu inalterável. Realmente. Embora o art. 233 do CC diga que "o marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos", a própria lei especifica o que a mulher pode praticar livremente, e entre tais poderes não se inclui o direito de promover queixa, isto é, de intentar ação penal privada. Assim, o art. 248 do CC, com a nova roupagem que lhe trouxe o "estatuto da mulher casada", estabelece, no iric. VII, que ela pode "praticar quaisquer outros atos não vedados

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por lei". Se os incisos anteriores nada falam sobre o exercício da ação penal privada e se o iric. VII tem aquela redação, conclui-se que ela poderá praticar todo e qualquer ato, desde que não vedado por lei. Ora, se a lei veda à mulher casada o exercício do direito de queixa, salvo as exceções impostas no corpo do art. 35 e parágrafo único do CPP, é óbvio que a proibição permanece.0 Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, apreciando a Apelação n. 48.247, por votação unânime, decidiu, aos 22-6-1982: "Em situação não alterada pela Lei ri. 4.121, de 27-8-62, salvo quanto a infrações ocorridas entre conjuges, a esposa somente pode aforar queixa-crime com expresso assentimento do marido, embora se admita que este, antes de escoado o prazo de decadência, ratifique o processado irregularmente iniciado. Em havendo injusta recusa do esposo para que a consorte penalmente demande contra terceiro, como condição de procedibilidade, cumprirá à interessada recorrer a suprimento judicial do denegado consentimento". No mesmo sentido, RT, 4581423.Hoje, entretanto, em face do art. 226, § 5.', da Constituição de outubro de 1988, estabelecendo, na sociedade conjugal, igualdade de direitos e obrigações para o homem e a mulher, parece-nos que a restrição imposta pelo art. 35 do CPP perdeu sua razão de ser. Se marido e mulher têm

432

os mesmos direitos, por que o esposo pode exercer o direito de queixa e a mulher não? A revogação do citado preceito processual penal, a nosso ver, é manifesta, mas, apesar da revogação tácita, o legislador preferiu fazê-lo, também, de maneira expressa, nos termos da Lei ri. 9.520, de 27-11-1997.E se se tratar de representação? 0 art. 35 restringiu, de certo modo, a capacidade processual da mulher casada, e, assim, não se pode admitir uma interpretação extensiva ou analógica desse artigo com o intuito,~te restringir, ainda mais, aquela capacidade. Toda norma que restringe direito subjetivo deve ser interpretada restritivamente. Assim, se o art. 35 do CPP vedava à mulher casada o direito de queixa, a restrição se limitava a esse direito. Poderá, pois, exercer o direito de representação, mesmo contra a vontade do marido. Se a lei vedasse à mulher casada o direito de representação, poder-se-ia afirmar que ela não poderia exercer o direito de queixa. Se a representação é um minus em confronto com a queixa, o raciocínio seria este: se a lei proibiu o menos, não poderia fazer o uso do mais. A situação, contudo, é a inversa: a lei proibiu o mais (direito de queixa) e não o menos (representação).Aliás, há algum tempo, chamado a pronunciar-se sobre o assunto, assim se manifestou o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo: "A restrição do art. 35 do CPP não se aplica à representação, mas, exclusivamente, ao direito de queixa. As duas situações não se equivalem. Da representação decorre ação pública e da queixa nasce a ação privada, com todas as suas conseqüências. A lei é mais rigorosa em relação a esta, exigindo expressamente o consentimento do marido" (RT, 185160). No mesmo sentido, RV, 91/817.

A discussão que a matéria, eventualmente, poderia suscitar perdeu sua razão de ser, em virtude de a Constituição de 1988, tal como observamos, haver revogado a restrição imposta pelo art. 35 do

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diploma processual penal. Então, se a mulher casada, em face da Lei Maior, pode exercer o direito de queixa, com muito mais razão, quando se tratar de representação.

8. Pessoas jurídicas

As fundações, associações e sociedades legalmente constituídas podem promover a ação penal privada, devendo, entretanto, ser representadas por quem os respectivos contratos ou estatutos designarem ou, no silêncio destes, pelos seus diretores ou sócios-gerentes. É a regra que se contém no art. 37 do CPR

433

É possível admitir a responsabilidade penal das pessoas jurídicas?

A controvérsia é velha e revelha. Para a teoria organicista, com Gierke,

Mestre, Liszt e outros à frente, a pessoa jurídica é tão verdadeira e real

como a pessoa humana. Contudo, segundo a teoria da ficção, dominante, societas delinquere non potest. Se o crime pressupõe uma

conduta(nullum crimen sine conducta), cabe afirmar, com seguridade, que apessoajurídica não pode delinqüir - falta-lhe a capacidade de

conduta.Se ela não pode praticar uma ação, como atribuir uma conduta

aesse ente fictício? Que ação ou omissão pode cometer a

pessoajurídica?Do mesmo sentir o eminente Álvaro Mayrink da Costa: "As pes

soas jurídicas não possuem capacidade de conduta, visto que o crime se

elabora sobre a conduta humana individual. A vontade humana é umfenômeno psíquico inconcebível na pessoajurídica" (Direito penal,

Forense,1998, v. 1, t. 2, p. 757). Assim, a admissão da responsabilidade da

pessoa 'urídica implicaria, inclusive, esvaziar, às inteiras, o

princípio da~, w, relação de causalidade inserto no art 13 do CR4 ~., L~., .

Falando por todos professava Frederico Marques que não existe

crime punível sem o j uízo de reprovação que se contém na culpabilida

de, e não é Possível incriminar uma pessoa jurídica justamente porque

~ 1,C se lhe não pode atribuir uma ilicitude a parte subjecti na prática de um

delito (Curso de direito penal, Saraiva, v. 3, p. 25 e s.).Assim também a grande maioria dos penalistas. Maggiore,

refu

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tando Gierke, Mestre, Liszt, Longhi e De Marsico, observava que uma

associação ou fundação poderá adquirir, vender, herdar etc., "pero noMII - 1 1., delinquir, porque sólo la persona física, dotada de voluntad y de libertadlb l., #AIs h., J efectivas, puede sentir la amenaza de la ley y quebrantarla. Solamente1111-1 ~una míope comprensión de los problemas y exigencias del derecho penal, podrá inducirnos a trasladar ao campo del derecho criminalconstrucciones dogmáticas nacidas en el terreno del derecho privado"(Derecho penal, Ed. Themis, 1954, v. 1, p. 474).

Certo que a Constituição Federal, no art. 225, § 3.', admite, claramente, a possibilidade de a pessoa jurídica sujeitar-se a sanções penais.1 Mas, se lhe falta capacidade de culpabilidade, somente por arte mágicapoder-se-á imputar-lhe a prática de crime. E tanto é verdade que o art.3.' da Lei Ambiental (Lei ri. 9.605/98) dispõe que "as pessoas jurídicasserão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme odisposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado,no interesse ou benefício da sua entidade" (grifos nossos). Logo, se a434

infração for cometida por um empregado, ou se o ato infracional for fruto de ordem de um funcionário graduado, à revelia do representante legal, a pessoa jurídica estará a salvo de ser penalmente punida. Aí está a prova maior de que nem o legislador concebe a possibilidade de uma pessoa jurídica ser sujeito passivo da pretensão punitiva. A própria lei reconhece que ela sozinha não pode delinqüir. Se não pode, por que falar da sua responsabilidade penal? Na dicção do art. 3.' da Lei ri. 9.605, de 12-2 , ,1998, vale repetir, a pessoajurídica só será penalmente responsabilizIda se a infração for cometida por decisão do seu representante... no interesse ou benefício da sua entidade. Mas, nesse caso, a responsabilidade é do seu representante legal ou contratual... Procurou-se punir as pessoas jurídicas por via oblíqua, utilizando-se de um artifício. Melhor andaria o legislador se deixasse de lado tanta engenhosidade e observasse a regra contida no art. 28 do Código do Consumidor, que admite a figura do disregard of legal entity, não como sanção penal, mas como providência de índole administrativa ou civil. Se se admitir que a pessoa jurídica é tão real como a pessoa física, sua total dissolução, assim como prevista no art. 22 da Lei do Meio Ambiente, representaria verdadeira pena de morte, vedada pela Lei Maior. Tão correta é essa observação que, numa eventual reforma do CP, para admitir-se a res-ponsabilidade penal da pessoa jurídica haverá necessidade de alterar toda uma construção lógico-jurídica, como conduta, imputabilidade, culpabilidade, por exemplo. A Lei ri. 9.605/98, como segmento do Direito Penal, destoa deste, pelo antagonismo que representa e traduz, e, por isso mesmo, nem se pode falar em segmento... Por outro lado, o art. 3.' da Lei Ambiental, punindo as pessoas jurídicas quando

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a infração for cometida no seu interesse ou benefício, deixaria de lado as pessoas jurídicas de direito público. E aí estão os lixões e os esgotos a céu aberto em quase todas as nossas cidades, desafiando a resistência de centenas de pobres coitados, castrados até à esperança. E a população, impotente, nada pode fazer, porque a agressão ao meio ambiente não parte de uma pessoa jurídica de direito privado. Por que elas não podem ser punidas? Odiosa ofensa ao principio da isonornia. Ademais, como apenas as entidades de direito privado é que devem sofrer as punições, a nosso aviso, poderia a lei, respaldada no art. 5.', XLV, da CF, estender a obrigação de reparar os danos à pessoa jurídica, ou, então, já agora incluindo a desconsideração da entidade legal abstrata, vivificar com mais vigor a medida de segurança patrimonial de que tratava o art. 99 do Código Penal de 1940, ainda que a infração seja fruto de ato de funcionários da empresa, sem necessidade de lançar mão de um artifício, de uma enge-nhosa concepção que esbarra no bom-senso.

435

Entretanto a pessoa jurídica pode ser sujeito passivo do crime. Se Mévio subtrai, para si ou para outrem, objetos de uma empresa, a vítima, no caso, é a próprxa empresa. Se o crime praticado contra a pessoa jurídica for de ação pública, as pessoas a que se refere o art. 37 do CPP podem oferecer ao Ministério Público os necessários elementos de convicção para a propositura da ação penal. Podem, também, leva-los a Autoridade Policial, por meio de um requerimento, nos termos do inc. 11 do art. 5.' do CPR Se a ação penal for condicionada à representação, aquelas pessoas podem fazê-la.Tratando-se de crime de ação privada, caber-lhes-á não só requerer a instauração de inquérito, como também dar início à ação penal, por meio da queixa. A propósito, RTJ, 54/697.

9. Prazo

1 . : , r. Dentro de que prazo deve ser exercido o direito de queixa? Di-lo oSart. 38 do CPP:

"Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado 1,1 *4"14 do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no casodo art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia".~- -1 M.0 dispositivo é semelhante ao art. 103 do CP. Neste, não se faz menção ao representante legal. Fala-se, somente, em ofendido. Prevalece, entretanto, a regra do art. 38 do CPP, uma vez que a matéria é, ine-IL4 -,11 11," gavelmente, de Direito Processual.0 ofendido ou seu representante legal poderá exercer o direito de

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C t '1 1 queixa dentro do prazo de 6 meses, contado do dia em que vier a saberh..quem foi o autor do crime. De observar que o próprio art. 38 acentua: salvo disposição em contrário". Quer dizer então: a regra e aquela, salvo se a lei, em determinado caso, não dispuser de modo contrário, tal qual o fez para o crime de adultério, em que a ação penal, nos termos do § 2.' do art. 240 do CP, deve ser intentada dentro de 1 mês, após o conheci-imento do fato. Também na hipótese do art. 236 do CP, o prazo é diferente, como se percebe pela leitura do parágrafo único do citado artigo: "A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento". Na Lei de Imprensa, o prazo para a queixa é de 3 meses.

436

Na hipótese do art. 529 do CPP, há um prazo especial: se o crime contra a propriedade imaterial deixou vestígios, uma vez requeridos busca e apreensão e exame pericial, o ofendido disporá do prazo de 30 dias para oferecer queixa, prazo esse que se conta a partir da data da homologação do laudo. Veja-se, a propósito, venerando aresto do STF, DJU, 7-12-1979, p. 9207. Note-se: mesmo nesses casos, o prazo será de 6 meses. Mas, se o ofendido, já no primeiro mês, após saber quem foi o autor do crime, requerer aquelas diligências, o prazo para a queixa será de 30 das, a contar da intimação da homologação do laudo pericial pelo Juiz. Observe-se, contudo, que a norma contida no parágrafo único do art. 529 ficou prejudicada em face do art. 129, 1, da Constituição Federal. 0 ofendido somente poderá ofertar queixa substitutiva da denúncia se ocorrer a hipótese tratada no art. 29 do CPP, por força do art. 5.', LIX, da Constituição Federal.Convem aqui a ponderada observação de que a queixa a que se refere o art. 38, de molde a evitar a decadência, deve ser apresentada em juízo. A palavra "queixa", vale repetir, é empregada, no CPP, no seu sentido técnico-jurídico, isto é, de ato processual, por meio do qual o ofendido inicia a instância penal. Poder-se-á dizer, para melhor compreensão: é a denúncia nos crimes de ação penal privada. Assim, o prazo de 6 meses é para o ofendido promover a ação penal privada, sob pena de não mais poder intentá-la, pois se trata de prazo decadencial.Se A foi vítima de um crime de natureza privada e quiser processar o culpado, deverá, dentro daquele semestre referido no art. 38, ingressar em juizo com a queixa-crime.Assim, se o ofendido, faltando 10 dias para escoar-se o prazo do art. 38, não dispuser dos elementos necessários para promover a ação penal e requerer à Autoridade Policial a instauração do competente inquérito, não se poderá dizer haver ele exercido seu direito de queixa dentro do prazo legal. Se a Autoridade Policial, no caso em exame, concluir o inquérito em 9 dias e, no dia seguinte, o ofendido ingressar em juizo com a queixa-crime, aí, sim, foi tempestiva a queixa. Mas, se o inquérito for concluído 11 dias depois, operar-se-á a decadência. Convém até lembrar que, nos crimes de ação

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privada, requerido e concluído o inquérito, aplicar-se-á o disposto no art. 19 do CPP, isto é, remetido o inquérito ao Juiz, determinará este, ex officio ou a requerimento do Ministério Público, permaneça em Cartório, aguardando a iniciativa da parte.Por outro lado, é de observar que decai de um direito quem nele se encontre investido. Assim, se o ofendido for menor de 18 anos, mentalmente enfermo ou retardado mental, o prazo começará a fluir a partir da

437

"No sistema do CPP há autonomia do direito de queixa ou de representação, que pode ser exercido pelo ofendido ou por seu representante legal. 0 prazo de decadência, cujo termo inicial é, em princípio, conforme o art. 38, do dia em que o titular do direito vier a saber quem é o autor do crime, corre separadamente em relação ao que tiver esse conhecimento. Operada a decadência para um, continuará titular do direito de queixa ou S~(` de representação o que não tiver notícia do crime" (cf. TF.k, , ollí,~ L -i,1 votação unânime da 1.' Turma, DJU, 7-5-197 1, p. 1975).

Esse entendimento vinha sendo sufragado pela Excelsa Corte, como se constata pelos venerandos arestos publicados na M, 48/90 e 551568.Depois, o Excelso Pretório decidiu de maneira contrária. E o seuM -, 3ilustre Relator acentuou: "Ocorre a decadência do direito de queixa ou representação se não foi exercido nos 6 meses após a vítima da sedução ter completado 18 anos". E mais adiante frisou: "Repugna à lógicajurídica, no meu entender, que se dê ao representante legal um direito que a representada já tinha e não quis exercer no prazo concedido pela lei" (cf. RTJ, 58/26).Hoje, contudo, o entendimento contrário a este é objeto da Súmula

data em que seu representante legal vier a saber quem foi o autor do crime. Se o ofendido, entretanto, menor de 18 anos, sabia quem era o autor do crime e, ao completar essa idade, deixou escoar os 6 meses, sem tomar qualquer próvidência, operou-se a decadência, pouco importando que o seu representante legal viesse a tomar conhecimento do fato e da respectiva autoria no dia seguinte àquele em que o ofendido completou 18 anos e 6 meses, conforme acentuamos quando do estudo que fizemos a respeito da representação. Nesse sentido, vários arestos publicados na RT, 273/161, 394/111, 415/98, 398/98 e 402/108. Todavia mais numerosos são os acórdãos que esposam ponto de vista oposto: RT, 259n7, 252/126, 311/150, 257/183, 249/87, 303/53, 409/75, 407/91.Cumpre observar, entretanto, que o STF já se manifestou sobre a tese que ora testilhamos, adotando ambos os pontos de vista. Vejamos:

594.

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Battaglini, interpretando o § 3.' do art. 120 do Código italiano, que tem a mesma redação do art. 34 do nosso CPP, exceto quanto à idade do ofendido, que lá é de 14 e aqui é de 18 anos, diz: "... anche, se per il

minore il termine é già trascorso, puà essere valida Ia querela sporta in tempo sucessivo dal rappresentante " (cf. La querela, cit., p. 465).

438

E a razão desse sentir é por ele explicitada:"La legge si preoccupa di evitare le conseguenze che dall'inesperienza del minore o dalla minorata volontilá dell'inabilitado potrebbero derivare in danno sia dei loro stessi interessi sia soprattutto della soddisfazione dell'interesse dello Stato alla punizione dei colpevoli " (cf. La querela, cit., p. 365).No mesmo sentido a lição de Saltelli (cf. La rappresentanza nella quer.SW e le sue deroghe, p. 11).Sem embargo de todos esses ensinamentos, estamos que a posição correta é aquela esposada pelo venerando aresto da Excelsa Corte, publicado na RTJ, 58/26.

10. 0 prazo na hipótese do art. 31

E na hipótese do art. 3 1, isto é, quando o ofendido morre ou e judicialmente declarado ausente9 Diz o parágrafo único do art. 38: "Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 3 1 ". Assim, o prazo, na hipótese do art. 31, será, também, de 6 meses. Indaga-se: 6 meses após a data em que o sucessor vier a saber quem e o autor do crime, ou 6 meses após a data em que o ofendido falece ou é judicialmente declarado ausente? A indagação comporta alguns esclarecimentos: a) se o ofendido, 6 meses antes de morrer, soube quem foi o autor do crime, tinha capacidade processual e não ofereceu a queixa, operouse a decadência; b) se o ofendido, 6 meses antes de morrer, soube quem foi o autor do crime, mas não tinha capacidade processual, o prazo para a apresentação da queixa será, é certo, contado a partir da data em que qualquer das pessoas enumeradas no art. 31 souber quem foi o autor do crime; c) se o ofendido tinha capacidade processual e soube quem foi o autor do crime 5 meses antes de morrer, creio que o prazo para o oferecimento da queixa, em que pese ao valor da opinião contrária do ilustrado Espínola Filho, será contado a partir da data em que qualquer dos sucessores vier a saber quem foi o autor do crime. E verdade que o prazo decadencial é uno, mas, se a lei concede o prazo de 6 meses e se o ofendido faleceu quando faltavam 30 dias para o seu término, não se poderá dizer que o prazo continuará correndo, salvo se qualquer dos sucessores teve, à mesma época que o ofendido, conhecimento de quem foi o autor do crime, quando, então, o prazo se expirará após o 30.' dia. Caso contrario, não se pode admitir que o restante do prazo corra contra os demais sucessores que nem sequer sabiam do fato. Suponha-se que

439

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B tenha sido vítima de um crime de ação privada. Três dias antes demorrer, veio a saber quem foi o autor do crime. As pessoas

enumeradasno art. 31 vieram a saber quem foi o autor do crime 8 meses apos amorte do ofendido. Quer-nos parecer que o direito de queixa poderá

serexercido dentro no semestre seguinte. Não seria justo negar-lhes

essedireito, pois, do contrário, quase que seria inaplicável a regra do

art. 3 1.Com tal entendimento não nos estamos contradizendo ao afirmar

aunidade do prazo decadencial na hipótese do art. 34. Neste caso, há

doistitulares alternativos do direito de queixa ou de representação. Se

umnão o exerce dentro do prazo legal, o outro não mais poderá exercê-

lo,do contrário estaria sendo beneficiado o titular inerte ou

desidioso. Poroutro lado, o prazo de 6 meses é mais que razoavel, pois, do

contrário,seria colocar "em mãos de pessoas inescrupulosas um precioso elemento de vingança".

Entretanto, no exemplo dado (hipótese do art. 3 1), não há um titular

desidioso. Houve a morte do ofendido e, conseqüentemente, há impossibi

lidade absoluta de exercer o seu direito, e, como este se transfere aos su

cessores, o prazo começará a fluir para eles, dependendo da hipótese, a

partir da data em que qualquer deles vier a saber quem foi o autor do crime.

Dizendo o parágrafo único do art. 38 que o prazo é de 6 meses,N também na hipótese do art. 3 1, é preciso frisar que, se o ascendente, por

exemplo, soube quem foi o autor do crime 1 ano após a morte do ofendido e não ofereceu queixa no semestre subseqüente, operar-se-á a

decadência, pouco importando que os demais sucessores (cônjuge, descendente ou irmão) venham a saber mais tarde quem foi o autor do

crime., I.,~ , 1 0.1 Se, entretanto, o cônjuge, o descendente ou o irmão, mesmo assim,

oferecerem queixa, cumpre ao querelado fazer a prova no sentido deque o ascendente do ofendido ficou sabendo quem foi o autor do

crimehá mais de 6 meses e, todavia, deixou expirar in albis o prazo para

ooferecimento da queixa. Feita a prova, creio que outro caminho não

restará ao Juiz senão julgar extinta a punibilidade, pela decadência,

poden

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do, porém, aplicar o disposto no parágrafo único do art. 61 do CPP.11. Contagem do prazo

Tudo quanto falamos sobre o assunto, ao tratarmos da representa

ção (Cap. 8, § 4.", verbete Como se conta o prazo para a representa-i ção?), é válido para a queixa.11 1 0 prazo para o oferecimento da queixa, tal qual se dá com a repre-sentação, é decadencial. Desse modo, não admite interrupção, suspen-

44011

são ou prorrogação. Se o ofendido capaz ou o seu representante legal, se incapaz, vier a saber quem foi o autor do crime no dia L'-1-1995, o prazo,para a oferta da queixa expirar-se-á no dia 30 de junho do mesmo ano. E possível que a pessoa investida do direito de queixa, como medida preliminar, requeira à Autoridade Policial, nos termos do § 5.' do art. 5.' do CPP, a instauração de inquérito, para melhor colher elementos de convicção. É possível, também, que as investigações policiais se arrastem p5WO, 60 dias, ou mais. Concluído o inquérito, se o prazo de 6 meses a que se refere o art. 3 8 do CPP já se findou, não mais poderá ser exercido o direito de queixa. 0 ingresso do ofendido, na Polícia, requerendo a instauração do inquérito, não interrompe o prazo, que é decadencial. * fato de haver sido requerida a instauração de inquérito é irrelevante. * lei quer que o direito de queixa seja exercido no prazo de 6 meses, e o marco inicial vem apontado no art. 38. Ora, se a queixa é o ato instaurador do processo nos crimes de ação privada, é óbvio que ela deve ser ofertada em juízo. Certo que, na prática, costume-se empregar o vocábulo "queixa" com o sentido de notitia criminis. Diz-se, então: Sicrano foi fazer queixa à Polícia; Beltrano apresentou queixa ao Delegado. Na técnica processual, entretanto, a palavra "queixa" tem um significado todo especial. Indica o ato inaugural, a peça inicial da ação penal privada. E, como o direito de ação se exerce em juízo, logo, é aí que ela deve ser apresentada.Se fosse representação, seria diferente. 0 art. 39 do CPP permite se faça a representação ao Juiz, Delegado ou Promotor. Feita a representação ao Delegado, dentro do prazo legal, pouco importa que as investigações policiais demorem 5, 6 ou 8 meses. Ela não pode ser feita à Autoridade Policial? Não foi feita no prazo legal? É o que basta. Já na ação privada é diferente, porquanto a queixa somente poderá ser oferecida em juízo.

E se o último dia do prazo coincidir com um domingo ou feriado? Tratando-se de representação, toma-se mais fácil, visto que o interessado poderá dirigir-se à Autoridade Policial que está em constante plantão. E se for queixa? Se houver Juiz de plantão, a ele deve ser dirigida, podendo o interessado procurá-lo até mesmo em sua própria residência.• art. 797 do CPP permite a prática de atos processuais aos domingos...• que não pode é esperar o interessado o próximo dia útil imediato, tal como sugere o § 3.' do art- 798 do CR E que o prazo decadencial não se prorroga. A propósito, RT, 530/367, 525/389, 4851330, 427/420, 369/ 218; RV, 451480.

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441

12. Divisão da ação penal privada

Entre nós, há três tipos de ação penal privada: a) ação privada propriamente dita, ou ação penal exclusivamente privada - cujo estudo vimos de fazer -, aquela cujo exercício compete ao ofendido ou a quem legalmente o represente; se o ofendido morrer ou for declaradoiausente por decisão judicial, o direito de queixa ou de prosseguir na ação passa ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão; b) ação penal privada subsidiária da pública, aquela que se intenta nos crimes de ação penal pública, seja condicionada, seja incondicionada, se o órgão do Ministério Público não oferecer denúncia no prazo legal (CPP, art. 29); c) ação penalprivada personalissima, cujo exercício compete, única e exclusivamente, ao ofendido.Sobre a ação penal privada subsidiária da pública, falaremos em capítulo especial.

, ( Poder-se-ia até falar em "ação penal privada adesiva", naquela hi-0%,

pótese de conexão entre crime de ação penal pública e ação penal priva

da, quando, então, dependendo da natureza do procedimento, a vítimaofertaria sua queixa ao lado da denúncia do Ministério Público. Mascomo normalmente, em casos dessa natureza, há uma separação dosprocessos, em face mesmo da diversidade procedimental, fica,

apenas,1-%,N,., sol o registro de que é possível falar-se em "ação penal privada adesiva".i Frederico Marques alude à hipótese de o Assistente de Acusação aditar

a denúncia, se, por acaso, o Promotor de Justiça, no requisitório, exclui

uma infração (Curso, cit., v. 3, p. 380). Não nos parece possa o assisten

te aditar a denúncia. 0 art. 271 do CPP enumera os atos que o assistente

pode praticar, e ali não há nenhuma referência a aditamento à denúncia.

Ali se fala em libelo. E libelo no sentido que o legislador processual4,.") penal o emprega - peça acusatória dirigida ao Tribunal do Júri.as h%t'I) Temos, no Direito pátrio, apenas dois casos de ação penal privada'b% personalissima: L') a ação penal no crime de adultério; 2.') a ação penal

no crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento.Diz o § 2.' do art. 240 do CP:

"A ação penal somente pode ser intentada pelo conjuge

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ofendido, e dentro de um mês após o conhecimento do fato".Quanto ao crime de induzimento a erro, diz o parágrafo único do

art. 236 do CP:"A ação penal depende de queixa do contraente enganadoe não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado

442

a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento".

13. A morte do cônjuge ofendido na ação penal privadapersonalíssima

Se Mévio soube que sua esposa cometeu adultério e, dois dias após o conhecimento do fato, vem a falecer, extingue-se a punibilidade, porquant6-não há, nessa hipótese, à maneira do que ocorre na ação penal exclusivamente privada ou privada subsidiária da pública, a sucessão do direito de queixa. Inaplicável o disposto no art, 31 do CPP: somente o cônjuge ofendido é que pode exercer o direito de queixa.

14. 0 ofendido incapaz e o direito de queixa na ação penalprivada personalíssima

Se, porventura, o cônjuge inocente for doente mental, incapaz, portanto, não poderá ser exercido o direito de queixa. Se este pertence com exclusividade ao cônjuge, não poderá o Juiz nomear um "curador especial" para aquele fim, nos termos do art. 33 do CPP. E Battaglini explica: "Cià dipende dalfatto che, violando Vadulterio lafedeltà coniugale, nessun altro puà dolersene all'infuori del coniuge verso cui saltando Vobbligo di tale fedeltà sussite " (cf. La querela, cit., p. 372).Na Relazione que acompanhou o Projeto definitivo do CP italiano, acentuou-se: "... para referidos crimes (adultério e concubinato) não funciona nenhum tipo de representação, sequer a representação necessana; este é o único caso em que encontra aplicação integral o caráter de personalidade e de intransinissibilidade do direito de querela". E a Corte Suprema peninsular, nos idos de 1936, deu ênfase a tal entendimento: "0 exercício do direito de querela quanto ao adultério corresponde exclusivamente ao cônjuge. Se este for interdito, em virtude de enfermidade mental, seu curador não poderá exercer o direito de querela" (cf. Cas., 17-6-1936, apud Maggiore, Derecho, cit., v. 4, p. 195).

Neste mesmo sentido, vejam-se Saltelli, La rappresentanza nellaquer * ela e le sue deroghe, in Annali di Dir Pen., 1936, p. 963; Manfredini,Delitti contro lafamiglia, p. 292; De Marsico, Dirittopenale, 1935, p.413; Battaglini, La querela, cit., p. 372; Carrara, Adulterio a danno diconiuge pazzo, in Lineamenti di pratica legislativa, p. 188.Contra: Maggiore, Derecho, cit., p. 194; Leone, Giust. penale, 1936, v. 2, ri. 100; Manzini, Trattato di diritto penale, 195 1, v. 7, p. 7 10, com

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a seguinte observação: "Na verdade, parece estranho e imoral que um cônjuge possa aproveitar-se das condições de inferioridade psíquica do outro cônjuge para cometer impunemente o adultério".Se a objetividade jurídica, no adultério, é a fidelidade conjugal, éinduvidoso que somente o cônjuge inocente é que poderá sentir-se injuriado, ofendido. Trata-se de um querelante insubstituível. E tanto é verdade que, morrendo o cônjuge ofendido, antes ou depois de proposta a queixa, extingue-se a punibilidade.Certo que tal causa extintiva da punibilidade não se encontra elencada no art. 107 do CR A doutrina, entretanto, observa que, além daquelascausas referidas no aludido preceito, há outras, e, entre estas, a morte do cônjuge ofendido, quando se tratar de adultério. A propósito, Basileu Garcia, Instituições, cit., t. 2, p. 660; Frederico Marques, Curso, cit., p. 411; Maggiore, Derecho, cit., p. 200; Carrara, Programma, cit., § 1.915.Ademais, não se concebe a nomeação de um curador especial, porquanto o § 2.' do art. 240 do CP não usa a expressão "somente seprocede mediante queixa", como normalmente fazem os demais dispositivos legais, quando querem subordinar a propositura da ação à exclusiva iniciativa privada. Diz simplesmente: a ação penal somente podeser intentada pelo cônjuge inocente. Trata-se, pois, de direito personalissimo e intransmissivel.Admitindo-se a possibilidade de ser nomeado um curador especial, na hipótese de ser o cônjuge inocente um doente mental, ter-se-ia de admitir, também, ante a sua morte, pudessem seus ascendentes, descendentes ou irmãos dar início ou continuação à queixa. Entretanto a morte do conjuge inocente, nessa hipótese, é causa extintiva da punibilidade. No Direito italiano há, até, norma expressa. A propósito, Manzini: 'Vart. 563 stabilisce che la morte del coniuge offeso estingue il reato " (cf. Trattato, cit., p. 705).E se o cônjuge inocente for menor de 18 anos? Em face da regra que se contém no § 2.' do art. 240 do CP, não admitindo o exercício do direito de queixa por quem quer que seja, salvo o cônjuge inocente, estamos ser inaplicável o disposto no art. 33 do CPP.Se, no adultério, ofendido é o cônjuge inocente, caso o legisladorquisesse tomar possível o oferecimento de queixa por meio de um curador especial, teria simplesmente dito no § 2." do art. 240 do CP: somente se procede mediante queixa. Entretanto restringiu tal direito. So o conjuge inocente. Ninguém mais. A lei é taxativa: "Somente pode ser intentada pelo cônjuge inocente".Há, ainda, a considerar um elemento histórico de grande valia. 0 nosso art. 33 do CPP teve por fonte o art. 121 do CP italiano. A redação

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e a mesma. Apenas a idade do ofendido é que sofre alteração. Lá é 14 e, entre nós, 18. Pois bem: a Exposição de Motivos do CP peninsular deixou bem claro que, "para referidos delitos (adultério e concubinato), não funciona nenhum tipo de representação, sequer a representação necessária" (cf. Relazione, v. 2, p. 342).Por outro lado, o casamento não supre a incapacidade para a prática de atos processuais penais. 0 CPP, por sinal posterior ao CC, não fala em cap#cidade. Deixa entrever, no art. 34, que o direito de queixa pode ser exercido pelo ofendido que haja completado 18 anos. Ademais, a emancipação pelo casamento, ou por qualquer dos fatos especificados no art. 9.', parágrafo único, do CC, apenas faz cessar a incapacidade civil, nada tendo que ver com maioridade penal. Cabe ao Direito Penal dizer qual a idade mínima para que alguém possa ser considerado imputável. Cabe ao Direito Processual Penal estabelecer a idade minima para se exercer o direito de queixa ou de representação. Essa idade foi fixada em 18 anos. Não há, in casu, nenhuma intromissão do Direito Civil. No Direito Civil pode haver a emancipação. No Penal, não.

Em face desse entendimento, estamos que o cônjuge ofendido deverá aguardar, se quiser, a sua maioridade penal, quando, então, poderá fazer uso do direito de queixa. Não há falar em decadência. Esta somente se verifica se a pessoa investida do direito de queixa ou de representação, podendo exercê-lo, não o faz. Sendo o ofendido menor de 18 anos, não poderá promover a ação penal. Não podendo, o prazo não corre para ele.As mesmas observações são válidas para a hipótese prevista no art. 236 do CP, em face da regra do seu parágrafo único, que restringe o direito de queixa ao cônjuge enganado.

No Direito pátrio, Romão Cortes de Lacerda entende possível a queixa ofertada pelo menor (cf. Comentários ao Código Penal de 1940, v. 8, p. 343).

15. Despesas judiciais

Todo procedimento judicial, e assim também o penal, há de determinar, inevitavelmente, o dispêndio de dinheiro para tornar possível a atuação da função Jurisdicional. Esse gasto, essa despesa, fica a cargo da pessoa que o promove, ou de quem tem interesse no seu andamento, ou na realização de qualquer dos atos do respectivo processo.Tratando-se de ação penal pública, seja incondicionada, seja condicionada, não haverá tal ônus para o Ministério Público e, muito menos, para a vítima. Mesmo que a denúncia seja, afinal, julgada improcedente,

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não estarão o Ministério Público ou a vítima sujeitos ao pagamento das custas, isto é, das despesas judiciais. Não se aplica, quanto a eles, na ação penal promovida pelo Ministério Público, a regra que se contém no art. 804 do CPP: "A sentença ou o acórdão, que julgar a ação, qualquer incidente ou recurso, condenará nas custas o vencido".Aliás, i ulgada improcedente a denúncia, vencido seria o Ministério Público. Este, entretanto, como representante da sociedade, atuando na defesa de interesses sociais, não pode ser condenado ao pagamento das custas.Se o réu for o vencido, compete-lhe o encargo. Além daquele preceito genérico do art. 804, vejam-se, também, os arts. 719 e seu paragrafo único, 701, 336 e seu parágrafo único, e 140, todos do CPROutras vezes, o pagamento das custas exerce um papel de sanção, como se constata pelos arts. 653, 546, 219 e 101, todos do estatuto processual penal.Claro que, se o réu for insolvente, não terá tal obrigação, como se infere da última parte do art. 719 do CPP.

Tratando-se, no entanto, de ação penal privada, promovida que é pelo particular, há regra especial. Vem ela traçada no art. 806 do CPP:

""Salvo o caso do art. 32, nas ações intentadas mediante queixa, nenhum ato ou diligência se realizará, sem que seja depositada em cartório a importância das custas".

A exceção a esta regra é a contida no art. 32 do CPP, que assim

"Nos crimes de ação privada, o Juiz, a requerimento da parte que comprovar a sua pobreza, nomeará advogado para promover a ação penal".

Considera-se pobre, para tal fim, a pessoa que não puder prover as despesas do processo, sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento ou da família (art. 32, § L'). Será prova suficiente de pobreza o atestado da Autoridade Policial em cuja circunscrição residir o ofendido (art. 32, § 2.0).

E quanto ao querelado? Se for condenado, pagará as custas do processo independentemente do pagamento eventual de condenação à multa. Sendo pobre, não estará sujeito ao pagamento.

E no curso do processo, para que o ato requerido pela Defesa seja realizado, haverá necessidade de prévio pagamento das custas?

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0 § 1.0 do art. 806 diz: "Igualmente, nenhum ato requerido no interesse da defesa será realizado sem o prévio pagamento das custas, salvo se o acusado for pobre".

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Tal dispositivo tem dado margem a discussão. 0 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos idos de 1949, em acórdão de que foi Relator o eminente Des. Olavo Guimarães, entendeu que o § 1.0 do art. 806 é aplicável mesmo naqueles casos em que a ação penal é iniciada por den*Incia ou queixa, e, sem o prévio pagamento das custas, nenhum ato requerido no interesse da sua defesa será realizado.

'1`0 § 1.0 do art. 806 do Código de Processo Penal deve ser entendido com a devida e boa compreensão: se o acusado não for pobre, e a pobreza deverá ser provada com atestado de autoridade competente, deverá previamente pagar as custas e despesas dos atos que requerer. A regra se aplica também nos processos movidos pela Justiça Pública, sendo ilógico querer distinguir as ações privadas daquelas movidas pela sociedade. Quem se defende, quer no cível, quer no crime, uma vez que tenha recursos, deve adiantar as despesas para as diligências que pretender realizar. Absurdo, p. ex., que um réu abonado requeira uma diligência custosa, como um exame de livros ou uma precatória, e fique à espera, comodamente, de que o Estado pague a despesa correspondente. E nenhum perito particular ou escrivão não estipendiado pelos cofres públicos estará obrigado a servir sem o prévio pagamento de seus salários ou emolumentos" (RIT, 179/588).

Acórdãos há, entretanto, e em maior número, inclusive do Tribunal de Justiça de São Paulo, proclamando que o § 1.' do art. 806 só é aplicável nos casos em que a ação penal é intentada mediante queixa (RT, 166/104, 188/550, 178/612, 195/115, 216/75, 210/311, 381/342 e 601/427).

Creio que o acusado deverá pagar, previamente, as despesas correspondentes ao ato ou diligência requerida no interesse da sua defesa, nos casos de exclusiva ação penal privada. Assim, o § 1.' do art. 806 só é aplicável às hipóteses em que a ação penal só pode ser iniciada mediante queixa. A própria redação do dispositivo em exame não autoriza outro entendimento. De fato. Diz inicialmente: "Igualmente, nenhum ato requerido" etc. 0 advérbio igualmente, no texto em análise, leva, claramente, o intérprete ao caput do artigo, e aí se lê: "Salvo o caso do art.

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32, nas ações intentadas mediante queixa, nenhum ato ou diligência se realizará, sem que seja depositada em cartório a importância das custas".0 parágrafo, como bem observou o ex-Ministro Orozimbo Nonato, guarda relação íntima com o artigo, que prevê, às expressas, caso apenas da ação intentada mediante queixa. E eles se completam claramente (cf. RF, 1481358).

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Na verdade, se o legislador quisesse estender a regra contida no § 1.' do art. 806 do CPP àqueles casos em que a ação penal é iniciada por denúncia, teria tratado do assunto em dispositivo isolado. Dispondo, como dispôs, em um parágrafo, quis, evidentemente, completar a matéria versada no caput do artigo. E mais: o advérbio igualmente indica, com meridiana clareza, que a exigência do § 1.' do art. 806 diz respeito àqueles casos em que a ação penal é intentada exclusivamente mediante queixa, até porque o parágrafo deve ser entendido como subordinado ao artigo, completando-o, esclarecendo-o.Mesmo falando o art. 806 em "ação intentada mediante queixa", cremos ser inaplicável à hipótese da ação privada subsidiária da pública. Nesse caso, também, a ação pode ser intentada mediante queixa. Há diferença, contudo. Nessa modalidade de ação, o ofendido substitui o Ministério Público. Não defende um interesse particular, mas social. Não teria sentido que a vítima suprisse a inércia e a desídia do órgão oficial da acusação e ainda fosse compelIda ao pagamento de despesas judiciais.Comentando o art. 806, à luz da Constituição de 1946, Frederico Marques observou que os § § 1.' e 3.' conflitam com o art. 14 1, § 25, da Magna Carta, que proclama a amplitude de defesa. A Lei Maior atual, no art. 5.', LV, também estabelece que a lei assegura aos acusados ampla defesa. Temos para nós não haver tal inconstitucionalidade. Do contrário, teria também o mesmo vício o disposto no Regimento Interno da Suprema Corte, que prevê a deserção do recurso extraordinario, nas açoes penais privadas, salvo a hipótese do art. 32 do CPP, quando não for feito o preparo no prazo legal. Inconstitucionais, também, seriam os Regimentos Internos dos nossos Tribunais, que cuidam da deserção de recursos, nas açoes penais privadas, salvo o caso de pobreza.Cumpre observar, por outro lado, o que dispõe o art. 807 do CPP: "0 disposto no artigo anterior não obstará a faculdade atribuída ao Juiz de determinar de oficio inquirição de testemunhas ou outras diligências".Parece, à primeira vista, que o art. 807 anula o art. 806. Não é verdade. Se fosse assim, o art. 806 seria mera excrescência no corpo de

um diploma da envergadura do Código de Processo Penal. Nas ações penais privadas, as custas relativas a qualquer diligência devem ser pagas antecipadamente (ressalvadas as hipóteses de querelante ou querelado pobre), sob pena de a inércia implicar renúncia à diligência ou deserção do recurso. Esta é a regra. Contudo, se o Magistrado entender de ouvir qualquer testemunha, tal como lhe permite o art. 209 do CPP, por lhe parecer indispensável ao deslinde da questão, fá-lo-á. 0 que ele não pode e -I- erminar a realização daquela diligência (inclusive oitiva de testemunha) requerida pela parte e cujas custas, não obstante a intimação do interessado para pagá-las, não foram pagas no momento a que se refere o § 2." do art. 806 do CPP, ressalvada a hipótese de querelante ou querelado pobre. Caso contrário, os querelantes e querelados não pagariam as custas e... o Juiz determinaria a realização da audiência, o que teria um indisfarçável sabor de disparate.No que respeita às custas processuais em quaisquer processos criminais no Estado de São Paulo, foram elas reduzidas à expressão mais simples, como se constata pela Lei n. 4.952, de 27-12-1985,

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publicada no DOE de 28-12-1985. Na verdade, o art. 6.', 1, dispõe que "não incidirá a taxa judiciária nas causas criminais de qualquer espécie". 0 art. 2.' dispõe que "a taxajudiciária abrange todos os atos processuais, inclusive os relativos aos serviços de distribuidor, contador, partidor, de hastas públicas, bem como as despesas postais, com microfilmagem, intimações e publicações na Imprensa Oficial". Apenas não se incluem na taxa judiciária as publicações de editais, a comissão dos leiloeiros e assemelhados, a remuneração do perito, assistente técnico, avaliador, depositário, tradutor, intérprete e administrador, a indenização de viagem e diária de testemunhas e, finalmente, as despesas de diligências dos oficiais de justiça, salvo em relação aos mandados expedidos de ofício, requeridos pelo Ministério Público, de interesse de beneficiário de assistência judiciária e os expedidos nos processos referidos no art. 6.', 1 a IV (o inc. 1 refere-se aos processos criminais).

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§ 790 - Outros tipos de açao penal

SUMÁRIO: 1. Ação penal privada subsidiária da pública. 2.Quando ocorre. 3. É inovação do CPP de 1942? 4. Prazo para1, .oferecimento da queixa. 5. Requerido o arquivamento dos autos do inquérito, poderá, ainda assim, o ofendido oferecer queixa substitutiva da denúncia? 6. Ação penal nos crimes falimentares. 7. Ação penal popular. 8. Ação penal ex officio. 9. Outras modalidades de ação penal.

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11---.1. Ação penal privada subsidiária da pública

,z ~ A ação penal privada comporta uma distinção: a) ação penal exclu-,1 , 11 sivamente privada; b) ação privada persortalíssima; c) ação privada sub-

L1,11sidiária da pública.i ,Na primeira hipótese, o seu exercício compete, com exclusividade,ao ofendido ou a quem legalmente o represente. Na hipótese de morteiou ausência judicialmente declarada, o direito de queixa ou de prosseguir na ação transmite-se ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão. No segundo caso, somente o cônjuge inocente é que pode exercer

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o direito de queixa, não se admitindo aquela sucessão a que se refere o art. 31 do CPR No terceiro caso, o exercício da queixa compete ao ofendido ou ao seu representante legal (ou sucessores - art. 3 1), se o titular da ação penal pública, isto é, o Ministério Público, deixar de promovêIa no prazo legal.

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2. Quando ocorre

É sabido que o titular da ação penal pública é o Ministério Público, e este deverá prornovê-la dentro daqueles prazos fixados no art. 46 do CPP, salvante os casos de prazos especiais em leis extravagantes. Normalmente, o prazo é aquele traçado no art. 46 e seu § U: a) se o indiciado estiver preso, o prazo para a denúncia será de 5 dias, a partir da data em que o orgao do Ministério Público receber os autos do inquérito; b) se solto Éstiver, dentro de 1-'-f-dias; c) se solto estiver o indiciado e o órgão do Ministério Público requerer a devolução dos autos à Polícia para diligências imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, esta deverá ser oferecida dentro de 15 dias, a partir da data em que o orgão do Ministério Público receber novamente os autos do inquérito; d) se o Ministério Público dispensar o inquérito, pelo fato de vir a representação acompanhada de elementos de convicção que o habilitem a intentar a ação penal, esta será apresentada no prazo de 15 dias, a partir da data em que houver recebido a representação (art. 39, § 5.', c/c o art. 46, § L'); e) se com as peças de informação (art. 27) o órgão do Ministério Público sentirse habilitado a dar início a ação penal, haverá de promovê-la dentro de 15 dias, contados do dia em que receber aquelas peças (art. 46, § L').

Se, entretanto, o órgão do Ministério Público não promover a ação penal dentro daqueles prazos, o ofendido ou quem o represente legalmente poderá prornovê-la, apresentando queixa, substituindo, assim, a denúncia do Promotor desidioso.

3. É inovação do CpP de 1942?

Trata-se, como bem diz Jorge Alberto Romeiro, de verdadeira inovação do nosso jus positum. Na legislação penal alienígena, entretanto, de há muito se cuidava dessa modalidade de ação. Nos celebérrimos Códigos de Processo Penal austríaco, de 1873, norueguês, de 1887, e húngaro, de 1896, já havia sido consagrada a ação penal privada subsidiária da pública. Encontramos neles a subsidiarank1age, a private forfolgning e o ersatz-privatank1age (cf. J. A. Romeiro, Da ação, cit., p. 187).

0 art. 29 do nosso CPP estatui:

"Será admitida ação privada nos crimes de ação pública,se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério

1

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Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal".

É a mesma regra contida no § 3.' do art. 100 do CP: "A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no Prazo legal".Hoje, o assunto é tratado em nível constitucional, como se percebe pelo art. 5.", LIX, da CF.

denúncia, o ofendido não usar da faculdade que o legislador lhe concedeu no art. 29? Nada impede possa o órgão do Ministério Público, a qualquer tempo, enquanto não estiver extinta a punibilidade, promover%, 11.---, a ação penal, pois, quanto à ação pública, não há excogitar-se de deca-dência.Evidentemente, não se pode falar em decadência da ação pública. E não se pode por várias razões: a) porque a lei silencia a respeito; b) porque haveria uma verdadeira contradictio in adjectu, dada a inconciliabilidade entre o princípio da obrigatoriedade da ação pública e a decadência; c) finalmente, como diz Tornaglii, "não há decadência quando-, 4,

se trata de dever". De fato, sendo dever do Ministério Público promover

a ação, não se pode falar em decadência.Assim, enquanto não ocorrer qualquer das causas que podem

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a extinção da punibilidade dos crimes de ação pública, poderá o Minis-tério Público oferecer denúncia.LL)

E se, a despeito de haver escoado o prazo para oferecimento da

4. Prazo para oferecimento da queixa

Dentro de que prazo poderá o ofendido ou seu representante legal intentar a ação privada substitutiva da pública? Responde-se com a regra contida no art. 38 do CPP:

14

. o ofendido, ou seu representante legal, decairá do direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses.... no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia".

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Se, escoado aquele semestre, o ofendido ou seu representante legal deixar de oferecer a queixa substitutiva da denuncia, Ja não poderá fazêlo porque se trata de prazo decadencial, fatal, portanto. Todavia, mesmo nessa hipótese, poderá o Promotor retardatário iniciar o procedimento, já que, no caso, sem embargo de se permitir ao ofendido a faculdade de oferecer queixa, a ação não perde seu caráter público, e, assim, a qualquer tempo, poderá o Promotor oferecer denúncia, se a punibilidade não èftiver extinta. Somente quanto ao ofendido ou seu representante legal é que a lei prefixou um prazo para o exercício dojus persequendi in judicio, mas não lhe poderia, evidentemente, outorgar o direito de dispor do jus puniendi.

Insta acentuar, nesta oportunidade, que, mesmo iniciada a ação por queixa do ofendido ou do seu representante legal, não poderá ser concedido o perdão, nos precisos termos do art. 105 do CP, que só o admite nos crimes em que somente se procede mediante queixa, e, no caso em estudo, o procedimento não se inicia somente mediante queixa; poderá ser iniciado por denúncia. Se concedido for, será irrelevante, porquanto o órgão do Ministério Público retomará a ação como parte principal (art. 29, in fine).Pela mesma razão não poderá ocorrer a perempção, já que o art. 60 do CPP, ao tratar dessa modalidade de extinção da punibilidade, restringe sua aplicação aos casos em que somente se procede mediante queixa.E se o ofendido renunciar ao direito de queixa? Nenhuma consequencia advirá, visto que o órgão do Ministério Público poderá dar início ao processo, não obstante a renúncia do ofendido. Entretanto é de ponderar que, renunciando ao direito de queixa, expressa ou tacitamente, já não poderá o ofendido ou seu representante legal promover a ação penal, pois o art. 104 do CP não restringe a renúncia aos casos em que somente se procede mediante queixa; limita-se a dizer: "0 direito de queixa não pode ser exercido, quando renunciado expressa ou tacitamente". Ora, na hipótese do art. 29, o ofendido ou seu representante legal tem o direito de queixa, e, portanto, poderá renunciá-lo. Sua renúncia, não impede todavia o órgão do Ministério Público de praticar o ato instaurador da instância penal, pois o mais que a lei concedeu ao ofendido foi o jus persequendi injudicio, e não o direito de dispor da punibilidade.

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Qual a posição do Ministério Público na hipótese do art. 29, quando o ofendido oferece a queixa? Trata-se de um litisconsorte, mas de natureza sui generis, pois não há cumulação de ações contra o mesmo réu. Poder-se-á falar em "interveniente adesivo obrigatório", porquanto, oferecida a queixa, o Ministério Público é obrigado a intervir em todos os termos do processo (cf. CPP, art. 29 c/c o art. 564, 111, d).

Fenômeno oposto ocorre quando o Ministério Público oferece denúncia. Nesse caso, o ofendido pode intervir no processo, como assistente, consoante o art. 268 do CPP. E, aí, o ofendido não passa de "interveniente adesivo facultativo".

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Intentada ação privada na hipótese do art. 29, o Ministério Público, além de dever intervir em todos os termos do processo, poderá fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo o tempo, retomar a ação como parte principal, no caso de negligência do querelante. Poderá, também, aditar a queixa, quando, por exemplo, for omitida na peça acusatória uma circunstância qualificadora; quando, sendo dois ou mais crimes que devam ser apreciados em simultaneus processus, a queixa fizer referência a um deles; quando, sendo dois ou mais réus, a queixa for oferecida apenas contra um. Poderá, também, o Ministério Público oferecer denúncia substitutiva. Assim, por exemplo, se a queixa descreve e classifica o fato como lesão leve, e esta for grave; quando descreve e classifica o fato como lesão, e for tentativa de homicídio.

Cumpre esclarecer que no Anteprojeto do CP de 1969, o saudoso Nélson Hungria, seu autor, suprimiu a ação privada subsidiária, sob a alegação de que quase sempre deixa de atender ao interesse da Justiça, para somente servir a sentimento de vindita, quando não a objeto de chantagem.

Tornaghi, no seu Anteprojeto do CPP, não só a manteve, como também a estendeu às hipóteses de arquivamento de inquérito ou peças de informação.

Abandonado o Anteprojeto Tornaghi, foi o Prof. Frederico Marques incumbido de elaborar outro. Neste, suprimiu-se, também, a ação privada subsidiária da pública. A Câmara, contudo, a restaurou. Aliás, na alteração da Parte Geral do CP, a Comissão, presidida pelo então Procurador-Geral da República, hoje Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Dr. Francisco de Assis Toledo, manteve a ação privada subsidiária da pública tal como se vê no art. 100, § 1% do CR

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5. Requerido o arquivamento dos autos do inquérito, poderá,ainda assim, o ofendido oferecer queixa substitutiva da denúncia?

Atualmente, se o inquérito policial ou peças de informação forem arquivados, poderá o ofendido ou quem legalmente o represente oferecer queixa substitutiva da denúncia?

Çàmssunto é controvertido, sem embargo da clareza meridiana do art. 29 do CPP. 0 particular só poderá oferecer queixa substitutiva da denúncia quando houver relapsia, inércia, inatividade do órgão do Ministério Público, vale dizer, quando a denúncia não for oferecida no prazo legal. Pretende-se equiparar, com ginástica de raciocínio, o pedido de arquivamento ao não-oferecimento de denuncia no prazo legal. Se o Promotor Público requereu o arquivamento do inquérito, dizem, deixou, à evidência, de oferecer denúncia no prazo legal.

A matéria foi objeto de discussão na Conferência dos Desembargadores, realizada no Rio, nos idos de 1943, e, ali, o voto vencedor foi no sentido de que somente no caso em que houver desídia, relapsia do Ministério Público, deixando escoar o prazo para oferecer denúncia, é que pode intervir o ofendido para corrigir essa falta, ofertando a queixacrime. E, naquela oportunidade, Nélson Hungria

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teve ensejo de observar: na outra hipótese o Promotor não oferece denúncia, mas pede o arquivamento. Ele é o árbitro da sociedade, de modo que, uma vez requerido o arquivamento, observar-se-á apenas o disposto no art. 28, onde a matéria está regulada e muito bem regulada.Não obstante isso, até há pouco tempo a jurisprudência oscilava, ora num, ora noutro sentido, como se constata por estes venerandos acórdãos:

"Mesmo quando o Promotor Público tenha tomado conhecimento, dentro do prazo legal do inquérito policial, ou outras peças de informação, solicitando o arquivamento e deferido este, pode o ofendido oferecer queixa nos crimes de ação pública" (cf. D. A. Miranda, Repertório, cit., ri. 5.942)."As decisões deferindo pedido de arquivamento de inquerito policial a pedido do Ministério Público, não impedem ofereça• ofendido queixa-crime pelo mesmo fato" (cf. RT, 199/116)."A ação pública somente se desloca para o particular, quando• Ministério Público se mostra inerte ou desidioso e não quan-

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do pede o arquivamento do inquérito" (Acórdão do STF, Rel. Orozimbo Nonato, RT, 2211541).

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Focalizando a vexata ~estio, observou José Duarte: 0 critério da lei é estabelecer, como regra, a ação pública e, só por exceção, a ação privada nos crimes mencionados. Admitir-se que a parte lesada ou ofendida possa promover a ação penal, quando dos pedidos de arquivamento, é dilatar demais a ação privada. E os ofendidos, então, inspirados pelos conselheiros sem escrúpulos, iriam desde logo oferecer queixa, justificando-se de tal forma que a ação privada, ao invés de exceção, passaria a ser a regra. Não mais se arquivariam inquéritos, e o Ministério Público ficaria sob o maior controle do suposto ofendido. Não seria razoável, em síntese, admitir que a indenidade de um cidadão esteja ao puro arbítrio de outro, num sistema em que a ação penal, em regra, é pública, cabendo ao Estado o direito de punir.E o festejado Espínola Filho arremata: Seria uma verdadeira subversão da ordem, implicando um patente desrespeito à autoridade das decisões judiciárias, admitir a queixa com respeito a crimes que constituiriam assunto de inquéritos, representação ou peças de informação mandados arquivar (cf. Comentários, cit., v. 1, p. 339).Hélio Tornaghi empresta o seu talento à defesa da tese contrária, argumentando que o art. 29, permitindo a ação privada subsidiária da pública, não distinguiu a relapsia do pedido de arquivamento. Deixar de oferecer a denúncia no prazo legal ou pedir o arquivamento, durante o prazo ou depois dele, são situações semelhantes para o art. 29.

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Contra o ponto de vista do Prof. Hélio Tornaghi, levanta-se esta objeção: o art. 29 dispõe que, a todo tempo, caberá ao Ministério Público retomar a ação como parte principal, no caso de negligência do querelante, e, assim, se fosse possível o exercício do direito de queixa, quando o Ministério Público requeresse o arquivamento, surgiria esta conseqüência desastrosa: o órgão do Ministério Público, não tendo formado a opinio delicti, recusou-se a promover a ação, requerendo o arquivamento. 0 Juiz deferiu o pedido, ou não deferiu, mas o Procurador insistiu no arquivamento, e o Juiz, então, por força da lei, o determinou. Vem o ofendido e apresenta queixa. 0 Juiz recebe. Recebida a queixa, o querelante abandona a ação. Ora, com o abandono da ação, o Ministério Público será obrigado a retorná-la como parte principal, conforme dispõe o art. 29. No entanto estaria, assim, o ofendido, por via oblíqua, obrigando o

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órgão do Ministério Público a agir, o que, na verdade, seria um despautério, um encimado desconchavo. 0 Prof. Hélio Tornaghi, contudo, salienta que o art. 29 não manda o Ministério Público retomar a ação como parte principal no caso de negligência do querelante. "0 que a lei diz é que caberá ao Ministério Público retomar a ação como parte principal, não resultando, assim, um dever e sim mera faculdade" (Comentários, cit., v. 2, p. 57).)&smo que se admitisse a possibilidade de o ofendido apresentar queixa quando o Promotor requeresse arquivamento, a partir de que momento se iniciaria o prazo para o exercício do direito de queixa9 Do dia em que o Promotor requereu o arquivamento? Do dia em que o Juiz acolheu seu requerimento? E se os autos forem remetidos ao Procurador-Geral? Da data em que o Procurador der o seu Parecer, insistindo no arquivamento? Do dia em que o Juiz receber os autos e o determinar?A matéria concernente a prazos é importantíssima, sobretudo quando se trata de prazo decadencial, e, se o legislador tivesse a intenção de equiparar o pedido de arquivamento à não-apresentação da denúncia no prazo legal, teria, decerto, salientado o momento exato para o seu início.

Entretanto o art. 38, referindo-se ao prazo para o oferecimento da queixa, na hipótese do art. 29, diz, tão-somente, ser de 6 meses, a partir do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.Quis, pois, o legislador referir-se, iniludivelmente, à inércia do órgão do Ministério Público.Nem se poderia conceber que, tendo o Juiz deferido o pedido do órgão estatal da acusação, no sentido de serem arquivados determinados autos de inquérito, pudesse o ofendido sobrepor-se a vontade do Estado, exteriorizada na palavra do seu representante, que é o Ministéno Público, e também à decisão do Orgão Jurisdicional. 0 art. 29 não tem, evidentemente, aquela extensão que se lhe quer emprestar.Por derradeiro: tão obrigatória é a interferência do órgão estatal da acusaçao na hipótese de ação penal privada subsidiária da pública, que o legislador erigiu a sua não-intervenção em todos os termos

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da referida ação à categoria de nulidade, como se vê pelo disposto no art. 564, 111, d, c/c o art. 563, ambos do CPP. Logo, sua intervenção não é uma faculdade como pareceu ao eminente Tornaghi.Hoje, entretanto, ajuriSprudência vai-se firmando no sentido de não se permitir o oferecimento da queixa quando o inquérito for arquivado.

457

A propósito, RT, 4851253, 507/285, 525/298, 5341456 e 536/337, bem como os trabalhos publicados na Justitia, 69/47, 88/257, e na Revista Brasileira de Criminologia e Direito, 141145.

6. Ação penal nos crimes falimentares

No estudo da ação penal nos crimes falimentares, são necessárias duas observações preliminares: a) é relevante a distinção entre falência, cujo passivo seja igual ou superior a cem vezes o maior salário mínimoiI,1 i do País, e aquela cujo passivo seja inferior a tal quantia; b) propositura da

ação penal perante o próprio juízo falencial e perante o juízo criminal.J Tratando-se de falência cujo passivo seja igual ou superior a cem

vezes o maior salário mínimo do País, recebendo o órgão do Ministério~ C Público (Curador de Massas Falidas) os autos do inquérito judicial, deverá,

no prazo de 5 dias, oferecer denúncia, ou, se entender não ser caso de

denúncia, requererá o apensamento dos autos do inquérito ao processo

da falência, nos termos do art. 108 da Lei de Falências. E isto equivale

a um verdadeiro pedido de arquivamento.. 'w Na hipótese de ser oferecida denúncia, esta será dirigida ao Juiz da1 ~M ~~ falência, que, se vier a recebê-la, deverá fundamentar o despacho de: k, 9, 10

recebimento e determinar a imediata remessa dos autos do inquérito, já

com a denúncia recebida, ao Juiz criminal, onde, então, o processo cri

minal terá seguimento (Lei de Falências, art. 109, § 2.").1--

Se o órgão do Ministério Público, ao invés de oferecer denúncia,

requerer o apensamento (que equivale a pedido de arquivamento) dosautos do inquérito judicial ao processo da falência, caso o Juiz

venha adiscordar, deverá aplicar o disposto no art. 28 do CPP. Nenhuma

aplica

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ção poderá ter mais o parágrafo único do art. 108 da Lei de Falências,

em face do que dispõe o art. 129, 1, da Constituição Federal.Poderá o síndico (dês que tenha sido prejudicado com a

quebra),ou qualquer credor, ofertar queixa na única hipótese de o

MinistérioPúblico não oferecer a denúncia no prazo legal, nos termos do art.

5.',LIX, da Constituição. 0 prazo, à míngua de outra disposição, deverá

ser• mesmo a que se refere o parágrafo único do art. 108, já citado.

Mas,• não-oferecimento da queixa dentro desse prazo não implicará decadência, porquanto, uma vez expirado, embora o síndico ou qualquer

credornão possa mais oferecê-la no juízo universal da falência, poderá

fazê-lo

458

o juizo criminal, tal como permite o art. 194 da Lei de Falências. Ob-n Íserve-se, contudo, que no Estado de São Paulo, em face do art. 15 daLei estadual ri. 3.947, de 8-12-1983, publicada no DOEde 15-12-1983,as ações por crime falimentar e as que lhe sejam conexas passaram paraa competência do respectivo juízo universal da falência. Desse modo,seja na Capital, seja no Interior, a ação penal será exercida, sempre, nojuízo falitário. Segue-se, pois, que no Estado de São Paulo, se o síndicoou qtoquer credor não ofereceu queixa dentro no prazo a que se refereo parágrafo único do art. 108 da Lei de Falências, nada impede, nosprecisos termos do art. 194, seja ela ofertada, enquanto não estiver extinta a punibilidade, no próprio juízo da falência. Dentro de que prazo?Determinando o art. 194 se observem os arts. 24 e 61 do CPP (no textoestá 62, mas evidente o erro tipográfico), quer-nos parecer possa fazêlo a qualquer tempo, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, pela prescrição ou qualquer outra causa.

Se o órgão do Ministério Público requerer, nos termos do art. 108, o arquivamento dos autos do inquérito judicial, e se o Juiz falencial considerar improcedentes as razões invocadas pelo órgão do Ministério Público, fará a remessa do inquérito ao Procurador-Geral de Justiça, nos termos e para os fins do art. 28 do CPP, consoante dispõe o § 1.' do art. 109 da Lei de Falências.

Assim, se o Procurador-Geral entender que as razões invocadas pelo órgão -do Ministério Público são improcedentes, designará outro membro da Instituição para oferecer denúncia ou ele próprio o fará. Caso entenda serem Procedentes as razoes, insistirá no arquivamento, e, só então, estará o Juiz obrigado a atender.

Oferecida denúncia pelo Curador de Massas Falidas, ou queixa pelo síndico ou qualquer credor, poderá o Juiz rejeitá-la, e, nesse caso, deter-

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minará que os autos do inquérito sejam apensados aos autos da falência, como determina o art. 109, caput, da Lei de Falências. Ante tal despacho, poderá o Curador ou querelante (síndico ou qualquer credor) interpor-recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, 1).

Qual a conseqüência que advém do recebimento da denúncia ou queixa? 0 despacho que a recebe obsta, até sentença penal definitiva, a concordata suspensiva da falência (Lei de Falências, arts. 111 e 177).

Interessante notar que, se o Juiz da falência rejeitar a denúncia ou queixa, nada impede que o representante do Ministério Público, ou o

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síndico ou qualquer credor, ofereça denúncia ou queixa pelos mesmos fatos ou outros, perante o juízo criminal da jurisdição onde tenha sido declarada a falência (cf. arts. 113 e 194 da Lei de Falências). Hoje, no Estado de São Paulo, em face do art. 15 da Lei paulista n. 3.947/83, a ação penal por crime falimentar e pelos comuns que lhe sejam conexos será promovida, em qualquer caso, no juízo universal da falência. Com esse reparo e por força do art. 194, conclui-se que o não-recebimento da denúncia ou queixa ofertada dentro no prazo do art. 108 não impede haja, ou não, manifestação da instância superior, seja ela renovada, seja no mesmo juízo universal da falência (Estado de São Paulo), seja no juizo criminal (demais Estados da Federação), dês que arrimada em novas provas, ou, então, sobre outros fatos.

1~1 Frederico Marques, interpretando os arts. 113 e 194 da Lei de Fa-lências, conclui que, mesmo havendo despacho do Juiz da falência, rejeitando a denúncia ou queixa, ainda que tal despacho seja confirmadopela superior instância, ou mesmo na hipótese de haver pedido de arqui-1 " 4 ' ~, ' 01(4~, 1 vamento e nele insistido o Procurador-Geral, poderá ser intentada ação penal no juízo criminal (cf. Elementos, cit., v. 3, p. 343).e, z . Data venia, pensamos de maneira diversa: se houver pedido deWM 11 !1 arquivamento e o Juiz da falência remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça e este insistir no pedido, não mais poderá ser intentada a ação penal, seja pelo Ministério Público, seja pelo síndico ou qualquer credor, a não ser surjam novas provas ou se outro for o fato. Quer-nos parecer que o art. 194 da Lei de Falências permite a propositura da ação penal no juízo criminal (no Estado de São Paulo, sempre no juízo universal da falência): a) se não foi oferecida denúncia ou queixa no juízo da falência dentro naquele prazo do art. 108 e do seu respectivo parágrafo; b) se o Juiz da falência rejeitar a denúncia ou queixa (pouco importa tenha havido recurso, ou não, o que deve ser levado em conta é a existência de novas provas

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ou de novos fatos que caracterizem crimes falimentares); c) após o despacho a que se refere o § 1." do art. 109 da Lei de Falências (antes do pronunciamento do Procurador-Geral, tenham surgido, ou não, novas provas) ou na hipótese de o Procurador-Geral insistir no arquivamento, se surgirem novas provas ou novos fatos que constituam crimes falimentares. 0 art. 194 alude ao despacho do art. 109, § 2.". Mero erro tipográfico. Ali se faz remissão ao § 1.0.

Se houver denúncia ou queixa no j uízo falencial, e a instância superior, apreciando eventual recurso, mantiver a decisão de primeira instân-

460

cia, não mais será possível o exercício da ação penal, salvo a hipótese de surgirem novas provas ou se forem outros os fatos. Esta a exata exegese do art. 194 da Lei de Falências. Caso contrário haveria um amontoado de heresias jurídicas. Por exemplo: se o Curador de Massas Falidas ofertou denúncia dentro no prazo do art. 108, foi ela rejeitada e o Tribunal, apreciando recurso do órgão de acusação, manteve a decisão do órgão de primeiro grau, como poderia o Ministério Público ou quem quer que seja rotovar o pedido? Não faz sentido. Entretanto, se outros forem os fatos, é diferente... Por outro lado, se o Curador de Massas Falidas requereu o arquivamento do inquérito judicial e o Procurador-Geral, ante a discordância do Juiz, concordou com a manifestação da Curadoria de Massas Falidas, insistindo no arquivamento, poderia, mais tarde, o Ministério Público intentar a ação penal? Obviamente não. Mas, surgindo novas provas, ou sendo outro o fato, o art. 194 permite.Concluindo: a) a denúncia, no juízo falencial, deve ser ofertada no prazo de 5 dias. Não o tendo sido, e se o síndico ou qualquer credor não apresentar queixa dentro no prazo a que se refere o parágrafo único do art. 108, somente no juízo criminal é que poderá ser intentada a ação penal, seja por denúncia, seja por queixa, ex vi do art. 194 (observe-se mais uma vez que no Estado de São Paulo a denuncia ou queixa sera sempre oferecida no juizo universal da falência, nos termos do art. 108 ou de conformidade com o art. 194); b) se a denúncia ou queixa for rejeitada, nada impede sua renovação no juízo criminal (ou, no Estado de São Paulo, no mesmo juízo universal da falência), consoante os arts. 113 e 194 da Lei d*e Falências.A queixa terá lugar no juízo falencial se o órgão do Ministério Público não oferecer a denúncia no prazo a que se refere o art. 108.No juizo criminal (atente-se para a observação que fizemos em relação ao Estado de São Paulo), poderá ser oferecida denúncia: a) se no juízo falencial não foi intentada ação penal (denúncia ou queixa); b) se no juízo falencial houve rejeição da denúncia ou queixa.A queixa terá lugar no juízo criminal: a) se no juízo falencial ou no criminal não foi intentada ação penal; b) se no juízo falencial houve rejeição de queixa.Em se tratando de falência, cujo passivo seja inferior a cem vezes o maior salário mínimo do País (redação dada pela Lei n. 4.983, de 185-1966), outras são as disposições aplicáveis.

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De logo se nota que a denúncia deve ser apresentada no prazo de 3 dias, a partir da data em que o Curador de Massas Falidas (i. e., representante do Ministério Público no juízo falencial) receber com "vista" os autos do inquérito (cf. Lei de Falências, art. 200, § 4.'). Dentro de igual prazo poderá requerer o arquivamento (apensamento). Se não oferecer denúncia nem requerer o apensamento, ou se o requerer e o Juiz discordar das razões invocadas, inteira aplicação terão o art. 109 e seu § 1.' da Lei de Falências.E se o Curador de Massas Falidas deixar passar in albis o prazo

1para a denúncia, poderá oferecê-la no juizo criminal? E certo que a Lei1 ~1 , de Falências, nas suas Disposições Especiais, onde se cuida da pequenafalência, não o permite expressamente. Nada obsta se observe, no quefor aplicável, o que se contém no art. 194, porque do contrário seriaadmitir a decadência da ação pública. E decadência em prazo bastanteexíguo. Ora, como não há decadência da ação pública, conforme já vimos, a denúncia pode ser oferecida quer no juízo da quebra, quer nojuízo criminal.Será possível ação privada subsidiária da pública nas pequenas falências?WNHoje, havendo disposição constitucional permitindo a ação penal privada subsidiária da pública, quando houver inércia do Ministério Público, quer-nos parecer ser possível o oferecimento de queixa nas pequenas falências.

7. Ação penal popular

1. ., ~ A ação penal popular, como o nome está a indicar, é aquela cujo

rJ exercício compete a qualquer cidadão. Qualquer pessoa do povo é titu-

lar dessa modalidade de ação.

Na índia, no Egito e mesmo na Roma republicana, ojus accusationisera conferido a qualquer do povo. Contra ela levantam-se várias críticas: arma de paixões excitadas, representação dos mais audazes, permite a confabulação de pseudo-acusadores populares com a defesa dosculpados etc. Sem embargo dessas críticas, o certo é que tal modalidadede ação campeia em muitas legislações.

Aliás, essa expressão "ação popular", para significar a ação penala cargo de qualquer do povo, é usada na Ley de Enjuiciamiento Criminal (Direito espanhol): "Todos los ciudadanos espafloles, hayan sido o

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no ofendidos por el delito pueden querellarse, ejercitando la acción popular" (cf. art. 270).Atualmente a ação penal popular existe, apenas e tão-somente, em quatro países: Estados Unidos, Inglaterra, Espanha e Chile. Nos Estados Unidos ela só poderá ser intentada em relação às infrações de pouca gravidade. Nos demais, a legitimação é exclusiva do Ministério Público (processo por indictment).

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bkInglaterra, malgrado a cultura, educação e moralidade do povo, a ação penal popular tem dado resultado pouco positivo, e, por isso mesmo, a acusação fica nas mãos do Director of Public Prossecutions, que instaura o processo sob a vigilância do Attorney General.No Chile, o art. 16 do Código de Procedimiento Penal, atualizadoeinjunho de 1986, dispõe que "La acción penal pública puede ser ejercida por toda persona capaz de parecer en juicio, siempre que no tengaespecial prohibición de la ley y que se trate de delitos que deban ser perseguidos de ofício". Contudo, o art. 22 do mesmo diploma prescreve que o particular que "ejercita la acción pública está obligado a afianzar las resultas deljuicio".Na Espanha, a ação penal popular vem disciplinada no art. 101 da Ley de Enjuiciamiento Criminal. Lá há restriçoes ao exercício da ação penal por qualquer do povo.Há algum tempo, ela vigorava na Argentina, embora restrita aos crimes eleitorais, segundo as Leis n. 8.87 1, de 1912, e 11.337, de 1926. Hoje, naquele país, a qção penal pública é exercida somente pelo Ministério Público.

Alega-se, a favor da ação penal popular, que o Ministério Público, muitas vezes, por pressão do Governo, poderia deixar de atuar e, por essa razão, o jus accusationis deve ser cometido a qualquer pessoa.Por outro lado, não se deve perder de vista que apenas quatro países a consagram. Em toda a América Latina, apenas o Chile a admite. Em toda a Europa continental, apenas na Espanha se comete a qualquer cidadão o direito de acusar. Daí se conclui que se o instituto da ação penal popular apresentasse mais vantagens do que desvantagens, nós o encontraríamos em quase todos, senão em todos os ordenamentos do mundo.

Entre nós, a Constituição Imperial, no art. 157, dispunha que, nos crimes de suborno, peita, peculato ou concussão praticados por Juízes de Direito e Oficiais de Justiça, podia ser intentada a ação popular. Promul-

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gado o Código de Processo Criminal, em 1832, estendeu este, no art. 74, a ação popular a outros crimes especificados nos seus seis parágrafos, mas o fez de molde a deixar dúvidas no espírito de Pimenta Bueno, que sustentava, então, que o art. 74 do Código de Processo Criminal autori-i : zava, apenas, a delatio criminis (à maneira do art. 27 do atual CPP). 0art. 74 estava assim redigido: "A denúncia compete ao Promotor Público e a qualquer do povo". Dizia, então, o Marquês de São Vicente (Pimenta Bueno), que o art. 74 não estava admitindo a ação popular, mas,'Uo-sornente, dando a faculdade a qualquer do povo para, naquelas hipóteses especificadas nos parágrafos do art. 74, oferecer denúncia... eentre o apresentar denúncia e o acusar vai uma grande diferença". Achava,destarte, o velho mestre, que o legislador processual do Império consagrava a denúncia a qualquer do povo apenas como um meio para possi

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bilitar a instauração da instância penal. Só isso. Barbalho divergia doraciocimo de Pimenta Bueno e entendia que "todos os que são compe-

1 ,., .tentes para denunciar, também o são para promover os demais termos

da acusação".a,

0 CP de 1890 não tratou da matéria. Entretanto a Constituição Federal

de 1891 estatuía no art. 72, § 9.': "É permitido a quem quer que seja

,1~WN 1 representar, mediante petição, aos poderes públicos,

denunciar abusos1 1

~O das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados". Nova

j discussão surgiu. Galdino Siqueira entendia que tal dispositivo consa-

: : ~`------ grava a ação penal popular, "pois, além de dizer que é permitido a quem

~, ., 4, ~ quer que seja denunciar abusos de autoridades, acrescenta - e promo-~ 4,11., ~ver a responsabilidade dos culpados - o que implica, evidentemente, o direito de acusar" (cf. Processo criminal, 1930, p. 73).Dele dissentia o insigne João Mendes. A Constituição Federal, no art. 72, § 9.', explicava o mestre, não modificou a regra estabelecida no CP de 1890, senão em relação aos abusos das autoridades; e, nem por isso, autorizou, mesmo nesse caso, a denúncia de qualquer do povo como forma de proposição de ação penal (cf. João Mendes de Almeida Jr., Processo, cit., 1959, p. 139).Posteriormente à Constituição de 1891, surgiram algumas leis ordinárias realçando a ação popular, tais como a de ri. 496, de 1.0 -8-1898, a de ri. 2.992, de 25-11-1915, e, finalmente, o § 2.0 do art. 407 da Consolidação das Leis Penais, que dizia: "Haverá lugar a ação penal: por denúncia de qualquer do povo: a) nos crimes políticos e de responsabi-lidade dos funcionários federais; b) nos crimes de que trata o art. 278

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(isto é, manter ou explorar casas de tolerância; induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as, por inti_ midação ou ameaças, a entregarem-se à prostituição); c) nos crimes definidos nos arts. 342, § 2.', e 346; d) nos crimes de que tratam os arts. 164 e 178 (crimes contra o livre exercício dos direitos políticos)".Finalmente, veio o CP de 1940 e silenciou a respeito.Com a promulgação da nossa Lei Maior, em 1946, Jorge Alberto Romáfo, entre outros, vislumbrou, no § 37 do art. 141, a restauração da ação penal popular. Assim estava redigido o texto constitucional invocado: "E assegurado a quem quer que seja o direito de representar, mediante petição dirigida aos poderes públicos, contra abusos de autoridades, e promover a responsabilidade delas".

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Entendeu Frederico Marques que o art. 141, § 37, da Magna Carta tratava, apenas, do direito de petição. E, citando o ilustre Costa Manso, conclui: "Na expressão constitucional, nada mais há do que a faculdade concedida, a quem quer que seja, de promover, por meio de petição, a atividade dos agentes do poder público, para que os culpados... não deixem de ser submetidos a processo e julgamento" (Elementos, cit., p. 394).Estamos que a razão se encontra com o eminente Prof. Frederico Marques. Entretanto, há, entre nós, a ação penal popular. De fato. Na Lei ri. 1.079, de 10-4-1950, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo e julgamento, permite-se a qualquer cidadão, ut civis, oferecer denúncia contra Ministro do Supremo Tribunal Federal ou Procurador-Geral da República que cometa crime de responsabilidade. A denúncia é apresentada ao Senado e, se recebida, o mesmo cidadão denunciante acompanha, como acusador, todo o desenrolar do processo. Se tiver capacidade postulatória, lógico. Do contrário, terá de contratar um Advogado para representá-lo. Também em relação ao Presidente da República e Ministro de Estado nos crimes conexos aos daquele, é lícito a qualquer cidadão denunciá-los perante a Câmara dos Deputados. Se esta, por 2/3 dos seus membros, autorizar a instauração do processo, as peças apresentadas serão remetidas ao Senado, que funcionará como Tribunal de pronúncia e de julgamento.Hoje, como a Constituição dispõe no seu art. 52, 1 e 11, competir ao Senado Federal processar e julgar o Presidente, o Vice-Presidente da República, nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado, nos crimes da mesma natureza conexos aos daqueles, bem como os Minis-

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1 1

tros do STF, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral daiUnião, nesses mesmos crimes, parece-nos que em todos esses casos permite-se a qualquer cidadão o direito de denunciar os dignitários ali referidos. Se a Câmara dos Deputados não mais exerce a função de Tribunal de pronúncia, limitando-se a autorizar a instauração do processo perante o Senado, é evidente que a denúncia ofertada perante a Câmara não é mera delatio, mas ato de iniciativa do processo. Por outro lado, e meditando melhor sobre o assunto, como os crimes de responsabilidade, conforme vimos no Capítulo 4, verbete "6 - ressalvas", deste livro, são verdadeiras figuras político-administrativas-penais, evidente que, nesses casos, vigora entre nós a ação penal popular, somente nesses crimes de responsabilidade, sem falarmos no habeas corpus, que também o é. Nas demais figuras delituais, não, como veremos a seguir.Na Espanha, com certa parcimônia, existe a ação penal popular. Lá, contudo, o recorrente, a teor do art. 875 da Ley de Enjuiciamiento Criminal, deverá "presentar, con el escrito de interposición, el documento que acredite haber depositado 12.000 pesetas ......

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C1,--- ~0 art. 102 daquele diploma impede seja a ação penal popular pro-

movida por certas pessoas... Verbis:,: i,-,,

1 C ', No podrán ejercitar la acción penal:~ k,.)m~L') El que no goce de Ia plenitud de Ios derechos civiles;2.') El que hubiera sido condenado Ios veces por sentencia firme como reo del delito de denuncia o querella caluirmiosas;3.') E1 juez o magistrado".Mesmo na Inglaterra, onde campeia a ação popular, praticamente0 , ,, ,L.^) ela compete "as mais das vezes às autoridades policiais e à publicprosecution" (cf. Kenny-Turner, Outlines of criminal law, p. 591).Não resta dúvida, como assinala García-Velasco, que a ação popular "no menoscaba el ejercicio de la acción oficial y puede servirle de emulación o contraste, ya que toda actividad humana es falible por su propia naturaleza y el paralelismo de otra actividad similar permite la comparación y la mejora e incluso puede ser causa de reparación de errores u omisiones" (cf. Curso de derecho procesal penal, 1969, p. 48).Num país onde há um Ministério Público administrativa e funcionalmente independente, como o Brasil, a ação penal popular, ao invés de ser motivo e razão para o aprimoramento da repressão, seria poderoso veículo para satisfazer aspirações bastardas extraprocessuais.

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Nada impede se adote, entre nós, por meio de uma reforma consti-

tucional, a ação penal popular, inalgrado aquela advertência de Orbaneja: "ella exige un clima propicio y raices bien agarradas a la tradición de un pueblo..." (cf. Derecho procesal penal, 1975, p. 78). Mas, como adverte o mesmo autor, "los peligros no son menos obvios. Para que los delitos no queden impunes, el ejercicio de la acusación habrá de sentirse, antes que como derecho, como un deber cívico. Cumplirlo requiere tiempo y trab?j¡o, diligencia, someterse a molestias - acaso sinsabores graves - y, finalmente, exige gastos... Junto a esos defectos hay que poner los 'excesos' (En Roma, el sistema acusatorio produjo la raza de los delatores; en Inglaterra ha desarrollado prodigiosamente la triste industria del chantage, Cesar Bru)" (cf. Derecho, cit., p. 78).Por todas essas razoes e para evitar fingidos comportamentos cívicos e coarctar sentimentos mesquinhos, perversos, corrompidos, indignos, com os indefectíveis encorajamentos ditados pela politicalha, será conveniente, se amanhã for adotada a ação penal popular, seja tomada pelo legislador uma série de providências, restringindo ao máximo o seu exercício, para que ela não se tome estupidamente nociva aos interesses sociais, nem se transforme em poderoso veículo de corrupção, de chantagem e de perseguições. Já o velhQ Pimenta Bueno adiantava que o exercício da ação penal por qualquer do povo estabeleceria um principio perigosíssimo. "Accusatio non nisi ab idoneis et probatissimis viris, qui suspicionibus et sceleribus carent, fleri debet. Fora uma arma de que se pudera

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horrivelmente abusar, uma licença vaga e imoral, dadas à paixão e à vingança, mormente aos potentados locais, que podem ter denunciantes e testemunhas à vontade. A liberdade não teria mais segurança senão eventual." "Fugirei - dizia um deputado francês -do lugar em que qualquer me puder acusar, embora eu não o tenha ofendido" (cf. Processo criminal brasileiro, 5. ed., Ed. J. Ribeiro dos Santos, 1922, p. 101).Se não tivéssemos um Ministério Público devidamente estruturado, seria até salutar a ação penal popular. Do contrário, ela poderia surgir como instrumento de vingança, de paixões desenfreadas, paixões e vingança que, com os condimentos da imprensa falada e escrita, poderiam levar o Judiciário - formado de homens, falíveis portanto - a perder aquela imparcialidade e serenidade que constituem atributos da Toga.Não creio que um cidadão se disponha a contratar os serviços profissionais de um Advogado para acusar o assassino do bóia-fri a, do pedreiro,

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do zelador do prédio de apartamentos. Não creio que um cidadão enfie a mão no bolso para custear a acusação daquele que seduziu a filha do colono, do homem que mora debaixo dos viadutos. Mas acredito, piamente, que esse mesmo honestíssimo cidadão, levado por 44sentimentos cívicos", "amor à moralidade", ao "bem-estar da Nação", disponha-se a gastar rios de dinheiro objetivando desmoralizar, com um processo-crime, o homem do colarinho branco que cometeu ou teria cometido qualquer falcatrua... Atente-se para a circunstância de que aquelas infrações são terrivelmente mais graves... Donde se concluir que a famigerada ação popular de que tanto se fala não passa, como não passará, de simples demagogia, incompatível com a dignidade da Justiça.Entretanto, se ela vier, que venha devidamente estruturada, como

- j1 instrumento de defesa social e não de vingança desses pequeninosDemóstenes da diatribe, desses Robespierres de fachada, mais interessados na sua própria promoção...1, 0, ,Ela não desnatura o sistema acusatório. Deve, contudo, trazer a, 1%, ~nota da seriedade. Assim, por exemplo, dever-se-á exigir idoneidade econômico-financeira do acusador; a instituição do recurso ex officio para as hipóteses de extinção da punibilidade e absolvição; a impossibilidade de o acusador popular abandonar a causa, sob pena de pesada1j multa em face da possibilidade de 1a confabulacióti de pseudo-acusa-

dores con Ia defensa del inculpado" ... ; a exigência de uma caução (cau

ção mesmo, e não aquele arremedo de caução que e a nossa fiança criminal), seja para a propositura da ação penal, seja para a

interposição derecurso; a admissão de um recurso semelhante ao recurso criminal

ordi

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,, 1, )nário-constitucional de que trata o art. 102, 11, b, da CF,

possibilitandoao Excelso Pretório exercer aqueles "atti di controllo" para

refrear, quandopreciso, a política doméstica; o ressarcimento dos danos morais e

materiaiscausados à vítima, com o simples e singelo levantamento da

caução...Aqueles que estiverem interessados na adoção da ação penal popular não devem perder de vista a observação feita por Vélez Mariconde, no sentido de que, para um cidadáo "acusar en nombre de la colectividad, para asumir su representación y la responsabilidad correlativa, para demandar justicia y no una venganza, para compenetrarse de esa elevada misión, ejercitando una función pública, es necesario haber logrado un alto grado de cultura, de moral, de educación y de disciplina" (cf. Estudios, cit., p. 286).

468

E Finocchiaro-Aprile, na relação que acompanhou o Projeto de 1905, observava com agudeza: "a ação popular, em sua forma subsidiária ou complementar da ação do Estado, em um regime democrático, deve poder desenvolver-se na esfera do direito público que diz respeito aos direitos políticos e à administração pública, mas não se pode admitir no processo penal, que cuida da liberdade e da honra dos cidadãos. Aqui o Estado deve tutelar, ao lado do interesse social da repressão, outro interesse públúor deve impedir que a tranqüilidade dos honestos seja turbada por acusações temerárias, e que as armas da justiça, utilizadas em prejuízo dos que devem defender, sirvam para proteger baixas paixões ou vergonhosas especulações. E o órgão do Estado, a que se atribui o exercício da ação penal, surgido pela necessidade de tutelar, ao mesmo tempo, ambos os interesses, tem a obrigação e o dever de prover a uma e outra tutela".Um cidadão, diz Beling, "no asume el molesto papel de acusador sino por motivos personales, de suerte que tanto existe el peligro de que no se acuse aunque el interég del Estado lo requiera, como el peligro contrario de que el odio, la venganza y otros motivos bastardos originen procesos sin fundamento" (cf. Ernest Beling, Derecho procesal penal, trad. Miguel Fenech, Madrid, Ed. Labor, 1943, p. 65).Há, efetivamente, o perigo da presença inescrupulosa do chantagista, que, alardeando amor à Pátria, jactando-se defensor da sociedade, "fará com o uso do seu direito natural que a Justiça seja o instrumento da sua vingança". Note-se que na própria Inglaterra, onde o povo atingiu um alto grau de cultura, civismo, moral, educação e disciplina, a ação penal popular, no dizer de Cesar Bru, partidário do cidadão-acusador, desenvolveu maravilhosamente a triste indústria da chantagem... (cf. Cesar Bru, apud Vélez Mariconde, Estudios, cit., p. 290).E nós nos perguntamos: será que o cidadão, investido do poder de acusar, não será levado pelo ódio, ou pela vingança ou por qualquer outro interesse que não seja o bem público? Quem, perguntamos nós, contratará um advogado para acusar um cidadão que furtou um automóvel, ou um toca-fitas ou um objeto qualquer? Quem, enfim, contratará um advogado para acusar uma pessoa, se a infração penal

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não o atingiu, não o afetou? Obviamente ninguém. Se o fizer, haverá, incontrastavelmente, em jogo interesses bastardos e inconfessáveis...Mas, para finalizar: por que não se confiar no Ministério Público? Os homens que o integram são tão honrados quanto aqueles que com-

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1

Quando se tratava de contravenção, ou mesmo de lesão corporal e homicídio culposos, com autoria conhecida nos primeiros quinze dias, o procedimento se iniciava ou com a portaria da Autoridade Policial ou do Juiz, ou através de auto de prisão em flagrante presidido por um ou por outro. Ultimamente, os nossos Tribunais vinham estendendo ao Ministério Público o ato de iniciativa nessas infrações, mas a denúncia não tinha o condão de interromper o lapso prescricional, por se tratar de denúncia substitutiva, e não genuína.

Esse procedimento ex officio, que a doutrina batizou com o nome 44ação penal ex officio", não era uma peculiaridade do Direito brasileiro.Na Espanha também existe o procedimento ex officio, com a denominagáo "procedirniento" ou "inquisitio ex officio". Assim é que disp5e o art. 303 da Ley de Enjuiciamiento Criminal: "La formación del sumario, ya empiece de oficio, ya a instancia de parte, corresponderá a los

poem a Magistratura. Em ambos os casos, há uma série de exigencias

~ 1)

11. .^

para o ingresso numa e noutra carreira, num desejo insopitável de se proceder à escolha dos melhores. Se o Ministério Público eventualmente falhar, em determinadas situações ainda haverá remédio, haja vista o que dispõem os arts. 29 e 598 do CPP; em outras, não; concordo. Mas na Magistratura o problema é idêntico, absolutamente idêntico. Se o Tribunal absolve, não comportando a decisão qualquer recurso, absolvido ficará, irremediavelmente... Nem por isso se deve instituir um órgão superior aos Tribunais. E, ainda que se o instituísse, os homens desejariam mais: um superior ao superior e, assim, ad infinitum...

8. Ação penal "ex ofricio"

jueces de instrucción ......

No Direito argentino, dele tratam os Códigos de Buenos Aires (art. 103), de Córdoba (art. 130), de Corrientes (art. 168), de Entre Rios (art. 273) e de San Luiz (arts. 37, 38, 108 e 111).0 art. 74 do anterior CPP italiano consagrava o procedimento ex officio ao permitir ao Ministério Público ou ao Pretor, quanto aos delitos da sua competência, iniciar e exercitar, com as funções

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estabelecidas em lei, a ação penal. Também quando o Ministério Público requeria o arquivamento da notitia criminis e o Pretor dele discordava. Dizia Vannini que, na hipótese do art. 74, o Juiz instrutor não estava investido da ação penal, mas de "una particolare competenza aniministrativa a lui attribuita

470

1

per ragioni di opportunità e di garanzia..." (cf. Manuale, cit., p. 14). Atualmente, o Codice di Procedura Penale não admite possa o Juiz praticar o ato de iniciativa, contudo, se o Juiz discordar da "richiesta di archiviazione, dispone con ordinanza che, entro dieci giorni, il pubblico ministero formuli Fimputazione..." (cf. art. 409, 5, do CPP de 1988).

A ação penal ex officio, ou procedimento ex officio, tem sido acerbamente criticada, pois, dizem, não se concebe que o próprio Juiz que vãtjulgar de uma contravenção possa, antes, dar início ao procedimento penal, em desatenção ao princípio ne procedatjudex ex officio. De Pimenta Bueno estas palavras: "0 que faz o Juiz quando procede ex officio?". Constitui-se, simultaneamente, julgador e parte adversa do delinqüente; dá a denúncia a si próprio, escolhe as testemunhas e inquire-as perguntando o que julga conveniente, e por fim avalia as provas que ele criou, e pronuncia, então, como entende. E conclui: nada porém justifica o procedimento oficial qual nossa lei estabelece, abuso nascido dos antigos erros, abuso proscrito pelo virtuoso Malherbe: "je cherche ici des juges et je ne trouve pas que des accusateurs".

Carnelutti, entretanto, de certo modo defende o procedimento ex officio, a que chama de "processo penal sem demanda", dizendo: "Ni repugna en absoluto al buen sentido que, aun sin pedirse por ninguno, el juez provea por iniciativa propia a la comprobación del delito y a su castigo" (cf. Lecciones, cit., p. 28).

Por seu turno, pondera Alcalà-Zamora: Posto a optar entre a impunidade e o respeito a determinados principios processuais, é preferível não se sacrificar o primeiro. E Mariano Herreiro, justificando tal procedimento, salienta que o Juiz, no desempenho da obrigação que lhe está imposta, de velar pela segurança do corpo social e dos seus membros, deve agir por si próprio e iniciar o processo (cf. Alcalà-Zamora, Derecho, cit., v. 1, p. 143).Como diz Varinini, nesses casos, o Juiz não está exercendo função jurisdicional, mas uma particular atividade administrativa. De fato, os atos ou atividades que provenham dos Orgãos Jurisdicionais são judiciais, mas nem todos têm caráter jurisdicional. Além disso, há atos anômalos de caráter judicial, tais como aqueles a que se referem os arts. 28, 40, 39, §§ 4." e 5.', 11, do CPP.

Embora se diga tratar-se de atividade administrativa, o certo é que não se devia cometer essa função ao Juiz. Em princípio, como bem diz

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Carnelutti, não repugna ao bom sentido possa o Juiz dar início ao procedimento, mesmo porque do século XVI até o XVIII era assim. Mas o perigo está no fato de que o Juiz perde ou pode perder sua imparcialidade e faz um prejulgamento. Em suma: julga antes de decidir.1Entre nós, desde o Código de 1832, para não irmos mais longe, sempre se admitiu, com maior ou menor amplitude, o procedimento ex officio. 0 art. 138 do Código de Processo Criminal de 1832 dizia: "0 Juiz procederá ao auto de corpo de delito a requerimento da parte, ou ex officio, nos crimes em que tem lugar a denúncia". "Art. 141. Nos casos de denúncia, ainda que não haja denunciante, o Juiz procederá à inquirição das testemunhas, fazendo autuar o auto de corpo de delito se houver." E, mais incisivo, dispunha o art. 206: "Não havendo queixa ou denúncia, mas constando ao Juiz de paz que se tem infringido as posturas, lei policial ou termo de segurança ou de bom viver, mandará formar 1 %. .~.auto circunstanciado do fato, com declaração das testemunhas que nele

1 lá, .1 .1hão de jurar, e citar o delinqüente para a sua primeira audiência".

0 Regulamento n. 120, de 31-1-1842, também dispunha quanto aos procedimentos ex officio. Houve, então, inúmeras críticas, e, pork,isso, na Lei n. 2.033, de 20-9-1871, o art. 15 trazia uma modificação:h, mo 00"Fica abolido o procedimento ex officio dos Juízes formadores de culpa, exceto nos casos de flagrante delito, nos crimes policiais e nas espécies dos §§ 5." e 7." deste artigo".N.: )Mais tarde surgiu o Decreto n. 4.824, de 22-11-1871, regulando a execução daquela lei, e, no art. 49, resumiu o pensamento do legislador quanto ao procedimento ex officio:S.~~:I "É abolido o procedimento ex officio, exceto:1.0) nos casos de flagrante delito;2.0) nos casos policiais;

3.") quando, esgotados os prazos de lei, não for apresentada denúncia ou queixa;4.0) nos crimes de responsabilidade da competência do Juiz singular".

Promulgado o CP de 1890, foi mantido, ainda com maior restrição,o procedimento ex officio, pois o § 3.' do art. 407 apenas dizia: "Haverá

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lugar a ação penal... mediante procedimento ex officio nos crimes inafiançáveis, quando não for apresentada a denuncia nos prazos da lei".0 CPP atual deu, ainda, menor amplitude ao procedimento ex officio. 0 vigente Código atendeu, diz o Min. Francisco Campos, ao princípio do ne procedatjudex ex officio. 0 procedimento ex officio

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só é mantido em relação às contravenções, que, dado o caráter essencialmente preventivo que assume, na espécie, a sanção penal, devem ser sujeitas a um proces*b particularmente célere, sob pena de frustrar-se a finalidade legal.Eis aí a que ficou reduzido o procedimento ex officio: às contravenções. As razões que levaram o legislador a conservar tal forma de procedimento são, já o disse Frederico Marques, insustentáveis, pois nenhum Juiz se abalançaria a deixar o seu mister específico de julgar para procurar contraventores.No Direito italiano, como vimos, em alguns casos era permitido o procedimento ex officio, e, justificando essa exceção, salientava Manzini: "Tratándose de una función estatal, que en nuestro ordenamiento no puede tener un interés diferente y opuesto al de la función jurisdiccional penal, nada impediría en principio que la función propia del ministerio público se confiara a jueces" (cf. Trattato, cit., v. 1, p. 288).Atualmente persiste esse procedimento, por via indireta, conforme análise que fizemos do art. 409 do Codice atual (Cap. 8, § V", verbete Ação penal "ex officio ").Só existia esse caso de procedimento ex officio entre nós? Até há pouco tempo, sim. Todavia, em 2-4-1965, surgiu a Lei n. 4.611 estabelecendo para os crimes de homicídio e lesão corporal culposos o mesmo procedimento previsto para as contravenções (CPP, arts. 531 a 538, § 4."). Assim, também nesses casos, o procedimento era ex officio, iniciando-se por meio de auto de prisão em flagrante, ou portaria baixada pela Autoridade Policiafou pelo Juiz. Em casos excepcionais, podia o Ministério Público oferecer denúncia não só quanto às contravenções, como também no que diz respeito aos homicídios e lesões corporais culposos.Ao tempo da vigência da Constituição de 1946, Jorge Alberto Romeiro entreviu no art. 141, § 22, daquela Carta, mais um caso de ação penal ex officio. Dizia aquele dispositivo: "A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal, e, nos casos previstos em lei, promoverá a res-

473

ponsabilidade da autoridade coatora". Nesse caso, dizia, há um verdadeiro procedimento ex officio, pois a lei determina ao Juiz que promova a responsabilidade da autoridade (cf. Da ação, cit., ri. 46).Desse entendimento não divergia Tornaglii, salientando, entretanto, que "falta apenas regulamentar o procedimento ex officio" (cf. Comentários ao Código de Processo Penal, Forense, 1956, v. 1, t. 2, p. 42).

Sem razão, contudo. Quando o texto constitucional dizia: " ... e promoverá a responsabilidade da autoridade coatora", era como se estivesse dizendo: deverá o Juiz determinar a extração de peças e encaminháIas ao órgão do Ministério Público para apreciá-las, oferecendo, se for o caso, denúncia. Enfim, o Juiz agirá de conformidade com o art. 40 do CPP.Pontes de Miranda, a propósito, observou que o "promover", refe: C:,

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rindo-se ao Juiz, serve para lhe dar a obrigação de remeter as peças ao Ministério Público (cf. Comentários à Constituição de 1946, coment. ao § 22 do art. 141).C1, 1, . ~ A Constituição de 1967 repetiu o texto anterior, omitindo, contudo,

c: - a última frase ("E promoverá a responsabilidade" ) por evidente) desnecessidade.Com o advento da Lei Complementar ri. 40, de 14-12-198 1, houve várias manifestações no sentido de que os arts. 531 do CPI? e U' da Lei n. 4.611, de 2-4-1965, haviam sido revogados, em face do contido no art. 3.', 11, da referida lei. Houve, inclusive, várias manifestações dos Tribunais de Alçada do Rio Grande do Sul e do Paraná. Em São Paulo,".',1,~j o então Procurador- Geral de Justiça, J. S. de Oliveira Peres, através dot,4Aviso n. 45/82, chegou, inclusive, a recomendar aos Promotores de Justiça que oferecessem denúncia em tais casos. Verbis:

"0 Procurador-Geral de Justiça, no uso de suas atribuições legais, tendo em vista o decidido pelos Procuradores-Gerais de Justiça na reunião realizada na cidade de Belo Horizonte, no sentido de orientar todos os membros do Ministério Público de âmbito estadual, no sentido de questionar a exclusiva legitimidade na propositura das ações penais nos crimes culposos e contravenções, bem assim, atento ao que vem sendo decidido pelos Egrégios Tribunais de Alçada dos Estados do Paraná e do Rio Grande do Sul, resolve recomendar aos Senhores Promo-

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tores de Justiça do Estado de São Paulo que ofereçam denúncia em tais casos, por se tratar de função institucional do Ministério Público, com exclusividade, a promoção da ação penal pública, por força do artigo 1% inc. 11, da Lei Complementar ri. 40, de 14-12-198 1, vedado seu exercício a toda e qualquer pessoa estranha à instituição (art. 55 da mencionada Lei Complementar) - São Paulo, SP, 25 de outubro de 1982".

eurgiram, então, vários recursos dirigidos à Excelsa Corte, tendo esta (tantas foram as decisões em contrário) chegado a corporificá-las na Súmula 601. Verbis: "Os arts. 1% 11, e 55 da Lei Complementar ri. 40/81 (Lei Orgânica do Ministério Público) não revogaram a legislação anterior que atribui a iniciativa para a ação penal pública, no processo sumario, ao juiz ou à autoridade policial, mediante Portaria ou Auto de Prisão em Flagrante".

Não obstante o preceito sumular, surgiu uma tendência no sentido de se conferir também ao Ministério Público o poder de praticar o ato de iniciativa no processo contravencional. No Recurso de Habeas Corpus ri. 63.536/9-MG, publicado no DJU de 28-2-1986, a 1.' Turma do STF decidiu que "não se exclui o início da ação penal mediante denúncia nas contravenções". Posteriormente, no Recurso

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Extraordinário ri. 109.795/ 7-PR, a mesma 1.'Turma do STF decidiu: "Nas contravenções penais é facultada a instauração da ação penal, tanto pelo auto de prisão em flagrante e portaria, como pela denúncia do Ministério Público" (cf. DJU, 24-10-1986).

Na verdade essa tendência merecia aplausos. Primeiro porque não deixava de ser esquisita a posição do Juiz - praticando o ato de iniciativa e proferindo o julgamento. Em segundo lugar, mais esquisito ainda, por conceder-se à Autoridade Policial, nas contravenções, bem como no homicídio e lesões culposos, não só o ato de iniciativa, mas, também, poderes para colher a prova acusatória, sem a intervenção do Juiz, num flagrante desrespeito ao princípio do Juiz natural. Assim, o direito pretoriano, aos poucos, ia corrigindo as distorções legislativas...A Constituição de 5-10-1988, no seu art. 129, 1, proclamando ser privativa do Ministério Público a promoção da ação penal pública - e como nas contravenções e no homicídio e lesão corporal culposos a ação penal é pública, extinguiu o procedimento ex officio. Do dia 5-10-1988 para cá, os procedimentos contravencionais e os relativos a homicídio e

475

---i, h,

h,

L,

lesão culposos somente poderão ser iniciados pelo Ministério Público. Mesmo que se trate de uma dessas infrações cometidas antes da promulgação da atual Constituição, se o procedimento ainda não foi iniciado, somente o Ministério Público poderá fazê-lo. Mas aqui há algo curioso. Se o fato ocorreu antes da promulgação da CF, a denúncia do Ministério Público continuará, cremos, substitutiva, e não genuína. Embora a norma contida no art. 129, 1, da CF tenha um profundo conteúdo processual, não se lhe pode negar, também, importante caráter penal. De fato. Antes da Constituição de 1988, a denúncia nas contravenções e nas hipóteses de homicídio e lesões corporais culposos, cuja autoria fosse conhecida nos primeiros 15 dias, não era causa interruptiva da prescrição. Não o sendo, como efetivamente não era, a prescrição não sofria interrupção e, desse modo, beneficiava o réu. Como a prescrição e matéria de direito penal, quer-nos parecer que, aos fatos ocorridos antes de 5-10-1988, a denúncia continuará sendo substitutiva, em face do princípio da retrotração da lei penal.Há entendimento no sentido de que os procedimentos ex officio continuarão, até que a matéria seja devidamente disciplinada em lei. E isto em razão de o art. 129, 1, da Lei Maior dispor que a promoção da ação penal pública sertífeita na forma da lei. Parece-nos que o equívoco é manifesto. Proclama a Magna Carta serem funções institucionais do Ministério Público, entre outras, "promover,

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privativamente, a ação penal pública, na forma da lei". Isto é, como a lei dispuser. Atualmente, a lei dispõe que o Ministério Público promove a ação penal por meio da denúncia. É possível que amanhã venha outra lei e institua um outro modo para a sua promoção.A vingar entendimento diverso, e como o texto constitucional fala, apenas, em promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei, deverá o Ministério Público cruzar os braços, não promover a ação penal pública, e ficar na expectativa de uma lei explicitando como deverá ela ser promovida...

"É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados ......

Observe que a Constituição, no art. 5.", XXXVIII, dispõe:

Nem por isso os Tribunais do Júri deixarão de funcionar, no aguardo da organização que a lei vai lhes dar. Com a organização que lhe der

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a lei, assegurados... Pode ser a lei atual, ou outra qualquer, dês que, assegurados a ampla defesa, o sigilo nas votações etc.

9. Outras modalidades de ação penal

Não poderíamos encerrar o capítulo sobre a ação penal sem fazer referência, ainda que de modo singelo, às suas outras modalidades.AjRa Espanha, ao lado da ação penal popular, da ação penal pública incondicionada, da ação penal pública condicionada e da ação penal privada, existe a denominada "ação penal particular". Consiste essa mo-

1 .dalidade de ação em poder o proprio ofendido, em delitos de ação pública, promovê-la. A propósito, J. Asenjo: "Acusadores privados en delitos públicos - Estos pueden comparecer ejerciendo las dos acciones (penal y civil) o sólo la civil. En el caso primero, aún siendo consortes, puesto que actúan siempre al lado del fiscal (Ministerio Público), ejercitan la acción penal por si mismos y no como los cooperadores (Nebenklüger), como no proceso alemán, que se adhieren al fiscal, concediéndole un mero derecho de intervenir junto al acusador oficial" (Derecho, cit., p. 148).B)Fala-se muito na denominada "ação penal adesiva" do Direito alemão. De acordo com o CPP alemão (StPO), há delitos de ação penal pública, de ação penal semipública (condicionada àAntrag, equivalente à nossa representação) e de ação penal privada. 0 § 374 do StPO enumera os crimes de ação penal privada, e o § 376 do mesmo diploma dispõe poder o Ministério Público promover a ação penal em relação a qualquer daquelas infrações, desde que divise um interesse público. Nesses casos, isto é, quando o Ministério Público promover ação penal nos crimes de alçada privada, o ofendido ou quem legalmente o represente poderá intervir no processo como assistente, a teor do § 395 do referido Cödigo. Verbis: "Befugnis zum Anschluss. Wer nach Massgabeder Vorschrift des § 374 als

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Privatkläger aufzutreten berechtigt ist, kann sich der erhobenen offentlichen Klage in jeder Lage des Verfahrens als Nebenklãger anschliessen..." (Faculdade de incorporação. § 395. Quem, segundo o preceito do § 374, está facultado a atuar como acusador privado, pode atuar como assistente de acusaçao na ação pública promovida ... )."In tale caso - diz Gualtieri - il Privatklãger assume il ruolo de Nebenklãger" (Umberto Gualtieri, La parte civile nel processo penale, Napoli, 1968, p. 10).

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Se o Ministério Público promove a ação penal e fica à frente do

processo, e o acusador particular (Nebenkléiger) passa a funcionar comosimples interveniente adesivo facultativo, não se pode dizer que a Nebenklage seja, propriamente, modalidade de ação penal. Desse modo,se lhe falta autonomia, não se pode falar em "ação penal adesiva", como pretende Leone (cf. Giovanni Leone, Linee generale di una riforma del processo penale, in Rivista Italiana di Diritto Penale, 1948, p. 236).

Entretanto, existe na Alemanha a ação penal adesiva, que não épropriamente penal. 0 adjetivo "penal" advém da circunstância de ser ela proposta no juízo penal. Seu objetivo, contudo, reside na satisfação do dano ex delicto no juízo criminal.

0 Decreto-lei ri. 3, de 29-5-1943, alterando os §§ 403 e 406 da StPO (Strafprozessordnung), introduziu o instituto da "Adhãsionsverfahren", que foi mantido na reforma de 1945 e na nova regulamen-tação do Processo Penal alemão ocorrida em 1950, 1965 e 1975. Umberto Gualtieri esclarece: Para fazer valer a satisfação do dano emergente de uma infração penal, o ordenamento alemão prevê um outro instrumento processual, que é a Adhãsionsverfahren (cf. La parte, cit., p. 11). E assim agiu o legislador alemão, principalmente para elinúnar a "possibilità di decisioni contrastanti".

Não se pode dizer, pois, que aNebenklage seja, propriamente, uma ação penal.

Também na França, ao se permitir ao ofendido o direito de reclamar, na sede penal, a satisfação do dano emergente da infração penal, aquele se converte em verdadeiro acusador ao lado do Ministério Público. Diga-se o mesmo do Direito italiano, pois, segundo Florian, "a parte civil, na prática, se afirma como uma verdadeira acusação privada ao lado da pública, como um efetivo concurso do ofendido no exercício da ação penal" (apud Alcalà-Zamora, Derecho, cit., v. 2, nota 30).

No Brasil, o problema é semelhante. 0 art. 268 do CPP permite ao ofendido o direito de ingressar no Processo Penal, ao lado do Ministério Público, como assistente. Trata-se de evidente intervenção adesiva facultativa. Não há, pois, ação penal autônoma.

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C)Ação de prevenção penal. Algumas vezes a ação penal visa, exclusivamente, à aplicação da medida de segurança. É o que ocorre, entre nós, quando o sujeito ativo do fato criminoso, em virtude de doença mental ou desenvolvimento mental retardado, for inteiramente inca-

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paz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Nessa hipótese, que Silvio Ranieri vislumbrou aquilo que denominou "ação de prevenção penal", a ação penal tem por finalidade a aplicação de medida de segurança. Assim, a ação penal condenatória se bifurca: a ação penal propriamente dita, tendo por finalidade a aplicação da pena, e a ação de prevenção penal, visando à imposição de medida de segurança.

D~#Ação penal profissional. Não existe entre nós. Havia no Direito argentino. Bartoloni Ferro cita algumas leis especiais argentinas que conferiam o direito de ação penal a determinadas entidades ou pessoas. Assim, por exemplo, a lei sobre jornada legal de trabalho concedia às associações obreiras e patronais, por interinédio de suas comissões diretivas, o direito de acusar os seus infratores; a Lei ri. 11.338, quanto ao trabalho noturno, e a Lei ri. 11.317 conferiam às entidades de proteção às mulheres e menores e as associaçoes operárias legitimidade para acusar, por meio de suas comissões diretivas, os infratores do regime de trabalho estabelecido a favor das primeiras e das segundas (cf. El proceso penal, p. 43).

Segundo Alcalà-Zamora, a Lei de 1884, existente na França, admitiu, também, a ação penal profissional (Derecho, cit., p. 78). Entretanto, consoante relato de André Vitu, essa Lei de 21-3-1884 conferiu, apenas, ao sindicato o direito de defender seus interesses privados, quer na Justiça Penal, quer na Justiça Civil. E tanto é verdade que em 1920 surgiu outra, reservando aos sindicatos profissionais o direito de exercer "tous les droits réservés à Ia partie civile devant toutes les juridictions..." (Procédure, cit., p. 156).

E) Ação pública subsidiária da pública. Na França, certas administrações dispõem do poder de promover a ação penal pública nos delitos fiscais, caso o Ministério Público não o faça. E o que ocorre, por exemplo, com "l'adniinistration des eaux et forêts" quanto aos delitos "forestiers et de pêche". Assim, nos delitos florestais e de pesca, caso o Ministério Público não promova a ação penal, a Administração de Águas e Florestas poderá fazê-lo, ou vice-versa (cf. Donnedieu de Vabres, La procédure criminelle, p. 614 e s., ri. 1.094).

Entre nós, havia também tal modalidade de ação, por sinal prevista no art. 38, XIX, da Lei ri. 1.314, de 30-1-1951 (Lei Orgânica do Ministério Público da União). Assim, se ocorresse um crime contra um bem da União e o Promotor não oferecesse denúncia, o Ministério Público

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e

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i

Federal poderia oferecê-la. Hoje, como tais crimes passaram para a alçada da Justiça Federal, cessou a razão de ser daquela disposição legal.F) 0 parágrafo único do art. 529 do CPP determina que "será dada vista ao Ministério Público dos autos de busca e apreensão requeridas pelo ofendido, se o crime for de ação pública e não tiver sido oferecida queixa no prazo fixado neste artigo". Essa disposição caiu no vazio, uma vez que o ofendido somente poderá exercer o direito de queixa em crimes de ação pública na exclusiva hipótese do art. 29 do CPP, nos precisos termos dos arts. 129, 1, e 5.0, LIX, da CE

G)A Medida Provisória n. 153, de 15-3-1990, cuidando da "Puni-

ção ao Abuso de Poder Econômico", estabeleceu, no parágrafo único do art. 12: "Quando o Ministério Público exceder os prazos legais sem a adoção das providências a seu cargo, admitir-se-á ação penal subsidiá-

1 ( Wria promovida por qualquer cidadão, bem como por organização constituída há pelo menos um ano". Duas observações: a) Em primeiro lugar, o legislador, aqui, instituiu, contra legem, uma verdadeira ação penal popular subsidiária da pública, o que, na verdade, é defeso em lei (arts. 129, 1, e 5.0, LIX, da CF). Observe-se que, quando a Constituição permite a ação privada nos crimes de ação pública, tal hipótese fica restringida ao art. 29 do CPP, isto é, se o Ministério Público não ofertar denúncia no prazo legal, o ofendido ou quem legalmente o represente poderá exercer o direito de queixa - o ofendido, e não qualquer cidadão... . b) Em segundo lugar, se uma organização foi constituída há mais de cem anos ou a menos de um mês, ela terá o direito de exercer a ação privada subsidiária da pública, dês que ocorra a hipótese prevista no art. 29 do CPP, ainda que se trate de crime definido na Medida Provisória n. 153.

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ÀV~_§ 8f - Inicio da açao penal privada

SUMÁRIO: 1. Como se inicia a ação penal privada? 2. Ouvida do órgão do Ministério Público. 3. A queixa poderá ser oferecida pelo próprio ofendido? 4. Prazo. 5. Devolução do inquérito. 6. Arquivamento.

1. Como se inicia a ação penal privada?

Tratando-se de ação penal privada, pouco importando sua modalidade (exclusivamente privada, subsidiária da pública ou ação privadapersonalíssima), seu ato inaugural é a queixa.Esta, como a denúncia, é o ato processual por meio do qual o ofendido ou quem legalmente o represente deduz em juízo a pretensão punitiva. A queixa equivale à denúncia. É verdade, e bem verdade,

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que a palavra "queixa" tem um sentido vulgar, que exprime a delatio criminis. É nesse sentido que se diz: "Fulano foi fazer queixa à Polícia". A palavra 44queixa", que convém ser aqui esclarecida, não tem semelhante sentido. A técnica jurídica reservou-lhe o significado de peça vestibular da ação penal, quando iniciada pelo ofendido ou quem legalmente o represente.

Equivalente à denúncia, deverá a queixa conter os mesmos requisitos que esta, isto é, qualificação do querelado ou sinais pelos quais se possa identificá-lo, exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, a classificação do crime e, se necessário, o rol de testemunhas.

481

li,

Diverge, no entanto, da denúncia, porquanto esta é oferecida pelo órgão do Ministério Público, e aquela, pelo particular.

Quando o processo se inicia por meio de queixa, a pessoa que propõe a ação e aquela contra a qual a ação é proposta são denominadas, respectivamente, querelante e querelado.

2. Ouvida do órgão do Ministério Público

Oferecida a queixa, o Juiz, antes de recebê-la, determinará a abertura de vista ao Ministério Público, a fim de se manifestar a respeito, não só na qualidade de fiscal da lei, como também na qualidade de fiscal do princípio da indivisibilidade da ação penal.

Se, no caso, a ação penal é privada, por que ouvir o órgão do Ministério Público? Este exerce a função de fiscal do princípio da indivisibilidade da ação penal privada, nos termos do art. 48 do CPP. E tal função ele a exerce aditando a queixa. Já sabemos que toda ação,1 , ~. .~ ~penal é indivisível. Pois bem: suponha-se que duas ou três pessoas te-

nham cometido um crime de ação privada. Se o ofendido quiser, poderáo : "promover a ação penal contra todos os autores, não lhe sendo lícito excluir algum ou alguns. Ou oferece queixa contra todos, ou não a oferece contra nenhum. Caso a queixa seja oferecida apenas contra um, o Ministério Público, ao receber os autos "com vista", aditará a queixa, isto é, fará uma petição ao Juiz, ou falará nos próprios autos, dizendo que a queixa é também extensiva contra A e B. Não poderá certamente substituir a queixa, porquanto a faculdade de aditamento não envolve a de substituição (veja-se, no apêndice, o verbete Aditamento à queixa).

1, )

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Dentro de que prazo poderá o Ministério Público fazer o aditamento? A respeito, o § 2.' do art. 46: "0 prazo para o aditamento da queixa será de três dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos, e, se este não se pronunciar dentro do tríduo, entenderse-á que nada tem a aditar, prosseguindo-se nos demais termos do processo". Na Lei de Imprensa, o prazo para aditamento é de 10 dias.Respeitante à intervenção do Ministério Público nos processos instaurados exclusivamente por queixa, Espínola Filho salienta que o auxílio do Ministério Público à parte privada, que o aditamento traduz, efetiva-se com a intervenção daquele em todos os termos do processo, para o que lhe será, sempre, aberta vista após a do querelante (cf. Comentários, cít., v. 1, p. 438), parecendo, assim, ao ilustre processualista que a

482

j~

intervenção do Ministério Público nos processos por crime de exclusivao a queixa.ação penal privada só poderá efetivar-se se houver affitament ,Ao contrário: se o Ministério Público não fizer o aditamento, não inter-. nos demais termos do processo. Se for esse seu entendimento, estamos virá que as razões lhe não assistem. De fato. Na ação penal privada, o órgão do Ministério Público interfere nos demais termos do processo, não só como fiscal do princípio da indivisibilidade da ação penal privada, mas, tambáti, como custos legis, ex vi dos arts. 45 e 257 do CPP. 0 primeiro assim dispõe:

"A queixa, ainda quando a ação penal for privativa do ofendido, poderá ser aditada pelo Ministério Público, a quem caberá intervir em todos os termos subseqüentes do processo".

E o art. 257 proclama:

da lei".

"0 Ministério Público promovera e fiscalizará a execuçao

Cabera, pois, ao órgão do Ministério Público intervir em todos os termos subseqüentes do processo, ainda que não tenha aditado a queixa. E ele intervirá como defensor do interesse público, sempre presente. Aliás, o § 2.' do art. 500 e o § 2.' do art. 600 do CPP são muito elucidativos em não fazer distinção entre as hipóteses de haver ou deixar de haver aditamento.

E certo, contudo, que o legislador não erigiu à categoria de nulidade a não-intervenção do Ministério Público em processos dessa natureza, tenha ou não aditado a queixa, como se percebe pela leitura do art. 564, 111, d, do diploma processual, ao contrário do que ocorre na Lei de Imprensa, onde se comina a pena de nulidade se não houver tal intervenção (Lei ri. 5.250, de 9-2-1967, art. 40, § 2.). Poder-se-á dizer que a nulidade estaria prevista no inc. IV do art. 564. Ainda assim, a nulidade seria sanável, nos termos do art. 572. Note-se que sanável também será, se a nulidade consistir em

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não-intervenção nos processos de ação pública iniciada pelo ofendido.

3. A queixa poderá ser oferecida pelo próprio ofendido?

0 ofendido ou quem legalmente o represente poderá, pessoalmente, ou por intermédio de procurador, oferecer a queixa. Neste último

483

0 . , ~, ., k

caso, o instrumento procuratório deverá conter poderes especiais, a narração sucinta do fato criminoso e o nome do querelado.

Sobre o assunto assim dispõe o art. 44 do CPP:

"A queixa poderá ser dada por procurador com poderes especiais, devendo constar do instrumento do mandato o nome do querelante e a menção do fato criminoso, salvo quando tais esclarecimentos dependerem de diligências que devem ser previamente requeridas no juízo criminal".

0 texto legal fala em "nome do querelante", mas é evidente o equívoco. Deve ler-se "nonie do querelado", pois o do querelante devera obrigatoriamente constar do instrumento procuratório, uma vez que é ele o mandante.

Todas as cautelas tomadas pelo legislador, quando a queixa deva ser oferecida pelo procurador, visam a fixar os limites da responsabilidade do mandante e do mandatário, na hipótese de ocorrer uma denunciação caluniosa e, até mesmo, no que respeita à responsabilidade civil.Todavia, se o ofendido não puder identificar o querelado, ou não puder ao menos mencionar a infração penal, dispensam-se, na procuração, tais esclarecimentos, cumprindo então ao procurador, previamente, requerer as necessárias diligências, no juízo criminal, visando àqueles esclarecimentos, sem os quais não poderá exercer o direito de queixa. A expressão "juízo criminal" a que se refere o art. 44 do estatuto processual penal tem, ao contrário do que pensa Tomaglii, um sentido mais amplo, abrangendo, como doutrina Frederico Marques, os orgãos auxiliares da Justiça Penal.Se, entretanto, o próprio querelante assinar a queixa juntamente com o procurador, torna-se irrelevante a observância daquelas exigências feitas pelo art. 44.Pode a queixa ser oferecida pelo próprio ofendido? Se ele possuir habilitação técnica, nada o impede. Caso contrário, torna-se necessário constituir um advogado. Tornaghi entende que o procurador, mesmo sem habilitação, pode oferecer a queixa, mas não pode praticar os demais atos do processo (cf. Comentários, cit., t. 2, p. 88). Dissentimos. Cremos que, se o procurador não tiver habilitação (habilitação técnica, é claro) e vier a oferecer a queixa, pode e deve o Juiz, alegando falta de capacidade postulatória (ausência dojus postulandi), rejeitá-la, aplican-

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484

do, por analogia, o disposto no art. 13 do CPC. Nesse sentido, o ensinamento de Frederico Marques (0 júri, cit., v. 3, p. 148). Suprida a incapacIdade, aplicar-se-á o disposto no parágrafo único do art. 43 do CPP. Sobre a procuração de que trata o art. 44 do CPP, v. RT, 531/352, 443/442, 432/285, 492/353, 5111440, 514/334, 4491432, 488/336, 532/350; RV, 57/544, 59/194, 63/34 e 674. "Procuração. Requisitos (art. 44 do CPP). Para a validade da procuração, na ação penal de iniciativa privada, não se ex* a descrição, mas a menção ao fato criminoso" (RHC 3.173-5PB, Rel. Min. Assis Toledo, 5.'T., v. u_ DJ, 28-2-1994, Ementário da Jurisprudência do SV, v. 9, n. 640).

4. Prazo

Já vimos que o prazo para a propositura da ação penal privada, normalmente, é de 6 meses, a partir da data em que a pessoa investida do direito de queixa vier a saber quem foi o autor do crime. Tratando-se de ação penal privada subsidiária da pública, o prazo é o mesmo, mas sera contado a partir da data em que se escoar o prazo para o Ministério Público oferecer denúncia. No crime de adultério, cuja ação penal é personalíssima, o prazo é de um mês, após o conhecimento do fato pelo cônjuge ofendido. No outro caso de ação penal privada personalíssima, crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento para o casamento, embora o prazo seja de 6 meses, começa a fluir a partir da data em que transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento, consoante a regra do parágrafo único do art. 236 do CR Nos crimes contra a propriedade imaterial, o prazo continua sendo de 6 meses.

Ainda nos crimes contra a propriedade imaterial, se houver prisão em flagrante e o indiciado não for posto em liberdade, o prazo para a queixa será de 8 dias, segundo preceitua o art. 530 do CPP.Nos demais casos de ação privada, se houver prisão em flagrante e o indiciado continuar preso, o prazo para a queixa será de 5 dias, aplicando-se por analogia o disposto no art. 46 do CPP.

Em qualquer das hipóteses, em se tratando de queixa, o prazo contado segundo as regras do art. 10 do CP, computando-se o dia do início, conforme já vimos neste volume (Cap. 8, § 4.', verbete Como se conta o prazo para a representação?).

485

1

5. Devolução do inquérito

Nos crimes de ação privada, remetidos os autos do inquérito ajuízo, apos a sua distribuição e registro, determina o Juiz seja ouvido o órgão do Ministério Público. Percebendo este tratar-se de crime de ação privada, requererá ao Juiz se aplique o disposto no art. 19 do CPP. E os autos permanecem em Cartório, aguardando a iniciativa do ofendido ou de quem de direito. Deve, pois, o titular da ação ficar

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atento à tramitação do inquérito, pois sua inércia poderá acarretar a decadência do direito de queixa, causa extintiva da punibilidade. Se por acaso o ofendido entender necessárig a realização de alguma diligência para ofertar a queixa, cumprir-lhe-á requerer ao Juiz a devolução dos autos do inquérito à Polícia.

1 . 11 6. Arquivamento

Se o ofendido não oferecer a queixa no prazo legal, será decretada a extinção da punibilidade pela decadência. Se renunciar ao direito de11queixa, o Juiz procederá da mesma forma, isto é, decretará extinta a punibilidade, com fundamento no art. 107, V, do CR Pode acontecer, entretanto, reconheça o ofendido que o fato era atípico, ou, então, que a Polícia não conseguiu identificar o criminoso (caso em que o prazo para a queixa nem se inicia). Nessas hipóteses, não há pedido de arquivamento. Os autos simplesmente permanecem em Cartório, e, decorrido o prazo legal (se já se iniciou, é claro), decretar-se-á extinta a punibilidade.

486

1

"0

1. Introdução

§ V o a açao- CondiOes d

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. 0 policiamento do exercício do direito de ação. 3. As condições da ação. 4. As condições da ação no Processo Penal. 5. As condições genéricas. 6. As condições específicas.

Tema inquietante, e que tem desafiado a argúcia dos doutrinadores, é o pertinente às condições da ação. Sem embargo das profundas, velhas e revelhas especulações científicas, ainda não se logrou, no particular, alicerce bem caldeado.

A respeito do assunto, nunca houve um entendimento pacífico. Liebman deu um grande passo. Tomou posição. Firmou conceitos. Criou, enfim, uma grande escola. Hoje, seus fiéis seguidores estão apreensivos. 0 próprio Liebman retrocedeu em parte... Novas teorias estão surgindo. Dinamarco, Egas Moniz e Grinover procuram uma reformulação dos antigos conceitos. Enquanto a doutrina não puser os pes no chão, com firmeza e seguridade, o melhor, para fins didáticos - e outro não é o objetivo deste trabalho -, é mantermos nosso ponto de vista anterior, à espera de melhor sedimentação.

2. 0 policiamento do exercício do direito de ação

0 particular e o próprio Estado-Administração (sempre que estiver COarctado no poder de auto-executar seu direito), conforme já vimos,

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1 1L:

têm o direito de ação, como um instrumento, um meio de deduzir em juízo sua pretensão. Posta a ação em juízo, o órgão Jurisdicional passa a desenvolver intensa atividade, instruindo-se, para, no final, dizer se o pedido é fundado ou infundado, se o que se pede é procedente ou impro-1 cedente.Percebe-se, de pronto, que a ação, no plano estritamente processual, está instrumentalmente ligada a uma pretensão, a um caso concreto, e esse caso concreto é aquele quid em relação ao qual o direito de ação é exercido. Claro. Ninguém ingressa em juízo sem que haja motivo.1,Este, obviamente, deve existir, ainda que aparente.Sendo o direito de ação, no plano processual, instrumentalmente conexo a uma pretensão, natural que procurasse o legislador disciplinarlhe, policiar-lhe o exercício, pois, do contrário, seria ele fonte inesgotá-

11 1, to vel de abusos, acarretando perda de tempo e assoberbando de serviçoa1 -., 1.1 o inútil os órgãos incumbidos da administração da justiça.1. 1.. o4- Desse modo, quando se propõe uma ação, antes de o Juiz dizer se

o autor tem ou não razão, se o pedido é ou não procedente, deverá ver seo que se pede é juridicamente possível, se o autor tem interesse na lidee se existe interesse em se valer dos órgãos Jurisdicionais.Suponha-se que o Promotor de Justiça promovesse ação penal contra Pedro, e, quando o processo estivesse para sentença, dissesse o Juiz que o Promotor era parte ilegítima, não podia ter promovido a ação, porquanto se tratava de crime de ação penal privada.Suponha-se que o Promotor oferecesse denúncia contra Antônio pelo delito de incesto, e, quando o processo estivesse com a instrução finda e pronto para sentença, dissesse o Juiz não haver encontrado nas nossas leis penais, codificadas ou extravagantes, qualquer norma em que se subsumisse a conduta do réu...

Seria um verdadeiro tormento. Então, dizíamos, a lei procurou disciplinar o exercício dol . us actionis, subordinando-o a certas condições que devem ser analisadas logo de início, isto é, antes do momento em que o Juiz deverá dizer se o autor tem ou não razão, se o que pediu tem ou não fundamento.Tais condições, requisitos a que se subordina o exercício do direito de ação, à evidência, estão relacionadas com a pretensão que se deduz em juízo, e, ausente qualquer uma delas, o autor será julgado, naquele caso concreto, carecedor da ação, ficando assim o Juiz desobrigado de

488

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investigar se o seu pedido tinha ou não procedência, se era fundado ou infundado.

Por aí se vê que as condições da ação, embora umbelicalmente ligadas àquele quid em relação ao qual foi a ação proposta, com ele não se confundem. Elas nada representam senão os requisitos exigidos por lei para o exercício do direito de ação e que devem coexistir, a fim de que o Juiz possa decidir, afinal, se o que o autor pretende é fundado ou infunifãdo, procedente ou improcedente.

3. As condições da ação

Segundo a maior parte da doutrina, três são as condições da ação: a) possibilidade jurídica do pedido;

b) legitimatio ad causam (legitimidade para agir);

c) interesse legítimo ou interesse de agir.Possibilidade jurídica do pedido. De todas as condições da ação, esta é a mais controvertida. A discussão não se restringe apenas ao conceito, mas também aos exemplos da doutrina. Contudo, para que não se degenere em confusão de idéias, melhor será a adoção da doutrina tradicional, até que fiquem definitivamente assentadas as bases de nova conceituação. A doutrina, em grande parte, entende por possibilidade jurídica do pedido, como o próprio nome está a indicar, deva o autor, ao promover a ação, solicitar ao Juiz uma providência que tenha existência no nosso ordenamento jurídico, isto é, o autor deve pedir algo abstratamente admissível segundo as normas vigentes no ordenamento jurídico nacional (cf. Monacciani,Azione e legitimazioni, p. 24). No mesmo sentido, Liebman (L'azione, cit., p. 46), Buzaid (Do agravo de petição, n. 39), Frederíco Marques (Instituições, cit., v. 2, p. 270), Galeno Lacerda (Despacho saneador, Sulina, 1953, p. 79). Arruda Alvim, por seu turno, esclarece: "A possibilidade jurídica é instituto processual, e significa que ninguém pode intentar uma ação, sem que peça uma providência que esteja, em tese (abstratamente), prevista no ordenamento jurídico material" (cf. Curso de direito processual civil, Revista dos Tribunais, 197 1, v. 1, p. 3 88). Lauria Tucci professa: "0 pedido deve ser admitido ou não vedado pelo direito objetivo" (cf. Do julgamento conforme o estado do processo, Bushatsky, 1975, p. 78).

489

Assim, quando não tínhamos a figura do divórcio a vínculo, se alguém propusesse uma ação com tal objetivo, o pedido seria juridicamente impossível.Aí estaríamos em face de impossibilidade jurídica do pedido, porquanto, no pedido de dissolução do vínculo, tendo como causa petendi o divórcio, o Juiz não poderia proferir a decisão pleiteada pelo autor.

i! ~ Mas, se se pretendesse a dissolução do vínculo, tendo como causa

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: 1 ~de pedir a nulidade matrimonial, o pedido, em tese,

seria, como é, juri1

dicamente possível. Assim, satisfeitas as demais condições e instaurada

a relação continente, iria o Juiz perquirir se o pedido era procedente ou

improcedente, fundado ou infundado. No caso do divórcio, o pedido seria

rechaçado de plano. No segundo, não. As situações, pois, são diferen

tes. No caso do divórcio, não haveria a possibilidade de ser instaurada,

validamente, a relação processual. No outro, sim. Neste, embora o pe

dido seja juridicamente possível, não significa que a sentença será favo

rável. Tudo dependerá, como bem diz Galeno Lacerda, de umplus: que

~k- 11. os fatos apurados no decorrer da instrução favoreçam a

pretensão doautor (cf. Despacho, cit.,

o , p. 78).Na hipótese do divórcio, o Juiz nem sequer

desenvolveria qualqueratividade para saber se o pedido era ou não fundado. As

situações sãodesiguais: ausente apossibilidadejurídica,---oJuiz nem

deve conhecerda lide, porque não pode proferir a decisão pleiteada

pelo autor-. Comopoderia o autor ingressar em juízo se o que ele

pretende é juridicamenteimpossível? Jugula-se, no nascedouro, a pretensão

inviável.Legitimatio ad causam ou legitimidade para agir,

para propor aação, é, na sugestiva expressão de Buzaid, a

pertinência subjetiva daação. Esta somente poderá ser exercida pelo titular de

uma situação jurídico- material. Em suma: é a parte legítima para

promover a ação otitular do interesse em lide.

Se Antônio é proprietário do prédio alugado a Euzébio e se estedeixa de pagar-lhe os aluguéis, a lide se dará entre Antônio e Euzébio.São eles as pessoas interessadas (Antônio, querendo receber os aluguéis, e Euzébio, resistindo àquela pretensão). Desse modo, Manoel,completamente alheio àquele litígio, não poderá ingressar emjuízo pretendendo receber os aluguéis devidos a Antônio. Por quê? Porque somente Antônio é que é o titular daquele interesse em lide. Logo, partelegítima para propor a ação, no caso, seria Antônio.

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490

11

Assim, no exemplo dado, o Juiz, observando ser manifesta a ilegitimidade de parte, repele a ação, uma vez que faltou uma das condições exigidas: legitimidade para a causa,Interesse de agir Já observamos que o direito de ação é distinto do direito que se pretende tornar efetivo em juízo. Vale dizer: o direito de ação não se confunde com o direito material, também chamado substancial. Como bem diz Moacyr Amaral Santos, a ação se propõe a obter uma ^vidênciajurisdicional quanto a uma pretensão e, pois, quanto a um bem jurídico pretendido pelo autor. Há, então, na ação, como seu objeto, um interesse de direito substancial consistente no bemjurídico, material ou incorpórco, pretendido pelo autor. Chamamo-lo de interesse primário (cf. Direito, cit., p. 200).Se Antônio deve 10 mil reais a Euzébio e não quer pagar, Euzébio, que no caso é o credor, pode ingressar em juízo a fim de receber o que lhe é devido. Diz-se, então, que ele tem um interesse para fazer valer em Juízo. Tal interesse nada mais representa senão o proprio núcleo do direito, como lhe chama Chiovenda. É o interesse primario ou substancial.

Evidentemente, não é desse interesse que se cuida. 0 de que se trata, como uma das condições da ação, é o interesse de agir ou legítimo interesse, de caráter nitidamente processual.

Como Euzébio não pode conseguir o recebimento daquela quantia que Antônio lhe deve seriao por meio da ação, diz-se que, in casu, Euzébio tem legítimo interesse, pois, não se valendo das vias jurisdicionais, não poderá ver satisfeita sua pretensão.

A propósito, a lição de Buzaid: "Diz-se que há interesse processual se a parte sofre um prejuízo não propondo a ação, e daí resulta que, para evitar esse prejuízo, necessita, exatamente, da intervenção dos órgãos jurisdicionais" (Do agravo, cit., p. 88).

0 CPC cuida dessas três condições da ação no art. 295 e seu respectivo parágrafo único.

Aí estão, pois, as condições da ação, requisitos a que se subordina o exercício do seu direito. Faltando qualquer uma delas, o Juiz impede que a relação processual prospere, julgando o autor "carecedor da ação". Tal expressão quer significar que, num determinado caso concreto, em que faltou a possibilidade jurídica do pedido, ou em que quem propôs a ação não era parte legítima, ou não tinha interesse processual, isto é, interesse de agir, o direito de ação não podia ter sido exercido.

491

Por outro lado, satisfeitas todas as condições e sendo viável a rela-

ção processual (Juiz competente, não-litispendência e ausência de coisa

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julgada), passará o Juiz a desenvolver intensa atividade, para, afinal, julgar o mérito, isto é, dizer se o que se pede é ou não procedente.

4. As condições da ação no Processo Penal

Da mesma forma que a ação civil, a ação penal é, como já vimos, um direito subjetivo instrumentalmente conexo a um caso concreto e, por isso, pertencente apenas ao titular de uma situação jurídico-material.

Assim, conforme ensinamento de Frederico Marques, a ação penal também se subordina a certas condições que se relacionam com a pretensão a serjulgada.

Serão as mesmas condicões de que trata o Processo Civil? Em prin-

cipio, sim. Contudo, até há pouco tempo, dizia-se que, além daquelas condições da ação civil, a penal ficava subordinada a outras, denominadas condições de procedibilidade ou de perseguibilidade.Recente doutrina, entretanto, denoniÁna condições de procedibilidade aqueles requisitos aos quais se subordina o exercício da ação penal. A propósito: Ottorino Vannini, Manuale, cit., p. 23; Giovanni Leone, Trattato, cit., v. 1, p. 156; Frederico Marques, Elementos, cit., v. 2, p. 392.Cumpre notar, contudo, que, das condições de procedibilidade ou da ação, umas são exigidas sempre, e outras tomam-se necessárias numS,ou noutro caso. Isto posto, podemos distingui-Ias em condições genéricas e condições específicas.As primeiras são aquelas sempre indispensáveis ao exercício da ação penal e que devem coexistir (possibilidade jurídica do pedido, legitimidade ad causam e interesse de agir). As específicas, como a própria denominação está a indicar, são aquelas a que fica subordinado, em determinadas hipóteses, o direito de ação penal.

5. As condições genéricas

Tais condições correspondem às denominadas condições da aç do Processo Civil. Vejamo-las mais detidamente no Processo Penal.

492

A) Possibilidade jurídica do pedido, isto é, o autor, na inicial, deve pedir ao Juiz uma providência abstratamente admissível no nosso ordenamento jurídico. Atente-se para esta lição de Arruda Alvim: "Possibi-

lidade jurídica do pedido significa o exame que deve ser feito, pelo Juiz, da ação posta em juízo, no sentido de examinar se há, ou não, viabilidadejurídica do mesmo, em função do ordenamento jurídico positivo" (cf. Curso, cit., p. 386). Em suma: aquilo que se pretende, aquilo que se pede, deve ser juridicamente possível.

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Assim, se o Promotor oferece denúncia contra Tício, porque este usa gravata amarela, é evidente que o pedido visando à inflição de pena e jurièfcamente impossível, porquanto não existe no nosso ordenamento jurídico nenhuma proibição ao uso de gravata amarela e, ainda que a houvesse, era preciso que tal fato fosse considerado infração penal. Se, ao contrário, o Promotor oferece denúncia contra Mevio, porque este subtraiu para si ou para outrem um relógio de Tício, o pedido de condenação e juridicamente possível, pois o fato por ele cometido constitui crime, nos termos do art. 155 do CP: "Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de 1 a 4 anos, e multa" (redação dada pela Lei n. 7.209, de 11-7-1984).

Não pode, por exemplo, o Promotor de Justiça oferecer denúncia contra Mevio por crime de incesto, uma vez que tal modalidade delituosa, sem embargo da sua indisfarçável imoralidade, não foi erigida à categoria de infração penal. Atualmente, no nosso ordenamento jurídico, o incesto é um indiferente penal. Assim, o pedido de condenação do autor do incesto seria juridicamente impossível, em face da sua inviabilidade jurídica ante a falta de previsão no ordenamento jurídico.

Da possibilidade jurídica do pedido cuida o inc. 1 do art. 43 do CPP, in verbis:

"Art. 43. A denúncia ou queixa será rejeitada quando:1 - o fato narrado evidentemente não constituir crime".

Portanto, se o fato narrado na denúncia ou queixa não puder ser subsurnível em um tipo legal, vale dizer, se o fato narrado for manifestamente atípico, ausente estará a possibilidade jurídica do pedido, pois o que se pretende, o que se quer, não é gasalhado pelo ordenamento jurídico: a inflição de pena pela prática de um ato que não constitui infração penal.

Parte da doutrina, contudo, afirma que, nesse caso, não haveria um pronunciamento de carência da ação, mas, sim, um julgamento de mérito, uma vez que o Juiz estaria apreciando a própria causa petendi (cf.

493

Ada Pellegrini Grinover, As condições, cit., p. 69). E arremata: Tanto é certo que, se, recebida a peça acusatória, vier afinal, na fase decisória, o reconhecimento de que o fato era atípico, o Juiz proferirá sentença absolutória, conforme dispõe o art. 386, 111, do CPP (cf. As condições, cit., p. 70). Como poderia ser condição da ação, quando da propositura,~I 1 ie mérito, na fase decisória?

Observe-se, por primeiro, que o legislador de 1941 não podia ter dedicado maiores atenções ao problema, já que a teoria da possibilidade jurídica do pedido surgiu posteriormente...

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Em segundo lugar, embora sejam distintas as condições da ação e a causa petendi, não se pode negar, no plano concreto, um profundo liame entre elas. No abstrato, será possível distingui-Ias. No concreto, não vemos possibilidade de se estabelecer entre elas um verdadeiro divortium aquarum. Note-se que o itic. 1 do art. 43 do diploma processual penal não se refere a fato apurado, mas a fato narrado. Em todo caso, não cremos~ . 1que na apreciação das condições da ação seja possível um absoluto e completo alheamento da relação-conteúdo, vale dizer, da relação jurídico-material. A doutrina pode conferir-lhes, mas, na prática, não têm elas tamanha independência. Queiram, ou não, as condições da ação servem de cordão umbilical entre a causa petendi e o exercício do direito de ação. Como poderá o Juiz apreciar a legitimatio ad causam senão em face da causa petendi? Nem mesmo quanto aos pressupostos processuais será possível um alheamento da causa petendi. É de lembrar que um dos pressupostos é a demanda, e aquela é um dos requisitos desta...

Para saber se o pedido é, ou não, juridicamente possível, deve o Juiz analisá-lo em face da causa petendi.

No Processo Civil, quando há falta de correlação entre causa petendi e petitum, o Juiz não julga inepta a ação, nos termos do art. 295, parágrafo único, 11, do CPC? Desde que haja alteração, não pode a ação ser renovada? Porventura, aí, há julgamento de mérito? E por que razão, no Processo Penal, quando da narração do fato não decorre logicamente o pedido (CPP, art. 43, 1), a rejeição da peça acusatória deve ser considerada como decisão de mérito?

Essa diversidade de tratamento não constitui uma peculiaridade doProcesso Penal? Não lhe empresta um colorido especial?Observe-se, ademais, que a doutrina nem sequer está segura a respeito dessa condição da ação. Calmon de Passos, por exemplo, fala em

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possibilidade jurídica absoluta e relativa... (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, v. 3, p. 204). Cândido R. Dinamarco (Execução, p. 139) deu-lhe nova dimensão; Egas Moniz de Aragão (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 2, p. 436) e Ada Pellegrim Grinover (As condições, cit., p. 48) alteraram-lhe a fisionomia...Por que não poderíamos dizer que haverá impossibilidade jurídica não só quando não houver a previsão no ordenamento jurídico como, tambA, quando não houver correlação entre a causa petendi e opetitum? 0 pedido, aí, não é, também, juridicamente impossível?

13) Legitimatio ad causam. Diz o art. 43, 111, primeira parte, do CPP:

"Art. 43. A denúncia ou queixa sera rejeitada quando:

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. .

111 - for manifesta a ilegitimidade da parte ou faltar c dição exigida pela lei para o exercício da ação penal".

A legitimidade para agir é, como diz Buzaid, a pertinência subjetiva da ação. Somente o titular do interesse em lide é que pode prornovêIa. Assim, como na lide penal, informada da pretensão punitiva e do direito de liberdade, o Estado tem sempre interesse, posto que titular do direito de punir e, de conseqüência, da pretensão punitiva, segue-se que, no campo repressivo, é ele, por meio do seu órgão competente, que é o Ministério Público, sempre parte legítima para agir, para promover a ação penal. Por isso, a ação penal deve ser intentada pelo Estado por intermédio do Ministério Público.

A legitimação para agir, como bem diz Alcalà-Zamora, "refleja, por decirlo así, el vínculo de Ias partes con el litigio e conflito objeto del proceso, y tiende, por tanto, a asegurar que éste se desenvuelva entre Ias verdaderas partes" (cf. Derecho, cit., v. 2, p. 19). Somente as partes que têm interesse no conflito é que são legítimas: a que pode promover a ação e aquela contra quem esta deve ser proposta. Daí as duas legitimações: legitimação ativa (para promovê-la) e legitimação passiva (contra quem deve ser proposta). Somente quem tem legitimação ativa é que pode iniciar a ação penal, e, por outro lado, esta deve ser promovida contra aquele que tem legitimação passiva, vale dizer, contra o genuíno autor da infração.

No nosso ordenamento, parte legítima para promover a ação penal pública, seja condicionada, seja incondicionada, é o Ministério Público.

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Sua legitimação não decorre de um interesse no conflito entre agressor e agredido, mas sim da lei. Quando ocorre uma infração penal, o conflito de interesses se estabelece entre o Estado, titular dojus puniendi, e o infrator, titular dojus libertatis. Assim, as genuínas partes processuais são: o Estado e o infrator. Quem deve, pois, promover a ação penal é o Estado, e este o faz por meio de um dos seus órgãos: o Ministério Público. Se o conflito de interesses ocorre sempre entre o direito de punir, fque pertence ao Estado, e o direito de liberdade, que pertence ao réu, por que, pois, não será sempre o Ministério Público, como órgão do Estado, quem deva promover a ação penal?Esta não deve ser exercida pela parte legítima? E a parte legítima para promovê-la não é a que tem interesse na lide? E não são apenas Estado e infrator os que o têm? Exato. Entretanto, em determinados casos, em face daquelas razões de política criminal já por nós acentuadas, o Estado concedeu ao ofendido, à vítima do crime, o jus accusationis, o direito de acusar, de promover a ação penal. Nesses casos de ação privada, só o ofendido é quem deve promovê-la. Por isso se diz que, nessas hipóteses, existe para o ofendido legitimatio ad

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causam extraordinaria, porquanto a verdadeira parte legítima ad causam é o Estado. 0 ofendido, então, nesses casos, é um "substituto". Ele substitui o Estado. Assim, podemos afirmar que, sendo o Estado, mesmo nesses casos, a verdadeira parte legítima "para agir", quem age, quem promove a ação, é o ofendido, surgindo, destarte, o fenômeno conhecido por "substituição

1processual", e tal substituição existe quando alguém puder, em nome próprio, defender interesse alheio. Ora, a ação penal privada é promovida pelo ofendido. Este, realmente, age em seu próprio nome, mas o interesse que defende (reintegração da ordem jurídica) pertence ao Estado.Mesmo nos casos de ação pública, o ofendido poderá promover a ação penal se, por acaso, o órgão do Ministério Público não na promover no prazo legal (CPP, art. 29). 0 mesmo fenômeno da substituição se verifica no caso.

Visto o problema da legitimatio ad causam, outra indagação se impõe: se o Estado, nos casos de crime de ação penal privada e mesmo na hipótese do art. 29, permitiu ao ofendido o direito de promover a ação penal, somente o ofendido é quem possui legitimidade para agir. E se, nesses casos, o ofendido for, por exemplo, um menor? Ainda assim será ele a parte legítima? Sim. Entretanto, como o menor de 18 anos não tem capa-

cidade para estar em juízo, pois a lei presume que até certa idade "o homem não possui o discernimento indispensável ao exercício pessoal dos direitos", ele será representado por alguém predeterminado em lei. A representação pode ser legal ou voluntária. Na primeira hipótese, os poderes desta ou daquela pessoa para representar outra emanam da própria lei. E tais poderes são conferidos "a certas pessoas para a proteção dos interesses das pessoas absolutamente incapazes". Ou, como diz BattagAi, a representação se diz legal quando a lei atribui a pessoa diversa do titular do direito o exercício deste. Assim, diz a lei que o pai representa o filho; o tutor, o tutelado; o curador, o curatelado. Tais pessoas representam o incapaz, em virtude da impossibilidade jurídica deste último poder declarar a propria vontade.

Por isso, quando a lei comete o direito de queixa ao particular, diz: ao ofendido ou a quem legalmente o represente.

0 representante legal não é "substituto processual", e não o é porque o representante age em nome do representado, ao passo que, na substituição, o "substituto" age em nome próprio.Pode acontecer, entretanto, que uma criança seja vítima de um crime de ação privada.Tal criança é quem possui legitimatio ad causam extraordinaria. Mas, porque incapaz, será representada por quem a lei determinar (pai, tutor, curador). Esta representação se diz legal e com ela se supre a incapacidade processual, isto é, a incapacidade de estar em juízo. Porem, para que o representante legal da vítima possa oferecer queixa e praticar atos processuais, a lei, por razões óbvias, exige que

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essa pessoa tenha capacidade postulatória (jus postulandi), e, assim, como tal capacidade a possui o advogado, que faz o representante legal da vítima? Contrata os serviços profissionais de pessoa com capacidade postulatória para... representá-lo em juízo a fim de oferecer queixa e acompanhar o desenrolar do processo. 0 advogado X será, então, um representante voluntário ou técnico, ou processual, porque aí o poder do representante emanou da vontade do particular. Foi este quem o escolheu. Da mesma forma, e o que ocorre na hipótese do art. 44, em que o querelante (a vítima), embora tendo capacidade processual, isto é, capacidade para estar em juízo (pois não se trata de incapaz), não poderá oferecer queixa nem praticar atos processuais, salvo se possuir capacidade postulatória. Não na possuindo, cumprir-lhe-á constituir e nomear alguém, com ca-

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pacidade postulacional para representá-lo. Tal pessoa (advogado) será o representante voluntário do querelante.Assim, não basta a circunstância de alguém ter legitimatio ad causam extraordinaria, isto é, de ser parte legítima ad causam para poder promover a ação penal. É preciso, também, seja parte legítima ad processum, isto é, tenha capacidade para estar em juízo. E, mesmo satisfeitas essas exigências, é preciso que se tenha capacidade postulatória para que se possa promover a ação e praticar ulteriores atos do processo.C)Interesse de agir. Trata-se de outra condição genérica da ação. Vimos que o interesse de agir não se confunde com o interesse substancial ou primário. Aquele é de natureza eminentemente processual; este, de natureza material. Quando ocorre uma infração penal, o interesse substancial ou primário outro não é senão a propria pena, porquanto o interesse material ou primário constitui o núcleo do direito subjetivo material -jus pun iendi.

0 interesse de agir, ou interesse processual, é, como bem diz Frederico Marques, diverso do interesse material. No direito material esse interesse (material) se relaciona com um bem jurídico diverso daquele que se procura obter com o direito processual de agir (cf. Instituições, cit., v. 2, p. 32). E exemplifica: o direito de crédito diz respeito ao interesse em receber determinada soma em dinheiro. 0 direito de ação que o credor exerce se relaciona com um bemjurídico distinto, que é ojulgamento de sua pretensão de obter aludida importância (cf. Instituições, cit., p. 33).

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Muito embora já houvéssemos adotado ponto de vista contrário, hoje entendemos que, apesar de o o interesse de agir estar implícito em toda acusação, não se esgota nem se exaure aí. Para que seja possível o exercício do direito de ação penal, é indispensável haja, nos autos do inquérito, ou nas peças de informação, ou na representação, elementos sérios, idôneos, a mostrar que houve uma infração penal, e indícios, mais ou menos razoáveis, de que o seu autor foi a pessoa apontada no procedimento informativo ou nos elementos de convicção.Se não há elemento idôneo de que houve uma infração penal, é como se não existisse o direito material, e, não existindo direito, não há o que tutelar.Por outro lado, no Penal, dezenas de vezes mais que na esfera extrapenal, a propositura de uma ação acarreta vexames mais ou menos sérios, graves, à pessoa contra quem foi proposta, e, por isso, indispen-

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sável que a denúncia ou queixa encontre, nos elementos que lhes serviram de suporte, indícios mais ou menos sérios de que a pessoa contra quem se propôs a ação penal seja tida como a responsável.Se não fosse assim, para que serviria o inquérito? Por que a lei somente o dispensa quando o titular da ação dispõe de outros elementos de convicção? Do contrário, bastaria que o acusador tivesse notícia do fato, a_~Wa que oralmente, e a ação penal poderia ser proposta... Como

bem z ontes de Miranda, falta de interesse de agir é falta de nece~sidade de tutela jurídica. 0 Estado prometeu tutela jurídica aos que dela precisam; não aos que dela não precisam (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 1, p. 102).Quando os inquéritos são elaborados açodadamente, os Promotores devem requerer sua devolução à Polícia, para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia, como bem diz o art. 16 do diploma processual penal. Agora, se o Promotor não quer agir dessa maneira, não se justifica que, num inquérito falto de supedâneo, venha ele a oferecer denúncia, temerariamente, sem atentar para o status dignitatis do cidadão imputado.Conforme preleciona Morel, citado por Frederico Marques, a jurisdição não é função que possa ser movimentada sem que exista motivo que justifique o pedido de tutela estatal; e, como isto se faz por meio da ação, a regra é que onde não há interesse não há ação (cf. Elementos, cit., v. 1, p. 319).Daí se infere que o direito de ação só pode ser exercitado quando houver necessidade, e somente haverá necessidade se alguém puder sofrer um prejuízo se não se valer da tutela jurisdicional.0 nosso CPP não o exige expressamente, à maneira do que ocorre com o Processo Civil.Não se poderá encartá-lo na moldura da expressão contida na última parte do inc. 111 do art. 43 do CPP, que diz: "... ou faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal", pois, se isso fosse possível, os incs. 1 e 111, primeira parte, desse mesmo dispositivo seriam supérfluos e ficaria ultrajado o princípio de que na lei não há palavras inúteis. Ademais, aqueles incisos (1 e 111, 1.' parte,

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do art. 43) seriam excrescências no corpo do CPP, porquanto a fórmula ampla utilizada pelo legislador na última parte do iric. 111 - "ou faltar condição exigida

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pela lei para o exercício da ação penal" - estaria abrangendo todas as condições da ação.

Por outro lado, interpretando- se o art. 43 em sua integridade (inclusive com o parágrafo único), percebe-se que aquelas "condições exigidas pela lei para o exercício da ação penal", a que se refere a última parte do

inc. 111, são chamadas "condições específicas ou de procedibilidade", às quais o direito de ação, às vezes, fica subordinado, como veremos den-i tro em pouco.

Não obstante a ausência de texto expresso exigindo o interesse legítimo, afirma-se que, para a propositura da ação penal, é preciso haja "legítimo interesse".

Poder-se-ía pensar, como dizia Frederico Marques no seu Curso de direito penal, v. 3, p. 339, e como diz Giovanni Leone*, que no Processo Penal o "interesse de agir" ou "interesse legítimo" está implícito em toda acusação, porquanto o Estado não pode impor a pena senão por, '. ok-. intermédio das vias jurisdicionais.

De fato, conceituado o "interesse de agir" como necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário, sob pena de se sofrer um prejuízo, a lição de Leone merece acolhida. Senão, vejamos: "se o interesse de agir ou legítimo interesse não se confunde com o interesse primario ou substancial" que representa o "núcleo do direito material"; se o interesse legítimo reside na necessidade de se valer do Juiz, sob pena de se sofrer um prejuízo, permanece claro que o interesse legítimo está realmente im plícito em toda acusação. De fato. Em face do princípio do nulla poena sinejudice, não se concebe a aplicação da pena senão por meio do Juiz.11) 1Logo, não podendo o Estado conseguir aquele "Interesse substancial ou primário" que descansa na repressão à infração, com a inflição da pena, senão por meio do Juiz, o interesse de agir estará implícito em toda acusação, em toda e qualquer ação penal.

"0 Código de Processo Civil prescreve, como regra geral, que para propor ou contestar uma ação é necessário que se tenha interesse (CPC italiano, art. 100). Não se encontra a mesma regra no direito processual penal. É que o interesse

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para promover a ação penal é inerente ao próprio direito de ação. Nos casos em que ao lado da titularidade de um direito processual não se requeira o interesse, este permanece incorporado, cristalizado na norma; a titularidade de um determinado direito equivale a pressuposto reconhecimento do correlativo interesse no exercício de tal direito" (cf. Trattato di diritto processuale penale italiano, v. 1, p. 188 e s.).

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Todavia e a despeito desse raciocínio lógico, quem quer que se detenha na análise do CPP chegará à conclusão inarredável de que o legítimo interesse, embora implícito em toda acusação, exige um plus. Quando se conceitua o interesse de agir como necessidade de se valer do órgão jurisdicional sob pena de se sofrer um prejuízo, está claro que se supõe existente um estado de fato antijurídico, porque, se não houver tal situação de fato contrária ao direito, ninguem pode exercitar o direito de ação, que, cçoo vimos, é instrumentalmente conexo a um caso concreto. Só existe o direito de ação como realidade processual quando houver um interesse emergente de um estado de fato contrário ao direito e interesse que se possa fazer valer por meio da via jurisdicional.

Certo que o nosso CPP não o exige expressamente, à maneira do que ocorre com o Processo Civil. Mas a ausência de texto expresso se justifica porque no Código existem várias normas exuberantes, mostrando que para a propositura da ação penal é preciso existam elementos que dêem base razoável à acusação.

De fato. Diz o art. 4." do CPP que a finalidade da Polícia Judiciária é a apuração das infrações penais e da sua autoria. Cabe-lhe, pois, investigar o fato infringente da norma e descobrir quem foi o seu autor. Para quê? A fim de que o titular da ação penal possa promover a competente ação... como se constata pelo art. 12: "0 inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra".

E há casos em que o inquérito não servirá de base nem à denúncia nem a queixa? Há. Quando? Justamente quando o titular da ação penal tiver em mãos os elementos de convicção a respeito do fato e da sua autoria, como se constata pelos arts. 27, 39, § 5.', 44 e 46, § 1.', todos do CPP.Daí se infere que, para a propositura da ação penal, é preciso haja elementos de convicção quanto ao fato criminoso e sua autoria. 0 Juiz jamais receberá uma queixa ou uma denuncia que esteja desacompanhada daqueles elementos de convicção.

E por que isso?Por acaso o art. 43 do CPP, que cuida das hipóteses de rejeição da ação penal, exige, para o recebimento da denúncia ou queixa, aqueles elementos? Expressamente não, mas, pela sistemática do estatuto processual penal, percebe-se que a exigência é clara, tanto mais quanto o art. 648, 1, do CPP diz que haverá constrangimento ilegal "quando não

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houver justa causa" ... E é com fundamento nesse dispositivo que os nossos Tribunais, remansosamente, vêm "trancando a ação penal", seja pública, seja privada, todas as vezes em que ela não se arrime em elementos razoáveis de convicção quanto ao fato infringente da norma e sua autoria.

Então, o "interesse legítimo" ou "interesse de agir" descansa na idoneidade do pedido, ou, como em síntese diz Liebman, a pretensão deve ser apresentada como digna de ser julgada. 0 titular da ação deve formular um pedido idôneo, arrimado em elementos que convençam o Magistrado da seriedade do que se pede.

No Processo Civil, o interesse legítimo pode repousar na simples afirmação da existência de uma lesão. Quando o autor ingressa em juízo com um pedido de despejo, ele não junta à inicial os elementos de convicção. E como saber se houve aquele estado de fato contrário ao direito, de molde a ensejar o exercício do direito da ação? Se for visível sua ausência, o Juiz do cível proferirá um despacho liminar negativo, isto é, indeferirá a petição inicial, tal como prevê o art. 295, 111, do CPC. Se não o notar, deverá fazê-lo na fase do saneador. Se ainda assim não lhe~ W,for possível, nada obsta que, após a causa ser posta em prova, venha o Juiz a proclamar inexistir uma relação entre a situação antijurídica de-,i nunciada e a tutela jurisdicional invocada.

Muitas vezes, entretanto, a ausência do interesse de agir é até visível a olho desarmado. SeA propõe ação de cobrança contraB por dívida não vencida, deve o Juiz indeferir a inicial, em face da ausência de interesse legítimo.,11 Para a propositura da ação penal, entretanto, que visa, preferentemente,à irrogação de uma pena, estando de conseguinte em jogo a liberdadeindividual, procurou o legislador evitar acusações temerárias sem qualquer fundamento, obrigando o réu a sofrer um verdadeiro constrangimento ilegal.

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Assim, no campo penal, não basta a simples afirmação de que houve um crime e de que Fulano ou Sicrano foi o seu autor. E preciso, para que o pedido da acusação, consubstanciado na denuncia ou queixa, seja afinal apreciado, que no limiar da ação veja o Magistrado se o que se pede traz a nota da idoneidade.

Pode ocorrer que os elementos colhidos na fase procedimental-informativa (inquérito) levem o Promotor de Justiça a julgar ter havido

um estado de fato contrário ao Direito Penal, de molde a ensejar a propositura da ação. A princípio, também o Juiz assim o entendeu. Mais tarde, na fase das alegações finais e na sentença, concluíram

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Promotor e Juiz que não houve, na hipótese, um ilícito penal, mas um ilícito civil. Isso acontece, às vezes. Não fosse assim, o inc. 111 do art. 386 do CPP, que prevê a prolação de sentença absolutória quando "o fato não constitui infração penaV, jamais teria aplicação... De fato. Se o titular da ação pSpal, com a denúncia ou queixa, provasse sempre a existência de fato típico, aquele inc. 111 do art. 386 seria letra morta...

Consiste, assim, o interesse de agir, ou legítimo interesse, no Processo Penal, na idoneidade do pedido consubstanciado na peça inaugural, seja denúncia, seja queixa, e nos elementos que lhe servem de suporte fático. Quer dizer, então, que o pedido se diz idôneo quando arrimado em elementos de convicção quanto à prática da infração penal e sua autoria.

Quando se afirma que o interesse de agir, ou legítimo interesse, está implícito em toda acusação, considera-se apenas uma de suas facetas: necessidade de se recorrer ao Poder Judiciário, sob pena de se sofrer um prejuízo. De fato, não havendo possibilidade de o Estado, como titular do jus puniendi, impor a sanctio juris senão por meio da atuação jurisdícional, é óbvio que o interesse de agir, considerado sob este angulo, está implícito em toda acusação. Deixou-se, contudo, de se considerar a outra faceta, talvez mesmo por constituir um "óbvio ululante": o pedido deve ser idôneo, isto é, digno de ser apreciado, e ele se torna digno de ser apreciado se amparado, arrimado, em elementos de convicção quanto à existência do crime e de sua autoria.

No campo extrapenal é muito comum a "autocomposição". As partes podem compor-se sem a intervenção do Juiz. Se Mévio deve mil reais a Tício, no mesmo dia em que este ingressar em juízo com a competente ação, o devedor poderá saldar a dívida integralmente, inclusive possíveis despesas processuais, e, nessa hipótese, a ação já não pode ter prosseguimento, por falta de objeto.

No campo penal é diferente. Como há total impossibilidade de se aplicar a sanctio jurís a não ser por meio do processo, diz-se que na acusação está implícito o interesse de agir. Nesse sentido, o Estado tem sempre o interesse de agir, porquanto não deverá ver satisfeita sua pretensão (tal como aconteceu com Mévio no exemplo dado anteriormente) senão por meio das vias jurisdicionais.

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1 1

..c,

Nem se diga que a transação a que se refere o art. 76 da Lei dos Juizados Especiais Criminais seja uma exceção, mesmo porque a "pena", malgrado acordada entre Acusação e Defesa, precisa ser homologada pelo Juiz.

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Entretanto, não basta simples "denúncia", ou simples "queixa", narrando o fato criminoso e dizendo quem foi o seu autor. E preciso haja elementos de convicção, suporte probatório à acusação, a fim de que o pedido cristalizado na peça acusatória possa ser digno de apreciação, 44pois a jurisdição não é função que possa ser movimentada sem que

haja motivo 0 direito de ação, no plano processual, é instrumen-talmente conexo a um caso concreto. É por meio do direito de ação que sepede ao Juiz uma decisão sobre "aquele caso concreto", e o caso concretoé, como diz Sansó, aquele quid em relação ao qual se exercita a ação.

Pois bem: no campo penal, quando se propõe uma ação, não basta fazer referência ao caso concreto. É preciso que no limiar do processo a ser instaurado se mostre ao Juiz a seriedade do pedido, exibindo-lhe oselementos em que se esteia a acusação.

Analisem-se detidamente os arts. 12, 16, 18, 27, 39, § 5.", e 47 do CPR Chega-se à conclusão inarredável de que a propositura da ação penal pressupõe a existência de elementos de convicção sobre o fato e sua autoria. Não é preciso que a prova seja esmagadora. Basta ofuniusbonijuris. Se não fosse assim, para que serviriam as peças de informação com elementos de convicção, como diz o art. 27, ou inquérito policial? Por que a ação penal, entre nós, é precedida de uma fase investigatória?. . wEssa fase não é dispensável tão-somente quando se encaminham ao Promotor elementos de convicção, tal como dizem os arts. 27 e 39, § 5.', do CPP?A análise dofumus bonijuris não transforma o instituto da ação, e nenhuma de suas condições, em instituto de direito material. Na senten-

ça, dirá o Juiz se o que se pediu tinha ou não procedência.

Pelas peculiaridades do Processo Penal, a fumaça do bom Direito é condição sine qua non para o exercício do direito de ação. E esta, evidentemente, há de subsumir-se no interesse processual.

Quando se propõe a ação penal, o Juiz vai investigar "se os fatos apurados no decorrer do processo favorecem ou não a pretensão do autor". Não o favorecendo, proferirá sentença absolutória. Já agora, satisfeito aquele plus a que se refere Galeno Lacerda, o Juiz entrou propriamente no mérito.

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Ainda que se diga que ofundamento razoável para o exercício do direito de ação penal respeita à procedência e não à admissibilidade, temos de convir tratar-se de peculiaridade do Processo Penal. Certo que, se ofumus bonijuris esvaecer-se na instrução, haverá sentença absolutória, com fulcro no art. 386, VI, do CPP. Poderia ser uma decisão de carência... Entretanto, para resguardar mais ainda o status dignitatis e o status libertatis do imputado, o Estado impede a renovação do processo, ainda que poslowiormente surjam provas esmagadoras (pelo menos, entre nós). Nesse mesmo exemplo, se o

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funius boni juris se compactasse, o Juiz proferiria sentença condenatória. Todavia, se posteriormente surgissem provas da inocência, a revisão criminal desfaria a coisa j ulgada.

Essa política de um peso e duas medidas não visa a resguardar o direito de liberdade do imputado? Não constitui ela uma peculiaridade do Processo Penal?Veja-se mais: se ofumus bonijuris dissesse respeito à procedência e não à admissibilidade, como se explica possa o órgão do Ministério Público oferecer nova denúncia, com novas provas, se rejeitada a primeira por ausência de fundamento razoável? A rigor, para os que o entendem como pertencente ao direito material, a renovação da ação deveria ser impossível, como o é, na hipótese em que o Juiz, ao prolatar a sentença final, absolve o réu, por não encontrar sequer o fumus boni juris. Por que aqui não pode a ação ser renovada, se surgirem novas provas, e lá, no limiar da ação, é possível?Por todas essas razões, embora Processo Penal e Processo Civil sejam ramos do mesmo tronco, não se pode processualizar civilmente o Processo Penal (se é que podemos assim nos expressar), principalmente no que respeita às condições da ação.

. 1Por isso entendemos que, posta a ação em juízo, cumprira ao Magistrado analisá-la sob diversos ângulos: a) Trata-se de crime de ação pública ou de ação privada? Examina o typus para poder aferir se o autor tem ou não legitimidade. b) 0 fato narrado constitui crime? Se não o constitui, a ação sera inviável. c) Há o fumus boni juris? Se não o houver, sera indisfarçável a inviabilidade.Indaga mais: a lei, nesse caso, exige alguma condição especial? Exigindo-a (representação, requisição ministerial etc.) e não estando presente, inviável também será a ação penal.

Aí estão, pois, as denominadas condições da ação no Processo Penal. Satisfeitas, o Juiz receberá a peça acusatória, porque digna de ser apre-

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ciada, e, afinal, dirá se o pedido procede ou improcede. Se, na hipótese sub b, a decisão faz coisa julgada material, tal se dá para resguardo do status libertatis.

Ora, quando ofato narrado evidentemente não constitui crime, o direito de ação não pode ser exercido validamente, não o podendo, também, se aparte nãoJor legítima nem houver ofumus bonijuris, indagase: qual seria a natureza jurídica desses elementos, desses requisitos? Inegavelmente, estamos em face daquelas "categorias lógico-jurídicas, mediante as quais se admite que alguém chegue à obtenção da sentença1final", vale dizer, condições de ação.

6. As condições específicas

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Ao lado dessas condições genéricas, sempre exigidas, a lei penal ou processual penal, em determinadas hipóteses, faz subordinar o exercício da ação penal a outras condições. Até há pouco tempo, estas eram denominadas "condições de procedibilidade" ou de perseguibilidade. Com essa denominação, procurava-se extrerná-la das condições genéricas. Hoje, contudo, a melhor doutrina considera tanto aquelas quanto estas condições de procedibilidade. Por isso mesmo, o Anteprojeto Frederico Marques, no art. 227, dizia:

"Além das previstas em lei, são condições de procedibilidade: 1 - a legitimidade das partes;1)1, 11 - o legítimo interesse;

1. j` ) 111 - a descrição de fato penalmente ilícito, na queixa ou., 1, denúncia".

Para distingui-Ias, consideramos aquelas exigidas sempre condições genéricas, e as exigidas num ou noutro caso, condições específicas. Específicas, repita-se, porque a lei as exige em alguns casos. Uma vez exigida pela lei, sua ausência toma inadmissível ojus actionis. Por isso mesmo, quando se inicia uma ação penal, o Juiz, além de observar se estão sa-tisfeitas as condições genéricas, deverá também examinar se naquela hipótese a lei sujeita o exercício da ação penal a alguma outra condição.

Tomemos como exemplo um crime de ameaça. Se o Promotor oferece denúncia contra Mévio, pelo fato de haver ameaçado Tício, embora aquele seja parte legítima, porquanto a ação é pública, embora haja

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exuberantes elementos de convicção quanto ao fato e autoria, vale dizer, não obstante satisfeitas as condições genéricas, o Juiz procurará examinar se houve ou não a representação. Realmente. Dispõe o art. 43, 111, última parte, do CPP que a denúncia ou queixa será rejeitada, a despeito de satisfeitas as exigencias dos incs. 1, 11 e 111, primeira parte, se "faltar condição exigida pela lei para o exercício da ação penal". Por outro lado, o art. 24 do estatuto processual penal proclama que, "nos crimes de ação pi*lica, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir... de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo". E o parágrafo único do art. 147 do CP esclarece quanto ao crime de ameaça: "Somente se procede mediante representação", querendo a lei dizer, com tal expressão, que no crime de ameaça a ação penal não pode ser intentada se não houver a representação, isto é, a autorização da vítima ou de quem de direito. Logo, a representação, nessa hipótese, é uma condição de procedibilidade específica, à qual se sujeita o exercício da ação penal.Se, por acaso, o crime ocorrido fosse o previsto no art. 146, por exemplo, bastariam apenas as condições genéricas, porquanto a lei, nesse caso, não exige outra qualquer condição para tornar admissível o exercício da ação penal.

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Por isso é que tais condições são denominadas específicas. Quais são elas? Sem a pretensão de querer indicar todas, procuramos mostrar as mais comuns: a) A representação, exigida para algumas infrações penais, conforme tivemos oportunidade de ver. b) A requisição do Ministro da Justiça. c) A entrada do agente no território nacional. Nos crimes cometidos fora do território nacional, de que tratam as letras a e b do inc. II do art. 7.' do CR, bem como na hipótese do § 3." do art. 7.' do mesmo estatuto, a aplicação da lei penal brasileira fica condicionada à "entrada do agente no território nacional". Logo, tal condição é de procedibilidade. Nesse sentido, as lições de Frederico Marques e Ottorino Vannini, entre outros. De Vannini estas palavras: "Sono condizioni di procedibilità... Ia presenza del colpevole nel territorio del Stato, nei casi previsti dagli articoli W' e 10.` (cf. Manuale, cit., p. 24). Contra: Parmain (Manuale, p. 128 e 273). d) 0 trânsito einjulgado da sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento (cf. CP, art. 236, parágrafo único). e) A autorização da Assembléia Legislativa, pelo voto de 213 dos seus membros, para ser instaurado processo contra Governador de Estado, seja nos crimes comuns, seja nos de responsabilidade

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(art. 49 da Constituição paulista, entre outras).f) A autorização da Câmara dos Deputados para poder ser instaurado processo, por crime comum ou de responsabilidade praticado pelo Presidente, Vice-Presidente da República e Ministros de Estado (CF, art. 5 1, 1). g) As novas provas a que se refere o parágrafo único do art. 409 do CPP. h) 0 exame pericial de que trata o art. 525 do CPP. i) A exibição do jornal ou periódico, quando se tratar de crime de imprensa (cf. Lei ri. 5.250, de 9-2-1967, art. 43). j) A notificação de que trata o art. 57 da Lei de Imprensa, quando o crime for praticado por meio de radiodifusão (Lei de Imprensa, art. 43) etc.Em todas essas hipóteses, o exercício da ação penal fica subordinado a determinada condição (representação, requisição ministerial etc.). Sem ela, não pode ser promovida. Parte da doutrina entende que o trânsito em julgado da sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento (CP, art. 236, parágrafo único) é mera condição objetiva de punibilidade. Temos para nós tratar-se de condição de procedibilidade. Ele condiciona o exercício da ação penal. De fato. Proposta, se o Juiz verificar que a sentença anulatória do casamento não transitou einjulgado, rejeitá-la-á, nada impedindo sua renovação, dês que satisfeita a condição. Entretanto, se um brasileiro casado se dirigisse a um país asiático, onde se admite a poligamia, e lá convolasse núpcias, poderia ser processado aqui pelo crime de bigamia. Se se provasse, na instrução, que o fato não era punível no país em que foi praticado, a sentença seria absolutória (CP, art. 7.', § 1% b). Como se vê, as situações são diferentes.j Certo Antolisei ao afirmar: "La condición de punibilidad presupone1 un delito perfecto, es decir, completo en todos sus elementos constitutivos.

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1La condición no integraría el delito, sino que haría aplicable Ia pena solamente" (cf. Manual, cit., p. 533). E, como exemplo, cita a anulação do matrimônio em face de ocultação de impedimento. Aliás, toda a doutrina italiana entende que a anulação do casamento no crime de "induzione al matrimonio mediante inganno" é uma condição objetiva de punibilidade. A propósito, Maggiore (Derecho, cit., 1955, v. 4, p. 185), Manzini (Diritto penale italiano, UTET, 1951, v. 7, p. 664), Antolisei (Manual, cit., p. 533), Manfredini (Reati contro il buon costume, p. 839), Franco Cordero (Procedura penale, Giuffrè, 197 1, p. 59).Quando se disse na Relazione del Presidente della Commissione per il progetto del Codice Penale que '11 momento consumativo se veri-L, 508

fica quando il matrimonio sia annuilato", não tardou a crítica de Manzini: "Sarebbe assurdo aminettere, ad. es., che Ia consumazione avvenga nella sede della corte di appello che lia reso esecutiva una sentenza del giudice ecclesiastico, mentre il matrimonio annullato fu contratto in un hiogo diverso del distretto..." (Diritto, cit., p. 664). E, em seu prol, cita Saltelli e Romano (Commento, cit., p. 833).E claro que o momento consumativo do crime em análise se verifica corA celebração do casamento. Este o entendimento da doutrina italiana, embora não unânime... A propósito, Maggiore (cf. Derecho, cit., p. 185).Se o momento consumativo ocorresse com a anulação do casamento, tal circunstância integraria o tipo e, nesse caso, não seria condição objetiva de punibilidade, que pressupõe um delito perfeito, completo em todos os seus elementos constitutivos. Assim, dúvida não há de que a consumação se verifica com a realização do matrimônio.Segundo prescreve o parágrafo único do art. 236 do CP, "a ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento".A ação penal fica condicionada àquele acontecimento.Se o trânsito em julgado da sentença anulatória do casamento, no caso testilhado, fosse condição objetiva de punibilidade, poderia dar-se a esdrúxula e absurda hipótese de se extinguir o direito de punir antes do seu surgimento. Realmente. Suponha-se Pedro convolando núpcias com ocultação de um impedimento. 0 fato ocorreu em 1982. Em 1988 o conjuge enganado descobre a fraude e propõe a ação civil visando à anulação do casamento. A decisão, julgada procedente, transita em julgado em 1990. Poderia ser intentada a queixa? Obviamente não. Por quê? Se a pena máxima cominada ao crime definido no art. 236 do CP é de 2 anos, logo, prescreve em 4, segundo a regra do art. 109, V, do CR Ora, se o crime se consumou em 1982, com a celebração do casamento, desde 1986 extinta ficou a punibilidade. Então a queixa não poderia ser intentada, em face da prescrição.Assim, aqueles que entendem ser "o trânsito einjulgado da sentença anulatória do casamento" condição objetiva de punibilidade haverão de concluir que, no exemplo dado, a condição objetiva surgiu após a extinção da punibilidade... o que teria sabor de disparate.

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por lei.

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Note-se que não há fato punível que preexista à condição imposta

Poder-se-á dizer: a prescrição não corre enquanto não transitar em julgado a sentença anulatória. Onde o amparo legal? Entre nós, nos termos do art. 111 do CP, a prescrição fluirá "do dia em que o crime se consumou". Se a consumação ocorreu no momento da celebração do matrimônio, a prescrição começou a fluir desde 1982.

Os autores italianos, na sua grande maioria, entendem que a anulação do casamento, no exemplo dado, é condição objetiva de punibilidade. E têm até argumento para dizê-lo. E que o art. 158 do Codice Penale dispõe:

11 termine della prescrizione, decorre, per il reato consumato,dal giorno della consumazione... Quando la leggefa dipenderela punibilità del reato dal verificarsi di una condizione, il ter-

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conseqüência é a anulação do processo. Porém, ausente a condição objetiva de punibilidade, haverá uma decisão terminativa de mérito.

mine della prescrizione decorre dal giorno in cui la condizione si é verificata ......

Entre nós, a prescrição flui da data da consumação. Também não se interrompe, a não ser nos casos previstos no art. 117 do CR Nem se suspende, salvo as hipóteses do art. 116 do mesmo estatuto.

Conclui-se, pois, que o "trânsito emjulgado da sentença anulatória do casamento", a que se refere o parágrafo único do art. 236 do CP, é uma condição de procedibilidade, isto é, um quid que, sem influenciar na punibilidade ou existência do crime, "constituye im obstáculo para comenzar la acción penal".Para Magalhães Noronha, o crime previsto no art. 236 do CP se consuma com o contrair o casamento, sendo condição objetiva de punibilidade o trânsito em julgado da sentença anulatória desse casa-mento (cf. Direito penal, Saraiva, 1961, 3 v.). Quanto à primeira afirmativa, inteira razão lhe assiste. Já o mesmo não se pode dizer no que respeita à segunda. Esta, contudo, pode ser atribuída a duas circunstâncias: a) o ilustre e saudoso professor, a quem sempre respeitamos e rendemos homenagens, não via nítida diferença entre condição objetiva de punibilidade e condição de procedibilidade (cf.

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Direito, cit., v. 1, p. 366); b) a influência notável que sofreu dos autores italianos.É claro que, não estando satisfeita a condição de procedibilidade, a

Assim, se Pedro, casado no Brasil, for a um país que admita poligamia e, lá, convolar segundas núpcias, na vigência do seu primeiro casamento, haverá o crime de bigamia. Como o delito foi cometido aliunde, a aplicação da lei brasileira sujeita-se a uma série de condições (de procedibilidade e de punibilidade), como se vê pelo art. 7.0, § 2.0, do CR Entre elas estão as previstas na alínea a (entrada do agente no território pátrio) e na alínea b (ser o fato punível também no país em que foi praticado~^esse modo, no exemplo dado, se for oferecida denúncia e depois descobrir-se que o agente não entrou no território brasileiro, anular-se-á o processo. Entretanto, se ele aqui entrou, e, na instrução, provar-se que o fato não era punível onde foi cometido, proferir-se-á sentença terminativa de mérito. As consequencias, pois, são diversas.

Por derradeiro: note-se, pela redação do parágrafo único do art. 236 do CP, que a ação penal "não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento". Donde concluir-se que, ofertada a queixa, sem haver o trânsito em julgado da sentença anulatória, deve o Juiz rejeitáIa; mas, como diz Cordero, "não estaria excluído um segundo processo", tendo, assim, inteira aplicação o disposto no parágrafo único do art. 43 do CPP, isto é, transitada em julgado a sentença anulatória, outra queixa poderá ser oferecida. Evidente que, nesse caso, o Juiz não poderia aplicar a regra do art. 92 do CPP. E por uma razão muito simples: o Juiz determina a suspensão do processo criminal, nos termos do art. 92, quando suscitada questão prejudicial que verse sobre o estado civil da pessoa. A questão prejudicial pressupõe o processo penal instaurado. Ora, se o cônjuge culpado só pode ser processado após o trânsito em julgado da sentença anulatória do casamento, não se pode admitir, sem absurdidade, a suspensão de um processo que nem sequer se iniciou...

E certo, como já vimos, que às condições de procedibilidade, sejam genericas, sejam específicas, fica subordinado ojus actionis. Tais condições tornam admissível o exercício do direito de ação. Sem embargo disso, há diferença entre elas. A primeira repousa na própria denominação: umas são "genéricas" e outras "específicas"; as "genéricas" são exigidas sempre e devem coexistir; as "específicas" são exigidas num ou noutro caso. Mais: se o Juiz, ao proferir a sentença final, observar que faltou uma condição específica, anula o processo (cf. Beling, Derecho, cit., p. 77). No mesmo sentido, Ottorino Vannini (Manuale, cit., p. 25). A sentença tem, aí, natureza eminentemente processual.

1

Se, entretanto, ao proferir sentença final, observar (tardiamente, é claro) que faltou uma condição genérica (o fato não constituía infração penal ou não havia legítimo interesse), absolve o réu, com fundamento no art. 386, 1, 11, 111, IV e VI.

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E se descobrir, afinal, a ausência de legitimatio ad causam? Nesse

caso, anulará o processo.Aliás, Barbosa Moreira, um dos mais lúcidos intérpretes do CPC, cuidando do indeferimento da inicial, fundado na inadmissibilidade da ação, por falta de requisito do seu regular exercício, indica as hipóteses: "a) falta de legitimidade; b) ausência de interesse processual; c) impossibilidade jurídica do pedido; d) ausência de alguma outra condição específica do exercício da ação; por exemplo: pagamento ou depósito das custas processuais e dos honorários advocatícios a que houver sido condenado o autor, em processo anterior de ação idêntica, extinto sem julgamento de mérito" (cf. 0 novo processo civil brasileiro, Forense, 1975, v. 1, p. 43).Ao lado das condições genéricas e específicas, temos, ainda, as de prosseguibilidade, de que é exemplo a audiência de reconciliaçao a que se refere o art. 520 do CPP.

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Ã0P1§ 10 - Rejeiçao da denúncia ouoqueixa

SUMARIO: 1. Rejeição da peça acusat6ria. 2. Aspecto formal da denúncia ou queixa. 3. Viabilidade do direito de ação. 4. Viabilidade da relação processual. 5. Recurso.

1. Rejeição da peça acusatória

Apresentada a denúncia ou queixa, esta é encaminhada junto ao inquérito ou peças de informação ao Juiz, que poderá recebê-la ou rejeitá-la.Recebendo-a, o Juiz, no mesmo despacho, designará dia e hora para o interrogatório do réu ou do querelado, ordenando a sua citação e a notificação do Ministério Público e, se for o caso, do querelante, nos termos do art. 394 do CPP. Às vezes, apresentada a peça acusatória, exige a lei que o despacho de recebimento seja precedido de outra providência, que, normalmente, é a contestação, denominada pelo Código 44 resposta do réu". Isso ocorre em alguns procedimentos, como, por exemplo, nos crimes de responsabilidade de funcionário público, cujo processo seja da alçada do Juiz singular (CPP, art. 514); nos crimes de imprensa, ex vi do § 1.' do art. 43 da Lei n. 5.250, de 9-2-1967 (Lei de Imprensa); nos crimes da competência originária do STF e do STJ, por força do art. 6." da Lei ri. 8.038190, e, finalmente, nos crimes da competência dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunais de Justiça, nos termos do art. 1.' da Lei ri. 8.658/93, que estendeu a esses

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Tribunais o procedimento estabelecido na Lei n. 8.038/90.

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Outras vezes o despacho de recebimento da peça acusatória é precedido de uma audiência das partes litigantes, tal como ocorre nos crimes contra a honra, quando o crime for de alçada privada, nos termos do art. 520 do CPP.

2. Aspecto formal da denúncia ou queixa

Pode o Magistrado rejeitar a denúncia ou queixa. Para tanto, deve atentar para o aspecto formal da peça vestibular da ação penal e para as condições genéricas da ação, e, se for o caso, para eventual condição específica, nos termos do art. 43 do CPP.Quanto ao aspecto formal, devendo o Juiz, assim como determina o art. 251 do CPP, "prover à regularidade do processo", à evidência não pode ser recebida a denúncia ou queixa em que não haja a qualificação1, b,,. h do imputado ou, pelo menos, a indicação dos sinais pelos quais se possa01 o identificá-lo. Não se concebe acusação contra ninguém ou contra quem

não e proposta a ação.Da mesma forma, não pode ser recebida a denúncia ou queixa em

que não haja a descrição do fato tido como criminoso. A parte acusadora

deve investir o Juiz "della cognizione di un fatto", descrevendo-o, como

diz Beling, "alfine difacilitare il compito del giudice e di permettere

alVimputato di preparare le proprie difese" (cf. Beling, apud Bettiol,11) La correlazione, cit., p. 19).1. Ensina Bonucci, com bastante acerto, que, "se Vazione é pretesa di

concessione della tutela giurisdizionale, l'accusa èforma che nelpro, J

cesso assume Ia pretensa statale" (cf. L'accusa, cit., p. 15).1 Necessário, pois, que, na peça acusatória, seja denúncia, seja quei-Axa, se faça uma exposição do fato criminoso, que é a causa petendi, a

razão do pedido de condenação. A lei exige tal exposição. Não basta simples referência a peças avulsas ou àquilo que se apurou no inquérito. E preciso descrever o fato. Daí haver o Excelso Pretório julgado inepta uma denúncia, "porque não especificou nem descreveu, ainda que sucintamente, os fatos criminosos atribuídos a dois acusados, limitando-se à referência a outras peças dos autos" (cf. RV,

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57/389). No mesmo sentido, RV, 43/307 e RT, 240/649. Na Apelação ri. 77.867, o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal, por votação unânime, manteve despacho do MM. Juiz de Direito da 1.a Vara de Jaú, que rejeitara uma queixa sob o fundamento de que o querelante não fizera descrição do fato crimino-

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so, limitando-se a dizer que os fatos estavam devidamente descritos nas peças anexas.

E se a peça inicial contiver errada indicação do dispositivo legal violado? 0 art. 41 dispõe que a denúncia ou queixa deve conter, também, a classificação do crime, isto é, a indicação do dispositivo legal violado. Cremos que, nesse caso, nada obsta se receba o requisitório.

E ue o réu deve tomar conhecimento, para se defender amplamente do Jo que se lhe imputa, e, uma vez descrito na peça inaugural o fato criminoso com todas as suas circunstâncias, evidentemente que a errada declinação do dispositivo legal não lhe trará prejuízos. E tanto nos parece exato esse raciocimo que, se, por acaso, o autor vier a classificar mal o fato descrito, a denúncia ou queixa será recebida, e, na fase da sentença, o Juiz lhe dará a exata definição jurídica, como lhe permite o art. 383 do CPP.

Mais: se o autor faz a exposição do fato criminoso e se particulariza a pessoa a quem se imputa o fato, "ficam perfeitamente individualizadas na denúncia (ou queixa) a ação penal e a acusação que nela se contém". E preciso que se descreva o fato e se o atribua a alguém. Tais elementos, sim, é que são imprescindíveis, pois, como bem diz Luigi Sansó, "non puó aversi un imputato senza una imputazione, nè una imputazione senza un imputato", do mesmo modo como não pode haver "un condannato senza una condanna nè una condanna senza un condannato" (cf. La correlazione, cit., p. 262 e s.).

Se, por acaso, quando do oferecimento da denuncia ou queixa, o autor não indicar suas testemunhas, nada obsta seja ela recebida, mesmo porque tal requisito é dispensável, como acentua o próprio art. 41.

Poder-se-á dizer que os casos de rejeição da denúncia ou queixa só podem ser aqueles estabelecidos no art. 43. Não é exato. Bem o disse o Excelso Pretório (cf. RT, 240/649), em que se esclareceu que a rejeição se estende também aos casos previstos no art. 41. E isto nos parece óbvio.

Poderá também ser rejeitada se não estiver na língua pátria. Embora não haja dispositivo expresso, o que se dessume do nosso diploma processual (veja-se, a propósito, CPP, arts. 193, 223, 236, 784, § L') é que os atos processuais devem ser realizados em vernáculo.Deverá a denúncia ser subscrita pelo Promotor ou, no caso de queixa, pelo querelante ou seu procurador, se for o caso. 0 Supremo Tribu-

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nal assim decidiu, por unanimidade: "A falta de assinatura do Promotor na denúncia não se inclui entre as omissões supríveis. A denúncia não assinada é inexistente" (cf. Revista Brasileira de Criminologia, 81143). E... anulou todo o processo. Todavia, o entendimento majoritário é no sentido de que não restando dúvida quanto à autenticidade da denúncia, haverá mera irregularidade, devendo o Juiz devolvê-la para colher sua assinatura (RT, 693/392).

3. Viabilidade do direito de ação

Estando a denúncia ou queixa, sob o aspecto formal, em ordem, cumprirá, então, ao Juiz, antes de recebê-la, ver se estão presentes as condições genéricas da ação (i. e., condições de ação) e as condições específicas (i. e., condições de procedibilidade) acaso exigidas na hipótese.4, ~ ,Assim, por exemplo, se a denúncia versa sobre um crime de ação pública condicionada, isto é, subordinada à representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça, deverá o Juiz atentar para tal condição de procedibilidade. Sem ela, a denúncia não pode ser oferecida. Caso não haja a representação ou, se for o caso, a requisição do Ministro da Justiça, cumprirá ao Magistrado rejeitá-la, com fundamento na segunda parte do inc. 111 do art. 43 do CPP, que diz: "... ou faltar condição exigida por lei para o exercício da ação penal", e isto porque a "representação" ou a "requisição do Ministro da Justiça" são condições exigidas para o exercício da ação penal, nos casos previstos em lei.Outros exemplos: a) M, na qualidade de contraente enganada, apre-eixa contra B, por violação da norma que se contém no art. 236sentou qu do CR A queixa estava perfeita. Entretanto observou o Juiz que ainda não havia transitado em julgado a sentença anulatória do casamento. Nesse caso, deveria rejeitar a peça vestibular da ação, porquanto, nesta hipótese, a lei estabelece uma condição de procedibilidade no parágrafo único do art. 236 do CP, in verbis: "A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento". b) Após transitar em julgado uma sentença de impronúncia (CPP, art. 409), o Promotor apresentou nova denúncia contra o mesmo réu, pelo mesmo fato. Formalmente, estava perfeita a denúncia. Todavia observou o Juiz que o Promotor se valeu das mesmas provas

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existentes no processo. Neste caso, cumprir-lhe-ia rejeitar a peça inaugural da ação, porquanto, aí, a lei estabelece uma condição de procedibilidade: é preciso haja novas provas. Di-lo o parágrafo único do art. 409 do CPP: "Enquanto não estiver extinta a punibilidade, poderá, em qualquer tempo, ser instaurado processo contra o réu, se houver novas provas".

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Rejeitada a denúncia ou queixa, por falta de condição específica da ação, jadUa obsta possa ela ser renovada, uma vez satisfeita a condição, tal como se constata pelo parágrafo único, última parte, do art. 43 do CPP. Assim, se o Promotor oferece uma denúncia por crime de ameaça e o Juiz a rejeita porque não havia a "representação" (e esta é exigida na hipótese, como se vê pelo parágrafo único do art. 147 do CP), caso o Promotor a consiga, deverá ser oferecida outra denúncia. 0 parágrafo único do art. 43 diz: "a rejeição... não obstará ao exercício da ação penal... desde que promovida por parte legítima ou satisfeita a condição". Logo, não se trata de revalidação da peça inicial, mas sim de nova denúncia ou queixa. Em abono desse entendimento, a palavra autorizada de Espínola Filho: "A lei é clara, subordinando o exercício da ação penal ao cumprimento das condições, não sendo lícito revalidar a queixa ou denúncia rejeitada, o caso é de renovação, após realizada a condição" (cf. Comentários, cit., 3. ed., v. 1, p. 433).Assim, se a denúncia ou queixa omite a exposição do fato criminoso, ou limita-se a fazer referência às peças do inquérito (p. ex.: o fato criminoso encontra-se perfeitamente elucidado nos autos do anexo inquérito policial); se não traz a qualificação do imputado ou não indica os sinais pelos quais se possa identificá-lo; se não contém a assinatura do órgão do Ministério Público com atribuições de funcionar naquela causa, ou do Procurador legalmente habilitado do querelante ou deste, se habilitado; se não está escrita em vernáculo; se não contém o pedido de citação do réu; se o instrumento procuratório, na queixa-crime, não obedecer às exigências do art. 44, em todas essas hipóteses, pode a peça acusatória ser rejeitada, por se tratar de peçaformalmente inepta.Inepta também será a denúncia ou queixa se não forem observadas as prescrições do art. 43 do CPP. Diz-se que, nessa hipótese, ausente uma condição genérica ou especifica, o direito de ação torna-se manifestamente inviável.Já tratamos das condições da ação. Sem embargo, repetimos: se o fato narrado na denúncia ou queixa não constituir crime, deve a peça

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acusatória ser rejeitada, por manifesta inépcia, pois, em tal caso, ausente estará a possibilidade jurídica do pedido.

A propósito, o art. 43, 1, do CPP.Rejeitada também deve ser a peça inaugural da ação penal se promovida por alguém que não possua legitimidade. A denúncia ou queixa, diz a primeira parte do inc. 111 do art. 43 do CPP, será rejeitada quando manifesta a ilegitimidade de parte.

Se nos crimes de ação pública somente o Ministério Público é quem deve oferecer denúncia, é claro que, se o particular, em casos dessa natureza, vier a oferecer queixa, o Juiz rejeitará a peça inicial, porque promovida a ação por pai w manifestamente ilegítima, salvo se ocorrer a hipótese do art. 29 do CPP.

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Se porventura o Ministério Público oferecer denúncia em crime de alçada privada, o Juiz a rejeitará, já que somente o ofendido é que é parte legítima para promovê-la.p, PFrise-se que a legitimatio tanto pode ser ativa como passiva. E isso é importante. Parte legítima ativa é aquela que pode promover a ação penal (órgão do Ministério Público, ofendido ou quem legalmente o represente ou o suceda). Parte legítima passiva é a pessoa contra quem se pode intentar a ação penal, vale dizer, o genuíno autor da infração penal.

A lei diz: "Se for manifesta a ilegitimidade da parte". Logo, em tema de rejeição da peça vestibular da ação penal, como a lei não diz se se trata apenas de legitimatio ad causam, ou, também, de legitimatio ad processum, uma ou outra poderá ser invocada. Assim, se a vítima, com 17 anos, oferecer queixa, o Juiz deverá rejeitá-la. Embora tenha o menor legitimatio ad causam, falta-lhe, contudo, legitimatio adprocessum; ele não tem capacidade para estar em juízo. Se, por acaso, a queixa for apresentada por um tio-avô da vítima, o Magistrado a rejeitará, pois, embora tendo capacidade para estar em juízo, cabia o direito de queixa ao ofendido ou a quem legalmente o representasse. Esses os titulares.Vale salientar, entretanto, que, se porventura, mesmo havendo ilegitimidade do representante da parte, o Juiz não o perceber no ato do recebimento da peça inicial, mas posteriormente, poderá, no curso da instância, decretar a nulidade do processo. De notar, ainda, que tal nulidade poderá ser sanada mediante ratificação dos atos já praticados pelo verdadeiro representante, nos termos do art. 568 do CPR0 iric. 111 do art. 43 refere-se, apenas, à legitimação ativa (legitimidade para promover a ação)? Não. Refere-se também à legitimatio passiva,

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mas, como a lei fala em "manifesta ilegitimidade", é preciso que a ilegitimidade seja patente. Assim, se o Promotor, por um lapso, em vez de oferecer denúncia contra o indiciado, oferecê-la contra alguém que, manifestamente, não era parte material, isto é, contra alguém que não era parte na relação jurídico-material, o Juiz rejeitará a denúncia, porquanto esta não foi promovida contra o autor do crime. Suponha-se que o Promotor, em vez de oferecer a denúncia contra J. R. S., o indiciado, por eq~*voco, a ofereça contra E. M., que servira de testemunha. Tal denúncia é inepta, visto que promovida contra quem não era parte no litígio. Sua rejeição, pois, se impõe.E certo que, às vezes, o Promotor oferece denúncia contra um cidadão que, na verdade, não cometeu a infração. Entretanto o Juiz a recebe, uma vez que não é manifesta a ilegitimidade. Se, no transcorrer da instrução, não se comprovar sua responsabilidade, será absolvido. 0 problema, como se vê, é outro.E se o Promotor, inadvertidamente, oferecer denúncia contra um menor de 18 anos? Na verdade, foi este o autor do fato previsto como crime. Apenas o órgão do Ministério Público não diligenciou

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sua certidão de nascimento. Se o Juiz quiser (e se lembrar), poderá requisitá-la. E se não o fizer, receber a denúncia e, na fase da instrução, for juntado o referido documento comprovando que, à época do fato, o "réu" era menon de 18 anos? Quid inde? Em primeiro lugar, é de se indagar: seria ele parte ilegítima "ad causam" passiva? Não nos parece. A ilegitimidade "ad causam" passiva concerne a quem não foi parte na relação jurídico-material. Ora, foi ele quem cometeu a infração... Haveria a ilegitimidade se a denúncia houvesse sido ofertada contra uma pessoa completamente estranha à relação jurídico-material. Temos para nós que, in casu, haveria incapacidade processual. Os menores de 18 anos não podem ser réus, como não o podem ser as pessoas jurídicas, os mortos e os animais. Logo, a relação processual que vier a ser instaurada contra um menor de 18 anos será absolutamente inválida, podendo o Juiz anular o feito, nos termos do art. 564, 11, do CPP, em face da absoluta illegitimatio ad processum. Aliás, se os pressupostos processuais são os requisitos para a formação válida de uma relaçao processual e se, no Processo Penal, tais requisitos são o órgão investido de jurisdição, o pedido e as partes, parece claro que, se o menor não pode ser parte no Processo Penal, a relação processual que viesse a ser instaurada contra ele seria, a rigor, inexistente. Nesse sentido, veja-se Friedlãnder, in Die Lehre, v. 3, p. 367 (apud G. Leone, Trattato, cit., p. 749).

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1

Insta acentuar que, nos casos de rejeição da denúncia ou queixa por ilegitimidade ad causam ativa, nada obsta possa ela ser promovida, desde que pela parte legítima, assim como esclarece o parágrafo único do art. 43 do CPP. Ou, acrescentamos nós, desde que promovida contra a verdadeira parte legítima ad causam passiva, se a rejeição se deu por esse motivo.

Note-se que, nos casos de incapacidade processual, de incapacidade postulatória ou de ilegitimidade do representante da parte, poderá o Juiz aplicar, por analogia (heterointegração da norma), o que dispõe o art. 13 do CPC.

Se, apreciando a denúncia ou queixa, concluir-se pela inexistência

do interesse processual, de possibilidade jurídica do pedido ou de legi-1 timidade ad causam, proferir-se-á despacho liminar negativo,

rejeitan~, 0 do, assim, a peça inaugural da ação penal.~., 1,Ao lado dessas condições genéricas, sempre exigidas, às vezes a lei penal ou processual penal, em determinadas hipóteses, faz subordinar o exercício da ação penal a outras condições. São as específicas. Se a lei as exigir e não estiverem presentes, haverá, também, rejeição da peça acusatória. Veja-se, a propósito, o n. 6 do capítulo anterior.

4. Viabilidade da relação processual

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No despacho de recebimento da denúncia ou queixa, além de dever o Juiz analisar a peça acusatória sob o aspecto formal e sob o prisma da viabilidade do direito de ação, cumpre-lhe investigar a existência dos pressupostos da relação processual. Devendo ele, nos termos do art. 251 do CPP, "prover à regularidade do processo", e, se a falta de um pressuposto da relação processual traz consigo a inexistência ou a nulidade de todo o processo, ab initio, pela irrelevância jurídica ou pela invalidade de origem, da própria relação, como bem diz Tornaghi (A relação, cit., p. 50), cumpre-lhe, nesse despacho de recebimento da peça acusatória, que envolve um juízo de admissibilidade da demanda, reparar se a relação jurídico-processual, que tende a ser instaurada, é ou não viável. Spiezia observa que os pressupostos processuais são os antecedentes necessários à existência e validez do processo e, daí, as duas espécies de pressupostos: de existência e de validade (cf. Teoria, p. 354).Ação e processo são coisas distintas. Por meio da ação instaura-se o processo. Se estão satisfeitas as condições mínimas para o exercícioLi 520

do direito de ação, resta ao Juiz investigar se também estão satisfeitas as condições mínimas de viabilidade da relação processual. Deixando de lado os pressupostos de existência, que a esta altura devem ter coexistido, pois sem eles o processo é inexistente, observa, naquela fase inaugural, se estão presentes os pressupostos de validade. A esta altura cumprir-lhe-á indagar se tem ou não competência para receber a peça acusatória. Pode acontecer de a causa penal ser da alçada da Justiça Eleitoral, da Justiça Militar, da Justifa Comum Federal ou até mesmo da competência originária dos Tribunais. Vindo a receber a denúncia ou queixa que verse sobre infração da alçada dessas Justiças, obviamente a relação processual a ser instaurada não teria validade. Observa se as partes têm legitimatio atíprocessum, isto é, legitimidade para atuar naquele processo cuja instauração se pede. Assim, o Promotor que não esteja em exercício numa Comarca não pode aí oferecer denúncia, salvo se houver um ato do Chefe da Instituição designando-o. Se o fizer, deve o Juiz rejeitar a peça acusatória, ante a ausência de legitimatio ad processum do órgão do Ministério Público.Não se infira daí que se o Juiz deixou de observar a ausência de uma das condições da ação, ou mesmo algum ou alguns pressupostos processuais, qão lhe seja lícito examiná-los em outro momento posterior à instauração do processo. Há, por exemplo, certos pressupostos que escapam ao conhecimento do Juiz no limiar da ação penal. Assim, por exemplo, como pode o Juiz da 1.a Vara de uma Comarca, perante o qual foi oferecida denúncia ou queixa, saber que em outra Vara já se iniciou outra ação penal, pelo mesiníssimo fato? Se houvesse e tivesse elementos para tanto, proclamaria a existência de litispendência. Se já existe uma lide pendendo de julgamento em outro juízo, pelo mesiníssimo fato, não se concebe a duplicação de processos. Ne bis in idem. Como poderia o Juiz saber que, por aquele mesiníssimo fato, o réu já fora absolvido? Se soubesse, e com os elementos de convicção que tivesse, impediria o fluir da instância, ante a existência da coisa julgada. Mas, se, por acaso, houver

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um motivo de impedimento ou uma causa legal de suspeição (CPP, arts. 252 e 254), deve abster-se de receber a peça acusatória, porquanto a relação processual seria nula se, à sua frente, estivesse um Juiz impedido ou suspeito.Se, por acaso, no instante de proferir a decisão final, observar o Juiz que o fato narrado na denúncia não constitui crime, circunstância para a qual deveria ter atentado quando do despacho liminar, nada obstará reconheça a ausência daquela condição, absolvendo o réu, com fundamento no art. 386, 111, do CPP.

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to, de que trata o CPP no seu art. 5 8 1, 1. Na Lei de Imprensa, o recurso oponível é o de apelação.

Também comporta apelação a decisão que rejeita a denúncia ou queixa nas infrações de menor potencial ofensivo, a teor do art. 82 da Lei n. 9.099/95.

Nos processos da competência originária dos Tribunais, quando o Relatorrecebia ou rejeitava a denúncia ou queixa, cabia oagravo inominado referido no art. 557, parágrafo único, a, do CPP. Depois, a Constituição de 1967 conferiu poderes ao STF para legislar sobre matéria da sua competência, e, ele, no seu Regimento Interno, elaborado em 1970, introduziu numerosas alterações no procedimento da sua ação penal originária, inclusive retirando do Relator poderes para receber ou rejeitar a denúncia ou queixa, conferindo-os ao Plenário. Posteriormente, a Lei ri. 8.038, de 28-5-1990, estabeleceu novo rito para a ação penal originária da competência do STF, estendendo-o àquela da alçada do STJ, e, no seu art. 6.0, conferiu poderes exclusivamente ao Tribunal para receber ou rejeitar a denúncia ou queixa. Mais tarde, a Lei ri. 8.658, de 26-51993, tal como já havíamos defendido, uniformizando o procedimento da ação penal originária, estendeu aos Tribunais Regionais Federais e aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal o mesmo procedimento traçado na Lei n. 8.038/90.

Desse modo, se o Tribunal, em feitos da sua competência, recebe

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5. Recurso

Se o Juiz receber a denúncia ou queixa, tal decisão interlocutória simples é irrecorrível. Essa irrecorribilidade deve ser entendida em termos. Tratando-se de crime de imprensa, a decisão que recebe a denúncia ou queixa comporta o recurso em sentido estrito, sem suspensão do curso do processo, ex vi do § 2.' do art. 44 da Lei ri. 5.25 0, de 9-2-1967.Nos demais casos, dependendo da hipótese concreta, poderá o réu impetrar ordem de habeas corpus (art. 647 do CPP). Assim, se o fato narrado na denúncia ou queixa, ou mesmo o investigado, não constituir infração penal e, por,fàs ou por nefas, o Juiz vier a recebê-la, cabível será o habeas corpus, com fundamento no art. 648, 1, do CPP.E se rejeitar? Normalmente o recurso oponível é o em sentido estri-

ou rejeita a denúncia ou queixa, descabe o agravo inominado a que sereferia a letra a do parágrafo único do art. 557 do CPP.

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capítulo 9

§ lf - Da extinçao dapunibilidade

SUMÁRIO: 1. A rejeição da denúncia Ou queixa e a extinção da punibilidade. 2. Que se entende por extinção da punibilidade? 3. As causas extintivas da punibilidade. 4. 0 art. 107 do CP esgota todas as causas extintivas da punibilidade? 5. Morte do agente. 6. Anistia, graça e indulto. 7. Anistia. 8. Graça e indulto. 9. Abolitio criminis. 10. Prescrição, decadência e perempção. 11. Prescrição. 12. Prescrição retroativa. 13. Decadência.

1. A rejeição da denúncia ou queixa e a extinção da punibilidade

Diz o art. 43, 11, do CPP que a denúncia ou queixa será rejeitada, se estiver extinta a punibilidade pela prescrição ou outra causa.

Por outro lado, o art. 61, também do CPP, proclama que, em qualquer fase do processo, o Juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.

2. Que se entende por extinção da punibilidade?

Que se entende por extinção da punibilidade? Que causas po( determiná-la?

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Com a prática da infração penal, o direito de punir sai do plano abstrato para o concreto. Ojuspuniendi, antes em estado potencial, tornase efetivo. Já agora surge para o Estado a possibilidade de poder pedir ao Juiz a aplicação da sanctio juris ao culpado.Razões várias, entretanto, fazem surgir uma renúncia, uma abdicação do direito de punir do Estado, como bem diz Maggiore. Extinguese a punibilidade, em face de certas contingências ou motivos de conveniência ou oportunidade. Tais contingências ou motivos de conveniência ou oportunidade fazem desaparecer os próprios fundamentos da punibilidade, tornando, assim, impossível a concretização dojus puniendi. E quais esses fundamentos? A necessidade e a utilidade da punição. Não falou o legislador em extinção do crime ou da pena, mas em extinção da punibilidade, correspondendo à exata significação dos efeitos jurídicos dela resultantes.Muitas vezes a causa extintiva da punibilidade faz desaparecer todas as conseqüências de natureza penal, tal como ocorre na anistia. Outras vezes, extingue-se tão-somente a pena ou o jus puniendi, como acontece com o subsequens matrimoniuni.Note-se que a causa extintiva da punibilidade pode ocorrer antes, durante ou mesmo depois de finda a relação processual. Assim, a morte do agente, a anistia, aabolitio criminis, a prescrição e osubsequens matrimonium. Outras pressupõem ação penal não iniciada, como a decadência e a renúncia. Outras apenas podem verificar-se depois de iniciada a ação e antes da sentença definitiva: perempção. 0 perdão aceito tanto pode ocorrer antes como também após sentença definitiva intrânsita em julgado. A retratação, antes de ser prolatada sentença final. 0 perdão judicial, quando da prolação da própria sentença condenatória.0 que se extingue é a "punibilidade", isto é, desaparece o direito subjetivo de punir do Estado, o jus puniendi. Se, por acaso, já houver sentença condenatória, então o que se extingue é o jus punitionis, isto é, desaparece o título penal executório.

3. As causas extintivas da punibilidade

0 art. 107 do CP, com a redação dada pela Lei n. 7.209, de 11-71984, enumera as causas extintivas da punibilidade:

"Extingue-se a punibilidade:

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1 - pela morte do agente;11 - pela anistia, graça ou indulto;111 - pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso;IV - pela prescrição, decadência ou perempção;V - pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito nos crimes de ação privada;

101 9

admite;

VI - pela retratação do agente, nos casos em que a lei a

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VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos 1, 11 e 111 do Título VI da Parte Especial deste Código;VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de sessenta dias a contar da celebração;IX - pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei".

4. 0 art. 107 do CP esgota todas as causas extintivas da punibilidade?

Cumpre observar, entretanto, que a enumeração do art. 107 não é taxativa. Ali não se contêm todas as causas que determinam a extinção da punibilidade. Nélson Hungria (apud Basileu Garcia, Instituições, cit., t. 2, p. 654) lembra a restitutio in integrum, no caso de subtração de menores (CP, art. 249, § 2.'), sem cogitar das causas extintivas condicionadas, isto é, a suspensão condicional da pena e o livramento condicional. Acrescenta mais o mestre a desistência e o arrependimento eficaz na tentativa (CP, art. 15). Data venia, o art. 15 do CP cuida de ausência de adequação típica e não de causa extintiva de punibilidade. De fato. Se o art. 15 retira (e realmente o faz) a conduta punível da descrição legal da tentativa, não há falar-se em extinção da punibilidade.Basileu Garcia observou (Instituições, cit., p. 655), na hipótese do art. 235 do CP, outro caso que fulmina a ação repressiva. Veja-se, a propósito, o que se contém no § 2.0 do art. 235. 0 mesmo autor faz referência à morte do ofendido no crime de adultério. De fato. No crime

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de adultério a ação penal é personalíssima, isto é, só pode ser promovida pelo cônjuge ofendido, nos termos do § 2.' do art. 240 do CR Vindo este a falecer, o direito de promover a ação ou de prosseguir nesta não se transmite àquelas pessoas enumeradas no art. 31 do CPP. E isto por expressa disposição legal. De fato. 0 § 2." do art. 240 diz: "A ação penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido". Somente por ele. Exclusivamente pelo cônjuge ofendido. Assim, mesmo que a ação esteja em curso, vindo o querelante (cônjuge ofendido) a falecer, ninguém mais, seja lá quem for, poderá dar prosseguimento à ação. Extingue-se a punibilidade. Mesmo que o cônjuge ofendido não morra, mas se torne incapaz (doença mental), não se concebe a nomeação de curador para a propositura ou prosseguimento da ação. Primeiro, porque o § 2.' do art. 240 realça o caráter personalíssimo da ação penal nesse caso, e, segundo, porque, como observa Battaglini, "violando Fadulterio Ia fedeltà

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coniugale, nessun altro puó dolersene all'irifúori del coniuge verso cui soltanto Fobbligo di tale fedeltà sussiste" (La querela, cit., p. 372). Digase o mesmo se ocorrer a hipótese do art. 236 do CP em face do disposto no paragrafo unico.

Frederico Marques, por seu turno, acrescenta ao rol das causas extintivas da punibilidade a absolvição no estrangeiro ou o cumprimento da pena aliunde, hipóteses previstas no art. 7.', § 1% d, do CP (cf. Curso, cit., v. 3, p. 401).

5. Morte do agente

A primeira causa extintiva da punibilidade, de que trata o artigo em exame, e a morte do agente. Mors omnia solvit. Morrendo o sujeito ativo do crime, antes da propositura da ação penal, esta não mais será promovida. Se em curso a ação penal, trancar-se-á a relação processual. É de acentuar que a morte não extingue o crime. Não haverá, na hipótese, a extinção do crime; como diziam os romanos, "crimen extinguitur mortalitate". Extingue-se a punibilidade. E tanto é verdade que o ofendido pode valer-se da sentença penal condenatória, com trânsito einjulgado, como título executório civil para o ressarcimento do dano, nos termos do art. 63 do CPP e art. 1.526 do CC, se, porventura, a morte do agente foi posterior à condenação. Se anterior, ainda poderá o ofendido propor a actio civilis contra os herdeiros do autor da infração penal (CPP, art. 64).

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Se a pena não é função de vingança, mas de defesa social no propósito de regeneração do criminoso, que motivos justificariam a existência de um processo ou de uma condenação quando já morto o acusado, cuja reabilitação na sociedade se pretendia? Seria uma crueldade ridícula, além de inútil (cf. Aloysio de Carvalho Filho, ComentÚrios, cit., p. 73).

No entanto, nem sempre se pensou assim. "Nel derecho intermedio", diz N101giore, "la pena se vuelve también contra los muertos por medio de la damnatio memoriae, condena en efige o ejecución del cadáver" (cf. C. Maggiore, Derecho, cit., v. 2, p. 355).Tratando-se dos crimes de lesa-majestade, salientavam as Ordenações Filipinas:

"Se o culpado nos ditos casos falecer, antes de ser preso, acusado, ou infamado pela sua maldade, ainda depois de sua morte se pode inquirir contra ele, para que, achando-se verdadeiramente culpado, seja sua memória danada e seus bens confiscados para a Coroa do Reino" (Liv. V, Tít. VI, § 11).

Era, em parte, a aplicação do princípio romano haereditas fisco vindicetur nisi a successoribusfungetur, aplicável aos crimes de lesamajestade, peculato e concussão.No Direito atual, prevalece o princípio mors omnia solvit. A morte faz desaparecer tudo, exceto a pretensão de ressarcimento do dano, conforme já observamos.

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E se o réu for condenado à pena de multa e, em seguida, falecer? Depende. Se já havia pago a importância, não haverá problema, nem mesmo seus sucessores poderão reavê-la. E se ainda não foi paga? Poderá ser cobrada aos sucessores? Parece-nos que a pena de multa não pode transmitir-se aos sucessores do réu, sob pena de se incidir na proibição da Magna Carta, que proclama não poder nenhuma pena passar da pessoa do delinqüente (art. 5.', XI---V). 0 CP alemão, no art. 30, permite 44 a execução de multa sobre o espólio do condenado, desde que a sentença tenha passado em julgado durante a vida deste".

No Direito italiano, como diz Maggiore, a morte do condenado extingue, também, a pena pecumária. E acrescenta: Os herdeiros não poderiam nunca responder pelo inadimplemento do de cujus, em virtude do princípio da personalidade da pena.

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Entre nós o assunto era e é pacífico: os herdeiros não responderão pelo inadimplemento do condenado morto. Roberto Lyra e Raymundo Macedo, entretanto, entendiam, na vigência da lei anterior, que subsistia, apenas, aquela caução real ou fidejussória a que se referia o art. 40. Tal artigo tinha a seguinte redação:

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"A conversão" (da pena de multa em detenção) "fica sem efeito se, a qualquer tempo, o condenado paga a multa ou lhe assegura o pagamento mediante caução real ou fidejussória".

Cremos, contudo, sem a pretensão de tornar desgraciosos os ilustres juristas, que nem mesmo a caução real ou a fidejussória poderia subsistir. A caução visava a assegurar o pagamento da multa. Se o condenado falecesse, ficaria desobrigado do seu pagamento, e se os herdeiros não eram responsáveis por ela, evidente que a caução cairia no vazio. Caso contrário, estaria o Estado impondo multa a uma pessoa morta. Ora, se o fim do Estado, ao impor uma multa, como acertadamente diz Soler, "no es el de aumentar sus rentas e crearse una fuente de recursos, sino reprimir un delito y Ia persona de su autor" (cf. Sebastian Soler, Derecho, cit., v. 2, p. 438), não se justificaria que, após a morte, o Estado levasse a leilão o bem dado como garantia da multa, sob pena de ser desvirtuada sua finalidade precípua.

E, para dar alicerce bem caldeado a tal entendimento, está a palavra autorizada de Frederico Marques: "Ao contrário do que ensina Roberto Lyra, não é possível cobrar a multa garantida através de caução real ou fidejussória após a morte do condenado. Com o falecimento deste, a punibilidade se extingue e a caução, por isso mesmo, desaparece" (cf. Frederico Marques, Curso, cit., p. 161).

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Hoje, contudo, o assunto não merece qualquer análise, uma vez que a lei atual não permite o asseguramento da multa mediante caução, como se infere dos arts. 50, 51 e 52 do CR

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Falecendo um dos autores do crime, a ação poderá ser intentada contra os demais e, se iniciada, prosseguirá normalmente, salvante quanto àquele cuj a punibilidade foi declarada extinta. Discussão há, entretanto, quanto ao crime de adultério, que exige pluralidade de infratores - por ser crime bilateral, de concurso necessário, portanto. Aloysio de Carva-

Incomunicabilidade

lho Filho entende que, morrendo a mulher adúltera, a ação penal não pode prosseguir contra o co-autor (cf. Aloysio de Carvalho Filho, Comentários, cit., p. 82). Não obstante a lição do alumiado mestre, não encontra ela, venia petimus, agasalho em lei. Aliás, contra o ponto de vista do saudoso Professor da Faculdade de Direito da Bahia, estão as opiniões de Eusébio Gomez, Bento de Faria, Romão Côrtes Lacerda, Basileu Garcia, Raymundo Macedo, e outros. "Se a mulher adúltera morre durantak curso do processo que lhe movia o marido, e este insiste na punição do comparsa, aquele acontecimento não obsta ao seu desiderato. A ação penal pode ser obstada em relação a este por outra causa extintiva, como o perdão, a perempção; não pelo fato da morte da mulher inculpada" (cf. Da extinção da punibilidade, Forense, 1946, p. 45).

Manzini, por seu turno, apreciando a matéria na legislação peninsular, explicava: "L'art. 563 primo cap. v. n. 1 stabilisce che Ia morte del coniuge offeso estingue iI reato in relazione a tutti coloro che lo hanno cominesso o che vi hanno preso parte, e, se vi é stata condanna, ne cessano 1'esecuzione e gli effetti penali". Entretanto acrescentava que, em se tratando de morte do cônjuge culpado, ela "estingue iI reato e Ia pena soltanto in relazione a lui, e non ai compartecipi (art. 150, 171, 182), nessuna eccezione facendo Ia legge, per i reati d'adulterio, alla regola generale..." (cf. Vincenzo Manzini, Diritto, cit., p. 704). E, em abono da sua lição, citava vários julgados da Corte de Cassação: "La morte del coniuge adultero, ancorchè avvenuta per fatto voluntario del coniuge

querelante, non estingue Fazione penale in, confronto del. corTeo .. Vivente

Ia moglie, iI marito offeso non lia facoltà di querelare iI solo correo, manon nel caso di morte della moglie, che non fa cessare le ragioni determinanti

Ia punibilità dell'adulterio .. La morte della moglie estingue l'azionepenale contro Fadultera, ma non cancela il fatto dell'adulterio, nè lepossibili conseguenze di questo, nè puó considerarsi come una causaequivalente alla remissione" (cf. Vincenzo Manzim, Diritto, cit., p.704, nota 2).

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De observar que, pela Sentença n. 147, de 3-12-1969, o art. 163 do Codice Penale italiano "é stato dichiarato totalmente illegitimo dalla Corte CostituzionaIe".

Sem cuidar, especificamente, do adultério, mas o abrangendo, professa Frederico Marques: "Com a morte de um dos acusados, os demais não se beneficiam com a extinção dojus puniendi, o qual só desaparece

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em relação ao delinqüente que faleceu" (cf. Frederico Marques, Curso, cit., v. 3, p. 406).

Na verdade, não há razão jurídica que autorize admitir-se a comunicabilidade de molde a beneficiar o comparsa com a extinção da punibilidade do cônjuge culpado.

Prova

Muito embora o eminente Nélson Hungria entenda que, para efeito da extinção da punibilidade, vale a presunção legal da morte, prevista no art. 10 do CC, estamos que a morte, para efeito da extinção da punibilidade, só pode ser provada com a certidão de óbito, nos termos do art. 62 do CPP, in verbis:

"No caso de morte do acusado, o Juiz somente à vista da certidão de óbito, e depois de ouvido o Ministério Público, declarará extinta a punibilidade".

Nem mesmo aquela providência do art. 89 do CPP italiano de 1930 é autorizada entre nós. Referimo-nos a suspensão do processo "quando sorge fondato dubbio sull'esistenza in vita dell'imputato".

E se, julgada extinta a punibilidade, à vista de falsa certidão de óbito, aparecer o morto? Responde Basileu Garcia: se não transitou em julgado a decisão que declarou extinta a punibilidade, o processo terá andamento. Caso contrário, só restaria processar o autor da falsidade (cf. Basileu Garcia, Instituições, v. 2, p. 665).

Juntando-se ao processo uma certidão comprobatória de que o réu faleceu e aparecendo ele vivinho da silva, após o trânsito em julgado da decisão que decretou extinta a punibilidade, poderá o processo prosseguir? Responde Basileu Garcia: não. Restará, apenas, proceder-se por falsidade contra os responsáveis pela elaboração e pelo uso do documento destinado a provar o óbito fictício (cf.

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Instituições, cit., p. 665). No mesmo sentido, D. Evangelista de Jesus (cf. Direito, cit., v. 2, p. 498). Não temos no Direito pátrio disposição similar àquela do art. 89 do CPP italiano de 1930.

Certa feita, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, apreciando a Carta Testemunhal n. 97.709, Relator Juiz Mello Almada (acórdão não publicado em repertório jurisprudencial), assim se pronunciou: "Extinção da punibilidade. Reconhecimento em face de certidão de óbi-

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to do réu. Documento falso. Interposição de recurso pelo M. P., depois de transitada em julgado a decisão. A decisão que decreta a extinção da punibilidade faz coisa j ulgada e, ainda que se demonstre a falsidade da prova do óbito, não pode ser ela revista, porque não existe, em nosso direito, revisãopro societate".

0 STF, entretanto, já decidiu não fazer coisa julgada a sentença que reconhece extinta a punibilidade à vista de atestado de óbito bascado emAgistro comprovadarnente falso (cf. RV, 93/986, 104/1063). Data verá . a, não se houve com acerto o Excelso Pretório. A decisão que julga extinta a punibilidade é terminativa de mérito e, como tal, faz coisajulgada material. A propósito, Frederico Marques: "A sentença que decreta a extinção da punibilidade é terminativa de mérito, porque declara inexistente ojus puniendi e, com isso, acolhe preliminar de mérito que põe termo à instância" (Elementos, cit., v. 3, n. 603 e 605). No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover (cf. As condições, cit., p. 74 e s.).

A lição de Manzini, invocada no venerando aresto, justifica-se em face da expressa determinação da lei peninsular: "... Se in seguito si accerta che la morte fu erroneamente dichiarata, la sentenza di proscioglimento, non piá soggetta ad impugnazione si considera como non pronunciata..." (Codice di Procedura Penale, art. 89).

Costuma-se até indicar o art. 89 do CPP italiano de 1930 como exemplo de revisão pro societate ... Sugestivo, até, o título do art. 89: "Dubbio sulla morte dell'imputato ......

0 Código de Processo Penal italiano promulgado em setembro de 1988 manteve o mesmo entendimento, embora com palavras distintas. A propósito o § 2.' do art. 69:

"La sentenza non impedisce Vesercijo dell'azione penale per il medesimo fatto e contro la medesima persona, qualora successivamente si accerti che la morte delVimputato é stata erroneamente dichiarata ".

Com a devida vênia, a lição de Tornaglii, evocada para respaldar o v. aresto, não se ajustava à espécie. Incensuráveis as palavras do mestre: "As sentenças interlocutórias podem ser irrecorríveis, podem decidir definitivamente questões prévias, mas, não julgando a coisa deduzida em juízo, não fazem coisa julgada". Ora, se o Juiz declara inexistente o jus puniendi, em face da morte do agente, está apreciando, julgando o

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mérito. Se a lide penal é informada do binômio pretensão punitiva versus pretensão libertária, é induvidoso que, julgando o Juiz inexistente ojus puniendi, apreciou ele a res in judicio deducta. Mérito, portanto. Por isso que os exemplos dados por Tornaghi (CPP, arts. 18 e 409, paragrafo único) não se assemelham aos do julgamento da extinção da punibilidade. Aqueles são decisões de natureza processual. Esta, de mérito (cf. Instituições, cit., 2. ed., v. 1, p. 476).Argüiu-se, ainda, que "por se tratar de ato juridicamente inexistente, a nulidade poderia, e até deveria ser reconhecida de ofício, por ser absoluta".

Com o respeito que as decisões dos nossos Tribunais merecem, mormente em se tratando do Excelso Pretório, estamos que se descurou. 1 o bom Direito. A vingar a tese, sempre que o Juiz julgasse extinta apunibilidade, com fundamento no subsequens matrimonium, anulado ocasamento após ficarem preclusas as vias impugnativas, o processo tomaria o seu curso normal... Se todas as testemunhas fossem fementidas40 , , Wk . 1e obsequiassem o réu com seus depoimentos mendazes e, em face de himalaia de provas, viesse o Juiz a proferir um decreto absolutório, indaga-se: transitada em julgado a sentença, surgindo prova inconcussa do perjúrio e elementos convincentes da responsabilidade do réu, poderia ser renovado o processo? À evidência, não, sob pena de se admitir, contra legem, a revisãopro societate... E se o réu juntasse uma certidão de nascimento forjicada, pretendendo passar por menor de 21, à época1, ) do fato, e o Juiz reconhecesse a extinção da punibilidade pela prescrição? Transitada em julgado a decisão e descoberta a falsidade, o atojurisdicional perderia eficácia? Quer-nos parecer que a resposta negativa se impõe. Decisão que nega a existência do direito de punir é, inegavelmente, decisão de mérito.

Se o Juiz nega a possibilidade jurídica de o Estado impor a sanção naquela "realidade jurídica hipotética veiculada pela demanda", julga, indisfarçavelmente, o mérito.

Suponha-se que a Defesa requeira ao Juiz, num determinado processo, seja decretada extinta a punibilidade em face da prescrição. 0 Magistrado, ouvido o órgão do Ministério Público, gasalha o pedido. Preclusas as vias impugnativas, descobre-se que o lapso prescricional ainda não se havia verificado. Faltavam 8 meses... Quidjuris?

Nesta hipótese, como nas demais, se o Juiz negou a existência da relação jurídico-material, com o reconhecer inexistente ojus puniendi,

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indubitavelmente apreciou o mérito. Ora, as decisões que incidem sobre o meritum causae, uma vez preclusas as vias impugnativas, produzem a coisa julgada.

Permitindo-se a vivificação do processo, como se permitiu naquele julgado, parece-nos que, por via oblíqua, foi admitida a revisão pro societate, pois, uma vez julgada a relação jurídico-punitiva, decisão de fundo, portanto, e preclusa a via impugnativa, impossível seria o reexame da maÃfia, a menos que houvesse, entre nós, à maneira do Direito peninsular, texto expresso.Na Apelação Criminal ri. 219.107-SP, sustentou-se que "o despacho que declara extinta a punibilidade não é uma sentença final de mérito e, por essa razão, o CPP prevê, para impugná-lo, o recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, VIII)".

0 argumento, com a devida vênia, não convence. Não é de mérito a decisão que absolve o réu sumariamente, com fulcro no art. 411 do CPP? E o recurso oponível não é, também, o em sentido estrito (CPP, art. 581, VI)?

A decisão que decreta extinta a punibilidade faz coisa itilgada material, declaratória que é da extinção do jus puniendi.

Mais: ninguém duvida seja a sentença absolutória ato decisório de mérito, porquanto incide sobre a pretensão punitiva.

Fenech, após dizer que sentenças absolutórias são "aquellas que desestiman la pretensión o pretensiones deducidas por las partes acusadoras", divide-as em dois grandes grupos: processuais e materiais, definindo estas como sendo "las que resuelven sobre elfondo delproceso; es decir, sobre el objeto del mismo, decidiendo la no actuación de la pretensión punitiva y la de resarcimiento, en su caso, deducidas por las partes acusadoras" (Derecho, cit., v. 2, p. 240 e s.).

Ettore Dosi, após dizer que o acusado se desvincula da pretensão punitiva com a absolvição, afirma ser absolutória a sentença que julga a "estinzione del reato" (apud Frederico Marques, Elementos, cit., v. 3, p. 35, nota 1),Na verdade, o ato decisório que incide sobre a pretensão punitiva para declará-la extinta insere-se entre aqueles que se rotulam absolutórios, 14 posto que a função da sentença é a decisão sobre o objeto do processo, es decir, de la actuación o denegación de la pretensión punitiva... " (Fenech, Derecho, cit., p. 242).

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Por isso mesmo, o art. 439 do CPPM brasileiro dispõe:

"0 Conselho de Justiça absolverá o acusado, mencionando os motivos na parte expositiva da sentença, desde que reconheça:...........................................................................................f) estar extinta a punibilidade".

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Não se compreende, pois, que, no mesmo ordenamento jurídico, o ato jurisdicional, reconhecendo extinta a punibilidade, qualifique-se como sentença absolutória, tal como ocorre no CPPM brasileiro, e como interlocutória simples, no Processo Penal Comum, como pretendeu a Excelsa Corte.. 1 0 fato de o nosso CPP não haver ar-rolado a "extinção da punibilidade"entre as causas que podem levar o Juiz a proferir sentença absolutórianão apresenta nenhum significado especial, levando-se em conta que onosso diploma legal já passou dos 50 anos...Por isso mesmo, a doutrina, inconformada com a citada exclusão, outro caminho não teve senão qualificar as decisões que decretam extinta a punibilidade como terminativas de mérito (cf. José Frederico Mar-1) ques, Elementos, cit., v. 3, p. 53).

Observe-se, ainda, que o anteprojeto de Código de Processo Penal de autoria do mestre Tornaghi, no art. 357, VIII, dizia: "0 Juiz absolverã o acusado... desde que reconheça... estar extinta a punibilidade".0 mencionado diploma serviu até de inspiração - e profunda inspiração - aos elaboradores do CPPM (Dec.-Iei ri. 1.002, de 21-10-1969).

Ademais, no anteprojeto de Código de Processo Penal, ora em estudo, assim dispõe o art. 264:

"Far-se-á o julgamento antecipado da causa:

. .11 - quando estiver extinta a punibilidade".

Logo, a sentença que reconhece extinta a punibilidade é de mérito e, por isso mesmo, faz coisa julgada material (veja-se, no particular, Ada Pellegrini Grinover, As condições, cit., p. 76).

Na Justiça Militar, uma vez julgada extinta a punibilidadepela morte do agente, ou, por outra qualquer causa, preclusas as vias impugnativas, tollitur quaestio... E, no caso particular de morte do agente, ainda que

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se comprove, posteriormente, a falsidade da certidão de óbito, o processo não se vivificará, uma vez que, na Justiça Militar, também não se admite a revisão pro societate (cf. CPPM, art. 55 1).

Por que razão charadística, no Processo Penal Comum, em caso análogo, permitir-se-Ia a reabertura do processo? Apenas porque o art. 386 do CPP não inclui no rol das causas que autorizam a absolvição a extinção da punibilidade? Apenas porque o CPP não admitiu o recurso de apelêção contra a decisão que a decreta? Por esse motivo a sentença que reconhece extinta a punibilidade deixa de fazer coisa julgada material? Porventura o CPP previu recurso de apelo para a decisão que absolve o réu sumariamente, nos termos do art. 411 ? E, pelo fato de não o ter previsto e admitido, deixa ela de

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ser decisão de mérito? Julgando extinta a punibilidade, não está o Juiz desacolhendo a pretensão deduzida? E, quando ele assim procede, não profere decisão de mérito? E as decisões de mérito, uma vez preclusas as vias impugnativas, não fazem coisa julgada material? A resposta afirmativa às três últimas indagações se impoe.Assim, entendemos que, uma vez decretada a extinção da punibilidade pela morte do agente - e preclusas as vias impugnativas -, comprovando-se, mais tarde, a falsidade da certidão de óbito, restará à Justiça rebelar-se contra quem a falsificou bem como contra quem dela fez uso... Nunca, porém, reabrir o processo, permitindo-lhe o prosseguimento, por implicar verdadeira revisão pro societate, vedada pelo nosso Direito.Observe-se que no Direito italiano permite-se o andamento do feito. Mas... lá existe dispositivo expresso.Sobre a matéria, podem ser consultados os seguintes trabalhos: José Frederico Marques (Elementos, cit., v. 3, n. 603 e 605); Ada Pellegrini Grinover (As condições, cit., p. 74); D. Evangelista de Jesus (Código de Processo Penal anotado, Saraiva, 1980, p. 62); F. M. Xavier de Albuquerque (Conceito de mérito, in Estudos de direito e processo penal em homenagem a Nélson Hungria, Forense, 1962, p. 302); Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 35/284; RT, 476/396, 475/293; RV, 93!986.

6. Anistia, graça e indulto

Agregados no iric. 11 do art. 107 do CP estão a anistia, a graça e o indulto como causas extintivas da punibilidade.

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7. Anistia

Anistiar, diz Pontes de Miranda, é apagar da lembrança, esquecerse do que ocorreu, ou, como diz Maggiore, a anistia é uma abolitio in praeteritum.

0 Estado, atendendo a razões de natureza político-sociais, pode deixar de considerar como crimes determinados fatos praticados durante a vigência de uma lei que incriminava aqueles mesmos fatos. Equivale a anistia, portanto, à novatio legis. A anistia é concedida por lei, lei que é retroativa. Ela recua à época do fato delituoso e sobre ele dispõe de maneira diferente das disposições então vigorantes. Razão tem Frederico Marques quando salienta que a anistia é uma verdadeira revogação hic et nunc da lei penal.

Caracteres~, , oA)Sendo a anistia a revogação parcial da lei penal, e se esta foi~â- elaborada pelo Poder Legislativo, segue-se que somente esse Poder éque pode revogá-la, ainda que parcialmente; vale dizer, compete exclusivamente ao Poder Legislativo conceder anistia.

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Todavia, entre nós, ao tempo do Império, só o Soberano podia concedêIa (cf. Constituição Imperial, art. 101, IX). De 1891 para cá, sua concessão tem sido privativa do Congresso Nacional. Após o movimento político de 1964, embora o Legislativo fosse o Poder anistiante, quando se tratasse de crime político, a iniciativa era da alçada do Executivo, ouvido o Conselho de Segurança Nacional. Agora, na plenitude democrática, o poder de anistiar voltou, integralmente, ao Congresso Nacional (CF, art. 48, VIII).

No ireito ances a anistia e exclusiva do Legislativo, pois o art. 19 da Constituição de 13-10-1946 diz que "Uamnistie ne peut être accordée que par une loi", e, por seu turno, o art. 13 da mesma Carta frisa que a lei é elaborada pelo Congresso. No Direito italiano a anistia só pode ser concedida pelo Presidente da República, nos termos do art. 79 da nova Constituição republicana.

B)A anistia refere-se aos delitos de natureza política, pois têm tal colorido as razões que a inspiram. Entretanto, nada obsta possa ser estendida a fatos de outra natureza. Outra não é a lição do insigne Frederico Marques: a anistia é reservada principalmente para fatos de caráter político.

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Nada impede, no entanto, que também tenha por objetivo crimes comuns (cf. Frederico Marques, Elementos, cit., p. 433). A mesma lição é dada por Soler: "... nada impide constitucionalmente la amnistia de hechos de otra naturaleza" (Sebastian Soler, Derecho, cit., p. 509).

De observar, entretanto, que a Constituição de outubro de 1988 fixou o princípio, a ser observado pela lei anistiante, no sentido de queesta con *d afiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia

i erara crimes in. ~á 1a pr . à da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos (CF, art. 5.', XLIII).

Insta esclarecer, contudo, que "a prática da tortura" não estava prevista como crime autônomo, mas como qualificadora, no homicídio doloso (CP, art. 121, § 2.', 111), e como agravante (CP, art. 61, 11, d). A tortura é o suplício, é o tormento, "ajudiaria, a exasperação do sofrimento da vítima por atos de inútil crueldade". Em 25-7-1990, foi publicada a Lei n. 8.072, estabelecendo que os crimes hediondos (definidos no seu art. L'), a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins são insuscetíveis de anistia, graça e indulto, bem como da fiança e da liberdade provisória. No verbete graça e indulto há outras observações. Contudo, em 7-4-1997, foi promulgada a Lei n. 9.455/97, definindo o crime de tortura.

C) A anistia pode ser concedida antes ou depois da condenação. Se concedida antes da propositura da ação penal, esta não poderá ser promovida, porquanto extinta está a punibilidade; se no curso da ação, trancar-se-a a relação processual; se depois de proferida sentença condenatóri a, a condenação cessará, com todos os seus efeitos, exceto a reparação do dano ex delicto, salvo se o próprio Estado

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chamar a si o encargo do ressarcimento. Se os réus estiverem cumprindo pena, serão postos em liberdade e, se forem primários, continuarão primários.

Daí a distinção que alguns autores fazem entre anistia própria e anistia imprópria. Se antes da condenação, temos a anistia própria; se depois, a anistia imprópria (cf. G. Maggiore, Derecho, cit., p. 359). A propósito, ensina Donnedieu de Vabres:

"U amnistie intervient dans deux s6ries d'hypoth6ses, soil aussit6t apr6s la commission de I'acte d6lictueux, elle 6teint alors les poursuites, soil post6rieurement h la condamnation qu'elle efface" (Donnedieu de Vabres, Traiti, cit., p. 550, n. 977).

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0 estatuto processual penal pátrio, em um único dispositivo, fala sobre anistia. É o art. 742, verbis:

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"Concedida a anistia após transitar em julgado a sentença conderiatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado, do Ministério Público ou por iniciativa do Conselho Penitenciário, declarará extinta a pena".

Parecerá, assim, que a anistia só poderá ser concedida depois de proferida a sentença conderiatória. É de convir, entretanto, que a Carta Magna de 1988, cuidando da anistia, proclama no art. 48, VIII, competir ao Congresso Nacional, com sanção presidencial, a concessão de anistia. Dizendo a Magna Carta competir ao Congresso Nacional conceder anistia, nada mais fez o legislador senão manter a abolitio in praeteritum em suas linhas estruturais, com suas características, de acordo com a tradição de nosso Direito. Ora, entre nós, nunca se pretendeu exigir o trânsito em julgado da sentença condenatória para a concessão da anistia.

Aliás, o art. 187 da Lei de Execução Penal (Lei ri. 7.210, de 11-71984) dissipa qualquer dúvida:

"Concedida a anistia, o juiz, de ofício, a requerimento do interessado ou do Ministério Público, por proposta da autoridade administrativa ou do Conselho Penitenciário, declarará extinta a punibilidade".

D) Outro caráter da anistia é a generalidade. Tal expressão, entretanto, como observa Soler, tem duplo sentido, porque pode referir-se a uma pluralidade de fatos, como quando se anistiam delitos políticos e os comuns que lhes forem conexos. Mas o que lhe concede o caráter típico de generalidade é a circunstância de referir-se, impessoalmente, ao fato ou fatos anistiados, de maneira que ficarão

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impunes os seus autores, "sean éstos conocidos o no" (cf. Sebastian Soler, Derecho, cit., p. 509). Ou, como diz Ranelletti, é uma providência política coletiva.

Divisão

A anistia pode ser geral e parcial. A regra é que a lei anistiante se estende a todos os implicados. Diz-se, então, que a anistia é geral. Nada

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8. Graça e indulto

impede, entretanto, que algumas pessoas possam ser excluídas. Haverá, porém, necessidade de essa exclusão ser expressa. A lei que conceder a anistia deve salientar a exclusão, pois, no seu silêncio, tornar-se-á extensiva a todos aqueles que participaram do crime. Embora medida por excelência objetiva, "no sentido de aplicada a fatos e não a indivíduos", pode acontecer, porém, que, em alguns casos, a condição pessoal do agente ou outras circunstâncias peculiares influam na concessão do favor (c4rederico Marques, Elementos, cit., p. 433). Por seu turno, pontifica Soler: "... isto não significa que as leis de anistia possam, com generalidade, excluir de seus benefícios determinadas categorias de sujeitos, como os reincidentes etc." (cf. Sebastian Soler, Derecho, cit., p. 50 e 5 10). E Donnedieu de Vabres arremata: A anistia tem um caráter geral. "Mais ce n'est pas une règle absolue" (Traité,.cit., p. 522, n. 981).

Quando houver tal exclusão, diz-se que a anistia é parcial.

Fala-se, também, em anistia irrestrita ou lin-iÁtada. A primeira, quando "inclui todos os delitos relacionados com o crime principal". A segunda, quando se excluem alguns delitos.

Maggiore acena para a possibilidade de ser condicional a anistia "sin embargo puede ser sometida a condiciones y a obligaciones, en cuyo caso la condición vale como causa suspensiva" (cf. Maggiore, Derecho, cit., v. 3, p. 360).

A anistia pode ser recusada? Concedida a anistia, o beneficiário não pode, em caso algum, recusá-la. A anistia produzirá seus efeitos mesmo contra a vontade do beneficiado, salvo se se tratar de anistia condicional.

A anistia abrange a medida de segurança? A medida de segurança não é um meio aflitivo, não e pena, mas medida de preservação social e até mesmo de reeducação e de tratamento. Ora, se a anistia visa a cobrir com o véu do esquecimento determinados fatos, é evidente que a própria medida de segurança não poderá ser excluída. Além disso, veja-se, muito a propósito, o parágrafo único do art. 96 do CR

Graça e indulto são, como a anistia, medidas de clemência. Representam ambas o jus gratiandi, atribuído ao Presidente da República.

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Justificam-se, como preleciona Maggiore, como medida eqüitativa "enderezada a suavisar Ia aspereza de Iajusticia (supplementumjustitiae)", quando particulares circunstâncias políticas, econômicas e sociais fariam esse rigor aberrante e iníquo (Maggiore, Derecho, cit., p. 357).Distinguem-se da anistia: a) quanto ao poder de que emanam: a anistia só pode ser concedida pelo Congresso Nacional; a graça e o indulto são da exclusiva competência do Presidente da República; b) quanto ao momento processual: a anistia pode ser concedida antes ou depois da condenação; a graça e o indulto, entretanto, pressupõem sentença condenatória com trânsito em julgado; c) finalmente, quanto aos seus efeitos: enquanto a anistia apaga, por completo, o fato e suas conseqüências penais, ressalvando-se apenas à vítima o direito de pleitear o ressarcimento do dano resultante do crime, uma vez que o Estado não pode renunciar a um direito que lhe não pertence, a graça e o indulto atingem somente os efeitos executorios penais da condenação. "Todos os demais ficam de pé. 0 status poenalis do condenado não desaparece, nem seus consectários legais. Os efeitos civis da sentença condenatória continuam íntegros" (cf. Frederico Marques, Curso, cit., p. 435).

Por derradeiro: a anistia, em regra, atinge os crimes políticos; a graça, também chamada de indulto particular, e o indulto, propriamente dito, os delitos comuns.Por outro lado, o indulto se distingue da graça. Há, em verdade, entre ambos os institutos, grandes semelhanças em virtude de seus pontos de contato. Assim, graça e indulto são concedidos exclusivamente pelo Presidente da República; graça e indulto dizem respeito exclusivamente a infrações comuns; ambos pressupõem a condenação; ambos são causas extintivas da punibilidade. Sem embargo dessa semelhança, distinguem-se nitidamente, e o traço diferencial entre ambos repousa na circunstância de que a graça é individual, e o indulto, coletivo.

Aliás, nossa legislação atual nem usa mais a expressão "graça", mas "indulto individual", enquanto o indulto propriamente dito passou a ser chamado "indulto coletivo" (cf. Lei de Execução Penal, arts. 188 e 193).

0 indulto e a graça extinguem, também, as medidas de segurança? Se o decreto silenciar a respeito, quer-nos parecer que a resposta afirmativa se impõe, em face dos termos do parágrafo único do art.

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96 do CP: "Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta". No que respeita ao indulto, normalmente o decreto condiciona o benefício à cessação da periculosidade.

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Malgrado os termos da lei, semelhantes aos do art. 86 da legislação anterior, há entendimento no sentido de que a graça ou indulto não alcança as medidas de segurança. Como bem dizia Anibal Bruno, para que isso fosse possível, seria necessário admitir que o ato do Poder Executivo pudesse ter a virtude de fazer cessar o estado perigoso do agente (cf. Direito, cit., v. 3, p. 203). Se a medida de segurança não e pena "por falta que se possa perdoar", mas verdadeiro tratamento, parece-no^vio que, nesses casos, não se concebe indulto ou graça. Nesse mesmo sentido, vejam-se as lições de Manzini (Trattato, cit., v. 2, p. 408) e De Marsico (R Codice Penale, de Ugo Conti, v. 1, p. 896). Há, entretanto, quem assim não entenda, partindo do princípio de que medida de segurança é pena.

E quanto àqueles efeitos específicos a que se refere o art. 92 doCP? 0 art. 738 do CPP fala da "extinção da pena ou penas referin-

do-se, obviamente, às acessórias. Como estas desapareceram com estenomenjuris, o art. 192 da Lei de Execução Penal refere-se, tão-somente, à "extinção da pena". Na verdade, o certo é que elas não desapareceram propriamente do nosso ordenamento repressivo, mas se ocultaramsob a denominação de efeitos específicos da condenação... Não sumiram. Pelo contrário, voltaram mais severamente.

Por essas razões, entendemos que, se o decreto não se referir a tais efeitos, eles perdurarão. Quandoaqueles efeitoseram denominados penas acessori . as, Ambal Bruno dizia: "... se o decreto silenciar a respeito, elas permanecem_" (cf. Direito, cit., p. 203). Basileu divergia (cf. Instituições, cit., p. 671). Aliás, muito expressivo aquele v. aresto da Suprema Corte publicado na RV, 42/706: "Fixando o respectivo decreto os seus exatos limites, não abrange o mesmo a pena acessória da perda da função pública".

A graça e o indulto pressupõem necessariamente sentença condenatória com trânsito em julgado? Sim. 0 CPP, no capítulo pertinente às formas de extinção da punibilidade, fala em "condenado", e tal denominação se dá ao sujeito passivo dojuspunitionis; vale dizer, após a sentença condenatória irrecorrível, o réu recebe a denominação de condenado. Assim também os arts. 188 e 193 da Lei de Execução Penal. Todavia há casos extravagantes de concessão de indulto antes de a sentença transitar em julgado. Nesses casos, como se proceder? Deve o

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1

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Tribunal apreciar o recurso, pois, do contrário, estaria sendo violado o princípio da ampla defesa a que se refere a Magna Carta. É que, extinta a punibilidade pelo indulto coletivo ou particular, fica somente anulada a pena imposta. Os demais consectários lógicos da condenação permanecem íntegros. Assim, bem poderá o réu lograr êxito na superior instância, sendo afinal absolvido, e, nesse caso, como é óbvio, as vantagens serão bem maiores. 0 STF já teve oportunidade de, apreciando habeas corpus, acolher a tese do impetrante que fora indultado quando já havia interposto embargos infringentes e o Tribunal se recusara a apreciá-lo (cf. RTJ, 51/422).

Para a concessão do indulto ou graça, o Presidente da República poderá ouvir, ou deixar de ouvir, os órgãos instituídos em lei. Ouvilos-á, se necessário, como se vê no inc. XII do art. 84 da Magna Carta.

Outra autoridade poderá conceder indulto? Somente o Presidente da República. Todavia poderá ele delegar poderes a Ministros de Estado ou a outras autoridades para concedê-lo, observados os limites da delegação, tudo nos termos do parágrafo único do art. 84 da Carta Magna.0 indulto, modalidade da indulgentia principis, é o ato de clemência "em virtude do qual ficam isentas de pena todas as pessoas que, dentro de determinada época, praticaram crimes, em regra os de menor gravidade".A Lei de Execução Penal, no art. 193, cuida do indulto coletivo:

"Se o sentenciado for beneficiado por indulto coletivo, o juiz, de ofício, a requerimento do interessado, do Ministério Público, ou por iniciativa do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, providenciará de acordo com o disposto no artigo anterior".

E o art. 192, cuja remissão é feita pelo art. 193, dispõe:

"Concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, no caso de comutação".

E possível, assim, a redução ou comutação da pena. Aliás, o art84, XII, da Magna Carta fala em "conceder indulto e comutar penas", numa demonstração evidente de que o Presidente da República tanto pode indultar como simplesmente comutara pena. Na primeira hipóte-

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se, há uma causa extintiva da punibilidade. Na segunda, apenas uma diminuição da pena.

Daí falar-se em indulto total ou parcial. A comutação tanto pode ocorrer no indulto coletivo como no individual.

A graça, em sentido estrito, é tão velha quanto o crime. Data dos albores da civilização. É uma indulgentia specialis. A graça e o indulto, conforme ponderação de Frederico Marques, precisam ser

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usados com parcinifInia e bom-senso para que se não desfigurem o seu sentido e seus objetivos. De fato, ojus gratiandi dá ao Chefe de Estado um poder exorbitante. A manifestação de vontade de um só homem, pondera Vabres, paralisa as decisões dos mais elevados Tribunais: "ainsi convient il Xenfermer dans les plus strictes limites Vexercise de clémence" (cf. Donnedieu de Vabres, Traité, cit., p. 544).

Como se processa o pedido de graça90 indulto individual, ou graça, poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa.

A petição de indulto individual, acompanhada dos documentos que a instruírem, será entregue ao Conselho Penitenciário, para a elaboração de parecer e posterior encaminhamento ao Ministério da Justiça.

0 Conselho Penitenciário, à vista dos autos do processo e do prontuário, promoverá as diligências que entender necessárias e fará, em relatório, a narração do ilícito penal e dos fundamentos da sentença conderiatória, a exposição dos antecedentes do condenado e do procedimento deste depois da prisão, emitindo seu parecer sobre o mérito do pedido e esclarecendo qualquer formalidade ou circunstâncias omitidas na petição.

Processada no Ministério da Justiça com documentos e o relatório do Conselho Penitenciário, a petição será submetida a despacho do Presidente da República, a quem serão presentes os autos do processo ou a certidão de qualquer das peças, se ele o determinar.

0 indulto individual ou coletivo pode ser recusado? Não nos parece. Salvo a hipótese de o decreto exigir alguma condição, caso em que é lícito ao condenado recusá-la.

E possível o indulto antes do trânsito em julgado da sentença condenatória? Há numerosos julgados autorizando o benefício, mesmo que

543

o processo esteja em grau de apelação e, mais ainda, sem que tal providência impeça o conhecimento do apelo. Nesse sentido, os julgados citados por Mirabete: RT, 178/610, 180/567, 314155, 316143, 318/294, 4331471, 439/322, 461/427; RV, 561539, 66/58. Contra: RT, 372/157, 341/147; RV, 63/39.

Parece-nos, entretanto, bem ponderada a observação de Mirabete, no Sentido de que o normal será aguardar-se o trânsito em julgado (cf. Manual de direito penal, v. 1, p. 373).

Se o réu estiver no gozo do sursis, poderá ser beneficiado com o indulto? Evidente que, sendo o indulto mais benéfico que o sursis, deverá ser aplicado. Nesse sentido, RT, 5071436.

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E se o réu for condenado por duas infrações, mesmo em processos distintos, podem as penas ser somadas para efeito do indulto? 0 STF.0respondeu afirmativamente, nesses termos: "Ainda que o réu seja tecnicamente primário, somam-se as penas a que foi condenado para verifi., Pcar-se se elas estão aquém ou além do limite previsto para a concessão do indulto" (cf. RV, 93/109). Salvo, lógico, se houver qualquer restri-0' ção no decreto.1..A graça pode ser recusada? Depende. Se a indulgentia principis extinguir ou reduzir a pena aplicada, não será possível a recusa, pois o art. 192 da Lei de Execução Penal a prevê, às expressas, na hipótese de comutação, isto é, quando houver substituição de pena.

. N Poderá o Presidente da República conceder a graça ao condenado

. 1por crime de ação privada? A mim me parece que sim. De fato. 0 Estado outorgou tão-somente ao particular ojus persequendi in judicio, isto é, o direito de promover a ação penal para punir seu ofensor. Proferida a sen-1 !,~ tença condenatória e transitada esta em julgado, o Estado, então, assumesua posição de titular exclusivo dojus punitionis, não mais se admitindoa interferência do ofendido. E já agora, se o Estado entender não ser aconselhável executar o decreto condenatório, poderá, então, perdoar o culpado, agraciando-o. Antes de transitar em julgado a sentença condenatória,

só o ofendido ou seu representante legal é que pode perdoar o ofensor,vale dizer, o querelado. Tomando-se irrecorrível a decisão condenatória,só o Estado é que pode usar do poder de clemência, concedendo a graça."0 contrário importaria considerar mais respeitável a ofensa ao indivíduodo que à sociedade, pois que, nos crimes de ação pública, o imperativo dagraça se sobrepõe aos melindres da comunidade."

544

Observe-se, por outro lado, que a Lei ri. 8.072, de 25-7-1990, estabeleceu, no seu art. 2.', que os crimes hediondos (latrocínio - art. 157, § 10, in fine; extorsão qualificada pela morte - art. 158, § 2."; extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada - art. 159, caput e seus §§ 1.', 2.0 e 3.0; estupro - art. 213, caput, c/c o art. 223, caput e parágrafo único; atentado violento ao pudor - art. 214, c/c o art. 223, caput e seu parágrafo único; epidemia com resultado morte - art. 267, § 1.0; eoenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte - art. 270 c/c o art. 285, todos do CP, e o crime de genocídio - arts. 1.', 2.' e 3.0 da Lei ri. 2.889, de L'-101956), a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de anistia, graça, indulto, fiança e liberdade provisória.

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Já a Constituição Federal, no seu art. 5.', XLIII, estabeleceu que "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos". Nada falou sobre indulto e liberdade provisória. Foi a lei ordinária que estendeu a restrição constitucional a tais infrações. Quanto ao indulto, embora sua concessão caiba ao Presidente da República, nos termos da Constituição

Federal (art. 84, XII), nem por isso se poderá acoimar a lei ordinária de Ínconstitucional, mesmo porque a lei foi elaborada tal como estava no Projeto do Executivo. No entanto, negar a liberdade provisória, sem maior exame do caso, nos parece de duvidosa constitucionalidade, em face do princípio da inocência.

9. "Abolitio criminis"

Nos termos do art. 107 do CP, extingue-se a punibilidade pela retroatividade de lei que não mais considera o fato como criminoso. É a abolitio criminis.

No Direito pátrio vigora o princípio da "não-retroatividade" com certa mitigação, isto é, se a lei posterior beneficiar o réu, retroagirá retroatividade in melius; se mais gravosa for, não retroagirá "irretroatividade in pejus". 0 art. 107, 111, completa-se com o art. 2.0 do mesmo estatuto: "Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória".

545

Se a lei nova deixa de incriminar determinado fato, que era incrin-iinado pela lei anterior, vigorará o princípio da retroatividade, com as seguintes conseqüências: a) se o processo não foi instaurado, não poderá mais sêlo; b) se o processo estiver em andamento, trancar-se-á a relação processual; c) se o réu já estiver cumprindo pena, voltará à liberdade, não valendo aquela condenação para tirar-lhe a primariedade; enfim, cessam a execução e os efeitos penais da sentença conderiatória. Subsistem, apenas, os efeitos civis.

10. Prescrição, decadência e perempção

J.0

11i.Dos acontecimentos naturais ordinários, o que maior influência exerce nas relações jurídicas é, sem sombra de dúvida, o tempo.

0 decurso do tempo projetado sobre o Direito Penal objetiva-se em três institutos: a prescrição, a decadência e a perempção.

11. Prescrição

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Prescrição é, na lição de Haus, meio de se liberar das consequencias de uma infração pelo efeito do tempo fixado e sob as condições determinadas pela lei. Ela põe fim à ação ou à pena.

Seu fundamento repousa na circunstância de que a ação do tempo faz desaparecer o interesse do Estado, não só em constatar a infração como, também, em executar a pena imposta.Na irrepreensível lição de Frederico Marques, a prescrição penal é a perda do direito de punir pelo não-uso da pretensão punitiva durante certo espaço de tempo (cf. Curso, cit., 1956, p. 412).0 legislador fixa um prazo dentro no qual o Estado deve exercer sua pretensão punitiva ou sua pretensão executória. Se não o fizer, ojus persequendi injudicio ou ojus punitionis se extingue, desaparece, dan~ do lugar àquilo que os franceses chamam de 'Textinction d'un droit par écoulement de temps".Convém lembrar, de logo, que a prescrição tanto ocorre antes de ser proposta a ação como durante o seu curso (e, então, teremos a prescrição da pretensão punitiva) e até mesmo depois de transitar em julgado a sentença condenatória (prescrição da pretensão executória).

Das duas primeiras hipóteses trata o art. 109 do CP, sob a fórmula '&prescrição antes de transitar em julgado a sentença final". Neste dispo-

546

11

sitivo, o legislador fixou os prazos dentro nos quais deve ser exercido o jus puniendi, sob pena de extinguir-se o poder-dever de punir.

Leva-se em consideração, para a fixação do prazo prescricional, o máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime. Assim, se o máximo da pena privativa de liberdade for superior a 12, a prescrição ocorrerá em 20 anos; se superior a 8 e não exceder a 12, a prescrição ocorrer 1 em 16 anos; se for superior a 4 e não exceder a 8, ocorrerá a presc ~w em 12 anos; se superior a 2 e não exceder a 4, ocorrerá a prescrição em 8 anos; se o máximo da pena for igual a 1 ano, ou, sendo superior, não exceder a 2, verificar-se-á a prescrição em 4 anos; e, finalmente, se o máximo da pena for inferior a 1 ano, dar-se-á a prescrição em 2 anos.

Conhecidos os prazos, resta-nos saber seu momento inicial.

Disciplina a matéria o art. 111 do CP, in verbis:

"A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr: 1 - do dia em que o crime se consumou; 11 - no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa; 111 - nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência; IV - nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido".

Pomos exemplo: Se Tício, em janeiro de 1965, praticou o delito previsto no art. 129, caput, do CP (lesão corporal leve), contra ele não mais poderá o Estado exercer o seu jus persequendi. Não mais

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poderá ser instaurado inquérito. Tampouco poderá ser instaurada a relação processual. Se a pena maxima cominada àquele crime é de 1 ano de detenção, a prescriçao ocorrera em 4 anos, nos termos do art. 109, V, do estatuto repressivo. Desse modo, uma vez que o crime se consumou em 1965, expirou-se o prazo para o exercício dojus persequendi em 1969. De há muito, pois, estava extinta a punibilidade.

Evidente que, para se saber qual a pena máxima, dever-se-á atentar para as causas de aumento ou diminuiçao compulsórias. Não assim, se se tratar de crime continuado ou de concurso formal. A propósito, Basileu Garcia, Instituições, cit., 3. ed., 1956, p. 700, com os aplausos de Frederico Marques (Curso, cit., p. 417).

547

Quanto ao crime continuado, existe até súmula. A de ri. 497 proclama: "Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação".Insta acentuar que o prazo prescricional está sujeito a interrupções. Quando ocorre uma causa interruptiva do lapso prescricional, este recomeça ex novo et ex integro, isto é, renasce por inteiro, como se houvesse tido início no instante em que surgiu a causa interruptora, nos termos do art. 117, § 1% do CP.

Que causas podem determinar a interrupção da prescrição? A propósito, o art. 117 do mesmo Codex:

1!

a) recebimento da denúncia ou queixa; b) pronúncia;.0~,, h c) decisão confirmatória da pronúncia;1.,d) sentença condenatória recorrível;e) início ou continuação do cumprimento da pena;f) reincidência., SI Exemplificando: SeX houvesse violado o disposto no arl 155, caput,do CP a 5-1-1988, a 4-1-1996 teria ocorrido a prescrição, se não houvesse sido intentada, até então, a ação penal. De fato. Se a pena máximapara o furto simples é de 4 anos, o prazo prescricional. é aquele indicado1 1 no art. 109, IV, do mesmo estatuto: 8 anos. Esse prazo começou a fluirda data da consumação do delito (CP, art. 111, a) - 5-1-1988, e seexpirou a 4-1-1996. Entretanto, se o Promotor, em 1994, houvesse oferecidodenúncia, a prescrição, que já estava iminente, seria interrompida com o..,

despacho de recebimento daquela peça acusatória, e, a partir de então, o.1.1 prazo prescricíonal (8 anos) passaria a fluir ex novo et ex integro.

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Registre-se que esse novo prazo pode sofrer novas interrupções, consoante dispõe o art. 117 já citado.

Além das causas interruptivas da prescrição, há, também, as impeditivas, isto é, aquelas que originam a suspensão do curso prescricional.iDisciplinando a matéria, assim dispõe o art. 116 do CP:

não corre:

548

"Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição

1 - enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime;

11 - enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro.

Parágrafo único. Depois de passada em julgado a sentença conderiatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo".

A primeira hipótese refere-se às questões prejudiciais (CPP, arts. 92 a 94). Suscitada a questão prejudicial, estando iminente a prescrição, poderijVa solução daquela retardar a decisão da causa principal, e esse retardamento poderia ensejar a prescrição.

Suponha-se que X esteja sendo processado pelo crime de bigamia. Faltam apenas 6 meses para ocorrer a prescrição. 0 réu alegou que seu primeiro casamento era nulo e, desse modo, não podia estar sendo processado por aquele delito, em face do disposto no § 2.' do art. 235 do CR 0 Juiz reputou a alegação séria e fundada e remeteu as partes para o cível, a fim de discutirem sobre a invalidade do primeiro matrimônio. 0 curso da ação penal, é óbvio, ficou paralisado. Ora, se tal fato não determinasse a suspensão do curso prescricional, sérios prejuízos seriam acarretados à administração dajustiça, e, por outro lado, abrir-se-ia uma válvula à impunidade.

A segunda causa impeditiva encontra seu fundamento na impossibilidade de obter-se a extradição do criminoso.

Por último, a hipótese tratada no parágrafo único do art. 116: Transitada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo. Suponha-se Tício cumprindo pena de reclusão de 6 anos. Já havia cumprido 1 ano quando surgiu nova condenação com trânsito em julgado pelo delito de rixa: 2 meses de detenção. A prescrição por este crime não corre enquanto o réu estiver preso por aquele outro crime. Depois de cumprida aquela pena, cumprirá a outra.Suspensão também haverá nas seguintes hipóteses: a) Quando a Câmara ou o Senado indeferir pedido formulado para processar o Deputado federal ou Senador, ou simplesmente não deliberar a

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respeito, o prazo prescricional fica suspenso enquanto durar o mandato, nos termos do § 2." do art. 53 da Lei Maior. E quanto aos Deputados estaduais? A solução é a mesma, em face do princípio da simetria exposto no § U' do art. 27 da Lei Maior. b) Quando o réu for citado por edital, não atender ao chamamento nem constituir advogado, além de o processo-crime ficar paralisado (salvo, a critério do Juiz, quanto às provas de natureza

549

110 J1JÉ *'à

urgente), o curso da prescrição também ficará suspenso, à dicção do art.

366 do CPP. c) Suspenso também ficará o prazo prescricional se o réu,

no estrangeiro (e não em legação com sede no Brasil), dever ser citado

por rogatória. Enquanto esta não voltar, devidamente cumprida, o prazo

prescricional fica suspenso, nos termos do art. 368 do CPP.A prescrição, por outro lado, verifica-se, também, depois de

transitar em . ulgado a sentença condenatória. Neste caso, fala-se em

prescrição dojuspunitionis, isto é, prescrição da pretensão executória.

Passada em julgado a sentença condenatória, já não há pretensão

punitiva,mas, sim, pretensão executória. A prescrição, aqui, atinge o

direito deaplicar a sançao imposta na sentença. Nesse caso, embora os prazossejam os mesmos do art. 109, não se considera a pena cominada, e

sima imposta, a aplicada, consoante determina o art. 110, caput, do

estatuto penal. Exemplificando: X foi condenado à pena de 3 meses de

detenção. Sem sursis, óbvio. Fugiu. Transitada em julgado a decisão

I#, ocondenatóri a, se o réu não for capturado dentro de 2 anos, já não

poderásê-lo, pois a pena imposta foi de 3 meses. Ora, quando a pena é

inferior. 1 ¥.0, a 1 ano, a prescriçao não ocorre em 2, tal como dispõe o art. 109, VI, do1, , CP? Então, decorridos 2 anos, extinto ficou o jus punitionis. É que aÇJ pena imposta, nestas hipóteses, é como se fora a cominada em grau1 ~~J máximo.De observar, contudo, que referidos prazos são aumentados de um terço se o condenado for reincidente.Ç

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Tratando-se de crime continuado, o Excelso Pretório já firmou o entendimento de que "a prescrição é regulada pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação" (cf. Súmula 497).

Quando começa a fluir o prazo da prescrição da pretensão executória? A rigor, deveria ser da data em que a sentença condenatória transitasse em julgado, tanto para a acusação como para a Defesa. Entretanto, transitando errijulgado apenas para a Acusação, não mais será possível qualquer alteração in pejus. Por essa razão, o art. 112 fala do trânsito em julgado para a Acusação. Mas, na verdade, quando se trata de prescrição da pena, ou da pretensão executória, não obstante o prazo comece a fluir do trânsito em julgado para a Acusação, o certo é que somente se poderá falar em verdadeira prescrição da pretensão executória quando houver trânsito em julgado também para a Defesa. E a observação se justifica:

L, 550

transitando em julgado apenas para a Acusação, poderá ocorrer a prescrição da pretensão punitiva na sua feição retroativa, como veremos mais adiante, em comentári os aos § § 1 .' e 2.' do art. 110 do CR

E se for concedido sursis? Expirado o seu prazo, aplicar-se-á o disposto no art. 82 do CR Mas, se a suspensão condicional da pena for revogada, o prazo a que se refere o art. 110 do CP começará a fluir da data d evogação. Diga-se o mesmo quanto ao livramento condicional, send~ue, nesta hipótese, a prescrição é regulada pelo tempo que restada pena (cf. CP, arts. 112, 1, e 113). Situação semelhante é a do condenado que se evadir (art. 113).

0 prazo da prescrição executória também é contado do dia em que se interrompe a execução, salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena (vejam-se, a propósito, CP, arts. 112, 11, e 113).

E se o réu for condenado exclusivamente à pena de multa? 0 art. 114 dispõe: "A prescrição opera-se em dois anos, quando a pena demulta é a única cominada, foi a única aplicada ou é a que ainda não foi cumprida".

0 legislador de 1940 cuidou, apenas, quanto à pena de multa, da prescrição da pretensão executória, uma vez que o anterior art. 114 falava em "multa imposta". Apesar disso, doutrina e jurisprudência entendiam, pacificamente, que, mesmo quando a multa fosse a única cominada, aplicava-se a regra do referido art. 114. Se a pena de multa fosse cominada ao crime (cumulativa ou alternativamente com pena privativa de liberdade), a prescrição não oferecia maior dificuldade, porquanto a ela se aplicava o disposto no art. 118 do CP: "As penas mais leves prescrevem com as penas mais graves

11

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Por que a omissão do legislador de 1940? 0 CP, em nenhum caso, comi na, isoladamente, a pena de multa. Ou esta é cominada cumulativamente com a pena de reclusão ou detenção, ou, então, alternativamente. Esta a razão que levou o legislador de então a não regular o prazo prescricional da multa antes da sentença condenatória. De ponderar, entretanto, que na Lei das Contravenções, em numerosos casos, é cominada, exclusivamente, a pena de multa. Quando se verificava uma dessas hipóteses, doutrina e jurisprudência entendiam, com justa razão, que seria um disparate admitir-se a imprescritibilidade da multa cominada. À míngua de disposiçao expressa, valiam-se da mesma regra do art. 114.

551

1 ,

Hoje o art. 114 do CP já não oferece perplexidade, em face da redação que lhe foi dada pela Lei ri. 9.268, de L'-4-1996: "Art. 114. A prescrição da pena de multa ocorrerá: 1 - em dois anos, quando a multa for a única cominada ou aplicada; 11 - no mesmo prazo estabelecido para prescrição da pena privativa de liberdade, quando a multa for alternativa ou cumulativamente cominada ou cumulativamente aplicada".

Assim, temos: a) Se a multa for a única pena cominada ou aplicada, prescreve em 2 anos, nos termos do inc. 1 do art. 114 do CR b) Se a pena de multa for alternativamente cominada, a prescrição se verifica dentro no mesmo prazo estabelecido para a respectiva pena restritiva de liberdade. Assim, por exemplo, a pena cominada para o crime de constrangimento ilegal (art. 146 do CP) é de detenção de 3 meses a 1 ano ou multa. Como a prescrição da pena restritiva de liberdade, aí, é de 4 anos (art. 109, V, do CP), a da multa se verifica no mesmo espaço-tempo. c) Se a pena de multa for aplicada cumulativamente com a pena restritiva de liberdade, seu prazo prescricional é o mesmo desta última. Aliás, essa regra já estava no art. 118 do diploma repressivo.

E qual o prazo prescricional da multa após sentença penal condenatória transitada em julgado? Nos termos do art. 51 do CP, com a redação dada pela Lei ri. 9.268/96, "Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando- se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição".

Para que se apliquem tais normas, urge, a nosso ver, seja a sentença condenatória, com a nota do trânsito einjulgado, remetida à Procuradoria-Geral do Estado, para os fins do § 3.' do art. 2." da Lei de Execução Fiscal (Lei ri. 6.830/80), isto é, para a inscrição da dívida, que cons: titui ato de controle administrativo e que ficará a cargo do órgão competente, no caso a Procuradoria do Estado. Haverá, pois,

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indeclinável necessidade do Termo de Inscrição da Dívida, com obediência ao § 5." do art. 2.' da citada lei. Somente a dívida ativa regularmente inscrita goza da presunção de certeza e liquidez, à dicção do art. 3.' do referido diploma. Note- se que a petição inicial será instruída com a certidão da dívida...

Dispõe o art. 25 da Lei ri. 6.830180 que qualquer intimação ao representante judicial da Fazenda Pública será feita pessoalmente, e, nos termos do art. 12 do CPC, cabe à Procuradoria do Estado representar, ativa e passivamente, o Estado. Logo, as intimações devem ser feitas à

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Procuradoria. Por outro lado, como o art. 174 do CTN estabelece que a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em 5 anos contados da data da sua constituição definitiva e que esse prazo se interrompe pela citação pessoal feita ao devedor, pelo protesto judicial, por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor ou por qualquer ato inequivoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor, temos que as causas de interrupção e suspensão da presct*ão da pena de multa, após o trânsito em julgado da sentença condenatória, deixaram de ser aquelas previstas nos arts. 116 e 117 do CP e passaram a ser as disciplinadas nos arts. 174 do CTN e 40 da Lei de Execução Fiscal, com a restrição apontada na RT, 666/191.Contudo, a nosso juízo, o prazo prescricional da pena de multa, mesmo após o trânsito em julgado da sentença conderiatória, continua sendo de 2 anos, tal como estabelece o art. 114 do CR Note-se que o art. 174 do CTN diz ser de 5 anos o prazo para a cobrança do crédito tributário, e, na hipótese, malgrado a aplicação da legislação relativa à cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, o certo é que se trata de crédito não tributário, pelo que, o prazo prescricional é o previsto na lei específica, salvo se houvesse disposição em contrário. Assim, por exemplo, a Lei ri. 8.18 1, de 28-3-199 1, que deu nova denominação à Empresa Brasileira de Turismo - Embratur, dispôs no seu art. 7.': "São extensivos à Embratur os privilégios processuais da Fazenda Pública, em especial os relativos à cobrança dos seus créditos, custas, prazos, prescrição e decadência".

Sem embargo, no Agravo em Execução ri. 1.036.425-1, a Colenda 11.' Câmara do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, em 9-12-1996, entendeu que o Ministério Público tem atribuições para proceder à execução da pena de multa perante o Juízo das Execuções Penais, "aplicando-se as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública". No mesmo sentido JTA CrimSP, 94/313. Cremos que haverá sérias dificuldades em se aplicar a legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública no Juízo das Execuções sem o termo da inscrição de dívida, cuj a natureza jurídica é o controle administrativo da legalidade. Se, consoante o art. 51 do CP, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, a multa "é considerada dívida de valor, aplic ando- se-lhe as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição", e como uma dessas normas consiste na inscrição da dívida na

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1

,1

Li 1

Procuradoria do Estado; se para a execução haverá necessidade de certidão dessa dívida ativa autenticada pela autoridade competente; se essa autoridade é da Procuradoria do Estado; se essa dívida ativa goza de presunção de liquidez e certeza, quando regularmente inscrita; se a inscrição se faz na Procuradoria do Estado e não no Cartório Criminal; se a competência para processar e julgar a dívida ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro Juízo, inclusive o da falência, da concordata, da insolvência e do inventário, a teor do art. 5.0 da citada lei, não nos parece possa o processo executório tramitar pelo Juízo das Execuções Penais, ou perante qualquer outro Juízo Criminal. Nem teria sentido a Procuradoria do Estado providenciar a inscrição e remetê-la ao Ministério Público. Não nos parece que o legislador houvesse pretendido, apenas, estender à multat,penal a atualização monetária, juros e multa de mora, a teor do § 2.' do art. 2.' do referido diploma. Se esse fosse o seu objetivo, outra seria a redação dada ao art. 51 do CR Contudo, pela sua praticidade, no Estado de São Paulo as execuções são feitas no Juízo das Execuções.E se se tratar de quase-crime, qual o prazo prescricional? Na lei anterior cominava-se medida de segurança. Antes da sentença, a prescrição ocorria em 2 anos. Não que houvesse disposição a respeito. Era criação doutrinária e pretoriana.0 Código Penal, nos arts. 17 e 3 1, cuida dos quase-crimes. A reforma penal deu-lhes, contudo, um tratamento diverso: impunibilidade. Tais condutas não serão punidas. Não há, sequer, medida de segurança.Redução dos prazos. São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 ou, na data da sentença, maior de 70 anos (CP, art. 115).E se o réu estiver preso provisoriamente, em razão de flagrante ou preventiva, deverá esse tempo ser descontado para efeito do cálculo do prazo prescricional? 0 CP, no art. 42, permite a detração penal. 0 art. 113 do mesmo estatuto, cuidando da hipótese de fuga do condenado, dispõe que a prescrição será calculada pelo tempo que resta da pena. Em face disso, não há razão séria que autorize uma resposta negativa. Deve ser feito o desconto. Nesse sentido, Delmanto (Código Penal ano- Mirabete (Manual, cit., v. 1, p. 391).tado, cit., 1986, p. 185),

12. Prescrição retroativa

Sempre se entendeu, de acordo com o antigo parágrafo único doart. 110 do CP, que a prescrição, depois de sentença condenatória de

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que somente o réu tinha recorrido, regulava-se pela pena imposta e verificava-se nos mesmos prazos fixados pelo art. 109. Assim, a prescrição na hipótese de lesão corporal leve ocorre em 4 anos (CP, art. 129, caput, c/c o art. 109, V, do mesmo diploma). Se houvesse condenação a 3 meses de detenção e apenas o réu apelasse da decisão, ante a impossibilidade de ser majorada a pena, esta equivaleria à pena máxima con-iinada ao crime de lesão corporal leve. Como a prescrição das penas inferiores a 1 ançote verifica em 2 (CP, art. 109, VI), na hipótese enfocada a prescrição da pretensão executória ocorreria em 2 anos, nos precisos termos do art. 110, parágrafo único, combinado com o art. 109, VI, ambos do CR

0 assunto, contudo, está hoje devidamente disciplinado pelos §§ 1." e 2." do art. 110 do CP. Proferida sentença condenatória, a prescrição será regulada pela pena imposta. Se não houver recurso da Acusação (Ministério Público, querelante, assistente de Acusação), poderá ocorrer a prescrição retroativa. Em que hipótese? Por primeiro é preciso ver qual a pena imposta. Digamos que a pena imposta foi de 3 meses. Logo, a prescrição ocorre em 2 anos. Visto isso, procura-se saber se entre a data do fato e a do recebimento da denúncia ou queixa medeou um lapso de tempo de 2 anos. Em caso positivo, teria ocorrido a prescriçao da pretensão punitiva. 0 raciocínio seria esse: como a pena de 3 meses equivale à pena máxima cominada e se a pena máxima cominada de 3 meses tem a prescrição regulada no art. 109, VI, do CP (2 anos), logo, se o fato ocorreu no dia 31-12-1982 e a denúncia foi recebida no dia 3 112-1984, quando o Juiz recebeu a denúncia estava extinta a punibilidade...

Pode acontecer que entre a data do fato e a do recebimento da denuncia ou queixa não houvesse ocorrido um lapso de tempo de 2 anos, mas... entre a data do recebimento da peça acusatória e a sentença condenatória recorrível, sim. Pouco importa. Haveria, também, a prescrição da pretensão punitiva retroativa, isto é, o prazo seria contado da frente para trás.

Outra coisa: não se trata, como anteriormente, de prescrição da pretensão executória, isto é, da pena, mas, sim, da pretensão punitiva, ou do jus puniendi.

Evidente que, em se tratando de prescrição retroativa (e a prescrição retroativa é sempre do jus puniendi), cessam todos os efeitos da sentença condenatória. Todos; pâncipais e secundários, inclusive o efeito civil de que trata o art. 91, 1, do CR Se o ofendido quiser, poderá

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promover ação civil de ressarcimento. Nunca a actio judicati de que trata o art. 63 do CPP, mesmo porque nem teria havido o trânsito em julgado da sentença condenatória, quando, só assim, se permitiria a ação de execução de que trata o referido artigo.

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E se proferida sentença condenatória houver recurso da Acusação? Nesse caso, não se pode falar, antecipadamente, em prescrição retroativa, mesmo porque o seu recurso poderá ser provido, e, com o aumento da pena, não pode ser reconhecida a prescrição. Mas, se o recurso for improvido, ou, se provido, o aumento de pena não criar obstáculo ao reconhecimento da prescrição, esta deverá ser proclamada. Assim, se o Juiz condenou o autor de uma lesão corporal leve a 3 meses (entre a data do fato e a do recebimento da denúncia medeou um lapso de tempo de

1 2 anos) e, ante o recurso da Acusação a pena foi aumentada para 5 me-,.vses, evidente que, sendo a pena, em ambas as hipóteses, inferior a 1 ano,

extinta estava a punibilidade pela prescrição retroativa.o P

Nem teria sentido deixar-se de reconhecer a prescrição retroativa

apenas porque a Acusação recorreu e o Tribunal elevou a pena, sem

afetar o prazo prescricional.,1 1,1%

Pode acontecer de o réu ser absolvido e, em face de recurso da

Acusação, ser ele condenado. Nessa hipótese, leva-se em conta a pena

imposta pelo Tribunal e, se for o caso, aplica-se a regra da prescrição

retroativa, considerando-se o prazo entre a data do fato e a do recebi

mento da peça acusatória, ou entre esta e a data da decisão do Tribunal.

Se o réu apelar e obtiver uma diminuição de pena de molde a ensejar o

reconhecimento da prescrição retroativa, deverá esta ser reconhecida,

após o trânsito em julgado.0 réu foi condenado à pena de 3 meses. Somente ele

apelou. Entrea data do fato e a do recebimento da peça acusatória houve um

lapso detempo de 1 ano. Idem, entre a data do recebimento da peça

acusatória ea sentença condenatória. Entretanto, por razões várias, seu

recurso foiconhecido e improvido 2 anos depois. Neste caso, fala-se em

prescriçãosubseqüente ou superveniente. É que entre a data da prolação

da sentença condenatória (causa interruptiva da prescrição) e o seu

trânsito emjulgado decorreram 2 anos. Note-se que a pena imposta

equivale à penamáxima cominada, nos termos do § 1.' do art. 110 do CP. Note-

se, ain

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da, que "antes de transitar em julgado a sentença final" haverá prescri

ção da pretensão punitiva. De consequencia, se a sentença condenatória,LE 556

com trânsito em julgado para a Acusação, foi prolatada há 2 anos (no exeluplo dado) e até então não havia trânsito em julgado, para ambas as partes, é manifesta a extinção da punibilIdade pela prescrição da pretensão punitiva. Assim, todos os efeitos que uma sentença penal condenatória pode produzir desaparecem, inclusive os de natureza cível.Também havera prescrição subseqüente à sentença condenatória com trânsito em julgado para a Acusação (no exemplo dado) se o réu não f(*4ntimado da sentença dentro dos 2 anos.Enfim, se apos a prolação da sentença condenatória com trânsito em julgado para a Acusação decorrer um lapso de tempo suficiente para o reconhecimento da prescrição, sem que haja o verdadeiro trânsito em julgado da sentença condenatória, nesse caso haverá prescrição subseqüente. Qualquer que seja a hipótese aventada, dentro nesse contexto, haverá a prescrição subseqüente.

De tudo quanto vimos, já sabemos que há várias modalidades de prescrição: a) prescrição da pretensão punitiva, também chamadaprescrição da ação penal; b) prescrição retroativa (que, à semelhança da prescriçao da pretensão punitiva, afeta o jus puniendi); c) prescrição superveniente, que é a mesma prescrição da pretensão punitiva que pode ocorrer depois de proferida sentença condenatória; e, finalmente, d) prescrição da pretensão executória, ou dojus punitionis, que se verifica após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Durante o prazo do sursis flui o prazo prescricional? A resposta é negativa. A propósito, RT, 441/437, 453/391, 179/567, 427/350, 4151 282, 414/241, 464/341, 375/219; JTACrim, 22/62, 651378, 70/72, 54/ 130. Na doutrina, consultem-se: Basileu Garcia (Instituições, cit., t. 2, p. 709); Frederico Marques (Tratado, cit., v. 3, p. 418); Salgado Martins (Sistema de direito penal brasileiro, p. 490); Rodrigues Porto (Da prescrição, p. 117); D. Evangelista de Jesus (Direito, cit., 5. ed., p. 683).

Para o reconhecimento da prescrição retroativa haverá necessidade de a Defesa recorrer? Mirabete responde assim: a Defesa poderá consegui-la através de revisão ou habeas corpus. 0 que não se admite é o seu reconhecimento em primeira instância, porquanto o juiz "exauriu sua jurisdição com a prolação da sentença". Nem no Juízo das Execuções, que, à evidência, só poderá apreciar a "pretensão executória" (cf. Manual, cit., 1985, v. 1, p. 401). Não nos parece ser esta a melhor posição. Se se trata de prescrição da pretensão punitiva, ainda que retroativa, não

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há razão séria a impedir seu reconhecimento em primeiro grau, pelo próprio Juízo que proferiu a sentença. Se no dia seguinte à prolação da sentença, o Juiz vier a saber que o réu faleceu há 1 mês, haverá alguminconveniente em ser reconhecida, pelo próprio prolator da sentença, a extinção da punibilidade? Se o Tribunal de Justiça negar provimento ao recurso da Acusação e for caso de reconhecimento da prescrição retroativa, o próprio Tribunal não poderá fazê-lo? Nos processos da sua competência originária ratione personae, proferida a condenação e sendo caso de prescrição retroativa, o próprio Tribunal também não a reconhece?

Desse modo, quer-nos parecer não haver nenhum inconveniente emse postular a extinção da punibilidade pela prescrição retroativa ao próprio Juiz do processo, como também não há nenhum inconveniente, ante comprovada ausência de recurso da Acusação (Ministério Público, querelante ou assistente de Acusação), possa o Juiz do processo reconhecêIa, tal como lhe permite o art. 61 do CPP.

Numa época em que se procura agilizar a Justiça, em que se exigemaior rapidez no andamento dos processos, não faz sentido render-se imoderada vassalagem a princípios, em detrimento da sua rápida e econômica administração.

A matéria, contudo, é controvertida. A propósito: JTACrim, 72/111, 50185, 19/136; RT, 557/351, 552/399, 549/341.Favorável ao reconhecimento pelo Juiz do processo, vejam-se as excelentes considerações feitas por Alberto Silva Franco e outros, Código Penal e sua jurisprudência, Revista dos Tribunais, 2. ed., p. 366.

Penas restritivas de direito. A sua prescrição está prevista no parágrafo único do art. 109 do CP: "Aplicam-se às penas restritivas de direito os mesmos prazos previstos para as privativas de liberdade".

Anulação de sentença. Proferida sentença condenatória, com trânsito em julgado para a Acusação, e anulado o processo, ou a sentença, em virtude de exclusivo recurso da Defesa, evidente que pena maior não poderá ser imposta. "Entende-se, diz Delmanto, que em tais casos, a pena máxima em abstrato, referida pelo art. 109 do CP, ficou definitivamente delimitada em seu ponto máximo. Assim, se já houver decorrido o prazo legal em que aquela pena prescreveria, pode-se reconhecer, desde logo, e sem a renovação do processo anulado, a prescriçao da pretensão punitiva ('da ação')".

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Lei de Imprensa. Dispõe a Lei ri. 5.250, de 9-2-1967 (art. 41), que a prescrição da pretensão punitiva, ou seja, da ação, verifica-se em 2 anos a partir da data da publicação da notícia criminosa ou da sua transmissão (rádio e televisão). Inteira aplicação tem, aqui, o Código Penal, ao traçar normas sobre as causas interruptivas da prescrição, mesmo porque a Lei de Imprensa delas não cuidou e, além disso, o art. 48 da citada Lei determina, nesses casos, a invocação subsidiária do CRQÇanto à prescrição da pretensão executória, ou da condenação, seu prazo ocorrerá "no dobro do prazo em que for fixada" (cf. Lei ri. 5.250/67, art. 41). Assim, se o réu for condenado a 1 ano, a prescrição da pretensão executória ocorrerá em 2 anos; se condenado a 1 mês, a prescrição ocorrerá em 2 meses, e assim por diante. E se for condenado a uma pena de multa? Há dois entendimentos: a) invoca-se a regra do art. 114 do CP por analogia; b) "não poderá ser superior ao mínimo da pena privativa de liberdade que for prevista, cumulada ou alternativamente, para o mesmo crime" (Delmanto, Código Penal anotado, cit.). Esta a melhor posição.

Crimes falimentares. A prescrição, conforme dispõe a própria Lei de Falências, ocorre no prazo de 2 anos, iniciando-se este prazo quando transitar em julgado a sentença que encerrar a falência. Se não ocorrer o encerramento no prazo legal previsto no art. 132, § 1.% o prazo começará a correr da data em que a falência deveria estar terminada. É como soa a Súmula 147 do STE

Abuso de autoridade. A Lei ri. 4.898, de 9-12-1965, não estabelece normas sobre a prescrição. Por isso mesmo deve-se invocar o Código Penal. Quais as penas que poderão ser impostas nos crimes de abuso de autoridade?

Multa, detenção até 6 meses ou perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo até 3 anos. Tais penas poderão ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.

Ora, se a pena de multa prescreve em 2 anos (CP, art. 114), e se a pena de detenção inferior a 1 ano prescreve também em 2 anos (CP, art. 109, VI), parece claro que a outra pena não pode ter prazo prescricional superior a este.Causas de aumento: crime continuado, concurso material e concurso formal. Quanto ao concurso material, dispõe o art. 119 do CP que as infrações são consideradas isoladamente. Respeitante ao acréscimo

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do crime continuado, dispõe a Súmula 497 que não se computa o acréscimo decorrente da continuação. Tratando-se de concurso formal a regra a ser observada é a mesma: não se computa o acréscimo. Nesse sentido, Mirabete, Manual, cit., v. 1, p. 390; Delmanto, Código Penal anotado, cit., p. 176.Perdão judicial. Não obstante a regra contida no art. 120 do CP, dando a entender que o perdão judicial gera apenas o efeito de não poder ser o réu considerado reincidente,

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quer-nos parecer que ele nada mais representa senão uma condenação imprópria, isto é, reconhece-se a responsabilidade, dosa-se a pena, mas não será ela cumprida, e, também, não forja a reincidência.Indaga-se: qual o prazo prescricional no caso de perdão judicial? Quer-nos parecer que a sentença concessiva do perdão é, antes de mais nada, uma sentença condenatória sui generis, ou, se quiserem, uma sen-htença condenatória imprópria. Nela, o Juiz declara a responsabilidade do réu. Dosa-lhe a pena, mas deixa de aplicá-la. Mais ainda: não se atribuem efeitos de condenação. Não foijando sequer a reincidência, como se infere do art. 120 do CR De conseguinte, não há que se falar em prescriçao superveniente. Ademais, entendemos que a sentença concessiva de perdão judicial nem sequer interrompe a prescrição, posto não ser condenatória propriamente dita.A regra do art. 108 do CP. Dispõe este artigo:

"A extinção da punibilidade de crime que e pressuposto, elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não se estende a este. Nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não impede, quanto aos outros, a agravação da1 1., pena resultante da conexão-.. J

0 furto pode ser pressuposto da receptação. Se, por acaso, ficar extinta a punibilidade do furto, nem por isso será afetada a receptação. No roubo, por exemplo, a violência ou ameaça e seu elemento constitutivo. Se ocorrer a prescrição da violência ou ameaça, ela não afetará o roubo. No furto qualificado por destruição de obstáculo à subtração, o dano surge como qualificadora ou agravadora. Pois bem: extinta a punibilidade quanto ao crime de dano, continuará o furto qualificado. Esta a regra do art. 108, primeira parte.Se os crimes forem conexos (CP, art. 6 1, 11, b), extinta a punibilidade de um deles, nem por isso, quando do julgamento do outro, deixar-se-á

Li 1

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1

de considerar a agravante. Assim, se Caio comete um crime de incêndio e, surpreendido por alguém, mata-o, para conseguir a impunidade quanto ao crime de incêndio, há conexão. Mesmo extinta a punibilidade quanto ao crime de incêndio, quando do julgamento do homicídio considerarse-a aquela agravante.

Prazo diminuído. 0 art. 115 do CP estabelece que os prazos prescricionais, quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos, d~-, na data da sentença, maior de 70, são reduzidos de metade.

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Prescrição da pretensão executória. Quando se profere uma sentença condenatória, o prazo prescricional começa a fluir, podendo servir de marco tanto para a prescrição retroativa subseqüente como para a pretensão executória, conforme o caso. Transitada em julgado apenas para a Acusação, poderá ocorrer uma das duas primeiras. Transitada em julgado para ambas as partes, cuidar-se-á da prescrição dojus punitionis, cujo marco inicial ocorreu com o simples trânsito em julgado para a Acusação, nos termos do art. 112 do CRReincidência. 0 aumento da pena em decorrência da reincidência altera o prazo prescricional? Da pretensão executória, sim, tal como dispõe o art. 110, caput. Em se tratando de pretensão punitiva, não (cf. RT, 5351 324, 597/291, 556/347).No caso de reincidência, quando o aumento da pena deve ser considerado, recairá sobre o prazo, nos termos do art. 110, caput, do CP: "... nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente". Assim, condenado o réu a 2 anos, o prazo prescricional é de 4 anos. Se se tratar de prescrição da condenação e ele for reincidente, a prescrição ocorrerá em 5 anos e 4 meses.Prescrição das penas mais leves. Hipótese em que são cominadas a determinada infração uma pena privativa de liberdade e multa. Se a prescrição da multa ocorre em 2 anos e a da pena privativa de liberdade (suponhamos) prescreve em 4 anos, nos termos do art. 118 do CP, a prescrição da multa não mais prescreverá em 2 e sim em 4 anos, de sorte que cada infração mantém sua autonomia prescricional.Sentença condenatória anulada. Não interrompe a prescrição. Tampouco em se tratando de pronúncia.Causas impeditivas da prescrição. Nos termos do art. 116 do CR, antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre:

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a) enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime (é o caso das prejudiciais);b) enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro.

Por outro lado, depois que passa emjulgado a sentença condenatória,o prazo prescricional fica também suspenso, quando o réu está presopor outro motivo.

A Constituição Federal acrescentou mais uma hipótese de suspen-são do prazo prescricional. Dispõe o seu art. 53, nos §§ 1.' e 2.':

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-§ 1.' Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa.

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§ 2.' 0 indeferimento do pedido de licença ou a ausência de deliberação suspende a prescrição enquanto durar o mandato".

Prescrição intercorrente. Suponha-se haja condenação a uma pena de 6 meses. Não houve recurso da Acusação. Apenas da Defesa. Com a prolação da sentença condenatóri a recorrível ficou interrompido o lapso prescricional, nos termos do art. 117, d, do CR 0 Tribunal, contudo,

Assim, se um Deputado federal ou Senador vier a cometer uma infração, a partir daí começa a fluir o prazo prescricional. Solicitada licença à Câmara ou Senado para a instauração do processo, no dia em que a Casa deliberar contra, a partir dessa data fica suspenso o prazo prescricional, que terá continuação após o término do mandato.

E se for solicitada a autorização e a Casa não deliberar? Em que momento o prazo deve ficar suspenso? A Constituição nada diz. E, desse modo, bem poderá a Câmara ou Senado silenciar a respeito, permitindo, assim, que o prazo prescricional continue fluindo... E, fluindo, dependendo da infração, poderá ocorrer a extinção da punibilidade, ou ser o agente beneficiado com a prescrição retroativa.

Iniprescritibilidade. A Constituição, nos incs. XLII e XLIV do art. 5.", considera a prática do racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, crimes inafiançáveis e imprescritíveis.

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manteve o decreto condenatório 2 anos e um mês após a prolação da sentença de 1.' grau. Nesse caso, fala-se em prescrição intercorrente do "jus puniendi".

13. Decadência

Por decadência entende-se o perecimento de um direito, em virtude de nãg#er sido exercido nos prazos prefixados em lei. Na sua base, como na base da prescrição, está o decurso do tempo.

No campo civilístico a distinção entre os dois institutos tem, na ponderada observação de Orlando Gomes, desafiado a argúcia dos nossos tratadistas, mesmo porque o CC não firmou, em um dispositivo sequer, nítida diferença entre ambos. 0 art. 178 do CC estabelece prazos dentro dos quais devem ser exercidos os direitos, mas não se sabe se tal ou qual prazo é prescricional ou decadencial.

No Direito Penal, entretanto, sem embargo da semelhança existente entre os institutos, palpáveis são os traços diferenciais. De fato. A prescrição e a decadência são causas extintivas da punibilidade. Ambas têm por base o decurso do tempo. Ambas podem ser alegadas de ofício, nos termos do art. 61 do CPP. Distinguem-se, entretanto:

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a) A prescrição ocorre antes da propositura da ação, durante o curso desta e até mesmo depois de transitar em julgado a decisão condenatória. A decadência, entretanto, somente ocorre antes da propositura da ação. Depois de iniciada a ação, poderá haver a extinção da punibilidade com fundamento em qualquer causa, menos na decadência.

b) A prescrição ocorre nos crimes de ação penal pública plena, nos de ação pública condicionada e até mesmo nos de ação penal privada. Já a decadência só é aplicável àquelas hipóteses em que se permite o início da ação por meio da queixa ou às de ação pública dependente de representação. Em suma: a decadência atinge o direito de queixa ou de representação. De fato. 0 art. 38 do CPP reza: salvo disposição em contrário, o ofendido ou seu representante legal decairá do direito de queixa ou de representação... .c) A prescrição, como vimos, está sujeita a causas interruptivas ou suspensivas, o que não acontece com a decadência.

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Por derradeiro: a decadência, pondera o insigne Frederico Marques , com a sua aguda visão de jurista, recai sobre um direito instrumental (a ação) e só por via de conseqüência é que atinge o direito material. A prescrição atinge diretamente o jus puniendi (cf. Frederico Marques, Tratado, cit., p. 407).

Pode acontecer que a ação penal privada, ou pública dependente de representação, não possa ser intentada, por ser extemporânea. Nessa hipótese, a causa impeditiva poderá ser a prescrição, uma vez que a prescrição ocorre também em crimes que comportam essas ações e antes da sua propositura. Todavia não haverá dificuldades, na prática, em extremá-las, muito embora nenhum interesse prático tivesse tal tarefa, salvo a hipótese prevista no art. 29 do CPP.

Suponha-se que, no dia L'- 1 - 1960, B houvesse praticado contra Xo crime previsto no art. 139 do CP, cuja pena máxima cominada in abstractoé de 1 ano. Trata-se de crime de ação privada. De acordo com o art. 38do CPP, o ofendido ou seu representante legal teria de mover a açãodentro de 6 meses, a partir da data em que veio a saber quem foi o autor

da infração. Se soube quem foi o autor do crime no mesmo dia, a ação

deveria ser proposta em junho de 1960 - 6 meses após ter conhecimento de quem foi o autor do crime - sob pena de decair do direito

dequeixa. Nessa hipótese, haveria, então, a decadência e não a

prescrição,porque, se o máximo da pena cominada ao crime é de 1 ano, a prescrição ocorrerá dentro de 4 anos, a partir da data da consumação do

crime,. i

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nos termos do art. 109, V, do CP, combinado com o art. 111, 1, do mes-mo estatuto.1Mas se o ofendido soube quem foi o autor do crime 5 anos depois do fato? Parecerá que o ofendido disporá de 6 meses para oferecer a queixa, vale dizer, para dar início à ação penal, pois o prazo para o exercício de tal direito começa a fluir da data em que o ofendido veio a saber quem foi o autor do crime. Entretanto não poderá mais ser intentada a ação penal, à vista da prescrição. A pena máxima cominada ao crime não é de 1 ano? Quando o máximo da pena for de 1 ano, o prazo prescricional não é de 4 anos, nos termos do art. 109, V, do CP? E esse prazo, na hipótese, não começa a correr da data da consumaçao do crime? Claro que sim. Então, a ação penal já não poderá ser intentada, em virtude de ter sido atingida pelo pião da prescrição, embora o prazo decadencial

mal se iniciasse.

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Segundo dispõe o art. 38 do CPP, o prazo para o exercício do direito de,queixa ou de representação é de 6 meses, a contar da data em que a pessoa investida daquele direito vier a saber quem foi o autor do crime. Salvo disposição em contrário, diz a lei. Quanto à representação, ao que nos parece, não há disposição em contrário, a não ser na Lei de Imprensa (Lei n. 5.250, de 9-2-1967, art. 41, § U).

Cuidando-se de queixa, além da exceção prevista no § 1.' do art. 41 da L41 de Imprensa, há, ainda, aquelas tratadas no § 2.0 do art. 240 do CP (1 mês) e no art. 236, parágrafo único, do mesmo estatuto (6 meses, a partir da data em que transitar em julgado a sentença anulatória do casamento contraído com ocultação de impedimento). No que tange aos crimes contra a propriedade imaterial, o prazo continua sendo o mesmo fixado no art. 38 do CPP: 6 meses, a partir da data em que o titular do direito de queixa vier a saber quem foi o autor do crime. Por outro lado, o art. 529 do diploma processual penal dispõe: "Nos crimes de ação privativa do ofendido, não será admitida queixa com fundamento em apreensão e em perícia, se decorrido o prazo de trinta dias, após a homologação do laudo".

0 prazo continua sendo de 6 meses. Entretanto, se o crime contra a propriedade imaterial deixou vestígios, houve apreensão e perícia, o direito de queixa deve ser exercido antes do 30.' dia da homologação do laudo. A contrario sensu: o crime não deixou vestígio, logo não haverá apreensão nem pericia, e, desse modo, o lapso prescricional é o fixado no art. 38 do CPP. 0 crime deixou vestígio. 0 ofendido teve ciência inequívoca quanto à autoria. Entretanto somente 1 ano após é que requereu apreensão e perícia. Nessa hipótese, quer-nos parecer não mais ser possível o exercício do direito de queixa.

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Não obstante, o STF decidiu: "0 art. 529 do CPP, por ser específico dos procedimentos referentes aos crimes de ação privada contra a propriedade imaterial, prevalece sobre o art. 38 do mesmo diploma, e o art. 105 do CP, verificando-se a decadência, em qualquer caso, aos trinta dias da homologação do laudo, e não em seis meses, como na norma geral" (cf. STF, DJU, 7-12-1979, p. 9207).

Como o venerando acórdão não foi publicado na íntegra, não se sabe se, na hipótese concreta, o ofendido, 6 meses antes de requerer a pericia, ficou sabendo, inequivocamente, quem fora o autor do crime. Mesmo não tendo sido publicado, a expressão "em qualquer caso", con-

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tida na ementa, já leva o intérprete a admitir que o Supremo entende que, se o crime deixou vestígio, é indiferente que o conhecimento da autoria seja, ou não, anterior a 6 meses. 0 que importa é o oferecimento da queixa antes de decorrido o prazo de 30 dias da homologação do laudo.

Ainda em tema de decadência, indaga-se: quando é que se considera exercido o direito de queixa? A partir do despacho, da distribuição ou do recebimento? Segundo o disposto no art. 38 do CPP, ou art. 103 do CP, haverá decadência se o direito de queixa não for exercido dentro naquele prazo. Cremos que a distribuição é a prova cabal do exercício daquele direito. Não há necessidade de que haja recebimento. Este é causa interruptiva do lapso prescricional, a teor do art. 117, 1, do CR Veja-se, a propósito, RTJ, 71/656. Se no último dia para o exercício daquele direito a queixa for distribuída, é irrelevante seja proferido despacho liminar positivo posteriormente (cf. RT, 507/382). Bem pode acontecer, também, seja a queixa despachada, mas, por qualquer circunstância, distribuída posteriormente. Nesse caso, não se pode negar a tempestividade da queixa. A propósito, RT, 4961318.

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ÂMI-

1. Conceito de renúncia

Da extinçao daopunibiflidade

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SUMÁRIO: 1. Conceito de renúncia. 2. Renúncia expressa e renúncia tácita. 3. Extensão. 4. Perdão. 5. Divisão. 6. Quem pode conceder o perdão? 7. Aceitação do perdão. 8. Aceitação processual e extraprocessual. 9. Extensão do perdão. 10. Perdão e renúncia. 11. Perempção. 12. Quais as causas que determinam a perempção? 13. Perempção, renúncia e perdão. 14. Retratação. 15. Subsequens matrimonium. 16. Subsequens matrimonium cum tertio. 17. 0 perdão judicial, nos casos previstos em lei. 18. 0 pagamento do tributo no crime de sonegação fiscal.

Em decorrência daqueles princípios que regem a ação penal privada, notadamente o da oportunidade ou da conveniência, pode o ofendido abdicar do direito de promover a ação penal. Essa abdicação do direito de iniciar a instância penal, vale dizer, de oferecer queixa, recebe, na técnica jurídica, a denominação de renúncia.Renúncia é, pois, a abdicação do direito de oferecer queixa-crime, do direito de promover a ação penal privada.

Ao direito de agir, preleciona Aloysio de Carvalho Filho, corresponde, é lógico, o direito de desistir, sem outras limitações que as da própria vontade (cf. Aloysio de Carvalho Filho, Comentários, cit., p. 25 1).

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De fato. Se o Estado concedeu ao ofendido, nos crimes de ação penal privada, a faculdade de exercer o direito de promover a instância penal, pode o ofendido exercê-lo ou dele desistir, "sem dependência da manifestação da vontade do ofensor".10 art. 104 do CP dispõe:

"0 direito de queixa não pode ser exercido quando renunciado expressa ou tacitamente".

Pela redação do dispositivo em exame, percebe-se que a renúncia

antecede à propositura da ação penal, isto é, iniciada a ação penal, já não haverá lugar para a renúncia. Se esta é a abdicação do direito a queixa, haverá, necessariamente, de anteceder ao oferecimento desta. Assim, o momento oportuno para o ofendido renunciar aquele direito de queixa estende-se desde a data em que começou a fluir o prazo para o seu ofere-cimento (CPP, art. 3 8) até o último dia para a propositura da ação penal.Cumpre observar que o art. 104 do CP dispõe simplesmente: "o. o

1`1.1 direito de queixa não pode ser exercido Desse modo, não restringin-do o texto legal a renúncia às hipóteses de exclusiva ação penal privada,segue-se que, naqueles casos em que o ofendido pode oferecer queixasubstitutiva da denúncia (CPP, art. 29), é possível a renúncia. É de seconvir, entretanto, que a renúncia ao direito de queixa, na hipótese doart. 29 do CPP, é inoperante, uma vez que, a todo tempo, enquanto não

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estiver extinta a punibilidade, poderá o órgão do Ministério Público oferecer a denúncia. Terá conseqüência apenas para o renunciante.

` `) 2. Renúncia expressa e renúncia tácita

0 dispositivo citado fala em renuncia expressa e em renúncia tácita. A primeira se consubstancia em uma declaração assinada pelo próprio ofendido, seu representante legal ou, então, por procurador com poderes especiais. Assim dispõe o art. 50 do CPP:

"A renúncia expressa constará de declaração assinada pelo ofendido, por seu representante legal ou procurador com poderes especiais".

Exigir-se-á do procurador habilitação técnica? Haverá necessidade de ser o procurador advogado? Não. Qualquer pessoa capaz poderá ser mandatária, mesmo porque não se vai praticar nenhum ato em juizo.

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E a renúncia tácita em que consiste? Di-lo o parágrafo único do art. 104 do CP:

"Importa renúncia tácita ao direito de queixa a prática de ato incompatível com a vontade de exercê-lo; não a implica, todavia, o fato de receber o ofendido a indenização do dano causado pelo crime".

MOS que haja renúncia tácita é indispensável que o titular da ação penal pratique ato incompatível com o direito de queixa. E a mesma disposição do art. 124, segunda parte, do CP italiano:

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"Vi é renuncia tacita, quando chi ha facoltá di proporre querela ha compiuto fatti incompatibili con la volontá di querelarsi".

Assim, por exemplo, no crime de alteração de limites (CP, art. 161), tem-se como renunciado o direito de queixa se o ofendido entra em acordo com o agente para o estabelecimento de nova linha divisória, ou lhe vende a área por ele pretendida. Essa transigência do ofendido é incompatível com a vontade de punir o seu ofensor.Se o ofendido arrenda ao agente o terreno beneficiado pelo desvio ou represamento de suas águas, por este usurpadas (art. 161, § L% 1), renuncia tacitamente ao direito de queixa (cf. Raymundo Macedo, Da extinção da punibilidade, p. 195).Na prática, entretanto, surgem, às vezes, casos em que a renúncia tácita, para ser alegada e admitida, requer prudente exame. Justa a ponderação de Aloysio de Carvalho Filho: E que os encontros meramente casuais, motivados por circunstâncias fortuitas, a companhia não provocada ou não estimada, mas tolerada por deveres de educação social, não caracterizam uma renúncia. Aquele mesmo aperto de mão ou leve inclinar de cabeça, em cumprimento, dentro de um salão de sociedade, a participação, na conversação geral, serão, conforme situaçoes ou ocasiões, de pura civilidade, em que não haveria

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surpreender atitudes ou desígnios que comprometam o exercício do direito de queixa (cf. Aloysio de Carvalho Filho, Comentários, cit., p. 47).Tratando-se de crime de ação penal privada ou de ação penal pública condicionada à representação, cuj a pena máxima não supere 1 ano, o acordo entre ofendido e ofensor alusivo à composição dos danos civis,

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devidamente homologado pelo Juiz, implica renúncia ao direito de queixa ou de representação, a teor do parágrafo único do art. 74 da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, ficando assim excepcionada a regra contida na última parte do parágrafo único do art. 104 do estatuto repressivo.E se o ofendido, ao oferecer a queixa-crime, excluir algum culpado, haverá renúncia tácita? Suponha-se que X tenha sido vítima de um crime de ação penal privada praticado por Y, K e M. A queixa, entretanto, foi oferecida contra Y e K. Excluiu-seM. Essa circunstância de haver o querelante omitido, na queixa, o nome de um dos querelados não indicaria a prática de ato incompatível com o direito de queixa? Não. Tal omissão não se confunde com a voluntas abdicandi. Ademais, sabemos que, como fiscal do princípio da indivisibilidade da ação privada, o órgão do Ministério Público poderia aditar a queixa, nela incluindo M. Desse modo, acertada a lição de Mário de Moura e Albuquerque: "Se o Ministério Público pode e deve fazer isso (quando convencido, é claro, da existência de mais de um autor do crime), conseqüentemente a omissão na queixa do nome de um dos autores do crime não importa renúncia tácita" (cf. Justitia, 12/190; veja-se, no apêndice, trabalho que publicamos sobre o aditamento à queixa).Se, entretanto, o querelante declarar que excluiu M porque não quis processá-lo, aplicar-se-á o disposto no art. 49 do CPP, ante a manifesta renúncia.Com acerto o legislador excluiu o fato de receber o ofendido a indenização do dano causado pelo crime. Se isso não fizesse, todas as vezes em que o ofensor pagasse ao ofendido o quantum da indenização, poder-se-ia dizer ter havido renúncia tácita.E, quando houver mais de um ofendido, a renúncia de um implicará a do outro? É evidente que, se o ofendido renunciou ao direito de queixa, tal renúncia não prejudica o direito do outro, e isto porque ninguém pode renunciar senão ao proprio direito.E na hipótese do art. 31 do CPP? No caso de morte ou de ausência do ofendido, se o cônjuge renunciar ao direito de queixa, as demais pessoas ali enumeradas ficarão impossibilitadas de promover a ação penal? Parece-nos que não. A própria lei salienta que somente o ofendido ou seu representante legal - pessoalmente ou por procurador - é que podem renunciar. Exclui, portanto, o cônjuge, ascendente, descendente ou ir-

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mão. Não quer dizer que o cônjuge não Possa renunciar. Pode. Mas sua renúncia não implica a renúncia ao direito de queixa atribuído, também, às demais pessoas enumeradas no art. 31 do CPR

Muito elucidativa a lição de Espínola: Esclareça-se ainda que, relativamente ao conjuge e aos parentes do ofendido morto ou ausente, aos quais dá atenção o art. 31 do CPP, não lhes é reconhecido o poder de renunciar ao exercício do direito de queixa, em sentido próprio e técnico. De fA, não há, em relação a essas pessoas, uma preferência para instauração da ação penal que seja excludente da atividade acusadora das demais e do representante legal do ausente, pelo que, no caso, a renúncia ao exercício do direito de queixa, por uma delas, não é senão uma abstenção, não obrigando, em nada, as demais, a estas reconhecida a maior liberdade de movimentar a ação penal, do mesmo modo que, se o querelante desistir da ação proposta ou a abandonar, podem dar-lhe o prosseguimento, nos expressos termos do art. 36 (cf. Espínola Filho, Comentários, cit., v. 1, p. 445).Da mesma opinião é Jorge Alberto Romeiro: Na hipótese de morte ou ausência judicialmente declarada do ofendido, parece-nos, no silêncio da lei, que a renúncia deve resultar da vontade de todas as pessoas enumeradas na parte final do § 4.' do art. 102 do CP, ou seja, cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, sendo somente assim admissível a renúncia na hipótese focalizada (cf. Jorge A. Romeiro, Da ação, cit., p. 176).0 parágrafo único do art. 50 do CPP contém disposiçao que convêm ser esclarecida: "A renúncia do representante legal do menor que houver completado 18 anos não privará este do direito de queixa, nem a renúncia do último excluirá o direito do primeiro".Vimos que o CPP, quando o ofendido é menor de 21 e maior de 18 anos, concede a titularidade da ação penal tanto ao ofendido quanto ao seu representante legal (art. 34).Desse modo, o parágrafo único do art. 50 do mesmo diploma nada mais faz senão complementar a regra que se contém no art. 34.

Se a titularidade da ação penal privada, quando o ofendido for menor de 21 e maior de 18 anos, cabe tanto ao ofendido quanto ao seu representante legal, nessas condições, se o representante legal do ofendido abdicar do direito de queixa, tal renúncia não constituirá obstáculo ao oferecimento da queixa pelo ofendido ou vice-versa. Caso contrário, cairia

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por terra o disposto no art. 34. Assim, de nada valerá a renúncia levada a efeito pelo ofendido menor sem que o seu representante legal tenha também renunciado, e vice-versa.

Se o ofendido ainda não completou os 18 anos e seu representante legal renunciou ao direito de queixa, válida será a renúncia.Suponha-se que o ofendido, com 20 anos e 11 meses de idade, tenha renunciado ao direito de queixa. Sem embargo dessa abdicação, seu representante legal a ofereceu. Em andamento a ação, o

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ofendido atingiu a maioridade e seu representante legal perdoou o querelado. Poderá o ofendido, já agora maior, fazer prosseguir a ação? Não, uma vez que tal atitude importaria, como bem diz Raymundo Macedo, a retratação da renúncia, o que não se admite.

3. Extensão

0 Estado, em certos casos, concedeu ao ofendido a faculdade de promover a ação penal. Promovê-la-á, se quiser. Todavia não pode ele, quando há vários culpados, promover a ação penal apenas contra um deles. Se, entretanto, isso fizer, não ocorrerá uma voluntas abdicandi, isto é, não ocorrerá uma renúncia do direito de queixa quanto àquele culpado que ficou excluído, mesmo porque, como vimos, o órgão do Ministério Público, velando pelo princípio da indivisibilidade da ação penal privada, fará um aditamento a queixa, incluindo aqueles que foram excluídos pelo querelante, nos termos dos arts. 48 e 45 do CPP.Mas se o ofendido, expressa ou tacitamente, renunciar ao direito de queixa quanto a um dos seus ofensores? Nessa hipótese, a renuncia es tender-se-á a todos. Expresso é o art. 49 do CPP: "A renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá".

A regra que aí se contém é, ainda, conseqüência do princípio da indivisibilidade da ação penal privada: ou o ofendido ou seu representante legal promove a ação contra todos ou não a promove contra nenhum. Assim, se o ofendido renuncia ao direito de queixa quanto a um dos implicados, os demais serão beneficiados "com a clemência de que usou para com um deles".Então, é preciso distinguir: se o ofendido renunciou ao direito de queixa quanto a um dos culpados, caso venha a oferecer a queixa quanto

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aos demais, provada a renúncia, o Juiz julgará extinta a punibilidade, pois a renúncia concedida a um beneficiará a todos.

Mas, se não houver renúncia e, ao oferecer a queixa, for omitido o nome de um dos culpados, o processo terá seu andamento normal, devendo o órgão do Ministério Público aditá-la.

4. Perdão'00-,

Vimos que a ação penal privada é regida pelos princípios da oportunidade, indivisibilidade e disponibilidade. 0 ofendido propõe a ação penal, se quiser. Por outro lado, proposta a ação penal, pode o ofendido desistir de prosseguir nela. Desse modo, o poder de disponibilidade do ofendido pode manifestar-se antes da propositura da ação - decadência, renúncia - e, até mesmo, depois de iniciada a ação - perempção, perdão.Perdoar é ser clemente, é indulgenciar. Perdão é bondade, é indulgencia, é clemência. Nas ações penais privadas, o ofendido, em conseqüência do seu poder dispositivo, pode perdoar o querelado, vale dizer, seu ofensor, revelando, assim, a vontade de não querer prosseguir na ação, e, não querendo fazê-lo, julgar-se-á extinta a punibilidade. Tratase de instituto proprio e exclusivo da ação penal

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privada. Não confundir o perdão do ofendido, de que estamos tratando, com o perdão judicial, isto é, aquela faculdade que o legislador concedeu ao Juiz de, em determinados casos, deixar de aplicar a pena. Ali, a faculdade é concedida ao ofendido ou a quem o represente legalmente; aqui somente o Juiz e que pode perdoar; ali, mesmo antes de proferida sentença, pode o ofendido desejar perdoar; aqui, só poderá haver o perdão judicial uma vez lavrada a decisão condenatória.

4 .

0 perdão a que nos referimos e proprio e exclusivo da ação penal privada. Nem mesmo naquelas hipóteses em que o ofendido oferece queixa substitutiva da denúncia (CPP, art. 29) é possível ocorrer o perdão, de molde a extinguir a punibilidade. A própria lei restringe o instituto do perdão àqueles casos em que somente se procede mediante queixa, isto é, às ações penais privadas.

"0 perdão do ofendido, nos crimes em que somente se procede mediante queixa, obsta ao prosseguimento da ação" (CP, art. 105).

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Nos crimes em que somente se procede mediante queixa, diz o texto legal. Logo, na ação penal privada subsidiária da pública (art. 29), não há lugar para o perdão, porque o crime, ali, é de ação pública, podendo, numa eventualidade (inércia do órgão do Ministério Público) ser o procedimento criminal iniciado com a queixa-crime. Nada impede, entretanto, que o ofendido, na hipótese do art. 29 do CPP, perdoe seu ofensor, desistindo, assim, de prosseguir na ação. Entretanto tal perdão não terá nenhuma conseqüência, ainda que o ofensor venha a aceitá-lo, pois, sendo o crime de ação pública, não pode o ofendido dispor de uma ação que não lhe pertence, e, além disso, a própria lei cingiu os limites de aplicação do instituto do perdão: nos crimes em que somente se procede mediante queixa. Todavia, se na hipótese do art. 29 o ofendido vier a perdoar seu ofensor, restará ao órgão do Ministério Público retomar a ação como parte principal, a teor do art. 29 do CPR

Se, nos termos do art. 105 do CP, o perdão do ofendido obsta ao prosseguimento da ação, segue-se que o ofendido somente poderá conceder o perdão depois de iniciada a ação. Não será possível conceder-se perdão antes da propositura da ação. 0 perdão pressupõe a ação penal em andamento, já iniciada. Pode ocorrer que o ofendido assine uma declaração, antes de promover a ação penal, perdoando seu ofensor. Tenho para mim que tal perdão será válido não como perdão, mas como renúncia.

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5. Divisão

Consoante o do art. 105 do CP, o perdão pode ser processual ouextraprocessual. Diz-se processual o perdão quando concedido dentro dos próprios autos. É a forma mais solene, pela sua maior

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significação e, quiçá, maior publicidade (cf. Aloysio de Carvalho Filho, Comentários, cit., p. 53).

Extraprocessual, como o próprio nome está a indicar, é aquele concedido extra-autos, fora do processo.Insta acentuar que o perdão ainda pode ser expresso ou tácito. Expresso, quando constar de declaração assinada pelo ofendido, por seu representante legal, ou pelo procurador com poderes especiais. Tácito, na dicção do § 1.0 do art. 105 do nosso diploma penal, é o que resulta da prática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação.

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0 perdão processual é sempre expresso. De fato. Se o perdão processual é concedido no próprio processo, por termo nos autos, ou por petição, segue-se que só poderá ser expresso.Tratando-se de perdão extraprocessual, este poderá ser expresso ou tácito.Prova-se o perdão expresso com a respectiva declaração do ofendido, de e representante legal ou do seu procurador com poderes especiais . 2eclaração deverá estar assinada. E se o ofendido for analfabe to? Penso que, nessa hipótese, poderá o ofendido, por meio de instrumento público de procuração, outorgar poderes especiais ao seu procurador para concedê-lo.

E o tácito? Nos termos do art. 57 do CPP, admitirá todos os meios de prova. Haverá o perdão tácito quando o ofendido pratica ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação. Como diz o insigne Nélson Hungria, é preciso que o ato seja inequívoco, consciente e livre (cf. Nélson Hungria, Extinção da punibilidade, RF, 871591).Os atos dos quais se deve inferir a incompatibilidade não devem ser vagos e incertos, mas concludentes e concretos, que revelem, de modo inequívoco, que a vontade do autor é não insistir no propósito de manter viva a queixa apresentada (cf. Giust. Penale, apud G. Maggiore, Derecho, cit., v. 2, p. 371). Exemplo de perdão tácito deu-nos a Corte de Cassação peninsular: "constitui perdão tácito o fato de a esposa que, depois de oferecer querela (representação) por difamação, contra o marido, do qual vivia separada, recebe-o em casa e se declara pronta a segui-lo para outra residência" (cf. Annali, apud G. Maggiore, Derecho, cit., p. 37 1).

6. Quem pode conceder o perdão?

0 perdão poderá ser concedido pelo ofendido, se maior de 21 anos; o menor de 21 e maior de 18 anos também poderá concedê-lo, mas será de nenhuma valia se o seu representante legal a tanto se opuser. Se o ofendido for menor de 18 anos, poderá concedê-lo seu representante legal. Também poderá o representante legal do menor de 21 e maior de 18 anos conceder perdão, mas, nessa hipótese, considerar-se-á válido se1não houver oposição do menor. E a regra que se contém no art. 52 doCPP, como complementação do art. 34 do mesmo diploma.

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Embora a lei silencie a respeito, é evidente que o perdão pode ser concedido por procurador com poderes especiais. Com acerto preleciona Tornaghi: "... Não disse o Código se o perdão pode ser concedido por procurador com poderes especiais. Deve, entretanto, entender-se que sim, por ser princípio que se infere do sistema do Código (art. 3.') e porque, pelo menos, seria uma forma de perdão tácito" (Instituições, cit., v. 3, p. 327).

E na hipótese do art. 31 do CPP? Se o cônjuge do ofendido promove a ação penal e, em seguida, perdoa o querelado, mesmo aceito o perdão,será este válido? Tenho para mim que somente se poderia cogitar da validade do perdão se as demais pessoas a que se refere o art. 31 não se opuserem. A tal respeito assim se expressa o festejado Espínola Filho: "0 cônjuge e os parentes do ofendido morto, ou ausente, na ação que instaurem, ou cuja continuação movimentem, não têm o direito de, com o perdão, tolher o respectivo prosseguimento, uma vez que, nos expressos termos do art. 36, a uns, independentemente dos outros, é lícito levar até o fim o processo, a despeito da desistência, ou abandono, por parte do querelante" (Comentários, cit., p. 45 1).E não é só: suponha-se que, ao mesmo tempo, apareçam, em juízo, o pai e o cônjuge do ofendido com a queixa-crime. 0 Juiz, nos termos do art. 36 do CPP, deve dar preferência à queixa oferecida pelo cônjuge. Dois dias após o oferecimento da queixa, o cônjuge concede, a modo proprio, o perdão. Com justa razão indaga Raymundo Macedo: E seria justo que se negasse a um dos titulares (no caso, o pai do morto ou do ausente) o direito de acionar o seu ofensor, para dar preferência a um outro, e este, no dia seguinte, perdoar a ofensa e prejudicar o direito do preterido?

Um dos caracteres do perdão é a bilateralidade. Se validamente concedido, só extinguirá a punibilidade se for aceito pelo querelado. 0 art. 105, 111, do CP prescreve: "Se o querelado o recusa, não produzefeito". 10 absurdo é, pois, manifesto. Para que o perdão concedido por qualquer daquelas pessoas a que se refere o art. 31 seja válido, haverá necessidade de as demais pessoas ali enumeradas concordarem.

7. Aceitação do perdão

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Referindo-se ao perdão, diz Manzini: "Poichè esse é un negozio giuridico bilaterale, avente per oggetto Ia querela, richiede il concorso di due elementi necessari per integrarla: Ia offerta di rimissione" (perdão) '4e l'accettazione della medesima" (Istituzioni, cit., Padova, 1958, p. 273).Autores há, entretanto, que negam ao perdão o caráter da bilateralidade. Sabatini observa que, se a aceitação confere ao ato o caráter de bilateral, a doação deveria, por isso mesmo, ser tida como negócio jurídico bila-

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teral (IAtuzione, cit., v. 1, p. 355). Massari segue-lhe o mesmo piso. E Maggiore arremata: 0 perdão é um negócio unilateral que se perfecciona com a simples manifestação de vontade do querelante, ainda que a sua eficácia esteja subordinada à condição resolutiva da recusa do querelado (cf. G. Maggiore, Derecho, cit., p. 375-6).Creio que a bilateralidade, aí, não tem, evidentemente, aquele sentido restrito que se lhe empresta no Direito Privado, de contraprestação, de obrigação para ambas as partes, de encargos recíprocos.A bilateralidade, no caso, está a indicar, tão-somente, a exigência do concurso de vontades. Não basta que o querelante deseje ou queira perdoar. Não basta, assim, apenas uma vontade, unilateral. Toma-se necessario, para a sua validade, que o querelado aceite. Daí falar-se em bilateralidade.

0 perdão poderá ser aceito pelo querelado, se maior de 21 anos; se menor de 21 e maior de 18 anos, a aceitação pelo querelado só será válida se aceita for também pelo seu representante legal, e vice-versa (art. 54).

E se o querelado, embora maior de 21 anos, for mentalmente enfermo ou retardado mental e não tiver representante legal? A aceitação do perdão caberá ao curador que o Juiz lhe nomear. A mesma solução será dada se, tendo representante legal, os interesses deste colidirem com os do querelado (CPP, art. 53).

8. Aceitação processual e extraprocessual

Também a aceitação do perdão pode ser processual ou extraprocessual. Ambas, por outro lado, podem ser expressa ou tácita.Aceitação processual expressa é aquela em que o querelado, dentro do processo, manifesta a vontade de aceitar o perdão que lhe foi concedido.

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Diz-se tácita a aceitação processual se, concedido o perdão mediante declaração nos autos e notificado o querelado a dizer, dentro de 3 dias, se o aceita e cientificado de que seu silêncio importará aceitação, não der nenhuma resposta (art. 58).A aceitação será extraprocessual se ocorrer fora dos autos. Poderá, como vimos, ser expressa ou tácita. Da primeira, cuida o art. 59 do CPP:

querelados aproveitará a todos, sem que produza, todavia, efeito em relação ao que recusar. No mesmo sentido, art. 105, 1 e 11, do CP.

"A aceitação do perdão fora do processo constará de declaração assinada pelo querelado, por seu representante legal ou procurador com poderes especiais".

0 nosso Código, ao contrário do italiano, não traçou normas sobre a aceitação extraprocessual tácita: "Vi é ricusa tacita, quando il querelato lia compitito fatti incompatibili con Ia volontà di accettare Ia rimissione" (CP italiano, art. 155, 1.' parte).

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Suponha-se que o querelante convide o querelado para seu padrinho de casamento e este aceite o convite. Haverá não só a concessão tácita, como também a aceitação tácita. Os atos por ambos praticados revelam a vontade de indulgenciar e também a de aceitar a clemência.Aceito o perdão, será declarada extinta a punibilidade.0 legislador quis realçar o caráter bilateral do perdão salientando que, se o querelado recusá-lo, o perdão não produz efeito. É de ponderar, entretanto, que, se o querelado não aceitar o perdão e se o querelante não quiser prosseguir na ação, é bastante deixar de dar andamento ao processo durante 30 dias seguidos, ou, então, deixar de comparecer a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais. Se assim proceder o querelante, o Juiz, já agora pouco importando a recusa do querelado, julgará extinta a punibilidade, pela perempção, nos termos do art. 60, 1 ou 111, do CPP, combinado com o art. 108, IV, 3. figura, do CR

9. Extensão do perdão

Ainda em decorrência do princípio da indivisibilidade da ação penal privada, o CPP dispõe, no art. 5 1, que o perdão concedido a um dos

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Tal disposição realça, ao mesmo tempo, uma conseqüência da indivisibilidade da ação penal e uma exceção a esse princípio. Estadeia a indivisibilidade, quando salienta que o perdão concedido a um dos querelados a todos aproveitará. Realça a exceção quando prescreve que, se um querelado recusar o perdão e os demais o aceitarem, o processo continuará, apenas, contra o querelado-recus ante.É manifesto que, se todos recusarem, o processo terá seu andamento nornãO, como se nada houvesse acontecido, pois, ante a recusa dos querelados, o perdão não produzirá efeito.

10. Perdão e renúncia

Perdão e renúncia são causas extintivas da punibilidade (CP, art. 107, V). Um e outra podem ser expressos ou tácitos, sendo de notar que tanto a renúncia como o perdão, quando tácitos, admitirão todos os meios de prova. Sem embargo dessa semelhança, distinguem-se em: a) A renuncia antecede à propositura da ação penal; somente poderá ocorrer antes do oferecimento da queixa. 0 perdão, entretanto, na linguagem do Código, obsta ao prosseguimento da ação, isto é, pressupõe uma ação proposta. b) A renúncia é unilateral, no sentido de que o ofendido, para renunciar ao seu direito de queixa, independe da manifestação de vontade do ofensor. Já o perdão é bilateral. Sua validade está condicionada à aceitação pelo querelado.Assemelham-se, por outro lado, na circunstância de serem ambos institutos da ação penal privada, com isto de particular: o perdão só é admitido nos crimes de exclusiva ação privada, enquanto a renúncia, conforme já observamos, pode ter lugar na ação penal privada e na ação privada subsidiária da pública.Vimos que o perdão só poderá ser concedido depois de iniciada a instância penal. É de acentuar, entretanto, que o legislador, quanto ao crime de adultério, salientou que a ação penal não pode ser

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intentada pelo cônjuge que consentiu no adultério ou o perdoou expressa ou tacitamente.Parece, à primeira vista, tratar-se de uma exceção ao princípio de que o perdão pressupõe a ação penal instaurada. Creio que o perdão a que se refere o art. 240, § 10, 11, do CP não tem o sentido de causa extintiva de punibilidade, mas o de "condição negativa de criminalidade, equiparado que foi ao consentimento".

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1 1, ~

0 perdão poderá ser concedido depois da propositura da ação penal. Mesmo depois de proferida sentença condenatória, ainda assim, é possível a concessão do perdão se, porventura, não transitou em julgado a decisão (CP, art. 105, 111). Transitada em julgado a decisão condenatória, não haverá mais lugar à concessão do perdão, "pois o ofendido só dispõe da ação penal e não da execução, que compete ao Estado promover. A execução é obrigatória. Só o Estado pode renunciar a ela, por meio da graça, que é o perdão público".

11. Perempção

0 CP incluiu a perempção entre as causas extintivas de punibilidade (CP art. 107, IV, 3. figura).Perimir, de perimo, is, emi, emptum, ere, quer dizer matar, destruir. Perimir o direito de ação é matá-lo (cf. Tornaghi, Instituições, cit., v. 1, t. 2, p. 102)."E uma penalidade imposta ao ofendido, ou aos seus sucessores, pelo desinteresse, tacitamente manifestado, em prosseguir na ação."A perempção é causa extintiva de punibilidade que alcança, exclusivamente, aqueles casos em que somente se procede mediante queixa. Apenas nos casos de exclusiva ação penal privada é que se pode falar em perempção no nosso Direito atual.Se o órgão do Ministério Público não oferece a denúncia no prazo legal e o ofendido apresenta a queixa substitutiva da denúncia e, por exemplo, deixa de dar andamento ao processo durante 30 dias seguidos, não há falar-se em perempção, pois, nessa hipótese, o órgão estatal da acusaçao assumira o papel de parte principal.É de acentuar, nesta oportunidade, que, dizendo a lei "Considerarse-á perempta a ação penal" (CPP, art. 60), segue-se que a perempção só poderá ocorrer uma vez iniciada a ação penal. Antes de proposta a ação, pode haver renúncia, decadência ou até mesmo prescrição, nunca, porém, perempção. Nisto se aproxima, aliás, do perdão. Difere deste, entretanto, quanto ao placet do querelado.

12. Quais as causas que determinam a perempção?

Di-lo o art. 60 do CPP: Nos casos em que somente se procede mediante queixa, considerar-se-á a ação penal perempta:

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'1 - quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover o andamento do processo durante trinta dias seguidos".

0 que a lei quer, diz com acerto Hélio Tornaglii, é que o processo não fique à mercê do querelante.

Deve este promover o andamento do processo. Se os autos permanecem paralisados em Cartório, deve o querelante dirigir petição ao Juiz no sentij~o de ser tomada essa ou aquela providência. É evidente que se os autos ficaram paralisados porque o Juiz penal aguardava decisão do cível sobre prejudicial levantada, não há excogitar-se de inércia do autor.A perempção é uma sanção ao querelante desidioso, negligente, inerte. Por outro lado, se os autos estiverem com o Juiz para tal ou qual decisão, creio que, embora fiquem com ele por mais de 30 dias, não se pode dizer ter havido inércia do querelante. Diga-se o mesmo se o Juiz determinar, de acordo com a pauta dos serviços, a realização de audiência para uma data distante. Nessa hipótese também não se pode falar em inércia do querelante. Entretanto, se os autos permanecerem em Cartório durante 30 dias seguidos, sem nenhum motivo que justifique sua paralisação, aí, sim, poder-se-á dizer ter havido negligência, aplicandose a sanção respectiva, isto é, a declaração da extinção da punibilidade, com fundamento no art. 60, 1, do CPP, combinado com o art. 107, IV, 3.' figura, do CREmbora seja curial, é bom que se frise: se o querelante estiver representado no processo, ao seu representante cumpre ser diligente. Se o querelante for pessoa habilitada e estiver à frente do processo, cumpre, então, a ele próprio, movimentar a causa, podendo, entretanto, fazer-se representar por pessoa tecnicamente habilitada.Se B estiver processando Y, para que não haja a perempção, com fundamento no art. 60, 1, do CPP, a lei não exige que o próprio ofendido ou seu representante legal movimente a causa. Tal tarefa deve ser cumprida pelo advogado que estiver representando o querelante.

'11 - quando, falecendo o querelante, ou sobrevindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo, dentro do prazo de sessenta dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo, ressalvado o disposto no art. 36."

Esta é outra causa determinante da perempção. 0 art. 60, 11, acima transcrito, sugere situações que precisam ser distinguidas.

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A) Se o querelante falece, qualquer daquelas pessoas enumeradas no art. 31 do CPP poderá prosseguir na ação, dentro do prazo de 60 dias, contados da data da morte, ressalvada, apenas, aquela preferência a que se refere o art. 36 do mesmo diploma na hipótese de comparecerem, no mesmo momento, duas ou mais pessoas querendo assumir a posição de querelante. Se, quando o querelante faleceu, o processo estava paralisado durante 29 dias, creio não se poder falar em perempção. De fato. Sobrevindo a morte quando faltavam 2 dias para ser considerada perempta a ação penal, com

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fundamento no inc. 1 do art. 60, não se poderá dizer que o querelante não fosse, à última hora, movimentar o processo. Nessa hipótese, seus sucessores podem vir assumir a posiçao de querelante, contando-se o prazo de 60 dias não da data do último ato processual praticado pelo querelante, porém da sua morte.B) Falecido o querelante, 60 dias após compareceu em juízo, para

dar prosseguimento à ação, o cônjuge sobrevivente. Este (por meio de advogado, salvo se tiver habilitação), depois de ingressar emjuízo como querelante, deixou o processo paralisado durante 30 dias seguidos. Houve, em verdade, relápsia dele, em suma, perempção. Assim, havendo abandono da ação, aplicar-se-á o disposto no art. 36, infine, do CPP: "... podendo, entretanto, qualquer delas (das pessoas enumeradas no art. 3 1) prosseguir na ação, caso o querelante (que obteve a preferência), desista da instância ou a abandone".Se não for dada tal interpretação ao art. 36, poderia haver burla à1, 1 )lei. Dentro nos 60 dias, compareceriam o ascendente e um descendente --Ipara prosseguir na ação. Em face do art. 36, dar-se-ia a preferência ao ascendente. Este, contudo, logo em seguida deixaria o processo parali-* sado por mais de 30 dias, ou não formularia o pedido de condenação, ou, então, deixaria de comparecer a qualquer ato do feito ao qual deveria estar presente. Cremos que, nessa hipótese, como o inc. 11 do art. 60, na sua parte final, ressalvou o disposto no art. 36, e se este permite o prosseguimento da ação penal privada quando houver desistência ou

abandono, poderá, no exemplo enfocado, ser dada continuidade ao feito pelo descendente.

Evidentemente, não estamos evocando a analogia. Bem clara a redação do art. 36: "Se comparecer mais de uma pessoa com direito de queixa, terá preferência o cônjuge, e, em seguida, o parente mais próximo na ordem de enumeração constante do art. 3 1, podendo, entretanto,

Li .

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qualquer delas prosseguir na ação, caso o querelante desista da instância ou a abandone".

Assim, se a vítima morrer, estando a ação em andamento, nada obsta que o cônjuge venha dar-lhe prosseguimento, tal como permitido pelo art. 3 1. E se, neste caso, o cônjuge desistir ou abandonar a "iristância"? Aplicar-se-á a regra do art. 36, na sua parte final. Evidente que a palavra querelante, contida no art. 36, está empregada no sentido de querAnte-sucessor, pois não faria sentido que a própria vítima (genuíno querelante) desistisse da ação e outrem pudesse dar-lhe continuidade...E se, no exemplo dado, o cônjuge, que estava como querelantesucessor, vier a falecer? Se ele desistisse, a ação poderia prosseguir, quanto mais se morrer...

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Não nos parece procedente, data venia, a observação feita por Jorge Alberto Romeiro, em sua obra Da ação penal (2. ed., Forense, 1978, p. 237), pelas razões expostas. Não procedemos à interpretação analógica, como pareceu ao notável jurista, a quem aprendemos a respeitar desde os bancos acadêmicos. Aludimos à questão do prazo. Em que prazo deveria o outro sucessor dar prosseguimento à ação? 0 art. 36 não o diz. Não o diz, também, o art. 3 1. À míngua de regulamentação, lembramonos do iric. 11 do art. 60 do CPP, por analogia. Mas, se a expressão for inadequada, podemos dizer que o prazo é o mesmo do art. 60, 11, por força de compreensão...C) A hipótese de superveniente incapacidade do querelante comporta alguns esclarecimentos: 1.') se a incapacidade consistir em ausência, o prazo de 60 dias para os sucessores virem dar prosseguimento à ação sera contado a partir da data em que o querelante for judicialmente declarado ausente, e, nessa hipótese, as pessoas com direito de prosseguir na ação são aquelas enumeradas no art. 3 1; 2.0) se a incapacidade não consistir em ausência, pensamos que o prazo de 60 dias deve ser contado da data em que esta for declarada, e, nesses casos, as pessoas com direito de prosseguir na ação não são aquelas enumeradas no art. 3 1, pois aquelas pessoas só têm tal direito no caso de morte ou de ausência. Na hipótese, somente o representante legal do querelante é que poderá dar prosseguimento à ação.Merece, nesta oportunidade, ser salientada ajusta ponderação de Camara Leal: "Se a incapacidade promana da ausência judicialmente declarada, o direito de prosseguir na ação intentada pelo ausente com-

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LL ,

pete ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, como estabelece o art. 3 1. Mas, se a incapacidade provier de outras causas, a incumbência de prosseguir na queixa intentada pelo que se tornou incapaz é do seu representante legal, por isso que o direito concedido aos parentes enumerados no art. 31 é restrito aos dois casos que especifica - morte e ausência" (cf. Camara Leal, Comentários, cit., p. 228).Poder-se-á dizer que, na hipótese de ausência, dar-se-á a perempção de acordo com o art. 60, 1, do CPP. Depende. Se o querelante estiver em juízo, devidamente representado (por advogado), bem poderá seu Procurador não negligenciar e o processo arrastar-se por bastante tempo (questão prejudicial, acúmulo de serviço do Juiz etc.) sem que se fale em perempção. Declarada judicialmente a ausencia, cumpre, então, a qualquer daquelas pessoas referidas no art. 3 1, dentro do prazo de 60 dias, dar prosseguimento ao feito, pois, a esta altura, já não terá valor a procuração outorgada ao advogado pelo querelante ausente.

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É de se ponderar, entretanto, que, se o querelante estava à frente do processo, por ser pessoa habilitada, e desapareceu do seu domicílio, não vemos como não se julgar perempta a ação penal, quer com fundamento no inc. 1 do art. 60, quer com fundamento no inc. 111 do citado artigo.E se o querelante, que estava à frente do processo, por ser pessoa habilitada, deixou os autos permanecerem paralisados por 30 dias e no 3 L" tomou-se incapaz, sobrevindo-lhe, por exemplo, uma loucura? Pensamos que não se pode alegar a perempção, porquanto se trata de força maior, aplicando-se, pois, a regra que se contém no art. 798, § 4.', do CPP:

"Não correrão os prazos, se houver impedimento do Juiz, força maior, ou obstáculo judicial oposto pela parte contrária".

Entende Raymundo Macedo que, nessas hipóteses, como o processo da interdição poderá demorar, deverá o Juiz, por analogia, aplicar o disposto no art. 33 do CPP, isto é, nomear um curador especial para dar prosseguimento à ação (cf. Raymundo Macedo, Da extinção, cit., p. 18 7).

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'111 - quando o querelante deixar de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou deixar de formular o pedido de condenação nas alegações finais."

A primeira parte do dispositivo em exame refere-se ao não-comparecimento do querelante a qualquer ato do processo a que deva comparecer. É óbvio, como esclarece o próprio texto, que o não-comparecimento não acarreta a perempção, se devidamente justificado. 0 querelante deverá estar presente aos atos da instrução: ouvida das testemunhas de acusação, de defesa e aos debates (se o processo for sumário).Quando se fala em comparecimento do querelante a todos os atos do prooÊsso a que deva estarpresente, obviamente se entende a presença do seu patrono (cf. RV, 60/372; RT, 492/294, 490/394), salvo a hipótese especialíssima que lhe exija o comparecimento pessoal, tal como na audiência a que se refere o art. 520 do CPP. Salvante as hipóteses, raras aliás, em que a presença física do querelante é indispensável, não ocorrerá a perempção se houver o comparecimento do patrono. 0 inc. 111 do art. 60 do CPP cuida de atos que exigem a presença do querelante. E se se tratar de testemunhas de defesa? Deverá o querelante ou o seu patrono estar presente à audiência? 0 Supremo já decidiu em sentido afirmativo: "A falta não justificada, do querelante ou de qualquer de seus patronos, à audiência de inquirição de testemunhas, mesmo as de defesa, enseja a perempção" (cf. RTI, 481745). Mais recentemente, no julgado inserto na RTI, 71/235, a Suprema Corte desacolheu o entendimento anterior. Tratando-se de oitiva de testemunhas de defesa, evidentemente não há obrigação de o querelante ou o seu patrono estar presente à audiência. Ato a que deva estar presente, diz a lei. Logo, trata-se de ato que não pode ser realizado sem a sua presença. Nesse sentido, vejase RT, 442/354. Se o ato deve ser realizado por meio de precatória, também não haverá necessidade de o querelante estar presente.

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Bastará o comparecimento do seu patrono. Nesse sentido: RTI, 601372, 95/142; RT, 5401395, 556/343; Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 66/151 e 671219.

A segunda parte diz respeito a "deixar o querelante de formular o pedido de condenação nas alegações finais". No processo sumário, ouvidas as testemunhas de defesa, haverá debates (alegações orais), e, nessas alegações, o autor, depois de feita a apreciação das provas, pedirá a condenação ou absolvição do réu. Se pedir a absolvição, o Juiz não poderá condenar o réu nem mesmo entrar no meritum causae. Resta-lhe, tão-somente, declarar extinta a punibilidade, pela perempção. Salvo se se tratar de crime de ação pública, cujo processo tenha sido movido pelo

órgão do Ministério Público ou pelo próprio ofendido (art. 29), nos termos do art. 385 do CPP, pois que vigora, nesses casos, o princípio da indisponibilidade da ação penal.

Se o querelante limitar-se ao clássicofiatjustitia, também aí deverá o Juiz declarar perempta a ação penal, pois o Código quer que aquele peça a condenação do réu, o que é diferente. E se o processo for de rito ordinário? Deverá o querelante oferecer suas alegações por escrito, nos termos do art. 500 do CPR Se, nessas alegações, não pedir a condenação do querelado, perempta ficará a ação penal. Diga-se o mesmo se o querelante não oferecer suas alegações, pois, não as apresentando, evi-dentemente não pediu a condenação do querelado. 0 problema tornarse-á mais sério, e até mesmo complicado, se o querelante for uma daquelas pessoas a que se refere o art. 3 1, que deu prosseguimento à ação em virtude de morte ou de ausência do querelante.

Suponha-se que, morto o querelante, foi dado prosseguimento à ação pelo cônjuge. A um ato do processo, a que devia estar presente, este deixou de comparecer e não justificou seu não-comparecimento. Deverá ser declarada perempta a ação penal? Evidentemente não. Casocontrário, não teria aplicação o disposto no art. 36 do CPP, que dá a qualquer das pessoas referidas no art. 31 o direito de prosseguir na ação, caso o querelante-sucessor desista da instância ou a abandone. Assim, deverão aquelas pessoas ser ouvidas. E se nos debates o querelantesucessor pedir a absolvição do querelado ou, então, deixar de pedir a condenação? A mesma observação se impõe, sob pena de se postergar a regra contida no art. 36.

De fato, quem deixa de comparecer, depois de ser devidamente intimado, a ato do processo a que deva estar presente, sem justificar o não-comparecimento, evidentemente abandonou a instância, manifestou o seu desinteresse pelo prosseguimento da causa, e, então, não seria justo que as outras pessoas com direito de prosseguir na ação não fossem ouvidas. 0 mesmo se dá quando ocorre a falta de pedido de condenação. A ninguém é lícito ignorar a lei. Se o querelante deixa de formular o pedido de condenação, está, claramente, demonstrando desinteresse, descaso pela sorte da demanda, e, assim, deverá ser atendido o disposto no art. 36.

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Raymundo Macedo, em sua monografia tantas vezes citada, entende que, nesses casos, deverão aquelas pessoas a que se refere o art. 31

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estar presentes à audiência de debates para, em eventual desistência, continuar no processo. Seria demais. E nas hipóteses de alegações escritas? Suponha-se que, oferecidas as alegações, os autos subam conclusos imediatamente ao Juiz. Deveriam aquelas pessoas solicitar os autos para fiscalizar a atividade do querelante- sucessor? Como poderiam as pessoas a que se refere o art. 31 estar presentes à audiência de debates se apenas as partes é que são notificadas? Creio que aquelas pessoas, em casoAessa natureza, deverão, necessariamente, ser ouvidas. Por outro lado, entendemos que o legislador deveria evitar todas as possiveis complicaçoes que podem surgir quando o querelante for sucessor do ofendido morto ou ausente. A nos nos parece que não andaria mal o legislador se, porventura, na hipótese do art. 3 1, concedesse o direito de oferecer queixa ou de prosseguir na ação a qualquer das pessoas enumeradas no art. 3 1, com a preferência a que se refere o art. 36, salientando, entretanto, que as demais pessoas somente lhe poderiam dar prosseguimento, na hipótese de desistência ou abandono da instância pelo querelante- sucessor, se se habilitassem, oportuno tempore, como assistentes, infringindo-se, apenas nessa hipótese, a regra que proíbe a figura do assistente nas açoes privadas. Realmente, a aplicação, às vezes, do art. 31 toma-se tão complicada que o intérprete, pretendendo dar solução ao caso, poderá acarretar sérios prejuízos às pessoas interessadas em dar prosseguimento à ação.

"IV - quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor."

Vimos que a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de crime.

Entretanto poderá ser sujeito passivo. Iniciada a ação penal privada, sendo querelante pessoa jurídica, haverá a perempção se a pessoa jurídica se extinguir sem deixar sucessor. E se deixar? Nessa hipótese, poderá ele prosseguir na ação, dentro do prazo de 60 dias, pois a extinção de pessoa jurídica equivale à morte ou incapacidade de pessoa física.

E se a empresa for à falência? Nada impede possa o síndico ingressar com a queixa-crime, nos termos do art. 63, XVI, do estatuto falitário. Na verdade, o síndico tanto poderá ofertar queixa-crime como, também, prosseguir naquelajá iniciada. Se pode propor, nada impede possa, também, dar continuidade ao processo já iniciado.

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13. Perempção, renúncia e perdão

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A perempção, a renúncia e o perdão são causas de extinção da punibilidade. Enquanto a perempção e o perdão pressupõem a ação penal já proposta, a renúncia antecede à propositura da ação. A perempção e o perdão só podem ocorrer depois de iniciada a ação, enquanto a renuncia so se verifica, sempre e sempre, antes da sua propositura. A perempção e o perdão só podem ocorrer nos crimes de exclusiva ação privada. A renúncia tanto pode ter lugar na ação exclusivamente privada como na privada subsidiária da pública, uma vez que o art. 104 do CP fala em

44renúncia ao direito de queixa", e direito de queixa tem também o ofendido na hipótese do art. 29 do CPR A renúncia e a perempção independem, para a sua validade, como causa extintiva da punibilidade, de assentimento do querelado. Já o perdão é bilateral, no sentido de que, para a sua validade, haverá necessidade do placet dele. Por outro lado, ainda se distingue a perempção do perdão: é possível ocorrer o perdão mesmo depois de proferida sentença condenatória. A perempção, entretanto, antecede sempre a decisão final, isto é, não é possível ocorrer depois de proferida esta.1

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14. Retratação

0 art. 107, VI, do CP diz que a punibilidade se extingue, tanil: pela "retratação do agente, nos casos em que a lei a admite".

zer-se, ou, como bem diz Aloysio de Carvalho Filho, é deixar o dito pelo não dito. Equivale a um arrependimento eficaz.

Que é retratação? Em que casos a lei a permite? Retratar é desdi-

A que casos se aplica? A retratação só é possível nos crimes de calúnia e difamação, bem como nos de falso testemunho e falsa perícia.0 art. 143 do CP dispõe: "0 querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena".Exclui-se o crime de injúria, porquanto esta, por sua própria natureza, é irretratável. "A ofensa dela resultante consuma-se no momento em que é irrogada. 0 arrependimento posterior do agente não o isenta da responsabilidade de um ato consumado."

Observe-se que a lei exige deva o agente retratar-se cabalmente. Logo, a retratação - o retractare dicta - deve ser plena, perfeita, com-

pleta, satisfatória. Pouco importa que o querelante a recuse. Ela independe do seu placet. "Basta que o Juiz a tenha por cabal reparação do mal causado, para que o Estado se desinteresse da punição do querelado." Nem teria sentido que a eficácia da retratação dependesse da boa ou má vontade do querelante.A Lei de Imprensa, contudo, sobre admitir a retratação nos crimes de injuria, como se constata pela remissão que o art. 26 da referida lei faz âMart. 22, permitiu-a depois de iniciada a ação, e até

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mesmo antes. A propósito o art. 26 e § 1.' da Lei n. 5.250, de 9-2-1967:

"A retratação ou retificação espontânea, expressa e cabal, feita antes de iniciado o procedimento judicial, excluirá a ação pe-nal contra o responsável pelos crimes previstos nos arts. 20 a 22.§ 1.' A retratação do ofensor, em j uízo, reconhecendo, por termo lavrado nos autos, a falsidade da imputação, o eximirá da pena ......

É de estranhar a admissão do retractare dicta na injúria. A princípio pareceu-nos erro tipográfico. Mas a lei anterior, de n. 2.083, de 1211-1953, era no mesmo sentido.

E se o crime de calúnia ou difamaçao não comportar ação penal privada, ainda assim é possível a retratação? A Lei de Imprensa não suscita dúvida. 0 CP, sim. Realmente. 0 art. 143 fala em querelado e não em réu. Logo, como querelado é o réu no processo por crime de ação privada, a retratação não poderá ocorrer se a ação penal for pública. Esse o entendimento de Espínola Filho. Uma vez que o art. 143 do CP fala em querelado e na ação pública não há querelado, não pode haver retratação quando a ação penal for pública.

Magalhães Noronha é do mesmo sentir e chega a citar um venerando acórdão da Suprema Corte, em que se lê não caber retratação quando o ofendido for pessoa investida de autoridade, caso em que o sujeito passivo do delito não é o indivíduo (cf. Direito, cit., v. 2, p. 147). Darcy Arruda Miranda é do mesmo entendimento (cf. Comentários, cit., p. 5 10). Assim também 1). Evangelista de Jesus (cf. Direito, cit., v. 2, p. 528).Segundo Arruda Miranda, a retratação, in casu, é impossível, porque a ação penal é pública e, em face do princípio da indisponibilidade (CPP, art. 42), se o Ministério Público não pode desistir da ação penal, também não pode aceitar a retratação (cf. Comentários, cit., p. 5 10). 0

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argumento, data venia, não convence, mesmo porque cabe ao Juiz, apenas ao Juiz, com circunspecção, constatar se a revocatio do agente foi plena, completa, se implicou, realmente, o desejo de reconhecer o erro cometido num momento de irreflexão, ou se foi um gesto natural de defesa, um ato de covardia para conseguir a impunidade. Ademais, se a extinção da punibilidade, pela retratação, dependesse da boa ou má vontade do querelante, nenhum querelado se retrataria sem antes estar seguro de que suas escusas seriam aceitas. Por outro lado não seria justo que na

hipótese dos crimes contra a honra ficasse a ac citação da retratação a cargo do querelante, e, nos de falso testemunho, a critério do Juiz... Nem passa pela cabeça de quem quer que seja que a retratação nofalsum só terá eficácia se houver concordância do Ministério Público.

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Por outro lado, se a ofensa ao funcionário, em razão de suas funções, "vinca de sérias dúvidas a consciência popular quanto à honestidade administrativa", também é certo "que o aleive deixa sempre a sua marca na honra do ofendido".

Assim, não há uma razão séria a justificar a retratação, como causa extintiva da punibilidade, nos crimes de calúnia e difamação, quando cometidos contra particular, ut civis, e de proibi-Ia, quando a patranha disser respeito a funcionário, em razão da função. Note-se, ainda, com Hungria, que a retratação é uma espécie de arrependimento eficaz que se opera após o eventum sceleris (cf. Comentários, cit., v. 6, p. 120, ri. 142). E, como se sabe, o arrependimento eficaz é válido tanto para os crimes de alçada privada como para os de ação pública.

É sério o argumento de que a ofensa à honra de alguém que exerça função pública, em razão de suas atribuições, envolve, também, a própria administração, e, por 1 sto, a extinção da punibilidade, se admitida, em face da palinódia dos malfeitores da palavra, não faria desaparecer, de todo, o labéu, o desdouro. 0 património moral não seria totalmente reintegrado, e, por outro lado, a própria administração não teria condições de escapar do pelourinho da opinião pública.De ponderar, também, que, quando a canina facundia, a que se referia Quintiliano, atassalha, despedaça e dilacera, numa fração de segundo, a honra do cidadão, vale dizer, sua reputação, decoro, dignidade, enfim, aquela soma de valores morais que cada um atribui a si proprio ou o envolve no meio social, por mais célebre que seja a ação do agente, fazendo, com a sua retratação, a reparação moral da ofensa, dos doestos

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e remoques, não conseguirá ele empanar, por inteiro, a aleivosia, a perfídia, a acusação tisnada de falsidade.

Não obstante, admite o CP brasileiro que a retratação, sendo cabal (art. 143), faz desaparecer o jus puniendi (CP, art. 107, VI). Antes da prolação da sentença, lógico.

Sentindo o Juiz, e apenas ele, ter sido a retratação eficaz e inequívoca,_gercebendo ele o propósito de o agente reconhecer a sua maldade, de se"~ftepender sinceramente do seu proceder leviano e inconsiderado, outra alternativa não lhe resta senão decretar extinta a punibilidade, de ofício, nos termos do art. 61 do CPRVersando o assunto, assim se expressa Aloysio de Carvalho Filho: "Para isentar de pena o ofensor, a retratação prescinde da aceitação do ofendido" (cf. Comentários, cit., p. 283, ri. 108). E mais: quando a eficácia do ato fica subordinada à manifestação da parte ex adversa, a lei consigna a exigência, tal como ocorre na audiência a que se referem os arts. 520 a 522 do CPP.

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E Raymundo Macedo, com seguridade, professa que a retratação nada tem que ver com a pessoa do ofendido nem com a natureza da ação. Ela resulta, exclusivamente, da natureza da infração (cf. Da extinção, cit., p. 216).0 art. 85 do CPP fala em querelantes, e nunca se pretendeu afir-mar que a regra que ali se contém não seja aplicável a hipóteses de ação pública.

Também o art. 523 do CPP fala em querelante, e, à evidência, nãose pode excluir a exceção da verdade se o crime contra a honra for de ação pública.

Se o art. 143 do CP fala em querelado, foi devido à circunstância de nos crimes contra a honra a ação penal, de regra, ser privada. É de observar, por outro lado, que nos crimes de falso testemunho se admite a retratação, e, entretanto, o sujeito passivo da infração é o Estado.

Ademais, não bastassem tais esclarecimentos, há a circunstância de que as normas penais não incriminadoras admitem analogia in bonampartem.No que respeita aos crimes de imprensa, o argumento é ainda mais forte e eloqüente, uma vez que o art. 26 da citada lei não faz a menorrestrição. Diz simplesmente: "A retratação ou retificação espontânea, expressa e cabal, feita antes de iniciado o procedimento judicial, excluirá a ação penal contra o responsável pelos crimes previstos nos arts. 20 a 22".

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E, se a retratação (Lei de Imprensa) ocorrer em juízo, haverá uma particularidade: "a retratação do ofensor em juízo, reconhecendo, por termo lavrado nos autos, a falsidade da imputação, o eximirá da pena, desde que pague as custas do processo e promova, se assim o desejar o ofendido, dentro de cinco dias e por sua conta, a divulgação da notícia da retratação".

Idêntica providência poderia ter sido adotada pelo nosso CR

E se o crime contra a honra for cometido contra o Presidente da República? Já vimos que esse crime, atualmente, foi deslocado do CP para a Lei de Segurança Nacional, onde não se permite a retratação.

Também não admitem a retratação os crimes contra a honra cometidos contra o Presidente do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados e o do Supremo Tribunal Federal, crimes que estão previstos no art. 26 da Lei de Segurança Nacional.

Se tais crimes não tiverem qualquer conotação com a segurança nacional, prevalece o CP, e, então, será possível a retratação.Oportunidade. Da análise dos arts. 143 e 342, § 3.', do CP, a retratação não mais será possível depois de proferida a sentença. Os precei-tos invocados falam em retratação antes da sentença. Se o Juiz profere a sentença, já não haverá lugar para a retratação.

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E nofalsum testemonium? Qual a oportunidade para a retratação? A qualquer momento, contanto que se verifique antes da prolação da sentença no feito em que aquele foi cometido. Quando o art. 342, § 3.', diz: "o fato deixa de ser punível, se, antes da sentença, o agente se retrata ou declara a verdade", a sentença a que se refere o texto é aquela prolatada na causa em que se cometeu o falso.

Se porventura for instaurado processo por falso testemunho antes do julgamento da causa em que aquele foi cometido, a retratação, paraser válida, deve anteceder à prolação da sentença na causa em que se praticou o falso. Por essa razão, deve o julgamento do falso testemunho aguardar a decisão da causa em que se praticou o crime a que se refereo art. 342. Nessa hipótese, a causa funciona como verdadeira prejudicial. Deve serjulgada antes, para depois ser apreciado o outro processo.

Se o crime foi cometido em juízo arbitral, a retratação deverá anteceder à homologação do laudo (CPC, art. 1.099).

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15. 'ISubsequens matrimonium"

Nos crimes contra os costumes, o subsequens matrimonium é, também, causa extintiva da punibilidade. 0 art. 107, VII, do CP diz que se extingue a punibilidade ocorrendo o casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos 1, 11 e 111 do Título VI da Parte Especial.EM~crimes que tais, o casamento faz desaparecer o interesse da repressão. 0 preceito citado, sem embargo da sua singeleza, comporta algumas explicações:A) Se o agente quiser reparar o mal com o casamento e a ofendida recusar a proposta de matrimônio, quid inde? Claro está que não se pode excogitar de extinção da punibilidade, pois, para tanto, haverá necessidade de ser realizado o casamento. Caso contrário, ficaria isento de pena o indivíduo que, violentamente, mantivesse relação sexual com virgem de 17 anos e, em seguida, lhe propusesse casamento, sendo a sua proposta recusada. E seria normal que a ofendida, nesse caso, tivesse justa repugnancia pelo sátiro.13) E se a ofendida, nos crimes contra os costumes, viesse a aceitar a proposta de casamento e seus pais negassem o consentimento? Depende. Se o fato for levado ao conhecimento do Juiz e este considerar ponderáveis as razões da recusa, o casamento não se realizará, e, assim, não há cogitar-se de extinção da punibilidade. Mas se o Juiz entender que a recusa dos pais não é ponderável e suprir-lhes o consentimento (CC, art. 185), o casamento poderá realizar-se, e, desse modo, extinta ficará a punibilidade.C) E se a ofendida aceitar a proposta, obtiver o consentimento dos pais e, momentos antes da celebração do casamento, vier a falecer? Também não haverá a extinção da punibilidade, uma vez que o casamento não se realizou.D) E se o crime for praticado por duas ou mais pessoas (concurso de agentes) e um deles vier a casar-se com a ofendida, a extinção da punibilidade alcançará aos demais partícipes? Basileu Garcia

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responde afirmativamente, não obstante inexistir texto expresso a respeito. Sua conclusão está embasada nas disposições contidas nos arts. 48, 49 e 51 do CPP, achando que o casamento implica perdão (cf. Instituições, cit., p. 692 e s.). E o mestre Magalhães Noronha arremata: Se assim não se

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1

1

Li, 594

entender, não se toma visível que nenhum efeito moral e'social teria esse casamento subseqüente? Os efeitos, às vezes, seriam até mais nocivos à vítima, pois, desaparecido da trama criminosa o agente principal, pelo casamento realizado, a ação dos co-autores teria de ser salientada e ressaltada, para vingar contra eles o processo, assistindo a tudo isso a ofendida e seu esposo, que não desejam outra coisa senão o silêncio so-i bre o fato. Se a lei tornou regra o procedimento privado nesses crimes,atendendo, antes de tudo, ao interesse da ofendida, não pode coerente-imente deixar de estender os benefícios aos co-autores (Crimes contra os costumes, p. 468 e s.). Nélson Hungria comunga desse entendimento, achando que o fundamento dessa extensão está no art. 26, in principio, do CP (cf. Comentários, cit., v. 8, p. 235).

E) E se da violência empregada nos crimes contra os costumes resultar lesão corporal grave? Aloysio de Carvalho Filho entende que nos crimes contra os costumes, mesmo havendo um resultado preterdoloso, o casamento do agente com a ofendida extingue a punibilidade, "pois não se trata senão dos mesmos crimes, com a pena mais agravada, em virtude da conseqüência" (cf. Comentários, cit., p. 290).A maioria dos doutrinadores, entretanto, divergindo (e com razão), acentua que o art. 107, VIII, refere-se aos crimes contra os costumes alinhados nos Capítulos 1, 11 e 111 do Título V da Parte Especial, valeodizer, aos crimes definidos no art. 213 usque 222 do CP, e as formas qualificadas estão encartadas no art. 223, isto é, no Capítulo IV do Título VI... Na verdade, a redação do art. 107, VII, do estatuto penal afasta a possibilidade de extinguir-se a punibilidade quanto ao majus delictum. Havendo, em decorrência da violência, lesão corporal grave ou morte, o crime será qualificado pelo resultado, e o legislador dele tratou no capítulo seguinte.

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0 casamento, em tal caso, poderá, isto sim, minorar a pena, em face da atenuante a que se refere o art. 65, 111, b, do CP (ter o agente procurado, por sua espontânea vontadecrime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou gamento, reparado o dano).

e COM eficiência, logo após o ter, antes dojul-

F) E se a vítima for pessoa do sexo masculino? A hipótese pode ocorrer, notadamente nos crimes definidos nos arts. 214 e 218. Frederico Marques e Basileu Garcia entendem que o subsequens matrimonium terá efeito liberatório. É certo que o art. 107, VII, fala do casamento do

agente com a ofendida, pressupondo-se, assim, a mulher como sujeito passiSio do crime. Mas, como a situação é análoga, o dispositivo é aplicável ao caso. Trata-se de analogia in bonam partem.G) Anulado o casamento que determinou a extinção da punibilidade, persistem os efeitos desta? É óbvio que o casamento, para determinar a extinção da punibilidade, deve ser válido. Pode acontecer, entretanto, que, a d speito das cautelas tomadas, possa ser anulado o matrimônio. Magalhães Noronha, focalizando o assunto, preleciona que, se o réu, tendo evitado a punição porque se casou com a ofendida, conseguir mais tarde anular o casamento, cessará a causa que extinguia a punibilidade, donde, conseqüentemente, deverá a pena ser executada; mas, caso ainda não haja sido processado, deverá o procedimento judicial ter início. Se assim não fosse, obtempera o mestre, permitir~se-ia que ele burlasse a lei; aqui, evitaria a pena com o casamento; lá, furtar-se-ia às obrigações que este impõe, anulando-o. E arremata: o mais alto Tribunal do País já teve ocasião de manifestar-se em tal hipótese, concluindo que o casamento declarado nulo não isenta o criminoso da ação penal, enquanto esta não estiver prescrita (cf. Crimes, cit., p. 404).Também Manzini: '11 matrimonio, utile per 1'estinzione del reato, é soltanto quello legale e valito: non quindi iI matrimonio semplicemente religioso o nullo per qualsiasi motivo" (Diritto, cit., p. 561).Sem nenhum desar aos alumiados mestres, ousamos deles dissentir. É natural que somente o casamento válido terá a força necessária para determinar a extinção da punibilidade. Se o casamento for declarado nulo, sem que haja sido decretada extinta a punibilidade (o que pode ocorrer, se porventura não se instaurou inquérito), nada obsta se dê início à persecução, se ainda for possível. Todavia, se a ação penal já estava em andamento e, em virtude do casamento subseqüente, foi declarada extinta a punibilidade, transitada emjulgado tal decisão, que é terminativa de mérito, não poderá, no nosso Direito, ser reaberta a causa penal. Mesmo que não tenha sido instaurada a instância, se havia simples inquérito e foi decretada extinta a punibilidade em face do subsequens matrimonium, transitada em julgado tal decisão, tollitur quaestio. Do contrário, por via oblíqua, admitir-se-ia entre nós a revisãopro societate. E, como no nosso Direito a revisão constitui sempre garantia individual, direito exclusivo do condenado, será estranho que se vivificasse um processo contra o réu tendo havido decisão, com trânsito em julgado, negando a relação jurídico-material.

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e

Com elevado acerto, ensina Frederico Marques que o nosso Direito não admite qualquer forma de revisão contra o réu, e nisso consistiria, sob forma oblíqua, a restauração do estado anterior ao casamento que se anulou (cf. Curso, cit., p. 429).Assim, realizado o casamento e decretada a extinção da punibilidade, se aquele for anulado, impossível o retorno ao statu quo ante, isto é, se a extinção da punibilidade se verificou na fase do inquérito, não poderá o Promotor ou o ofendido dar início à ação penal. Se, após decretada no curso do processo, este não poderá prosseguir. Se, após sentença condenatória, não cumprirá o réu a pena que lhe foi imposta.

Quando o Juiz julga extinta a punibilidade, outra coisa não faz senão proferir decisão de mérito, ou preliminar de mérito, como quer Frederico Marques (cf. Elementos, cit., v. 2, n. 406).

Tanto isso é verdade que, se o Juiz, no curso do processo, decretar extinta a punibilidade, a rigor, tal decisão é absolutória em sentido amplo, muito embora não elencada no art. 386. E que o Juiz, reconhecendo a inexistência dojus puniendi, em determinada hipótese, nega a relação jurídico-material, questão de mérito, evidentemente. Ora, as decisões que incidem sobre o mérito, se não comportarem mais recurso, produzem a coisa julgada material, e, assim, não teria sentido o prosseguimento da causa, uma vez anulado o matrimônio.

É de acentuar que o entendimento de Noronha encontra ressonância no pensamento de Hungria, para quem a superveniente anulação do casamento faz reviver a punibilidade (cf. Comentários, cit., p. 235).Repita-se: quando o Juiz decreta a extinção da punibilidade, outra coisa não faz senão apreciar questão de mérito, e fazem coisa julgada material decisões dessa natureza. De sorte que, transitada emjulgado a decisão que decretou a extinção da punibilidade, não só se torna inimpugnável o ato jurisdicional, como também não se admite restauração da causa em qualquer juízo. Res judicata pro veritate habeturH) 0 subsequens matrimonium extingue o crime ou a pena? A indagação não é destituída de interesse. Extinguindo o crime, se o criminoso era primário, permanecerá primário, e, vindo a cometer outra infração, não será considerado reincidente. Extinguindo a pena (é claro que nos referimos ao casamento realizado após a prolação da sentença condenatória, porquanto, se a extinção da punibilidade ocorreu antes, evidentemente não haverá nenhum interesse em se saber se houve extinção

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da pena ou do crime, mesmo porque pena a cumprir não há ... ), a sentença persistiria, com relevância jurídica no curriculum vitae do agente. Entende Hungria que o subsequens matrimonium extingue

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tão-somente a pena, não o crime. 0 Código fala em extinção da punibilidade, reproduzindo, sem alteração de fundo, a expressão do Código anterior: "não haverá imposição de pena", e, como nenhuma referência fez à criminosidade do fato anterior, segue-se que, na hipótese, não há cogitar de extinção do crime.,*esmo porque, como doutrina Magalhães Noronha, as causas que excluem o crime lhe são anteriores ou concomitantes, e o subsequens matrimonium é posterior (cf. Crimes, cit., p. 407).

16. "Subsequens matrimonium cum tertio"

No nosso Direito, o casamento da ofendida com quem não fosse o autor do crime não afetava a punibilidade. Se a ação penal fosse privada, restaria à querelante perdoar ou deixar perimir a ação penal. Sendo pública condicionada, uma vez ofertada a denúncia, o art. 25 do CPP funcionaria como um freio a angustiar os reclamos da doutrina. Antes do oferecimento da denúncia ou queixa, o problema seria facilmente resolvido, dependendo da vontade da ofendida: renunciando ou, então, retratando-se. E depois de iniciada a ação? Sendo de ação privada, não havia problema. E se fosse pública condicionada? A ação teria de prosseguir. Contudo, o STF, atendendo à circunstância de que à sociedade interessa mais a paz do novo lar do que mesmo a punição do culpado, criou, por meio da Súmula 388, uma fórmula de se extinguir a punibilidade, pouco importando se a ação era pública condicionada ou privada, quando a ofendida se matrimoniasse com terceiro. Mais tarde o Excelso Pretório houve por bem revogá-la.Em face da Lei n. 6.416, de 24-5-1977, o subsequens matrimonium cum tertio, desde que satisfeitas certas particularidades, foi alçado à posição de causa extintiva de punibilidade.Hoje, com a Parte Geral do CP profundamente alterada pela Lei n. 7.209184, toda aquela discussão, todas aquelas dúvidas que havia perderam a razão de ser. Bem claro o inc. VIII do art. 107 do CP:

"Extingue-se a punibilidade:

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,I

VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior" (crimes contra os costumes definidos nos Capítulos 1, 11 e 111 do Título VI da Parte Especial deste Código), "se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de sessenta dias a contar da celebração".

Assim, indiferente para o prosseguimento do inquérito ou da ação penal o casamento da ofendida com terceiro nos crimes de estupro com violência real ou grave ameaça, nos crimes de atentado violento ao pudor, no crime de rapto, quando cometido com violência ou grave amea-

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ça, e, por estarem no Capítulo IV, nos crimes contra os costumes na sua forma qualificada (CP, art. 223). Nos demais crimes contra os costumes, deverá a ofendida, para evitar a extinção da punibilidade, requerer, dentro em 60 dias a partir da celebração do casamento, o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal. A partir da celebração, diz a lei. Aí está, pois, o dies a quo: a data do casamento. 0 prazo de 60 dias é contado de acordo com o art. 10 do CR

Iniciada a ação penal, extinguir-se-á a punibilidade se a ofendida deixar de requerer o seu prosseguimento dentro do prazo de 60 dias após a celebração. Suponha-se que o casamento tenha ocorrido logo apos a prolação da sentença condenatória ou absolutória. Se a decisão não transitou em julgado, a ação penal está em curso..., e, assim, se a ofendida não requerer o prosseguimento da ação dentro naquele prazo a que se refere o art. 107, VIII, do CP, extinguir-se-á a punibilidade.E se a ofendida for menor de 18 anos? Neste caso caberá ao seu esposo requerer, ou não, o prosseguimento do feito. Se o casamento, nesta hipótese, ocorrer antes da propositura da ação penal, caberá, também, ao esposo renunciar, se privada a ação penal, ou se retratar, nos termos do art. 25 do CPP, se pública condicionada.A lei, contudo, faz uma restrição: nenhuma aplicação terá o art. 107, VIII, se o crime contra os costumes for cometido com violência ou grave ameaça.

E se se tratar de crime de ação pública incondicionada? Nos crimes contra os costumes, a ação penal poderá ser pública incondicionada em duas hipóteses: a) se da violência resulta lesão corporal grave ou morte

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(art. 223); b) se o crime é cometido com o abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador (CP, art. 225, § 1.', 11).Na primeira hipótese, a solução não oferece maior dificuldade. Por duas razões: a) havendo violência, não haverá extinção da punibilidade, nos precisos termos do inc. VIII do art. 107 do CP; b) ainda que falsa essa afirmativa, é de observar que os crimes contra os costumes a que se refere o inc. VIII do art. 107 são os mesmos tratados no inc. VII, e este, por sewfurno, refere-se aos crimes definidos nos Capítulos 1, 11 e 111 do Título VI da Parte Especial... e a hipótese enfocada no art. 223 está no Capítulo IV..

E na segunda? Não há, na lei, nenhum obstáculo, contanto que o crime não haja sido perpetrado mediante violência ou grave ameaça, pois, neste caso, a hipótese seria solucionada tal qual a anterior.Deverá a ofendida ser notificada a fazer uso daquela faculdade a que se refere o inc. VIII do art. 107 do CP?Se a ninguém é lícito ignorar a lei, a notificação, in casu, teria um sentido de exceção àquela regra, o que não se concebe. Tão logo se junte a certidão comprobatória do matrimônio, deverá o Juiz determinar o sobrestamento do feito, durante 60 dias, a contar da celebração do matrimônio. Se, quando da juntada, o casamento ocorrera há mais de 60 dias, sem que houvesse requerimento no sentido de

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prosseguir no inquérito ou na ação, cumprirá ao Juiz, ouvida a parte contrária, decretar extinta a punibilidade, nos termos do parágrafo único do art. 61 do CPREsse prazo é decadencial? Obviamente, não. Trata-se, a nosso ver, de mais uma hipótese de perempção. A decadência pressupõe a ação penal não iniciada. In casu, ela já o foi. Logo, cumpre à ofendida, para não a deixar perimir, requerer o seu prosseguimento, sob pena de ser julgada extinta a punibilidade. Mas a perempção não é instituto exclusivo da ação penal privada personalíssima e da ação penal privada propriamente dita? 0 inc. VIII do art. 107, ora em análise, não é aplicável, também, aos crimes contra os costumes, cuja ação penal seja pública condicionada?Esclareça-se, de pronto, que a perempção não é instituto próprio e exclusivo das ações penais privadas. 0 fato de o nosso legislador, até então, tê-lo reservado para tais tipos de ação penal não constituía, com? não constitui, nenhum óbice a estendê-la a outros tipos de ação penal. E de mencionar que no Anteprojeto Frederico Marques, em várias passa-

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1

gens, admitiu-se a perempção em casos de ação pública. Foi exatamente o que se fez por meio da Lei n. 6.416, de 24-5-1977, e o que se fez, também, por meio da Lei n. 7.209/84.A perempção não é a perda do direito de prosseguir na ação, em face da inércia do querelante? Não é, na sugestiva lição de Tornaghi, a morte da ação, por falta de alimento? Ora, instaurado um processo por crime de sedução, por exemplo, caso a ofendida haja convolado núpcias com terceiro, se ela não requerer o prosseguimento do inquérito ou da ação, dentro em 60 dias após a celebração do matrimônio, extinguir-se-á a punibilidade. A situação é, mais ou menos, análoga àquela prevista no art. 60, 11, do CPP. 0 que acarreta e gera a perempção, ali, é a inércia do querelante sucessor. Contudo, qualquer discussão a respeito do assunto tem sabor de chinesice, uma vez que não há nenhum interesse prático em saber se, na hipótese do inc. V111 do art. 107, haverá, ou não, perempção.

17. 0 perdão judicial, nos casos previstos em lei

Trata-se de inovação introduzida pela Lei n. 7.209/84. o perdão tanto pode ser concedido pela vítima, nos crimes de exclusiva ação penal privada, e, uma vez aceito, extingue a punibilidade, como também pelo Juiz. Neste caso, independe de aceitação. 0 legislador, atento a certos fatos que circunvolvem o crime, autoriza o Juiz a deixar de aplicar a pena. Razões de política criminal levaram-no a conceder ao Magistrado poderes para aplicar ou deixar de aplicar a sanctio, juris, em determinadas hipóteses. Qual seria a natureza jurídica da sentença que o concede? Até há pouco tempo, não havia uniformidade de entendimentos a respeito. Pelo contrário. Nada mais nada menos do que sete posições se firmaram a respeito: a) extintiva de punibilidade (Frederico Marques, Elementos, cit., 1962, v. 3,

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1). 55; Heleno Fragoso, Lições de direito penal; parte geral, 1983, p. 443); b) indulgência judicial (Bento de Faria, Código Penal brasileiro comentado, v. 5, p. 213); c) exclusão da punibilidade (Ambal Bruno, Comentários ao CP, 1969, v. 2, p. 177); d) absolutória (Basileu Garcia, Instituições, cit., 1978, v. 2, p. 827); e) condenatória, mas livrando o réu dos seus efeitos secundários (RT, 4521 394, 509/392);J) condenatória, mas com conseqüências apenas secundárias (1). Evangelista de Jesus, Direito, cit., 1978, v. 1, p. 627; RV, 10111132); g) condenatória imprópria (Tourinho Filho, Processo penal, cit., Saraiva, v. 4, 1984, p. 183).

600

A Lei n. 7.209184 veio solucionar essas divergências de entendimento, optando pela corrente mais liberal, que via no perdão judicial uma verdadeira declaração de extinção da punibilidade. Daí salientar o art. 107, lX, do CP que a punibilidade se extingue "pelo perdão judicial, nos casos previstos em lei".E para evitar que usufrutuários de dúvidas pudessem entender que alguns efeitos secundários da sentença concessiva do perdão, como o de forjar a Ancidência, pudessem perdurar, o legislador se apressou em estabelecer no art. 120 que "a sentença que conceder o perdão judicial não sera considerada para efeitos de reincidência".Assim, para nós, a sentença que concede o perdão judicial é condenatória imprópria. 0 Juiz profere o decreto condenatório, mas... deixa de aplicar a sanção. Sem embargo desse nosso entendimento, o Superior Tribunal de Justiça, intérprete máximo das leis infraconstitucionai s, na Súmula 18, deixou assentado que "a sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório".Na verdade, as hipóteses previstas em lei que autorizam o perdão judicial se apresentam no mundo jurídico sem qualquer expressividade danosa.

judicial?

único;

do CP;

Em que hipóteses o nosso ordenamento jurídico permite o perdão

a) no crime de injúria (art. 140, § 1.', 1 e 11);b) no crime previsto no art. 176 do CP, por força do seu parágrafo

c) no crime de homicídio culposo (CP, art. 121, § 5."); d) no crime de lesão corporal culposa, nos termos do art. 129, § 8.",

e) no crime de receptação culposa (CP, art. 180, § 3.');f) no crime de adultério (CP, art. 140, § 4.0, 1 e 11);g) no crime previsto no art. 242 do CP, com a redaçãoLei n. 6.898, de 30-3-1981; h) no crime de subtração de incapazes (CP, art. 249, § Na Lei das Contravenções Penais encontramos também

41,1ses previstas nos arts. V e 39, § 2.0.

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Na Lei de Falências, a hipótese prevista no art. 186, parágrafo único.

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Na Lei de Imprensa (Lei ri. 5.250, de 9-2-1967), a hipótese prevista no art. 22, parágrafo único.

Finalmente, o art. 326, § 1.', do Código Eleitoral.

Cremos que o legislador, conferindo ao perdão judicial a natureza de causa extíntiva da punibilidade, inspirou-se, inegavelmente, na melhor doutrina. Afinal de contas, se em determinadas hipóteses, como naquelas previstas nos arts. 12 1, § 5.", e 129, § V, do CP, o réu já foi punido, na própria carne, pela adversidade, não seria um extremado rigorismo puni-lo de novo?

Em outros casos, se não houve um dano significativo para a ordem jurídica, por que a punição? E, se não vai haver punição em face mesmo da pouquidão do dano, não seria rigorismo injustificado deixar de aplicar a pena, mas, ao mesmo tempo, macular a primariedade daquele que o próprio Magistrado reconheceu não poder punir? Por todas essas razões, achamos ter sido encontrada a fórmula certa.

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18. 0 pagamento do tributo no crime de sonegação riscal

Outra causa extintiva da punibilidade não prevista no elenco do art. 107 do CP estava no art. 2.' da Lei n. 4.729/65 (crime de sonegação fiscal). Em 27-12-1990, foi ela substituída pela de ri. 8.137, já agora com o nomenjuris de "crimes contra a ordem tributária". Nos arts. U, a 1% estão definidas as condutas puníveis. Seu art. 14 dispunha:

"Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1.' a 3.' quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia".

Em 31-12-1991, foi promulgada a Lei n. 8.383, revogando o disposto no art. 14 da Lei ri. 8.137/90. Vale dizer, a partir daquela data, o recolhimento do tributo e acessórios antes do recebimento da denúncia deixou de ser causa extintiva da punibilidade. Quando muito seria objeto de diminuição da pena, consoante o disposto no art. 16 do CR

Em 26-12-1995, a Lei ri. 9.249, no seu art. 34, restabeleceu aquela disposição do art. 14 da lei anterior, ao preceituar:

"Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei ri. 4.729, de 14

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de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia".

Agora o recolhimento do tributo e acessórios antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade.Indaga-se: o art. 34 supracitado é aplicável, também, às hipóteses previsÁis na Lei ri. 8.212, de 24-7-1991? Certamente sim. Note-se, por exemplo, que o art. 95, d, desse diploma diz ser crime "deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público".

Tratando-se, como se trata, de contribuição social, a matéria abrangida por aquele art. 34.Apesar das discussões que o assunto comporta, a maioria tem entendido como alcançado pelo art. 34 da Lei ri. 9.249, de 1995, o pagamento no crime de não-recolhimento de contribuições previdenciárias (art. 95, d, da Lei ri. 8.212191).Nesse sentido, aliás, já decidiu o TRF da 3. a Região, pela sua Colenda Segunda Turma, no julgamento do Habeas Corpus ri. 95.03.88400-4, Relatora a eminente Desembargadora Federal Sylvia Steiner (DJU, 17-4-1996, p. 24873). E o Excelso Pretório, no Habeas Corpus n. 73418-W RS, manifestou-se favorável a essa mesma tese. Verbis:

"Ementa: Penal. Processual Penal. 'Habeas Corpus'. Nãorecolhimento de contribuições previdenciárias. Pagamento do débito antes do recebimento da denúncia. Aplicação do art. 34 da Lei ri. 9.249/95. Extinção da punibilidade. Trancamento da ação penal. 'Habeas Corpus'. Concessão de Ofício. Leis 8.137/ 90, 8.212191, 8.383/91 e 9.249195". (Julgamento: 5-3-1996.)

0 art. 34 fala em pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.Qual o sentido da expressão "acessórios"? A nosso juízo, são os juros moratórios e a correção monetária. A multa não pode ser considerada acessório para esses efeitos. Do contrário, pago o tributo devidamente atualizado antes do recebimento da denúncia e não paga a multa, o Ministério Público proporia a ação penal dizendo, obviamente, que, não obstante o principal houvesse sido pago, faltou a multa e, então, em última análise, a acusação seria feita por falta do recolhimento da multa...

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Se se entendesse, ad absurdum, que a multa integra os "acessórios", estar-se-ia admitindo a possibilidade de processo-crime por dívida, já que a multa não paga não extinguiria a punibilidade. A multa, por exemplo, repita-se, não constitui efeito específico da prática delituosa prevista nas Leis n. 8.212191 e 8.137/90, mas, tão-só, sanção administrativa. Observe-se que a Constituição não admite a

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prisão por dívida, salvo os casos do alimentante inadimplente e do depositário infiel. Aliás, o ri. 7 do art. 7.' do Pacto de São José nem admite a prisão do depositário infiel... Mas prevalece o inc. LXVII do art. 5." da CF. Desse modo, instaurado o processo-crime em face do exclusivo não-pagamento da multa (que é uma sanção meramente administrativa), na hipótese de condenação, o acusado seria preso por não haver pago a multa... Logo, por via oblíqua, estaria havendo afronta ao texto da Lei Maior.E se, por acaso, antes do recebimento da denúncia, houver execução no cível visando ao recebimento do principal e acessórios, e o devedor fornecer bens mais que suficientes à penhora, para poder discutir o valor exigido? A nós nos parece que, nessa hipótese, é de se decretar extinta a punibilidade, porquanto a nomeação de bens à penhora é uma garantia da execução, a teor do art. 9.' da Lei ri. 6.830180, equivalendo, portanto, a um verdadeiro pagamento antecipado do débito. Feita a penhora, não mais haverá possibilidade de prejuízo, quer à Previdência, quer ao Fisco. Não fosse assim, seria uma insensatez sem nome condicionarse a extinção da punibilidade ao pagamento de um tributo, acessórios e multa absurdos. 0 acusado, para se livrar de um processo-crime, que é por demais penoso, teria de sujeitar-se à vontade caprichosa e pantagruélica da Previdência e do Fisco, recolhendo aos cofres públicos importância que ele entende absurda ou indevida. E mais que isso: impedindo-o de exercer o direito constitucional de socorrer-se do Judiciário, seu único refúgio, para restabelecer, entre o Fisco ou a Previdência Social e os particulares, as relações normais de credor e devedor.Mais ainda: a Lei n. 9.639, de 25-5-1998, publicada no DOU de 26-5-1998, dispôs, no art. 11, que "São anistiados os agentes políticos que tenham sido responsabilizados, sem que fosse atribuição legal sua, pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei n. 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei ri. 3.807, de 26 de agosto de 1960".E o parágrafo único desse dispositivo acrescentava que "São igualmente anistiados os demais responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei ri. 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei ri. 3.807, de 1960".

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Considerando que a Lei n. 9.639198 entrou em vigor na data de sua publicação (cf. seu art. 14), todos aqueles que estavam sendo processados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei n. 8.212, de 1991, foram beneficiados pela referida anistia.

E certo que no Diário Oficial da União do dia seguinte (27-5-1998) o texto dessa lei foi republicado, dele excluído o parágrafo único do art. 11, sob alegação de "incorreção".

CÓ_ntudo, não menos certo é que o paragrafo único mencionado só poderia ter sido excluído do texto publicado no Diário Oficial se tivesse sido vetado pelo Presidente da República, ou se houvesse erro de grafia.

0 veto, que e a recusa de sanção, "há de ser sempre expresso (v. art. 66, § 3.' da CF) e motivado" (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição brasileira de 1988, Saraiva, 1992, v.

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2, p. 112).

"Deve haver a fundamentação dos motivos do veto, ou da recusa da sanção, que também devem ser trazidos a público", ensina Pinto Ferreira (Comentários à Constituição brasileira, Saraiva, 1992, v. 3, p. 336).Outra não é a lição de José Celso de Mello Filho, atual Presidente do Pretório Excelso: "( ... ) A sanção independe de motivação, tanto que pode ser tácita. 0 veto, contudo, deve ser expresso e motivado. Veto imotivado é írrito e destituído de eficácia. De outro lado, devendo ser expresso, o veto não pode ser presumido. No nosso sistema constitucional não existe o veto presumido: este há de ser expresso (RDA, 52:254, 42:244)" (Constituição Federal anotada, Saraiva, 1984, p. 171).

Não tendo havido fundamentação, a título de veto, ineficaz a exclusão do referido parágrafo único do texto republicado no DOU de 27-5-1998.

Admitindo-se, apenas para argumentar, a eficácia da republicação do texto corrigido no DOU de 27-5-1998, como a Lei ri. 9.639 já estava em vigor - ela entrou em vigor "na data de sua publicação" (art. 14), que aconteceu no DOU de 26-5-1998 -, a supressão, do texto corrigido, do parágrafo único do art. 11 devia ser considerada "lei nova" (Lei de Introdução ao Código Civil - Decreto-lei ri. 4.657, de 1942, art. 1.-, § 4.'), aplicável somente aos fatos praticados depois de sua vigência.Sobre o assunto, leciona Maria Helena Diniz: "( ... ) Será inadmissível uma nova publicação da lei, corrigindo-a, após o término da vacatio legis, porque já está vigorando, e, ante esse fato, apenas uma nova lei poderá retificar seu texto. As emendas ou correções da lei que já tenha

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entrado em vigor são consideradas lei nova (LICC, art. 1.', § 4.'), a cujo começo de obrigatoriedade se aplica o princípio geral da vacatio legis, pois só produzirão efeitos a partir do decurso do prazo de quarenta e cinco dias ou de três meses após a publicação, uma vez que derrogaram ou ab-rogaram a lei anterior, cuja obrigatoriedade e efeitos se reconhecerão. Assim, se a correção for feita dentro da vigência legal, a lei, apesar de errada, vigorará até a data do novo diploma legal publicado para corrigi-Ia, pois uma lei devera presumir-se sempre correta. Se apenas uma parte da lei for corrigida, o prazo recomeçará a fluir somente para a parte retificada, pois seria inadmissível, no que atine à parte certa, um prazo de espera excedente ao limite imposto para o início dos efeitos legais, salvo se a retificação

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afetar integralmente o espírito da norma. Respeitar-se-ão os direitos e deveres decorrentes de norma publicada com incorreções ainda não retificada. Assim, se a parte da lei não retificada,em razão do decurso do prazo para sua entrada em vigor, já houver conferido direitos e criado deveres, estes deverão ser resguardados com a cessação da vacatio legis relativamente àquela parte, uma vez que se a lei nova contemplar matéria não disciplinada pela norma anterior ou atingir apenas disposição supletiva desta lei, permitido será às partes se submeterem à nova disciplina durante o período da vacatio legis.Conseqüentemente os direitos e deveres advindos desta subordinação, mesmo que estejam baseados em texto legal retificado posterior-mente, não poderão deixar de ser considerados juridicamente. Realmente, poderá ocorrer que surjam de uma publicação errônea relações jurídicas, constituindo direitos adquiridos, que deverão ser respeitados, apesar de a disposição devidamente corrigida ter o efeito de uma nova norma, considerando-se a boa-fé daquele que a aplicou. Se a modificação influir no seu comando, não mais se poderá considerar a primeira publicação para início da vacatio legis, devendo-se, no entanto, respeitar ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada" (Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, Saraiva, 1997, p. 604).Na hipótese, a lei entrou em vigor na data da sua publicação (26-51998), e no dia seguinte surgiu nova lei, retificando-a. Como não houve vacatio legis e a correção ocorreu após a lei já estar vigorando (ainda que por um dia), inafastável sua vigência naquele dia.Convém observar que, "uma vez concedida, a anistia não pode ser revogada, em face do disposto no art. 5.', incisos XXXVI e XL, da

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CF" (Thornaz M. Shintati, Curso de direito penal; parte geral, Forense, 1993, p. 408).Aliás, o Excelso Pretório, pela voz sempre autorizada do Ministro Marco Aurélio, apreciando a matéria, concedeu liminar no Habeas Corpus ri. 77.7243/SP, publicada no DJU de 12-8-1998, p. 3, nos seguintes termos:1" ... A época do julgamento da apelação pelo TRF, ou seja, no dia 26-5-1J~, já estava em vigor a Lei ri. 9.639 publicada coincidentemen-diário do mesmo dia. Veio à balha o instituto da anistia, e isto ocorreu de forma abrangente, a apanhar, como convém, os cidadãos em geral. A questão concernente à nova publicação, em 27 de maio de 1998, resolve-se, ao primeiro exame, ao menos, conforme a regra do art. 1.', § 4.' da Lei de Introdução ao Código Civil... De qualquer maneira, vale atentar para a lição, sempre pertinente, de Cretella Júnior: 'A anistia não incide sobre o homem, mas sobre a infração, não sobre a pessoa, mas sobre o fato. 0 instituto tem por finalidade eliminar os fatos, passandose sobre eles uma esponja, apagando-os, relegando-os ao esquecimento' (Comentários à Constituição de 1988, 2.'ed., RJ, Forense Universitária, p. 4675)".Posteriormente, o assunto foi levado a Plenário e este reconheceu a inconstitucionalidade (ex tunc) do parágrafo, sob o fundamento de que aquele texto não seguira o processo legislativo. Com o

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respeito que merecem as decisões da mais alta Corte do País, a vingar esse entendimento, sempre que promulgada lei nova, os operadores do direito ficarão sem saber o que fazer. Certamente indagarão do Congresso sobre o processo legislativo. Ademais, se os agentes políticos por esse mesmo crime foram anistiados, pelo princípio da isonomia o benefício haveria de estender-se aos particulares. Se o crime consistia em não recolher aos cofres da Previdência as contribuições previdenciárias dos salários e se as Prefeituras deixavam de fazê-lo, a situação é idêntica àquela dos proprietários de empresas privadas. Melhor será que, doravante, toda e qualquer lei fique sujeita a uma vacatio entre 30 e 45 dias, tempo suficiente para o Executivo constatar se foi observada toda a tramitação legislativa.Por outro lado, nos termos do art. 83 da Lei ri. 9.430, de 27-121996, "a representação fiscal relativa aos crimes contra a ordem tributária, definidos nos arts. 1.' e 2.' da Lei ri. 8.137, de 27-12-1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário cor-

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respondente". Logo, enquanto não houver decisão final na esfera administrativa, o Fisco não pode fazer a comunicação ao Ministério Público. Se, mesmo assim, for proposta a ação penal, cumprirá ao réu requerer a suspensão do processo, com fulcro no art. 93 do CPP, em face da ma-anifesta questão prejudicial. Nesse sentido decidiu o TRF da 3. Região, ao deferir o Habeas Corpus n. 97.03.005214-2, Relator o Juiz Newton de Lucca.

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APENDICE

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Aditamento a queixa

1. Pode o Ministério Público aditar a queixa, nos casos de exclusiva ação penal privada? Em caso positivo, em que consistiria esse adj_ tamento? Aditar, de um suposto freqüentativo de addere, significa acrescentar, aumentar, ampliar. Ora, dispondo o CPP, no art. 48, que a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos e que o Ministério Público velará pela sua

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indivisibilidade, e, no art. 45, explicitando que a queixa, ainda quando a ação penal for privativa do ofendido, poderá ser aditada pelo Ministério Público, a quem caberá intervir em todos os termos subseqüentes do processo, não se pode deixar de concluir que o aditamento, in casu, implica inclusão de co-réu ou co-réus.

2. A alegação de que o aditamento, na hipótese, somente ocorrerá se houver conexão ou continência, envolvendo crime de ação pública e delito de alçada privada, a nosso ver - e com a devida vênia - não pode ser aceita. E por duas razões: nesse caso, cumprirá ao Ministério Público ofertar denúncia, pelo crime de ação pública, formando, ao lado do querelante, um litisconsórcio ativo, para que haja um simultaneus processus, e, fosse esse o caso, o legislador não usaria o termo "aditamento"... por outro lado, seria pouco provável que, na hipótese de conexão ou continência, abrangendo crime de ação privada e crime de ação pública, atribuísse o legislador, ao Ministério Público, o singelo prazo de 3 dias para o oferecimento da denúncia, sem qualquer razão plausível (cf. CPP, art. 46, § 2.').

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3. Na hipótese de crime complexo, não pode haver aditamento. Se o ofendido, por exemplo, oferece queixa por injúria, e percebendo o Ministério Público que a hipótese se subsume na moldura do art. 140, § 1% do CP, deverá ele ofertar denúncia substitutiva, uma vez que, no crime complexo, a ação penal é pública. Mutatis mutandis, é o que ocorre no Direito alemão, quando o Ministério Público divisa na PrivaWage um interesse público (cf. Umberto Gualtieri, La parte, p. 10).4. É certo que a ação penal exclusivamente privada é regida pelo princípio da oportunidade ou conveniencia, significando que a pessoa investida do direito de queixa tem o poder de julgar da conveniência, ou não, do seu exercício.Ao lado desse princípio, há outro não menos importante, comum à ação pública: o da indivisibilidade. A ação deve ser proposta contra todos os autores da conduta punível, dês que conhecidos, lógico. Quem velará por esse princípio? Iniciando-se o processo pela denúncia, bem poderá o Juiz, observando ter havido a exclusão de algum dos autores, aplicar a regra contida no art. 28 do CPP, uma vez que o afastamento do co-réu implicou, necessariamente, pedido tácito de arquivamento.

Tratando-se de crime de ação pública, cujo ato de iniciativa, em face da negligência do Ministério Público, coube à vítima, a fiscalizaçao ficará a cargo deste, tal como disciplinado no art. 29 do estatuto processual penal.

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Entretanto, se o crime for de exclusiva ação penal privada, o disciplinamento normativo do aditamento descansa nas regras consubstanciadas nos arts. 45, 46, § 2.', e 48, todos do CPP.5. 0 fato de haver o querelante omitido, na queixa, algum co-réu pode traduzir, ou não, renúncia tácita.

A renúncia é a abdicação do direito de queixa. Ela pode ser tácita ou expressa. Na primeira hipótese - é a que nos interessa -, o querelante pratica ato incompatível com o direito de acusar. E, como bem preleciona Aloysio de Carvalho Filho, é óbvio que não poderia a lei relacionar esses atos, devido à sua multiplicidade como à sua variável significação (cf. Comentários, cit., 1956, p. 47).Implicaria renúncia tácita a não-inclusão de algum co-réu? Açodado seria o procedimento do órgão do Ministério Público que, em tal caso, requeresse ao Juiz o reconhecimento da extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, V, 1.' figura, do CP, sob o fundamento de que a renúncia em relação a um a todos se estenderá. Bem pode acontecer de

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o querelante, inadvertidamente, omitir, na queixa, um dos co-réus. Sob a pressão da urgência, em trabalho alinhavado a correr, é bem provável nela se omita o nome de um ou de alguns. Se tal circunstância às vezes ocorre quando da oferta de denúncia, malgrado o órgão do Ministério Público esteja afeito a esse mister, não surpreende a omissão, em se tratando de peça acusatória ofertada pelo particular. Poder-se-ia, então, excogltar de renúncia tácita? Obviamente não. Como se poderia saber houvewffi o querelante, propositadamente, feito a omissão? Como se poderia devassar o íntimo psíquico do querelante para auscultar-lhe o propósito de excluir da queixa algum ou alguns dos co-réus?

Daí a regra salutar contida no art. 48 do CPP: "A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade".

Tem-se alegado, em relação ao art. 48 do CPP, que, uma vez ofertada a queixa em relação a um dos querelados, extinta estará a punibilidade em relação aos demais em face da renúncia tácita.

Se a omissão de um dos querelados na queixa implicasse renúncia tácita, ganharia o reino dos ceus quem explicasse a regra contida no art. 48 do CPP, ao proclamar que "a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade".

Evidente, pois, que uma vez ofertada queixa contra um dos querelados, tal circunstância obrigará ao processo dos demais, isto é, os outros querelados devem ser incluídos na peça acusatória. Incluídos por quem? Por aquele a quem competir velar pela indivisibilidade da ação penal privada...

6. Velar é proteger, é vigiar, é estar alerta, interessar-se grandemente, com zelo vigilante, estar de vigia, de guarda, de sentinela, dizem os nossos lexicógrafos.

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E de que maneira protegerá, resguardará e fiscalizará o órgão do Ministério Público a indivisibilidade? Com o aditamento a que se referem os arts. 45 e 46, § 2.', do CPP. Após o aditamento, se o querelante, expressamente, manifestar seu desagrado e sua repulsa àquele ato, por ter sido seu propósito inicial a efetiva exclusão por esta ou aquela circunstância, aí, então, inteira aplicação terá a regra do art. 49 do CPP, que proclama a comunicabilidade da renúncia, alcançando a todos.

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0 aditamento não traduz nem poderia traduzir violação do princí

pio da oportunidade que rege a ação penal privada. Expressa, isto sim,

o manifesto desejo do Estado de não permitir ao particular transmude ojus

accusationis, que lhe foi concedido, num insopitável desejo de vingança.

Se, porventura, alguém dissesse que o aditamento implicaria a in

clusão de outra infração de natureza privada, violentado estaria aquele

princípio.7. Tampouco cuida da inclusão de crime de ação pública, pois,

comovimos, não teria sentido oferecesse queixa o particular, e o órgão

doMinistério Público, por meio de simples aditamento, imputasse ao

querelado ou a un, ~erceiro a prática de crime de ação pública. Nesse

casodeverá o Promotor ofertar denúncia, obedecendo à regra do art. 41

doestatuto processual penal, fazendo uma exposição do fato criminoso

comtodas as suas circunstâncias, qualificando o réu, classificando o

crime eapresentando o rol de testemunhas.

Assim, temos para nos que o aditamento a que se referem os arts.

45 e 46, § 2.', do CPP implica a inclusão de co-autor ou co-autoresarredados da queixa.

Desse entendimento comunga o insigne Sérgio Demoro Hamilton(cf. Revista de Direito da Procuradoria -Geral da Justiça do Estado

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Rio de Janeiro, 6179). Ousamos, contudo, dele dissentir no que tange ao

modusfaciendi do aditamento. Em primeiro lugar, este não se dá, tãosomente, nas hipóteses previstas nos arts. 45, 46, § 2.', e 384,

parágrafoúnico, do CPP. Também com assento nos arts. 29 e 569 do mesmo di

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ploma. Em segundo, a feitura do aditamento pode apresentar variedade

de formas. Por exemplo: a) Se a omissão dever-se ao proprio orgãooficial da acusação e relacionar-se com a exclusão de uma infração

penal, evidente que a lacuna será preenchida - opportuno tempore - deforma singela. Idem, se a hipótese subsumir-se na moldura do art.

29 doCPP. Na petição, o Promotor deverá dizer: "Aditando (ou

complementando)a peça vestibular, cumpre dizer constar, também, que o acusado,

qualificado a fis. (narrar o que praticara, dando-lhe a qualificação

jurídicopenal), pelo que se requer seja o mesmo condenado, também, às penascominadas à referida infração". b) Se se omitir algum co-réu (seja

naação pública, seja na exclusivamente privada), outra poderá ser a

forma:"Complementando a petição inicial, salienta a Promotoria que Fulano

deTal, qualificado a fis. (narrar a forma de participação), pelo que

a acusação ali contida a ele se estende etc.". c) Se a complementação

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ser feita em face da regra contida no parágrafo único do art. 384 do CPP, aludir-se-á à circunstância de que a elementar se tornou conhecida no curso da instrução, dando-se a correta tipIficação. A Acusação não arrola testemunhas. Nem poderá fazê-lo. A prova acusatória já foi feita. Só à Defesa é lícito fazê-lo. d) Com todos os requisitos do art. 41 do CPP, quando o aditar tiver o sentido de juntar, associar, vale dizer, quando houver um litisconsórcio ativo.

4fssim, na hipótese em estudo, o aditamento feito pelo Ministério Público dispensa, à evidência, todo o formalismo de uma peça inaugural, como o dispensa, também, em se tratando de ação privada subsidiária da pública.

8. Note-se, ademais, que o verbo aditar está empregado, nos arts. 45 e 46, § 2.', do CPP, na acepção de acrescentar, pelo que se infere da disposição contida no art. 48 do referido estatuto.Ora, tendo sido excluído da queixa um crime de ação pública nem poderia o querelante a ele se referir fora da hipótese singular do art. 29 do CPP -, como se valeria o órgão oficial da acusação daquela peça, para, numa simples corrigenda, acrescentar, apendicular um crime de tal natureza? E, no caso de eventual perempção, como poderia a ação penal prosseguir quanto a esse crime, sem a presença de uma peça acusatória elaborada segundo os cânones do art. 41 do CPP? Uma queixa remendada, apendiceada, não seria, como não o é, meio apto para o desenvolvimento válido da relação processual atinente a crime de ação pública.

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Claro que, se houver um crime de ação pública conexo com outro de alçada privada, o Ministério Público - desde que satisfeitos os pressupostos normais para a propositura da ação - deverá aditar a queixa. Aditar, aqui, não tem o sentido que lhe emprestam os arts. 45 e 46, § 2.', do CPP, mas o de juntar, associar, adir. Deverá, pois, o órgão oficial da acusação juntar-se ao querelante, com a sua denúncia, formando um litisconsórcio ativo. 0 Código nem cuida dessa possibilidade, de maneira expressa, mesmo porque, sendo a ação penal pública regida pelo princípio da legalidade - nec delicta maneant impunita -, desnecessário seria qualquer dispositivo a respeito.

0 CPP usa, pois, o verbo aditar sempre no sentido de corrigir, acrescentar, ampliar. É o que se infere dos arts. 29, 45, 46, § 1% 384, parágrafo único. Jamais no sentido de aliar, juntar, associar.

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Além disso, para que não se pensasse que a omissão de algum coréu, na queixa, implicasse renúncia tácita, estabeleceu-se a regra contida no art. 48 do CPP. E, por último, mostrou-se a maneira de o Ministério Público velar pela indivisibilidade, com as normas dos arts. 45 e 46, § 1% do mesmo diploma.

Como poderia, repita-se, o órgão do Ministério Público imputar a alguém a prática de um crime de ação penal pública com uma simples emenda à queixa? Admita-se. E se aquele não comparecer às audiências? Quid inde? 0 disposto no art. 564, 111, d, do CPP refere-se a duas hipóteses: a) quando a ação penal for proposta pelo Ministério Público; b) quando for oferecida queixa substitutiva da denúncia (cf. Espínola Filho, Código de Processo Penal anotado, v. 5, p. 452, n. 1. 166; Florêncio de Abreu, Comentários, cit., p. 88, n. 37; Frederico Marques, Elementos, cit., v. 2, p. 424, n. 564).

No caso enfocado, então, não haveria nulidade com a não-intervenção do órgão do Ministério Público. Manifesto o absurdo.

0 aditamento, pois, a que se referem os arts. 45 e 46, § 2.', do CPP, por força do que dispõe o art. 48 do mesmo diploma, implica inclusão de co-réu. Tal proceder do Ministério Público não viola o princípio da oportunidade ou da convon I ência, em face do poder conferido ao querelante de se rebelar contra o aditamento, quando, pois, o disposto no art. 49 do CPP terá inteira aplicação.

9. 0 fato de o CPP não haver cuidado da possibilidade de o Ministério Público aditar o libelo (veja-se o argumento do saudoso Borges da Rosa evocado in Ajuris, 18129), quando este for ofertado pelo querelante, data venia, não é argumento convincente para se concluir não poder o órgão oficial da acusação estender a queixa a co-autor ou co-autores por acaso excluídos da peça vestibular.

Em primeiro lugar, é de observar que o art. 420 do CPP confere ao querelante o direito de ofertar o libelo, no prazo de 2 dias, e, não o fazendo, o Juiz o haverá por lançado, mandando os autos ao Ministério Público.

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Em duas hipóteses aquele preceito tem aplicação: a) em crime de ação privada conexo com alguma infração da competência do Júri; b) no caso do art. 29 do CPP.Na primeira hipótese, a não-oferta do libelo implica perempção. Na segunda, aplica-se a última parte do art. 29 do CPR Na primeira, se

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houver exclusão de algum co-réu, deverá incidir a norma contida no art. 48 do CPP, cumprindo ao Ministério Público aditar a peça acusatória. Mas, nessa hipótese, dir-se-á, caberá ao Juiz aplicar, analogicamente, a regra do art. 418 do mesmo estatuto. A solução torna-se meio esquisita, uma vez que se transfere ao Juiz, por via oblíqua, o poder de velar pelo princípio da indivisibilidade... Ademais, não cabe ao Juiz, mas, sim, ao Ministério Público, que representa os interesses da repressão punitiva, velar,pL*Ia observância desse princípio. A menos que se diga que a exclusão implicou perdão tácito. Nesse caso, ficaria mais confusa a situação. Se o perdão só é válido se aceito, pergunta-se: e se o excluído não o aceitar e o querelante insistir em não ofertar outro libelo? A solução, pois, está, ainda, na regra dos arts. 45 e 48 do CPP.

Além do mais - e isso é curial -, se o Ministério Público pode aditar a queixa, por que razão charadística não poderá fazê-lo em relação ao libelo? Por falta de texto expresso? Então o assistente de Acusação não poderia, pela mesma razão, interpor o recurso previsto no art. 58 1, XV, do CPP.. Quem pode o mais, pode o menos. Se o Ministério Público pode aditar a queixa, com melhor razão, o libelo. Este, mutatis mutandis, outra coisa não representa senão o exercício do direito de queixa, em uma segunda etapa, ditada pelo escalonamento procedimental dos crimes cujo julgamento caiba ao Tribunal do Júri.

E se ocorrer a omissão em processo iniciado por queixa substitutiva da denúncia? Não obstante o silêncio do Código quanto ao aditamento, inteira aplicação terá o disposto no art. 29 do CPP. Se, nessa hipótese, invoca-se o disposto no art. 29, por que motivo, em se tratando de crime de exclusiva ação penal privada, não se poderá evocar a regra do art. 45 do citado diploma? Não há razão séria que o impeça.

0 argumento, pois, não convence.

10. Não se deve deslembrar que o art. 49 do CPP foi inspirado no art. 124, terceira parte, do Codice Penale de 1930: "La rinuncia si estende di diritto a tutti coloro che hanno cominesso iI reato". E, por outro lado, a matriz do art. 48 do nosso diploma processual penal outra não é senão o art. 123 do mesmo estatuto peninsular: "La querela si estende di diritto a tutti coloro che banno conimesso iI reato".Daí a lição de B attaglim: "... Se, invece, vi é una pluralità di offensori, Ia rinuncia, intervenuta nei riguardi di uno di essi da parte del soggetto passivo del reato, opera a beneficio di tutti, allo stesso modo che Ia

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querela proposta contro taluno dei Partecipi ha effetto contro tutti- (cf. La querela, cit., p. 448, ri. 119).

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E. linhas adiante, arremata: "Come si ha indivisibilità passiva della querela, cosi si ha indivisibilità passiva della rinuncia" (cf. La querela, cit., p. 448).

A extensão da queixa a todos os partícipes atende, por outro lado, a uma exigência de justiça da consciência pública. Mesmo porque, conforme ainda Battaglini, "o sentimento público de justiça não pode tolerar que, em virtude de uma discriri---unação deixada ao arbítrio do ofendido, um partícipe da mesma infração seja punido e o outro não" (cf. La querela, cit., p. 325, ri. 79). No mesmo sentido, vejam-se Manzini (Trattato, cit., v. 4, p. 57) e Girolamo Bellavista (Lezioni, 1956, p. 33).

Binding, citado por Battaglini, é incisivo: "Alla volontà del querelante rion é dato di determinare Festensione della perseguibilità del fatto. Quando'egli ha proposto Ia persecuzione, spetta allo Stato di regolarne la misura" (cf. La querela, cit., p. 324).

Este, também, o ensinamento de Candian: "È conforme ai principi, che 1'ordinamento riconosca all'offeso Ia facoltà di impedire Ia persecuzione di determinati reati, ma non anche Ia facoltà di influire sul modo e 1'estensione di questa persecuzione, limitandola ad uno o ad alcuni soltantodei compartecipC (cf. Alberto Candian, La querela, Giuffrè, 1951,p. 5 6).Assim também Stoppato: "L'azlone periale debba dirigersi verso tutti coloro che del fatto sono gli autori" (cf. Dell'azione penale, in Commento, UTET, v. 4, p. 8).É bem verdade que a nossa queixa não é símile da querela. Tampouco da representação. É, antes de mais nada, um misto desta e daquela. Como manifestação no sentido de não se opor ao processo, a querela equivale à representação. Por outro lado, assemelha-se à queixa, e se distancia da representação, quanto ao poder conferido ao ofendido de dispor da res in judicio deducta.

Apesar da fisionomia toda especial da querela, as lições de Battaglim, Candian, Manzini, Stoppato e Bellavista são válidas para a queixa e para a representação.

Tornaghi, por isso mesmo, ensina: "Se o ofendido se queixa, o fato é punível e não há como excluir uns e incluir outros agentes" (cf. Pro-cesso, cit., 1953, p. 232).

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Professa, com segurança, Frederico Marques: "A queixa contra qualquer dos autores do cri me obrigará ao processo de todos, e o Mim stério Público velará pela sua indivisibilidade, diz o art. 48 do CPP. Se as normas processuais transferem ao ofendido, em determinados crimes, o exercício dojus accusationis, incivil seria, no entanto, que lhe outorgassem a faculdade de influir sobre o modo e extensão da acusação. 0 ofendido não pode limitar a este ou àquele dos autores do fato delituoso a acusação cSiominal. A tutela penal está preordenada a fatos que possam pôr em perigo ou lesar ao bem jurídico de que ele é o titular. Isto implica, afirma Candian, que a ação se dirija contra todos os que sejam autores do fato penalmente ilícito: 'La illiceità di un fatto, sanzionata con una pena,importa che Ia reazione dell'ordinamento investa coloro che ne sono stat, causa determinanti` (cf. Curso, cit., 1956, p. 386; Elementos, cit., v. 1, p. 360, ri. 196).

Atentemos para o ensinamento: o ofendido não pode limitar a este ou àquele dos autores do fato delituoso a acusação criminal. E se, per fas et per nefas, o fizer? Lógico, caberá ao Ministério Público, como fiscal do princípio da indivisibilidade, velar por ele. Velar como? De que forma? De que maneira? Aditando a queixa. Se a exclusão de um dos autores implicasse renúncia tácita, o disposto no art. 48 do CPP não teria nenhuma razão de ser.

11. 0 Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, nos idos de 1953, acolhendo parecer da lavra do eminente e saudoso Mário de Moura e Albuquerque, teve oportunidade de afirmar: "Dizer-se que a simples omissão inicial do nome de um dos autores do crime constitui renúncia tácita é confundir duas modalidades diversas de extinção do direito de queixa: a renúncia e a decadência. A omissão pode derivar de um erro e não da voluntas abdicandi. Se o erro é passível de correção, enquanto não decorrer o prazo de decadência, já a representação é irrevogável. Daí a exigência legal de um ato, que só importa em renúncia tácita, quando é incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa, ou seja, quando exclui, necessariamente, essa vontade" (cf. RT, 214/391). No mesmo sentido, RT, 210/97 e Justitia, 12/190. E, mais recentemente, o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, acolhendo voto do eminente Juiz Ferriando Prado, decidiu: "0 art. 48 do CPP, firmando o principio da indivisibilidade da ação penal, dispõe que a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigara ao processo de todos. Entretanto não cabe ao Juiz, mas sim ao Ministério Público, que representa os interes-

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Mãe

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ses da repressão punitiva, velar pela observância desse princípio, suprindo a omissão do querelante para tomar efetivo o chamamento ajuízo de todos os participantes do delito" (cf. RT, 500/350).

12. Poder-se-á dizer: se o Estado conferiu, exclusivamente, ao ofendido ou a quem legalmente o represente o jus accusationis em relação a determinadas infrações, não violentaria o princípio da oportunidade o aditamento do Ministério Público? Obviamente não. Ao ofendido cabe julgar da conveniência, ou não, quanto à propositura da ação penal. Uma vez proposta, o órgão do Ministério Público terá vista dos autos para, dentre outras providências, observar se foi, ou não, respeitado o princípio da indivisibilidade. E se não o foi? Deverá ele aditar a queixa, em face do litisconsórcio passivo necessário.

Respeita-se, apenas, o ato de iniciativa do ofendido. Este tem inteira liberdade de propor, ou não, a ação penal. Se o quiser, deverá fazê-lo contra todos os partícipes. Propondo apenas contra um, já manifestou seu desejo de ver punido o criminoso. Resta saber, agora, se foi, ou não, desrespeitado o princípio da indivisibilidade. Sendo-o, deverá o órgão do Ministério Público, na sua função de fiscal daquele princípio, aditar a queixa.

Outro não é o ensinamento de Bento de Faria, que durante muitos anos perolou no Excelso Pretório: "Assim, o ofendido não tem o arbítrio de escolher uns, dispensando outros, quando vinculados todos pela prática do mesmo delito. 0 Ministério Público, nesse caso, aditando a queixa, incluirá nela os responsáveis não incluídos" (cf. Código de Processo Penal, 1942, v. 1, p. 116).

13. Não se concebe deva o Promotor de Justiça pronunciar-se no sentido de que o querelante promova a citação de todos os réus (cf. Frederico Marques, Elementos, cit., 1967, v. 3, p. 138, ri. 686). Como citá-los, se não foram incluídos na queixa? Teria, então, de haver uma queixa substitutiva, ou, então, um aditamento pelo querelante... Mas a lei não se refere nem a este nem àquela. Deixa entrever que tal função é do Ministério Público, sem qualquer violentação ao princípio da oportunidade.

Se, feito o aditamento, não pudesse o querelante dizer "não quis nem quero seja a queixa estendida aos demais", outro seria nosso entendimento. Mas pode. E pode muito bem dizer que a exclusão foi fruto de uma voluntas abdicandi, quando, então, aplicar-se-á a regra contida no art. 49 do CPP.

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0 ofendido pode dispor do direito de agir. Mas, se age, doutrina Tornaghi, tem de fazê-lo na conformidade da lei processual, cujas normas, quando imperativas lato sensu, isto é, quando ordenam ou proíbem um comportamento, não podem ser mudadas pela vontade privada (cf. Instituições, cit., 1959, v. 3, p. 335). Não o fazendo, acrescentamos nós, o Ministério Público, órgão oficial da acusação, fiscal do princípio da indivisibilidade, corrige, acrescenta, adita a peça inaugural. Onde, pois,,panormalidade? Onde o desrespeito à liberdade de agir do querelante?

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14. Há mais um argumento a demonstrar que o aditamento a que se referem os arts. 45 e 46, § 1% do CPP não diz respeito à inclusão de crime de ação pública. Note-se que o CPP é de 1942 e, àquela época (e até há bem pouco tempo), não era lícito ao Ministério Público promover a ação penal nas contravenções. Ultimamente, a jurisprudência vinha aceitando. 0 direito pretoriano permitia, não a lei. Pois bem: e se num crime de alçada privada, após a oferta da queixa, o Ministério Público vislumbrasse, também, uma contravenção? Poderia ele proceder ao aditamento? Obviamente não. Como se poderia proceder, então? Deveria o Juiz baixar a portaria, após o que a acusação, quanto à contravenção, passaria para o Ministério Público, tudo num litisconsórcio ativo. A não ser que se dissesse que o aditamento do Ministério Público estaria compreendendo, outrossim, a contravenção, o que teria sabor de disparate.

Às escancaras, não é assim. A lei fala em aditar a queixa, querendo, com tal expressão, traduzir a idéia de ser ela acrescentada, ampliada, aumentada. Ora, se o Ministério Público, logicamente por meio de denúncia - peça autônoma -, imputa ao excluído um crime de ação pública, não se pode dizer tenha sido a queixa ampliada. Esta continuará como estava, sem qualquer acréscimo. Apenas o Ministério Público aliouse, com a sua denúncia, ao querelante, formando um litisconsórcio ativo.

15. Não teria sentido, ademais, interpretar o aditar, a que se referem os arts. 45 e 46, § 1% do CPP, como sendo desejo todo especial do legislador fossem apreciadas em simultaneus processus as duas infrações: a de ação pública e a de alçada privada. Primeiro, porque a regra do art. 79, caput, do CPP seria bastante. Segundo, porque, nesses casos, grosso modo, deve haver a separação e não a reunião, principalmente em face das peculiaridades da ação privada. Sendo a disjunçao, pois, quase que necessária, para evitar tumulto processual, por que razão iria o legislador estabelecer aquela norma?

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Se ao Ministério Público coubesse a simples tarefa de solicitar ao Juiz a notificação do querelante para aditar a queixa, muitas vezes a exigüidade de tempo provocaria a decadência e seria difícil saber se a exclusão implicou, ou não, renúncia tácita. Esta, ainda, uma das razões que levaram o legislador a peri-nitir ao órgão oficial da acusação o direito de aditar. Outra, já por nós explicitada - talvez a mais importante -, repousa na circunstância de que ao ofendido se concedeu, apenas, o poder de dispor do direito de agir. Uma vez exercido tal direito, vale dizer, uma vez respeitado tal direito, nada impede que o Estado, por meio do seu órgão, intervenha para corrigir o ato de iniciativa, amoldando-o aos cânones legais, sem, contudo, criar qualquer obstáculo ao poder também conferido ao querelante de dispor da res in juditio deducta, seja pelo perdão, seja pela perempção, seja, inclusive, pelo reconhecimento de ter havido renúncia tácita quanto ao excluído.

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Não olvidar que o querelante é, apenas, um substituto processual e, não lhe tendo o Estado conferido o poder de restringir a queixa, excluindo algum ou alguns dos partícipes da conduta punível - muito pelo contrário até -, nada impede possa o substituído dar, por meio do aditamento, a exata dimensão, no aspecto subjetivo, à peça acusatória.16. Não cremos, data venia, que, ao redigir o art. 45 do CPP, houvesse o legislador se inspirado no art. 19 do CPP do antigo Distrito Federal ("Quando a ação for intentada por queixa, poderá ser aditada pelo Ministério Público, cabendo-lhe intervir em todos os termos do processo e interpor os recursos que no caso couberem").

Tal diploma amoldava-se ao ordenamento daquela época. Nos crimes de alçada privada, nenhuma ingerência tinha o Ministério Público. Entretanto, nos de ação pública, havia dois titulares alternativos do direito de acusar: Ministério Público e ofendido. Aquele, por meio de denúncia; este, de queixa. Justificava-se, pois, a regra do art. 19 do CPP do antigo Distrito Federal.

Com o novo ordenamento, aboliu-se o direito de o ofendido instaurar, em caráter principal, a relação processual em crimes de ação pública.Sendo assim, não se pode dizer, data venia, como pareceu ao eminente Paulo Cláudio Tovo, que o art. 45 do atual CPP houvesse sido modelado no art. 19 do estatuto processual penal do antigo Distrito Federal (cf. Ajuris, 18/27).

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Na verdade, se o ofendido já não pode ofertar queixa em crime de ação pública (arredada a hipótese do art. 29 do CPP), qual a razão que levaria o legislador a repetir, no art. 45, o teor daquele art. 19? Absolutamente nenhuma.

Aliás, o ilustre Professor da Pontifícia Universidade Católicade Porto Alegre reconhece que o Ministério Público somente podia aditar a queixa quando esta fosse peça inicial nos casos de crimes de ação pública. InÃOrbis: "Ora, em sendo possível a queixa em crime de ação pública (não como ação subsidiária, mas como ação principal), é lógico que nesses casos tivesse o Ministério Público legitimidade para aditar a queixa ou promover as correções que entendesse cabíveis. Isso o estatuído no art. 19 do CPP do antigo Distrito Federal. Todavia, quanto aos crimes de ação privada, não era reconhecido ao Ministério Público qualquer direito ao aditamento. Este o ensinamento da melhor doutrina da época" (cf. Ajuris, 18/29).17. Assim, desprezado o entendimento de poder o ofendido dar inicio a processo em crime de ação pública (exceto o caso previsto no art. 29 do CPP), aquele art. 19 perdeu sua razão de ser e, por isso mesmo, não podia ser fonte de inspiração do legislador de 194 1. Inspirá-lo para quê? Para traçar norma sobre instituto desprezado, obsoleto, relegado e abandonado pelo novo ordenamento? Como poderia o art. 45 do atual Código ter como matriz um dispositivo que regulava assunto diverso?

Usando, no art. 45, a expressão "ainda quando a ação penal for privativa do ofendido", teve o legislador dupla intenção: a) afastar-se, definitivamente, do ordenamento anterior, permitindo o aditamento mesmo

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nesses casos; b) deixar bem claro que o direito de o Ministério Público aditar a queixa não se restringe, exclusivamente, à hipótese do art. 29 do CPP, mas "amda quando a ação penal for privativa do ofendido".

Na hipótese do art. 29, se for excluído da queixa algum co-réu, não poderá o Ministério Público proceder ao aditamento? Claro. Se for excluída uma infração penal, não procederá o Ministério Público da mesma forma? Sem dúvida. E se se tratar de ação privativa do ofendido? Aíe preciso atentar para dois princípios: o da oportunidade e o da indi visibilidade. Assim, excluída uma infração penal de alçada privada, é vedado pelo princípio da conveniência ou oportunidade o aditamento pelo Ministério Público. Mas, se se tratar de exclusão de algum co-réu, o Ministério Público não só poderá como deverá ofertá-lo, em virtude

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de haver-lhe sido atribuída a função de velar pelo princípio da indivisibilidade, além da expressa autorização para aditar.

Mais ainda: o art. 45 do CPP cuida da queixa nos casos de exclu-

siva ação penal privada, enquanto o art. 19 retrocitado dela tratava nos crimes de ação pública. Nenhuma similitude, pois, entre ambos.

Por último: no ordenamento anterior não se admitia o aditamento do Ministério Público à queixa ofertada nos casos de exclusiva ação privada. 0 atual, rompendo com a tradição, salientou: "A queixa, ainda quando a ação penal for privativa do ofendido, poderá ser aditada pelo Ministério Público", querendo deixar bem claro que o aditamento não se dá, apenas, na hipótese de ação privada subsidiária da pública, mas, também, nos casos em que a ação penal for privativa do ofendido.

18. Da mesma forma que o legislador não cuidou da possibilidade de o Ministério Público ofertar denúncia substitutiva da queixa, no caso de crime complexo, por ser intuitivo, tampouco tratou da possibilidade de aquele oferecer denúncia por crime de ação pública conexo a crime de alçada privada, num simultaneus processus, por ser desnecessário, em face das regras consubstanciadas nos arts. 24 e 79 do CPP.

A prevalecer a opinião de que o aditamento a que se refere o art. 45 do CPP se relaciona com crime de ação pública, tal dispositivo constituiria mera excrescência no diploma processual, o que ultraja o princípio proibitivo da inserção de palavras inúteis no texto legal.

Passaria pela cabeça do intérprete menos avisado que, na hipótese de conexão entre crime de alçada privada e de ação pública, não pudesse haver um litisconsórcio ativo entre querelante e Ministério Público? Certamente não. Por isso, um dispositivo com tal finalidade seria de uma inutilidade palpável.

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Por todas essas razões, os arts. 45 e 46, § 1% do CPP ligam-se, indubitavelmente, ao art. 48 do mesmo diploma.

19. É bem verdade que o Egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em acórdão de que foi Relator o eminente Albano Nogueira (cf. Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 57/295), acolheu, por maioria de votos, a tese de que o Ministério Público não tem legitimidade para incluir co-reu na queixa, em se tratando de crime de exclusiva ação penal privada. Contudo os três argumentos invocados, data venia, não convencem.

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0 primeiro baseia-se nesta lição de Espínola Filho: "Quando se trata de ação que, por lei, só poderá ser proposta pela parte privada, o Ministério Público tem a faculdade de aditar, ou não, a queixa; desinteressando-se da ação penal na segunda hipótese, na primeira sua atividade será, porém, meramente secundária, de assistente, não podendo evitar que a parte principal abandone a ação, deixe ficar perempta, dela desista, perdoe o querelado" (cf. Código de Processo Penal brasileiro anotaÁ*, Borsoi, 1965, v. 1, p. 438).

Onde, pois, a afirmação categórica e convincente de não poder o Ministério Público incluir o co-réu? Evidente que a inclusão feita pelo aditamento do Ministério Público não impede a perempção, a desistência, o perdão. Opõe-se, tão-somente, à divisibilidade da ação privada: ou ela é proposta contra todos, ou contra nenhum. Essa a funçao proeminente do Ministério Público na ação penal de alçada exclusiva do ofendido. Mas, ainda que se entrevisse no ensinamento de Espínola Filho a conclusão a que chegou o Egrégio Tribunal, não representa ele, e afirmamos com o respeito e o carinho de que o saudoso mestre sempre demonstrou ser credor, a ultima ratio regum.

0 segundo, no sentido de que "o aditamento da queixa pelo Ministério Público viola, igualmente, o princípio da indivisibilidade da ação penal, princípio basilar da teoria da ação no processo penal", revela e traduz, venia concessa, uma incoerência. 0 não-aditamento e que implica violentação do aludido princípio.Por último: a não-inclusão de algum co-réu, na queixa, não faz supor, como ja vimos, renuncia tácita ao jus accusationis. Se a não-Inclusão implicasse renúncia tácita, a regra do art. 49 do CPP seria bastante e, por outro lado, supérflua seria a contida no art. 48 do mesmo estatuto. Ambas, entretanto, regulam situações afins, mas distintas. A primeira cuida da comunicabilidade da renúncia. A outra, da indivisibilidade da ação penal.Há até quem entenda que o aditamento a que se refere o art. 48 do CPP é apenas para "acrescentar ou corrigir algum dado omitido pelo querelante, como local, data, etc.". Para tal fim, o prazo não é tão exíguo como o do § 2.' do art. 46 do CPP. A qualquer tempo, antes da sentença final, poderá haver a corrigenda, nos termos do art. 569 do CPP.

Em trabalho publicado em 1987, sob o título Direito penal e direito processual penal (Forense), o eminente Prof. Weber Martins Batista

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(p. 84 e s.) deixou bem claro o real sentido do aditamento a que se re~_ ferem os arts. 45 e 46, § 1% do CPP: incluir querelado excluído. E acrescenta: "esta solução é não apenas jurídica, como lógica".

Por todas essas razões, não nos parece acertada a conclusão a que chegaram os responsáveis pelas Mesas de Processo Penal da USP, estabelecendo na Súmula 16 que, "Ern face dos princípios que regem a ação penal privada, não é possível aditamento à queixa pelo Ministério Público para inclusão de co-réu".

Se o Ministério Público, para acrescentar alguma circunstância excluída da queixa, tal como data, local e coisas assim, dispõe de um

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tempo bem dilatado, como se observa pelo art. 569 do CPP; se o Ministério Público, para formar um litisconsórcio ativo com o querelante, a toda evidência, não deve dispor do minguado tempo de 3 dias (tempo inferior àquele que a lei lhe confere para denunciar indiciado preso), como já expusemos, Indaga-se: em que consistirá o aditamento a que se referem os arts. 45 e 46, § 2.', do CPP? Qual princípio, dentre os que regem a ação penal privada, será violado se o MP incluir na queixa querelado excluído? 0 da oportunidade? Obviamente, não. Por esse princípio ele julga da conveniência, ou não, quanto à propositura da ação penal... Se ele a propôs, evidentemente julgou conveniente fazê-lo. E, se o fez, não podia olvidar a observância de outro princípio: o da indivisibilidade. Olvidando-o, caberá ao Ministério Público, na qualidade de fiscal desse princípio, como se infere do art. 48 do CPP, aditar a queixa, tal como permitido pelos arts. 45 e 46, § 2.', do mesmo Código, a menos que se pense que o querelante tem o direito, por aquele princípio, de ofertar queixa em relação a uns e não a outros... e, por isso, o aditamento feito por um orgão público estaria lesionando um direito seu...

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Arquivamento

31103/93 - DJ 13/08/93. Ementário ri.' 1712-1

HABEAS CORPUS N.' 70029-2 CEARA

TRIBUNAL PLENO

RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIOPACIENTES FRANCISCO DE ARAúJO MACEDO FILHO E

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OUTROS

IMPETRANTE : PROCURADOR-GERAL DA REPúBLICA

COATOR : CORTE ESPECIAL DO SUPERIOR TRIBUNAL DEJUSTIÇA

CRIME CONTRA A HONRA DE SERVIDOR PúBLICO TENDO EM VISTA 0 EXERCíCIO DA FUNÇÃO - PROCEDIMENTO. A teor do disposto no parágrafo único do artigo 145 do Código Penal, procede-se mediante representação do ofendido, cabendo ao titular da ação penal pública - ao Ministério Público - decidir sobre a apresentação, ou não, da denúncia.

AÇAO PENAL PUBLICA SUJEITA A REPRESENTAÇÃOINERCIA DO MINISTERIO PúBLICO X MANIFESTAÇÃO NO SENTIDO DO ARQUIVAMENTO. Impossível é confundir ato comissivo- a promoção no sentido do arquivamento - COM o omissivo, ou seja,

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a ausencia de apresentação da denúncia no prazo legal. Apenas neste último caso a ordem jurídica indica a legitimação do próprio ofendido - artigos 5.", inciso LIX, da Constituição Federal, 29 do Código de Processo Penal e 100, § 3.', do Código Penal - Precedentes: habeascorpus n.' 32.237 - relatado pelo Ministro Luis Gallotti - julgado pelo Pleno em 29 de outubro de 1952; recurso extraordinário ri.' 62.383 - relatado pelo Ministro Amaral Santos - Terceira Turma - acórdão publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência n.' 53, páginas 07 a 14; recurso extraordinário criminal n.' 94.135 - relatado pelo Ministro Leitão de Abreu - Segunda Turma - acórdão publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência n.' 99, páginas 452 a 455; habeas-corpus n.' 59.966-6 - relatado pelo Ministro Cordeiro Guerra - Segunda Turma - acórdão publicado no Diário da Justiça de 26 de novembro de 1982; inquérito n.' 172 - relatado pelo Ministro Octávio Gallotti -julgado pelo Pleno - acórdão publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência, n.' 112, páginas 474 a 485; habeas-corpus n.' 63.802 - relatado pelo Ministro Sydney Sanches - julgado pelo Pleno - publicado o acórdão na Revista Trimestral de Jurisprudência de n.' 118, paginas 130 a 149; habeas-corpus n.' 65.260-3 - relatado pelo Ministro Néri da Silveira - Primeira Turma - acórdão publicado no Diário da Justiça de 08 de setembro de 1989; habeas-corpus n.' 67.502 - relatado pelo Ministro Paulo Brossard - Segunda Turma - acórdão publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência n.' 130, páginas 1.084 a 1.087 e habeas-corpus n.' 68.540 - relatado pelo Ministro Octávio Gallotti - Primeira Turma - publicado o acórdão na Revista Trimestral de Jurisprudência ri.' 136, páginas 651 a 656.

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REPRESENTAÇÃO - MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PúBLICO PELO ARQUIVAMENTO - DISCIPLINA LEGAL -CONSEQUENCIAS. A norma do artigo 3.', inciso 1, da Lei n.' 8.038/ 90 encerra balizas referentes à competência para apreciar o que propugnado pelo Ministério Público. Ao relator compete decidir pela atuação no campo monocrático ou submeter a espécie ao Colegiado. Inexiste incompatibilidade entre o citado preceito e o teor do artigo 28 do Código de Processo Penal, a ponto de afastar as soluções previstas neste último. Quer ao relator, quer ao Tribunal cumpre deliberar pelo arquivamento requerido ou, entendendo serem improcedentes as razões evocadas, remeter a representação, inquérito ou as peças de informação ao Procurador-Geral, para que este adote uma das três soluções legais: oferecimento dáde-

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núncia, designação de outro órgão do Ministério Público para fazê-lo e, por último, a insistência no pedido de arquivamento, ficando o órgão investido do ofício judicante compelido ao atendimento desta última proposição.

REPRESENTAÇAO DO OFENDIDO - ARQUIVAMENTO -COMPETENCIA ORIGINARIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - CONSEQÜÊNCIAS. Distinguem-se as posições do Su-periosKribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal quando atuam originariamente em processos que abranjam inquérito, representação ou peças de informação. A competência originária do Supremo Tribunal Federal é indicativa da atividade via Plenário, o que atrai a atuação do Procurador-Geral da República. Daí não se poder cogitar, no caso de promoção deste no sentido do arquivamento, de remessa a órgão para que apresente denúncia, designe outrem para fazê-lo ou insista na colocaçao inicial. 0 mesmo não ocorre em relação ao Superior Tribunal de Justiça. A organização funcional do Ministério Público e, portanto, o fato de nele atuarem membros com o "status" de Subprocurador-Geral da República não afasta a incidência do disposto no § 1.' do artigo 128 da Constituição Federal, no que revela que o Ministério Público da União tem como Chefe o Procurador-Geral da República, o que, por si só, viabiliza a aplicação da segunda parte do preceito do artigo 28 do Código de Processo Penal. A este cabe a última palavra sobre a viabilidade, ou não, da ação penal pública, sendo insuplantável, aí sim, o pronunciamento negativo a respeito.

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J!'

00-Bibliograria

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